movimentos socioterritoriais, a contrarreforma agrária do banco

MOVIMENTOS SOCIOTERRITORIAIS, A CONTRARREFORMA AGRÁRIA

DO BANCO MUNDIAL E O COMBATE À POBREZA RURAL

Movimentos socioterritoriais.indd 1 12/05/2014 15:59:41

A Coleção CLACSO-CROP tem como objetivo principal difundir pesquisas inéditas e de alta qualidade sobre a temá-tica da pobreza. A coleção inclui os resultados das atividades que se realizam no marco do programa CLACSO-CROP de Estudos sobre a Pobreza na América Latina e no Caribe (bol-sas de estudos, seminários internacionais e outros projetos es-peciais), assim como pesquisas relacionadas com esta proble-mática que realizam os membros da rede CLACSO-CROP e que são aprovadas por avaliações acadêmicas externas.


Secretário Executivo

Pablo Gentili

Secretário Executivo-adjunto

Fernanda Saforcada

Comitê Diretivo [Membros Titulares]

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Leticia SalomónDICU/UNAH, Honduras

Eduardo Toche MedranoDESCO, Peru

Juan PonceFLACSO, Equador

Suzy Castor Pierre-CharlesCRESFED, Haití

Lucio OliverCEL/FCPyS y PPEL/UNAM, México

Diretor Científico

Alberto D. Cimadamore

Comitê Científico

Thomas PoggeChair of CROP Scientific CommitteeLeitner Professor / Philosophy and International Affairs Yale University, USA

Julio BoltvinikProfessor / Centro de Estudios Sociológicos, El Colegio de México, México

Atilio BoronProfessor / Programa Latinoamericano de Educación a Distancia en Ciencias Sociales (PLED), Argentina

Jean ComaroffProfessor / Department of Anthropology, University of Chicago, USA

Bob DeaconProfessor / Department of Sociological Studies Univer-sity of Sheffield, UK

Shahida El BazDr. / The National Center for Social and Criminological Research (NCSCR), Egypt

Sara HossainLawyer / Supreme Court, Bangladesh

Asunción Lera St. ClairProfessor / Department of Sociology, University of Ber-gen, Norway

Karen O’brienProfessor / Department of Sociology and Human Geo-graphy, University of Oslo, Norway

Adebayo OlukoshiDirector / United Nations African Institute for Economic Development and Planning (IDEP), Senegal

Isabel OrtizAssociate Director / UNICEF

Shahra RazaviResearch Co-ordinator / United Nations Research Insti-tute for Social Development (UNRISD)

CLACSOConsejo Latinoamericano de Ciencias SocialesConselho Latino-americano de Ciências Sociais

Estados Unidos 1168C1101AAX, Buenos Aires, ArgentinaTel. [54 11] 4304 9145 – Fax [54 11] 4305 0875<www.clacso.org><[email protected]>

CROP Comparative Research Programmeon Poverty

P.O. Box 7800N-5020 Bergen, NoruegaTel. 47 5558 9744 <www.crop.org><[email protected]>


Coleção CLACSO-CROP

MOVIMENTOS SOCIOTERRITORIAIS, A CONTRARREFORMA AGRÁRIA

DO BANCO MUNDIAL E O COMBATE À POBREZA RURAL

OS CASOS DO MST, CONTAG E MARAM: SUBORDINAÇÃO E RESISTÊNCIA CAMPONESA

Eraldo da Silva Ramos Filho


La responsabilidad por las opiniones expresadas en los libros, artículos, estudios y otras colaboraciones incumbe exclusivamente a los autores firmantes, y su publicación no necesariamente refleja los puntos de vista de la Secretaría Ejecutiva de CLACSO.

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Editor Responsable Pablo Gentili, Secretario Ejecutivo de CLACSO

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Primera edición en españolLa construcción social de la pobreza en América Latina y el Caribe. Perspectivas alternativas y críticas (Buenos Aires: CLACSO, julio de 2013)

ISBN 978-987-1891-60-3© Consejo Latinoamericano de Ciencias SocialesQueda hecho el depósito que establece la Ley 11723

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ISBN: 978-85-64421-59-2

Primeira edição em portuguêsMovimentos socioterritoriais, a contrarreforma agrária do Banco Mundial e o combate à pobreza rural: os casos do MST, Contag e Maram: subordinação e resistência camponesa (São Paulo: Clacso |, Maio de 2014)

© Consejo Latinoamericano de Ciencias SocialesQueda hecho el depósito que establece la Ley 11723

Patrocinado pela Agência Norueguesa de Cooperação para o Desenvolvimento



A responsabilidade pelas opiniões expressadas nos livros, artigos, estudos e outras colaborações é exclusivamente dos autores e sua publicação não necessariamente reflete os pontos de vista da Secretaria Executiva do CLACSO.


Dedico este trabalho a todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores que resistem contidianamente nos empreendimentos da contrarreforma

agrária do Banco Mundial.

Cada uma das suas formas de resistência aporta uma incomensurável contribuição à luta mundializada dos

camponeses contra o capital.












































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AgrAdecimentos

Para um trabalho desta natureza e com esta complexidade e amplitude é preciso uma rede de contribuições diversas. Nestes momentos de homenagens e agradecimentos a memória nos prega peças, guardando no esquecimento pes-soas importantes, mas o coração uma vez tocado jamais permite que isto ocorra em definitivo.

Um agradecimemento especial aos dirigerentes dos movimentos socioterri-toriais Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – Secretaria de Sergipe, Federação dos Trabalhos na Agricultura do Estado de Sergipe, Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado, pelo apoio político para realização deste estudo.

Meus sinceros agradecimentos aos estudantes de graduação Rayane Mara Batista, Reuel Machado Leite, Valdiê Alves dos Santos, Jorge Edson Santos, José Hugo Feitosa Silva, Laiany Rose Souza Santos, Marcus Vinícius Feitosa Cruz, que fizeram o Laboratório de Estudos Rurais e Urbanos da Universidade Federal de Sergipe, no período compreendido entre 2009 – 2010 e que, comi-go, trilharam os caminhos do fazer científico, contribuindo com o criterioso e exaustivo trabalho de gerenciamento do Banco de Dados da Reforma Agrária de Mercado, fundamental para as análises deste estudo.

À minha companheira Laiany Rose Souza Santos que me auxiliou com a or-ganização familiar e com as transcrições de parte das entrevistas.

Registro minha gratidão aos ativistas Frei Rodrigo de Castro Amédée Péret, Murilo Mendonça Oliveira de Souza, Igino Marcos e todos os companheiros


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da Animação Pastoral e Social no Meio Rural (APR) e Ação Franciscana Espe-rança e Solidariedade (Afes), por compartilhar as saborosas comidas e cachaças mineiras, durante empolgantes rodas de prosa sobre as lutas por terras no Triân-gulo Mineiro.

Meus cordiais votos de amizade a todos os colegas pesquisadores do Labo-ratório de Estudos Agrários (Lagea) do Instituto de Geografia (IG) da Univer-sidade Federal de Uberlândia (UFU), que me receberam nos seu ambiente de trabalho durante o tempo que estive em Minas Gerais.

Às amigas e aos amigos do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Re-forma Agrária (Nera/Unesp) com quem venho dialogando permanente sobre a (re)configurações da questão agrária brasileira.

Ao Programa de Pós-graduação em Geografia da Unesp – campus de Presi-dente Prudente que deu aval à candidatura do projeto que originou esta pes-quisa.

Abraços fraternos às companheiras e companheiros que integram o Grupo de Trabalho em “Desenvolvimento Rural: Disputas territoriais, Camponeses y Descolonialidade”, do Clacso, os quais me possibilitaram perceber a interco-nexão global-local dos processos de subordinação e resistência dos camponeses latino-americanos.

Meus agradecimentos ao jovem pesquisador Geraldo Inácio Martins pela hospedagem solidária na cidade de Uberlândia.

Grato ao Dr. Bernardo Mançano Fernandes (Nera/Unesp) pela leitura do manuscrito e oportunas sugestões.

Minha homengem, respeito e admiração ao Dr. João Cleps Júnior (Lagea/UFU) pela confiança depositada na supervisão do estágio de pós-doutorado que originou este estudo.


Índice

Prefácio13

Introdução17

Capítulo I:A influência do Banco Mundial na formulação das políticas

de combate à pobreza rural e reforma agrária no Brasil29

Capítulo II:O processo de (des)(re)territorialização do campesinato

por meio das políticas de crédito fundiário45

Capítulo III:A tentativa de assepsia dos conceitos de questão agrária e

reforma agrária no Brasil81

Capítulo IV:Os movimentos socioterritoriais:

conceito, organização e programa de ação99

Capítulo V:Resistência e subordinação do campesinato na contrarreforma agrária

de mercado: os casos da Fetase, do MST e do Maram125

Considerações finais251

Bibliografia267


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Prefácio

Este livro, resultado do projeto de investigação “Estratégias contra a pobre-za: desenhos do norte e alternativas do sul”, selecionado pelo Concurso do Pro-grama Clacso-Crop de estudos sobre pobreza na América Latina e Caribe e de pesquisas em nível de pós-doutorado, realizadas entre os anos de 2009 e 2010, na Universidade Federal de Uberlândia, apresenta uma contribuição relevante para a temática da reforma agrária e das políticas de desenvolvimento e combate à pobreza rural no Brasil.

O tema central envolve, como ponto de partida, o contexto neoliberal do final dos anos 1990, em que o mercado passa a atuar fortemente em setores es-tratégicos do desenvolvimento do país, analisando a influência do Banco Mun-dial (Bird) na formulação das políticas de combate à pobreza rural e reforma agrária. Foi feito um estudo comparativo do processo de (des)(re)territorializa-ção do campesinato por meio da Reforma Agrária de Mercado (RAM) reali-zado por três movimentos socioterritoriais em realidades geográficas distintas: a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e o Mo-vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no estado de Sergipe, e o Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado (Maram), em Minas Gerais.

A partir das pesquisas desenvolvidas em sua tese de doutorado, defendida em 2008 na Unesp/Presidente Prudente, intitulada “Questão agrária atual: Ser-gipe como referência para um estudo confrontativo das políticas de reforma agrária e reforma agrária de mercado (2003-2006)”, sob orientação do prof.


Prefácio

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Bernardo Mançano Fernandes, Eraldo da Silva Ramos Filho apresenta as di-mensões do poder sobre o território, debatendo a (des)(re)territorialização do campesinato e a contrarreforma agrária do Banco Mundial. Realiza, desta vez, a ampliação das pesquisas envolvendo duas realidades distintas (no Norte e no Sul do Brasil) e mostra que o MST ingressa no Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) apenas no estado de Sergipe, enquanto a Contag segue con-ferindo apoio político-operacional à política nacionalmente, juntamente com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf ).

A Reforma Agrária de Mercado resulta de um acordo, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, de concessão de empréstimos pelo Banco Mun-dial para que os governos dos países credores criassem programas de financia-mento voltados à compra de terras por camponeses pobres, sem-terra ou com pouca terra, por meio de três programas: Cédula da Terra, Banco da Terra e Crédito Fundiário de Combate à Pobreza.

O Projeto Cédula da Terra insere-se no conjunto de medidas para o esva-ziamento do processo de reforma agrária. O objetivo do Cédula era financiar a compra de terras por mais de 15 mil famílias. Na análise crítica dos resultados deste projeto, o autor demonstra a subalternidade dos trabalhadores rurais, que acabam por adquirir terras neste projeto, às oligarquias rurais dominantes. Por sua vez, um dos propósitos do Banco da Terra era financiar a compra de terras e a infraestrutura básica para trabalhadores rurais, visando a “contribuir para a quebra do ciclo da exclusão social e gerar emprego e renda no campo, sendo um importante mecanismo para otimizar a melhoria das condições da produ-ção rural, a modernização tecnológica, a fixação do homem no campo e a me-lhoria do seu bem-estar, conforme exposto nos documentos do Ministério do Desenvolvimento Agrária (MDA)”. Tal programa surgiu para dar continuidade e ampliar o projeto-piloto Cédula da Terra, implementado de maneira experi-mental a partir do ano de 1997 em alguns estados (Maranhão, Ceará, Pernam-buco, Bahia e Minas Gerais).

No cenário de mudanças da política de reforma agrária, entra em cena um novo modelo, que consistia em superar o processo baseado na desapropriação por interesse social pela forma centrada na compra direta de terras, envolvendo proprietários de imóveis rurais e pequenos agricultores minifundistas e agricul-tores sem-terras, com a mediação do poder público em nível local, estadual e nacional. Alegava-se que um dos objetivos da implantação da “reforma agrária de mercado” era capacitar o governo a acelerar o acesso à terra, reduzindo os dis-pêndios governamentais e as despesas com indenizações de imóveis rurais desa-propriados, para criar “mecanismos mais eficazes e menos onerosos que a refor-ma agrária clássica”. Contudo, não se efetiva um processo de democratização no campo mas, ao contrário, de afirmação das injustiças sociais. Esses programas


João Cleps Jr.

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terminam por beneficiar o latifúndio improdutivo com o pagamento à vista da terra, com a aquisição de terras devolutas, muitas de má qualidade e com preço inflacionado. Enfim, a solução de mercado para a reforma agrária acabou, mais uma vez, beneficiando os grandes proprietários de terras.

Importantes processos agrários são desvelados, mostrando a subordinação e resistência do campesinato brasileiro, particularmente no bojo dos movimen-tos socioterritoriais Contag e MST, no estado de Sergipe, e Maram, no estado de Minas Gerais. Nesse estado, a partir do estudo sobre camponeses mutuários do Banco da Terra da mesorregião do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, ob-servou-se a criação de um movimento social com vistas a reivindicar a solução dos problemas de endividamento financeiro, o Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado (Maram). Demonstra-se que na existência do campesinato estão os processos dialéticos de subalternidade e resistência. Outra importante constatação, no entendimento do autor, é que o Maram constitui um novo movimento socioterritorial.

É uma obra com múltiplas contribuições: um estudo sobre a (re)criação do campesinato, em que se debate também conceitos e temas como território, agronegócio, políticas públicas, questão agrária, reforma agrária, soberania ali-mentar, relação campo-cidade, entre outros. O estudo contém depoimentos de entrevistados, a partir das histórias de vida dos camponeses, captura infor-mações qualitativas sobre os processos de implantação e desenvolvimento das áreas , os dilemas, potencialidades e resistências em curso, a partir de uma abor-dagem histórico-estrutural, mostrando as dificuldades e alternativas encontra-das pelas famílias assentadas nas regiões estudadas.

Na condição de companheiro de equipe em projetos de investigação e de coo peração, tenho o privilégio de compartilhar da amizade do autor e do co-nhecimento das temáticas agrárias no Brasil e em outros países. Pude, também por meio deste pesquisador, aprofundar outros estudos em Minas Gerais e Ser-gipe sobre a questão agrária e a temática da RAM, nas diversas discussões rea-lizadas nos encontros no âmbito da Rede Dataluta de pesquisa e por meio da supervisão do Estágio de Pós-Doutorado.

A seriedade e o comprometimento do jovem pesquisador com os movi-mentos socioterritoriais e com a questão camponesa reforçam a importância da leitura do livro, principalmente para quem procura, ao mesmo tempo, unir o rigor teórico-metodológico, depoimentos e o diálogo do pesquisador com os trabalhadores rurais e militantes e o compromisso com as mudanças na socie-dade brasileira.

João Cleps Jr.

Uberlândia-MG, julho de 2013.


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introdução

Comenzar es difícilPero vamos dando los pasos

Por un futuro Que los hijos puedan celebrar

Somos el vientoQue baila y que canta

Se estamos juntos Somos huracán!

(Somos Viento – Amparanoia)

O final do século XX foi marcado por um conjunto de transformações nos paí-ses do Sul decorrentes da reestruturação produtiva, do padrão de valorização do capital e das reformas impostas por organizações financeiras supranacio-nais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Denominadas como reformas de primeira geração, impuseram a redução do papel do Estado na sociedade me-diante privatizações do setor público e investimentos na empresa privada, pro-moveram a descentralização e a desregulamentação da economia, bem como o estabelecimento de mecanismos de controle dos trabalhadores como formas de eliminar os padrões societários inadequados com o desenvolvimento da econo-mia de mercado.


