crise do estado social

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A CRISE DO ESTADO SOCIAL E OS MOVIMENTOS POPULARES NA FRANÇA Rodrigo Dugnani Os movimentos populares ocorridos na França nos últimos meses – em outubro e novembro de 2005 e em março e abril de 2006 – podem não ter passado de um fato relativamente comum no noticiário internacional, para aqueles expectadores mais desatentos ou despreocupados com análises de maior teor crítico da imprensa de uma maneira geral. Para esses expectadores, tratou-se meramente de uma revolta violenta de jovens de origem imigrante, em outubro e novembro de 2005, e de protestos de jovens estudantes universitários de classe média contra uma lei que alterava regras da legislação trabalhista daquele país, em março e abril de 2006. Aos olhos mais desatentos, os acontecimentos praticamente passaram como se fossem dois fatos sem conexão, a não ser pela aparente coincidência de serem registrados no mesmo país. Dessa maneira, para esses expectadores, o encerramento daqueles dois movimentos trouxe a normalidade da vida da população francesa, que prosseguiu em seu cotidiano, normalmente, como se nada demais tivesse acontecido. Na pior das hipóteses, na opinião de muitos, esses fatos promoveram apenas uma mudança passageira no dia-a-dia daquele país. Com a mesma velocidade e intensidade que as notícias desses movimentos apareceram na mídia, elas desapareceram logo em seguida. As causas, conseqüências e implicações desses movimentos logo 2

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Análise sobre a crise da Seguridade Social

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Page 1: Crise Do Estado Social

A CRISE DO ESTADO SOCIAL

E OS MOVIMENTOS POPULARES NA FRANÇA

Rodrigo Dugnani

Os movimentos populares ocorridos na França nos últimos meses – em

outubro e novembro de 2005 e em março e abril de 2006 – podem não ter passado

de um fato relativamente comum no noticiário internacional, para aqueles

expectadores mais desatentos ou despreocupados com análises de maior teor

crítico da imprensa de uma maneira geral. Para esses expectadores, tratou-se

meramente de uma revolta violenta de jovens de origem imigrante, em outubro e

novembro de 2005, e de protestos de jovens estudantes universitários de classe

média contra uma lei que alterava regras da legislação trabalhista daquele país, em

março e abril de 2006. Aos olhos mais desatentos, os acontecimentos praticamente

passaram como se fossem dois fatos sem conexão, a não ser pela aparente

coincidência de serem registrados no mesmo país. Dessa maneira, para esses

expectadores, o encerramento daqueles dois movimentos trouxe a normalidade da

vida da população francesa, que prosseguiu em seu cotidiano, normalmente, como

se nada demais tivesse acontecido. Na pior das hipóteses, na opinião de muitos,

esses fatos promoveram apenas uma mudança passageira no dia-a-dia daquele

país. Com a mesma velocidade e intensidade que as notícias desses movimentos

apareceram na mídia, elas desapareceram logo em seguida. As causas,

conseqüências e implicações desses movimentos logo desapareceram e ficaram na

mente apenas as cenas de carros queimados e milhares de jovens estudantes nas

ruas.

Entretanto, muitos desses mesmos expectadores, no auge dos

acontecimentos em questão, esboçaram reações e emitiram opiniões que por mais

simplistas que fossem, estavam impregnadas por uma carga ideológica que não

surge absolutamente do nada. Opiniões como “isso é coisa de vândalos” ou “a

desigualdade no mundo é que provoca essa violência” – em referência às revoltas

do fim do ano passado – “só querem as facilidades e não abrem mão de nada” ou “a

cada dia que passa os trabalhadores perdem mais seus direitos” – relacionadas às

manifestações do início desse ano – não são proferidas sem que haja algum tipo de

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influência, mesmo essa sendo promovida de forma indireta, embora muita vezes

com interesses específicos.

Por trás desses acontecimentos está um grande embate entre visões de

mundo distintas dentro do mesmo sistema sócio-econômico capitalista. A disputa se

dá entre as percepções de como deve se portar o Estado diante das demandas

sociais. Estado mínimo ou Estado interventor? Neoliberalismo ou Keynesianismo?

