reforma (contrarreforma) do estado · 2017-10-05 · sobre a crise do “estado de bem-estar...
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REFORMA (CONTRARREFORMA) DO ESTADO: reflexos na política de saúde1
Sergiane Maia Maciel2
Resumo Este artigo objetiva apresentar as interpretações da Reforma (contrarreforma) do Estado, desvelando suas singularidades diante da mundialização do capital financeiro. Destacam-se os dois grandes projetos em disputa no campo da política de saúde: o Projeto da Reforma Sanitária e o Projeto Privatista. Abordam-se os reflexos dessas medidas reformistas na Política de Saúde representada pelo Sistema Único de Saúde. Conclui-se que nesta reconfiguração do Estado expressa na Reforma, o processo neoliberal fortalece-se, ressaltando a perspectiva mercadorizante da saúde no atendimento de interesses privados, contrariando o princípio da universalidade.
Palavras-chave: Reforma; Política de saúde; Capital
Abstract This article aims to present the interpretations of the Reformation (counter reformation) of the State, unveiling its singularities in the face of the globalization of financial capital. The two major projects in dispute in the field of health policy are highlighted: the Sanitary Reform Project and the Privatista Project. It is concluded that in this reconfiguration of the State expressed in the Reform, the neoliberal process strengthens, highlighting the merchandising perspective of health in the service of private interests, contrary to the principle of universality.
Keywords: Reform; Health policy; Capital
1 Artigo apresentado a Disciplina Políticas Sociais, Descentralização, Participação e Controle social
do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) ministrada pela professora Dra. Marina Maciel Abreu. Trata-se de um recorte dos estudos sistematizados para a tese de doutorado intitulada “Processo de Reestruturação na Saúde Pública no Estado do Maranhão: um estudo do Programa Saúde é Vida”. Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA), sob orientação da professora Dra. Salviana de Maria Pastor Sousa Santos. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do
Maranhão (UFMA). Enfermeira. Mestre em Saúde Coletiva. Professora do Curso de Enfermagem da UFMA – Campus Imperatriz.
I. INTRODUÇÃO
A partir da crise estrutural do capital mundial, em 1970, tem-se que a Reforma
do Estado atingiu a dimensão de garantia de governabilidade. Assim, em 1989, na América
Latina, no bojo da crise da dívida externa, o Consenso de Washington, arquitetado pelo
Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, e outras instituições financeiras
multilaterais recomendaram os países a realizar uma rigorosa disciplina fiscal, privatização,
redução dos gastos públicos, reformas, liberalização comercial, desregulação da economia
e flexibilização das relações trabalhistas, ou seja, medidas destinadas a mundialização do
capital financeiro (MONTAÑO; DURIGUETTO, 2011).
A mundialização do capital é resultado de dois movimentos conjuntos,
estreitamente interligados, mas distintos. Segundo Chesnais (2006, p. 25):
O primeiro pode ser caracterizado como a mais longa fase de acumulação ininterrupta do capital que o capitalismo conheceu desde 1914. O segundo diz respeito às políticas de liberalização, de privatização, de desregulamentação e de desmantelamento de conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o início da década de 1980, sob o impulso dos governos Thatcher e Reagan.
De acordo com Behring e Boschetti (2011), o período pós-1990 pode ser
considerado no país, como de contrarreforma do Estado, posto que a denominada Reforma
do Estado idealizada por Bresser Pereira (1998) marcou retrocesso nas conquistas
demarcadas na Carta de 1988, sobretudo, nas políticas públicas de previdência, de
assistência social e de saúde.
As autoras Behring e Boschetti (2011, p. 148) acrescentam que:
Reformando-se o Estado, com ênfase especial nas privatizações e na previdência social, e, acima de tudo, desprezando as conquistas de 1998 no terreno da seguridade social e outros – a carta constitucional era vista como perdulária e atrasada -, estaria aberto o caminho para o novo “projeto de modernidade”. O principal documento orientador dessa projeção foi o Plano Diretor da Reforma do Estado (PDRE/MARE, 1995), amplamente afinado com as formulações de Bresser Pereira, então à frente do Ministério da Administração e da Reforma do Estado (MARE).
Em tempos de crise e neoliberalismo, vive-se um ambiente contrarreformista e,
tomando como emprestada o termo de Bering e Boschetti (2011), e por que não dizer
contrarrevolucionário? A partir deste questionamento, o artigo objetiva apresentar as
interpretações da Reforma (contrarreforma) do Estado, desvelando suas singularidades
diante da mundialização do capital financeiro.
