recensão crítica - análise, actualização e crítica ao esquema conceptual de pierre bourdieu...

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FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO LICENCIATURA EM SOCIOLOGIA ANO LECTIVO DE 2010/11 ANÁLISE, ACTUALIZAÇÃO E CRÍTICA AO ESQUEMA CONCEPTUAL DE PIERRE BOURDIEU PRESENTE NA OBRA «A MISÉRIA DO MUNDO» Autor: Gonçalo Marques Pereira Soares Barbosa Realizado para a unidade curricular de Correntes Actuais da Sociologia 2, leccionada pela docente Paula Guerra Porto, 9 de Julho de 2011

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Um exercício de aplicação empírica de uma parte da obra «A Miséria do Mundo» de Pierre Bourdieu, a par de um levantamento de críticas e complementaridades ao seu quadro conceptual.

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FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO

LICENCIATURA EM SOCIOLOGIA

ANO LECTIVO DE 2010/11

ANÁLISE, ACTUALIZAÇÃO E CRÍTICA AO ESQUEMA CONCEPTUAL DE

PIERRE BOURDIEU PRESENTE NA OBRA «A MISÉRIA DO MUNDO»

Autor:

Gonçalo Marques Pereira Soares Barbosa

Realizado para a unidade curricular de Correntes Actuais da Sociologia 2,

leccionada pela docente Paula Guerra

Porto, 9 de Julho de 2011

1

Sumário

Índice de figuras ....................................................................................... 2

Índice de anexos ....................................................................................... 3

Notas introdutórias .................................................................................... 4

I – A disputa dos campos entre grupos de imigrantes e de locais ............................. 5

1 – O posicionamento dos imigrantes e dos locais nos campos ................................. 5

2 – Como se originaram os posicionamentos nos campos? ....................................... 7

2.1 – A vinda dos imigrantes e a criação de espaços de diversidade étnica e

cultural .............................................................................................. 8

2.2 – O confronto entre imigrantes e locais nos campos ................................... 10

2.3 – A derrota dos imigrantes nos campos ................................................... 11

II – Os media: reprodutores da luta de campos? ................................................ 15

1 – Análise tabular das notícias ................................................................... 19

2 – Uma intemporalidade empírica da teoria bourdieusiana .................................. 19

2.1 – O Estado como fonte de intervenção nas relações nos campos ..................... 19

2.2 – O impacto dos imigrantes na demografia .............................................. 20

2.3 – Acentuação do carácter conflitual nas comunidades imigrantes ................... 21

2.4 – Novas nuvens temáticas sobre a imigração aplicada à teoria bourdieusiana ..... 22

III – Oposições e complementaridades à teoria de Bourdieu ................................. 24

1 – O habitus em análise ........................................................................... 24

2 – O papel dos media .............................................................................. 27

3 – A educação e a influência societal ........................................................... 28

4 – Crime e desvio ................................................................................... 29

5 – Segregação étnica............................................................................... 32

Considerações finais.................................................................................. 35

Referências bibliográficas consultadas ........................................................... 36

Anexos .................................................................................................. 39

2

Índice de figuras

Figura 1

Espaço de posições sociais ........................................................................... 5

Figura 2

Teia conceptual de Bourdieu aplicada à problemática dos imigrantes ..................... 14

Figura 3

Teia conceptual de Bourdieu aplicada à problemática dos imigrantes – adaptada às

novas temáticas ....................................................................................... 23

Figura 4

Complementaridades entre Giddens e Bourdieu – habitus e segurança ontológica ...... 25

Figura 5

Complementaridades entre Giddens e Bourdieu – capitais e globalização ................ 26

Figura 6

Teia conceptual de Bourdieu aplicada à problemática dos imigrantes – adaptada a novos

autores .................................................................................................. 34

3

Índice de anexos

Anexo 1

Ficha de leitura da obra «A Miséria do Mundo»................................................. 39

Anexo 2

Notícia n.º 1 – Sarkozy lidera com mão de ferro um Estado enfraquecido ................ 82

Anexo 3

Notícia n.º 2 – O contágio do medo ................................................................ 85

Anexo 4

Notícia n.º 3 – Imigração, inevitável e indispensável .......................................... 88

Anexo 5

Notícia n.º 4 – Guerras de línguas, poder e fronteiras ......................................... 91

Anexo 6

Notícia n.º 5 – O falhanço da integração ao estilo sueco ...................................... 94

Anexo 7

Notícia n.º 6 – Os turcos ainda assustam os austríacos ........................................ 97

4

Notas introdutórias

Esta recensão crítica foi produzida no âmbito da unidade curricular de Correntes

Actuais da Sociologia 2, do 1.º ciclo de estudos em Sociologia da Faculdade de Letras da

Universidade do Porto. Estando inserida na abordagem teórica aos três autores de síntese

contemporâneos com maior relevância na sociologia actual, Norbert Elias, Anthony Giddens

e Pierre Bourdieu, pretende-se aqui, em particular, um exercício teorico-empírico aplicado

a este último autor, estando organizado em três momentos.

Primeiro, iremos recorrer a uma das obras centrais deste sociólogo francês, e desde

logo realizar uma análise conceptual a alguns capítulos específicos da mesma. Optou-se

assim por abordar A Miséria do Mundo1, de Pierre Bourdieu2. Será analisado o bloco de

entrevistas do capítulo O espaço dos pontos de vista. Para a abordagem a esta obra,

alicerçamo-nos de uma ficha de leitura, que pretende constituir uma base de dados com o

levantamento das ideias e citações centrais presentes nas páginas do livro em análise, e

que se encontra presente no anexo 1. Uma vez que nunca há uma componente teórica

explicitamente presente na obra, optamos por tentar demonstrar como as várias temáticas

expostas nessas entrevistas se enquadram na teia conceptual proposta por Bourdieu.

Num segundo momento, partimos para uma demonstração empírica da teia

conceptual deste autor, recorrendo a um conjunto de seis notícias actuais. Pretende-se

aqui perceber até que ponto a teoria bourdieusiana mantém a sua aplicabilidade na

actualidade, ou até que ponto será necessária uma expansão ou revisão desse modelo.

Um último capítulo, em jeito de balanço aos dois anteriores, pretende constituir

uma pequena base de dados de propostas teóricas de outros autores, que possam tanto

servir como crítica ao quadro teórico de Bourdieu, ou como meios de complementaridade à

proposta deste sociólogo de síntese.

1 A Miséria do Mundo: obra publicada em 1993, constitui uma compilação das contribuições de 18 investigadores que, em 564 páginas, apresentam tudo aquilo que é possível realizar-se com entrevistas. Ao longo de seis blocos temáticos, a obra apresenta um conjunto de fontes de miséria social na população. 2 Pierre Bourdieu (1930-2002): sociólogo e antropólogo cultural francês, que recolheu boa parte do seu quadro conceptual durante o seu serviço no exército francês na guerra da independência da Argélia. Desenvolveu conceitos como habitus e campo e redigiu obras emblemáticas como A Reprodução, Razões Práticas, ou A Distinção.

5

I – A disputa dos campos entre grupos de imigrantes e de locais

1 – O posicionamento dos imigrantes e dos locais nos campos

Tendo em conta que entendemos campo como um «[…] estado de relações de força

entre agentes e instituições envolvidos numa luta, ou, se se preferir, é uma distribuição

do capital específico a qual, acumulada no curso de anteriores lutas, orienta estratégias

futuras.» (cit. Por Casanova, 1995, p. 66), iremos aqui encarar um campo particular e

genérico de disputa. Considerando as dinâmicas imigratórias que muito caracterizaram e

ainda caracterizam a França, poderemos considerar que emerge neste país um conflito

geral pelos benefícios socioeconómicos. Como se distribuem os agentes sociais deste país

no espaço social? De acordo com Pierre Bourdieu, «[…] os agentes distribuem-se, na

primeira dimensão, segundo o volume global do capital que possuem sob as suas diferente

espécies e, na segunda, segundo a estrutura do seu capital, quer dizer, segundo o peso

relativo das diferentes espécies de capital, económico e cultural, no volume total do seu

capital.» (Bourdieu, 1997, p. 7). Ora, neste caso concreto, poderemos localizar da seguinte

forma, genericamente, os diferentes grupos da população, correndo o risco de simplificar

em demasia o contexto francês:

Figura 1

Espaço de posições sociais

Adaptado de Bourdieu, Pierre – Razões Práticas, p. 8

6

São os imigrantes que se apresentam na posição menos favorável. Tipicamente, são

os que apresentam uma menor quantidade de capital total e, em termos relativos, o

capital económico é muito diminuto. O exemplo mais marcante do baixo nível deste tipo

de capital é o relatado pela dona Tellier, que viu a sua loja de desporto totalmente

vandalizada e assaltada pelos jovens do seu bairro; a loja foi vista como um insulto por

apresentar bens inalcançáveis a esses jovens, bens que simbolizavam um nível económico

que eles não possuíam; em resultado disso, «[…] esses jovens que vinham, eles vinham

procurar roubar, mais as palavras, mais os insultos. Agressivos, muito, muito agressivos.»

(Bourdieu, 1993, p. 122). Quanto ao nível de capital cultural, poderemos destacar o

testemunho de Ali, um argelino que abandonou prematuramente a escola, por influência

dos seus colegas de bairro, que nunca iam à escola: «Sim, mas se você aprendesse e tudo,

bem, você se sairia bem. Sem problema. Mas a gente preferia divertir-se.» (Bourdieu,

1993, p. 88), conta Ali ao entrevistador.

No lado oposto, temos os cidadãos locais, e em particular aqueles que se localizam

nas zonas mais centrais das cidades, que apresentam os maiores valores de capital social e

económico. Numa situação intermédia, podemos encontrar os cidadãos locais de França,

mas que vivem nos bairros sociais onde tipicamente são concentrados os imigrantes. Estes

franceses caracterizam-se por uma maior debilidade do ponto de vista do capital

económico, apresentando um peso relativo significativo do capital cultural, já que têm

condições mais favoráveis para a obtenção de diplomas e certificações, em particular com

o factor língua comum.

No esquema, foram ainda distinguidos dois grupos de imigrantes, que foram

múltiplas vezes referidos de forma subtil pelos entrevistados. O Sr. Hocine, tunisino,

refere que está sempre pronto para defender aqueles que relatam problemas sobre

imigrantes, e acrescenta que «[…] os imigrantes não são os espanhóis, não são os

portugueses, não são os turcos, não são… Os imigrantes são os norte-africanos, são os

tunisianos, os argelinos, os marroquinos!» (Bourdieu, 1993, p. 131). Já Maria, espanhola,

refere que as posturas dos argelinos diferem significativamente da sua, no que concerne ao

empenho em trabalhos vistos como menores, nomeadamente ser operário, ou nos

comportamentos de natalidade, com os argelinos a terem tipicamente famílias muito

numerosas. Assim, desta forma, os entrevistados transmitiram a ideia de que um grupo de

imigrantes, os europeus, por uma maior proximidade e capacidade de adaptação à cultura

francesa, apresentariam assim uma melhor posição no campo do que os restantes

imigrantes; os primeiros têm uma maior quantidade de capital cultural e social, o que se

traduz num maior valor do capital global.

7

Deveremos destacar ainda a forte tendência reprodutiva deste posicionamento nos

campos, já que tipicamente as segundas gerações de imigrantes não conseguem engajar-se

em movimentações significativas neste campo. Os jovens deparam-se com sérios problemas

de adaptação ao sistema de ensino e de entrada no mercado de trabalho, com elevadas

taxas de desemprego. Este último factor foi referido por múltiplos entrevistados, como é o

caso de Sylvie, francesa de origem, que reconhece o quanto os jovens sofrem com o

desemprego; esta jovem, bem como o seu marido Thierry, compreendem que «[…] o

desemprego pesa sobre esses jovens de uma maneira […] mais aguda que sobre eles e

reconhecem que esses comportamentos desviantes são causados principalmente pela

situação de anomia criada pela imigração […]» (Bourdieu, 1993, p. 144). Foi possível

observar em todas as entrevistas uma ausência de significativos movimentos de ascensão

social; a reprodução social foi a nota dominante, o que vai de acordo com o que Pierre

Bourdieu defende: a existência de uma elevada carga reprodutiva nos campos.

De tal forma se manifesta a superioridade quantitativa dos vários tipos de capitais

nos cidadãos locais face aos imigrantes que poderemos considerar que ocorre uma

manifesta homologia dos campos, isto é, os agentes sociais que se apresentam no topo de

um campo, como por exemplo, o económico, estarão também nas melhores posições no

respeitante aos outros campos, algo que «[…] reflecte uma constituição estrutural similar

nos diferentes campos […]» (Casanova, 1995, p. 66). Se individualizássemos o espaço social

apresentado acima nos vários campos cultural, social, económico, entre outros, iríamos ter

sempre posicionamentos semelhantes, com os imigrantes a serem posicionados no lado

inferior dos vários campos, em oposição aos cidadãos locais, que emergem sempre no lado

superior dos mesmos, já que possuem maiores quantidades de dos vários tipos de capitais.

2. Como se originaram os posicionamentos nos campos?

Descrito o estado actual desta disputa pelos campos, importará perceber como se

originam estes posicionamentos, como é que os agentes sociais chegam a uma determinada

posição no espaço social, isto é, como se realiza a «[...] correspondência, mais ou menos

estreita, entre uma certa ordem de coexistência (ou de distribuição) dos agentes e uma

certa ordem de coexistência (ou de distribuição) das propriedades.» (Bourdieu, 1998, p.

119). Podemos descrever em três momentos o processo de disputa dos campos, tal como

denuncia o esquema síntese que está presente no final deste capítulo (figura 2), e que

apresenta os conceitos chave deste autor, interligando-o com algumas componentes desta

problemática dos imigrantes em França.

8

2.1. A vinda dos imigrantes e a criação de espaços de diversidade étnica e cultural

Quando os imigrantes chegam aos bairros sociais, vêm dominados por sonhos de

ascensão social. São muitos os que emigram para França na expectativa de melhorar as

suas condições de vida, ou então em movimentos de fuga de países que não puderam dar-

lhes a vida que eles ambicionavam. É o caso da Maria, uma mulher espanhola que

abandona a sua aldeia sem ainda nem ter completado 18 anos, por falta de emprego na sua

aldeia.

Do ponto de vista económico, estes imigrantes perspectivam empregos que lhes

permitam acumular capital económico e ascender socialmente. Mas deparam-se com

desemprego e com actividades profissionais que não lhes garantem significativa margem de

mobilidade, como operários em fábricas, ou porteiros nos bairros sociais. Muitos

imigrantes, desmotivados, não se sentem incentivados a ir para esses empregos que estão

associados a baixos rendimentos e fracas condições laborais.

O alojamento é normalmente um factor de instabilidade para os entrevistados, que

descrevem a forma como passaram por múltiplos locais até chegarem àqueles em que se

encontravam no momento da entrevista, normalmente bairros sociais. É o caso da família

argelina Ben Mirould: primeiro estiveram numa casa que se encontrava ao abandono, e que

foi oferecida de forma gratuita pelo patrão a título temporário, depois transitaram para

uma favela e só após várias diligências com os assistentes sociais conseguiram um

apartamento apertado de Paris.

Do ponto de vista da educação, a socialização primária exercida pelos pais

imigrantes aos seus filhos é objecto de algumas críticas. A viverem num contexto

socioeconómico complexo, estes filhos necessitariam de uma educação mais firme, que

impeça que estes sigam caminhos de marginalidade ou crime. Thierry e Christian, de

origens populares, vêem na sua rígida educação o motivo pelo qual não caíram mais baixo

na sua trajectória social. O Sr. Leblond, francês de origem, acha que o centro dos

problemas de coabitação reside nos jovens, «[…] condenados à privação e à pobreza, e,

sobretudo, no ambiente escolar, para o qual nada os prepara, aos revezes e à humilhação

[…] escapam, às vezes completamente, como os dois filhos mais velhos de Amezziane, ao

controlo familiar.» (Bourdieu, 1993, p. 23).

A vinda de várias comunidades de imigrantes de múltiplos países faz com que

frequentemente numa mesma zona residam pessoas de várias etnias e nacionalidades,

fomentando espaços de diversidade cultural. As diferenças culturais são uma frequente

causa de fricção entre os residentes dos bairros: as tradições de cada país por vezes

9

causam fricção e incompreensão entre os vários membros. O casal Leblond, família de

origem francesa, descreve como é por vezes complicado conviver com os argelinos,

especialmente na altura do Ramadão, por causa do barulho: «Os jovens berram. É preciso

ouvi-los reclamando. E depois, eles começam a viver às dez horas da noite, então quando

você quer ir dormir, bem, palavra de honra… você tem direito a todo barulho…» (Bourdieu,

1993, p. 29). Já a família argelina Ben Mirould refere que as pessoas não compreendem as

constantes movimentações de pessoas em sua casa: «Veja, a minha irmã mais velha mora

na casa dela e, é claro, ela passa aqui todos os dias, vêem-na sempre aqui, ela vem ver os

pais, é normal! Assegurar-se que tudo vai bem, às vezes dorme aqui. Todos temos um

quarto ou uma cama aqui. No entanto, ela tem a casa dela… É assim entre nós: não

abandonamos nossos pais ou simplesmente ir vê-los todo dia 30 de Fevereiro (…)»

(Bourdieu, 1993, p. 43). A dona Meunier, residente desse bairro, transpira justamente essa

visão de desconfiança: «Com eles, nunca se sabe quantos estão. Quem faz parte da

família, quem não faz parte da família. É um vai-e-vém que não acaba mais. Há sempre

uma garotada. Eles estão em toda a parte, na rua, na praça; eles gritam, eles choram.»

(Bourdieu, 1993, p. 48).

Na escola, as limitações e o desinteresse são uma ameaça constante. Alguns cedem;

Ali, descendente argelino, enfrentou grandes dificuldades na escola, a língua era uma

barreira para aprender a ler: «[…] ignorando completamente o francês quando de sua

entrada tardia para a escola e só falando árabe em família […], ele tem muita dificuldade

em aprender a ler […]» (Bourdieu, 1993, p. 82); deixou de ir à escola quando entrou numa

turma com alguns colegas do seu bairro, nenhum deles ia às aulas e os professores pareçam

não se importar muito com esse facto. Outros realizam esforços sistemáticos para

garantirem que os seus filhos consigam um percurso escolar de sucesso; é o caso de Maria,

a imigrante espanhola, que relatou como agiu quando percebeu que um dos filhos estava

em risco de reprovar: «Ele passou raspando e eu já fui chamada duas, três vezes porque

ele começava a não mais respeitar os professores e tudo isso. Eu lhe disse, “ah! bom?, eu

lhe passei um sabão e acreditava que isso ia melhorar; ele terminou a sexta rente, mas

terminou.» (Bourdieu, 1993, p. 109). Do ponto de vista do capital escolar poderemos

compreender que genericamente se denota um desinteresse e afastamento dos jovens

imigrantes ou filhos de imigrantes face à escola, algo que se acentua pelos contextos de

socialização em que estes se encontram, que acentuam essa tendência de absentismo e

abandono escolar.

10

2.2. O confronto entre imigrantes e locais nos campos

Com todas as características e distâncias ao nível social, cultural, escolar,

económico ou familiar que foram elencadas no ponto anterior, geram-se diferenças

significativas entre imigrantes e locais ao nível do habitus, isto é, «[…] o modo como a

sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, ou

capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos

determinados, que então as guiam nas suas respostas criativas aos constrangimentos e

solicitações do seu meio social existente.» (Wacquant, 2004, p. 36). É este habitus que

vai influir fortemente nos posicionamentos dos agentes nos campos sociais, já que é o

responsável pelas práticas sociais dos agentes nos vários campos. Aqui entramos no

segundo momento da problemática dos imigrantes: os confrontos nos campos.

Os jovens, globalmente desinteressados e desmotivados, apresentam um baixo

investimento nos campos e uma fraca illusio. A illusio corresponde ao «[…] facto de se

estar envolvido no jogo, tomado pelo jogo, de se crer que o jogo compensa, ou, para dizer

as coisas simplesmente, que vale a pena jogar.» (Bourdieu, 1997, p. 106). Será o próprio

habitus destes jovens que lhes levará a não querer investir nestes campos, a considerarem

que não vale a pena investir na escola ou a procurar um emprego. Influenciados pelos seus

grupos de amigos, pouco incentivados pelos professores ou pouco orientados pela família,

não vêem interesse no jogo de disputa dos campos.

Na disputa pelos campos sociais, vale tudo. E por vezes, para satisfazerem os seus

próprios interesses individuais, os agentes poderão mobilizar-se contra outros indivíduos.

