reforma (contrarreforma) do estado · 2017-10-05 · sobre a crise do “estado de bem-estar...

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REFORMA (CONTRARREFORMA) DO ESTADO: reflexos na política de saúde 1 Sergiane Maia Maciel 2 Resumo Este artigo objetiva apresentar as interpretações da Reforma (contrarreforma) do Estado, desvelando suas singularidades diante da mundialização do capital financeiro. Destacam-se os dois grandes projetos em disputa no campo da política de saúde: o Projeto da Reforma Sanitária e o Projeto Privatista. Abordam-se os reflexos dessas medidas reformistas na Política de Saúde representada pelo Sistema Único de Saúde. Conclui- se que nesta reconfiguração do Estado expressa na Reforma, o processo neoliberal fortalece-se, ressaltando a perspectiva mercadorizante da saúde no atendimento de interesses privados, contrariando o princípio da universalidade. Palavras-chave: Reforma; Política de saúde; Capital Abstract This article aims to present the interpretations of the Reformation (counter reformation) of the State, unveiling its singularities in the face of the globalization of financial capital. The two major projects in dispute in the field of health policy are highlighted: the Sanitary Reform Project and the Privatista Project. It is concluded that in this reconfiguration of the State expressed in the Reform, the neoliberal process strengthens, highlighting the merchandising perspective of health in the service of private interests, contrary to the principle of universality. Keywords: Reform; Health policy; Capital 1 Artigo apresentado a Disciplina Políticas Sociais, Descentralização, Participação e Controle social do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) ministrada pela professora Dra. Marina Maciel Abreu. Trata-se de um recorte dos estudos sistematizados para a tese de doutorado intitulada “Processo de Reestruturação na Saúde Pública no Estado do Maranhão: um estudo do Programa Saúde é Vida”. Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA), sob orientação da professora Dra. Salviana de Maria Pastor Sousa Santos. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Enfermeira. Mestre em Saúde Coletiva. Professora do Curso de Enfermagem da UFMA – Campus Imperatriz.

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REFORMA (CONTRARREFORMA) DO ESTADO: reflexos na política de saúde1

Sergiane Maia Maciel2

Resumo Este artigo objetiva apresentar as interpretações da Reforma (contrarreforma) do Estado, desvelando suas singularidades diante da mundialização do capital financeiro. Destacam-se os dois grandes projetos em disputa no campo da política de saúde: o Projeto da Reforma Sanitária e o Projeto Privatista. Abordam-se os reflexos dessas medidas reformistas na Política de Saúde representada pelo Sistema Único de Saúde. Conclui-se que nesta reconfiguração do Estado expressa na Reforma, o processo neoliberal fortalece-se, ressaltando a perspectiva mercadorizante da saúde no atendimento de interesses privados, contrariando o princípio da universalidade.

Palavras-chave: Reforma; Política de saúde; Capital

Abstract This article aims to present the interpretations of the Reformation (counter reformation) of the State, unveiling its singularities in the face of the globalization of financial capital. The two major projects in dispute in the field of health policy are highlighted: the Sanitary Reform Project and the Privatista Project. It is concluded that in this reconfiguration of the State expressed in the Reform, the neoliberal process strengthens, highlighting the merchandising perspective of health in the service of private interests, contrary to the principle of universality.

Keywords: Reform; Health policy; Capital

1 Artigo apresentado a Disciplina Políticas Sociais, Descentralização, Participação e Controle social

do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) ministrada pela professora Dra. Marina Maciel Abreu. Trata-se de um recorte dos estudos sistematizados para a tese de doutorado intitulada “Processo de Reestruturação na Saúde Pública no Estado do Maranhão: um estudo do Programa Saúde é Vida”. Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA), sob orientação da professora Dra. Salviana de Maria Pastor Sousa Santos. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do

Maranhão (UFMA). Enfermeira. Mestre em Saúde Coletiva. Professora do Curso de Enfermagem da UFMA – Campus Imperatriz.