Para tanto, o texto está organizado em duas seções. A primeira seção evidencia
as características desse processo no Brasil, mediante as interpretações presentes na
literatura. A segunda seção do texto apresenta os dois grandes projetos em disputa no
campo da política de saúde: o Projeto da Reforma Sanitária e o Projeto Privatista,
destacando os principais reflexos da Reforma (contrarreforma) na Política de Saúde
representada pelo Sistema Único de Saúde.
II. O PROCESSO DA REFORMA (CONTRARREFORMA) DO ESTADO: as interpretações
Sobre a crise do “Estado de Bem-Estar Social”, Montanõ e Duriguetto (2011)
apontam que há diversas interpretações que a concebem como uma crise particular, onde
citam os seguintes autores: para Habermas (1980) é uma “crise de legitimidade do
capitalismo tardio”; para Rosanvallon (1997) é uma “crise do Estado-providência”; no Brasil,
Pereira (1998) a entende como “crise fiscal”, “crise de governança” e “crise no modo de
administração estatal”. Conforme Mandel (1980), Mészáros (2009), Harvey (2004, 2005) e
O’Connor (1977), a crise do Welfare State ou Keynesianismo só pode ser entendida como
desdobramento da crise estrutural do capitalismo.
Para Pereira (1996 apud BEHRING, 2003, p. 172), “o Brasil foi atingido por uma
dura crise fiscal nos anos 1980, acirrada pela crise da dívida externa e pelas práticas do
populismo econômico, dessa forma exigindo de forma imperiosa, a disciplina fiscal, a
privatização e a liberação comercial”.
Na verdade, em uma análise mais profunda, o fundamento da crise fiscal do
Estado tem a ver com o uso político e econômico que as autoridades, representantes de
classe, têm historicamente feito em favor do capital: pagamento de dívida pública, renúncia
fiscal, hiperfaturamento de obras, resgate de empresas falidas, vendas subvencionadas de
empresas estatais subavaliadas, clientelismo político, corrupção, compras superavaliadas
sem licitação, taxas elevadíssimas de juros ao capital financeiro especulativo, dentre outros
(MONTANÕ, 2003).
Segundo Bresser Pereira (1996 apud BEHRING, 2003, p. 17), “não se pretende
atingir o Estado Mínimo, mas reconstruir um Estado que mantém suas responsabilidades na
área social, acreditando no mercado, do qual contrata a realização de serviços, inclusive na
própria área social”.
De acordo com Silva (2003, p. 76-74):
[...] vale ressaltar que a proposta social-liberal já havia sido apresentada por Collor, sendo divulgada por intermédio de uma série de artigos e discursos. Recuperada do governo Collor, Bresser Pereira reapresentou-a em um momento politicamente mais favorável, obscurecendo os traços neoliberais e realçando o chamado aspecto social.
Na proposta do Ministério da Administração e Reforma do Estado, o Estado
social-liberal tem o poder de legislar, de punir e de tributar, para assegurar a ordem interna,
ou seja, garantir a propriedade e os contratos, e defender o país contra o inimigo externo,
promovendo o desenvolvimento econômico e social. Esse modelo almejaria ser social e
liberal democrático e submetido ao controle social. Nesse sentido, fala-se da participação
dos cidadãos no controle direto da administração pública, especialmente no nível local, mas
sem explicitar como ela se daria (BEHRING, 2003).
Segundo Behring (2003, p.173):
Para Bresser Pereira (1996), esse é um Estado social-liberal porque está comprometido com a defesa e a implementação dos direitos sociais definidos no século XIX, mas é também liberal porque acredita no mercado, porque se integra no processo de globalização em curso, com o qual a competição internacional ganhou uma amplitude e uma intensidade historicamente novas, porque é resultado de reformas orientadas para o mercado.