Nesse contexto, o Estado social desenvolvido durante a “Era dourada” do pós-

guerras mundiais, onde se desenvolveu a idéia do welfare state, parece estar se

desintegrando ou, no mínimo, se reconstruindo para adaptar-se aos paradigmas da

nova ordem mundial. Entretanto, essa reconstrução pode desconfigurar

completamente o Estado social, que seria apenas parcialmente promotor de um

verdadeiro bem-estar. Tratar-se-ia, então, não de uma reconstrução, mas sim uma

desconstrução do Estado social.

Construção e desconstrução do Estado social

Após os acontecimentos desastrosos da primeira metade do século XX, entre

eles as duas guerras mundiais, além da crise de 1929, alguns países do mundo

passaram a desenvolver um projeto de construção do Estado Social com a

finalidade de promover o desenvolvimento econômico com maior justiça social.

Esse Estado social foi sendo alcançado graças ao rápido crescimento

econômico de alguns países no pós-guerra, possibilitando a construção ampla de

direitos civis e, pela primeira vez, a realização efetiva de direitos sociais básicos.

Os governos de países da OCDE, que contribuíram nas duas décadas

seguintes ao fim da 2º Guerra com três quartos da produção mundial e quatro

quintos do comércio internacional de produtos industrializados, aprenderam muito a

partir das experiências catastróficas do entreguerras. Por isso, seguiram uma

política econômica inteligente, baseada na instabilidade interna, com níveis de

crescimento relativamente altos e construíram um amplo sistema de segurança

social. Na figura de democracias de massa de Estados sociais, a formação

econômica altamente produtiva do capitalismo foi sujeitada pela primeira vez de

modo social e mais ou menos harmonizada com a autocompreensão normativa de

Estados constitucionais democráticos. Esse período é celebrado pelo historiador

marxista Eric Hobsbawn como uma “Era de Ouro”.

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Page 3: Crise Do Estado Social

Na Europa pós-guerra, políticos de todos os matizes deixaram-se guiar na

construção do Estado social por fazer uma leitura democrática desse processo. Foi

na dialética da igualdade jurídica e desigualdade de fato que se fundamentou a

tarefa do Estado social de atuar no sentido de garantir as condições de vida que

tornam possível um uso igualitário dos direitos civis divididos de modo igual.

(Habermas, 2004)

Mas o welfare state pode transformar fundamentalmente a sociedade

capitalista?

Uma definição comum nos manuais é a de que o Estado social envolve

responsabilidade estatal no sentido de garantir o bem-estar básico dos cidadãos.

Mas o Estado social deve ir além das necessidades básicas ou mínimas, pois só

assim ele tem a capacidade emancipadora para a classe trabalhadora.

A social-democracia baseava a sua defesa ao Estado social em função das

necessidades dos trabalhadores em relação aos recursos sociais, como educação e

saúde, para participar efetivamente como cidadãos. Essa corrente ideológica

acreditava que a política social não é só emancipadora, mas também uma pré-

condição da eficiência econômica pois ajuda a promover o progresso das forças

produtivas no capitalismo, além de resultar em mobilização de poder.

Ao erradicar a pobreza, o desemprego e a dependência completa do salário,

o Estado social aumenta as capacidades políticas e reduz as divisões sociais que

são barreiras para a unidade política dos trabalhadores. O welfare state é em si uma

fonte de poder vital. (Esping-Andersen, 1991).

A democracia de massa do Estado de bem-estar social encontra-se no fim de

um desenvolvimento. O Estado social pôde assumir uma figura institucional mais ou

menos convincente, segundo a qual uma sociedade justa, composta

democraticamente, pode atuar reflexivamente sobre si de modo amplo. Hoje esse

processo é posto em questão pelo desenvolvimento da idéia de globalização, que

retoma o discurso liberal, com todas as suas nuances sociais, políticas e,

principalmente, econômicas.

Entretanto, toda a confecção do Estado social começa a ser questionada a

partir dos anos 70 e, principalmente, anos 80. Numa economia capitalista, que

segue sua própria lógica, ela não pode corresponder a todas essas premissas

exigentes do Estado social. Os mercados são surdos para as informações cuja

linguagem não seja a dos preços. (Habermas, 2004)

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Page 4: Crise Do Estado Social

Apesar das grandes diferenças estruturais dos diversos mecanismos do

Estado social, até os anos 1980 o setor de política social expandiu-se em diversos

países. Mas desde então, introduziu-se uma nova tendência em todos os países da

OCDE, diminuindo o valor dos pagamentos, ao mesmo tempo em que se dificulta o

acesso aos sistemas de segurança social e aumenta a pressão sobre os

desempregados.