Foi o que aconteceu com a família de Françoise, vítima da ambição dos seus vizinhos

portugueses, que aspiravam ampliar o seu capital económico ao acrescentar um segundo

piso. A família de Françoise logo se mobilizou contra este projecto, mas «Um pouco de

desordem não assustava este vizinho importuno; com a reprovação geral, seu pequeno

jardim logo é transformado em galinheiro e pocilga; ele não hesita em usar a janela do

litígio para jogar lixo, ou simplesmente roubar os tomates carinhosamente plantados por

Thierry.». Apesar de Françoise ter chamado as autoridades e sensibilizado os vizinhos a

família de portugueses persistiu, estendendo mesmo a disputa do campo à escola, com os

filhos dos portugueses a fazerem bullying à filha de Françoise. A situação ficou de tal

forma problemática que a família sentiu necessidade de ceder e mudar-se.

11

2.3. A derrota dos imigrantes nos campos

O confronto dos grupos sociais nos campos gera representações de uns grupos sobre

os outros. Essas representações são fortemente baseadas no próprio habitus dos agentes

sociais, já que é este código de leitura que definirá aquilo que os outros grupos fazem

como bom ou mau, com valor ou sem valor, digno ou não digno.

Um dos grupos de socialização que contribui de forma significativa para a formação

destas representações sociais é os meios de comunicação social, que frequentemente, na

opinião dos moradores dos bairros sociais, deturpam a imagem real dessas áreas,

exagerando no grau de violência e conflito a que esses são sujeitos: «[…] além de palavras

convencionais, como “guetos, cidades-dormitório, emigrados sujeitos a constrangimentos,

polícia selvagem, violência dos subúrbios, etc.” há uma realidade mais banal […]»

(Bourdieu, 1993, p. 72). Apenas os jornalistas locais têm a capacidade de dar um retrato

mais fiel; por outro lado, os habitantes dos bairros sociais estão impotentes: «Os

dominados são os menos aptos a poderem controlar sua própria representação. O

espectáculo de sua vida quotidiana não pode ser, para os jornalistas, senão ordinário e sem

interesse. Porque eles são desprovidos de cultura, e além disso incapazes de se exprimir

nas formas requeridas ela grande mídia.» (Bourdieu, 1993, p. 66).

Essas representações sociais, consolidadas pelo habitus traduzem uma derrota nos

campos, em particular no campo do poder simbólico, que no fundo é uma representação

do fraco valor dos capitais que os imigrantes possuem nos restantes campos. Percebe-se

assim que os quadros de valorização dos capitais, em todas as suas variantes, são benéficos

à cultura francesa e aos seus cidadãos de origem, prejudicando os capitais dos imigrantes e

das suas gerações, que possuem tipos de capitais com um menor valor nesse país.

Estes sistemas simbólicos acabam por conferir uma legitimação das relações de

dominação, gerando assim uma violência simbólica, e que corresponde fundamentalmente

ao terceiro e último momento. «O efeito de dominação simbólica (de sexo, de etnia, de

cultura, de língua, etc.) exerce-se não na obscuridade das disposições do habitus, onde

estão inscritos, os esquemas de percepção, de apreciação e de acção, que fundam, aquém

das decisões da consciência e dos controlos da vontade, uma relação de conhecimento e de

reconhecimento práticos profundamente obscura para si própria.» (Bourdieu, 1998, p.

151). Importa aqui destacar que os imigrantes não se deixam dominar de forma voluntária

face aos cidadãos locais: «[…] esta submissão nada tem de uma relação de “servidão

voluntária” e esta cumplicidade não é concedida por meio de um acto consciente e

12

deliberado.» (Bourdieu, 1998, p. 151). O habitus fornece uma inércia a esses imigrantes,

fazendo com que estes interiorizem e reproduzam essa condição de dominado.

O principal elemento simbólico do imigrante é o seu próprio corpo. Será adequado

falarmos aqui de uma hexis corporal, «O corpo está no mundo social, mas o mundo social

está no corpo […]» (Bourdieu, 1998, p. 135). O corpo é o principal denunciador da condição

de imigrante: a cor da pele, os traços faciais, são elementos que falam mais alto, por mais

que o imigrante os queira silenciar, eles despertam de imediato a estrutura, que se levanta

para lhes incutir disposições ou representações sociais.

Tanto a violência simbólica, gerada pelo poder simbólico, como a hexis corporal

geram práticas sociais específicas em torno dos imigrantes. Uma delas é uma

incompreensão e simplificação que os cidadãos locais realizam face aos imigrantes,

encarando-os sempre como meros imigrantes, mesmo quando já são descendentes,

continuando a serem tratados como se não tivessem a nacionalidade francesa: «Se há algo

a compreender em tudo isso é que eles simplesmente gostariam que não estivéssemos

aqui. Ou, se estamos, é preciso que a gente não seja visto, que não se mostre.» (Bourdieu,

1993, p. 44), diz o filho.

Há também um efeito de segregação espacial destes dois grupos, já que

tipicamente os organismos de gestão autárquica optam por concentrar as famílias

imigrantes num só local, juntando-se assim todas as famílias vistas como problemáticas

num mesmo sítio, normalmente num bairro social. O Sr. Leblond é um crítico dessa

tendência de concentração: «Ela alojava todas aquelas pessoas juntas, e não era isso que

deveria ter sido feito com a Familiale nem com a prefeitura; aquelas pessoas deveriam ser

espalhadas um pouco, habituadas um pouco a viver, não estão mais no mato.» (Bourdieu,

1993, p. 31), relata o francês.

O racismo é um conceito que está sempre presente no discurso dos entrevistados,

seja de forma explícita ou implícita. Os entrevistados medem as palavras, tentam

esquivar-se de afirmações que possam parecer preconceituosas, mas ao mesmo tempo não

deixam de accionar um conjunto de inculcações relativas aos outros grupos. Dona Meunier,

residente de um bairro social, comenta as mudanças nos residentes desse espaço: «Não é

pelo racismo que eu digo que há aqui cada vez mais famílias imigradas, famílias árabes.

Não sei o que elas são, argelinos, marroquinos; famílias de norte-africanos. E isso não

ajuda a arrumar as coisas, para tornar o bairro agradável.» (Bourdieu, 1993, p. 46). Há

ainda quem acuse outros de racismo: a Maria, espanhola, considera que os árabes são mais

racistas que os restantes, «Eles, ás vezes, chegam à porta e, quando vêem muitos

europeus, não entram. É preciso que eles estejam em maioria, os árabes.» (Bourdieu,

13

1993, p. 112). Dona Meunier, uma vizinha francesa de um bairro social, argumenta que os

filhos dos imigrantes são os mais perigosos, «Antes mesmo que você diga uma palavra, eles

o acusam de racismo; qualquer um que discordar deles, para eles é um racista. Então, são

eles os racistas.» (Bourdieu, 1993, p. 49). Já Sylvie está consciente de que estão

desinteressados na vida, algo que é fomentado pelo sistemático racismo que eles sofrem

por todo o lado. Thierry, seu marido, diz que muitas vezes as crianças já são educadas

para o racismo: os seus filhos «[…] não são educados no racismo, como faz meu irmão com

os filhos dele. Na casa dele, a mais nova, que tem cinco, quatro anos, ela está no

maternal, ele não pára de lhe dizer: “os árabes são bosta”.» (Bourdieu, 1993, p. 158).

Christian é o único que se assume como racista, mas apenas daqueles que vão contra as

normas societais: «Se você disser qualquer coisa [aos jovens], você é racista. Eu não

concordo. Conheço e tenho companheiros tunisianos, argelinos… […] “eu sou racista com

bagunceiros, é tudo.”» (Bourdieu, 1993, p. 150).

Explorados os três momentos da luta nos campos, resta fazer uma ressalva.

Seguimos neste modelo a tendência central, tivemos em conta as regularidades sociais,

numa lógica muito defendida por Bourdieu de reprodução social. Contudo, é sempre

importante referir que é possível efectuarem-se movimentações no espaço social que

contrariem a tendência dominante. A dona Maria, espanhola, é um desses casos raros de

consciência e de planeamento da luta nos campos, com vista à obtenção do melhor

posicionamento possível. «Longe da resignação e do fatalismo ou, ao contrário, dos

projectos totalmente irreais que caracterizam frequentemente as fracções mais baixas da

classe operária, Maria D. mostra uma atitude de reivindicação razoável; é preciso buscar,

pela luta, melhorar mas sem querer o impossível.» (Bourdieu, 1993, p. 108). Para além

disso, apercebe-se de que é nas famílias numerosas que os problemas de controlo dos

filhos se acentuam, e por isso contra voluntariamente o seu nível de fecundidade para

apenas dois filhos, nos quais pôde centrar todas as suas atenções.

14

Figura 2

Teia conceptual de Bourdieu aplicada à problemática dos imigrantes

15

II – Os media: reprodutores da luta de campos?

Quando se referiu a importância dos meios de comunicação social para a

consolidação das representações sociais que envolvem o campo simbólico, considerou-se

que estes transmitiam uma visão excessivamente pessimista dos bairros sociais e dos

imigrantes, exagerando as dimensões de violência, conflito ou precariedade. Assim, neste

segundo capítulo propomo-nos a realizar um curto exercício de verificação empírica, que

permita ver até que ponto essa noção é real, perceber até que ponto os meios de

comunicação também interiorizam o habitus e, no momento de transmitirem as notícias,

também os jornalistas accionam automatismos, inculcações ou conhecimentos

praxiológicos. Ao mesmo tempo, tentaremos actualizar o contexto e vivências dos

imigrantes, ao recorrermos a notícias mais recentes, que tenham em conta a realidade

actual da sociedade, já que as entrevistas da obra foram realizadas há mais de duas

décadas atrás. Esta pesquisa noticiosa permite ainda tentarmos verificar a validade da

teoria bourdieusiana no tempo actual.

Para esta verificação, optamos por seleccionar um conjunto de artigos de notícias

online, recorrendo a uma conceituada página de notícias, a Presseurop, que compila

notícias dos vários países, e que são traduzidos para múltiplas línguas, onde se inclui o

português. Assim, efectuou-se uma pesquisa na base de artigos disponível nessa página,

recorrendo a palavras-chave de pesquisa como imigrantes, imigração, integração, conflito,

dificuldades e potencialidades. Obtivemos assim um total de seis artigos que pareceram

adequar-se à nuvem temática deste relatório. Será efectuada uma análise notícia a

notícia, tentando analisar os seguintes aspectos: aplicabilidade de conceitos bourdianos?;

presença de novas temáticas relativas aos imigrantes?; forma como são encarados os

imigrantes?.

1. Análise tabular das notícias

Notícia n.º 1 – Anexo 2

Título «Sarkozy lidera com mão de ferro um Estado enfraquecido»

Resumo

Aborda a questão das políticas relativas a imigrantes: uma de expulsão

de imigrantes, em particular do despejamento de 40 acampamentos

com 700 pessoas; outra, de retirada da nacionalidade de qualquer

cidadão francês de origem estrangeira que cometa um crime violento,

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após o alvejamento de um polícia por parte de um assaltante num

bairro de imigrantes.

Aplicabilidade

Denuncia a violência simbólica exercida sobre os imigrantes, e em

particular a forma como os próprios mecanismos estatais reproduzem

essa relação de dominação. Os ciganos são vistos como símbolos de

desordem aos quais o Estado declara guerra.

Novos temas Políticas de expulsão de imigrantes decorrentes de situações de anomia

social e desvio.

Imigrantes

Os incidentes e confrontos são referidos na notícia como frequentes, a

“tensão é latente” e que qualquer movimentação da polícia no bairro

de imigrantes pode causar uma “escalada de violência”, que poderá

“acontecer a qualquer momento”.

Destacou-se na notícia um jovem cigano que passou de carro num ponto

de polícia com um polícia no capô do carro e ainda o testemunho de

uma local de um bairro de imigrantes que classifica a situação como

parecendo Beirute.

Notícia n.º 2 – Anexo 3

Título «O contágio do medo»

Resumo

Relata a afirmação do partido Democrata da Suécia nas últimas

legislativas, que traduz uma alteração no estado de espírito dos suecos,

agora mais desconfiados quanto à imigração e cansados do modelo

socialista.

Aplicabilidade Plano político como um campo de disputa entre locais e imigrantes; um

campo onde se traduz o contexto social.

Novos temas Emersão de políticas de extrema-direita que possam fomentar

sentimentos de xenofobia.

Imigrantes

A população sueca está cansada de um governo que é severo com os

compatriotas e indulgente com os estrangeiros. Há um medo não

explicado que se dirige aos imigrantes; é feito um apelo a uma

tentativa de compreensão desse medo, não se limitando a uma rejeição

politicamente correcta desse medo.

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Notícia n.º 3 – Anexo 4

Título «Imigração, inevitável e indispensável»

Resumo Um grupo de personalidades publica um relatório em que defende os

benefícios da imigração na Europa.

Aplicabilidade

Posição favorável dos imigrantes num subcampo particular, o campo

demográfico. É o habitus destes grupos de imigrantes que conduz a esse

tipo de comportamentos demográficos.

Novos temas Necessidade demográfica dos imigrantes na Europa.

Imigrantes

Os imigrantes são uma fonte de população activa e, sem ela, a

população europeia seria muito mais envelhecida. Estas personalidades

destacam que não se pode pedir aos imigrantes que renunciem à sua

religião, cultura e identidade quando chegam ao país de acolhimento.

São bons contribuintes para a segurança social, já que representam uma

parte significativa da mão-de-obra.

Alguns investigadores de uma faculdade espanhola referem ainda que a

concentração dos imigrantes em bairros e comunidades, leva a

desequilíbrios na oferta e na procura de serviços, o que causa uma

degradação desses mesmos serviços, algo que é culpabilizado aos

imigrantes por parte dos habitantes.

Notícia n.º 4 – Anexo 5

Título «Guerras de línguas, poder e fronteiras»

Resumo

É aprovada uma lei na Eslovénia que impõe o eslovaco como língua

obrigatória nos locais públicos, causando a revolta da comunidade

imigrante da Hungria.

Aplicabilidade Intensas lutas políticas mediadas pelo campo legal.

Novos temas

Questão da língua como meio de comunicação e a sua conotação

simbólica; fricções históricas na base de conflitos entre imigrantes; a lei

como forma de dominação e violência simbólica.

Imigrantes A Eslovénia localiza novos nacionalismos no Estado.

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Notícia n.º 5 – Anexo 6

Título «O falhanço da integração ao estilo sueco»

Resumo Um relato dos bairros populares de Malmo, vistos como um gueto

caracterizado pela dificuldade de integrar a população imigrante.

Aplicabilidade Pluralidade de habitus e representações relativas aos imigrantes, tanto

favoráveis como desfavoráveis.

Novos temas Impacto dos imigrantes na economia e na demografia do país de

acolhimento.

Imigrantes

A percentagem de desemprego desta população é de 90%, e a população

só sobrevive graças às prestações sociais escandinavas. Os “incidentes

violentos” que ocorreram em Abril do ano passado “não são novidade”.

Não há um dia em que não sejam noticiados “confrontos com a polícia e

tensões entre as minorias imigrantes”.

Os imigrantes são vistos como forma de reduzir a idade média da

população, levando Malmo a ser vista como uma cidade jovem. Mas

também são vistos como fontes de delinquência; em particular, é essa a

ideia transmitida pela polícia.

Notícia n.º 6 – Anexo 7

Título «Os turcos ainda assustam os austríacos»

Resumo O Partido Austríaco da Liberdade obteve mais de um quinto dos votos

numa região da Áustria.

Aplicabilidade Derrota simbólica dos imigrantes, explicita pelo crescimento de partidos

de cariz nacionalista.

Novos temas Conflitos religiosos derivados dos fluxos migratórios.

Imigrantes

O chefe da secção local deste partido argumenta que o principal medo

de uma parte da população é a imigração turca. Este membro da força

da direita populista refere que não quer que a região se torne numa

“pequena Istambul”.

“O Ocidente nas mãos dos cristãos” é um dos slogans do partido, que se

mostra inconformado por o Islão se ter tornado a segunda religião da

Áustria.

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2. Uma intemporalidade empírica da teoria bourdieusiana

Ao analisamos as seis entrevistas seleccionadas, percebemos que a teia conceptual

de Bourdieu mantém a sua aplicabilidade empírica nos dias de hoje, mas também

verificamos a presença de novos temas que influenciam o universo dos imigrantes, e para

os quais apenas alguns têm resposta dada por Bourdieu. Vejamos alguns casos.

2.1. O Estado como fonte de intervenção nas relações nos campos

O Estado foi uma entidade quase sempre envolvida nas notícias, assumindo uma

importância central, e também foi mencionada algumas vezes nas entrevistas, embora

mais ao nível dos organismos municipais e locais. Importa perceber como é que Bourdieu

vê o Estado e de que forma este contribui para a manutenção e reprodução das relações de

dominação. O sociólogo compreende que «O Estado é o culminar de um processo de

concentração de diferentes espécies de capitais […] concentração que, enquanto tal,

constitui o Estado como detentor de uma espécie de metacapital, que confere poder sobre

as outras espécies de capital e sobre os seus detentores.» (Bourdieu, 1997, p. 75). O que

importa destacar aqui, não é tanto o processo histórico que construiu os pilares deste

Estado de metacapital, mas antes qual é o poder deste último. «[…] permite ao Estado

exercer um poder sobre os diferentes campos e sobre as diferentes espécies particulares

de capital, nomeadamente sobre as taxas de câmbio entre umas e outras […]» (Bourdieu,

1997, p. 75). Esta concentração de capital faz com que consiga criar um trascendental

histórico comum a todos os agentes sociais, impondo práticas, «[…] o Estado instaura e

inculca formas e categorias de percepção e pensamentos comuns […] Desse modo, cria as

condições de uma espécie de orquestração imediata dos habitus que é por sua vez o

fundamento de uma espécie de consenso sobre o conjunto de evidências partilhadas

constitutivas do senso comum.» (Bourdieu, 1997, p. 87).

Assim, percebe-se aqui do fortíssimo poder que o Estado tem em modificar as

relações de poder entre os grupos de locais e de imigrantes. Um tipo de governo com uma

determinada ideologia pode apontar para um caminho, e outro governo apontar para o

caminho oposto. O caso da Suécia foi apontando, numa notícia, como um exemplo de

integração e aceitação dos imigrantes, mas o risco de um governo com uma nova cor

política ameaça essa abertura e receptividade.

Como pode o Estado ser mais solidário ou mais intransigente com os imigrantes? Um

veículo fundamental é a lei. Em várias notícias é através da lei que se geram conflitos e é

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através da lei que se tenta atingir os objectos de (des)integração dos imigrantes. Bourdieu

compreende essa questão, estando consciente de que também o poder aqui em causa, o

legal, sofreu um processo de concentração estatal, constituindo «[…] o fundamento da

autoridade específica do detentor do poder estatal […]» (Bourdieu, 1997, p. 83). «Em

suma, passa-se de um capital simbólico, difuso, fundado apenas no reconhecimento

colectivo, a um capital simbólico objectivado, codificado, delegado e garantido pelo

Estado, burocratizado.» (Bourdieu, 1997, p. 84). O capital legal é, assim, uma tradução

materializada do capital simbólico do Estado. A lei é a força máxima que este pode

accionar para garantir determinadas práticas e representações sociais. Por exemplo,

Nicolas Sarkozy, presidente da França, opta por lançar novas leis como forma de cumprir

um objectivo que traçou, o de reduzir a criminalidade nos grupos de imigrantes.

A base ideológica dos partidos e dos governos pode ser uma fonte de violência

simbólica. Bastará atentar no caso do Partido Austríaco da Liberdade, cujo slogan “O

Ocidente nas mãos dos cristãos” é revelador da forte violência simbólica que tencionam

exercer sobre os imigrantes turcos caso consigam alcançar o poder, e que potencialmente

será accionada por via do poder legal, com fortes medidas restritivas à imigração.

Também se identificaram motivações históricas para o accionar do poder legal,

como foi o caso da lei de obrigatoriedade de utilizar o eslovaco como língua obrigatória

nos locais. Neste caso, parece que ainda há um esforço de unificação cultural e linguística

por parte do governo, tentando minar dessa forma as línguas mais secundárias, com

particular destaque ao húngaro, utilizado pelas comunidades imigrantes húngaras: a

Eslovénia já não está na Hungria e tem direito à sua independência, sem necessitar da

intervenção ou contributo da Hungria, que já está no passado; é esta a mensagem que o

Governo quer transmitir. Bourdieu refere que «A unificação cultural e linguística é

acompanhada pela imposição da língua e da cultura dominantes como legítimas, e pela

rejeição de todas as outras reduzidas à indignidade […]» (Bourdieu, 1993, p. 80). É

aplicável também a este contexto. Forma-se uma espécie de campo linguístico, um sub-

campo do campo cultural, onde se tenta demonstrar, por via da imposição de uma língua,

o carácter superior de um grupo face ao outro.

2.2. O impacto dos imigrantes na demografia

Na obra de Bourdieu, vários entrevistados destacaram que os imigrantes, em

particular os exteriores à Europa, caracterizam-se por serem famílias numerosas, com um

grande número de famílias, chegando mesmo a apontar os problemas que daí advêm ao

21

nível da socialização primária e educação dos filhos, com uma incapacidade dos pais em os

controlar. Contudo, nestas notícias surge uma abordagem diferente à dimensão da família.