Movimentos socioterritoriais, a contrarreforma agrária do banco mundial e o combate à pobreza rural

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O conjunto das medidas das reformas de primeira geração, contraditoria-mente, geraram o agravamento dos problemas nos países do Sul, desencadean-do o acirramento da tensão social e da intensificação da oposição ao modelo neoliberal. Diante desta situação, o Banco Mundial (BM) viu-se na necessidade de controlar as pressões e os movimentos sociais, bem como aprofundar a im-plementação do modelo. A fórmula encontrada para empreender este programa foi conduzir, a partir dos anos 1990, uma segunda onda de ajustes, cujos funda-mentos residem no aprofundamento da redução do papel do Estado, adotando medidas gerenciais na administração pública, imposição da democracia liberal aos países credores, bem como incentivos ao crescimento econômico, às ações de alívio da pobreza e a liberalização do mercado de terras. Corroboro com o pensamento de Toussaint (2006, p. 20) quando afirma que

La agenda programada tiende a la reducción de la pobreza mediante el crecimiento, el libre juego de fuerzas del mercado, el libre comercio y la menor intervención posible de los poderes públicos. La agenda oculta, la que se aplica en realidad, tiende a la sumisión de la esfera públi-ca y de la privada de toda la sociedad humana a la lógica de la búsqueda del máximo benefi-cio en el marco del capitalismo. La puesta en práctica de esta agenda implica la reproducción de la pobreza (no su reducción) y el aumento de la desigualdad. Implica un estancamiento, cuando no una degradación, de las condiciones de vida de una gran mayoría de la población mundial, combinada con una concentración cada vez mayor de la riqueza. Implica así mismo una prosecución de la degradación de los equilibrios ecológicos, que pone en peligro el futuro de la humanidad.

Neste contexto, a questão da terra assumiu condição estratégica para o desenvolvimento rural e crescimento econômico sustentável, sendo o tema da re-forma agrária capturado pelas diretrizes neoliberais e voltado para aliviar a pobreza (Banco Mundial, 2002a). Em diferentes países credores, o BM tem difundido um pacote de cinco conjuntos de políticas agrárias (Rosset, 2004): administração da terra, privatização de terras públicas e comunais, forma-ção dos mercados de terras, criação de fundos de terras e reforma agrária de mercado. Segundo este estudioso, não há um sequenciamento rígido e prees-tabelecido na implantação destes conjuntos de políticas. Elas são introduzi-das, experimentadas, expandidas, aprofundadas, substituídas ou eliminadas de acordo com o jogo de forças vigente no interior dos respectivos Estados-Nações credores do Banco.

O caso brasileiro pode ser considerado uma referência na difusão deste pa-cote de conjuntos de políticas, tendo em vista a existência de programas e/ou projetos em todos os conjuntos apresentados, os quais alguns exemplos são: o projeto de cadastro e georreferenciamento dos imóveis rurais, os mercados de arredamentos de terras, o Programa de Consolidação dos Assentamentos de Reforma Agrária (PAC), os diferentes projetos de reforma agrária de mercado



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(RAM) e a Medida Provisória 458/20091, que dispõe sobre a regularização fun-diária das ocupações de terras localizadas em áreas da União, no contexto da Amazônia Legal.

A RAM resulta de um acordo de concessão de empréstimos pelo Banco Mundial para que os governos dos países credores criem programas de finan-ciamento voltados à compra de terras por camponeses pobres sem-terra ou com pouca terra. Sob o ardil de combater a pobreza rural descentraliza-se a execução das políticas de terras para as unidades da federação e/ou municípios, com cen-tralidade na mercantilização da terra.

Enquanto em diferentes países, em virtude das lutas contestatórias reali-zadas pela sociedade ou das ações e posições políticas dos governos, a reforma agrária de mercado foi suspensa e/ou abortada, no Brasil esta política avançou, seja no volume de área comprada, seja na elaboração de um arranjo político, normativo, legal ou orçamentário favorável ao Programa, possibilitando a di-versificação das linhas de financiamento. Todos são vetores que a institucionali-zaram, reforçando o discurso governamental de ser um instrumento complemen-tar à reforma agrária, com centralidade no combate à pobreza rural.

A implantação da RAM no Brasil tem mobilizado diferentes atores e sujeitos sociais como: o Estado e os governos nos níveis federal, estadual e municipal, os movimentos socioterritoriais camponeses, movimentos sindicais de trabalhado-res rurais, agricultores familiares, parlamentares, ruralistas, pesquisadores, Or-ganizações Não Governamentais, segmentos da Igreja Católica, universidades etc. As formulações, posições e ações em torno da RAM expressam faces da luta de classes no campo brasileiro, produzindo conflitualidades de diferentes natu-rezas, dados os impactos socioterritoriais promovidos.

Neste contexto, realizei este estudo utilizando as lentes da ciência geográfica com o objetivo de analisar comparativamente o processo de (des)(re)territoria-lização do campesinato através da reforma agrária de mercado realizado por três movimentos socioterritoriais: a Confederação Nacional dos Trabalhadores na

1 A publicação desta Medida Provisória pelo governo federal, em 10 de fevereiro de 2009, foi questionada pelo conjunto dos movimentos camponeses, estudiosos do agrário e instituições ligadas à defesa da reforma agrária. Para a Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) a Medida iguala os direitos, sobre as referidas áreas, de posseiros e grileiros. Os primeiros são agricultores familiares que ocupam há décadas áreas da União em regime de produção familiar, e de acordo com a Constituição Federal têm o direito à legitimação de posse. Já os grileiros, são sujeitos que praticam a apropriação de grandes porções de terras da União, seguida da falsificação dos títulos de propriedade com vistas à especulação e/ou implantação de projetos imobiliários ou agropecuários; este proce-dimento, de acordo com a legislação brasileira, é considerado crime. Em manifesto da Abra afirma-se que “A MP 458, nada mais é do que um enorme empreendimento imobiliário a favor de grileiros contraventores – e outros interesses do capital – que se apropriaram do patrimônio público e contra as populações com legítimo direito às terras públicas arrecadadas pela União: posseiros, quilombolas, povos indígenas e outros sem-terra. Dizer o con-trário é desprezar as evidências de mais de trinta anos de pesquisas, encomendadas e pagas pelo próprio governo, para a avaliação de intervenções públicas supostamente voltadas às populações pobres e/ou vítimas do processo da expansão do capital no campo” (Associação Brasileira de Reforma Agrária, 2009).



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Agricultura, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e o Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado.

Em estudo anterior, durante a elaboração da minha tese de doutoramento (Ramos Filho, 2008a) na qual confrontei os impactos socioterritoriais da re-forma agrária de mercado com o Programa Nacional de Reforma Agrária, con-siderado durante o período de implantação do II Plano Nacional de Reforma Agrária (2003 – 2006), constatei dentre outras reflexões que tal política fundiá-ria neoliberal tem sido ineficaz no que tange a atingir o objetivo pronunciado de combate a pobreza, uma vez que apenas a reproduz mediante a geração de desigualdades e que a RAM assume uma condição não apenas de instrumento complementar à reforma agrária mas, sobretudo, a partir da análise do seu pro-cesso de territorialização realiza, concomitantemente, uma concorrência com o programa de reforma agrária ao desarticular e/ou enfraquecer lutas por terras, cooptar lideranças políticas e movimentos socioterritoriais, promoção da mini-fundização e reprodução da pobreza e desigualdade.

Ao final da investigação, deparamos-nos com a informação de que os campo-neses mutuários do Banco da Terra da mesorregião do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, no Estado de Minas Gerais, haviam criado um movimento social com vistas a reivindicar a solução dos problemas de endividamento financeiro, o Mo-vimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado (Maram) e que, o Mo-vimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terras (MST) ingressava no Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) apenas no estado de Sergipe, enquanto que a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag ) seguia conferindo apoio político-operacional à política deste Programa, juntamente com a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf ).

A fim de avançar na compreensão deste processo, realizei esta investiga-ção que hora lhes apresento. No meu entender, faz-se necessária uma análise que contribua com o desvendamento das formas de subordinação impostas aos camponeses e suas organizações pelo ingresso na reforma agrária de mercado e das formas de resistência construídas cotidianamente pelo campesinato nos em-preendimentos de RAM e nas três organizações camponesas supracitadas, a fim, por um lado, de identificar alternativas em construção desde baixo, com ênfase no combate à pobreza, premissa maior do programa Clacso-Crop.

Neste intuito, ampliei meu questionamento. Efetivamente, a reforma agrária de mercado de instrumento complementar (conforme propalado no discurso dos gestores do programa) e concorrente (Ramos Filho, 2008) à reforma agrá-ria, não assumira a condição de instrumento de contrarreforma agrária travesti-do de complemento à reforma agrária? Quais as relações sociais e os conteú dos dos espaços de socialização política construídos nos processos de acesso à terra fomentado pela Contag/Fetase, MST-SE e Maram no contexto da RAM? Qual



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a contribuição das diferentes concepções de (re)criação do campesinato vigen-tes entre estas organizações no desenvolvimento territorial rural e redução da pobreza? A adesão do MST-SE e a fundação do Maram criarão dinâmicas que trarão a RAM do território da economia para o território da política, criando a possibilidade de destruição desta política neoliberal por dentro ou gerará con-tradições internas nos Movimentos a ponto de enfraquecê-los?

A partir da análise dos processos de implantação de empreendimentos de RAM, nas experiências organizativas realizadas nos referidos movimentos so-cioterritoriais camponeses, busco analisar os processos de (re)criação subalter-nizada do trabalho familiar camponês, produzidos pelas diretrizes do referido programa e as formas de resistências do campesinato, bem como e os impactos sobre a redução da pobreza e a construção da emancipação do campesinato.

No intuito de esgotar as questões levantadas, elaborei os seguintes objeti-vos específicos: atualizar o Banco de Dados da Reforma Agrária de Mercado (BDRAM) na escala Brasil e construir o mapa da Geografia dos Empreendimen-tos de Reforma Agrária de Mercado no Brasil; analisar a influência teórica dos documentos do BM na formulação das políticas de reforma agrária e combate à pobreza rural no Brasil; comparar as formas organizativas dos camponeses liga-dos ao MST, Fetase e Maram, com vista à sua (re)criação mediante a compra de terras pelo PNCF; comparar os impactos socioterritoriais dos empreendimen-tos de RAM ligados às organizações selecionadas e seus efeitos sobre a pobreza; compreender o processo de subordinação e resistência do campesinato criado e recriado pela RAM e vinculado aos movimentos em foco. Espero propor aos movimentos socioterritoriais formas alternativas de desenvolvimento territorial rural a partir dos resultados obtidos neste estudo comparativo.

Esta é uma pesquisa quantitativa e qualitativa, com caráter comparativo en-tre a realidade manifesta dentre o grupo de camponeses mutuários da RAM, juntos aos três movimentos socioterritoriais camponeses em foco. Para alcançar a profundidade analítica almejada adotamos uma investigação nas escalas dos estados de Sergipe e Minas Gerais.

Dois esclarecimentos precisam ser realizados neste momento. O primeiro, apesar de tratar da análise dos impactos de uma política pública de âmbito na-cional, minha busca foi o processo socioterritorial em construção pelo campesi-nato frente às diretrizes desta, situada no contexto de uma ordem programática neoliberal globalizada. Decidi pela comparação das realidades em curso entre tais organizações, em detrimento de uma leitura comparativa entre as unidades da federação, o que não descarta meu reconhecimento das diferenças entre estas unidades da federação, a exemplo das condições edafoclimáticas, dos compo-nentes da questão agrária regional e correlação de forças nos campos sergipano e mineiro, em particular no Triângulo Mineiro.



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Isto me conduz à necessidade do segundo esclarecimento. A existência de uma questão agrária nacional, cuja problemática contém um conjunto de pro-cessos, dinâmicas e estruturas decorrentes do processo de formação socioeco-nômico-espacial do Brasil, seu conteúdo somente pode ser entendido se consi-derado o movimento histórico e as manifestações do global no local e do local no global. De modo que a compreensão da questão agrária nacional necessita uma análise das determinações globais, as formas de manifestações do local em seus movimentos de subordinação e resistência, sendo determinado, mas também produzindo determinações. É no local que o global pode ser inteligí-vel. Ao debruçar-se sobre escalas locais (como uma unidade da federação, uma microrregião, um município etc.) as evidências destes espaços nos revelam as características da problemática da questão agrária nacional e sua relação com as dinâmicas globais.

Portanto, apesar de tratarmos dos estados de Sergipe e Minas Gerais, esta pesquisa pretende contribuir com a atualização dos estudos sobre a questão agrária brasileira. Procurei perscrutar empreendimentos de reforma agrária de mercado escolhidos dentre aqueles coordenados pelos movimentos socioter-ritoriais delimitados, de acordo com a relevância das áreas para as respectivas organizações. Dada a quantidade de empreendimentos nas duas unidades da federação ligadas aos três movimentos, e a limitação das condições materiais e temporais para a realização do estudo, optei por estudar algumas experiências e não todos os empreendimentos, de modo que a situação destes abrange dife-rentes microrregiões geográficas do estado de Sergipe e diferentes municípios de uma microrregião geográfica do estado de Minas Gerais, a única em que se encontra a ação do Maram.

A produção de informação qualitativa ocorreu mediante a realização de entrevistas semiestruturadas junto a camponeses mutuários nos empreendi-mentos de reforma agrária de mercado, ligados às três organizações em tela. No Estado de Sergipe, foram estudados os empreendimentos ligados a Fede-ração dos Trabalhadores na Agricultura de Sergipe (Fetase): Associação Co-munitária dos Trabalhadores Rurais de Salgado e Associação de Desenvolvi-mento dos Pequenos Produtores da Comunidade Senhor do Bonfim, situados respectivamente nos municípios de Salgado e Porto da Folha. O primeiro situa-se na microrregião de Lagarto, agreste sergipano, enquanto o segundo está na microrregião do Sertão do São Francisco, semi-árido sergipano.

Estes empreendimentos foram escolhidos por comporem o conjunto dos sete primeiros projetos contratados em Sergipe pelo PNCF através da linha de financiamento Combate à Pobreza Rural. Selecionamos estes empreendimen-tos tendo em vista a maior antiguidade na implantação, já que suas datas de criação são respectivamente 10/4/2003 e 8/4/2003. Desde o seu período de im-



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plantação realizei visitas de campo nos anos de 2005, 2006, 2007 no âmbito do estudo de doutoramento (Ramos Filho, 2008) e da investigação Avaliação dos programas de crédito fundiário do Banco Mundial no Brasil, realizada pela Rede Terra de Pesquisa Popular/Via Campesina Brasil, em 2005 (Via Campesina, 2006a). De modo que a implementação da bolsa Clacso-Crop possibilitou o retorno a estas áreas, potencializando o monitoramento do processo de desen-volvimento dos projetos ao logo dos anos.

No tocante a escolha dos empreendimentos ligados ao MST-SE e ao Maram considerei, concomitantemente, a maior antiguidade da implantação do em-preendimento, bem como as referências e indicações fornecidas pelos dirigen-tes das respectivas organizações a fim de encontrar experiências em curso que possibilitasse tratar de práticas de resistência e subordinação dos camponeses. Nesse sentido, realizei reunião com a coordenação estadual do MST, especifi-camente com o dirigente que contribui com a frente de atuação na RAM, com vista a identificação, no Banco de Dados da Reforma Agrária de Mercado, da-queles empreendimentos sob a coordenação da organização e qual o panorama do processo de desenvolvimento dos mesmos.

A partir disso, constatei que a maioria das áreas adquiridas no âmbito do PNCF encontrava-se em processo de implantação, tendo em vista ser recente a contratação dos empréstimos. Diante dessa condição, decidi pela seleção dos empreendimentos mais antigos, contratados pela linha de financiamento Ban-co da Terra. Na microrregião do Sertão do São Francisco, município de Poço Redondo, selecionamos o Povoado Bonsucesso, no qual parte das famílias que vivem na localidade há décadas decidiram pela compra da Fazenda Várzea, or-ganizados na Associação Nossa Senhora do Rosário e na Colônia de Pescadores Z-10, de Poço Redondo. No município de São Cristóvão, situado na região metropolitana de Aracaju, trabalhei com a Associação de Cooperação Agrícola Florestan Fernandes I e Associação de Cooperação Agrícola Florestan Fernan-des II, que compraram a Fazenda Aliança.

A seleção dos empreendimentos ligados ao Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado (Maram) ocorreu após a realização de uma reu-nião com os militantes da Animação Pastoral Rural (APR) e Ação Francisca-na Esperança e Solidariedade (Afes) que assessoram político-juridicamente o Movimento, com o intuito de angariar informações sobre a forma organizati-va deste, assim como reunir os contatos das principais lideranças. De posse de tais informações, foi possível reunir-me com estes, que indicaram nos dados do BDRAM aqueles empreendimentos que compõem tal articulação de associa-ções de trabalhadores rurais.