Mas a partir da década de 80, e principalmente com os acontecimentos

geopolíticos entre os anos de 1989 e 1991, relacionados ao quase desaparecimento

do sistema socialista, (queda do muro de Berlim, reunificação da Alemanha e

fragmentação da URSS) o mundo viu reflorescer com grande força a visão liberal

sócio-econômica.

O neoliberalismo nascente passa a ver este Estado social de maneira

indiferente. Muitos analistas consideram a deterioração social como um efeito

consubstancial da política neoliberal de ajuste e transformações estruturais.

Os novos paradigmas da economia mundial, nascidos nos anos 70 e início

dos 80, em meio a diversas crises políticas e econômicas, marca o ponto de partida

da ascensão da nova direita como força político-ideológica. O seu discurso oportuno

proporciona uma explicação para a crise e uma proposta para sair dela. Sua

explicação parte do postulado de que o mercado é o melhor mecanismo dos

recursos econômicos e da satisfação das necessidades dos indivíduos. De onde se

conclui que todos os processos que apresentam obstáculos, controlam ou suprimem

o livre jogo das forças de mercado terão efeitos negativos sobre a economia, o bem-

estar e a liberdade dos indivíduos. (Laurell, 1995).

Esses processos negativos derivaram, segundo essa nova direita, do

intervencionismo estatal, expresso na política econômica keynesiana e nas

instituições de bem-estar. O intervencionismo aumentou como resultado da

democracia representativa eleitoral e nas corporações, principalmente nos

sindicatos. Isso, para a nova direita, demandou interesses impossíveis de serem

cumpridos, que tendiam a incrementar a intervenção estatal e restringir o livre

mercado e a iniciativa individual. Teriam sido esses os processos que, segundo os

neoliberais, levaram à crise econômica dos anos 70, 80 e 90.

Os neoliberais também sustentam que o intervencionismo estatal é

antieconômico e antiprodutivo, não só por provocar uma crise fiscal do Estado e uma

revolta dos contribuintes, mas sobretudo porque desestimula o capital a investir e os

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Page 5: Crise Do Estado Social

trabalhadores a trabalhar. Além disso, esse intervencionismo seria ineficaz por que

tende ao monopólio econômico estatal sob a tutela de interesses particulares de

grupos organizados, em vez de responder às demandas dos consumidores

espalhados pelo mercado. Também seria ineficiente por não conseguir eliminar a

pobreza, mas piorá-la, tornando os pobres dependentes do paternalismo estatal.

Para esses neoliberais, a solução seria a reconstituição do mercado, a

competição e o individualismo, eliminando a intervenção do Estado tanto na

economia como nas funções de planejamento, através da privatização, da

desregulamentação das atividades econômicas e da redução das funções

relacionadas ao bem-estar social.

Apesar de todo esse antiestatismo, os neoliberais querem um estado forte,

capaz de garantir um marco legal adequado para se criarem as condições propícias

à expansão do mercado.

No campo específico do bem-estar social, os neoliberais sustentam que ele

pertence ao âmbito privado e que o Estado só deve intervir para garantir um mínimo

para aliviar a pobreza e produzir serviços que os privados não podem e não querem

produzir. Rechaça-se o conceito dos direitos sociais e a obrigação da sociedade de

garanti-los através da ação estatal. O neoliberalismo opõe-se radicalmente à

universalidade, igualdade e gratuidade dos serviços sociais.

As estratégias concretas idealizadas pelos governos neoliberais para reduzir

a ação estatal no terreno do bem-estar social são a privatização do financiamento e

da produção dos serviços; cortes dos gastos sociais, eliminando-se programas e

reduzindo-se benefícios; canalização dos gastos para os grupos carentes; e a

descentralização em nível local. (Laurell,1995)

A crítica neoliberal ao Estado de bem-estar é centrada em oposição àqueles

elementos da política social que implicam desmercantilização, solidariedade social e

coletivismo. Essa crítica condena os direitos sociais, o universalismo, a dissociação

entre benefícios e contribuição trabalhista, além da administração-produção pública

de serviços; ou seja, os elementos que caracterizam principalmente sobretudo o

Estado de bem-estar “social democrata”. (Laurell, 1995)

O projeto neoliberal tenta impor um novo padrão de acumulação, uma nova

etapa de expansão capitalista, um novo ciclo de concentração de capital. Esse

projeto traz consigo o enfraquecimento das classes trabalhadoras e, com isso, das

suas reivindicações.