Por serem famílias jovens, fornecem uma grande contribuição para a população activa,

rejuvenescendo a estrutura etária na sua base e, por outro lado, porque a maioria se

encontra a trabalhar, contribui com carga fiscal para o país. Até que ponto este tipo de

capital poderá ser encarado, do ponto de vista simbólico, como de valor? A questão será

mais ampla, em que campo nos encontramos quando abordamos esta questão? A

problemática do envelhecimento demográfico tem agitado a Europa, que está apreensiva

com as tendências e projecções da evolução da sua estrutura demográfica, vê na

população imigrante um canal de suavização desses efeitos. Contudo, a população em

geral não reconhece esse impacto demográfico favorável como significativamente

simbólico ao ponto de ver de forma favorável a sua vinda para o país.

2.3. Acentuação do carácter conflitual nas comunidades imigrantes

A confirmar a pista já introduzida na obra A Miséria do Mundo, esta selecção de

notícias confirma uma vez mais a tendência dos media em acentuar o carácter conflitual

dos bairros sociais. Os próprios jornalistas activam os seus habitus e, com um conjunto de

automatismos, recorrem a certos termos, palavras ou expressões que remetam para um

carácter endémico. Aqui o destaque nítido é o artigo «O falhanço da integração ao estilo

sueco, que relata:

As expressões sublinhadas evidenciam a forma como os jornalistas naturalizam e

generalizam estes confrontos com a polícia, considerando-os como estruturais e

frequentes, quando na verdade constituem, por vezes, episódios esporádicos. Poderemos

considerar aqui que são as representações sociais criadas acerca dos imigrantes que

ensombram os jornalistas.

«Os incidentes violentos de finais do mês de Abril não são novidade [entre 28 e 29 de Abril,

um grupo de jovens do bairro, de cara tapada, vandalizou escolas, quiosques, caixotes dos

lixo e automóveis, para protestar contra a detenção de um deles. A rebelião só acalmou

com a intervenção da polícia. Não há um dia em que os jornais não noticiem confrontos

com a polícia e tensões entre as minorias imigrantes […]» (sublinhado nosso)

22

2.4. Novas nuvens temáticas sobre a imigração aplicada à teoria bourdieusiana

Estas notícias tiveram como principal produto uma actualização do contexto

empírico dos imigrantes a uma realidade mais próxima da actual. Utilizando o mesmo

esquema geral que recorremos na primeira parte deste trabalho, deveremos adicionar ao

contexto de imigração a crise económica que enfrenta actualmente, à escala global,

grande parte dos países, incluindo muitos daqueles que são os principais destinos da

imigração; por outro lado, devemos compreender e ter em conta a importância da

realidade da União Europeia e das implicações que isso tem ao nível da livre circulação de

pessoas dentro deste espaço comunitário; acrescentemos ainda o complexo contexto de

globalização e das suas consequências ao nível do acentuar das interdependências entre

países, aos vários níveis cultural, económico e social.

Um outro contributo destes artigos da Presseurop foi permitir salientar a ideia de

que existe todo um conjunto de campos ou sub-campos mais secundários, que não dizendo

directamente respeito aos imigrantes, têm fortes consequências ao nível da principal luta

que é travada no campo simbólico. Destacamos aqui o campo legal, com a produção de

leis; o campo histórico, com as rivalidades entre povos, etnias e religiões; a língua, como

um elemento fulcral da identidade de um país; o campo mediático, onde se influenciam

representações sociais a uma escala nacional; e ainda, claro, o campo político, onde se

disputa um combate ideológico pela posse de um metacapital. Complexifica-se assim a

abordagem ao segundo momento, o do confronto nos campos, tentando considerar uma

maior quantidade de campos onde a luta dos imigrantes e dos locais é travada.

Surgem assim, no momento três, ainda mais consequências resultantes da luta nos

campos. Por um lado, a materialização das intenções do Estado em políticas migratórias,

que tanto poderão incentivar como desfavorecer; a emersão de novos nacionalismos

decorrentes da crise económica, que possam acentuar sentimentos de xenofobia e

preconceito; o contributo dos imigrantes na estrutura demográfica; e a língua como fonte

de segregação e preconceito.

Todos estes elementos estão expostos na figura seguinte, uma readaptação do

esquema apresentado no primeiro capítulo.

23

Figura 3

Teia conceptual de Bourdieu aplicada à problemática dos imigrantes – adaptada às novas temáticas

24

III – Oposições e complementaridades à teoria de Bourdieu

Este último capítulo pretende aprofundar algumas questões que foram abordadas no

modelo teórico de Bourdieu ou que são uma nota constante no contexto empírico dos

imigrantes que nos encontramos a analisar, recorrendo sempre a contributos de outros

sociólogos, num espírito de crítica e complementaridade.

1. O habitus em análise

O conceito de habitus foi objecto de múltiplas críticas pelos sociólogos. Firmino da

Costa argumenta que «[…] no que respeita à noção de habitus, “os problemas provêm

tanto de «explicar demasiado» como de «explicar insuficientemente» (Casanova, 1995, p

59). Esta crítica surge na medida em que este conceito apresenta um grande potencial

explicativo, mas que ainda não foi totalmente aproveitado, sendo acusado de ainda possuir

um insuficiente nível de rigor (Casanova, 1995).

Outra crítica é o carácter essencialmente reprodutor do habitus. «[…] Pierre

Bourdieu apenas acentua a inércia e a recorrência das disposições incorporadas,

minimizando questões igualmente relevantes que têm a ver com a permanente premência

da socialização, com a incorporação do novo, e com a adaptabilidade, adesão e

protagonismo dos agentes sociais relativamente à mudança.» (Casanova, 1995, p. 60)

Poderíamos propor aqui uma interligação entre os contributos de Bourdieu e

Giddens, no sentido de conferir maior dinamismo ao conceito de habitus. Quando olhamos

para a definição de reflexividade da vida social que este último autor apresenta na sua

obra «As consequências da Modernidade», somos levados a considerar uma certa oposição

entre este conceito e o de habitus. Por reflexividade da vida social, Giddens entende que

«[…] consiste no facto de que as práticas sociais são constantemente examinadas e

reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim

constitutivamente seu carácter.» (Giddens, 1990, p. 39). Na modernidade há uma

característica que se acentua nos indivíduos, que é a reflexão constante sobre todos os

aspectos da vida social e até da própria reflexão. «Por outras palavras, os agentes são

normalmente capazes, se lhes for pedido, de fornecerem interpretações discursivas sobre

a natureza do comportamento e das razões para o comportamento em que estão

envolvidos.» (Giddens, 1994, p. 31). Giddens refere que o self define um projecto

reflexivo.

25

Poderemos complementar uma análise mais estática do habitus com o dinamismo da

modernidade, e em particular com as noções de segurança ontológica e de riscos. A

segurança ontológica é um sentimento de consciência prática que permite responder às

questões existenciais e permite lidar com ansiedades e medos, e tem subjacente uma

compreensão reflexiva da auto-identidade, da vida, da morte e da existência em geral. Os

riscos, dos quais a modernidade é grande promotora, podem conseguir afectar essa

segurança: «A barreira protectora que oferece pode ser furada, temporária ou

permanentemente, por acontecimentos que demonstram a realidade das contingências

negativas que fazem parte de todo o risco.» (Giddens, 1994, p. 35). Podemos considerar

que esses riscos moldam e enformam o self, ou na linguagem de Bourdieu, o habitus.

Propõe-se assim a seguinte circularidade:

Figura 4: Complementaridades entre Giddens e Bourdieu – habitus e segurança ontológica

Será importante aliar a análise de Bourdieu ao habitus com uma análise à

modernidade, e em particular à globalização. De que forma a globalização impactou, caso

tenha impactado, o habitus dos agentes sociais? De que forma o distanciamento do espaço

e do tempo podem impactar o habitus? De que forma as quatro dimensões da globalização

apontadas por Anthony Giddens influenciaram o habitus? Considerando que o habitus

traduz-se em diferentes tipos e quantidades de capitais, poderíamos ser levados a tentar

realizar um levantamento dos factores da modernidade e da globalização que tiveram

implicações nesses capitais. O esquema seguinte apresenta um exercício simplificado de

tentativa de elencação de alguns desses factores:

26

Figura 5: Complementaridades entre Giddens e Bourdieu – capitais e globalização

Goffman surge em linha com Giddens, numa concepção mais dinâmica do actor

social, que se encontra numa monitorização constante dos comportamentos. Para

enquadrar essa concepção, Goffman propõe a metáfora teatral. O sociólogo vê o actor

como alguém que desempenha um papel para uma plateia, sendo que este «[…] organiza o

seu desempenho e exibição “em intenção das outras pessoas”.» (Goffman, 1993, p. 29),

recolhendo informações sobre os outros, para saber como agir e o que esperar. Goffman

refere que o actor irá ter tantas personalidades quantos forem os grupos que este queira

impressionar, há uma segregação da audiência. Os actores poderão também optar por uma

falsa representação, ocultando características que lhe sejam prejudiciais ou fazendo algo

para o qual não têm autorização. A sua performance ajusta-se, assim, em função da

situação em que o actor se encontre, sendo que é o próprio actor que constrói essa

definição de situação. Goffman refere ainda que existem aspectos controláveis ou não

controláveis, mas que o actor tem sempre consciência dos mesmos, a tal ponto de tentar

controlar os seus aspectos não controláveis, de forma a não serem inconsistentes com o

papel que está a desempenhar. O actor possui um jogo de estratégia, accionando

princípios de acção racional que sigam o princípio do minimax, isto é, usar o mínimo de

recursos para obter o máximo de ganhos (Herpin, 1982). O carácter consciente do actor

social proposto por Goffman contrapõe-se com o carácter mais inconsciente do agente

social proposto por Bourdieu.

José Madureira Pinto propõe o conceito de interhabitus, «[…] centrada numa

preocupação de revelação da dimensão relacional do habitus, potencia , giaulmente, um

entendimento mais dinâmico e menos essencialista da matriz de disposições […]»

(Casanova, 1995, p. 61).

27

A operatividade do habitus também é apontada como um problema fulcral da

teorização de Bourdieu. «Tal impasse na operacionalização deste conceito contribui,

largamente, para a indefinição do seu campo de explicabilidade, dos seus limites e das

suas articulações com outras sedes […]» (Casanova, 1995, p. 62).

2. O papel dos media

O interaccionismo simbólico, por via de Stanley Cohen, traz-nos um contributo para

a abordagem aos media que foi efectuada no segundo capítulo. Este sociólogo focaliza nos

discursos dos media a produção de pânicos morais. Foi visível tanto nas entrevistas como

nas notícias a tendência para hiperbolizar as vivências das comunidades de imigrantes,

impondo uma necessidade urgente de reforçar a segurança, combater a criminalidade e

reformar esses bairros sociais.

A primeira fase, a do inventário, pauta-se «[…] por quatro características

fundamentais: exagero, distorção, prognóstico e simbolização.» (Guerra, 2002, p. 135).

Tal como foi visto no segundo capítulo, houve uma tendência para exagerar a dimensão

conflitual desses bairros sociais, através do recurso a um tipo específico de linguagem e de

adjectivação. «Após a fase de construção do inventário interessa perceber como é que as

suas imagens foram cristalizadas em opiniões e atitudes que correspondem a sistemas de

crenças generalizadas no quadro da opinião pública e interiorizados cognitivamente […]»

(Guerra, 2002, p. 136) – aqui pode ser feito um paralelismo à concepção bourdieusiana,

considerando que a opinião pública absorve um determinado habitus relativo aos

imigrantes, exteriorizando-o com opiniões e atitudes que manifestem uma violência

simbólica em torno desse grupo. A última fase corresponde às reacções da sociedade e

uma tentativa de controlo social do desvio, com a criação de procedimentos

institucionalizados de controlo social, o que em Bourdieu correspondem a mecanismos de

violência simbólica.

Também Cohen é sensível ao facto de que são os grupos dominados que mais sofrem

com as construções mediáticas do desvio. «[…] ao indivíduos situados nos mais baixos

escalões da estrutura social serão, porventura, os mais vulneráveis à fabricação de

representações mediáticas acerca das suas próprias vidas, pois ocupam uma posição de

dominação cultural, social, política e simbólica.» (Guerra, 2002, p. 139).

28

3. A educação e a influência societal

Numa oposição à perspectiva de Bourdieu, surge um Durkheim excessivamente

estruturalista. Na sua obra Educação e Sociologia, encara a educação como «[…] acima de

tudo o meio pelo qual a sociedade renova perpetuamente as condições de sua própria

existência.» (Durkheim, 1965, p. 82), sendo então uma socialização metódica geracional. O

fim da educação seria construir o ser social do indivíduo, isto é, os «[…] sistemas de ideias,

sentimentos e de hábitos que exprimem em nós, não a nossa individualidade, mas o grupo

ou os grupos diferentes de que fazemos parte […]» (Durkheim, 1965, p. 83). O sociólogo

refere que as transformações profundas das sociedades contemporâneas têm

correspondentes transformações nos planos de educação. Durkheim utiliza, assim, a

seguinte definição de educação: «A educação é a acção exercida, pelas gerações adultas,

sobre as gerações que não se encontrem ainda preparadas para a vida social; tem por

objecto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e

morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a

criança, particularmente, se destine» (Dukrheim, 1965, p. 41).

Também consciente das influências societais na educação, Bernstein lança a teoria

dos códigos linguísticos. «[…] as crianças de origens sociais diversas desenvolvem códigos,

ou formas de discurso, diferentes, no começo da sua vida, que afectam as suas

experiências escolares posteriores.» (Giddens, 2009, p. 514). Enquanto as crianças da

classe trabalhadora apresentam um código restrito, onde os valores e normas da cultura

onde crescem fica encrostada na sua linguagem e forma de escrever, as crianças da classe

média adquirem um código elaborado, sendo capaz de generalizar e expressar ideias

abstractas com maior facilidade. «As crianças que adquiriram códigos elaborados de

discurso, propõe Bernstein, têm maior capacidade para lidar com as exigências da

educação académica formal do que as que estão limitadas a códigos restritos.» (Giddens,

2009, p. 515). A sua teoria ajuda-nos a perceber porque é que as crianças de origem

socioeconómica mais baixa tendem a não ser bem sucedidas na escola. Esta teoria seria um

bom complemento ao modelo analítico de Bourdieu, já que, no fundo, traduz o fraco

capital escolar dos imigrantes, que estando associados a um baixo nível de capital

económico, acabam por não ser capazes de ter força no campo cultural, e em particular no

campo escolar.

29

4. Crime e desvio

Começando pelos contributos estruturo-funcionalistas, poderemos tentar aplicar a

análise mertoniana dos tipos de atitudes sociais aos contextos imigrantes. Merton

argumenta que existem cinco tipos de atitudes sociais em função do indivíduo cumprir ou

não as metas culturais e se recorre ou não aos meios tidos como legítimos para os actores

alcançarem esses fins. É uma perspectiva que se opõe a Bourdieu pelo carácter

excessivamente estruturalista deste quadro teórico. Merton argumenta de que são aqueles

em situação de inovação, com uma aceitação das metas culturais da estrutura cultural,

mas com uma incapacidade de obter os meios necessários na estrutura social para alcançar

esses fins, que são a causa de situações de anomia social, fomentando situações de crime.

Assim, desta forma, as atitudes sociais de crime e desvio são explicadas unicamente pela

estrutura, já que é esta que define quais são os fins e interesses da sociedade, e é esta

que regula e controla os meios para alcançar os fins (Merton, 1938).

Blumer, representante da Escola de Chicago, aborda a questão dos imigrantes como

sendo de assimilação. «O processo pelo qual o indivíduo se incorpora nesta ordem social

habitual e institucional é talvez melhor descrito como processo de socialização. O ciclo de

assimilação envolve sucessivamente, sob condições ordinárias, a competição, o conflito, a

acomodação, a assimilação e, eventualmente, o amálgama biológico.» (Blumer, 1962, p.

138). O sociólogo americano é sensível à ideia de que os imigrantes ocupam as piores

posições nos campos sociais, destacando, que a sua assimilação é difícil, traduzindo-se em

baixos níveis na economia. Contudo, «Grupos imigrantes anteriormente vistos como

ameaças a níveis salariais, cujas imigrações adicionais eram combatidas pelo trabalho

organizado, frequentemente na segunda geração fornecem os recrutas e líderes para o

mesmo.» (Blumer, 1962, p. 71).

Tal como nas entrevistas de Bourdieu, Blumer aponta para os jovens imigrantes de

segunda geração como os que mais contribuíram para o crime: «Não tanto os imigrantes

em si, mas crianças de dupla cultura contribuíram desproporcionalmente para o crime e

outros problemas das classes mais baixas.» (Blumer, 1962, p. 72). Também ele refere a

questão da hexis corporal, mas designando-a como o papel da visibilidade: […] a

discriminação funciona como um dispositivo de restrição de concorrência no mercado de

trabalho, para manutenção de uma fonte de mão-de-obra mais barata […]. A visibilidade

permite e auxilia a segregação, a marca de uma situação de casta. As distinções parecem

ser feitas somente na base de cor.» (Blumer, 1962, p. 68-69). De acordo com Blumer, os

custos de um sistema de castas são elevados, já que que «[…] promovem serviços paralelos

30

e a doença e criminalidade […]. Destroem o crescimento integral da personalidade da

parte de ambos os grupos, permitindo apenas a mais superficial comunhão de interesses. O

sociólogo destaca ainda, em paralelo com Bourdieu, do impacto da acção governamental,

que poderá atenuar a situação, nomeadamente através de leis, como a publicada em Nova

Iorque que proibiu a discriminação no emprego fundamentada na raça, credo ou

nacionalidade (Blumer, 1962). Blumer assume-se assim, nesta temática em análise, como

basicamente concordante com Bourdieu, embora recorrendo a uma terminologia diferente.

É no âmbito de uma racionalidade teórica que a Escola de Chicago apresenta a

noção de meio, entendida como um «[…] ponto de equilíbrio entre um espaço geográfico

localizado – o habitat – e a qualificação tecnológica dos indivíduos que nele vivem – os

habitantes.» (Herpin, 1973, p. 30). «[…] o equilíbrio de uma comunidade humana

particular é instável […]» (Herpin, 1973, p. 31).

As suas abordagens à desorganização social, em particular realizadas na obra O gang

de Thrasher, são um bom contraponto à abordagem de Bourdieu. «O fenómeno de que

Thrasher parte é a localização geográfica da delinquência juvenil. Há sectores na cidade

que são mais afectados que outros pela delinquência.» (Herpin, 1973, p. 110-111). Tenta

assim desenvolver uma teoria da urbanização, e caracteriza a delinquência juvenil como

um fenómeno representativo de uma má aclimatação sociogeográfica. Embora Bourdieu

afirme que por vezes existe correspondência entre o espaço social e o espaço físico, não

chega a traçar uma visão tão estreita e directa como aquela que traça Thrasher. Contudo,

ambos estarão de acordo quando este último refere que «Os gangs representam o efeito

espontâneo dos jovens para criar uma sociedade adequada às suas necessidades, quando

ela não existe.» (cit. por Herpin, 1973, p. 113). O roubo é visto como uma actividade de

incitação desportiva, e não propriamente como um desejo de rendimento.

A desorganização é vista como uma característica do sistema e não uma

propriedade dos grupos de imigrantes. «O insucesso dos costumes e das instituições que

normalmente controlam de forma eficiente (as condutas) traduz-se, na experiência do

jovem, pela desintegração da vida familiar, pela ineficácia da escola, pelo formalismo e a

exterioridade da religião, pela corrupção e a indiferença em relação aos partidos na

política local, pelos salários baixos e pela monopolização do trabalho, o desemprego e as

poucas ocasiões de divertimento.» (cit. por Herpin, p. 114).

Destaca-se nesta escola os urban área projects, que constituem programas

concebidos para combater a delinquência juvenil nas zonas urbanas habitadas por

imigrantes, sendo que este programa deveria ser aplicado pelos próprios residentes do

barrio; «Os sociólogos têm por tarefa identificar “os residentes que ocupam posições

31

chave” capazes de serem responsáveis pelo programa.» (Herpin, 1973, p. 54). Bourdieu

falha neste aspecto, com uma ausência de projectos que possam resolver a situação de

anomia em que se encontram os imigrantes.

Entrando agora no interaccionismo-simbólico, Becker surge em oposição a Bourdieu

ao analisar o desvio de um ponto de vista estritamente individual. Estabelece um conjunto

de passos necessários, que mais não são do que opções tomadas pelo individuo e que,

apenas caso ele as tome, tornar-se-á um desviante. No caso do consumo da marijuana,

Becker identificou que seria necessário primeiro o aprendizado da técnica, seguindo-se

uma percepção dos efeitos da marijuana e seguindo-se por fim aprender a gostar dos

efeitos da marijuana. O centro da sua análise permite conferir um carácter mais

individualista ao desvio, numa directa oposição a Bourdieu, que lê o desvio como

resultante da posição nos campos, com uma componente primariamente estrutural.