Diante desta informação, decidi pela realização do trabalho de campo nos empreendimentos implantados no município Ituiutaba, locus da gênese e cen-



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tro da construção da organicidade do Maram. Nesse sentido, foram visitados os empreendimentos contratados pela Associação dos Agricultores Familiares do Pontal, Associação dos Produtores Rurais do Córrego dos Pilões e Associação dos Agricultores Familiares Ribeirão dos Baús, situados no município de Ituiu-taba, sendo os dois primeiros criados em 2001 e o último em 2002.

Busquei, a partir das histórias de vida dos camponeses, capturar informações qualitativas sobre os processos de implantação e desenvolvimento das áreas, os dilemas, potencialidades e resistências em curso, a partir de uma abordagem histórico-estrutural. Realizei um esforço para manter uma proporcionalidade de gênero, geracional quando possível, na coleta de informações, dentro da prioridade de registrar a compreensão dos processos do dirigente da organi-zação em questão, bem como dos presidentes de associações de trabalhadores rurais, adotando a técnica da entrevista semiestruturada norteada pelo instru-mento do roteiro de entrevistas previamente elaborado, pois esta técnica “... ao mesmo tempo em que valoriza a presença do investigador, oferece todas as pers-pectivas possíveis para que o informante alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo a investigação” (Triviños, 1992, p. 146).

Neste contexto, foram realizadas 11 entrevistas com camponeses mutuários dos empreendimentos do Banco da Terra e Crédito Fundiário supracitados. Sendo um mutuário na Associação Comunitária dos Trabalhadores Rurais de Salgado, um na Associação de Desenvolvimento dos Pequenos Produtores da Comunidade Senhor do Bonfim e outro nas Associações Nossa Senhora do Rosário e Colônia de Pescadores Z-10 de Poço Redondo. Na Associação de Coope ração Agrícola Florestan Fernandes I e Associação de Cooperação Agrí-cola Florestan Fernandes II, entrevistei também um mutuário. Na Associação dos Agricultores Familiares do Pontal, foram entrevistados dois mutuários, na Associação dos Produtores Rurais do Córrego dos Pilões, um mutuário, na As-sociação dos Agricultores Familiares Ribeirão dos Baús, três mutuários foram meus depoentes. Algumas vezes, as entrevistas foram realizadas com a presença e/ou participação de outros membros da família e ou empreendimento que fi-caram livres para interferir e pronunciar-se, quando assim o desejaram.

Ademais destas áreas, no Estado de Sergipe, retornei ao empreendimento situado no município de Simão Dias, Associação Fruto da Terra Simão Dias, por ter sido este o primeiro empreendimento do Banco da Terra criado no Es-tado, e em pesquisas anteriores (Ramos Filho, 2008a; Via Campesina, 2006a) ter demonstrado avançado estágio de desterritorialização dos mutuários. Como os camponeses desta localidade não estavam, em visitas anteriores, articulados e/ou organizados em nenhuma organização camponesas, pareceu-me relevante, para os objetivos deste estudo, analisar a evolução dos problemas e das possibi-lidades dos trabalhadores construírem formas alternativas para suas realidades,



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desde sua condição de isolamento político e geográfico, com vistas a estabelecer correlações com os processos em curso nos demais empreendimentos e movi-mentos socioterritoriais enfocados neste estudo.

No decorrer da interpretação e da análise dos materiais coletados, procurei valorizar as conexões e/ou contradições entre as informações coletadas, o refe-rencial teórico e documental consultado, de modo a melhor captar os signifi-cados, pois,

(...) consideramos como válido o enfoque histórico-estrutural para nossa realidade social que (...) é capaz de analisar as causas e as consequências dos problemas, suas contradições, suas re-lações, suas qualidades, suas dimensões quantitativas, se existem, e realizar, através da ação, um processo de transformação da realidade que interessa (Triviños, 1992, p. 125).

Sobre a produção das informações quantitativas, adotei o Banco de Dados da Reforma Agrária de Mercado (BDRAM), criado por este pesquisador, no ano de 2005, para contribuir com a resolução de uma lacuna no que tange à divulgação pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário de microdados deste programa. Com a colaboração das equipes de investigadores do Núcleo de Es-tudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera) da Universidade Esta-dual Paulista e do Laboratório de Estudos Rurais e Urbanos (Laberur) da Uni-versidade Federal de Sergipe, procedi a conferência, atualização permanente e eliminação de duplicações, incompletudes e/ou inconsistências das informa-ções referentes aos empreendimentos de reforma agrária de mercado, criados na escala Brasil, no período 1998 a 2008.

Este instrumento quantitativo reúne dados do número de empreendimen-tos, nome dos projetos, número de famílias mutuárias, área comprada, ano de criação, tipologia de projeto de reforma agrária de mercado, por unidade da fe-deração e município. Nos estados de Sergipe e Minas Gerais reunimos, ainda, informações sobre os valores de aquisição das terras e infraestrutura comunitá-ria financiada. Além de, quando disponível, o nome do imóvel adquirido, com o intuito de facilitar sua localização durante a realização dos trabalhos de cam-po, já que as comunidades, na maioria das vezes, continuam sendo identificadas pelos antigos nomes das fazendas e em detrimento da nomenclatura adota pelas associações de agricultores.

O BDRAM reúne os respectivos dados fornecidos a partir das seguintes fontes: Ministério do Desenvolvimento Agrário, Secretaria de Reordenamento Agrário, Empresa de Desenvolvimento Sustentável do Estado de Sergipe, Em-presa Agropecuária do Estado de Sergipe. Por sua vez, os dados para os anos mais recentes têm sido coletados a partir da home page do Programa Nacional de Crédito Fundiário, na área restrita do Sistema de Informações Gerenciais/Sistema de Análise e Contratação (SIG/SAC). As informações compiladas estão disponíveis para usuários restritos e são acessadas individualmente por projeto



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em diferentes janelas do site do PNCF. Sua atualização pelos gestores é diária. Estes elementos tornam o trabalho com o BDRAM extremamente exaustivo, moroso e de difícil acompanhamento das atualizações do sistema e compilação no banco de dados, condições que exige uma disciplina de muitas horas de tra-balho diário com equipe numerosa. Em seguida à compilação das informações procedemos a sistematização das informações quantitativas coletadas em tabe-las, quadros, gráficos e mapas nas escalas Brasil, Sergipe e Minas Gerais, cuja análise foi procedida na sequência.

Trabalhei, também, com os dados da estrutura fundiária e situação da pro-dução agropecuária brasileira, publicados no Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Outro procedimento metodoló-gico adotado foi uma revisão bibliográfica permanente sobre os temas: ques-tão agrária, território, desenvolvimento territorial rural, campesinato e pobreza a partir dos estudos publicados pelo Programa de Estudos sobre Pobreza, do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais, além da desconstrução teóri-ca dos documentos do Bando Mundial que influenciam as políticas fundiárias neoliberais e as políticas de combate à pobreza no Brasil.

Foi realizado ainda o registro fotográfico das áreas, a fim de registrar espa-cialidades e territorialidades relacionadas ao tema da investigação. No percurso, ao visitar a Animação Pastoral no Meio Rural e Ação Franciscana Esperança e Solidariedade reuni material fílmico que documenta a gênese do Maram.

O percurso metodológico empregado permitiu o aprofundamento dos es-tudos sobre a questão agrária brasileira que, nesta primeira década do sécu-lo XXI, encontra-se marcada por elementos antigos e novos. Concentração fundiária exacerbada, manutenção do rentismo fundiário, ausência de uma política de reforma agrária efetiva, superexploração do trabalho e trabalho degradante, grilagem de terras, impactos ambientais e lutas de resistência dos trabalhadores são elementos históricos desta problemática estrutural de qual-quer sistema econômico. Nas últimas décadas, foram incorporados novos ele-mentos, como o agronegócio baseado na agricultura de precisão, sementes transgênicas, biotecnologia, nanotecnologia e, mais recentemente, a revalori-zação dos agrocombustíveis, a reforma agrária de mercado e a internaciona-lização de terras.

Relações sociais distintas são construídas em cada um dos instrumentos e políticas públicas de criação e recriação do campesinato, o que determina a consolidação de territórios e impactos socioterritoriais também distintos. Nos assentamentos de reforma agrária, os camponeses têm sido protagonistas da sua criação e recriação, mediante a realização de lutas pela terra. Por sua vez, no cré-dito fundiário, o capital rentista e financeiro determinam o tempo, o espaço, escala e condições de criação e recriação do campesinato.



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Desta condição coadjuvante dos trabalhadores, decorre uma menor capaci-dade organizativa e mobilizadora para atitudes reivindicatórias de direitos que possibilitem a permanência na terra. Ademais, a contratualidade do financia-mento das terras e as condições materiais dos empreendimentos têm dificultado a geração da renda necessária à subsistência e cumprimento dos compromissos bancários. Neste contexto, o presente projeto de pesquisa científica pretende perscrutar os fatores condicionantes dos impactos socioterritoriais advindos da implantação dos empreendimentos de crédito fundiário nos estados de Sergipe e Minas Gerais.

Tal empreitada tem como principal motivação a necessidade precípua de construir formulações teórico-metodológicas no campo das Ciências Humanas que possam, assim, contribuir com o fortalecimento da interpretação geográfica e, a partir de então, potencializar ações possíveis de desenvolvimento territorial rural em prol do campesinato mais pobre.

Este livro está estruturado em cinco capítulos e considerações finais. O pri-meiro capítulo denomina-se A influência do Banco Mundial na formulação das políticas de combate à pobreza e reforma agrária no Brasil; neste, recupero, siste-matizo e desconstruo teoricamente documentos e estratégias adotados por esta instituição financeira supranacional na formulação programática para estes te-mas. Busco estabelecer correlações com políticas públicas em curso no Brasil.

O segundo capítulo, intitulado O processo de (des)(re)territorialização do campesinato por meio das políticas de crédito fundiário, desvenda as bases progra-máticas construídas no último decênio com vistas à criação e recriação do cam-pesinato por meio de tais políticas. Debato, ainda, os números da territoriali-zação desta classe social a partir das informações quantitativas, representando tanto sua distribuição espacial, quanto confrontando com os dados da política nacional de reforma agrária, com vistas a identificar a posição da RAM nos pro-gramas de acesso a terra para o campesinato brasileiro na atualidade.

Este percurso demonstrou a necessidade de elaborar uma seção destinada ao desvendamento da Tentativa de assepsia dos conceitos de questão agrária e reforma agrária no Brasil, estruturada no terceiro capítulo. O quarto capítulo prepara o terreno para a análise sobre os processos em curso no âmbito das organizações estudadas e, sob o título de Os movimentos socioterritoriais: conceito, organiza-ção, estratégia e programa de ação, delimita conceitualmente movimento socio-territorial e recupera, brevemente, os históricos da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mer-cado (Maram).

No quinto capítulo, reúno as análises os sobre os impactos socioterritoriais da provocados por este instrumento de criação e recriação do campesinato,



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com ênfase, conforme o título, nos movimentos de Resistência e subordinação do campesinato na reforma agrária de mercado: os casos da Fetase, do MST e do Maram. Por fim, remeto o leitor às Considerações Finais, na expectativa deste estudo contribuir com o desvendamento das artimanhas que vêm sendo adota-das no Brasil para impedir o campesinato de construir sua emancipação no seu processo de (re)produção.

Boa leitura!


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A influênciA do BAnco mundiAl nA formulAção dAs PolÍticAs de comBAte à PoBrezA rurAl e

reformA AgráriA no BrAsil

cAPÍtulo i

Desde a década de 1960, até início dos anos 1980, a reforma agrária foi uma expressão, de certa forma, proibida em muitos países, devido à concepção ideológica socialista que estava na base das argumentações dos movimentos sociais e partidos políticos que a protagonizaram. Nos anos 1980, a crise dos regimes socialistas, o fim da Guerra Fria, e a crise das dívidas externas dos países pobres abriram caminho para ampliação da influência dos organismos multilaterais junto aos países pobres. Durante a segunda metade desta década e início da seguinte, a atuação do Banco Mundial (BM), em particular, foi marcada pela difusão dos ajustes estruturais, financiamento de infraestrutu-ra e megaprojetos, com o objetivo de garantir o pagamento dos serviços das dívidas externas e de transformar as economias nacionais em um padrão li-beral. Resultaram destes programas sociedades mais desiguais, injustas e uma conjuntura favorável à intensificação das tensões sociais, a exemplo do ir-rompimento, em 1994, do Movimento Zapatista de Libertação Nacional, no México.

Diante do acirramento da tensão social e da intensificação da oposição ao modelo neoliberal nos países que implementaram os ajustes estruturais, o BM viu-se na necessidade de controlar as pressões e os movimentos sociais, para ter caminho livre ao aprofundamento da implementação deste modelo. A forma definida para este programa foi a condução, a partir dos anos 1990, de uma segunda onda de ajustes, cujos fundamentos residem no aprofundamento da redução do papel do Estado com vistas à promoção do crescimento econômico,



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sendo fidedigno com a matriz discursiva desta instituição supranacional: pro-moção do crescimento sustentável (Banco Mundial, 2002a).

Um conjunto de estudos foi realizado pelos think tanks (Bourdieu, 2001) do Banco Mundial (BM) e difundidos por meio de diferentes relatórios que visam nortear as ações dos governos credores na implantação dos pacotes de políticas que, travestidas com roupagens adequadas para as populações locais, apresenta-se como a panaceia nos respectivos setores da sociedade. Uma das diretrizes das conhecidas reformas de segunda geração, que se apresenta como impulsiona-dora do crescimento econômico, passa a ser a realização de investimentos nos espaços rurais dos países da América Latina, África e Ásia.

Historicamente, nos diferentes países, a apropriação da terra tem possibilita-do o controle e/ou acesso a diferentes dimensões da realidade: produção econô-mica, instrumentos de participação política, informação, conhecimento, tecno-logia, políticas públicas, dentre outros. A concentração deste bem, obviamente, contribui para o controle das diferentes dimensões da realidade, ampliação da desigualdade e exclusão da maior parte dos sujeitos.

O desenvolvimento de um pacote de políticas de terras possibilitaria atrair, para estas regiões, um fluxo de investimentos econômicos privados que gera-riam oportunidades de emprego, renda e crescimento econômico. Com a im-plantação de modelos de desenvolvimento rural adaptados às conjunturas po-líticas e aos históricos de posse e propriedade da terra nos respectivos países, o Banco propala que o objetivo mestre seria alcançado, resultando no alívio da pobreza, argumento que me parece meramente retórico para angariar os apoios necessários aos seus verdadeiros fins.

Foi nesse contexto que a instituição passou a enfatizar a questão da terra como estratégia de desenvolvimento rural e o tema da reforma agrária capturado por suas diretrizes. Parte-se do pressuposto de que os países da América Latina, África e Ásia configuram-se como áreas de baixos investimentos privados no meio rural e, portanto, são locus para estimular a promoção de programas volta-dos à atração de investimentos privados. No relatório Políticas de tierras para el crecimiento y reducción de la pobreza (Deininger, 2003) afirma-se que:

La tierra es el activo clave para los pobres campesinos como los urbanos. En muchos países en desarrollo ésta constituye un cimiento para la actividad económica y el funcionamiento de instituciones de mercado (por ejemplo, crédito) y ajenas al mercado (por ejemplo, gobiernos locales y redes sociales). Dada esta importancia, las instituciones relacionadas con la tierra han evolucionado durante largos períodos, y las políticas de tierras invariablemente se ven afec-tadas por la presencia de múltiples imperfecciones del mercado (Deininger, 2003, p. XV).

Nesse sentido, produziu-se um estudo para orientar os governos na adoção de ações políticas e programáticas sobre os mercados fundiários que “puedan ayudar a mejorar tanto la eficiencia como la equidad” (Ibid., p. XV). A princi-



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pal imperfeição que necessita ser rapidamente corrigida nos países é a garantia da posse segura da terra, mero eufemismo para tratar da propriedade privada alienável da terra. Para os causídicos desta concepção, a inexistência da titula-ção alienável da terra afasta os investidores privados, limita o acesso ao crédito e, portanto, aos investimentos necessários ao desenvolvimento econômico, bem como torna os países suscetíveis à “rapina de la tierra, conflicto y desperdicio de recursos, que en circunstancias extremas puede minar el potencial productivo y económico de las sociedades” (Ibid., XVII).