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Acrescenta-se aí, o objetivo econômico de destruir as instituições públicas,

para estender os investimentos privados a todas as atividades econômicas

rentáveis.

A desconstrução do Estado Social é a conseqüência imediata de uma política

econômica voltada para a oferta que visa a desregulamentação dos mercados, a

redução das subvenções e a melhoria das condições de investimentos e que inclui

uma política monetária e fiscal antiinflacionária, bem como a diminuição de impostos

diretos, a privatização de empresas estatais e procedimentos semelhantes.

São indubitáveis os indicadores de aumento da pobreza e da insegurança

social devido ao crescimento das disparidades salariais, e também inegáveis às

tendências de desintegração social. (Habermas, 2004)

Essa situação é naturalmente avaliada de forma diferente pelos liberais, pelos

quais os grandes objetivos econômicos podem ser alcançados às custas dos

objetivos sociais e políticos. Para eles, no âmbito de uma economia globalizada, os

Estados nacionais só podem melhorar suas posições através da limitação da ação

estatal, mas que danificam a coesão estatal e colocam a estabilidade da democracia

à prova.

Não importa o que se faça com a globalização da economia, ela destrói uma

constelação histórica que havia provisoriamente permitido o compromisso do Estado

social. (Habermas, 2004)

Dessa forma, a combinação bem sucedida do Estado administrativo, Estado

fiscal, Estado nacional e Estado social, está ameaçada na medida em que o

processo de globalização foge às intervenções de um Estado regulador.

Por quanto tempo mais poderemos descarregar sobre o segmento tornado

supérfluo da população trabalhadora os custos sociais gerados?

Enquanto uma parcela elevadíssima da população mundial vive abaixo da

linha da pobreza, enquanto os índices de desemprego aumentam, as ações e lucros

das empresas atingem patamares recordes, o Estado social vem sendo

sistematicamente questionado e desmontado, muitas vezes sem maiores debates e

apoiados por uma doutrina neoliberal que vê nesses mecanismos de proteção social

mantidos pelos Estados uma barreira para o desenvolvimento econômico em função

da dita elevada tributação dos meios de produção e da própria categoria dos

trabalhadores.

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Page 7: Crise Do Estado Social

Parte da explicação das críticas quanto ao Estado social vem da incapacidade

fiscal desse Estado de usar seus recursos. Mas como se portar diante da veloz

mobilidade do capital, que dificulta a intervenção estatal nos lucros e nas fortunas?

Como se posicionar diante do acirramento da concorrência por posições que geram

redução dos ganhos fiscais?

A palavra de ordem hoje é “Estado enxuto”, que critica de forma parcialmente

pertinente aquele Estado quase incapaz de gerenciar seus recursos, lento e

burocrático. Mas e a pressão fiscal que a globalização econômica exerceu sobre os

recursos do Estado passíveis de taxação? Dentro da lógica econômica vigente, o

capital “grita em coro” para a redução dos tributos, alegando que apenas um

mercado competitivo sobrevive à batalha econômica global. É evidente em que

medida a globalização econômica influencia a política social estatal com base na

redução da entrada de impostos. Há uma regressão dos investimentos sociais e um

aumento do rigor no que tange às condições de acesso ao sistema de segurança

social.

Tão significativa quanto a crise de financiamento público é o fim da política

econômica keynesiana. Sob a pressão de mercados globalizados, os governos

nacionais perdem cada vez mais a capacidade de influência política no circuito

econômico mais amplo. Muitas bases infra-estruturais da vida pública e privada,

caso sejam abandonadas à regulamentação do mercado, estarão ameaçadas de

decadência, destruição e de descuido.

Mas os efeitos colaterais à essa “caça as bruxas” em relação ao estado social

já começam a dar sinais, com o reaparecimento, por exemplo, de reações

etnocêntricas da população local contra tudo o que é estrangeiro, principalmente a

pessoa do imigrante. Leis tramitam e buscam apertar o cerco contra os imigrantes

ilegais. Filhos de imigrantes, de pais que buscaram nova vida por exemplo na

Europa, na “Era de Ouro”, sofrem dupla discriminação, por serem pobres e por

serem de origem imigrante. E pior, estão cada vez menos protegidos em termos de

seguridade social.