Destacar ainda no interaccionismos-simbólico o contributo de Goffman, que

apresenta o conceito de estigma como referente a um atributo profundamente

depreciativo, e que pode definir uma dupla perspectiva, dependendo se é só o indivíduo

que tem consciência que está a ser estigmatizado ou se é algo evidente às pessoas que o

vejam. O sociólogo argumenta que quando um individuo estigmatizado enfrenta outras

pessoas normais e sente que estas agem com ele em forma diferente só por causa desse

mesmo estigma, este conscientemente tenta resolver essa situação: ou tenta corrigir o seu

defeito, ou tenta desenvolver actividades que tipicamente estão associadas a pessoas que

não possuam esse defeito, ou poderá ainda ver a sua privação com alguma espécie de

bênção (Goffman, 1982). A perspectiva de Goffman será de que os indivíduos têm plena

consciência do estigma e agem em função disso para tentarem controlar, reduzir ou

conseguir lidar com situações de estigmatização. É o caso dos pais dos estigmatizados, que

optam por diferentes tipos de socialização para os filhos, por forma a tentar protege-los da

melhor forma possível. Os próprios estigmatizados activam técnicas de controle da

informação, tentando encobrir ou manter em segredo o estigma. Em oposição, Bourdieu

sempre manifesta um carácter inconsciente da subordinação, através da violência

simbólica.

Elias também aborda a questão do desvio na sua obra Estabelecidos e Outsiders.

Elias argumenta que as classes sociais não são a única forma de opressão, sendo que esta

decorre de desequilíbrios entre grupos interdependentes numa figuração. «[…] when the

power gradient between groups is very steep, outsiders are often stigmatized as unworthy,

filthy, shifty, or perhaps childlike […]. At this stage, images of outsiders are highly fantasy-

laden and the attitudes of established toward outsiders are extremely rigid.» (Kilminster,

32

2000, p. 618). Os outsiders acabam por interiorizar a visão de inferioridade transmitida

pelos estabelecidos. Quando a relação começa a ficar mais igual, surgem sinais de rebelião

e de emancipação, o que faz com que as imagens dos outsiders deixem de ser tão

fantasiosas, a tal ponto em que já será possível aos outsiders criarem a sua própria auto-

imagem, que acabará por ser transmitida aos estabelecidos. É este processo que ocorreu

entre negros e brancos e ainda decorre entre homossexuais e heterossexuais. Esta visão

processual e dinâmica de Elias poderia ser integrada na temática da luta dos campos de

Bourdieu, concedendo um maior dinamismo e propensão à mudança social deste último

modelo.

5. Segregação étnica

Weber fala de segregação “étnica” e “casta”. Será importante reflectir em que

medida as comunidades de imigrantes que ficam concentradas num mesmo espaço reúnem

características de “casta”, tal como entendida pelo autor: «A “casta” é, realmente, a

forma natural pela qual costumam “socializar-se” as comunidades étnicas que crêem no

parentesco de sangue com os membros de comunidades exteriores e o relacionamento

social. […] formam comunidades, adquirem tradições ocupacionais específicas […] Vivem

numa “diáspora” rigorosamente segregada de todo relacionamento pessoal, excepto o de

tipo inevitável, e sua situação é legalmente precária. Não obstante, em virtude de sua

indisponibilidade económica, são tolerados, realmente, e frequentemente privilegiados, e

vivem em comunidades políticas dispersas.» (Weber, 1982, p. 221). Para Weber, a

segregação em casta implica o reconhecimento por parte dos grupos étnicos da sua

inferioridade e subordinação, enquanto que «[…] as coexistências étnicas condicionam uma

repulsão e um desprezo mútuos, mas permitem a toda comunidade étnica considerar a sua

própria honra como a mais elevada […]» (Weber, 1982, p. 221). Importará assim perceber

em qual dos dois eixos as comunidades de imigrantes se encontram mais próximas.

Essas comunidades étnicas, segundo o sociólogo, possuem diferentes patamares de

honra, traduzida pelo seu status social. «O papel decisivo de um “estilo de vida” na

“honra” do grupo significa que os estamentos são os portadores específicos de todas as

“convenções”.» (Weber, 1982, p. 224), importará perceber o funcionamento dos grupos de

status nas suas práticas sociais e nas suas posições nos campos sociais. Considerando por

outro lado a noção de classe tal como apresentada por Weber, poderemos reflectir sobre a

forma como a pertença a uma classe pode influenciar a sua capacidade de luta nos campos

socais. Weber entende classe como uma componente causal das oportunidades de vida,

33

constitui-se pelos interesses económicos de posse de bens e de oportunidades de renda e

representa-se no mercado sob a forma de produtos ou trabalho (Weber, 1982). A realidade

dos imigrantes é caracterizada, tipicamente, por uma chegada ao país de acolhimento sem

a posse de qualquer renda ou muito escassos bens. E isso desde logo condiciona as

possibilidades de vida dos mesmos, constituindo desde logo uma limitação aos produtos

que estes podem colocar no mercado.

Apresenta-se, na página seguinte, mais uma adaptação do esquema base de três

momentos da luta dos campos que temos utilizado ao longo deste relatório, e que agora

essencialmente resume os contributos que estivemos a listar ao longo deste capítulo,

enquadrando-os nas diferentes peças do esquema.

Genericamente, podemos afirmar que houve forte compatibilidade entre as

entrevistas do primeiro capítulo e as notícias do segundo capítulo. Ambos apontam para

uma mesma realidade: os imigrantes são caracterizados por um fraco nível de capital, que

lhes causa um mau posicionamento nos campos, originando, do ponto de vista simbólico,

mecanismos de violência simbólica que constantemente relembrem aos imigrantes a sua

situação de subordinação. Contudo, o modelo teórico proposto por Bourdieu poderá ser

refinado e complexificado com o contributo de outros autores, desde os mais clássicos até

aos mais contemporâneos, por forma a suplantar as suas limitações, tal como se tentou

demonstrar neste último capítulo.

34

Figura 4

Teia conceptual de Bourdieu aplicada à problemática dos imigrantes – adaptada a novos autores

35

Considerações finais

Este relatório tentou fornecer uma perspectivação geral dos inúmeros contributos

dados por Bourdieu para a sociologia, sendo que foi demonstrada uma total aplicabilidade

desta teia conceptual ao contexto dos imigrantes. Em particular, a terminologia dos

campos e da luta de campos mostrou-se profícua na criação de raciocínios de compreensão

do porquê dos imigrantes se encontrarem nas posições desfavoráveis que normalmente se

encontram nos vários países para onde se movimentam.

Por outro lado, foi salientado o enorme poder de duas instituições que,

actualmente, se mostram centrais com elevadíssimo poder de intervenção nos campos: o

Estado e os mass media. São, sem dúvida, os mais capacitados e aqueles mais influem nas

representações sociais da população em geral, contribuindo para a formação de habitus

particulares. Importa, deste modo, em trabalhos futuros, um ainda maior aprofundamento

dos impactos que estas instituições sociais têm nos imigrantes, e tentar perceber de que

forma podem mobilizar-se de uma maneira mais activa para a melhoria das condições de

vida destes imigrantes e para a formulação de representações sociais mais correctas, com

menos bases em atitudes xenófobas ou pretensões excessivamente nacionalistas.

Por fim, foi nosso objectivo demonstrar umas das maiores virtualidades da

sociologia: a sistemática diversidade de propostas teóricas, que nos relembram

sistematicamente que nenhum conhecimento é final e que nenhuma teoria consegue

abarcar a totalidade de um fenómeno social. Por isso mesmo, esforçamo-nos por tentar

envolver no debate da temática dos imigrantes contributos de autores passando dos mais

clássicos aos mais contemporâneos, e de escolas tão opostas como são o interaccionismo –

simbólico e o estruturo-funcionalismo, numa modesta tentativa de tentar preencher um

pouco mais as lacunas de compreensão deste fenómeno social que é a imigração.

36

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39

Anexo I – Ficha de leitura

BOURDIEU, Pierre (1993) – A miséria do mundo. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda. ISBN

85.326.1818-9. p. 11-158.

Resumo: Na análise ao capítulo «O espaço dos pontos de vista», encontramos um conjunto

de nove entrevistas, somos transportados aos lares de famílias francesas, espanholas

argelinas, entre outras. Ouvimos os relatos esperançosos de pais que acreditam nos filhos

para melhorarem a situação económica da família, de jovens adultos que procuram

integrar-se numa cultura que muitas vezes parece que não os quer acolher, de jovens

imigrantes que se encontram desanimados com a vida que receberam e utilizam o crime

como tubo de escapatória e fuga, de idosos que não compreendem os costumes destes

novos imigrantes que chegam aos bairros sociais e de adultos estabilizados que lutam cada

dia por melhorarem a sua situação económica. Um conjunto de relatos íntimos sobre o que

é ser um imigrante, como vivem os imigrantes e como são vistos pela sociedade, pelos

media, pelo governo, pelos outros.

Conceitos-chave: bairros sociais, desemprego, diversidade cultural, imigração, crime,

conflitos, jovens, socialização primária

40

Pag. Análise Texto Conceitos

Ideias-chave

11

15

16

Capítulo I – O espaço dos pontos de vista

Bourdieu apresenta este bloco de entrevistas

como fruto de uma necessidade de quebrar

com as perspectivas redutoras das situações

sociais mais complexas ou difíceis, apelando a

uma necessidade de se ter em conta o

pluralismo dos pontos de vista.

A rua dos Junquilhos

A rua dos Junquilhos é composta por famílias

de operários qualificados, maioritariamente

provenientes do estrangeiro, e em particular da

Argélia. Uma rua vazia, que apenas se anima na

altura em que as crianças terminam as aulas.

Os Leblond e os Amezziane são duas famílias

dessa rua.

Os filhos destas famílias têm desviado os

propósitos da geração anterior, ao

permanecerem mais tempo na escola e

diminuírem o seu interesse na indústria.

O casal Leblond foi entrevistado. A Sra.

Leblond mostrava-se pouco participativa, e

apenas intervinha com autorização do marido.

«Espera-se, assim,

produzir dois efeitos:

mostrar que os lugares

ditos “difíceis” […] são,

primeiramente, difíceis

de descrever e de pensar

e que é preciso substituir

as imagens simplistas e

unilaterais […] e […]

abandonar o ponto de

vista único, central,

dominante, em suma,

quase divino […].»

«Ela resistiu a nossas

tentativas para

estabelecer dois diálogos

separados. Com o olhar,

ele a fez participar da

conversa. Quando ela

falava, solicitava a

participação dele;

gravemente, ele

aprovava, mas não

intervinha, como por

respeito.»

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18

19

20

Os Leblond foram das últimas famílias de

origem francesa a permanecer na rua. O Sr.

Leblond conseguiu evitar ser vítima de uma

grande onda de dispensas. A par disso, verifica-

se uma degradação da sua condição

profissional, com quebras de salário.

Há uma crise de reprodução das gerações na

indústria. A escola é tida como um dos

principais factores desta mudança. O Sr.

Leblond aponta que a escola não representava

muito para a sua geração.

O Sr. Leblond relata também os seus anos de

trabalho na fábrica, destacando em particular a

forma como aprendizagem prática, em

oposição a um carácter meramente técnico dos

estudantes que obtêm diplomas.

Amezziane, por seu turno, é um operário de

origem argelina que nos anos 80 ficou

desempregado pelas demissões em massa dessa

época.

Enquanto Leblond corresponde a um proletário

empregado e com rendimento garantido,

Amezziane é um antigo operário sem protecção

nem garantias, caindo na condição de

subproletário. Amezziane trabalhou em

diversas empresas, desde que, em 1960, veio

para França.

«E entre os motivos que

são invocados para

explicar da desafeição

dos jovens pelo trabalho

na fábrica […], menciona-

se, em primeiro lugar, a

escola e as aspirações

muito precisas, muito

circunscritas, que ela

inculca.»

«”Bem, eles têm os

diplomas, eles têm a

técnica, mas eles não

têm a prática, é isso que

está em falta, no

momento actual, na

fábrica; precisa-se de

muitíssimos rapazes com

prática, rapazes que

conheçam sua instalação

[…]”»

42

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23

A família Amezziane é composta por seis

pessoas, o casal e seus quatro filhos. As

acrobacias financeiras são uma constante,

sendo impossível pagar de uma vez todas as

dívidas que possuem. O contrato da casa está

quase a terminar e o dilema de regressar para a

Argélia ou permanecer na França persiste.

Descreve a sua relação com os vizinhos como

neutra, algo semelhante a uma desumanidade

presente na Argélia dos anos 60.

Leblond refere que respeita os argelinos e que

faz um intenso esforço de coabitação, tentando

ultrapassar as dificuldades que esta representa

e mantendo uma perspectiva internacionalista

e anti-racista. Essas dificuldades acentuam-se

no período do Ramadão.

É nos mais jovens que reside o centro dos

conflitos de coabitação, algo que, na opinião

de Leblond, é fruto de uma crise da autoridade

doméstica nas famílias norte-africanas.

«E depois eles começam

a viver às dez horas da

noite, então, como você

vai dormir, bem, palavra

de honra, você tem

direito ao barulho.»

«E, de fato, os efeitos da

coabitação mais difíceis

de tolerar, barulho,

brigas, depredações ou

degradações, são

imputáveis a essas

crianças e a esses

adolescentes que,

condenados à privação e

à pobreza, e, sobretudo,

no ambiente escolar,

para o qual nada os

prepara, aos revezes e à

humilhação […] escapam,

às vezes completamente,

como os dois filhos mais

velhos de Amezziane, ao

controlo familiar.»

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27

Entrevista ao casal Leblond

Conversa inicia-se sobre as duas filhas do casal.

A mais velha é enfermeira, e a mais nova, com

14 anos, estuda no CPPN (3º ciclo do ensino

básico). Discute-se a possibilidade dela

frequentar um CAP.

Actualmente não há tanta oferta de emprego

para estudantes desses cursos; e por outro lado

há uma fraca vontade de irem para a fábrica. A

escola é, por vezes, vista como uma alternativa

ao desemprego.

A geração anterior tinha a vantagem de entrar

mais cedo numa vertente mais prática,

enquanto a dos filhos permanece mais tempo

na escola, reforça a técnica, mas falha em

prática.

Os jovens têm dificuldade em encontrar um

emprego, é-lhes exigida experiência. As

empresas querem tudo sem pagar muito.

Em contraponto, ao nível da aposentadoria, há

pessoas que são despedidas pouco tempo antes

de atingirem essa idade. Havia também quem

recorre-se a uma pré-aposentadoria, tendo a

garantia de que os jovens, os seus filhos,

seriam admitidos. Mas agora isso nem sempre

acontece.

«O problema, está aí, é

que nós, com o centro de

aprendizagem, tínhamos,

no entanto, a felicidade,

enfim a felicidade ou a

infelicidade, digamos, de

conhecer a fábrica,

porque íamos, tínhamos

acesso ela, íamos fazer

visitas…»

«Por toda parte você vê:

jovem, experiência. Bom,

então eu, eu vou dizer,

eu vou chegar, eu talvez

tenha experiência, mas

já passei dos 40 anos…»

«O homem tem jovens

em casa, sai talvez ainda

de bom grado, mas, ao

fim de um ano, que ele

vê que o rapaz está

sempre em casa, que ele

não está empregado, os

que saem por último não

desejam sair […]»

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29

30

31

Inicialmente os Leblond viviam num bloco,

passando posteriormente a viver na moradia

individual onde vivem agora.

Nas escolas estão presentes uma maioria de

80% de estrangeiros, diz Leblond. As famílias

trabalhavam na fábrica, agora caminham ou

para a aposentadoria, ou os jovens estão no

desemprego.

O casal afirma ainda que o ambiente está mais

calmo do que no passado.

Referem que, ainda nesta altura, o período

mais complicado é o do Ramadão, por causa do

barulho. Tem sido essencialmente celebrado

pelos mais velhos, uma tradição que se tem

perdido, comentam os Leblond.

O Sr. Leblond critíca que há trabalhadores que,

durante o Ramadão, arriscam a sua saúde ao ir

trabalhar 8 horas durante o dia, em intenso

calor, sem se alimentarem ou beberem um

simples copo de água.

Leblond critica a forma como as várias famílias

estrangeiras são simplesmente colocadas numa

torre, todas em conjunto e isoladas, em vez se

serem dispersadas e misturadas com as famílias

locais. A torre entretanto foi demolida.

O bairro onde vivem os Leblond não é perigoso

e o barulho não é maior do que nos outros

lugares. O problema são os ocasionais furtos.

«Ela alojava todas

aquelas pessoas juntas, e

não era isso que deveria

ter sido feito com a

Familiale nem com a

prefeitura; aquelas

pessoas deveriam ser

espalhadas um pouco,

habituadas um pouco a

viver, não estão mais no

mato.»

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33

35

As famílias francesas do fundo da rua são as

vítimas desses furtos mas, segundo os Leblond,

porque se arriscam.

Sr. Leblond refere que não tem medo das

pessoas do bairro, pois os conhece do desporto,

contexto no qual se gera um respeito mútuo

entre ele e os restantes residentes do bairro.

Refere ainda que a polícia de lá não faz mais

nada além de ir ao local.

Comenta-se que a polícia teve de intervir sobre

um conflito que ocorreu entre professores e

pais há dois anos, quando um professor agrediu

um aluno porque este último vandalizou

diversas vezes o seu carro.

Para os professores por vezes é difícil a

integração nessas escolas e, caso não sejam

dessa região, é-lhes difícil permanecer.

Comenta-se por fim que os jovens actualmente

são menos politizados que os seus pais

Uma família deslocada

O contexto de análise é um bairro de casas de

dois andares que, ao longo do tempo, viu

algumas das suas casas que iam sendo

colocadas à venda, compradas pela câmara,

«Não, mas é verdade, é

preciso reconhecer, eles

deixam a roupa de cama

secando diante da porta,

eles deixam a roupa

durante a noite, é preciso

dizer também…»

«É isso, eu tranco a porta

e não deixo roupa do lado

de fora à noite.»

46

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37

para posteriormente serem ocupadas como

moradias para famílias de imigrantes. São casas

sociais que geram novos conflitos de

vizinhança. Surgem choques entre identidades

sociais diferentes.

Presença de três tipos de discursos.

A família Ben Mirould provém da Argélia. Todos

os filhos nasceram na França. O pai opta por

abordar o passado e de descrever como foi o

processo de imigração.

A casa, que se encontrava ao abandono, foi

oferecida pelo patrão/empresa de forma

gratuita. Estava condenada à demolição porque

ia passar lá uma futura auto-estrada. A casa

passou a servir como moradia provisória à

família Ben Miloud. Terminando o prazo, a

família muda-se para uma favela, considerada

a opção de mais baixo nível.

«Em primeiro lugar, do

lado da família imigrada,

o discurso do pai, que

recorda a história

residencial da família

durante toda a sua

imigração […], o discurso

colectivo dos filhos que

versa sobre a situação

presente o estado da

moradia actual; e […] o

discurso da vizinha

francesa mais próxima,

que se divide entre, de

um lado, a defesa dos

interesses materiais e

simbólicos […] e, de

outro, a indignação e

protesto contra o facto

de ser obrigado a

suportar uma coabitação

senta como degradante

[…]»

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41

Após várias diligências e com a ajuda de

assistentes sociais, a família consegue ser

realojada num apertado apartamento em Paris.

Fez um novo pedido no sentido de se mudar

para um apartamento com mais espaço,

chegando finalmente a família Ben Miloud à

residência onde se encontram actualmente.

Entrevista com os moradores de uma vila

operária

Pai e filhos debatem sobre uma senhora do

bairro que, aos olhos da filha, apesar de

educada com as palavras, não mostra coerência

com o olhar.

A senhora do bairro fez diversas queixas contra

a família, alegando que faziam excesso de

barulho.

O pai de seguida conta uma história de quando

estavam numa das outras casas. Tinha uns

vizinhos que reclamavam do barulho que

faziam. Mas, na verdade, como eram um casal

de idosos que ninguém ia visitar, sentiam

«Nas palavras é assim,

mas nos olhos é outra

coisa, há fogo e veneno.»

«É sempre a mesma

história. Quando não

podemos dizer que a

vizinhança com os árabes

é má, porque eles são

sujos, porque eles

cheiram mal, porque eles

fazem muito barulho,

porque há sempre muita

gente nas casas deles,

mesmo quando não

podem dizer tudo isso,

inventam outra coisa,

encontram sempre

algo…»

«Eu provoquei uma

conversa sobre barulho.

Fiquei surpreso com o

que eles me disseram. O

barulho era, na

realidade, as numerosas

visitas que tínhamos.»

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ciúme, uma certa inveja, por ver aquela família

a receber tantas visitas, e eram essas visitas

que o casal considerava como barulho.

A família assume que não sabe ao certo quem

controla a situação da casa, que instituições

são responsáveis e a quem devem pagar o

aluguel. A família mostra-se com vontade de

permanecer naquela casa.