A poção mágica apontada para a redução da pobreza (nunca sua eliminação) perpassa à estratégia de liberalização da terra, mediante a difusão da titulação alienável das terras públicas, comunais e privadas, com vistas à promoção de um ambiente político estável, que não ofereça riscos nem aos produtores nem aos investidores. Com a posse dos títulos alienáveis, os investimentos podem facilmente ser ampliados, tendo em vista que a terra, convertida em merca-doria, pode ser oferecida em troca de créditos, possibilitando, por um lado, a contratação de seguros em casos de calamidade, por outro alavancar atividades econômicas que ampliem a produtividade do rural, gerando crescimento eco-nômico e consequente bem-estar, além de, obviamente, impulsionar o preço da terra convertendo-a em rentável mercadoria. A perspectiva de desenvolvimento apresentada assume uma condição unidimensional, cujo crescimento econômi-co é o fim único. O capital e o mercado de terras assumem a condição de pro-tagonistas na promoção da redistribuição deste bem ao eliminar aqueles ociosos por produtores mais eficientes.

Para o Banco, a inexistência ou segurança quanto à propriedade privada da terra exige grandes gastos na defesa da propriedade, que pode ser ameaçada por conflitos étnicos, territoriais, lutas por reforma agrária, reivindicação de direitos ancestrais, direitos adquiridos resultantes de longos períodos de arrendamentos e/ou parceiras etc. Isto, por um lado, afasta os investimentos, desestimula as bolsas de arrendamento de terras (apontadas como alternativa de ampliar a exploração pelos sujeitos mais eficientes); de outro ponto de vista, os conflitos de diferentes naturezas podem vir a desestabilizar os governos e seus programas econômicos.

Para tanto, faz-se necessário que o Estado estruture instituições voltadas à gestão da terra que tenham legitimidade e legalidade junto à sociedade. Forja-se um arranjo institucional e jurídico que garanta a sacralidade da propriedade privada fundiária. Nos países em que os conflitos étnicos e territoriais apresen-tam-se explosivos, sobretudo por conta da usurpação deste bem durante a fase do neocolonialismo, como em países africanos, o Estado deve manter o contro-le da terra a fim de evitar tais lutas sociais.

Ademais, propala-se que a redução da pobreza terá melhores efeitos nos locais em que as populações e comunidades mais pobres possam exercitar seu



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poder de decisão, chave para fazer o uso efetivo das terras em seu poder. Para Deininger, quando os mais pobres podem decidir democraticamente sobre a atribuição de terras, edifica-se maior tranquilidade para os governos, “como ilustra el ejemplo de México, donde los beneficiarios mencionaron el govierno mejorado como um beneficio clave de las reformas de derecho de propriedad introduzidas desde 1992” (Ibid., p. XXIV).

Obviamente, o autor visa, com este exemplo, à produção de sentido que contribua com o esvaziamento político das lutas populares que ocorreram na-quele país, inclusive com o irrompimento do Exército Zapatista de Libertação Nacional, frente à supressão do artigo constitucional que garantia a propriedade comunal da terra representada nos ejidos e sua substituição por títulos de pro-priedade alienáveis no mercado de terras. Neste mesmo país, a eliminação da indivisibilidade e inalienabilidade das formas comunais de posse da terra têm contribuído para o avanço do processo de internacionalização das propostas de integração regional difundidas pelas instituições financeiras supranacionais, em particular do Plano Puebla Panamá, atualmente denominado Projeto Mesoa-mérica.

A criação de um dispositivo que permite a fragmentação do ejido e realiza-ção da mercantilização das parcelas de terras no mercado, abre a condição ne-cessária para que o capital promova uma espécie de assepsia do território, ou seja, elimine o campesinato e indígenas do território para liberar as possibilidades de livre domínio com vistas à implantação de megaprojetos de logística, agricul-tura capitalista, atividades industriais etc. O capital nem sempre promove, ele próprio, uma ofensiva direta aos camponeses e indígenas, mas com frequência utiliza-se do aparato de Estado para fazê-lo de acordo com seus interesses, con-dição que pode ser observada nas lutas do ejidatários de San Salvador Atenco2 e do povo Triqui em San Jan Copala3.

A concepção de uso efetivo pode, aqui, ser compreendida como acesso à ter-ra por instrumentos de compra e venda e sua exploração capitalista, condição incongruente com as concepções de organização de economias sociais, herda-das dos povos originários ancestrais, cuja centralidade reside na terra enquanto valor de uso, espaço de moradia, de realização da cultura, das práticas religiosas e cuja agricultura prima, primeiramente, pela produção das condições funda-mentais ao abastecimento familiar e/ou comunitário.

Com vistas à promoção de maior equidade, defende-se, ainda, que a pro-priedade segura de terras deve ser garantida a grupos que foram tradicional-

2 Para maiores informações sobre a disputa territorial em San Salvador Atenco consultar <http://atencofpdt.blogspot .com/>

3 Conferir Bárcenas, Francisco Lopéz, 2009, San Juan Copala: dominación política y resistencia popular. De las re-beliones de Hilarión a la formación del municipio autónomo, Ciudad del Mexico: UAM-Xochimilco.



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mente discriminados. O foco principal são as mulheres, por serem os princi-pais vetores de investimentos na educação, saúde e alimentação das crianças. Mas, nas análises do real no Brasil, particularmente, no tocante ao instru-mento de reforma agrária de mercado, verifica-se que no rol das minorias incluem-se jovens, populações afro-descendentes e sujeitos resgatados do tra-balho escravo. Analisaremos mais detidamente, sobre este processo, no pró-ximo capítulo.

Estas são as diretrizes globais do pacote agrário neoliberal que tem sido im-posto pelo Banco Mundial aos países credores. A forma, ritmo e intensidade de aplicação dependem da conjuntura política e da organização do agrário em cada país. Este receituário independe do espaço e do tempo em que é implanta-do e compõe-se de um conjunto de políticas setoriais agrárias, cujas principais formas estão sistematizadas em Rosset (2004), em cinco conjuntos.

O primeiro conjunto de políticas agrárias neoliberais visa conhecer a posse das terras, organizar os negócios, cadastrar e registrar a propriedade da terra. A titulação alienável da terra passa a ser prioritária para que, em um futuro pró-ximo, possa entrar em operação o mercado de terras. O Banco denomina tais projetos de administração da terra e, em diferentes países, podem ser chamados de titulação, registro ou mapeamento. A defesa é a de que, sem a existência de um mercado de terras, não haverá transferência de terras para os mais pobres, nem investimentos nas áreas rurais. Esta interpretação da realidade desconside-ra o papel estratégico que tem a atuação do Estado na distribuição da riqueza entre os integrantes de uma nação.

Não será a lei da oferta e procura, que rege o mercado, a criar as condições necessárias para que os mais pobres acessem a terra em quantidade e qualidade suficiente para a subsistência familiar e o abastecimento alimentar. O mercado é um território do capital cujos fundamentos são o dinheiro e o lucro. Sugeri-lo como possibilidade para a recriação do campesinato, expressa a intencionalida-de de promover a sua subordinação ou manter sua exclusão em detrimento da promoção da vida com dignidade, essencial para a classe.

Com a administração da terra, é possível fazer um balanço da sua oferta e procura. Tal medida dá suporte a um segundo conjunto de políticas, que é a de privatização de terras públicas e comunais implementada sob a forma de con-cessões às corporações que se comprometem a realizar investimentos nas áreas rurais e/ou realizar um tipo de reforma agrária orientada pelo Banco.

O terceiro conjunto de políticas institui o direito legal de vender, alugar, arrendar ou hipotecar as terras como garantia de empréstimo. Como os títulos da terra passam a ser alienáveis caso o camponês não consiga pagar os emprés-timos, pode-se perder a terra. A terra pode ainda servir como moeda em um empreendimento, no qual os capitalistas entram com os investimentos e o cam-



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ponês com a terra. No caso do fracasso do empreendimento, todos perdem. O capitalista perde o montante investido, e o camponês perde a terra.

Evidentemente, perde mais quem investiu tudo o que tinha, mesmo que pa-reça pouco do ponto de vista de quem tinha mais. Para o camponês, que só tem a terra, perdê-la é ser reduzido à extrema pobreza. Com este tipo de posse, fren-te aos períodos de alta dos preços da terra ou de baixas da safra, os camponeses podem vender suas terras. Ocorre que, ao vender este bem, tão logo o dinheiro acaba, ficam sem a terra e sem emprego, portanto, mais empobrecidos.

Formado o mercado de terras, forjam-se as condições necessárias para a im-plementação dos chamados bancos da terra ou fundos de terras, mediante alte-rações institucionais ou jurídicas. Estes, por sua vez, consistem em fundos for-mados inicialmente por empréstimos financeiros realizados pelo BM, voltados à concessão de créditos fundiários para agricultores pobres, implantados em países onde se verifica uma forte concentração fundiária e, portanto, dificul-dade de crescimento econômico. Uma vez realizados os financiamentos para a criação dos fundos de terras, os países credores devem criar, ao longo do tempo, seus próprios fundos creditícios, com a finalidade de conceder créditos fundiá-rios aos sujeitos sociais que demandam terras, para que possam comprá-las no mercado já em funcionamento.

Embora esta política seja propagada como uma forma ágil de redistribui-ção de parte da riqueza, na prática, o seu fundamento é o estímulo ao fun-cionamento do mercado de terras. Inicialmente, essa política foi denominada pelo Banco de reforma agrária dirigida pelo mercado, reforma agrária assisti-da pelo mercado ou reforma agrária baseada na comunidade. Os movimentos sociais e estudiosos do tema têm preferido chamá-la de Reforma Agrária de Mercado (RAM) (Sauer, 2001; Barros et. al., 2003; Pereira, 2004; Ramos Filho, 2008a; Resende e Mendonça, s/d). Indubitavelmente, o Banco Mun-dial, ao atribuir à sua política neoliberal de acesso à terra a denominação de reforma agrária, objetiva esvaziar o conteúdo político e conflituoso embutido neste conceito. A política de reforma agrária neoliberal busca a resolução do conflito histórico entre sem-terra e latifundiários, em países cuja concentra-ção fundiária é exacerbada.

Segundo o Banco, a reforma agrária tradicional4, via desapropriação, não é possível no momento atual, porque as elites econômicas resistem à expropria-ção promovida pela reforma e isso gera muito conflito. O objetivo é não inco-modar as elites com medidas desapropriatórias, mas comprar as terras daqueles que estão dispostos a vendê-las. Com o novo instrumento, vislumbra-se atri-

4 No caso brasileiro, este conceito assume a intenção de esvaziar o caráter punitivo para os proprietários de terras que não cumprem a função social da reforma agrária, prevista na Constituição Federal de 1988 e na Lei 8.629 de 25/02/1993.



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buir a possibilidade de decisão aos camponeses mediante a liberdade de identi-ficar e avaliar a propriedade dos seus sonhos e definir os preços de compra do imóvel pela negociação direta com o fazendeiro, eliminando, assim, a prática de corrupção.

Em diferentes realidades, verifica-se que os camponeses pobres sempre dis-põem de pouca ou nenhuma informação para realizar as negociações, colocan-do-os em situação de desvantagem frentes aos proprietários. Os níveis de in-formações sobre os mercados, procedimentos burocráticos e direitos são muito incipientes, colocando estes sujeitos na condição de presas fáceis para a atuação dos corretores fundiários que atuam a mando dos interesses dos fazendeiros, da ação do clientelismo político etc., cujos efeitos são inócuos para eliminação da corrupção na transação imobiliária em questão.

Ademais, verifica-se que os camponeses têm, na prática, contraído uma pe-sada dívida, que tem o seu valor proporcional ao preço em que a terra foi co-mercializada. A situação se agrava quando se verifica que as terras vendidas encontram-se desgastadas, em situação geográfica de isolamento e/ou tiveram seus preços superfaturados. A análise que procederei a seguir nos possibilita se-gurança ao afirmar que este instrumento tem sido vantajoso, exclusivamente, para a classe dos proprietários, que passam a vender suas terras fracas por preços jamais praticáveis.

Tal pacote de políticas de desenvolvimento já se encontra em curso em dife-rentes países, com roupagens e impactos variados. Na África, podemos citar os casos da África do Sul, Malauí e Zimbábue; na Ásia, está implantado na Indo-nésia, Tailândia, Filipinas e Índia; e, por fim, na América Latina, evidencia-se o caso da Guatemala, Honduras, El Salvador, México, Colômbia e Brasil (Sauer e Pereira, 2006; Martins, 2004; Barros et. al., 2003).

Portanto, diante do exposto, pode-se afirmar que as políticas fundiárias neoli berais têm assumido diferentes formas em diferentes países do Sul, a de-pender da conjuntura política, do estágio de desenvolvimento do capitalismo e dos componentes da questão agrária local. De modo geral, as diferentes po-líticas se articulam como estratégias de promoção de um modelo de desenvol-vimento territorial rural, fundamentado no paradigma do capitalismo agrário, cujo discurso propalado é o de redução da pobreza por meio da promoção da segurança na propriedade da terra, viabilizado pelo funcionamento livre do mercado.

No conjunto dos países em que tal programa está (ou esteve) em curso, o pano de fundo é a existência de desigualdades socioeconômicas abissais, em vir-tude da histórica concentração fundiária e de cenários de mobilização popular reivindicatórios para a redistribuição das terras, como mecanismo de alcance de justiça social e alteração dos pactos políticos que comandam os respectivos



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países. O receituário liberal, na maioria dos países, foi introduzido a partir dos anos 1960/1970, como políticas de difusão do modelo produtivo da Revolução Verde. Nos anos 1990, delimitaram-se suas ofensivas sobre a forma de acesso à terra para os mais pobres, cujo controle reside, fundamentalmente, nas mãos do capital representado por grupos econômicos nacionais e corporações trans-nacionais.

A lógica central das políticas fundiárias neoliberais reside na conversão da terra como mercadoria, na liberalização das formas de acesso à terra pelos cam-poneses pobres, nos estímulos às políticas de arrendamento, na promoção de títulos alienáveis e na eliminação da posse comunitária. As políticas fundiárias neoliberais são introduzidas para controlar e desarticular conflitos raciais, ori-ginados na desigual distribuição fundiária, tentar pacificar guerras ou estimu-lá-las, eliminar as lutas indígenas e de sem-terra. Apesar de se auto-afirmarem ágeis, baratas e pacificadoras, as experiências analisadas demonstram que os preços das terras tendem a aumentar com o estímulo aos mercados de terras, aumentando a necessidade de créditos pelos mutuários e consequente aumento das dívidas, inviabilizando, em curto prazo, a própria política que nada mais consegue adquirir, conduzindo, assim, os camponeses a dramáticos processos de desterritorialização.

Um aprendizado importante neste processo é a permanência da disputa territorial referente à apropriação fundiária entre o capital e os camponeses nos diferentes países. Enquanto os primeiros utilizam-se do receituário neo-liberal, viabilizado por empréstimos das instituições multilaterais, os campo-neses, considerando a conjuntura política e organização de cada país, buscam fortalecer suas instituições, com vistas a pressionar o Estado para a realização de reformas agrárias que promovam a redistribuição da riqueza e do poder político.

Isto se dá mediante a realização de diferentes formas de lutas reivindicató-rias ou contestatórias, que vão desde a luta armada, como o caso mexicano com o Exército Zapatista de Libertação Nacional, até as ocupações de terras, que se configuram como principal mecanismo contestatório da propriedade privada com fins especulativos, conforme os casos da África do Sul, Zimbábue, Tailân-dia e Brasil. Neste último país, as organizações camponesas têm investido na sua organização mediante a articulação dos movimentos camponeses em torno da Via Campesina e da produção de conhecimento socialmente engajado, que possibilite qualificar ainda mais a luta popular.

O caso brasileiro pode ser considerado uma referência na difusão deste pa-cote de políticas, tendo em vista a existência de programas e/ou projetos em todos os conjuntos apresentados, sendo alguns exemplos emblemáticos: o pro-jeto de cadastro e georreferenciamento dos imóveis rurais levado adiante pelo



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Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra); os mercados de arredamentos de terras; o Programa de Consolidação e Emancipação (PAC) dos assentamentos de reforma agrária, destinado à realização de investimentos de recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) nos assentamen-tos sob a gestão do Incra, para que estes se tornem independentes da tutela do Estado; a recém publicação da Medida Provisória 458/2009 que dispõe sobre a regularização fundiária das terras da União ocupadas na Amazônia Legal; e os diferentes projetos de reforma agrária de mercado (RAM).