Muitas mudanças estão em curso dentro do Estado social. Embora não tenha

sido totalmente desmantelado, há sinais de que está se reestruturando. Cortes tem

se dado em diversos programas estabelecidos historicamente. As implicações

sociais negativas desse processo agravam-se porque os efeitos da política

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Page 8: Crise Do Estado Social

econômica sobre o emprego, os salários e a distribuição de renda provocam um

aumento da pobreza relativa e absoluta e da exclusão social.

Apesar de todo cuidado que se deve ter quanto a uma referência acrítica às

conquistas do Estado social, por outro lado não devemos fechar os olhos diante dos

custos da sua “transformação” ou dissolução. Pode-se permanecer sensível diante

da violência normalizadora das “burocracias sociais”, sem no entanto se fechar os

olhos diante do preço escandaloso que significaria uma monetarização irresponsável

do mundo da vida. (Habermas, 2004).

Os movimentos populares na França

Antes de estabelecer pontos em comum entre os movimentos populares

franceses promovidos em outubro e novembro de 2005 e março e abril de 2006,

além de suas relações com a desconstrução do Estado social, torna-se importante

fazer um breve relato cronológico dos principais acontecimentos que marcaram os

dois fatos.

No fim do ano de 2005, grupos de jovens desempregados, nascidos na

França, mas na maioria de origem árabe ou africana, iniciaram, em 27 de outubro,

uma onda de protestos violentos que transformaram os subúrbios de Paris em

campo de batalha. A convulsão começou com a morte de dois adolescentes da

periferia parisiense. Eles morreram eletrocutados acidentalmente durante uma

suposta perseguição policial. Essa foi a senha e o pretexto para milhares de jovens

suburbanos, desempregados e excluídos, manifestarem sua revolta contra o

governo francês. As depredações são iniciadas por amigos dos adolescentes

mortos, que incendeiam veículos na periferia de Paris. Não demorou muito para a

violência atingir as regiões mais centrais de Paris e se espalhar pelo país, atingindo

mais de 300 localidades. Alucinados, os adolescentes queimaram carros e prédios,

saquearam lojas e se confrontaram com a polícia. O responsável por controlar a

situação, o ministro do Interior Nicolas Sarkozy, chamou os rebeldes de “escória”,

promovendo a intensificação da revolta. Em 9 de novembro, o primeiro-ministro

francês, Dominique de Villepin, decretou estado de emergência no país. Em 17 de

novembro, depois de prender mais de 2,8 mil manifestantes, a polícia declara o fim

dos confrontos. No saldo dos 21 dias de revolta, ficaram mais de 9 mil carros

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incendiados, cerca de 100 prédios públicos atingidos por bombas caseiras, um

morto e centenas de feridos, entre policiais, insurgentes e civis.

Na época, a revolta foi comparada à Revolução de Maio de 1968. Mas parece

ser hábito da imprensa comparar qualquer movimento popular francês às

manifestações de maio de 68.

Os distúrbios chamaram a atenção do mundo e, especialmente, da

Comunidade Européia para uma questão que se agrava: a falta de oportunidades

para jovens das periferias, principalmente os de origem imigrante. A precária

integração cultural e social com os descendentes de imigrantes – a maior parte

deles muçulmanos, vindos de ex-colônias africanas dominadas por países europeus

até meados do século XX – é vista como uma bomba-relógio. Em Paris, coração da

revolta, a taxa de desemprego entre jovens da periferia chega a 40%, e apenas um

em cada cinco consegue lugar nas universidades gratuitas. Sem trabalho nem

estudo, sem identidade com o país, tornam-se suscetíveis aos desvios de conduta e

à revolta.

O outro movimento popular na França que atraiu a atenção da mídia ocorreu

quase 40 anos depois dos grandes protestos de 1968. Mais uma vez os estudantes

franceses formaram barricadas contra a polícia para protestar. Em março e abril

deste ano, também na primavera, como em maio de 68 (e a imprensa novamente

fez comparações exageradas com a revolta de quase quatro décadas), os jovens

estudantes de classe média de Paris se organizaram para exigir a revogação do

Contrato do Primeiro Emprego (CPE), aprovado em 8 de março, que possibilitava a

contratação de jovens de até 26 anos com menor proteção trabalhista. Dessa forma,

os empresários que dessem empregos a funcionários abaixo dessa idade poderiam

demiti-los nos primeiros dois anos sem justa causa e livres de multas contratuais. As

manifestações mostraram sua força em protestos espalhados por cidades e vilarejos

ao redor do país, com a ocupação da tradicional Universidade de Sorbone e

bloqueios que fecharam outros dois terços das universidades francesas. Também

foram promovidas passeatas que reuniram milhares de pessoas nas ruas, entre elas

estudantes, trabalhadores, sindicalistas e até ex-manifestantes de Maio de 1968.