Portanto, observa-se que o aparato ideológico montado no molde de um Estado
social-liberal para divulgar a reforma foi que o maior sucesso dessas medidas seria a
universalização do acesso aos serviços. Isto poderia supor que o governo priorizaria os
investimentos na área social, mas o que se observou foi o contrário. Particularmente, na
saúde pública, o principal paradoxo é que o Sistema Único de Saúde, fundado nos
princípios de universalidade, equidade, integralidade das ações, regionalização,
hierarquização, descentralização, participação dos cidadãos e complementaridade do setor
privado, vem sendo minado pela péssima qualidade dos serviços, pela falta de recursos,
pela ampliação dos esquemas privados que sugam os recursos públicos e pela instabilidade
no financiamento. A proposta de saúde pública e universal parece estar na prática, sofrendo
um processo de privatização passiva (SILVA, 2003; BEHRING; BOSCHETTI, 2011).
Embora, o termo reforma tenha sido largamente utilizado pelo projeto em curso
no país nos anos 1990 para se autodesignar, na verdade tem-se segundo Behring e
Boschetti (2011), que se esteve diante de uma apropriação indébita e fortemente ideológica
da idéia reformista, a qual é destituída de seu conteúdo redistributivo de viés social-
democrata, sendo submetida ao uso pragmático, como qualquer mudança significasse uma
reforma, não importando seu sentido, suas consequências sociais e sua direção sócio-
histórica.
Para Coutinho (1989 apud BEHRING; BOSCHETT, 2011) entende-se que não
houve reformas no sentido social-democrata, mas processos de modernização
conservadora ou de revolução passiva. Tais processos promoveram mudanças objetivas
nas condições de vida e de trabalho dos “de baixo”, o que incluiu o desenvolvimento de um
Estado social, mas sempre contidas e limitadas diante das possibilidades, e sempre sob
controle das classes dominantes.
Houve o desmonte e a destruição numa espécie de reformatação do Estado
brasileiro para a adaptação passiva à lógica do capital. A chamada “Reforma do Estado”
funda-se na necessidade do grande capital de liberalizar, desimpedir, desregulamentar os
mercados. Dessa forma, tal reforma deixa claro que seu caráter não é um “ajuste positivo”
de caráter meramente administrativo-institucional, apenas no plano político-burocrático, mas
está articulada à reestruturação produtiva, à retomada das elevadas taxas de lucro, da
ampliação da hegemonia política e ideológica do grande capital, no interior da
reestruturação do capital que em geral tem um caráter político, econômico e ideológico que
visa alterar as bases do “Estado de Bem-Estar Social”, tendo como objetivo esvaziar
diversas conquistas sociais, trabalhistas, políticas e econômicas desenvolvidas ao longo do
século XX e, portanto, no lugar de uma reforma, configura um verdadeiro processo de
contrarreforma do Estado (BEHRING, 2003; MONTANÕ; DURIGUETTO, 2011).
Assim, tem-se início à contrarreforma do Estado: um conjunto de medidas
neoliberais e destruição das conquistas democráticas. Nessa perspectiva, floresce a crença
de que a Reforma do Estado deve-se dar-se no âmbito quantitativo, fiscal, financeiro e
gerenciador, em detrimento do político, participativo e democrático, ou seja, o Estado estaria
submetido aos ditames de uma nova era histórica e universal, a globalização, que por meio
da desregulamentação, reduziria consideravelmente o papel político e participativo do
próprio Estado e da sociedade. Destaca-se, aqui que é preciso ter consciência que a
Reforma do Estado não pode ser reduzida as reformas administrativas, mas sim é preciso
olhar para “fora do estado”, para a relação entre o Estado e a sociedade, para a prática
política. A Reforma do Estado, nesse sentido, é o prolongamento de uma reforma da própria
sociedade, tanto quanto é a remodelação da relação entre o Estado e a sociedade civil
(BORLINI, 2010).
Em Gramsci (2002, p. 244), entende-se que “na noção geral de Estado entram
elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível
dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de
coerção)”. O Estado abrange a sociedade política e a sociedade civil, para manter a
hegemonia de uma determinada classe sobre a outra.
Ao se utilizar do referencial de Gramsci para o entendimento da relação entre o
Estado e a sociedade civil, tem que se considerar que a sociedade civil é um momento do
Estado; a sociedade civil não é homogênea, nela circulam interesses das classes
antagônicas que compõem a estrutura social; a concepção de Estado que, na sua função de
mantenedor do domínio da classe dominante, incorpora interesses das classes subalternas.
Nesta percepção que a sociedade civil não é homogênea, mas espaço de lutas de
interesses contraditórios, pensando nisso que temos as organizações das classes presentes
na sociedade civil que de alguma forma controlam as ações do Estado e,
consequentemente podem influenciar no direcionamento das políticas universais, como a
política de saúde (GRAMSCI, 2002).