Antes de proceder à discussão da política pública, objeto deste estudo, gos-taria de introduzir o leitor à análise de mais um documento do Banco Mundial, que trata das diretrizes para o combate à pobreza rural no Brasil. Trata-se do Relatório n. 21.790 – BR, intitulado Combate à pobreza rural no Brasil: uma es-tratégia integrada, datado de 27 de dezembro de 2001, no alcance das Metas do Milênio de reduzir a extrema pobreza pela metade, até o ano de 2015.

O referido relatório apresenta uma análise sobre os níveis de pobreza nas re-giões Nordeste e Sudeste do Brasil, onde se concentra a maior parte da popula-ção pobre, e constata que o país está avançando na atenuação destes níveis, mas alerta que resultados significativos somente serão possíveis mediante um pro-cesso de estabilização econômica, o qual possibilite a ampliação da produção agrícola, que por um lado poderia ampliar a oferta de empregos e, por outro, aumentar a produtividade das terras sob o controle do campesinato mais pobre mediante uma sinergia de políticas públicas que viabilizassem a incorporação de mais insumos e maquinaria neste setor.

São cinco as frentes apontadas para atuação do Estado brasileiro na promo-ção de políticas públicas voltadas ao combate à pobreza rural: “1) intensificação da agricultura no setor de pequenas propriedade rurais; 2) Agricultura comer-cial mais dinâmica; 3) Estímulo ao crescimento do setor não rural; 4) Migração de jovens; 5) Oferta de uma rede de segurança aos sujeitos ‘aprisionados’ na po-breza” (Banco Mundial, 2001). Os cinco eixos propostos em princípios deste século XXI mantêm relação intrínseca e complementar entre si, de modo que os resultados sobre a pobreza devem ser considerados em virtude dos impactos dos conjuntos de políticas que resultam destas orientações.

Conforme afirmamos acima, o crescimento econômico está na centralida-de das estratégias traçadas para redução da pobreza, porém deve ser acompa-nhado de políticas setoriais como: programas de transferência de renda, geração de empregos no campo e na cidade, modernização da agricultura camponesa etc. Em virtude dos objetivos desta investigação, não busco realizar uma aná-lise exaustiva das políticas que resultam deste pacote supranacional mas, sim, demonstrar a conexão da criação destas com as propostas do Banco Mundial a fim de melhor situar nosso o objeto de estudo.



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A primeira via apontada refere-se a necessidade premente de intensificação do setor agrícola de pequenas propriedades rurais, tendo em vista ser neste setor a concentração dos pobres do campo, em particular na região Nordeste, com maior gravidade naquelas áreas semi-áridas e áridas. Para o BM, as transforma-ções pelas quais vem passando a agricultura capitalista mais moderna em sua in-serção no mercado globalizado possibilitaram grandes ganhos econômicos aos sujeitos considerados mais competitivos e um deslocamento de capitais para a região Centro-Oeste, onde se encontra a fronteira agrícola.

Uma saída para a pobreza rural, identificada pelo BM, é a convergência de um conjunto de políticas e programas públicos que possibilite a moder-nização dos pequenos agricultores considerados viáveis economicamente (ou de acordo com a matriz discursiva do Banco os “pequenos agricultores pobres com potencial produtivo”), mediante o consumo de insumos e maquinário que possibilite elevar a produtividade do trabalho e geração de renda, assim como redução dos custos de comercialização dos produtos agrícolas, viabili-zado mediante o aperfeiçoamento do transporte, acesso a estradas, a créditos e assistência técnica, além da realização da reforma agrária comunitária, que aqui denomino reforma agrária de mercado (Ibid., p. 10). Ademais, os pro-gramas e políticas públicas criados nesta via, devem ser concebidos como par-te das ações de alívio da pobreza e não confundidas como parte da política agrícola nacional.

Na centralidade das análises e proposições está a concepção do Banco de que a amenização dos índices de pobreza se dará com centralidade no crescimen-to econômico. As proposições para o campesinato pobre perpassam a elabora-ção e aplicação de programas e políticas públicas que estimulem a inserção dos camponeses pobres (ou melhor, dentre estes, apenas aqueles considerados com potencial produtivo) no mercado, mediante a possibilidade de contração de fi-nanciamentos, seja para a tecnificação das atividades agrícolas ou para o acesso à terra mediante o instrumento de reforma agrária de mercado.

Busca-se a mais completa transformação das relações adotadas pelo campesi-nato, na qual predominam relações de produção não capitalistas materializadas no predomínio do trabalho familiar e produção de agricultura de autoconsu-mo, com comercialização de excedentes. Almeja-se a formação de um pequeno empreendedor do campo que a partir do consumo de produtos industrializados (sementes, fertilizantes, venenos, vacinas, remédios, maquinário etc.) e compra de terras conseguiria elevar a produtividade do trabalho, mediante ampliação do acesso a meios e vias de transporte, promovendo a circulação dos produtos, ampliando a renda e reduzindo, assim, a pobreza.

Acima, afirmamos que o mercado não é um território do campesinato e, sim, do capital. O camponês pobre convertido em consumidor moderno por



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um programa público não necessariamente consegue sair da pobreza. Basta ob-servar os casos dos camponeses pobres no Brasil que têm muita dificuldade em quitar os compromissos financeiros, assumidos na aquisição do crédito agríco-la do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf ) e das diferentes linhas de financiamento de reforma agrária de mercado, cujo alto índice de inadimplência levou o governo Lula a editar a Medida Provisória 432/2008, de renegociação das dívidas da agricultura familiar.

Outra dimensão que não pode passar despercebida é que as ações apontadas estão limitadas apenas àqueles sujeitos que apresentam uma suposta potencia-lidade. A porção dos pobres rurais que vivem nas áreas mais isoladas geografi-camente, nas áreas áridas e semi-áridas, efetivamente não estariam nestas me-didas, restando-lhes, na minha interpretação desta perspectiva, a condição de viver de uma rede de seguridade social compensatória ou migrar para regiões mais dinâmicas a fim de se proletarizar, quer no campo, quer nas cidades, ou nos dois espaços em regime de alternância em virtude da sazonalidade da oferta de postos de trabalho precário como os verificados nas safras agrícolas e cons-trução civil, para citarmos um exemplo.

Desde este ponto, o BM aposta na segunda via de políticas. A intensificação de um suposto dinamismo do setor do agronegócio agiria como vetor impac-tante na redução da pobreza, mediante a geração de vagas de empregos assala-riados. Assim, propõe ações que buscam na realidade garantir custos mais bai-xos de produção para este setor mediante políticas governamentais de controles cambiais, realização de um modelo de reforma trabalhista rural que viabilize uma precarização ainda maior do trabalho, bem como investimentos públicos na educação rural.

Neste último, a preocupação não é viabilizar um direito universal e promo-ver a escolarização, capacitação, qualificação, formação e politização dos pobres rurais com vistas a construção de sua autonomia, mas, efetivamente, busca-se escolarizar os pobres do campo para que domine um determinado ofício ou co-nhecimentos básicos que serão necessários ao trabalho na fazendas, escritórios ou cozinhas das corporações que atuam e controlam a agricultura comercial e suas agroindústrias.

Com a publicação, em outubro de 2009, do Censo Agropecuário 2006 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os estudiosos do agrário têm divulgado as primeiras análises dos resultados deste documento. Tomando as contribuições de Gerson Teixeira (2009) ao observar a sequência histórica dos censos agropecuários, compreendida entre 1970 e 2006, no tocante a evo-lução do pessoal ocupado na agropecuária (Tabela 1), verifica-se que o efetivo de população rural tem apresentado evolução diferente da ocorrida com a po-pulação absoluta.



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tABelA 1 – BrAsil: PoPulAção totAl, rurAl e PessoAl ocuPAdo nA AgroPecuáriA – 1970-2006

População absoluta*

1970 1980 1996 2006variação 1996-2006

absoluto %

93.134.846 119.011.052 157.070.163 185.564.212 28.494.049 18.1%

População rural**

41.037.586 38.573.725 33.993.332 28.705.000 -5.288.332 -15.6%

Pessoal ocupado

17.582.089 21.163.735 17.930.890 16.567.544 -1.363.346 -7.6%

População rural/total

44% 32% 22% 15%

* projeções do IBGE; **FAO

Enquanto a população absoluta aumentou em 18,1%, a população rural apresentou redução de 5.288.332 pessoas, o que representa uma variação nega-tiva de 15,6%. Tomando como referência o pessoal ocupado na agropecuária, verifica-se no período a saída do setor de 1.363.346 trabalhadores o que condiz com uma variação negativa da ordem de 7,6%. O Quadro 1 demonstra a evo-lução da média de pessoal ocupado entre 1970 e 2006.

QuAdro 1 – BrAsil: médiA de PessoAl ocuPAdo em estABelecimentos AgroPecuários (PessoAs) – 1970-2006

1970 1975 1980 1985 1996 2006

3,6 4,1 4,1 4,0 3,7 3,2

Fonte: IBGE

Estes dados demonstram que, no período analisado, ocorre um processo de êxodo rural, relacionado diretamente com a redução do pessoal ocupado no setor agropecuário. O período representado na Tabela 1 refere-se àquele que o campo brasileiro passa por um processo de intensificação da modernização da agricultura capitalista, mediante a introdução de máquinas, implementos, in-sumos agrícolas, agrotóxicos etc. como forma de transformar o campo em um setor consumidor dos produtos industrializados controlados por corporações transnacionais.

Buscou-se, ainda, elevar a produtividade da agricultura capitalista com vista à inserção do Brasil no capitalismo monopolista, mediante a exportação de pro-dutos primários em grande quantidade, que seriam responsáveis pela geração de



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divisas necessárias, em um primeiro momento, para a industrialização do país e, mais recente, para a geração de superávit primário, fundamentais para o pa-gamento dos serviços da dívida externa brasileira.

A evolução histórica demonstra que, quando o BM elaborou seu documen-to de orientações sobre o combate à pobreza rural no Brasil, os dados oficiais já demonstravam o declínio da população ocupada no setor agropecuário, indi-cando que este efetivamente não mais representava no país a potencialidade no tocante à oferta de empregos. Mais grave ainda é a invalidade da propositura desta instituição financeira supranacional em apontar o setor da agricultura co-mercial de larga escala, representada pelas grandes propriedades, como a princi-pal geradora dos empregos no setor agropecuário.

Observa-se que, em 2006, 11.672.657 pessoas encontravam-se emprega-das nos estabelecimentos de até 50 hectares, ou seja, nos estabelecimentos fa-miliares. Isto representa cerca de 70% do pessoal ocupado na agropecuária, o mesmo percentual registrado no Censo Agropecuário de 1995/1996. Sendo os estabelecimentos de 1.000 hectares ou mais, responsáveis pelo emprego de apenas 761.904 mil pessoas, equivalendo a 4,6% do total em 2006. Os dados oficiais demonstram que, na última década, tem sido o setor familiar o princi-pal responsável pela geração de empregos no campo, negando, portanto, a ar-gumentação do Banco Mundial sobre a relevância do agronegócio na geração dos empregos rurais. De modo que, ao considerar a promoção de empregos no campo como instrumento importante na redução da pobreza, a centralidade das proposições deveria perpassar à valorização do setor familiar em detrimento do setor do agronegócio.

A terceira via apontada pelo BM está relacionada com a geração de em-pregos rurais não agrícolas, principalmente nos ramos de processamento de alimentos e serviços. Para tanto, propõe que o acesso a estas atividades, que supostamente poderiam gerar maiores rendas, perpasse pela necessidade de es-colarização dos pobres do campo para que acessem tais postos de trabalho, os quais se concentram predominantemente na região Sudeste e/ou nas proximi-dades dos centros urbanos.

A referência à necessidade de investimento em escolarização dos pobres do campo se articula com a quarta via do Banco Mundial para o combate à pobreza rural, que diz respeito a migração de jovens dirigida à busca de oportunidades. Se aceita a migração de jovens para áreas urbanas ou outras zonas rurais como um processo inevitável, logo, fazem-se necessários, investimentos em educação dos potenciais migrantes para que no espaço de recepção possam dispor da escolariza-ção necessária para a disputa de uma vaga no concorrido mundo do trabalho.

É sabido que os processos de êxodo rural no Brasil se dão por diferentes motivações; dentre elas, merece destacar o processo de concentração de ter-



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ras decorrente da territorialização da agricultura capitalista de larga escala e dos processos de mecanização e automação deste setor. Tal processo gera a expulsão do campo daqueles mais pobres que aí viviam, além da eliminação dos postos de trabalho, ou seja, o desemprego estrutural. Ademais, boa parte dos imóveis rurais no Brasil apresenta dimensões inferiores ao mínimo ne-cessário para produção dos alimentos e renda para a manutenção da família. Considerando a importância do setor camponês na geração de empregos, as estratégias de redução da pobreza devem buscar desenvolver a totalidade das dimensões dos territórios camponeses, inclusive buscando atacar e eliminar o minifúndio, que Josué de Castro, em seu livro Geografia da Fome (1947), já considerava como uma irracionalidade.

As proposições de incentivo ao agronegócio estão enviesadas. O Censo Agropecuário de 2006 revelou que agricultura camponesa, apesar de ocupar apenas 21% da área, é o setor que abastece de alimentos os lares brasileiros, produzindo 87% da mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, 50% das aves, 59% dos suínos (Ministério do De-senvolvimento Agrário, 2009). Portanto é o setor camponês que contribui com o maior volume da produção agropecuária nacional, em particular daquela que compõe diariamente as mesas dos brasileiros.

O que torna iminente que as estratégias de combate à pobreza estejam arti-culadas com a política agrícola nacional, de modo a alterar o modelo de desen-volvimento vigente, resultante das condicionalidades impostas pelos organis-mos financeiros supranacionais, fundamentado na expansão da agropecuária de larga escala destinada, principalmente, aos mercados internacionais, em detri-mento da produção alimentar voltada para abastecimento nacional.

Por fim, a última via de combate a pobreza rural pelo BM reside na estrutu-ração e convergência de um conjunto de políticas e programas compensatórios, cujo foco são os sujeitos aprisionados na pobreza, ou seja, aqueles que não pode-rão usufruir dos supostos empregos no agronegócio, nas atividades rurais não agrícolas ou aqueles que não mais se apresentam como potenciais migrantes. O Banco refere-se à população idosa e trabalhadores rurais das áreas mais atrasa-das. Para estes o governo, deve promover uma rede de segurança, como progra-mas de transferência de renda.

Esta propositura conduz à identificação da compreensão de que a pobreza persistirá. O viver com dignidade é deixado de lado e as políticas compensató-rias assumem a centralidade. Estas são incapazes de promover a alteração estru-tural das realidades, conseguem somente mascarar os verdadeiros problemas da sociedade, maquiando indicadores e convertendo-se em propaganda a favor dos políticos. A qualquer momento podem ser suspensas e os problemas voltam a comparecer com gravidade ainda maior.



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No contexto destas cinco diretrizes para combate à pobreza rural, o Banco ainda sugere a criação, reestruturação ou ajustes em um conjunto de políticas públicas e/ou programas no Brasil, cujos eixos são: aprimoramento da dotação de capital humano, reforma no mercado de terras, ampliação da P&D e transferência de tecnologia, reforma nos mercados financeiro e de trabalho rurais, oferta de bens públicos e desenvolvimento de capital social, política comercial e de preços, progra-mas de transferência (Banco Mundial, 2001).

Em suma, verifica-se a orientação do BM para a realização de investimentos em programas educacionais no campo que proporcione aos trabalhadores aces-sar empregos assalariados no campo em atividades agrícolas ou não agrícolas, bem como dispor de conhecimento que possibilite a migração dos mais jovens em busca de empregos. Por outro lado, incentiva a expansão dos programas de transferência de renda, como a ampliação da previdência rural contributiva, como modelo que garante a assistência social a todos os sujeitos maiores de 70 anos de idade, independente de contribuição.

Os trabalhadores escolarizados nas escolas rurais terão de se deparar com contratualizações trabalhistas cada vez mais precárias. De forma que permita aos capitalistas decidirem com maior tranquilidade sobre a duração dos con-tratos, uma menor tributação dos salários pagos e redução de direitos e grati-ficações dos trabalhadores, de modo a possibilitar menores custos para os em-pregadores que, supostamente em condições melhores, abriram mais postos de trabalho. O Banco propõe controle ainda maior sobre as flutuações cambiais e variações das taxas de juros, assim como redução de impostos sobre os produ-tos agrícolas destinados à exportação como mecanismo de política comercial e de preços.