I. INTRODUÇÃO

A partir da crise estrutural do capital mundial, em 1970, tem-se que a Reforma

do Estado atingiu a dimensão de garantia de governabilidade. Assim, em 1989, na América

Latina, no bojo da crise da dívida externa, o Consenso de Washington, arquitetado pelo

Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, e outras instituições financeiras

multilaterais recomendaram os países a realizar uma rigorosa disciplina fiscal, privatização,

redução dos gastos públicos, reformas, liberalização comercial, desregulação da economia

e flexibilização das relações trabalhistas, ou seja, medidas destinadas a mundialização do

capital financeiro (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2011).

A mundialização do capital é resultado de dois movimentos conjuntos,

estreitamente interligados, mas distintos. Segundo Chesnais (2006, p. 25):

O primeiro pode ser caracterizado como a mais longa fase de acumulação ininterrupta do capital que o capitalismo conheceu desde 1914. O segundo diz respeito às políticas de liberalização, de privatização, de desregulamentação e de desmantelamento de conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o início da década de 1980, sob o impulso dos governos Thatcher e Reagan.

De acordo com Behring e Boschetti (2011), o período pós-1990 pode ser

considerado no país, como de contrarreforma do Estado, posto que a denominada Reforma

do Estado idealizada por Bresser Pereira (1998) marcou retrocesso nas conquistas

demarcadas na Carta de 1988, sobretudo, nas políticas públicas de previdência, de

assistência social e de saúde.

As autoras Behring e Boschetti (2011, p. 148) acrescentam que:

Reformando-se o Estado, com ênfase especial nas privatizações e na previdência social, e, acima de tudo, desprezando as conquistas de 1998 no terreno da seguridade social e outros – a carta constitucional era vista como perdulária e atrasada -, estaria aberto o caminho para o novo “projeto de modernidade”. O principal documento orientador dessa projeção foi o Plano Diretor da Reforma do Estado (PDRE/MARE, 1995), amplamente afinado com as formulações de Bresser Pereira, então à frente do Ministério da Administração e da Reforma do Estado (MARE).

Em tempos de crise e neoliberalismo, vive-se um ambiente contrarreformista e,

tomando como emprestada o termo de Bering e Boschetti (2011), e por que não dizer

contrarrevolucionário? A partir deste questionamento, o artigo objetiva apresentar as

interpretações da Reforma (contrarreforma) do Estado, desvelando suas singularidades

diante da mundialização do capital financeiro.

Para tanto, o texto está organizado em duas seções. A primeira seção evidencia

as características desse processo no Brasil, mediante as interpretações presentes na

literatura. A segunda seção do texto apresenta os dois grandes projetos em disputa no

campo da política de saúde: o Projeto da Reforma Sanitária e o Projeto Privatista,

destacando os principais reflexos da Reforma (contrarreforma) na Política de Saúde

representada pelo Sistema Único de Saúde.

II. O PROCESSO DA REFORMA (CONTRARREFORMA) DO ESTADO: as interpretações

Sobre a crise do “Estado de Bem-Estar Social”, Montanõ e Duriguetto (2011)

apontam que há diversas interpretações que a concebem como uma crise particular, onde

citam os seguintes autores: para Habermas (1980) é uma “crise de legitimidade do

capitalismo tardio”; para Rosanvallon (1997) é uma “crise do Estado-providência”; no Brasil,

Pereira (1998) a entende como “crise fiscal”, “crise de governança” e “crise no modo de

administração estatal”. Conforme Mandel (1980), Mészáros (2009), Harvey (2004, 2005) e

O’Connor (1977), a crise do Welfare State ou Keynesianismo só pode ser entendida como

desdobramento da crise estrutural do capitalismo.

Para Pereira (1996 apud BEHRING, 2003, p. 172), “o Brasil foi atingido por uma

dura crise fiscal nos anos 1980, acirrada pela crise da dívida externa e pelas práticas do

populismo econômico, dessa forma exigindo de forma imperiosa, a disciplina fiscal, a

privatização e a liberação comercial”.