O filho argumenta que poderão ser efectuadas

medidas que forcem o despejamento dessas

famílias, como por exemplo subindo o valor do

aluguel.

A filha refere que a vizinha não acha que a

França pertença a esta família. Já o filho

lembra que ela os denunciou por terem uma

casa barulhenta e muito ocupada. Há um hábito

cultural dos filhos visitarem regularmente os

pais, algo que não acontece com os franceses.

A filha considera a postura da vizinha como

resultado de ciúme.

Apesar dos filhos terem nacionalidade francesa,

são tratados como se não a tivessem.

«Existe ainda a mesma

unanimidade quando se

trata de proclamar a

vontade da família de

permanecer ali, qualquer

que seja o rumo que

tomar o projecto de

reabilitação e que haja

restauração, ou não.»

«Veja: minha irmã mais

velha mora na casa dela

e, é claro, ela passa aqui

todos os dias, vêem-na

sempre aqui, ela vem ver

os pais, é normal!

Assegurar-se que tudo vai

bem, às vezes dorme

aqui. Todos temos um

quarto ou uma cama

aqui. No entanto, ela tem

a casa dela… É assim

entre nós: não

abandonamos nossos pais

ou simplesmente ir vê-los

todo dia 30 de fevereiro

(…)»

«Se há algo a

compreender em tudo

isso é que eles

simplesmente gostariam

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48

O pai assume que, àquela idade, não tem mais

sítio para onde ir, não pode emigrar de França.

Segue-se agora um momento de conversa entre

o entrevistador e uma vizinha do bairro, a Dona

Meunier. A senhora refere que a população do

bairro está a mudar, as pessoas estão a ir

embora e são as famílias estrangeiras que

ocupam as casas vazias. As pessoas saem por

desilusão ao bairro.

Dona Meunier considera que foi roubada, a casa

perdeu valor: a população que fundou o bairro,

que muitas vezes construiu as casas, parte e as

coisas ficam ao abandono, não se consertam

novamente.

Não há mais conversa entre os vizinhos, a inter-

ajuda também se perdeu; tudo isto foi embora

com a mudança da população do bairro.

Não se pode contar com os vizinhos para

protestar colectivamente pela melhoria dos

serviços.

Na opinião da moradora do bairro, este torna-

se gradualmente um HLM, com um cada vez

maior número de famílias de imigrantes com

casas atribuídas pela prefeitura.

que não estivéssemos

aqui. Ou, se estamos, é

preciso que a gente não

seja visto, que não se

mostre.»

«A população muda

sempre… e nem sempre

para melhor.»

«Não é pelo racismo que

eu digo que há aqui cada

vez mais famílias

imigradas, famílias

árabes. Não sei o que

elas são, argelinos,

marroquinos; famílias de

norte-africanos. E isso

não ajuda a arrumar as

coisas, para tornar o

bairro agradável. Então,

todos partem ao mesmo

tempo.»

«Com eles, nunca se sabe

quantos estão. Quem faz

parte da família, quem

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50

Considera que o principal problema está nos

jovens, nos filhos, que podem fazer tudo.

não faz parte da família.

É um vai-e-vém que não

acaba mais. Há sempre

uma garotada. Eles estão

em toda a parte, na rua,

na praça; eles gritam,

eles choram.»

«Os filhos são

pretensiosos… perigosos.

(…) Antes mesmo que

você diga uma palavra,

eles o acusam de

racismo; qualquer um

que discordar deles, para

eles é um racista. Então,

são eles os racistas.»

«Ouço daqui o que eles

vão dizer, o que eles vão

gritar para mim: “não

estão em sua casa; o

jardim não é seu; cuida

de seu cão, e basta. Não

viemos pedir-lhe

satisfação! Etc., etc.!”

Mas, se, ao menos, eles

soubessem… “Não estão

em sua casa!” Ora, eles

estão em minha casa,

eles estão na França, não

sou eu que estou na casa

deles.”

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Cada qual em sua casa

Françoise viveu em 1987 um momento de

tensão com o seu vizinho. Actualmente, mora

numa residência de funcionários da SNCF.

Ao longo da sua vida, Françoise passou por

diversos deslocamentos.

Françoise refere que em 1957 a mãe fica

doente e tem de abandonar o trabalho. A

família instala-se no prédio onde a mãe

trabalhava.

Em 1965 transitam para uma moradia nuns

novos prédios que são construídos.

Com a morte do pai, em 1976, a família sofre

um grande aperto económico. Françoise volta a

trabalhar e Thierry, com quem se casou em

1972, fica a trabalhar num local mais próximo

de casa.

Compram um pavilhão em Sartrouville, muito

pequeno para a família: a mãe, Françoise e

Thierry, a irmã de Françoise e ainda os dois

filhos de Françoise. A vida parecia correr bem à

família, foram melhorando o nível de

educação, os rendimentos foram aumentando.

«Em 1987, a família está

em completa desordem;

várias vezes, Françoise

volta a me contar as suas

alteracações com o

proprietário da casa

contígua à sua e as

providências que ela

tomou para pôr fim a

uma situação julgada

intolerável.»

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As relações com os vizinhos, com quem a casa

estava geminada, eram tranquilas, até que o

vizinho, um pedreiro português, decide

construir mais um andar na sua casa.

Tentaram apelar à comunidade e à lei, mas não

viram os problemas resolvidos. Françoise fica

bastante incomodada, sente-se afectada.

Acabam por vender a casa, indo para uma

residência que acolhe os funcionários da SNCF.

Mas com o tempo as coisas mudaram.

Françoise matricula os filhos numa instituição

religiosa mais distante, que sendo mais

exigente do ponto de vista financeiro, dará

mais oportunidades aos filhos.

Entrevista com Françoise

Françoise refere que os problemas com os

vizinhos repercutiram-se fora de casa, na rua,

na escola, com as pessoas.

«Um pouco de desordem

não assustava este

vizinho importuno; com a

reprovação geral, seu

pequeno jardim logo é

transformado em

galinheiro e pocilga; ele

não hesita em usar a

janela do litígio para

jogar lixo, ou

simplesmente roubar os

tomates carinhosamente

plantados por Thierry.»

«Agora, em 1991, as

coisas mudaram, e a

SNCF aluga para qualquer

um, e não só aos

funcionários, não é mais

como era, os antigos

locatários envelheceram,

não têm mais ânimo de

sair, e aos novos isto não

interessa […] Os jovens

norte-africanos são cada

vez mais numerosos nas

escolas da região […]»

«Começou por causa do

barulho, mas depois

houve ataques pessoais,

ameaças de morte, etc.»

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Os filhos dos vizinhos eram socializados pelos

pais a agir de forma agressiva com a filha de

Françoise, estendendo assim a pressão e o

conflito para fora de casa.

Carole era agredida e ameaçada pelos filhos do

pedreiro português. Françoise não se sentia

sequer segura na rua.

Apesar do subúrbio não incluir pessoas muito

sociáveis, a comunidade mostrou-se solidária

com o que acontecia à família de Françoise.

«Mas, então, as crianças,

que eram da mesma

categoria dos pais,

infelizmente, e que iam à

escola, ameaçavam

Carole na escola. E

quando eu a levava para

a escola, eles tinham um

carro, eu não sei quantas

vezes eles tentaram me

esmagar no passeio.

Chegou a esse ponto!»

«Devo reconhecer que

ficamos até surpresos

porque pessoas que não

falavam connosco, que

nem mesmo nos diziam

bom-dia, quando a

polícia chegou no dia em

que chamamos a polícia

porque já estava demais,

houve pessoas que vieram

no dia seguinte nos

perguntar o que havia

ocorrido.»

«O médico me disse:

“Você precisa mudar-se,

não pode ficar.”

“Eu estava de tal maneira

perturbada que eu o teria

matado facilmente.»

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O apoio da comunidade foi fundamental, já que

eles frequentemente iam para casa dos vizinhos

apenas para se distanciarem do barulho.

O jardim da família foi completamente

inutilizado: cercado por blocos de cimento,

inundado de maus cheiros. Ergueu-se uma

espécie de prisão naquele jardim.

«O que é importante

também é que, muitas

vezes, ficávamos

hospedados com os

vizinhos aos sábados e

aos domingos. As pessoas

nos convidavam para que

não ficássemos em nossa

casa. Elas eram gentis.

Felizmente nos

apoiavam, porque isso é

preciso reconhecer! Se

não nos tivessem

apoiado, não sei se

teríamos podido ficar

tanto tempo.»

«[…] quando nosso

vizinho do lado alteou

[sua casa], os cómodos

davam sobre nosso

jardim, o que não

adiantava nada porque,

bom, as ameaças estando

já no pé em que

estavam, eles jogavam

toda espécie de detritos

em nosso jardim. Estava

fora de questão servir-se

dele. Além do mais, eles

criavam animais bem

junto do nosso muro, o

que destilava

regularmente mau

cheiro!»

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Com a mudança para a residência de

funcionários da SNCF, Françoise pode afirmar

que se sente bem, suportada pelo apoio das

restantes famílias quando seja necessário,

promovendo jantares ocasionalmente, mas

sempre preservando o espírito de

independência.

A visão mediática

Apenas ganham existência real aqueles mal-

estares que são abordados pelos media e que,

com essa abordagem, estão sujeitos a

frequentes deformações.

A televisão toma o lugar central neste palco

mediático, sendo o principal factor para a

constituição das representações sociais dos

assuntos do momento. A imprensa escrita não

pode mais ignorar aquilo que foi exibido pelos

telejornais na noite anterior.

O discurso mediático sobre os subúrbios

problemáticos tem a sua origem nos anos 80,

com incidentes que ocorreram em Lyon, no

bairro de Vénissieux, caracterizada por uma

forte concentração de população emigrada.

Esses incidentes foram massivamente

divulgados pelos meios de comunicação, o que

conduziu à percepção do elevado estado de

degradação desses subúrbios, marcados pelo

vandalismo e abandono.

«[…] mas eu acho que são

pessoas inteligentes, que

sabem ver as coisas como

elas são, que raciocinam,

que podem manter uma

conversa.»

«Os mal-estares sociais

não têm uma existência

visível senão quando se

fala deles na mídia, isto

é, quando são

reconhecidos como tais

pelos jornalistas.»

«O que chamamos de um

“acontecimento” não é

jamais, afinal, senão o

resultado da mobilização

– que pode ser

espontânea ou provocada

– dos meios de

comunicação em torno de

alguma coisa com que

elas concordam, por

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Os jornalistas procuram o excepcional, o

espectacular: o mais violento. Assim, o público

absorve essas acções violentas.

Os jornalistas munem-se do chamado

jornalismo de investigação e, mais do que os

sociólogos, falam por cima dos polícias.

Mesmo na ausência de acontecimentos, a

máquina jornalística produz alguma coisa: um

repórter falará ao vivo durante alguns minutos,

embora nada tenha acontecido no subúrbio.

certo tempo, a

considerar como tal.»

«Os dominados são os

menos aptos a poderem

controlar sua própria

representação. O

espectáculo de sua vida

quotidiana não pode ser,

para os jornalistas, senão

ordinário e sem

interesse. Porque eles

são desprovidos de

cultura, e além disso

incapazes de se exprimir

nas formas requeridas

pela grande mídia.»

«Se esta representação

ocupa pouco espaço no

discurso dos dominados,

é porque estes

dificilmente são ouvidos.

Fala-se deles mais do que

eles falam, e quando

falam aos dominantes,

tendem a tomar um

discurso emprestado, o

que os dominadores

usam.

«A investigação

jornalística se parece

com a investigação

judiciária: a

objectividade consiste,

como em um processo,

em dar a palavra a todas

as partes envolvidas […]

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Os acontecimentos fazem sucesso durante

alguns dias ou um mês, para depois deixarem

de interessar, perder impacto e cair no

esquecimento.

Os jornais locais dão uma visão mais próxima da

realidade e provocam os jornais de Paris,

criticando a linguagem que utilizam. Esses

jornalistas dos grandes jornais preocupam-se

mais com os confrontos do que com a situação

objectiva que os provoca.

O trabalho de campo

propriamente dito limita-

se […] a algumas horas,

passadas no local, “para

dar um pouco de

colorido” às reportagens,

com geralmente um

cenário previamente

construído […]»

«Mas, longe de fazer

compreender, esta

“cobertura mediática”

serviu de motivo para ver

ressurgirem os

estereótipos sobre os

subúrbios e os grandes

conjuntos habitacionais

[…]»

«Os diferentes jornais

têm muito

evidentemente

desenvolvido estas

temáticas segundo as

opções ideológicas que

lhes são próprias.»

«[…] além de palavras

convencionais, como

“guetos, cidades-

dormitório, emigrados

sujeitos a constrangi-

mentos, polícia

selvagem, violência dos

subúrbios, etc.” há uma

realidade mais banal […]»

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Os jornalistas consideram sempre que o pior é

ficar em silêncio. Mas são elevados os custos

simbólicos da sua acção.

Os jovens que vivem nesses bairros, quando

procuram trabalho, ganham sentimentos de

vergonha em referir o seu local de residência,

que foi título de notícias.

A população mais politizada desse bairro

rejeita de forma vincada as perspectivas

impostas pelos media. Torna-se necessário que

a generalidade da população rejeite a visão

produzida pelos jornalistas.

Os jornalistas locais conseguem ter consciência

da visão real, estão próximos dos moradores.

Considera-se que as desgraças e reivindicações

devem ser expressas nos media, pois só assim

são reconhecidas pelo poder político.

«Os jornalistas são

certamente, repelidos

pelos jovens delinquentes

que não querem ser

reconhecidos nem

fichados pela polícia. Mas

são rejeitados também

pela população desses

conjuntos que vê ser

fabricada, nas

reportagens televisivas e

nos artigos dos jornais,

uma imagem

particularmente negativa

do subúrbio.»

«Comerciantes explicam

que eles, em geral,

tinham boas relações com

os jovens; professores, se

bem que enfrentem

grandes dificuldades nos

colégios, acham

excessivo que se fale de

“explosão social”»

«O poder teme

particularmente a produ-

ção (ou co-produção)

pela mídia desse tipo de

acontecimentos […]

porque, mesmo muito

momentaneamente, eles

podem tomar uma

dimensão política

considerável […]»

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A principal oposição aqui presente é entre os

media e o poder político.

Por vezes, os mecanismos gerais, como o

Ministério da Cidade, apenas acabam por anular

a acção daqueles que actuam localmente, os

assistentes sociais e os professores.

Os jovens sentem marginalização e exclusão.

A tendência para agrupar as famílias na mesma

zona, incluindo lá as ditas famílias pesadas,

produz reacções de conotação racista.

O desemprego torna-se particularmente

insuportável, os roubos tornam-se recorrentes.

«Para tentar

compreender, seria

necessário interrogar as

pessoas comuns sobre sua

vida quotidiana, tomar o

tempo, por exemplo ,de

constituir a história de

Vaulx-en-Velin.»

«É porque eles se sentem

integrados que eles vivem

mal sua não-integração

objectiva. Eles sentem

como injustiça o

desemprego que os

atinge mais fortemente

que os demais franceses:

subqualificados porque,

por razões culturais, eles

têm fraco desempenho

escolar, eles denunciam

os empregadores que, é o

menos que se pode dizer,

estão longe de se

disporem hoje a

contratar

preferencialmente jovens

de origem estrangeira.»

«O roubo é até mesmo

uma espécie de esporte

que cadencia o tempo

vago desses adolescentes

desocupados […]»

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O carro, visto como um símbolo de integração

no mercado de trabalho, é frequentemente

roubado ou vandalizado.

A ordem das coisas

Ali é um jovem beur de 20 anos, filho de

imigrantes, com origens na Argélia, em terra de

agricultores. O seu pai está bem

financeiramente como operador-analista numa

indústria química. Já a sua mãe é analfabeta,

falavam árabe em casa. O filho era a esperança

do casal, que se encontrava no momento da

entrevista em espera para saber se iria para a

classe superior na escola.

Junto com Ali estava também o seu

companheiro de imóvel, François.

Na escola, Ali enfrentou grandes dificuldades, a

língua era uma barreira para aprender a ler;

fecha-se num papel de duro, o que lhe foi

conduzindo ao fracasso escolar, levando-o à

delinquência social.

François ficou-se pela terceira série, vivia longe

da escola e não era assíduo às aulas.

«[…] o carro representa

de fato, para esses

jovens, o bem de

consumo por excelência,

objecto de números

investimentos.»

«Dividido entre os

sentimentos de milagre

(de todos os seus

companheiros do bairro,

apenas dois chegaram ao

fim) e o do fracasso (ele

sabe, no fundo, que sua

carreira escolar está

terminada), ele vive, e

diz muito lucidamente, a

defasagem entre a escola

e o “bairro”.»

«[…] ignorando comple-

tamente o francês

quando de sua entrada

tardia para a escola e só

falando árabe em família

[…], ele tem muita

dificuldade em aprender

a ler […]»

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Estes dois amigos têm tudo em comum, menos

a sua origem étnica, que em momento algum a

destacam. Ali é, neste caso, o que fica em

desvantagem, ao localizar-se no primeiro da

dicotomia imigrantes/nacionais.

Há uma solidariedade absoluta entre os dois.

Os dois pertencem ao mesmo grupo, são

igualmente estigmatizados, vistos como hostis.

Há uma fatalidade de todo aquele conjunto.

Ali refere que é quando se juntam a ele, na

terceira série, um grupo de crianças vindas do

conjunto, que o seu destino escolar piora.

«[…] François e Ali são

amigos inseparáveis e

falam com muita tristeza

do momento quando eles

terão de se separar,

porque está na ordem das

coisas.»

«É assim que, quando Ali

lembra o que lhe têm

valido seus problemas

com a polícia e a justiça,

e que ele chama suas

“besteiras” […] é

François quem,

identificando-se, evoca

as circunstâncias

atenuantes: “Bem, foi

quando nós precisamos

de dinheiro. Quando nós

precisamos muito de

grana, quando, digamos,

vimos belos blusões ou

belas calças e tudo”»

«[…] uma fatalidade,

todos aqueles que estão

amontoados nos lugares

de rejeição social, onde

as misérias de cada um

são redobradas por todas

as misérias nascidas da

coexistências e

coabitação de todos os

miseráveis […]»

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Entrevista com Ali e François

François diz que o emprego é escasso. No lazer,

por vezes fazem muitas asneiras e as pessoas

da vizinhança protestam e chamam a polícia.

Só há um campo de handebol para dois

conjuntos o que causa alguma rivalidade, são

várias gangues.

Os problemas recaem sempre sobre os mais

velhos.

A polícia vai falar com os pais deles, mas que,

com o tempo, foram habituando-se.

François não ia às aulas, tal como Ali, porque

era longe. Em contraponto, argumentam que a

escola que lhes é próxima é para os melhores,

para os inteligentes.

Ali menciona que a escola começou a ir mal a

partir da 6ª série, quando reencontrou os seus

companheiros. Ninguém do conjunto de Ali

frequenta as aulas, e os professores parecem

não ligar.

Apenas dois ou três vão às aulas, o resto

trabalha ou fica em casa.

Roubaram, mas não durou muito tempo. Era

por diversão; quando se chateavam deixavam

de o fazer.

«Sim, sobre os mais

velhos. Sobre o irmão

mais velho (de Ali) e um

outro grande.»

«Não tem jeito porque,

se estivéssemos na escola

ao lado, mas nós

estávamos, não sei

quantos quilómetros…»

«Bombons, bolos,

perfume e tudo. Mas os

mais velhos, eles

tomavam bebidas

alcoólicas; é isso que

acabou com muitos

rapazes, o álcool e depois

a droga.»

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Durante a noite, foram frequentes as vezes em

que Ali não tinha permissão para entrar nos

clubes, enquanto François tinha.

Há rapazes de outros conjuntos que aparecem

com droga para vender.

François já praticou desportos de defesa

pessoal, como simulações ou boxe.

Ali acredita que lhes faltam raparigas, que

possam impedir-lhes de fazer asneiras.

Não conversam nem ligam muito a política.

Quando Ali tinha cerca de 16 anos roubou uma

mota. Deixou-se apanhar pela polícia;

chamaram os seus pais. O pai ficou muito

chateado.

François vive há 19 anos naquele conjunto,

conhece toda a gente, estão lá todos os seus

companheiros. Só se vê a mudar se for para se

casar e organizar a sua vida. Ali diz que

gostaria de mudar, mas iria sentir saudades.

Têm consciência de que não passaram toda a

sua vida juntos. Um dia terão que se separar.

«Quando estávamos com

garotas, elas podem

falar, as garotas, dizer

“Oh! este é meu colega,

ele está comigo e tudo”.

Mas isto também não

funciona.»

«Ah! Eles vêm com droga.

Quando não têm dinheiro

para comprar, bem, eles

roubam.»

«Sim, ele queria me

desconjuntar. É normal,

hein. Eu o compreendo

[…] graças a ele não fiz

mais besteira.»

«Se um rapaz arranja

trabalho, ele avisa os

outros. E depois (…) É

melhor.»