Todos apelaram por um recuo político por parte do governo. Os protestos em Paris

foram mais pacíficos, o que não impediu que ocorressem pequenas batalhas entre

policiais e estudantes, inclusive com os denominados “casseurs” (quebradores),

jovens de periferias, de descendência imigrante, excluídos, responsáveis por cenas

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Page 10: Crise Do Estado Social

mais violentas como depredações de estabelecimentos, incêndios em veículos e

assaltos em meio às manifestações contrárias à lei do primeiro emprego.

O CPE foi introduzido para lidar com a crônica taxa de 9,5% de desemprego

na França, que aumenta para 18% entre as pessoas com menos de 30 anos e para

40% entre os que têm menos de 25 e moram nos subúrbios, ocupados

predominantemente por descendentes de imigrantes de origem árabe e africana.

Depois dos protestos de outubro e novembro de 2005, o primeiro-ministro,

Dominique de Villepin, apresentou o CPE como solução para crise. Os que apóiam o

Contrato do Primeiro Emprego dizem que ele é mais seguro do que contratos de

curto prazo, chamados de CDDs, atualmente em uso, que podem durar dois ou três

meses e são ilimitadamente renováveis.

Após semanas de protestos, a situação voltou ao normal quando o primeiro-

ministro, Dominique de Villepin, cedeu às pressões das entidades estudantis e

centrais sindicais e revogou o Contrato do Primeiro Emprego (CPE), substituindo-o

por incentivos financeiros às empresa que ajudarem a reduzir o índice de

desemprego.

Por trás desses dois movimentos populares na França, que marcaram

presença no noticiário internacional nos meses de outubro e novembro de 2005 e

março e abril de 2006, existem elementos muito mais profundos do que a imprensa

pôde ou quis abordar. Tanto as notícias como os artigos da maior parte da imprensa

ocidental acabaram acompanhando os fatos sob um ponto de vista muito limitado.

Enquanto as violentas revoltas promovidas nos subúrbios da França foram

abordados numa perspectiva do binômio imigração-desemprego, as manifestações

promovidas pelos estudantes universitários foram associadas ao desemprego,

causado pelo baixo crescimento econômico francês nos últimos tempos e motivado

pelo “peso” das leis trabalhistas para o setor produtivo daquele país.

Em poucos momentos houve uma aproximação entre as revoltas do subúrbio

e as manifestações dos estudantes. Quando ocorreu essa relação, foi apenas para

indicar que se o desemprego entre os jovens estudantes franceses da classe média

é elevado, entre os jovens do subúrbio descendentes de imigrantes o índice é muito

maior. Outra relação se deu quando nas manifestações dos jovens estudantes

franceses contra o Contrato do Primeiro Emprego debelaram-se alguns atos mais

violentos associados pela imprensa aos “casseurs”, os jovens dos subúrbios,

descendentes de imigrantes, pobres, desempregados e sem perspectiva.

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Page 11: Crise Do Estado Social

Mas poucos foram os veículos que trouxeram informação que possibilitassem

uma análise para além das perspectivas citadas. Entretanto, por trás dos dois

movimentos, está, indubitavelmente, a desconstrução do Estado social na França,

na Europa e no mundo inteiro. Trata-se mesmo de um desmonte deste welfare state,

construído ao longo da denominada “Era do Ouro” da economia e sociedade

mundial.

Segundo a escritora francesa Viviane Forrester, em seu livro Horror

Econômico, os ricos não precisam mais dos pobres como força de trabalho e

querem eliminá-los. Para a escritora, a economia privada é quem domina o poder

político, acreditando que o único papel que cabe a maior parte da sociedade é o de

consumidores. Nesse contexto, as idéias keynesianas, que se desenvolveram

concomitantemente ao Estado social, deixam de ter sentido. Se a massa não

interessa mais como força de trabalho da energia motriz do desenvolvimento da

economia capitalista, a não ser como consumidora, para que protegê-la? Para que

direitos trabalhistas? Para que investimentos massivos em políticas sociais? Para

que promover algo além do necessário, se o mínimo a fazer é garantir a

sobrevivência da sociedade consumista? Para que dignidade se o consumismo é,

em última instância, o objetivo final?