Na verdade, em uma análise mais profunda, o fundamento da crise fiscal do

Estado tem a ver com o uso político e econômico que as autoridades, representantes de

classe, têm historicamente feito em favor do capital: pagamento de dívida pública, renúncia

fiscal, hiperfaturamento de obras, resgate de empresas falidas, vendas subvencionadas de

empresas estatais subavaliadas, clientelismo político, corrupção, compras superavaliadas

sem licitação, taxas elevadíssimas de juros ao capital financeiro especulativo, dentre outros

(MONTANÕ, 2003).

Segundo Bresser Pereira (1996 apud BEHRING, 2003, p. 17), “não se pretende

atingir o Estado Mínimo, mas reconstruir um Estado que mantém suas responsabilidades na

área social, acreditando no mercado, do qual contrata a realização de serviços, inclusive na

própria área social”.

De acordo com Silva (2003, p. 76-74):

[...] vale ressaltar que a proposta social-liberal já havia sido apresentada por Collor, sendo divulgada por intermédio de uma série de artigos e discursos. Recuperada do governo Collor, Bresser Pereira reapresentou-a em um momento politicamente mais favorável, obscurecendo os traços neoliberais e realçando o chamado aspecto social.

Na proposta do Ministério da Administração e Reforma do Estado, o Estado

social-liberal tem o poder de legislar, de punir e de tributar, para assegurar a ordem interna,

ou seja, garantir a propriedade e os contratos, e defender o país contra o inimigo externo,

promovendo o desenvolvimento econômico e social. Esse modelo almejaria ser social e

liberal democrático e submetido ao controle social. Nesse sentido, fala-se da participação

dos cidadãos no controle direto da administração pública, especialmente no nível local, mas

sem explicitar como ela se daria (BEHRING, 2003).

Segundo Behring (2003, p.173):

Para Bresser Pereira (1996), esse é um Estado social-liberal porque está comprometido com a defesa e a implementação dos direitos sociais definidos no século XIX, mas é também liberal porque acredita no mercado, porque se integra no processo de globalização em curso, com o qual a competição internacional ganhou uma amplitude e uma intensidade historicamente novas, porque é resultado de reformas orientadas para o mercado.

Portanto, observa-se que o aparato ideológico montado no molde de um Estado

social-liberal para divulgar a reforma foi que o maior sucesso dessas medidas seria a

universalização do acesso aos serviços. Isto poderia supor que o governo priorizaria os

investimentos na área social, mas o que se observou foi o contrário. Particularmente, na

saúde pública, o principal paradoxo é que o Sistema Único de Saúde, fundado nos

princípios de universalidade, equidade, integralidade das ações, regionalização,

hierarquização, descentralização, participação dos cidadãos e complementaridade do setor

privado, vem sendo minado pela péssima qualidade dos serviços, pela falta de recursos,

pela ampliação dos esquemas privados que sugam os recursos públicos e pela instabilidade

no financiamento. A proposta de saúde pública e universal parece estar na prática, sofrendo

um processo de privatização passiva (SILVA, 2003; BEHRING; BOSCHETTI, 2011).

Embora, o termo reforma tenha sido largamente utilizado pelo projeto em curso

no país nos anos 1990 para se autodesignar, na verdade tem-se segundo Behring e

Boschetti (2011), que se esteve diante de uma apropriação indébita e fortemente ideológica

da idéia reformista, a qual é destituída de seu conteúdo redistributivo de viés social-

democrata, sendo submetida ao uso pragmático, como qualquer mudança significasse uma

reforma, não importando seu sentido, suas consequências sociais e sua direção sócio-

histórica.

Para Coutinho (1989 apud BEHRING; BOSCHETT, 2011) entende-se que não

houve reformas no sentido social-democrata, mas processos de modernização

conservadora ou de revolução passiva. Tais processos promoveram mudanças objetivas

nas condições de vida e de trabalho dos “de baixo”, o que incluiu o desenvolvimento de um

Estado social, mas sempre contidas e limitadas diante das possibilidades, e sempre sob

controle das classes dominantes.