Concorda-se com Soares (2013), que a política social, e a política de saúde,
integrante do conjunto de políticas sociais do sistema de seguridade social, é o espaço
dialético de projetos contraditórios em confronto, constituindo-se em expressão da luta de
classes e das racionalidades em disputa no âmbito do Estado e da sociedade civil.
Para Soares (2013), especialmente a política de saúde tornou-se espaço de
grande tensionamento e alvo de grande ofensiva do ajuste neoliberal do Estado. As
contradições originadas nesse processo interferem diretamente na qualidade dos serviços
prestados aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).
III. OS REFLEXOS DA REFORMA (CONTRARREFORMA) DO ESTADO NA POLÍTICA DE
SAÚDE
A partir da Constituição Federal de 1988, a saúde passou a ser direito de todos e
dever do Estado, integrando os serviços de forma regionalizada e hierarquizada, sendo
criado o SUS, amparado pelas leis 8.080/90 e 8.142/90, que tem por preocupação central a
democratização do acesso, a universalização dos direitos, melhoria da qualidade dos
serviços prestados, a integralidade e a equidade das ações (SILVA et al., 2013).
Neste projeto político, a relação entre o Estado e a sociedade civil acontece por
mecanismos democráticos e inovadores na gestão, como os Conselhos e as Conferências
de Saúde, o que viabiliza, em sua proposta, maior transparência no uso e destino dos
recursos públicos. No entanto, sabe-se que as tensões por recursos financeiros para
assegurar a política universal da saúde sempre foram uma constante realidade desde a
criação do SUS em 1988, e que ao longo dos anos de existência de SUS ainda persistem,
acentuando-se principalmente diante do domínio do capital contemporâneo, sob comando
do capital portador de juros (capital financeiro) forçando o incremento das despesas com
juros da dívida pública no orçamento federal (BORLINI, 2010; MENDES, 2012).
Além disso, os serviços de saúde tornaram-se cada vez mais espaços de
supercapitalização e relevante fonte de investimento e lucratividade capitalista. As diversas
formas de capital, em tempos de dominância financeira, conectam a cadeia de mercadorias
e serviços desde o espaço da produção e comercialização até as finanças: indústrias de
medicamentos, equipamentos médico-hospitalares e insumos, sistemas públicos de saúde,
redes de hospitais, clínicas, planos privados, entre outros (SOARES, 2013).
Percebe-se que com as necessidades de supercapitalização e expansão do
capital portador de juros, a intervenção sobre o processo saúde-doença vem se tornando
um espaço de lucratividade e hegemonia política do grande capital, e para isso, é
necessário precarizar a política de saúde, torná-la cada vez mais uma política para os
pobres, deixando amplo espaço para o mercado, desconstruindo num movimento de
contrarreforma o referencial de saúde pública conquistado nos anos 1980 (SOARES, 2013).
Desse modo, configura-se um duplo movimento pendular e contraditório entre as
forças em torno da área da saúde, ou seja, o alcance de uma política universal e a
contenção de gastos públicos com a saúde. Destaca-se, ainda o processo de relação de
forças entre os projetos políticos existentes: o Projeto Privatista e o Projeto da Reforma
Sanitária que perpetuam as disputas de interesses na política de saúde brasileira (BORLINI,
2010; MENDES, 2012; BRAVO; MARQUES, 2013; BRAVO; MENEZES, 2013, SOARES,
2013).
Sobre esse processo de relação de forças entre os dois projetos políticos
existentes, Bravo e Marques (2013) descrevem que o Projeto da Reforma Sanitária
compreende a saúde como direito social e dever do Estado e o Projeto Privatista como
prática mercantilista, visto no avanço da privatização através de organizações sociais e
fundações estatais de direito privado, na defesa do Estado mínimo para as questões sociais,
e máximas para o capital.
As autoras mencionam ainda que nesse confronto, o SUS vem se efetivando
como espaço de disputa política para os dois projetos. Por um lado, é nele que se
materializa a luta por uma política de acesso universal. Por outro, na medida em que a
dotação de verba pública para a saúde vem sendo restringida ano após ano, é reduzida a
sua capacidade em promover o acesso universal. Salientam que por sua característica, o
SUS se conforma como a única alternativa das classes pauperizadas para ter acesso à
saúde. O que se infere é que o Projeto Privatista, em articulação ao Estado, vem se
sobrepondo ao Projeto da Reforma Sanitária, e garantindo sua hegemonia a partir da
década de 90.