Entretanto, para que seja possível consumir, é necessário trabalho, renda e

dignidade. Não estará nesse desprezo com o trabalhador o verdadeiro colapso do

sistema predominante? Será que o mercado conseguirá se sustentar com

trabalhadores mais explorados e menos bem remunerados? Ou ainda, até quando o

trabalhador e os futuros trabalhadores aceitarão sua submissão a essa sociedade de

consumo sem que haja questionamentos a cerca da sua condição? A sociedade não

se voltará, um dia, às questões já levantadas por Karl Marx? Esses são pontos de

análise que ainda devem ser amplamente estudados e debatidos nas próximas

décadas, enquanto isso, a sociedade tenta se equilibrar numa doutrina neoliberal

que parece não ceder.

Para a escritora Viviane Forrester, é incerto se o liberalismo acabará, mas

para ela é preciso querer que ele acabe. A política hoje é dominada pelo poderio

econômico. Ela depende do ultraliberalismo. Tem-se a impressão de que não é

possível lutar contra. Mas, contra uma política, é sempre possível lutar. Atualmente,

divulga-se uma idéia de que lutar contra o liberalismo é ser conservador, anacrônico,

causando uma impressão de que ser moderno é aceitar o neoliberalismo e a

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Page 12: Crise Do Estado Social

globalização, com todas as suas conseqüências, sem provocar nenhum

questionamento.

Por trás dos movimentos populares franceses, estavam os jovens, e os não

tão jovens, protestando, na verdade, contra a ideologia política do liberalismo como

um fato consumado, mesmo que a maior parte deles não refletisse exatamente

sobre isso. Foi uma reação enérgica contra o desprezo do governo pelo povo, sua

arrogância em tomar uma decisão unilateralmente e acreditar que seria aceita como

fato consumado. O CPE foi a gota d’água. Queriam separar os jovens dos outros.

Determinaram que até os 26 anos qualquer um pode ser demitido sem motivo. As

leis trabalhistas são as últimas garantias que os trabalhadores têm para manter sua

dignidade. O governo decidiu que os jovens deveriam iniciar a vida adulta na

submissão, aceitando o que vier. Sem direitos, eles ficariam obrigados a dizer sim a

tudo o que dizem seus patrões. Os jovens recusaram imediatamente a começar a

vida nesse desrespeito.

Os subúrbios de Paris não possuem unidade. São formados por guetos,

grupos diversos. A revolta, com a queima de carros e atos de vandalismo, não foi

uma luta política como as manifestações dos estudantes. Foi, sim, uma

demonstração explicita de uma indignação implícita. Nos subúrbios, existem famílias

que se encontram na terceira geração de desempregados. As escolas e a saúde não

têm a mesma qualidade das regiões mais centrais. Foi contra tudo isso que eles se

revoltaram. Foi contra a incapacidade ou indiferença do Estado em promover uma

política social digna.

Considerações Finais

Acompanhada por olhos mais desatentos, os movimentos populares na

França – a revolta nos subúrbios de Paris, em outubro e novembro de 2005, e as

manifestações dos estudantes de classe média contrários à criação do Contrato do

Primeiro Emprego (CPE), em março e abril de 2006 – pode ser visto de uma

maneira quase inocente.

Por trás desses acontecimentos está um grande embate entre visões de

mundo distintas dentro do mesmo sistema sócio-econômico capitalista. A disputa se

dá entre as percepções de como deve se portar o Estado diante das demandas

sociais. Nesse contexto, o Estado social desenvolvido durante a “Era dourada” do

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Page 13: Crise Do Estado Social

pós-guerras mundiais, onde se desenvolveu a idéia do welfare state, parece estar se

desintegrando ou, no mínimo, se reconstruindo para adaptar-se aos paradigmas da

nova ordem mundial. Entretanto, essa reconstrução pode desconfigurar

completamente o Estado social, que seria apenas parcialmente promotor de um

verdadeiro bem-estar. Tratar-se-ia, então, não de uma reconstrução, mas sim uma

desconstrução do Estado social.

Bibiografia

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