Houve o desmonte e a destruição numa espécie de reformatação do Estado

brasileiro para a adaptação passiva à lógica do capital. A chamada “Reforma do Estado”

funda-se na necessidade do grande capital de liberalizar, desimpedir, desregulamentar os

mercados. Dessa forma, tal reforma deixa claro que seu caráter não é um “ajuste positivo”

de caráter meramente administrativo-institucional, apenas no plano político-burocrático, mas

está articulada à reestruturação produtiva, à retomada das elevadas taxas de lucro, da

ampliação da hegemonia política e ideológica do grande capital, no interior da

reestruturação do capital que em geral tem um caráter político, econômico e ideológico que

visa alterar as bases do “Estado de Bem-Estar Social”, tendo como objetivo esvaziar

diversas conquistas sociais, trabalhistas, políticas e econômicas desenvolvidas ao longo do

século XX e, portanto, no lugar de uma reforma, configura um verdadeiro processo de

contrarreforma do Estado (BEHRING, 2003; MONTANÕ; DURIGUETTO, 2011).

Assim, tem-se início à contrarreforma do Estado: um conjunto de medidas

neoliberais e destruição das conquistas democráticas. Nessa perspectiva, floresce a crença

de que a Reforma do Estado deve-se dar-se no âmbito quantitativo, fiscal, financeiro e

gerenciador, em detrimento do político, participativo e democrático, ou seja, o Estado estaria

submetido aos ditames de uma nova era histórica e universal, a globalização, que por meio

da desregulamentação, reduziria consideravelmente o papel político e participativo do

próprio Estado e da sociedade. Destaca-se, aqui que é preciso ter consciência que a

Reforma do Estado não pode ser reduzida as reformas administrativas, mas sim é preciso

olhar para “fora do estado”, para a relação entre o Estado e a sociedade, para a prática

política. A Reforma do Estado, nesse sentido, é o prolongamento de uma reforma da própria

sociedade, tanto quanto é a remodelação da relação entre o Estado e a sociedade civil

(BORLINI, 2010).

Em Gramsci (2002, p. 244), entende-se que “na noção geral de Estado entram

elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível

dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de

coerção)”. O Estado abrange a sociedade política e a sociedade civil, para manter a

hegemonia de uma determinada classe sobre a outra.

Ao se utilizar do referencial de Gramsci para o entendimento da relação entre o

Estado e a sociedade civil, tem que se considerar que a sociedade civil é um momento do

Estado; a sociedade civil não é homogênea, nela circulam interesses das classes

antagônicas que compõem a estrutura social; a concepção de Estado que, na sua função de

mantenedor do domínio da classe dominante, incorpora interesses das classes subalternas.

Nesta percepção que a sociedade civil não é homogênea, mas espaço de lutas de

interesses contraditórios, pensando nisso que temos as organizações das classes presentes

na sociedade civil que de alguma forma controlam as ações do Estado e,

consequentemente podem influenciar no direcionamento das políticas universais, como a

política de saúde (GRAMSCI, 2002).

Concorda-se com Soares (2013), que a política social, e a política de saúde,

integrante do conjunto de políticas sociais do sistema de seguridade social, é o espaço

dialético de projetos contraditórios em confronto, constituindo-se em expressão da luta de

classes e das racionalidades em disputa no âmbito do Estado e da sociedade civil.

Para Soares (2013), especialmente a política de saúde tornou-se espaço de

grande tensionamento e alvo de grande ofensiva do ajuste neoliberal do Estado. As

contradições originadas nesse processo interferem diretamente na qualidade dos serviços

prestados aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).

III. OS REFLEXOS DA REFORMA (CONTRARREFORMA) DO ESTADO NA POLÍTICA DE

SAÚDE

A partir da Constituição Federal de 1988, a saúde passou a ser direito de todos e

dever do Estado, integrando os serviços de forma regionalizada e hierarquizada, sendo

criado o SUS, amparado pelas leis 8.080/90 e 8.142/90, que tem por preocupação central a

democratização do acesso, a universalização dos direitos, melhoria da qualidade dos

serviços prestados, a integralidade e a equidade das ações (SILVA et al., 2013).