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No conjunto deles a maioria mal sabem ler ou

escrever.

Ali não gostava de ler na escola, mal sabe ler.

Considera que a maioria dos seus colegas lê

como robô, palavra por palavra.

Há confrontos entre famílias, mesmo dentro do

próprio conjunto, algo que François classifica

como perigoso, já que alguns têm armas,

droga.

As raparigas olham-nos como delinquentes,

pelo sítio onde moram. A rapariga com quem

François está também é do conjunto, mas ainda

não se pretende casar com ela, precisa que ela

também trabalhe. Já Ali, refere que não tem

encontrado raparigas sérias, são difíceis de

encontrar.

Os pequenos do conjunto começam cedo a

fazer asneiras. François diz que com 10 ou 9

anos já o fazem. Entram nos jardins dos outros

e roubam cerejas. Ali acha que os pequenos

começam ainda pior, já que eles começaram

com bicicletas e agora qualquer menino de 13

ou 14 anos já fuma.

«Nós, nós somos pelo

menos 20 ou 30. Bem, há

quantos que sabem ler?

Bem, eu falo ler bem. Há

10. Os outros lêem mal.»

«Um rapaz, lá, Eric, tinha

seu aparelho, o outro

queria tomá-lo e depois

seu companheiro veio

defendê-lo; eles

brigaram, seu irmão

desceu, ele chamou seu

irmão.»

«Não, elas não são sérias.

É só você virar as costas,

bem, pronto, você não a

vê mais. Ela já está com

outro.

«Sim, sim, depois do

cigarro, o que é que isso

vai-lhe causar, isso vai

virar vício. Depois eles

quererão estar bem. Eles

vão começar a pegar. Há

um rapaz em nosso

conjunto, que idade ele

tem? Ele deve ter uns 15

anos, bem ele, ele faz

tudo, ele toma comprimi-

dos, haxixe, álcool […]

Ele abandonou a escola e

tudo. Ele perdeu-se.»

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Uma família integrada

Maria, com 50 anos, é uma mulher espanhola,

militante do partido comunista e muito activa

na associação de inquilinos.

É oriunda de uma família camponesa de 10

filhos e vem para França no começo dos anos

60, sem ainda sequer ter completado os 18

anos, por falta de emprego na sua aldeia.

Na França conheceu o seu marido, também

espanhol, e que deixou o país por

circunstâncias similares. Têm dois filhos, com

24 e 16 anos no momento da entrevista.

Os primeiros tempos em Villeneuve são

recordados com carinho, uma zona repleta de

espaços verdes e agradáveis. Com o andar dos

anos, constroem-se mais prédios, a dinâmica da

zona muda, sobe o desemprego para os jovens.

Os roubos multiplicam-se, os prédios degradam-

se, muitas famílias saem, e surgem problemas

de coabitação.

Maria viveu durante muito tempo a ilusão de

voltar ao seu país, e isso impediu-lhe de ganhar

o incentivo para sair de Villeneuve, que

encarou como uma residência provisória. Tem

consciência que este local é um perigo para os

seus filhos, expostos a focos de delinquência.

«Maria D. mora em

Villeneuve, conjunto

residencial construído há

uns 20 anos no subúrbio

de um grande centro

urbano. Desalojada por

causa da reurbanização

do centro da cidade onde

ela morava há uns 10

anos, ela foi transferida

para essa ZUP no começo

dos anos 70, logo no

início da construção dos

primeiros prédios.»

«Depois ela lembra os

problemas de coabitação

que se multiplicaram

entre a população

europeia e uma

população de origem

árabe cada vez mais

numerosa […]»

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É uma mulher independente, ao contrário das

argelinas, que vivem sob a dominação

masculina.

A distância cultural e social que separa Maria

do país que a acolheu é muito menor que a que

separa a generalidade das mulheres argelinas.

Maria e seu marido foram bem sucedidos e

tentaram abrir caminho para os filhos.

Os filhos dos argelinos tipicamente recusam a

condição dura de operário e desprezam os pais

que se submetem a essa exploração.

Também ao nível da fecundidade nota-se

diferenças. Maria voluntariamente limitou-a,

tendo apenas dois filhos, em contraponto às

numerosas famílias norte-africanas. Nestas

famílias numerosas, o pai limita-se a corrigir os

erros dos filhos, sem grandes resultados para os

que se comportam mal.

Maria compreende estas famílias, está próxima

deles. Mas ainda assim preocupa-se, já que

sofre agressões quotidianas que esses jovens

cometem. Ela saiu-se bem na vida graças aos

seus esforços.

«Não sou francesa, mas

sou europeia, é

exactamente a mesma

coisa.»

«O filho mais velho de

Maria D., que trabalha na

oficia de seu pai, pode

pensar em seguir o

exemplo paterno e se

preparar para assumir o

pequeno negócio familiar

[…]»

«Com efeito, o tamanho

dessas famílias torna

quase sempre impossível,

nessas zonas urbanas, um

controle estrito e

efectivo de todos os

filhos por parte dos

pais.»

«Longe da resignação e

do fatalismo ou, ao

contrário, dos projectos

totalmente irreais que

caracterizam frequente-

mente as fracções mais

baixas da classe operária,

Maria D. mostra uma

atitude de reinvindição

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Entrevista com Maria D.

É sistemático o controlo e investimento que

Maria faz nos seus filhos.

No caso de Frederico, fazia planos de que ele

fosse para a Inglaterra. E foi por isso que, em

conversas com a assistente social da escola,

descobriu que ele estava a faltar às aulas.

Ficou surpresa: não tinha recebido nenhum

aviso em casa.

Maria afirma que irá sempre lutar pelo filho, já

que cada um só tem uma vida.

Maria relata alguns episódios de vandalismo no

bairro, roubaram-lhe o apartamento.

razoável; é preciso

buscar, pela luta,

melhorar mas sem querer

o impossível.»

«Ele passou raspando e

eu já fui chamada duas,

três vezes porque ele

começava a não mais

respeitar os professores e

tudo isso. Eu lhe disse,

“ah! bom?”, eu lhe passei

um sabão e acreditava

que isso ia melhorar; ele

terminou a sexta rente,

mas terminou.»

«Quando eu soube que

ele não mais obedecia

aos professores, eu disse,

não posso mais deixá-lo.

Porque se eu o deixasse,

ele ficaria entre os

garotos que procedem

mal, que não mais

obedecem aos

professores.»

«Quando eles roubaram o

apartamento, fizeram um

buraco na porta, eram

portas… [pouco

resistentes], fizeram um

buraco na porta e

entraram […] Levaram a

televisão, um toca-fitas,

um aparelho de som que

os meninos tinham, fitas

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112

113

Apesar de tudo, Maria não quer sair de

Villeneuve.

Participa activamente em associações, já tendo

discutido algumas vezes com árabes, que

reivindicam tudo.

As associações argelinas eram dominadas pelos

homens, as mulheres ficavam em casa.

Não se considera racista, pelo contrário, acha

que os árabes são mais.

Os jovens são assolados com o problema do

desemprego. Maria refere que não tem os

problemas que existem em Villeneuve; há

famílias que vivem bem, trabalham e têm

carros. As famílias com problemas são as

famílias numerosas, seja de que nacionalidade

forem.

cassete, garrfas.»

«Se há pessoas ruins,

ouça, há pessoas ruins em

toda parte, e o senhor

sabe que não há ladrões

só em Villeneuve porque

minha irmã mora em T,

[comuna vizinha] e, outro

dia, roubaram-lhe o

carro, então…»

«Isso me chateava

porque, quando eu era

jovem, não possuía nada

e era feliz e vivia

contente, e eles não o

são […]»

«Eles, às vezes, chegam à

porta e, quando vêem

muitos europeus, não

entram. É preciso que

eles estejam em maioria,

os árabes. Isso, eles,

hein, não é preciso dizer

que somos racistas, os

mais racistas são eles.»

«[…] todas as famílias

numerosas apresentam

problemas. De qualquer

nacionalidade que

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115

Com luta, com esforço, com maior aplicação na

escola, Maria acredita que dessa forma os

jovens conseguem um emprego.

Maria insistia para que o filho fosse todos os

dias ao centro de emprego procurar trabalho.

Mas refere que há jovens que com o subsídio de

desemprego se sentem satisfeitos e não

procuram emprego.

sejam. Excepto quando

os pais são severos e

correctos que… Mas a

maioria são os árabes.

São as famílias mais

numerosas.»

«Porque os jovens, uma

vez que encontram

trabalho, tornam-se

sérios. À parte os jovens

que vadiam, como já lhe

disse agora mesmo,

porque há jovens que

vadiam, mas, enfim, é

uma minoria […]»

«Eu lhe juro, se eu tiver

boa saúde, para mim não

há desemprego.»

«Sou a primeira a me

levantar todos os dias às

sete horas ou às seis e

meia para trabalhar e vou

deixar o mais novo

dormir, ou ficar sem

fazer nada? Enquanto

meu marido e eu

trabalhos como cães? Ah!

não! Mas eu sei também

que nem todo o mundo é

como eu.»

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120

Um mau investimento

Dona Tellier é a presidente do comité de

defesa dos comerciantes da sua cidade. São

fortes os riscos que este pequeno comércio

sofre nos bairros de torres e nos grandes

conjuntos. Registaram-se incidentes de roubo

num pequeno centro comercial, com artigos

desportivos raros e cobiçados. Dona Tellier

tornou-se comerciante tarde, apenas aos 50

anos, após ter estado noutras actividades sem

ligação ao comércio.

Foi eleita conselheira municipal, ficando

encarregue da vida desportiva. A instalação da

loja seria uma forma de aplicar a experiência

obtida.

Entrevista com Dona Tellier

Os produtos da loja de desporto eram muito

procurados por jovens.

A loja foi vista como uma provocação a quem

não tinha acesso àqueles artigos. Dona Tellier

sofreu três roubos, só foram apanhados à

terceira.

«O revés que representa

para ela a destruição de

sua loja, em parte devido

à sua inexperiência, é

tanto mais doloroso

porque esta falência é

também o fracasso de um

projecto de promoção,

pa-cientemente

construído.»

«Recusando-se a tornar

as pessoas responsáveis

por sua infelicidade, ela

busca, numa análise

militante da escola e do

mercado de trabalho, os

meios de compreender,

se não de suportar, o que

lhe acontece.»

«[…] sem cessar, eu tinha

jovens que queriam pegar

esses artigos sem pagar;

mas, enfim, é verdade

que esses artigos são

muito cobiçados.»

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121

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123

Todos os estabelecimentos comerciais, antes de

serem incendiados, foram vandalizados. Os

jovens provocam, mesmo tendo a Dona Tellier

oferecido roupa através de leilões.

Os jovens sofrem com o desemprego, difíceis

condições de vida. Ambicionam um poder

aquisitivo que só poderão ter com trabalho.

«[…] apesar de tudo, eu

tinha uma clientela que

era muito, muito

simpática e depois é

preciso dizer também

que eu conhecia desde

quando estou nesta

cidade.»

«[…] havia um número

enorme de drogados que

vinham e eu já havia

alertado também os

eleitos, todo o mundo

estava ao par e é preciso

dizer que nada foi feito

[…]»

«[…] esses jovens que

vinham, eles vinham

procurar roubar, mais as

palavras, mais os

insultos. Agressivos,

muito, muito agressivos.»

«Duas vezes quando eles

entraram na loja, eram

duas horas da manhã, e é

de facto engraçado

quando a companhia de

vigilância avisa: “vá

depressa à sua loja que

ela está prestes a ser

arrombada”.»

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127

Dona Tellier vê o seu futuro confuso, incerto.

Afirma que quando não se tem bagagem

universitária, tem de se trabalhar a dobrar.

A reabilitação

Hocine é um dos mais antigos moradores do

conjunto habitacional. Chega a França nos anos

70 e é um operário qualificado da estrada de

ferro tunisina. Aqui arranja um emprego na

montadora de uma fábrica de camiões. Durante

os anos 80, o conjunto onde vive degrada-se, os

seus moradores são essencialmente

desempregados, famílias problemáticas.

O senhor Hocine procura, acima de tudo,

defender a boa imagem do conjunto.

Entrevista com a família Hocine

Hocine foi um dos primeiros a chegar ao

conjunto. No inicio havia um bom inter-

relacionamento.

«Eu me lembro de que

quando fui eleita, eu

fiquei doente. Quantos

jovens eu recebi, o

tempo todo, que se

vendiam por qualquer

preço, que estavam

dispostos a varrer os

estádios, que me pediam

um emprego, um

emprego municipal,

dispostos a tomar conta

das praças de esporte ou

a varrer o ginásio, com

diplomas, é loucura.»

«Dona Hocine mantém

seus filhos em casa para

preservá-los das

violências do conjunto,

ela tem vontade de

mudar-se para um lugar

mais calmo, mas seu

marido não quer. Trair a

solidariedade seria trair-

se a si mesmo, além disso

ele se empenha na

transformação do lugar.»

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Hocine quis permanecer mais alguns anos no

conjunto, para depois voltar para a sua terra.

O público do conjunto mudou, os antigos

partiram, vieram novos. Hocine tentou

construir amizades, mas foram tentativas

falhadas.

Alguns vizinhos decidiram criar um comité de

inquilinos.

No início eram oito pessoas no comité, agora

apenas duas.

Hocine comenta que costuma visitar uma idosa

de 87 anos, que mora no conjunto desde a sua

criação, dá-lhe apoio, verifica se precisa de

alguma coisa. E afirma que faria isso com outra

pessoa qualquer, independentemente da sua

nacionalidade.

«E depois, não sei quem

chegou, bom; começaram

a ir embora os franceses,

alojaram árabes, quer

dizer, de minha raça […]»

«Quando chegaram, eu

tentei. Mas havia pessoas

que não queriam falar

com ninguém. E,

mediante os trabalhos de

reabilitação, constatei

que havia muita

imundície; que eles

jogavam sacos de lixo do

oitavo andar […]»

«São 94 moradores (…)

Naquele momento, eu

disse, “o único meio era

constituir uma comissão

de inquilinos, eu lhe

asseguro, antes, eu não

queria ter aqueles

problemas, eu disse:

“façam o comité, estou

com vocês, eu lhes darei

a mão”.»

«[…] ela vivia… mas ela

perdeu o marido; ela se

encontra completa e

totalmente sozinha […],

hoje está lá, amanhã

pode ser que… não esteja

mais lá.»

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132

O isolamento das pessoas é cada vez maior. O

conjunto torna-se uma espécie de ponto ode

encontro da droga.

Os pais dos jovens não fazem nada a respeito,

não os educam, diz Hocine.

É o Departamento, ao substituir franceses por

árabes, que cria o gueto.

Para Hocine, voltar a mudar depois de todo o

tempo passado em França, seria como voltar a

ser estrangeiro.

A senhora Hocine não tem a mesma opinião,

quer mudar-se: procura um local mais calmo; é

estranho agora, afirma não ser racista, mas

sente-se diferente por ter visto todos os seus

vizinhos mudarem-se. O casal toma atenção aos

filhos, com ligeiros traços de intranquilidade:

saem pouco.

«Um pai me disse: “ouça,

você sabe, a nova

geração…” e eu disse:

“não, não é a nova

geração”, e eu disse:

“não incrimino os

rapazes, jamais incrimino

os filhos, incrimino

vocês, vocês são os

únicos responsáveis […]»

«Não fomos nós, o gueto,

que o criamos, foi a

sociedade, e eu não

quero incriminar o

Departamento […]»

«[…] os imigrantes não

são os espanhóis, não são

os portugueses, não são

os turcos, não são… Os

imigrantes são os norte-

agricanos, são os

tunisianos, os argelinos,

os marroquinos!»

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134

Tentam dar tudo o que os filhos pedem, um

computador, brinquedos. O mais velho quer ser

piloto, o segundo ainda não sabe.

Hocine já tentou alertar outros pais sobre erros

que os filhos tenham cometido, mas eles não

acreditam, pensam que o filho é um santo. Mas

ele quer que lhe digam caso o seu filho faça

alguma asneira.

Casado e com filhos, torna-se difícil refazer a

vida na Tunísia. Tem responsabilidades. Tenta

garantir que não falte nada aos filhos, que

tenham tudo o que precisem para ter êxito.

«Estou começando a

trabalhar, eu me privo,

ela se priva. Eles não se

privam. Eu lhes digo: “Eu

sou liberal, meu único

sucesso para mim é que

vocês tenham êxito em

seues estudos, é tudo;

nada quero de vocês;

nada quero de vocês

porque, quando vocês

estiverem grandes, vocês

vão me… não, não quero

absolutamente nada.»

«Ficar aqui. Estou

inteiramente habituado

como aqui. Mas, senhora,

os que são racistas dizem

que a França é para os

franceses. Mas nós,

somos o quê? Antes nós

éramos o quê? Vivíamos

com os franceses,

morávamos com os

franceses e íamos à

escola com os franceses,

nós éramos vizinhos. E

eu, pessoalmente, jamais

deixei, jamais reneguei a

França. A França é minha

segunda pátria. Veja

você, eu sou grato a ela.»

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Hocine acredita que as televisões contribuem

para uma imagem negativa do conjunto, e

considera a informação mentirosa.

A última diferença

Raymond T. é zelador de imóveis. Casado,

cinquentão. Partilha com a mulher um

apartamento grande, mas escuro, num

conjunto suburbano.

Parou de estudar aos 13 anos, sem ter

aprendido nada. Começou a trabalhar cedo.

Aos 25 anos deixa a sua terra natal para se

mudar para uma metrópole regional.

Teve uma vida difícil, e talvez por isso seja

mais compreensivo com os jovens com quem

partilha a tarefa de zelador.

Thierry e Christian partilham visões próximas.

De origem popular, pertencem a famílias

numerosas. São felizes no seu conjunto, onde

cresceram e nunca deixaram. Mas não aceitam

bem a crescente degradação dessas zonas.

Christian tem 35 anos. Pertence a uma família

de cinco filhos. Após o pai sofrer um acidente

de trabalho, Christian e seus irmãos ficaram

algum tempo na assistência pública, já que a

mãe não conseguia cuidar deles.

Thierry, com 38 anos, é mais repressivo. O mais

velho de 8 filhos, tem origens populares. A

família foi abalada com a morte prematura da

mãe. É casado há mais de dez anos com Sylvie,

com quem já tem dois filhos.

«[…] tudo o que eles

dizem dos subúrbios é

falso.»

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146

Sylvie recebeu uma educação menos rigorosa

que a de Thierry. Opta sempre pelo diálogo e

discussão com os jovens, considerando que a

persuasão é mais eficaz que a repressão. Com

um capital cultural de importância relativa,

denuncia o seu passado militante de esquerda.

Os dois zeladores permanecem na zona, porque

não podem ou não querem ir para outro lugar.

Não caíram mais baixo na sua trajectória social

graças a uma educação severa.

Eles sabem que os jovens sofrem com o

desemprego.

Os dois zeladores vêem partir, com raiva

contida, os melhores moradores, os franceses

que se mudaram. Os zeladores não

compreendem os sentimentos de injustiça que

fomentam o comportamento desviantes dos

jovens do conjunto.

Entrevista com Christian, Thierry e Sylvie

Villeneuve foi construída para os argelinos, que

vivam em barracas.

«Foi sem dúvida porque

Thierry só conseguiu sair-

se ao preço de uma

conduta moral muito

estrita, única barreira

para não cair

socialmente, que ele foi

levado a reagir com força

contra o comportamento

dos jovens do conjunto e,

por um ressentimento

compreensível, a se

tornar repressivo por sua

vez.»

«[…] o desemprego pesa

sobre esses jovens de

uma maneira […] mais

aguda que sobre eles e

reconhecem que esses

comportamentos

desviantes são causados

principalmente pela

situação de anomia

criada pela imigração

[…]»

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149

Só haviam argelinos, havia um bom

entendimento. Como as pessoas vivem

amontoadas naqueles alojamentos, acabaram

por se desgastar e foram saindo, conta

Christian.

Thierry conta que as famílias que entretanto

vieram causaram distúrbios. Os pais

trabalhavam, mas entretanto aposentam-se.

Mas os filhos, agora adultos, estão

desempregados, roubam, arrombam, consomem

droga. Christian revela que foi a partir de 81

que o conjunto começou a degradar-se, e que

não são apenas os jovens norte-africanos,

também os franceses se juntam a eles, com

idades entre os 18 e os 20 anos.

Thierry acha que a solução passa por retirar do

conjunto as famílias mais problemáticas.

São sempre as mesmas pessoas que fazem

asneiras, que roubam, que vandalizam.

Christian diz que, tendo um carro, não o

podemos deixar sozinho dois minutos, pois

podemos voltar para o encontrar com um pára-

brisas partido, ou com o rádio roubado.

Thierry acredita que alguns jovens nunca vão

trabalhar na vida. São jovens que só gostam de

fazer asneiras, vão para a prisão, são soltos,

portam-se bem algum tempo e repete-se o

ciclo.