Defende a ampliação do alcance do crédito agrícola subsidiado que possibi-lite a contratação da assistência técnica, condições fundamentais para elevação da renda rural. Por fim, defende ainda reformas no mercado de terras que per-passam, por um lado, alterações na legislação de modo a garantir o direito de propriedade dos imóveis arrendados e/ou explorados em condição de parceira por tempos prolongados aos seus proprietários. De maneira que os mercados de arrendamentos e parceiras, de forma esdrúxula, contribuam com a reforma agrária. Por outro lado, defende-se a expansão da reforma agrária de mercado tendo em vistas a referência dos Programas Reforma Agrária Solidária, no Cea-rá, e do Programa Cédula da Terra.

As diretrizes do Banco Mundial para o combate à pobreza e, em particular a pobreza rural no Brasil, insere-se em uma estratégia de produção do espaço geo-gráfico. O que nos leva à necessidade de debater os conceitos de espaço geográ-fico e território com vistas a elucidação dos processos socioespaciais e socioter-ritoriais materializados nos respectivos impactos decorrentes da implementação



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das políticas fundiárias neoliberais, em sua manifestação no Brasil por meio dos programas de crédito fundiário, tomando como referência o modelo de condi-ção de reprodução do campesinato.


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o Processo de (des)(re)territoriAlizAção do cAmPesinAto Por meio dAs PolÍticAs

de crédito fundiário

O avanço do neoliberalismo tem, nos últimos anos, propagado transformações fundamentais no papel que deve cumprir o Estado para garantir a expansão do capital. Tais ações perpassam à reformulação das contratualidades que se funda-mentam na elaboração de um pensamento único e ofensivo pelo conjunto dos think tanks conservadores (Bourdieu, 2001). O pensamento único tem produzi-do nos países do Sul, especialmente na América Latina, a redefinição dos para-digmas teóricos que sustentam e suportam a elaboração e aplicação das políticas públicas, mediante uma forte inserção nos circuitos superiores de produção cien-tífica. O conhecimento advindo, muitas das vezes, submete conceitos carregados de historicidade e sua inerente conflitualidade à dissecação alienante que conduz a uma explicação e ação da/na realidade completamente despolitizadora e con-sensual que converte toda materialidade e imaterialidade em objetos de consumo.

Um exemplo emblemático tem sido a difusão, no Brasil, de um conjunto de processos, programas e políticas públicas que integram o chamado desenvol-vimento territorial, tais como: a criação do Conselho Nacional de Desenvolvi-mento Rural Sustentável (Condraf ), da Secretária de Desenvolvimento Territo-rial (SDT) no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), e, a partir de 2008, o início da operação do Programa Territórios da Cidadania do governo federal, que busca o desenvolvimento econômico e a universalização de programas sociais nos territórios rurais a partir de sete eixos, a saber: direitos e desenvolvimentos social; organização sustentável da produção; saúde, sanea-mento e acesso a água; educação e cultura; infraestrutura; apoio a gestão terri-

cAPÍtulo ii



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torial; ações fundiárias, dentre estas o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) que analiso neste trabalho.

O conhecimento científico que emana das instituições supranacionais es-praia-se por instituições de produção do conhecimento como universidades, grupos de pesquisa e investigadores. No âmbito, principalmente, da Secretaria de Desenvolvimento Territorial tem ocorrido a incorporação destas formula-ções, com a decorrente formatação para intervenções na realidade sob a forma de programas e políticas públicas.

Para esta instituição, o território trata-se de um espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, compreendendo cidades e campos, caracterizado por critérios multidimensionais tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições, e uma população, com grupos sociais relativa-mente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade e coesão social, cultu-ral e territorial (Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2003a, p. 34).

A partir deste conceito e sob a perspectiva de realizar um conjunto de ações e investimentos financeiros no espaço, desenharam-se e delimitaram-se 109 ter-ritórios rurais, que passaram a ter prioridade no desencadeamento do desenvol-vimento rural sustentável, que tem como eixo teórico o enfoque territorial, que supostamente seria uma

visão essencialmente integradora de espaços, atores sociais, agentes, mercados e políticas pú-blicas de intervenção. Busca a integração interna dos territórios rurais e destes com o restante da economia nacional, sua revitalização e reestruturação progressiva, assim como a adoção de novas funções e demandas (Ibid., 2003a, p. 26).

Adota-se com o programa a descentralização do Estado provedor para su-posta geração de um ambiente em que os atores locais identifiquem as potencia-lidades e limitações para construir as possibilidades de futuro, que perpassem à interação entre os sujeitos, à integração de sistemas produtivos, à cooperação e à concertação entre os atores.

Esta concepção de território se fundamenta na dimensão física, material, concreta, no solo contínuo, porém não a concepção clássica da geografia políti-ca elaborada pelo alemão Friedrich Ratzel, cujo território emana do poder sobre o espaço. Apesar de afirmar que considera a multidimensionalidade da realida-de para criar os territórios rurais, verifica-se, curiosamente, a definição prévia de critérios para sua delimitação (que vão desde a escolha de microrregiões geográ-ficas, municípios com densidade demográfica inferior a 80 hab/km2 e demanda do MDA, dentre outros). Este fato evidencia centralismo e verticalismo estatal na definição de um falso território.

Considero-o como falso território por se aproximar mais da definição de região de planejamento (Ramos Filho, 2008b). Apresenta uma visão consen-



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sual, identificado com a homogeneidade espacial e sua homogeneização, tendo em vista, respectivamente, os critérios prévios para delimitação do que seria o território rural e a finalidade de produção da concertação social. Ignora-se a perspectiva multiescalar, a continuidade e descontinuidade física dos territó-rios, a existência de diferentes territórios no bojo de um território em escala mais ampla.

Esquecem, portanto, a possibilidade de superposição de territórios. Mais que isso. O território assume uma condição de ente apolítico porque neste, ao reunir os diferentes sujeitos que compõe as zonas espaciais, apenas haveria a concertação entorno dos temas e ações necessárias para a promoção do desen-volvimento que perpassa a realização de investimentos financeiros na produção do espaço, que possibilite a implantação de logística e ambiente normativo e político que favoreça os processos de produção, distribuição, circulação e con-sumo, contudo, sem considerar a permanente oposição entre as diferentes clas-ses sociais.

Busco, neste capítulo, discutir o processo dialético de (des)(re)territorializa-ção do campesinato por meios das políticas de crédito fundiário no Brasil. Para tanto, delimito o campo teórico sobre o espaço e o território para, em segui-da, discutir as formas de estruturação das políticas e, posteriormente, os dados quantitativos deste processo na última década.

do esPAço Ao território

O ponto de partida para esta debate é o espaço. Sua dimensão físico-material e seu conjunto de complexos naturais antecedem tudo. Lefebvre (1991, p. 102) trata o espaço como a expressão da materialização da existência humana. Com o desenvolvimento da história, as relações sociais se materializam, e a partir des-tas há uma gradativa alteração neste espaço inicial, com a mediação do traba-lho. Neste movimento de alteração cotidiana da natureza, a partir das relações entre os homens e a natureza e entre os homens é que este último altera-se a si próprio. Ocorre, então, uma tendência irreversível, e cada vez mais complexa, de tecnificação da realidade. De modo que, o espaço geográfico, para Santos (2004, p. 63), “é formado por conjunto indissociável, solidário e também con-traditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isolada-mente, mas como o quadro único no qual a história se dá”.

Fernandes (2005a) enfatiza que do processo dialético de construção do espa-ço geográfico decorre a construção de um conjunto de outros espaços materiais e imateriais, que também são dimensões da realidade, a exemplo do espaço po-lítico, espaço econômico, espaço social, espaço natural, espaço cultural, ciberes-paços etc. Portanto, o espaço geográfico deve ser apreendido na sua multidi-



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mensionalidade. Nesse contexto, faz-se necessário considerar três propriedades do espaço geográfico: composicionalidade, completitude e completividade.

...composicionalidade, (...) compreende e só pode ser compreendido em todas as dimensões que o compõem. Essa simultaneidade, em movimento, manifesta as propriedades do espaço em ser produto e produção, movimento e fixidez, processo e resultado, lugar de onde se parte e aonde se chega. (...) o espaço é uma completitude, ou seja, possui a qualidade de ser um todo, mesmo sendo parte. Desse modo, o espaço geográfico é formado pelos elementos da natureza também e pelas dimensões sociais, produzidas pelas relações entre as pessoas, como a cultura, política e a economia. As pessoas produzem espaços ao se relacionarem diversamente e são fru-tos dessa multidimensionalidade [grifos do autor] (Fernandes, 2005a, p. 26).

Por fim, a completividade refere-se à propriedade da existência simultânea das duas outras propriedades do espaço geográfico.

Para Henri Lefebvre (2008) o espaço social é um resultado da sociedade e das relações decorrentes da divisão do trabalho. Ao mesmo tempo em que o es-paço assume uma condição funcional por se demonstrar locus da produção dos objetos, o espaço assume uma condição instrumental, pois não se trata de um ponto de partida ou de chegada, mas, sim, um instrumento, um modo, uma mediação para se atingir intencionalidades definidas pelas diferentes classes e instituições sobre o seu controle. De modo que

o espaço é um instrumento político intencionalmente manipulado, mesmo se a intenção se dissimula sob as aparências coerentes da figura espacial. É um modo nas mãos de ‘alguém’ [grifos do autor] individual ou coletivo, isto é, de um poder (por exemplo, um Estado), de uma classe dominante (a burguesia) ou de um grupo que tanto pode representar a sociedade global, quanto ter seus próprios objetivos, como os tecnocratas, por exemplo (Lefebvre, 2008, p. 44-45).

É pelo espaço que se busca, pretende-se a coesão e coerência atingidas res-pectivamente pela violência e mascaramento das contradições inerentes ao processo de produção do espaço, sob o projeto de atingir os objetivos. No espaço, encontra-se em relação contraditória, também, a ideologia e o saber. O saber produz permanentemente representações sobre a realidade contri-buindo para a edificação de um arcabouço político, e o desenvolvimento des-ta política exige a elaboração de um saber que suporte as intencionalidades contidas. Nesse sentido, o espaço que é concomitantemente instrumental e funcional, é parte constituinte, continente e conteúdo da “reprodução da for-ça de trabalho pelo consumo (...) de uma organização do consumo no quadro da sociedade neocapitalista, isto é, da sociedade burocrática de consumo diri-gido” (Ibid., 2008, p. 45-46).

Este estudioso prossegue alertando a importância de estar atento que a pro-dução do espaço não se encerra na reprodução dos meios de produção carac-terística do capitalismo do século XIX. Na atualidade, a produção do espaço



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deve ser analisada no marco da necessidade do capital de “produção de relações sociais e re-produção das relações de produção”, que “se efetua através da coti-dianidade, através dos lazeres e da cultura, através da escola e da universidade, através das extensões e proliferações da cidade antiga, ou seja, através do espaço inteiro” (Ibid., 2008, p. 47-48).

As contradições advindas de tais relações de produção se materializam no espaço. Resultam do conteúdo social e prático das relações capitalistas que frag-menta o espaço, que o comercializa em parcelas privadas.

Essas contradições explodem no plano institucional. Nesse plano, percebe-se que a burguesia, classe dominante, dispõe de um duplo poder sobre o espaço; primeiro pela propriedade privada do solo, que se generaliza por todo o espaço, com exceção dos direitos das coletividades e do Es-tado. Em segundo lugar, pela globalidade, a saber, o conhecimento, estratégia, a ação do próprio Estado. Existem conflitos inevitáveis entre esses dois aspectos, e notadamente entre o espaço abs-trato (concebido ou conceitual, global e estratégico) e o espaço imediato, percebido, vivido, des-pedaçado e vendido. No plano institucional, essas contradições aparecem entre os planos gerais de ordenamento e os projetos parciais dos mercadores do espaço (Ibid., 2008, p. 57).

Os debates sobre o espaço geográfico abordados acima me conduzem à in-terpretação de que a as relações sociais são carregadas de intencionalidades. Es-tas se expressam nos objetivos, crenças, pontos de vista e ações de indivíduos, grupos, classes, povos, nações. Geralmente, por meio delas realiza-se a materia-lização dos indivíduos no espaço a partir da apropriação e dominação deste. Isto se faz historicamente, portanto, política e ideologicamente. Logo, toda análise dos processos de produção do espaço e territórios que se apresente como apolí-tica, neutra e não ideológica deve ser encarada com a devida suspeição.

Compreendo que, ao realizar-se a apropriação/dominação do espaço, pro-move-se a sua fragmentação que resulta de dada relação social e sua carga de intencionalidades, que pode ser material (como a vitrine de uma joalheria, um caixa de supermercado ou a cerca de um imóvel rural) ou imaterial (a exemplo de uma representação cartográfica do espaço para uma dada finalidade ou a di-fusão de uma forma de pensar a realidade).

A fragmentação do espaço geográfico é determinada por uma forma de poder que impõe à dada coletividade a visão, a crença, o objetivo, as ações do grupo mais forte, em dado momento histórico. Este movimento de exercício do poder, para controle de um dado fragmento espacial, desemboca em con-flitos e cria o território. Neste raciocínio, o território é uma concessão para aqueles que nele podem entrar e uma confrontação para os que ficam de fora (Raffestin , 2003).

Uma reflexão sobre a categoria território envolve, atualmente, uma tarefa árdua, por um lado, em virtude da enorme gama de estudos neste campo, por outro, pelas diferentes visões de mundo defendidas pelos estudiosos, o que,



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sumariamente, implica no tratamento de territórios diferentes. O conceito de território, na atualidade, é cercado por uma grande polissemia que resulta do poder que os diferentes sujeitos têm de defini-lo. Pode designar espaço social no senso comum, espaço apropriado por determinadas espécies animais na etolo-gia, equivalente de região para instituições governamentais ou, pode ainda, ter conotações mais abstratas e/ou metafóricas no campo simbólico. Os estudos de Haesbaert (1997) levaram este autor a promover um agrupamento das distintas abordagens sobre o território em três vertentes:

• Jurídico-política–Constituiavertentemajoritárianageografia,emqueo espaço é delimitado e controlado a partir de relações de poder, inclusi-ve de caráter estatal. Destacam-se as abordagens ratzelianas. Embora ele passe a ser adotado com mais intensidade na Geografia apenas a partir dos anos 1970, foi, ainda no final do século XIX em 1882, que o alemão Friedrich Ratzel, introduziu a noção de território, através da publicação de sua obra Antropogeografia. Partindo da etologia, ele criou o conceito de território como uma parcela do espaço identificado pela posse, área de domínio de uma comunidade ou do Estado. É no entender daquele geógrafo, a concepção do espaço vital que prevalece: um dado espaço, de-limitado por fronteiras controladas pelo poder exercido por um Estado-nação, que tem a finalidade de defender o território contra a ameaça de possíveis invasores. (Haesbaert, 1997)

• Cultural(lista)–Enfocaadimensãosimbólicaesubjetiva,sendooter-ritório construído a partir dos referenciais do imaginário e/ou da iden-tidade social sobre o espaço. Os principais estudos foram realizados por Tuan. Discutindo o território, Tuan (1985) promove uma analogia entre a concepção geográfica e aquela da etologia, esta última ciência, ao estudar o comportamento das várias espécies animais nos seus res-pectivos espaços vitais, aponta para o exercício do poder sobre o espa-ço com a finalidade de protegê-lo dos intrusos. Gerando, assim, um comportamento de propriedade sobre certas áreas delimitadas como sua propriedade, territorializando seu espaço vital. Para este autor, a peculiaridade humana reside na capacidade de desenvolver emoções e pensamentos, criando, dessa forma, um sentimento de lealdade apai-xonada por meios simbólicos, o que leva à formação de uma identida-de do lugar: topofilia. Assim, o território passa a ser definido por este autor como lugar.

• Econômica(economicista)–estaabordagemenfocaadimensãoespacialdas relações econômicas. Destaca a desterritorialização social como fruto do embate entre as classes sociais e da relação capital-trabalho.

Pedon (2009, p. 35) dialogando com o pensamento do Ruy Moreira enten-de que



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o espaço, na sua expressão territorial, abarca a totalidade concreta dos processos de produção, distribuição/circulação e consumo, articulados com as dimensões política e ideológica (supe-restrutura). A luta de classes insurge como síntese contraditória entre as práticas e interesses das três classes sociais fundamentais: a burguesia, o proletariado e os proprietários de terra. A contradição entre classes é contínua, assim como é contínua a transformação do território. Da mesma forma que a configuração territorial manifesta as estratégias de reprodução do capital ele envolve as lutas de emancipação e resistência. O conceito de território, entendido como expressão espacial da luta de classes, é definido, então, a partir das relações de poder ensejadas pelo conflito permanente entre capital e trabalho.