Bravo e Marques (2013) prosseguem que o projeto saúde articulado ao mercado
ou projeto privatista está pautado na Política de Ajuste que tem como principais tendências
a contenção dos gastos com racionalização da oferta e descentralização com isenção de
responsabilidade do poder central. A tarefa do Estado, nesse projeto, consiste em garantir
um mínimo aos que não podem pagar, ficando para o setor privado o atendimento dos que
têm acesso ao mercado.
Portanto, a privatização gera uma dualidade discriminatória entre os que podem
e os que não podem pagar pelos serviços, no mesmo passo em que propicia um nicho
lucrativo para o capital, em especial para segmentos do capital nacional que perderam
espaços com a abertura comercial. É o caso da política de saúde, sendo esse aspecto
designado como universalização excludente, que quebra a uniformização e a gratuidade dos
serviços. Na verdade, a privatização no campo das políticas sociais públicas compõe um
movimento de transferências patrimoniais, além de expressar o processo mais profundo da
supercapitalização. Outro aspecto, destacado é a seletividade associada à focalização que
assegura acesso apenas aos extremamente pobres (BEHRING; BOSCHETTI, 2011).
Segundo Faveret Filho e Oliveira (1989 apud BRAVO, 2011, p. 317), destacam
que “esse processo de universalização tem sido excludente, em decorrência dos
mecanismos de racionamento (queda na qualidade dos serviços, filas) que expulsa do
sistema diversos segmentos sociais, entre eles, as camadas médias urbanas”.
A focalização revela-se pelo duplo significado (“dar pouco a quem tem pouco”) e
pela sua aplicação restrita à esfera da distribuição dos serviços, uma proposta de mitigar a
pobreza com recursos retirados dos próprios trabalhadores, e não uma proposta de
distribuição da renda que visaria erradicar a pobreza. Tudo bem considerado, e se
quisermos manter o estilo não muito adequado das fórmulas rápidas, diríamos que o
princípio neoliberal da focalização não significa, ao contrário do que pretendem os
ideólogos, “dar mais a quem tem menos”, mas sim “devolver pouco àqueles que os
governos neoliberais tiram mais” (BOITO JÚNIOR, 1999).
Particularmente, no governo Fernando Henrique Cardoso, a contrarreforma do
Estado realiza-se de maneira ainda mais ofensiva e estruturada, com a criação do MARE,
conduzida por Bresser Pereira. O projeto de Reforma Administrativa do Estado foi aprovado
em quase sua totalidade, situando a saúde como área não exclusiva do Estado e, portanto,
sendo passível de ter seus serviços prestados por organizações sociais, ou seja, sociedades
de direito privado, sem fins lucrativos, que administrariam com uso dos cofres públicos
(SOARES, 2013).
Inicia-se, então, o processo de “publicização do Estado”, com a transformação
dos serviços não exclusivos de Estado em propriedade pública não estatal e sua declaração
como organização social. Registra-se que as organizações, por não estarem sujeitas às
normas do Direito Administrativo, estão livres da obrigação de concurso público, de
controles formais por parte do Estado, ficando sujeitas apenas a avaliação dos resultados.
Bresser Pereira “engenhosamente”, utilizou o termo publicização em seu plano de reforma,
ao indicar a convocação da sociedade à participação e controle social, bem como à gestão
de serviços sociais e científicos, o que culminaria na ampliação dos ideais democráticos e
de cidadania. Contudo, o que ocorreu foi uma denominação ideológica dada à transferência
das questões públicas de responsabilidade do Estado ao terceiro setor e o repasse de
recursos públicos para o setor privado (MONTAÑO, 2003; SILVA, 2003; BORLINI, 2010).
Ainda, pode ser apontada, dentro da reforma da saúde a Norma Operacional
Básica de 1996 (NOB/96), que regula os planos e seguros privados de saúde, bem como a
desarticulação da atenção básica, da secundária e terciária, dividindo o SUS em dois
blocos: o hospitalar que possui vários convênios com a rede privada e assistência básica
representadas pelos diversos programas do Ministério da Saúde, que na verdade são
programas com caráter público, mas destinados aos pobres (SOARES, 2013).