Neste projeto político, a relação entre o Estado e a sociedade civil acontece por

mecanismos democráticos e inovadores na gestão, como os Conselhos e as Conferências

de Saúde, o que viabiliza, em sua proposta, maior transparência no uso e destino dos

recursos públicos. No entanto, sabe-se que as tensões por recursos financeiros para

assegurar a política universal da saúde sempre foram uma constante realidade desde a

criação do SUS em 1988, e que ao longo dos anos de existência de SUS ainda persistem,

acentuando-se principalmente diante do domínio do capital contemporâneo, sob comando

do capital portador de juros (capital financeiro) forçando o incremento das despesas com

juros da dívida pública no orçamento federal (BORLINI, 2010; MENDES, 2012).

Além disso, os serviços de saúde tornaram-se cada vez mais espaços de

supercapitalização e relevante fonte de investimento e lucratividade capitalista. As diversas

formas de capital, em tempos de dominância financeira, conectam a cadeia de mercadorias

e serviços desde o espaço da produção e comercialização até as finanças: indústrias de

medicamentos, equipamentos médico-hospitalares e insumos, sistemas públicos de saúde,

redes de hospitais, clínicas, planos privados, entre outros (SOARES, 2013).

Percebe-se que com as necessidades de supercapitalização e expansão do

capital portador de juros, a intervenção sobre o processo saúde-doença vem se tornando

um espaço de lucratividade e hegemonia política do grande capital, e para isso, é

necessário precarizar a política de saúde, torná-la cada vez mais uma política para os

pobres, deixando amplo espaço para o mercado, desconstruindo num movimento de

contrarreforma o referencial de saúde pública conquistado nos anos 1980 (SOARES, 2013).

Desse modo, configura-se um duplo movimento pendular e contraditório entre as

forças em torno da área da saúde, ou seja, o alcance de uma política universal e a

contenção de gastos públicos com a saúde. Destaca-se, ainda o processo de relação de

forças entre os projetos políticos existentes: o Projeto Privatista e o Projeto da Reforma

Sanitária que perpetuam as disputas de interesses na política de saúde brasileira (BORLINI,

2010; MENDES, 2012; BRAVO; MARQUES, 2013; BRAVO; MENEZES, 2013, SOARES,

2013).

Sobre esse processo de relação de forças entre os dois projetos políticos

existentes, Bravo e Marques (2013) descrevem que o Projeto da Reforma Sanitária

compreende a saúde como direito social e dever do Estado e o Projeto Privatista como

prática mercantilista, visto no avanço da privatização através de organizações sociais e

fundações estatais de direito privado, na defesa do Estado mínimo para as questões sociais,

e máximas para o capital.

As autoras mencionam ainda que nesse confronto, o SUS vem se efetivando

como espaço de disputa política para os dois projetos. Por um lado, é nele que se

materializa a luta por uma política de acesso universal. Por outro, na medida em que a

dotação de verba pública para a saúde vem sendo restringida ano após ano, é reduzida a

sua capacidade em promover o acesso universal. Salientam que por sua característica, o

SUS se conforma como a única alternativa das classes pauperizadas para ter acesso à

saúde. O que se infere é que o Projeto Privatista, em articulação ao Estado, vem se

sobrepondo ao Projeto da Reforma Sanitária, e garantindo sua hegemonia a partir da

década de 90.

Bravo e Marques (2013) prosseguem que o projeto saúde articulado ao mercado

ou projeto privatista está pautado na Política de Ajuste que tem como principais tendências

a contenção dos gastos com racionalização da oferta e descentralização com isenção de

responsabilidade do poder central. A tarefa do Estado, nesse projeto, consiste em garantir

um mínimo aos que não podem pagar, ficando para o setor privado o atendimento dos que

têm acesso ao mercado.