«[…] é também preciso

dizer uma coisa, tudo o

que pertence ao

Departamento, ele põe lá

dentro quem quer, então

traz pessoas que antes

estavam numa empresa

auto-administrada, eram

indesejáveis, foram

mandadas embora e as

recolocaram aqui.»

«Eu, há uma coisa, eu, é

minha opinião, eu digo,

não consigo

compreender, bom, são

os pais, porque deixam

rapazes que têm… idade

média é 14, 15 anos…

toda a noite.»

«É preciso encontrar um

terreno longe de

Villeneuve e, depois,

propor a essas famílias,

as que são

verdadeiramente

indesejáveis, colocá-las

nesses alojamentos e

deixar que se

entendam.»

«E, além do mais, para

eles… é um orgulho ir

para a cadeia (…) Os

grandes é que empurram

os menores […]»

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152

Christian assume-se como racista, mas não para

todos, apenas para aqueles que cometem

asneiras.

Ambos confessam que já foram ameaçados, e

conhecem outros zeladores que também já

foram ameaçados.

Christian comenta que à noite eles são mais

numerosos, vão para fora e gritam até de

manhã.

Thierry afirma que se lhes disseram alguma

coisa, eles vingam-se nos carros. Ou estouram

os pneus, segundo Christian.

Os dois referem que o que lhes cansa no

trabalho é o stress, e não o trabalho em si.

Com a constante expectativa de vir a sofrer

ameaças, ficam com os nervos à flor da pele.

Thierry pensa que a solução é dar-lhes uma

surra ocasional.

Contudo, consideram o trabalho agradável.

Thierry não quer mudar, sempre viveu em

Villeneuve. Refere que as famílias

problemáticas deviam ser dispersadas pela zona

e não aglomeradas lá. São os norte-africanos

que estão na prefeitura, que trabalham lá.

Thierry acha que apenas eles conseguem

emprego.

«Se você disser qualquer

coisa [aos jovens], você é

racista. Eu não concordo.

Conheço e tenho

companheiros tunisianos,

argelinos… […] “eu sou

racista com os

bagunceiros, é tudo”.»

«É à noite que eles são

numerosos […] quando o

tempo está bom, […] eles

foram dormir quando nós

estávamos indo para o

trabalho.»

«O que a rapaziada

precisa não é de cadeia,

é de uma boa surra de

tempos em tempos, isso

os acalmaria muito

melhor que metê-los no

xadrez, porque eles

ficam na cadeia um mês

ou dois, eles voltam […]»

«É o que dizem, é preciso

ficar bronzeado, colocar

um pouco de graxa,

tornando-se como eles,

que você terá tudo.»

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156

Thierry confessa que por vezes é inútil reparar

as coisas lá, já que os jovens voltam a destrui-

las. Aponta a culpa na droga.

Sylvie entra na conversa. Refere que ficou lá

em baixo uma hora a conversar com os jovens.

Estão desinteressados com a vida, não sentem

ter futuro, sofrem de racismo por todo o lado.

Considera que esses jovens adquiriram uma

certa mentalidade, já que roubam desde cedo,

já com 4 ou 5 anos.

Thierry acha que eles já não respeitam

ninguém, nem professores.

Thierry acha que eles não valorizam sequer

aquilo que lhes é dado, referindo-se a um

galpão que lhes foi dado, com mobília, pintado,

e que passado oito dias estava todo quebrado,

tendo sido fechado.

Sylvie argumenta que eles, sendo árabes, que

não têm emprego, e por isso recorrem à

violência, que não deve ser encarada como

praticar o mal, mas como um grito de atenção.

Sylvie pensa que a base está em tentar

construir, em apelar aos jovens que se reúnam

para construir algo, em vez de apenas destruir.

Thierry responde com o caso de um ginásio,

que o prefeito cedeu aos jovens para

utilizarem, e que acabou por ser usado como

local de consumo de droga e álcool.

«Eu digo, enquanto

houver droga haverá

desordem. Ah! a droga, é

um flagelo sagrado […]»

«Com eles é: “queremos

isso, queremos isso,

queremos isso”, no final

das contas, é dado a eles

e isso não os impede de

roubar.»

«Eu, eu conheço um que

bate no pai porque o pai

não lhe empresta o

carro.»

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158

Christian acredita que qualquer um pode

encontrar emprego. Sylvie discorda.

Sylvie acha que é a mentalidade das pessoas

que deve mudar.

Sylvie diz estar contente em certa medida pelo

local onde vivem, pois permite o convívio com

várias raças.

Thierry diz que os filhos não são educados no

racismo.

Sylvie refere ainda sentir-se desorientada

politicamente, não sabe para onde ir, todos lhe

desagradam.

«Não, não é tão evidente

assim. São jovens sem

nenhuma qualificação…»

«Não, é preciso dialogar,

dialogar, é preciso ouvir

as pessoas e todo o

tempo, é preciso não

soltá-los. É como uma

propaganda intensiva,

mas é isso, é preciso…

falar, falar, falar, falar.»

«[…] não são educados no

racismo, como faz meu

irmão com os filhos dele.

Na casa dele, a mais

nova, que tem cinco,

quatro anos, ela está no

maternal, ele não pára

de lhe dizer. “os árabes

são bosta”.»

82

Anexo II

Notícia 1

FRANÇA

Sarkozy lidera com mão de ferro um

Estado enfraquecido 15 setembro 2010 SPIKED LONDRES

Policiamento da comunidade, à moda francesa. Um oficial da CRS (polícia antimotim). AFP

A expulsão dos ciganos não é um simples caso de racismo, mas uma política que denuncia a profunda

crise da República Francesa, afirma um defensor inglês das liberdades civis.

Josie Appleton

A expulsão de ciganos decretada pelo Presidente Nicolas Sarkozy suscitou protestos dentro e fora do país. Claro

que as imagens da polícia francesa a limpar acampamentos ciganos é chocante e reprovável: foram despejados

cerca de 40 acampamentos e 700 pessoas ameaçadas de expulsão. Esta campanha não é o resultado de um

complexo de racismo ou agressividade do Presidente francês, mas de um esforço específico do Estado francês.

O Estado francês foi o mais centralizado da Europa. Fez da burocracia uma arte, ao construir uma intrincada teia

de instituições públicas de elite que inclui desde o presidente, que preside, ao autarca local em cada cidade ou

aldeia. Neste momento, o Estado francês está gravemente enfraquecido. Há muitas regiões – as chamadas

“zonas sensíveis” – ocupadas sobretudo por populações imigrantes, onde o Estado tem pouca ou nenhuma

importância e onde a polícia só entra fortemente armada.

Nestas áreas, existe sempre uma tensão latente, prestes a explodir. Foi um incidente deste género que deu

origem à expulsão dos ciganos. A 16 de julho, um jovem cigano passou de carro pelo ponto de controlo de Saint

Aignan (Loire), levando um polícia no capô do carro. Ao passar no posto de controlo seguinte, foi alvejado pela

polícia. No dia seguinte, 50 ciganos provocaram desacatos com machados, destruindo um posto de polícia e

83

outros edifícios governamentais. Foi no seguimento deste incidente que Sarkozy reprovou um “determinado tipo

de comportamento do povo nómada” e afirmou que os residentes dos acampamentos ilegais seriam desalojados.

Espanha tem quase o dobro dos ciganos de França

Houve um outro incidente que levou Sarkozy à sua segunda grande iniciativa de verão: a intenção de retirar a

nacionalidade a qualquer cidadão francês “de origem estrangeira” autor de crimes violentos. Isto começou depois

de a polícia ter alvejado um assaltante à mão armada em Grenoble, provocando uma série de distúrbios no

bairro de imigrantes e trabalhadores da cidade. “Parece Beirute! Juro que parece Beirute!”, afirmou uma

residente local com o alarido dos carros da polícia e dos helicópteros. Uma escalada de violência como esta

poderá acontecer a qualquer momento em muitas áreas de França. Uma simples operação de rotina com a

polícia a prender um motociclista pode dar azo a uma escalada de violência e ao deflagrar de um confronto entre

população e polícia.

Estes acontecimentos não resultam da revolta inerente às populações imigrantes. De facto, comparando com

França (400 mil), há quase o dobro dos ciganos em Espanha (725 mil) e 300 mil no Reino Unido. Mas só em

França é que existe uma forte tensão entre os ciganos e o Estado que resulta, sem dúvida nenhuma, das

relações do Estado francês – ou a falta delas – com as populações imigrantes.

Ao contrário do Reino Unido, a França não foi capaz de criar instituições oficiais intermédias relativamente às

preocupações governamentais de ordem social. No Reino Unido, o Estado pôs em marcha um verdadeiro

arsenal de instituições antissociais, incluindo novos poderes locais (ordens para comportamentos antissociais,

zonas de distúrbios, multas de ocorrências) e novos funcionários públicos (de apoio comunitário, guardas de

subúrbios). Embora possa dizer-se que isto não dá grandes frutos, conseguiram reinstalar novas formas de

contacto entre populações distintas e o Estado e cumprem uma função disciplinadora.

Relações militarizadas com os subúrbios

Quando tentou instaurar “contratos de segurança local”, Nicolas Sarkozy queixou-se dos resultados desoladores:

“22 contratos em 2007, oito em 2008 e um em 2009”, um número que no Reino Unido teria sido rapidamente

alcançado pelas autoridades locais. França revela uma impressionante arquitetura do poder central – todas

aquelas redes e instituições públicas de topo – embora afastadas e isoladas da sociedade.

Quando todas as tentativas de comunicação falharam, a França militarizou ao máximo as suas relações com os

problemáticos subúrbios. Ao passo que o Reino Unido possui “funcionários de apoio comunitário” – que andam

de um lado para o outro de blusão e chamam a atenção às pessoas que mandam pastilhas para o chão – a

França tem uma “brigada anticrime” que é, no fundo, um força de intervenção armada e treinada para conflitos

de rua.

As pessoas que vivem em áreas sensíveis olham para estas brigadas armadas geralmente como um exército

invasor. Não são apenas os mais novos que reagem assim. “Vão para casa!”, gritava uma mulher mais velha ao

84

ver a polícia a posicionar-se em Grenoble. Num outro incidente, uma mulher com filhos foi presa por ter mordido

um polícia na perna. Estes confrontos são, literalmente, uma “guerra” entre uma pesada máquina estatal e uma

população à margem.

Ação presidencial com efeitos reais na vida das populações

Como afirma Denis Muzet, sociólogo, os ciganos funcionam em primeiro lugar como símbolos da desordem

contra a qual o Estado declara guerra. Entretanto, a lei que retira a nacionalidade a um cidadão francês “de

origem estrangeira” demonstra que o que está em causa é especificamente uma hostilidade em relação ao

Estado. Os crimes pelos quais as pessoas seriam desnacionalizadas envolvem, basicamente, ataques aos

representantes do Estado, não apenas polícias, mas também outros funcionários públicos.

Este verão, Nicolas Sarkozy e o seu executivo participaram em eventos mediáticos através dos quais o Estado

aproveitou para recuperar terreno perdido. O ministro do Interior, Brice Hortefeux, patrulhou pessoalmente as

ruas de Grenoble na ronda da noite, como se conseguisse, por ele próprio, devolver a segurança à nação.

Imagens do Estado a reclamar áreas desgovernadas visavam o público em geral. Hortefeux afirmou, numa

entrevista: “De facto, as ações realizadas sob as ordens do Presidente da República unem o povo francês”.

Os ataques aos símbolos da desordem – ciganos ou delinquentes – são dirigidos à maioria, de quem o Estado

também se encontra afastado, mas a questão, como refere Denis Muzet, é que isto não passa de um “gesto

presidencial sem efeitos práticos na vida diária das pessoas”. As sondagens de opinião mal se ouviram ao longo

da ofensiva de verão. Por ser uma representação televisiva, os telespetadores franceses não se comoveram. O

resultado final destes ataques simbólicos é o maior agravamento das relações entre Estado e minorias e o maior

distanciamento entre forças policiais e população.

85

Anexo III

Notícia 2

EXTREMA-DIREITA

O contágio do medo 21 setembro 2010 LA STAMPA TURIM

Estocolmo, 16 de setembro de 2010. Um cordão policial interpõe-se entre un militante dos Democratas da Suécia (em

primeiro plano) e manifestantes "anti-racistas". AFP

A afirmação do partido Democratas da Suécia (DS) nas legislativas de 19 de setembro não é um caso

isolado. Em todas as sociedades do norte da Europa, outrora admiradas pela sua abertura e pela sua

coesão, a desconfiança em relação à imigração dá força aos partidos abertamente xenófobos.

Enzo Bettiza

O resultado da votação sueca assume um significado que faz da Suécia o campeão das profundas alterações

que, há alguns anos, estão a abalar o panorama político da Europa do Norte, outrora imune às tempestades,

neuroses e medos endémicos reinantes nas regiões meridionais e orientais do Velho Continente. O significado

histórico e emblemático daquilo que se tornou patente nas urnas vai muito além de um simples ajustamento ou

deslocação dos votos da esquerda para a direita.

O primeiro elemento impressionante é, com efeito, a confirmação daquilo a que The Economist chama "a

estranha morte da social-democracia sueca". Durante anos, os socialistas europeus – e não só – admiraram e

observaram, na nação guia da Escandinávia, um socialismo democrático, simultaneamente austero e generoso,

capaz de combinar um fisco muito exigente e uma despesa pública pesada com uma economia forte e uma

qualidade de vida elevada. Os países vizinhos e semelhantes – a Finlândia, a Dinamarca, a Noruega e até a

Holanda – tentavam imitar com sucesso a lição que continha em si uma notável – e por vezes audaciosa –

tolerância no setor dos direitos civis, concedidos tanto aos cidadãos nacionais como aos imigrantes.

86

Suecos cansados do modelo socialista são indulgentes com os estrangeiros

Depois do misterioso assassinato, nunca completamente esclarecido, do primeiro-ministro Olof Palme, em 1986,

as primeiras sombras começaram a pairar sobre o paraíso social-democrata de Estocolmo. A estabilidade

política principiou a turvar-se, os conservadores chegaram ao Governo e, em 1994, a Suécia assinou o tratado

de adesão à União Europeia.

Com o alargamento progressivo da UE à Europa oriental pós-comunista, os suecos, já cansados de um modelo

socialista demasiado severo para com os seus compatriotas e demasiado indulgente para com os estrangeiros,

foram também eles confrontados com dois problemas insidiosos que o conjunto da Europa vive há vários anos: a

crise económica aliada à imigração não controlada.

No plano económico, os conservadores moderados do primeiro-ministro Frederik Reinfeldt, no poder desde

2006, souberam enfrentar a crise com sagacidade e competência, sem desmantelar as bases do sistema social-

democrata mas corrigindo os seus excessos ideológicos e alargando a margem de manobra do setor privado,

através de medidas liberais. O compromisso funcionou, o PIB aumentou e o desemprego diminuiu. Hoje, a

Suécia ocupa uma posição de vanguarda entre as economias mundiais. O contraste com as dificuldades

enfrentadas por vários países europeus é mais do que notável: é quase esmagador.

A neurose das civilizações culturalmente mais abertas

Contudo, o perigo que atormenta os países escandinavos e muitos outros países europeus acabou por se abater

sobre esta Suécia economicamente recuperada e estabilizada. Esse perigo está presente, com uma força

particularmente neurótica, em Estocolmo, em Helsínquia, em Copenhaga, em Amesterdão, na parte flamenga da

Bélgica: ou seja, exatamente nos berços das civilizações nórdicas mais evoluídas, aquelas que, até anteontem,

eram culturalmente mais abertas à tolerância e à convivência com quem vinha de fora, com o exilado, com o

imigrante em busca de alimento e de proteção.

A herança de tolerância, de caridade humana, legada às terras nórdicas glaciais pelo protestantismo e pela

social-democracia, como que se diluiu no enorme medo dos migrantes, que vagueiam e batem às portas de todo

o Velho Continente. O curto-circuito provocado pelo medo da invasão de estrangeiros – um medo ancestral, que

muitas vezes qualificamos com demasiada facilidade de "xenofobia" – está a fomentar uma contrapartida política,

inclusive na muito cortês Suécia. Com efeito, foi aqui que se verificou uma enésima "primeira vez", com a

ultrapassagem do limiar eleitoral de 4% pela extrema-direita de Jimmie Aakesson e com a embaraçosa entrada

do seu partido no Parlamento.

Não sabemos o que poderá acontecer em Estocolmo, nos próximos dias. Em contrapartida, sabemos que o

medo está a propagar-se no Norte. Na Finlândia, pela voz dos "verdadeiros finlandeses", que exaltam a

"dignidade das tradições da floresta". Na Dinamarca, o Partido do Povo, que baseia a sua campanha no "perigo

dos imigrantes", está em alta. Na Holanda, o Partido da Liberdade de Geert Wilders tem 24 assentos

parlamentares e mantém ligações cada vez mais estreitas com os consanguíneos nacionalistas flamengos do

87

Vlaams Belang. Todos, incluindo os radicais nacionalistas de Budapeste e de Bucareste, vão reunir-se, em fins

de outubro, em Amesterdão, para homenagear o já lendário Wilders.

Como pode ver-se, o caso sueco está longe de ser um caso isolado. A Europa ficou mais pequena, enquanto o

medo, que seria necessário estudar e não apenas rejeitar em nome de um "politicamente correto" anémico,

aumenta e torna-se mais omnipresente. Não basta condenar desordenadamente os "vilões": seria preciso

também esforçarmo-nos por explicar e compreender o motivo por que eles passaram a sê-lo – do Báltico ao

Danúbio.

88

Anexo IV

Notícia III

DEBATE

Imigração, inevitável e indispensável 25 maio 2011 TROUW AMSTERDAM

Trabalhadores agrícolas norte-africanos sazonais no Sul de França. AFP/Anne-Christine Poujoulat

A imigração é benéfica para a Europa, assegura um grupo de pessoas eminentes, entre as quais Joshka

Fischer, Javier Solana e Timothy Garton Ash. Uma mensagem que os dirigentes europeus deveriam

escutar, escreve um jornalista holandês.

Hans Goslinga

Em pleno debate sobre a imigração na Europa, o grupo de eminentes personalidades sob a liderança de Joschka

Fischer apresentou, a 11 de maio, um relatório (“Viver em conjunto”: Conjugar a diversidade e a liberdade na

Europa do séc. XXI) cuja principal mensagem é a seguinte: Se não aprender a cultivar a sua diversidade, a

Europa deixar-se-á atrasar inevitavelmente no plano demográfico.

Por uma simples razão essencial: sem imigração, a população ativa diminuirá em cem milhões de pessoas nos

próximos cinquenta anos, enquanto a população total aumenta e envelhece. A Europa deverá, portanto, abrir-se

à imigração e à diversidade na sociedade. Na verdade, não podemos pedir aos imigrantes que renunciem à sua

religião, cultura ou identidade quando chegam à fronteira.

Na opinião deste grupo composto por oito personalidades, entre as quais o antigo secretário-geral da NATO,

Javier Solana, a antiga comissária europeia, Emma Bonino e o académico e autor, Timothy Garton Ash, também

nada há de mal no facto de os imigrantes trazerem a sua bagagem cultural, desde que respeitem a lei.

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A diversidade é uma realidade na Europa

Melhor ainda, a chegada de novas culturas pode contribuir para a criatividade de que a Europa necessita, hoje

mais do que nunca. Uma mensagem difícil de transmitir. Contraria completamente o discurso populista que

transforma a migração em massa numa ameaça para o Ocidente.

Joschka Fischer, antigo ministro alemão dos Negócios Estrangeiros e a sua equipa apelam insistentemente junto

das potências líderes da Europa, não só na esfera política, mas também no mundo da cultura, dos órgãos de

comunicação social e do ensino, para que se insurjam contra os falsos profetas. Consideram que os políticos das

grandes correntes, ao submeterem-se ao populismo, tornando-se, desta forma, mais atraentes aos olhos dos

cidadãos, não cumprem a sua missão de liderança.

O presidente Nicolas Sarkosy, o primeiro-ministro David Cameron e a chanceler alemã Angela Merkel deveriam

lembrar-se disso. Nos últimos tempos, estes dirigentes europeus declararam sucessivamente que a sociedade

multicultural tinha falhado. Fischer e a sua equipa, que trabalham para o Conselho da Europa, evitam utilizar este

termo que, na sua opinião, não se sabe verdadeiramente se representa uma ideologia ou uma realidade.

Limitam-se a constatar que, na Europa, a diversidade é uma realidade, que foi uma realidade e que o continente

não pode desviar-se desta realidade sem trair o Estado de direito democrático e se quiser continuar a ter um

papel num mundo confrontado com a poderosa concorrência da China, do sudoeste asiático, da Índia e do Brasil.

A imigração é uma bênção

No mesmo dia, e estritamente pelas mesmas razões, o Presidente dos EUA, Barack Obama, num longo discurso

proferido na cidade de El Paso, junto da fronteira mexicana, defendeu a legalização dos clandestinos presentes

nos Estados Unidos, estimados em 11 milhões de pessoas. Não façamos confusão: nos EUA, a imigração é tão

controversa como na Europa.