Tomando como referência o uso dos recursos públicos para os dois blocos de
assistência do SUS: o hospitalar e a assistência básica, tem-se que no ano de 2015, a
Atenção Básica recebeu R$ 19,2 bilhões, indicando um esvaziamento da promoção à
Saúde. Observa-se que mesmo com a expansão da Atenção Básica, onde estão as equipes
de Saúde da Família, laboratórios para exames, e outros pontos de entrada dos usuários no
SUS, que os valores executados não são suficientes para um atendimento resolutivo e
universal (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES-FISCAIS DA RECEITA FEDERAL
DO BRASIL; FUNDAÇÃO ANFIP DE ESTUDOS DA SEGURIDADE SOCIAL E
TRIBUTÁRIO, 2016; VASCONCELOS; COSTA, 2014).
Em contrapartida, a assistência hospitalar e ambulatorial com R$ 48,3 bilhões foi
a programação que mais recebeu recursos, sendo que a maior parte destas ações são de
alto custo, incluindo procedimentos e exames complexos prestados por convênios e
prestadores privados. Isso demostra que a privatização e mercadorização da saúde se dão
tanto no meio dos Planos Privados de Saúde, como no interior do setor público, através da
compra destes serviços no setor privado, uma vez que, historicamente, não houve no
Estado em construção a manutenção de uma rede hospitalar pública de qualidade e auto-
suficiente. Permite-se sinalizar uma contradição entre o discurso do Ministério da Saúde da
reorganização do sistema e a busca de um modelo de saúde que supere a lógica
hospitalocêntrica e medicalizante (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS AUDITORES-FISCAIS
DA RECEITA FEDERAL DO BRASIL; FUNDAÇÃO ANFIP DE ESTUDOS DA
SEGURIDADE SOCIAL E TRIBUTÁRIO, 2016; VASCONCELOS; COSTA, 2014).
Enfim, segundo Bravo (2006 apud SOARES, 2013, p. 98), “há a continuidade de
uma política que se efetiva de forma focalizada, precarizada, com ênfase na Estratégia
Saúde da Família e na assistência emergencial, bem como na fragmentação da concepção
da seguridade social”.
IV. CONCLUSÃO
O artigo revelou que mudanças nas relações entre o Estado e a sociedade civil
têm se processado, orientadas pelo neoliberalismo, traduzidas nas políticas de ajuste
recomendadas pelos organismos multilaterais nos marcos do “Consenso de “Washington”.
Nesse sentido, iniciou-se um processo neoliberal, estratégia hegemônica de reestruturação
geral do capital e que se desdobra na contrarreforma do Estado.
Conforme visto, nos discursos de Bresser Pereira, idealizador da Reforma do
Estado, o Estado é responsabilizado pela ineficiência em sua capacidade de
governabilidade, e o mercado e a iniciativa privada são postos como esfera da eficiência.
Assim, tem-se como resultado um processo de privatização da coisa pública, com o Estado
cada vez mais submetido aos interesses econômicos e políticos no cenário internacional e
nacional, em nome das exigências do grande capital financeiro.
Conclui-se, a partir das análises realizadas que as prioridades dadas ao capital
sustentam a permanência de uma política neoliberal, pautada em políticas
macroeconômicas que levam a diminuição de gastos públicos como os direitos sociais, em
destaque à saúde, portanto, observa-se um estado de afastamento da efetivação da política
de direitos universais, que vem determinando as difíceis condições dos serviços de saúde
conveniados do SUS.
A opção do governo em direcionar o uso do recurso público para o mercado
deixa claro que o Estado tem priorizado a política econômica com seus interesses privados
do capital, em detrimento da política social e das demandas do trabalho, motivo pelo qual
direciona as políticas da seguridade social para a direção da privatização, focalização e
monetarização da proteção social.
É incontestável que o SUS é resultado de uma longa trajetória de luta
empenhada pela classe trabalhadora, porém o prosseguimento do SUS universal e público é
sem dúvida um desafio político, pois supõem a garantia: do financiamento do subsistema
público, a redefinição da articulação público-privada, a redução das desigualdades de renda,
poder e saúde, e, sobretudo o rompimento com o modelo hegemônico de saúde
hospitalocêntrico, medicalizante e curativo, que beneficia o setor privado e a perspectiva
mercadorizante da saúde mediante aos atendimentos privados em hospitais, clínicas e
laboratórios.
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