Portanto, a privatização gera uma dualidade discriminatória entre os que podem

e os que não podem pagar pelos serviços, no mesmo passo em que propicia um nicho

lucrativo para o capital, em especial para segmentos do capital nacional que perderam

espaços com a abertura comercial. É o caso da política de saúde, sendo esse aspecto

designado como universalização excludente, que quebra a uniformização e a gratuidade dos

serviços. Na verdade, a privatização no campo das políticas sociais públicas compõe um

movimento de transferências patrimoniais, além de expressar o processo mais profundo da

supercapitalização. Outro aspecto, destacado é a seletividade associada à focalização que

assegura acesso apenas aos extremamente pobres (BEHRING; BOSCHETTI, 2011).

Segundo Faveret Filho e Oliveira (1989 apud BRAVO, 2011, p. 317), destacam

que “esse processo de universalização tem sido excludente, em decorrência dos

mecanismos de racionamento (queda na qualidade dos serviços, filas) que expulsa do

sistema diversos segmentos sociais, entre eles, as camadas médias urbanas”.

A focalização revela-se pelo duplo significado (“dar pouco a quem tem pouco”) e

pela sua aplicação restrita à esfera da distribuição dos serviços, uma proposta de mitigar a

pobreza com recursos retirados dos próprios trabalhadores, e não uma proposta de

distribuição da renda que visaria erradicar a pobreza. Tudo bem considerado, e se

quisermos manter o estilo não muito adequado das fórmulas rápidas, diríamos que o

princípio neoliberal da focalização não significa, ao contrário do que pretendem os

ideólogos, “dar mais a quem tem menos”, mas sim “devolver pouco àqueles que os

governos neoliberais tiram mais” (BOITO JÚNIOR, 1999).

Particularmente, no governo Fernando Henrique Cardoso, a contrarreforma do

Estado realiza-se de maneira ainda mais ofensiva e estruturada, com a criação do MARE,

conduzida por Bresser Pereira. O projeto de Reforma Administrativa do Estado foi aprovado

em quase sua totalidade, situando a saúde como área não exclusiva do Estado e, portanto,

sendo passível de ter seus serviços prestados por organizações sociais, ou seja, sociedades

de direito privado, sem fins lucrativos, que administrariam com uso dos cofres públicos

(SOARES, 2013).

Inicia-se, então, o processo de “publicização do Estado”, com a transformação

dos serviços não exclusivos de Estado em propriedade pública não estatal e sua declaração

como organização social. Registra-se que as organizações, por não estarem sujeitas às

normas do Direito Administrativo, estão livres da obrigação de concurso público, de

controles formais por parte do Estado, ficando sujeitas apenas a avaliação dos resultados.

Bresser Pereira “engenhosamente”, utilizou o termo publicização em seu plano de reforma,

ao indicar a convocação da sociedade à participação e controle social, bem como à gestão

de serviços sociais e científicos, o que culminaria na ampliação dos ideais democráticos e

de cidadania. Contudo, o que ocorreu foi uma denominação ideológica dada à transferência

das questões públicas de responsabilidade do Estado ao terceiro setor e o repasse de

recursos públicos para o setor privado (MONTAÑO, 2003; SILVA, 2003; BORLINI, 2010).

Ainda, pode ser apontada, dentro da reforma da saúde a Norma Operacional

Básica de 1996 (NOB/96), que regula os planos e seguros privados de saúde, bem como a

desarticulação da atenção básica, da secundária e terciária, dividindo o SUS em dois

blocos: o hospitalar que possui vários convênios com a rede privada e assistência básica

representadas pelos diversos programas do Ministério da Saúde, que na verdade são

programas com caráter público, mas destinados aos pobres (SOARES, 2013).