Também lá, suscita uma hostilidade violenta. Também lá, constatamos a mesma hipocrisia: os clandestinos são

bem-vindos para fazerem os trabalhos mais humildes em troca de salários magros. E a disponibilidade desse

tipo de trabalhos é atrativa. Um outro ponto em comum é a migração de sul para norte. Atualmente nos EUA, um

em cada seis americanos tem origem latino-americana; este ano, esta categoria ultrapassou o número da

população negra e o espanhol é oficialmente a segunda língua do país.

Na Europa, a pequena ilha de Lampedusa é, agora, o símbolo da atração exercida pela Europa próspera e

democrática sobre as populações da África e da Ásia. Esta migração do sul para norte irá, provavelmente,

continuar e, na opinião de Obama e Fischer, trata-se de uma bênção, desde que se mantenha controlada. Mas,

existe uma diferença fundamental entre os Estados Unidos e a Europa. Obama pode incluir os seus argumentos

em defesa da imigração num grande discurso sobre a história e a força do seu país.

90

Quando se dirigiu à multidão presente em El Paso, disse: “Vejam a Intel, a Google, a Yahoo e o eBay, as

grandes empresas americanas que nos colocam na vanguarda do setor das altas tecnologias. Adivinhem quem

fundou cada uma destas empresas. Um imigrante”.

No mês passado, em Washington, apanhei um táxi cujo motorista era originário da Etiópia. Confessou-me com

algum sarcasmo: “O sonho americano é uma ilusão para a maioria das pessoas, mas é o que nos motiva”.

A Europa não tem este tipo de histórias estimulantes. No continente agora sobressai uma história negativa aqui

ou ali e os argumentos económicos e culturais em prol da imigração já não são o tema principal da atualidade e

do debate político.

VISTO DE ESPANHA

Imigração é sempre um ganho

Perante a imigração, “a Espanha sai a ganhar”, afirmam a El País os professores universitários María Bruquetas

Callejo e Francisco Javier Moreno Fuentes: segundo eles, “os trabalhadores estrangeiros, diabolizados durante a

recente campanha eleitoral [em Espanha] pelo crescente populismo xenófobo, trazem mais dinheiro aos cofres

do Estado do que recebem”. “Os números desmentem os preconceitos”, escrevem os professores porque, no

que diz respeito à proteção social, os imigrantes são “contribuintes líquidos”, porque são jovens e a sua taxa de

atividade é superior à da população autóctone. Atualmente, menos de 1% dos que recebem uma pensão, em

Espanha, são imigrantes, apesar de representarem 10% da mão-de-obra. Da mesma maneira, Callejo e Fuentes

sublinham que a proporção das despesas de saúde e educação consagradas aos imigrantes passou de 1%, em

2000, para, respetivamente, 5 e 6% em 2007, continuando a ser inferiores à proporção da população imigrante

em relação à população total (12%). Os dois professores afirmam, também, que “a concentração dos imigrantes

em alguns bairros e comunidades provocou desequilíbrios na procura e oferta de serviços sociais e, por isso

mesmo, uma deterioração e uma degradação desses serviços”, e por esse motivo, “a responsabilidade é

diretamente atribuída aos imigrantes pelos habitantes”. É por essa razão, concluem, que “a intervenção das

administrações públicas é crucial para reduzir a impressão de uma concorrência na utilização dos recursos raros

que alimenta a xenofobia”.

91

Anexo V

Notícia IV

ESLOVÁQUIA-HUNGRIA

Guerras de línguas, poder e fronteiras 31 julho 2009 HETI VILÁGGAZDASÁG BUDAPESTE

Foto de Teo Dias.

Bratislava aprovou recentemente uma lei que impõe o eslovaco como língua obrigatória nos locais

públicos. Budapeste rejeita esta disposição e fala numa deriva nacionalista eslovaca. Nesta discussão,

vêm ao de cima velhos conflitos entre dois países que partilham uma fronteira e uma história em comum.

László Tamás Papp

O método faz lembrar a política para as minorias de Ceauşescu: de agora em diante, todos os médicos húngaros

têm de falar em Eslovaco com os seus doentes húngaros, mesmo que nem uns nem outros o desejem. De forma

igualmente surrealista, o orador de um evento cultural tem de dizer em Eslovaco as palavras que transmitem o

seu saber, ainda que o público seja 100% húngaro.

Esta lei , que denota uma clara aversão aos húngaros, gerou a unanimidade entre os partidos parlamentares

húngaros. À semelhança da polícia religiosa de um Khomeini ou dos talibãs, as autoridades de Bratislava

funcionam agora como uma "polícia linguística". Ironia da História: os "fundamentalistas étnicos" da consciência

nacional dos dirigentes eslovacos copiam, com o atraso de uma guerra, os piores exemplos do nacionalismo

magyar de outrora.

"Nunca reconhecerei outra nação que não a húngara sob a autoridade da santa coroa da Hungria", disse Lajos

Kossuth [1802-1894]. A sua política marcada pela falta de visão conduziu ao fracasso da guerra de

independência. Em 1848, baseando-se no seu chauvinismo, os Habsburgos lançaram as minorias étnicas contra

os húngaros. Em vez de promoverem uma autonomia federativa, os políticos húngaros tentaram manter

estruturas centralizadoras. O que contribuiu para a perda de dois terços do território húngaro, em 1920 [com o

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Tratado de Trianon].

Uma lei que agrada à extrema-direita húngara

Os nossos vizinhos desenvolveram o seu nacionalismo de Estado, da mesma maneira obtusa, segundo critérios

étnicos e recorrendo à assimilação forçada. Na época das democracias modernas, uma política nacionalista

deste tipo – assente no desejo de vingar golpes sofridos há um século e meio – não tem justificação. Apesar

disso, é esse tipo de política que eles praticam.

No que lhe diz respeito, a UE limita-se a murmurar num tom de reprovação e a fazer de árbitro sem convicção.

Enquanto os extremistas da Europa observam o que se passa em Bratislava. "O que se passa lá, vai passar-se

também aqui", pensam sem dúvida. Com os imigrantes ou com as minorias religiosas. Com todos aqueles que

eles acham antipáticos. Na Hungria, a censura linguística na Eslováquia reforça as posições do Jobbik [partido

de extrema-direita]. Esta lei inflama a demagogia étnica. E incita os extremistas a dar uma aparência jurídica às

suas discriminações.

É caso para perguntar por que razão agem assim os responsáveis do Estado eslovaco. Do ponto de vista

económico, o seu país é o primeiro "da turma". Então porquê? É precisamente por isso. Estamos a descobrir que

fazer cortes nas prestações sociais e reestruturar o sistema acarreta imensos sacrifícios. Na Eslováquia, a

demagogia nacionalista surgiu para aliviar as tensões. "Quando há menos pão no Estado providência, demos-

lhes um pouco mais de circo nacionalista!" É esta a receita da política eslovaca.

Se a União Europeia não levantar a voz, a jovem Nação que é a Eslováquia pode transformar-se num jovem

Estado delinquente, o que conduzirá a um impasse sangrento, tanto para os eslovacos como para os húngaros.

Porque onde florescem os pogroms, os frutos da prosperidade económica apodrecem.

VISTO DA ESLOVÁQUIA

"Já não fazemos parte do Império húngaro"

A nova lei da língua, aprovada para "proteger" o Eslovaco e assinada em 17 de Julho pelo Presidente eslovaco

Ivan Gašparovič, tornou-se uma nova causa de dissenção entre as duas margens do Danúbio. "Todos os

cidadãos eslovacos têm o direito de se exprimir na língua nacional eslovaca, em território eslovaco", explica o

primeiro-ministro Robert Fico , no diário SME. Trata-se de uma reacção às fortes críticas do Parlamento húngaro

e do Partido (eslovaco) da Coligação Húngara (SMK), que defende os direitos da minoria húngara que vive no

sul do país.

A intervenção dos húngaros na legislação eslovaca irrita os dirigentes do país. "Fico: A lei

não será revogada, nós não estamos no império húngaro", titula o SME. "Os partidos

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políticos húngaros ficariam contentes se, no sul do pais, os eslovacos aprendessem Húngaro

para ali viverem", garante Fico no mesmo jornal. Por seu turno, o ministro da Cultura, Marek

Maďarič, que esteve na origem da lei, lamenta que "a política húngara tenha ficado

bloqueada no século XIX. Os húngaros pensam que podem continuar a ditar a lei aos

eslovacos".

A lei eslovaca divide os dois países mas congrega os cientistas. "Esta lei é desvantajosa para

os húngaros e também para os eslovacos", declara um linguista eslovaco, que assinou umaa

petição internacional lançada pela Academia de Ciências de Budapeste. Para eles, aquele

diploma é "um absurdo linguístico", escreve o SME. E, para sublinhar que a lei não atinge

apenas o Húngaro, o site checo de informação Aktualne.cz salienta que até "o popcorn e o

fastfood vão desaparecer da Eslováquia".

94

Anexo VI

Notícia V

IMIGRAÇÃO

O falhanço da integração ao estilo sueco 11 maio 2010 LA STAMPA TURIM

Centro comercial de Rosengard. AFP

Os bairros populares de Malmö, que foram recentemente palco de escaramuças entre jovens imigrantes

e a polícia, são testemunho da dificuldade em integrar uma população que parece recusar o modelo

escandinavo e que se fecha naquilo que já é qualificado como o "gueto da nova Suécia multiétnica".

Gianni Armand-Pilon

O Volvo rola com velocidade e mete pela Amiralsgatan, a via que atravessa o bairro popular de Rosengard, o

"jardim das rosas" de Malmö. A música grega que invade o habitáculo contrasta com a tímida Primavera sueca.

Andreas Konstantinidis ultrapassa uma série de quiosques de venda de kebabs [carne assada num espeto

vertical] e falafels [bolinhos de grão-de-bico fritos] com dísticos em Árabe, em seguida entra numa pequena

avenida ladeada de árvores e estaciona. Para lá da cerca de madeira, rodeada por três edifícios de

apartamentos de renda social, podemos ver o parque onde Zlatan Ibrahimovic deu os primeiros pontapés numa

bola. Em toda a volta, só se vêm mulheres de véu, que regressam a casa com as compras.

Não há um dia sem confrontos entre imigrantes e polícia

Andreas Konstantinidis é o presidente daquilo a que aqui se chama o gueto da nova Suécia multiétnica. Chegou

a Malmö em 1974, ano da invasão de Chipre pela Turquia. Conhece cada uma destas ruas, cada um destes

edifícios e as histórias da difícil integração dos seus 23 000 habitantes de 170 nacionalidades diferentes, com

uma esmagadora maioria de nacionais de países mergulhados na guerra e em conflitos: Iraque, Afeganistão,

Palestina, Somália. A percentagem de desempregados ronda os 90%: estes sobrevivem graças às famosas

prestações sociais escandinavas.

95

Os incidentes violentos de finais do mês de Abril não são novidade [entre 28 e 29 de Abril, um grupo de jovens

do bairro, de cara tapada, vandalizou escolas, quiosques, caixotes dos lixo e automóveis, para protestar contra a

detenção de um deles. A rebelião só acalmou com a intervenção da polícia]. Não há um dia em que os jornais

não noticiem confrontos com a polícia e tensões entre as minorias imigrantes e a maioria – cada vez mais

reduzida – de suecos de gema (180 000 pessoas, num total de cerca de 270 000 habitantes).

Os jornais sublinham que, na origem destas tensões, está o facto de a maioria dos estrangeiros serem

refugiados políticos. Por outras palavras, não vieram para a Suécia em busca de uma vida melhor: estão aqui

apenas por necessidade e acabaram por exportar para esta zona pacata os conflitos que incendeiam os seus

países distantes.

Uma cidade pós-industrial convertida em esquizofrénica

Que fazer? No seu pequeno escritório da Câmara Municipal, Mattias Karlsson, de 33 anos, membro da direcção

nacional da Sverige Demokaterna, uma espécie de Liga do Norte à moda sueca, é claro: "O único meio é

bloquear a imigração. As estatísticas oficiais, já preocupantes, escondem o descalabro dramático de Malmö. Não

referem, por exemplo, que as crianças filhas de pais suecos já são uma minoria em relação às crianças com pelo

menos um dos progenitores nascido no estrangeiro. Na Administração Pública, já há muitas pessoas contratadas

com base num único critério – falar Árabe. Nas piscinas, organizam-se aulas separadas para homens e

mulheres. A celebração do Natal está a perder-se, por receio de discriminar a população muçulmana. Sem falar

nos delitos, 90% dos quais são cometidos por estrangeiros e cujas vítimas são suecas, em 90% dos casos.

" Karlsson não esconde as intenções do seu partido: "Nas eleições de Setembro próximo, vamos ultrapassar a

barreira dos 4% e entrar no Parlamento. Em Malmö, já estamos nos 7,5% e contamos duplicar a nossa votação."

O que se passa é que Malmö, como muitas cidades pós-industriais, parece ter uma vida esquizofrénica. Feita de

receios alimentados por uma boa dose de populismo fácil mas, também, de expectativas diversas. Por um lado,

a fatia dos rendimentos produzidos pela indústria – a começar na indústria portuária – caiu, nos últimos 40 anos,

de 50 % para 12%, mas, por outro lado, o enorme impulso dado pela imigração contribuiu para baixar a média de

idade da população para níveis que fazem sonhar o resto da Europa e que elevaram Malmö ao estatuto de

cidade jovem e na moda.

Muitos judeus têm medo e mudam-se para Israel

"É uma questão de ponto de vista", admite Kent Andersson, o social-democrata que é presidente da Câmara

adjunto de Malmö. E explica: "Como todas as grandes mudanças, aquela por que esta cidade está a passar tem

aspectos positivos e negativos. Vejo isso quando apresento as estatísticas sobre a idade média dos habitantes.

Os professores universitários ficam entusiasmados: ‘Que sorte, têm o futuro garantido!’ Em contrapartida, se falar

sobre isso com um polícia, tenho a certeza de que ele vai abanar a cabeça e dizer: ‘Tenho muita pena de si,

deve ter cá uma destas taxas de delinquência juvenil…’ Uns e outros têm razão mas, pessoalmente, acho que é

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preferível ter todos estes jovens para educar – sejam quais forem as dificuldades de integração – do que não ter

nenhuns, como acontece na Dinamarca."

É uma questão de ponto de vista, de facto. Andreas Konstantinidis, por seu lado, recusa-se a baixar os braços:

"Um grande número das pessoas que vivem em Rosengard não se sentem suecas e não querem ser suecas.

Talvez seja preciso investir mais meios na escola para os fazer mudar de ideias. Acontece que acredito no

modelo deste país e tenho a certeza de que essas pessoas acabarão por ter sucesso, como aconteceu comigo."

Entre os 2 000 membros da comunidade judaica muito poucos partilham esta opinião: "Está a iludir-se. Malmö

tornou-se uma província do Médio Oriente. Os nossos estudantes recebem ameaças de morte. Quando

entramos nas turmas para falar sobre o Holocausto, os estrangeiros saem porque se recusam a ouvir-nos.

Muitos dos nossos já fizeram as malas e partiram para Israel."

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Anexo VII

Notícia VI

A EXTREMA DIREITA NA EUROPA/ 5

Os turcos ainda assustam os austríacos 6 abril 2010 LE MONDE PARIS

Manifestação do FPÖ contra as mesquitas em Hohenems, Vorarlberg. Com o cachecol, o líder do partido, Heinz-

Christian Strache.

No próspero Land austríaco do Vorarlberg, o Partido Austríaco da Liberdade (FPÖ) obteve mais de um

quinto dos votos agitando o espectro da “invasão” dos imigrantes turcos, que ameaçam “a paz social”.

Joëlle Stolz

Em meados da década de 1950, ainda podia ver-se uma cruz gamada talhada na própria rocha da montanha

que se eleva atrás do castelo de Hohenems. Os militantes nazis desta cidade do Vorarlberg, no extremo

ocidental da Áustria, quiseram marcar, desde o início da sua chegada ao poder em 1938, o fim da “dominação

judaica”: as forças conjugadas dos Alpes e do nacional-socialismo deviam perseguir os miasmas estrangeiros aí

aclimatados desde há três séculos.

Hoje, a maior parte dos habitantes ignora que a “rua do Mercado” se chamava “rua dos Cristãos”, e que a actual

“rua da Suíça”, bordejada de belas casas, era a “rua dos Israelitas”. A fábrica têxtil dos irmãos Rosenthal, os

pioneiros do algodão estampado, há muito que fechou. As grandes famílias judias de Hohenemes, que tinham

ligações desde Alexandria a Constantinopla, não são mais do que uma recordação.

Os novos medos

Os medos de uma parte da população têm hoje outro nome. “O problema é sobretudo a imigração turca”, explica

Horst Obwegeser, 47 anos, dono de uma empresa de electricidade e chefe da secção local do Partido austríaco

da Liberdade, o FPÖ, a principal força da direita populista. “Não queremos tornar-nos numa pequena Istambul”,

diz ele.

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Este discurso, angustiado e ameaçador – é preciso “sancionar” os pais que negligenciam o alemão, enviar os

atrasados linguísticos para “escolas especiais” -, encontra eco. Nas eleições municipais de 14 de Março, o FPÖ

obteve, em Hohenems 22,6% dos votos (mais 9,79% do que em 2005).

Nas eleições legislativas de 2008, atingiu 17,5% a nível nacional e, desde então, mantém-se com cerca de 20%

de intenções de voto nas sondagens. Aberto sobre o espaço germânico em volta do Lago Constança, o

minúsculo Vorarlberg é o mais próspero dos Lands austríacos e berço de empresas de ponta. É nesta região

privilegiada, onde a omnipresença das montanhas impregna a identidade colectiva, que se implanta a retórica

xenófoba. Como é possível não ligar o sucesso do referendo anti-minaretes organizado, na Suíça, pelo partido

de Christoph Blocher (cuja agência de comunicação trabalha para o FPÖ), aos incidentes que perturbaram o

Liechtenstein?

A imprensa de Vaduz suspeita que um núcleo extremista tenha atacado com cocktails Molotov um restaurante

turco, em finais de Fevereiro, e vários prédios habitados por imigrantes. Um jovem agrediu um estudante turco

num autocarro batendo-lhe com uma garrafa na cabeça. No fim de 2008, os neo-nazis do Liechtenstein e da

Suíça abriram uma verdadeira guerra aos turcos tendo como resultado dois feridos graves. É muito, para um

país de 35 mil e 800 habitantes.

O "excesso de estrangeiros"

“O Ocidente nas mãos dos cristãos” é um dos slogans favoritos do FPÖ, inconformado com o facto de o Islão se

ter tornado a segunda religião da Áustria, com 500 mil crentes. Tal como a Caríntia, o antigo feudo do populista

Jörg Haider, o Vorarlberg adoptou, em 2008, uma regulamentação que permite recusar construções “não

conformes com os costumes locais”. Ou seja, os minaretes. O Museu Judaico de Hohenems respondeu

organizando – na véspera das eleições legislativas, em Setembro de 2008, e antes das regionais de Vorarlberg,

em 2009 – dois colóquios com título provocador: “Como construir um minarete conforme aos costumes locais?”

O director do Museu, o alemão Hanno Loewy, foi tratado por um dirigente do FPÖ como “judeu exilado vindo da

América”.

“Cumpro apenas a missão que foi atribuída ao Museu desde que abriu, em 1991”, defende-se M. Loewy

continuando: “Correndo o risco de incomodar alguém, trata-se de contribuir para uma sociedade multicultural”.

Obwegeser, por seu lado, denuncia uma “Überfremdung”, esse “excesso de estrangeiros” que compromete a paz

social. “Nos jardins-de-infância”, diz ele, “60% das crianças vêm de famílias de imigrantes” onde a natalidade é

superior à das famílias de cepa austríaca. Há cerca de 30 mil pessoas de origem turca em Vorarlberg. “Somos

16% da população total do Land, mas 25% da população escolar”, afirma Attila Dincer, secretário-geral da

Plataforma Turca de Vorarlberg, que agrupa uma dezena de organizações. Acrescenta que há cerca de 600

empresas geridas por turcos, empregando quatro mil pessoas.

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Basta observar o afável Senhor Dincer a conversar, em inglês, com o embaixador dos Estados Unidos na

Áustria, durante um encontro orquestrado pelo Museu Judaico, para se perceber o potencial desta comunidade

que se integra no Vorarlberg tal como outrora aconteceu com os trabalhadores italianos. Mas não sem conflitos.

Em 2005, havia sete candidatos de origem estrangeira nas listas municipais do “pequeno Land”. A 14 de Março

deste ano eram já 76, e os novos cidadãos austríacos pesaram de maneira visível graças aos “votos

preferenciais” que permitem favorecer um candidato mal colocado. “Por este caminho, em breve teremos um

presidente de Câmara turco!”, alarma-se Obwegeser. Em qualquer caso, o Vorarlberg terá um cemitério

muçulmano: a dois passos do velho cemitério judeu de Hohenems.