Outra abordagem sobre o território é a natural ou naturalista, hoje pouco difundida nas Ciências Sociais e enfoca o território a partir das relações socie-dade-natureza, em particular, o comportamento “natural” dos homens com re-lação ao seu espaço físico.

Porém, a reflexão sobre os territórios e as dimensões que se evidenciam, re-fletem as diferentes visões de mundo, as distintas fundamentações filosóficas dos estudiosos. A este respeito, outro estudo de Haesbaert (2004, p. 41) siste-matiza a conceituação de território de acordo com:

a) O binômio materialismo-idealismo, desdobrado em função de duas outras perspectivas: i. a visão (...) ‘parcial’ de território, ao enfatizar uma dimensão (seja a ‘natural’, a econômica, a política ou a cultural); ii. A perspectiva ‘integradora’ de território, na resposta às problemáticas que, ‘condensadas’, através do espaço, envolvem conjuntamente todas aquelas esferas.

b) O binômio espaço-tempo, em dois sentidos: i. seu caráter mais absoluto ou relacional: seja no sentido de incorporar ou não a dinâmica temporal (relativizadora), seja na distinção en-tre entidade físico-material (como ‘coisa’ ou objeto) e social-histórica (como relação); ii. Sua historicidade e geograficidade, isto é, se trata de um componente ou condição geral de qual-quer sociedade e espaço geográfico ou se está, historicamente, circunscrito a determinado(s) período(s), grupo(s), social(is) e/ou espaço(s) geográfico(s).

Na perspectiva integradora, uma formulação acerca do território, merecedo-ra de destaque, foi construída por Claude Raffestin (1993). Este autor, baseado em ideias também de Ratzel, não prioriza discutir se o território é um conceito ou uma noção. Segundo ele, deve- se partir do pressuposto que

(...) o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela represen-tação), o ator ‘territorializa’o espaço. (...) O espaço é a ‘prisão original’ [grifos do autor], o ter-ritório é a prisão que os homens constroem para si (Raffestin, 1993, p. 143-144).

Fernandes (2009) no decurso dos estudos sobre a questão agrária brasileira e fundamentando-se em Raffestin, Milton Santos e Lefebvre elaborou uma ti-pologia dos territórios. Esforço reflexivo e analítico que é justificado em face da difusão do território por diferentes ciências que abordam a produção do espaço, sua utilização por diferentes instituições públicas ou privadas, sua apropriação



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pelas diretrizes do pensamento neoliberal, substituição na contemporaneidade de políticas setoriais e/ou regionais por políticas públicas territoriais no campo, na cidade e na floresta que, por sua vez, originam diferentes modelos de desen-volvimento causadores de impactos socioterritoriais e a produção de conflitua-lidades.

Para este estudioso o território é constituído pelos princípios de totalidade, intencionalidade, conflitualidade, pluriescalaridade ou multiescalaridade. O território como resultante da fragmentação do espaço por meio do exercício de um poder contém todas as dimensões do espaço geográfico, ou seja, a natureza, a sociedade, a cultura, a política e a economia. Nesta perspectiva, o território é multidimensional. O princípio de totalidade não quer dizer que tudo é territó-rio, mas que o território contém o todo que, por sua vez, é parte da realidade. A delimitação de um território unidimensional é de competência dos sujeitos que o elaboram, de acordo com suas respectivas intencionalidades. Este princípio (intencionalidade) é definido como a

opção histórica que as pessoas fazem e que determinam a direção de seus pensamentos para a construção e defesa de ações políticas, como a escolha de paradigmas, correntes teóricas, polí-ticas públicas, modelos de desenvolvimento, ou seja, leituras que direcionam as compreensões das realidades (Fernandes, 2009).

O princípio da conflitualidade é definido como o processo de relações so-ciais que instituem um estado permanente de enfrentamento entre diferentes formas de pensar e agir na sociedade, com vistas à permanência ou superação das classes sociais, instituições, espaços ou territórios. Por sua vez, a pluriescala-ridade ou multiescalaridade enfatiza a necessidade de compreensão das diferen-tes escalas dos territórios. Estas são imprescindíveis para a definição do territó-rio, contudo, diferentes sujeitos e atores têm optado por delimitações teóricas deste conceito que ignoram um, alguns ou todos os princípios, como o que ocorre nas políticas públicas que tem o território como referência, conforme apresentei na introdução deste capítulo.

Esta forma de pensar tem adotado o território como espaço de governança. Refere-se a um determinado espaço físico-material delimitado como a área ter-ritorial de Estado-Nação, um município, uma microrregião, um departamento, uma província. Estas diferentes escalas são ao mesmo tempo articuladas e inde-pendentes. Este é o primeiro território, tratado pelo autor com o território uno, uma vez que sua função é apenas a governança.

Todavia, uma postura que considere as conflitualidades decorrentes do de-senvolvimento do capitalismo precisa considerar o território diverso, deve tratar das diferencialidades entre os territórios. Neste contexto, concebe-se como ter-ritório diverso o segundo território e o terceiro território. O segundo território refere-se às propriedades, sejam capitalistas, não capitalistas, individuais, comu-



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nitárias ou familiares. O segundo território é parte do primeiro território, mas são diferentes, uma vez que, são construídos por sujeitos e relações diferentes. Situa-se no interior do primeiro território.

As propriedades capitalistas (que podem ser exemplificadas pelas empresas transnacionais, pelo agronegócio etc.) e as não capitalistas (como as familiares e camponesas) estão em conflito permanente, opondo modelos de desenvolvi-mento. Decorre do processo de expansão de um dos modelos a destruição do outro. Ambos estão em movimento, em disputa pelo primeiro território, pois o controle do espaço de governança é fundamental para avançar com a per-manência ou expansão do segundo território. Por sua vez, o terceiro território refere-se ao espaço relacional da conflitualidade que reúne todos os tipos de territórios.

Para o autor Os sujeitos produzem seus próprios territórios e a destruição destes territórios significa o fim desses sujeitos. O desapossamento também destrói sujeitos, identidades, grupos sociais e classes sociais. A ideia de acumulação por espoliação de Harvey (2003) revela seus próprios limites. E aí está o ponto forte da luta territorial, da disputa territorial. Sujeitos, grupos so-ciais, classes sociais não existem sem seus territórios. Este é o sentido supremo da luta pelos territórios dos povos camponeses e indígenas. O capitalismo sempre apropriou e/ou subalter-nizou outras relações sociais e seus territórios. O desapossamento significa a intensificação da destruição dos territórios não subalternos e é exatamente neste ponto que destaco as formas de resistências que emergem dos campos, dos territórios rurais, muito mais que nas cidades (Fernandes, 2009, p. 13).

Segundo Raffestin (1993) o território advém do espaço, mas não é o espa-ço em si. Qualquer representação no/do espaço necessita de códigos e sistemas sêmicos; estes, por sua vez, pressupõem processos sociais e, à medida que per-mitem o estabelecimento de formas de poder, metamorfoseiam o espaço em território, uma vez que qualquer sistema de representação tem implícito certo cunho de poder. Raffestin, na mesma obra, desenvolve uma abordagem múlti-pla, pois, além de propor uma interpretação fundamentada no campo relacio-nal do poder no sentido de apropriação física, material (através de fronteiras jurídico-políticas) considera, também, a territorialização imaterial, simbólica, subjetiva (como o campo da semiótica e os aspectos subjetivos inerentes aos indivíduos).

Compreendo que o território, como resultante da fragmentação do espaço geográfico, contém no seu bojo as propriedades deste último. A territorializa-ção é um processo geográfico de construção dos territórios. Em virtude da sua natureza, gera, incondicionalmente, um conjunto de conflitos entre aqueles sujeitos envolvidos no processo. Acompanha-se permanente e concomitante-mente de outros dois processos contrários e constituintes: a desterritorialização e a reterritorialização. Configurando, desta forma, o movimento de territoria-



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lização-desterritorialização-reterritorilização (T-D-R). A desterritorialização é a destruição, a perda do território e a reterritorialização a construção, a conquista de um novo território.

Este processo é permanente e contraditório. Na cidade, os trabalhadores lutam permanentemente para alterar a relação capital-trabalho, seja median-te a uma maior apropriação da riqueza produzida nas atividades laborais, seja na conquista do espaço de moradia. A luta pela alteração dos níveis de relação de exploração do trabalho se dá no território do capital. Mesmo que a relação capital-trabalho seja alterada em favor dos trabalhadores, o território permane-ce pertencente ao capitalista, sujeito controlador do espaço produtivo (unidade industrial, estabelecimento comercial ou prestador de serviços etc.) e dos meios de produção. O território do trabalhador é o espaço da moradia, cuja função de abrigo, materialização da vida e espaço impulsionador da conquista de sonhos é vista pelo capital como um instrumento necessário à reprodução da força de trabalho, necessária para a dominação do trabalho.

No campo, o capital desenvolve um modelo de desenvolvimento que per-passa, principalmente, o controle da terra destinado à produção de produtos que tenham valor de troca, a produção de commodities, ou simplesmente o controle da terra como instrumento de especulação, manifestação do rentismo fundiário. A terra representa possibilidades de auferir um lucro extraordiná-rio, a renda capitalizada da terra. A territorialização do capital no campo se dá mediante a ampliação dos territórios incorporando mais terras, o que Olivei-ra (1997) denomina territorialização do capital monopolista, ou subordinando os territórios camponeses para a produção de matérias-primas demandas pela agroindústria, configurando a monopolização do território camponês pelo capital monopolista (Ibid., 1997).

Para os camponeses a terra tem um sentido oposto. O acesso e controle da terra são primordiais para viabilizar moradia, produção alimentar básica da fa-mília, geração dos recursos econômicos necessários à sua subsistência, realização da cultura e muitas vezes da religião. Portanto, a conquista e o controle da terra para o campesinato e (sua territorialização) comportam as funções de moradia de trabalho. A terra representa um sonho para os camponeses expropriados, quando o acesso à ela converte-se em acesso ao território, a terra tão sonhada torna-se o meio que possibilita ampliar e materializar os sonhos da família, em diferentes planos, dimensões e escalas temporais. Para o campesinato o acesso à terra, quando convertida em território, representa a materialização da vida.

A principal forma de criação e recriação do campesinato na contemporaneida-de brasileira tem sido a conquista de assentamentos de reforma agrária. Na prática sua territorialização, mediante a conquista dos assentamentos, promove a dester-ritorialização (ao menos na dimensão físico-material) dos latifundiários que, por



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sua vez, podem reterritorializar-se em outro município, estado, ou região brasilei-ra, no mesmo setor de atividade econômica ou em outro setor da economia.

A territorialização do agronegócio implica a desterritorialização camponesa. Igualmente, as disputas territoriais intra-capital podem conduzir à desterrito-rialização de um cultivo menos rentável, em dado momento histórico, frente à (re)territorialização de outra atividade mais rentável, como é o exemplo da des-territorialização da pecuária extensiva no Pontal do Paranapanema (São Paulo) frente aos incentivos governamentais à produção canavieira voltada à elabora-ção do etanol, no final da primeira década do século XXI.

Os trabalhadores excluídos e expropriados pela tecnificação das relações de produção e pela concentração de terras podem organizar-se para buscar sua reterritorialização. Uma dessas formas é a busca por sua recampesinização me-diante a ocupação de terras (Fernandes, 2000). O capital também engendra formas de recriar o campesinato sob o seu controle, como é o caso do arrenda-mento, meação, parceria, e das políticas de crédito fundiário.

Cada assentamento rural, seja ele resultante da reforma agrária ou do finan-ciamento pelo crédito fundiário, carrega nas suas formas-conteúdo as marcas materiais e imateriais das relações sociais desenvolvidas no processo prévio de sua criação e da sua construção cotidiana. Aí estão as marcas das lutas e enfren-tamentos realizados na época do acampamento ou dos processos de negociação com a classe dos rentistas, e da contratação do financiamento destinado à com-pra de fração do território do capital pelo crédito fundiário.

Portanto, a principal via de análise deste processo e conceito não está no co-nhecimento das características naturais do que se produz ou das ligações e iden-tidades entre um grupo e seu espaço, mas sim a quem e como domina o espaço em questão, densamente preenchido, portanto, de ideologias. Se tomarmos as relações de poder enquanto relações sociais, o território e os processos de terri-torialização resultam da multiplicidade de poderes, incorporados pela multipli-cidade dos sujeitos envolvidos.

Territórios também são construídos e desconstruídos em escalas temporais e espaciais distintas. Podem ser construídos ao longo de séculos, décadas, anos, meses, dias e, até mesmo, em escalas ainda menores. Sua existência pode assu-mir caráter permanente ou periódico. Os objetivos da territorialização podem variar ao longo do tempo e do espaço. Para isso, deve-se levar em conta a inten-cionalidade do(s) ator(es) ou sujeito(s) que o criou.

No atual período técnico-científico-informacional, marcado pela ampliação da fluidez do espaço e a irreversibilidade, imprevisibilidade e simultaneidade do tempo, as redes tornam-se, também, importantes na constituição do territó-rio. As redes são identificadas por sua configuração material (infraestrutura que possibilita o fluxo de matéria, energia ou informação) e imaterial (sua dimensão



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social, política, ideológica, conhecimento) que enfatiza: os diferentes fluxos que ocorrem no território, a conexão de um território com outros territórios, bem como sua descontinuidade física.

Logo, um assentamento pode ser considerado um território, mas, no seu interior, diferentes territórios se superpõem, a exemplo de uma unidade de pro-dução familiar, da casa etc. O conjunto dos assentamentos conquistados por um dado movimento social, considerados em seu movimento sobre o espaço e/ou o conjunto dos empreendimentos contratados pelo financiamento bancário, também pode ser tomado como o território desta organização.

As trocas de experiências das formas organizativas para resistência pela/na terra e a troca de conhecimentos, construídos entre diferentes assentamentos de uma dada região, ou, até mesmo a articulação de diferentes organizações cam-ponesas que atuam em diferentes continentes, em torno da Via Campesina, além da articulação de associações de mutuários da microrregião do Triangulo Mineiro e Alto Paranaíba, no estado de Minas Gerais, no recém criado Movi-mento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado (Maram), são exemplos dessa característica do território.

Este território constitui-se em uma totalidade e, como tal, compõe-se das dimensões política, natural, simbólico-cultural, econômica e social. É, a um só tempo, relacional, histórico, multiescalar e articulado em redes. Uma aborda-gem que não contemple esta multidimensionalidade não pode ser tratada como territorial. Desta forma, considero o território como um espaço político por excelência, no qual o exercício de poder é central na sua delimitação e gerador de conflitualidades.

Essa categoria também pode apresentar-se além de espaços físicos delimita-dos na sua permanência ou na sua efemeridade. É importante analisá-la, tam-bém, na sua expressão imaterial. Pode manifestar-se por meio dos saberes uni-versais, que compõem uma dada cultura, ou dos conhecimentos científicos construídos historicamente pelos sujeitos. Estes resultam de uma relação social e são elaborados a partir da cognição, portanto, em um espaço mental.

Os paradigmas (pensamentos concomitantemente teóricos e políticos), a política, a ideologia, as informações produzidas e difundidas pelos meios de comunicação, e até mesmo as palavras, podem delimitar um território. Para se territorializar, necessita realizar-se espacialmente. Ao difundir-se entre os su-jeitos, tal ideário promove uma permanência e/ou alteração comportamental, delimitando um certo controle social sobre os mesmos, definindo uma forma de interpretar uma realidade, de posicionar-se, de agir. Portanto, constrói uma materialidade ou novas materialidades (Fernandes, 2005b).

Nesse sentido, remeto no próximo subcapítulo uma discussão sobre os pro-cessos de espacialização e territorialização do campesinato na reforma agrária



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de mercado, desde o plano imaterial contido na formulação e conteúdo das políticas públicas, para em seguida analisar a territorialização material desde os dados estatísticos.

A criAção e recriAção do cAmPesinAto e os Processos de esPAciAlizAção e territoriAlizAção

Historicamente, nos diferentes países, a apropriação da terra tem possibilita-do o acesso a diferentes dimensões da realidade, como: produção econômica, instrumentos de participação política, informação, conhecimento, tecnologia, políticas públicas, dentre outros. A concentração deste bem, obviamente, con-tribui para o controle das diferentes dimensões da realidade, ampliação da desi-gualdade e exclusão da maior parte dos sujeitos.