Tomando como referência o uso dos recursos públicos para os dois blocos de

assistência do SUS: o hospitalar e a assistência básica, tem-se que no ano de 2015, a

Atenção Básica recebeu R$ 19,2 bilhões, indicando um esvaziamento da promoção à

Saúde. Observa-se que mesmo com a expansão da Atenção Básica, onde estão as equipes

de Saúde da Família, laboratórios para exames, e outros pontos de entrada dos usuários no

SUS, que os valores executados não são suficientes para um atendimento resolutivo e

universal (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES-FISCAIS DA RECEITA FEDERAL

DO BRASIL; FUNDAÇÃO ANFIP DE ESTUDOS DA SEGURIDADE SOCIAL E

TRIBUTÁRIO, 2016; VASCONCELOS; COSTA, 2014).

Em contrapartida, a assistência hospitalar e ambulatorial com R$ 48,3 bilhões foi

a programação que mais recebeu recursos, sendo que a maior parte destas ações são de

alto custo, incluindo procedimentos e exames complexos prestados por convênios e

prestadores privados. Isso demostra que a privatização e mercadorização da saúde se dão

tanto no meio dos Planos Privados de Saúde, como no interior do setor público, através da

compra destes serviços no setor privado, uma vez que, historicamente, não houve no

Estado em construção a manutenção de uma rede hospitalar pública de qualidade e auto-

suficiente. Permite-se sinalizar uma contradição entre o discurso do Ministério da Saúde da

reorganização do sistema e a busca de um modelo de saúde que supere a lógica

hospitalocêntrica e medicalizante (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES-FISCAIS

DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL; FUNDAÇÃO ANFIP DE ESTUDOS DA

SEGURIDADE SOCIAL E TRIBUTÁRIO, 2016; VASCONCELOS; COSTA, 2014).

Enfim, segundo Bravo (2006 apud SOARES, 2013, p. 98), “há a continuidade de

uma política que se efetiva de forma focalizada, precarizada, com ênfase na Estratégia

Saúde da Família e na assistência emergencial, bem como na fragmentação da concepção

da seguridade social”.

IV. CONCLUSÃO

O artigo revelou que mudanças nas relações entre o Estado e a sociedade civil

têm se processado, orientadas pelo neoliberalismo, traduzidas nas políticas de ajuste

recomendadas pelos organismos multilaterais nos marcos do “Consenso de “Washington”.

Nesse sentido, iniciou-se um processo neoliberal, estratégia hegemônica de reestruturação

geral do capital e que se desdobra na contrarreforma do Estado.

Conforme visto, nos discursos de Bresser Pereira, idealizador da Reforma do

Estado, o Estado é responsabilizado pela ineficiência em sua capacidade de

governabilidade, e o mercado e a iniciativa privada são postos como esfera da eficiência.

Assim, tem-se como resultado um processo de privatização da coisa pública, com o Estado

cada vez mais submetido aos interesses econômicos e políticos no cenário internacional e

nacional, em nome das exigências do grande capital financeiro.

Conclui-se, a partir das análises realizadas que as prioridades dadas ao capital

sustentam a permanência de uma política neoliberal, pautada em políticas

macroeconômicas que levam a diminuição de gastos públicos como os direitos sociais, em

destaque à saúde, portanto, observa-se um estado de afastamento da efetivação da política

de direitos universais, que vem determinando as difíceis condições dos serviços de saúde

conveniados do SUS.

A opção do governo em direcionar o uso do recurso público para o mercado

deixa claro que o Estado tem priorizado a política econômica com seus interesses privados

do capital, em detrimento da política social e das demandas do trabalho, motivo pelo qual

direciona as políticas da seguridade social para a direção da privatização, focalização e

monetarização da proteção social.

É incontestável que o SUS é resultado de uma longa trajetória de luta

empenhada pela classe trabalhadora, porém o prosseguimento do SUS universal e público é

sem dúvida um desafio político, pois supõem a garantia: do financiamento do subsistema

público, a redefinição da articulação público-privada, a redução das desigualdades de renda,

poder e saúde, e, sobretudo o rompimento com o modelo hegemônico de saúde

hospitalocêntrico, medicalizante e curativo, que beneficia o setor privado e a perspectiva

mercadorizante da saúde mediante aos atendimentos privados em hospitais, clínicas e

laboratórios.

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