O Banco Mundial (BM) tem propalado que, nos países onde ocorreu maior distribuição da terra, decorreu crescimento econômico e redução da pobreza. Contudo, há que se observar que para atacar a pobreza e seus efeitos, não so-mente necessita-se distribuir terras para os excluídos do campo, minifundiários ou pobres urbanos. Deve-se avaliar o(s) instrumento(s) utilizado(s) na redistri-buição da propriedade territorial no tocante às possibilidades e dilemas impos-tos à emancipação dos camponeses, condição fundamental para atacar o par pobreza-desigualdade.

Conforme afirmamos anteriormente, a expansão do capitalismo no campo ao mesmo tempo em que provoca a eliminação do campesinato, produz con-traditoriamente instrumentos de criação e recriação do campesinato, que são mantidos sob o seu controle, a exemplo dos expedientes de arrendamento de terras e a reforma agrária de mercado. Porém, o campesinato também pode se criar e recriar contra o capital a partir das diferentes formas de manifestação da luta pela terra, pela reforma agrária, pela demarcação dos territórios indígenas e reconhecimentos dos territórios quilombolas.

Tomada a experiência da luta pela terra no Brasil, praticada pelo MST nos últimos 25 anos, atesta-se a ocorrência dos processos geográficos de espacializa-ção e territorialização na recriação dos camponeses. Segundo Fernandes (1996) este processo é desencadeado com a realização de trabalho de base junto às fa-mílias pobres do campo e da cidade, seguido da construção de um espaço de socialização política que se dá mediante o dimensionamento do espaço comu-nicativo, onde as famílias se encontram em reuniões, conhecem o movimento socioterritorial, a partir da exposição sobre as realidades vividas por cada família e reflexão sobre as causas da condição em que se encontram, dimensionam o espaço interativo e detonam a chispa da consciência de classe. Algumas famí-lias decidem não continuar no processo, enquanto outras decidem pelo dimen-



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sionamento do espaço de luta e resistência, materializado na concretização das ocupações dos latifúndios ou do agronegócio e edificações dos acampamentos de sem-terra.

A luta política pode resultar na desapropriação da grande propriedade e im-plantação de assentamentos de reforma agrária destinados a dezenas ou centenas de famílias. Neste caso, o campesinato se territorializa mediante a conquista de fração do território do capital. O assentamento constitui-se em território campo-nês e assume a condição de trunfo na continuidade da luta para a conquista da implantação do assentamento, direitos sociais e previdenciários, políticas credití-cias e agrícolas específicas etc. Portanto, a política de assentamentos de reforma agrária conduzida sobre estas bases, torna mais proeminente a dimensão política, permitindo tratar a reforma agrária como território da política. Política compreen-dida como prática de liberdade, conforme proposto por Arendt (1998).

Nas políticas de reforma agrária de mercado, o campesinato também se re-cria mediante os processos de espacialização e territorialização, mas seus con-teúdos são diferentes, tendo em vista serem outros os sujeitos e atores que pro-tagonizam o processo. A espacialização se dá mediante a construção de um espaço de socialização política formado por duas dimensões distintas, articula-das e complementares que sucedem à deliberação da amplitude e regras de fun-cionamento do Programa pelas instituições financeiras e governos.

Primeiramente, representantes de governo (nos níveis municipal, estadual e federal), membros dos Conselhos de Desenvolvimento Rural Sustentável (na-cional, estadual ou municipal), entidades sindicais de trabalhadores rurais e movimentos socioterritoriais, instituições financeiras, gestores do Programa nos níveis federal, estadual e municipal e associações de camponeses, dimensionam o espaço jurídico-institucional ao interagirem, em fórum específico, em torno da elaboração, aprovação, execução e controle das normas operacionais do pro-grama. Neste espaço, homologa-se, também, o volume de recursos que serão investidos na compra de terras e que determinam as metas a serem alcançadas em termos de famílias a serem atingidas.

O alcance das diretrizes e metas deliberadas no espaço jurídico-institucional depende da convergência de um conjunto de fatores, dentre os quais destaco: a disponibilidade de recursos para implantação dos empreendimentos, a existên-cia de proprietários motivados a vender suas terras e pobres decididos a comprá-las no contexto de um ambiente institucional favorável ao mercado de terras, além de uma conjuntura política favorável ao programa.

Para alcançar este cenário, exige-se que os gestores públicos, políticos locais, sindicatos e lideranças comunitárias promovam um conjunto de reuniões, em diferentes locais, com os potenciais compradores de terras, denominadas de pla-nejamento e/ou capacitação, cujo objetivo central é capturar a forma de pensa-



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mento e ação dos sujeitos em torno destes programas, forjando um imaginário coletivo favorável à proposta e desencadeador da decisão da adesão à tomada de empréstimos financeiros para aquisição de terras com vistas a sair da pobreza.

Dimensiona-se, aqui, o espaço da subalternidade que também pode ser pro-duzido midiaticamente (por propagandas de TV, programas de rádio, páginas de internet, cartazes, panfletos, cartilhas etc). Um exemplo emblemático deste foi a divulgação, há cerca de dois anos, de matéria publicada na home page da Empresa de Desenvolvimento Sustentável de Sergipe (que gere os programas do Banco Mundial em Sergipe), da realização de um curso de capacitação para in-tegrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra para elaboração da proposta de compra de imóveis pelo Crédito Fundiário.

A direção da Pronese avalia a adesão do MST à reforma agrária de mercado, como uma possibilidade de acelerar o acesso à terra das famílias acampadas no estado. A argumentação, em favor da reforma agrária de mercado, não passa de uma reprodução daqueles argumentos adotados pelo Banco Mundial e governo federal, ou seja, acesso à terra sem conflitos entre proprietários e trabalhadores rurais, celeridade no assentamento das famílias, disponibilidade de recursos não reembolsáveis para infraestrutura, capacitação e assistência técnica (Secretaria de Estado do Planejamento, 2007).

Estes espaços são construídos com frequência para agregar trabalhadores e convencê-los a formar as associações para ingresso no programa de compra de terras. No vídeo-documentário que registra a fundação do Maram intitulado A realidade do Banco da Terra, um exemplo emblemático do dimensionamento do espaço da subalternidade pode ser verificado nas imagens da reunião reali-zada em 04 de abril de 2001, com dezenas de trabalhadores rurais, na cidade de Monte Alegre de Minas, cujo tema era Como aumentar a renda familiar em sua propriedade rural, um consultor do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf ), da Associação dos Municípios do Alto Para-naíba (Amvap) e da Força Sindical, responsável pela introdução do Banco da Terra nos estados de Minas Gerais e São Paulo, explanava com veemência da seguinte forma:

No caso do Banco da Terra, vou começar agora de baixo pra cima, cada um dos senhores fi-lho de pequenos agricultores que quer comprar a terra ou trabalhador rural, você tem 26 mil reais que o governo já financia a terra e compra à vista, pra evitar aquele negócio de invasão, tumulto dentro da cidade! Condições de pagamento disso aqui: você tem 20 anos pra pagar, juros fixos por ano sem correção monetária, com descontos de 5,6% ao ano. Dos estudos que eu fiz a partir de 10 anos, passando, a prestação dessa terra vai valer menos que uma caixa de fósforos. Começa a pagar daqui a três anos. Presta atenção! Se a situação não melhorar os mu-nicípios, fazer as pessoas que não têm terra a melhorar de vida, ou porque o sujeito não gosta de trabalhar ou porque o projeto dele foi feito errado, porque uma chance que nem essa nunca teve no mundo! (Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado, 2007).



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No entanto, as famílias que aderiram ao programa, aproximadamente seis anos após a realização da referida reunião, declaravam no mesmo documentário a gravidade de sua condição de endividamento, problema que as levou a forma-ção do Maram e produção do referido vídeo-documentário.

A territorialização do campesinato através da RAM ocorre em seguida ao dimensionamento dos espaços jurídico-institucional e da subalternidade. Se dá mediante a contratação de um empréstimo financeiro pelo camponês para comprar fração do território do capital, seja organizado em associação ou indi-vidualmente. Evidentemente que o sujeito que detém controle efetivo da cria-ção e recriação do campesinato e do território, até que o camponês integralize todas as parcelas do financiamento, é o capital financeiro.

A desterritorialização do capital rentista ocorre, somente, no tocante a venda do imóvel, cujo montante recebido possibilitará sua reterritorialização median-te investimentos em outros locais e/ou setores/ramos de atividade produtiva ou especulativa. Territorializa-se o próprio capital nesta operação mercantil: o ca-pital rentista mediante a realização da renda absoluta da terra e o capital finan-ceiro ao se apropriar dos juros de dívida.

Há que considerar, ainda, que o Crédito Fundiário pode servir para os fa-zendeiros fugirem dos processos desapropriatórios. As fazendas podem ser pro-postas para a negociação antes de tornarem-se improdutivas. Os fazendeiros podem sugerir sua venda quando observam o avanço dos conflitos de terras em uma dada região, ou até medidas ardilosas de fragmentação de fazendas em mais um imóvel, com vistas a dificultar ou impedir a realização da reforma agrá-ria. Portanto, a dimensão que mais se evidencia é a econômica, a mercadológi-ca, possibilitando-nos compreendê-la como um território da economia. Estas dinâmicas demonstram que a territorialização das políticas de crédito fundiário pode se dar como uma ação de contrarreforma agrária pela via do mercado, de modo que passarei a tratá-la daqui por diante de Contrarreforma Agrária pelo Mercado (Cram) ou contrarreforma agrária do Banco Mundial.

Neste contexto, o processo de (des)(re)territorialização do campesinato in-sere-se em quadro relacional, logo, histórico, que fundamenta-se na oposição de intencionalidades das classes proprietárias de terras e dos trabalhadores que realizam, permanente, o exercício de poder sobre setores do Estado, com vista a conquista da implantação de políticas públicas que viabilizem um modelo de desenvolvimento específico.

Ao tomar a problemática relacional da questão agrária no Brasil contem-porâneo em sua complexidade e, neste contexto, a recriação do campesinato através dos processos de reforma agrária, verifica-se desde o governo de Itamar Franco o tratamento desta política como instrumento de combate à pobreza. A reforma agrária perpassa a alteração da concepção da propriedade fundiária in-



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dividual concentrada pelo capital, para uma propriedade privada redistributiva, uma vez que os assentamentos rurais criados em grandes propriedades benefi-ciam dezenas ou centenas de famílias a uma só vez.

Esta compreensão defendida pelos movimentos socioterritoriais choca dire-tamente com os interesses dos capitalistas. A fim de defender seu poder terri-torial, o capital busca capturar as formas de criação e recriação do campesinato para mantê-las sob o seu controle. Isto se dá no plano material e imaterial. Pas-semos então ao resgate dos processos políticos e escalares de estruturação dos programas de crédito fundiário, no Brasil, na última década.

As BAses dA (des)(re)territoriAlizAção do cAmPesinAto nAs PolÍticAs de crédito fundiário

No Brasil, as políticas fundiárias do Banco Mundial foram introduzidas du-rante o primeiro mandato do governador Tasso Jereissati5 em 1987, no estado do Ceará. Neste período, foi criado o Projeto de Combate à Pobreza Rural no Ceará (PCPR) que, com o intuito de se aproximar das pessoas, utilizou o co-dinome de Projeto São José, santo reverenciado pelo campesinato nordestino, pois, no catolicismo popular é o responsável por trazer as chuvas para a lavoura. Com o objetivo de combater a pobreza, o programa iniciou suas ações com o financiamento para pequenos agricultores de investimentos produtivos (casa de farinha, fábrica de doces etc.), infraestrutura (lavanderia comunitária, eletrifi-cação rural etc.), e equipamentos sociais (reforma de postos de saúde, creches comunitárias etc.).

Em 1996, durante a segunda gestão do Tasso Jereissati, incorporou-se ao Projeto São José um componente de ação fundiária, orientado e financiado pelo Banco Mundial, que foi denominado de Reforma Agrária Solidária – Pro-jeto São José (PSJ). Seu objetivo foi promover a introdução do mecanismo de mercado na realização da reforma agrária, mediante o financiamento de terras para trabalhadores rurais sem-terra e minifundiários. Operou entre agosto de 1996 e dezembro de 1997, sob gestão da então Secretaria de Agricultura e da Reforma Agrária e da Secretaria de Planejamento e Gestão. Observe que a sua denominação busca esvaziar o conteúdo político da reforma agrária, tema tradi-cionalmente marcado pelo conflito, mediante a introdução do mercado como promotor de um processo pacífico e solidário.

Segundo Hidalgo (1999) o projeto contou com um orçamento de R$ 4.165.600,00 (quatro milhões, cento e sessenta e cinco mil e seiscentos

5 Tasso Jereissati é fundador do Partido da Social Democracia Brasileira, foi governador do estado do Ceará de 1987 até 1991, e de 1995 a 2005.



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reais ) do Fundo Rotativo de Terras, criado pelo estado do Ceará e R$ 6 milhões provenientes do BM. Durante sua fase de operação o programa comprou 44 imóveis, abrangendo uma área de 23.622,59 ha, atingindo 694 famílias em 27 municípios. Apesar de não conseguir cumprir a meta de atingir 800 famílias em um ano de operação, devido a elevação do preço da terra estimulada pelo próprio programa e de apresentar uma série de incompletudes na implementa-ção dos empreendimentos, que geraram evasões e substituições de famílias, o governo do Ceará avaliou o projeto como um sucesso na agilização da aquisição de terras.

Em nível nacional, o projeto neoliberal ganhou força com o primeiro manda-to do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC)6. Como forma de oposição, os movimentos socioterritoriais camponeses, especialmente o MST e a Confede-ração dos Trabalhadores na Agriculta (Contag), intensificaram a luta pela terra com vista a realizar a pressão necessária para avançar a reforma agrária e a oposição ao projeto político-econômico em curso. Frente a isto, a classe dos latifundiários respondeu com violência e graves descumprimentos aos direitos humanos.

Na região mais desenvolvida do país, no Pontal do Paranapanema, São Pau-lo, a violência psicológica, por meio da perseguição política, aprofundou-se; mas foi na Amazônia que a violência física da eliminação chegou a seu ponto máximo, em agosto de 1995, com o Massacre de Corumbiara, no estado de Rondônia. E, no dia 17 de abril de 1996, com o Massacre de Eldorado dos Ca-rajás, no sul do Pará. Nestes episódios, respectivamente, foram assassinados pela polícia militar (que atuava na defesa da propriedade privada) 11 posseiros e 19 trabalhadores sem-terra e outros tantos foram torturados e/ou feridos. Passa-dos 12 meses dos massacres, o MST realizou a Marcha Nacional por Emprego e Justiça, que chegou a Brasília, em abril de 1997. A violência praticada pelos latifundiários e a resistência dos sem-terra recolocaram, na agenda política da sociedade, a questão agrária e a urgência da reforma agrária no país.

O governo havia que correr atrás do prejuízo. A repercussão dos massacres converteu-se em escândalo internacional, um descumprimento grave dos Di-reitos Humanos e, para o governo, mais que isso, a repercussão internacional dos fatos eliminava a confiança no Brasil por parte dos investidores internacio-nais, em particular do capital especulativo. Era preciso recuperar a imagem do país. E, nesta perspectiva, em agosto de 1997, quando ainda se encontrava em operação o PSJ, criou o Projeto-Piloto de Reforma Agrária e Alívio da Pobreza mais conhecido como Cédula da Terra (PCT). O projeto, na verdade, consis-tia em uma ampliação da ação local do Ceará (o PSJ) para os estados do Mara-

6 Fernando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), governou o Brasil por dois mandatos consecutivos, ou seja, 1995-1998 e 1999-2002 em aliança política com Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente denominado Partido Democrata (DEM).



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nhão, Ceará, Pernambuco, Bahia e norte de Minas Gerais, em face da enorme concentração de pobreza, que deveria ser amenizada por mecanismos de mer-cado (Mapa 1). O PCT, por sua vez, operou até o final do mandato FHC em dezembro de 2002.

mAPA 1

Foi instituído pelo empréstimo n. 4.147BR, no valor de 90 milhões de dó-lares, contraído pelo Brasil em 1998, e, contrapartida do governo brasileiro no valor de 45 milhões de dólares, 6 milhões de dólares foi alocado pelos gover-nos estaduais, além de 9 milhões de dólares correspondentes a 10% do valor de cada projeto, a ser paga pelos mutuários em mão de obra, material ou dinheiro.



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O objetivo do Cédula era financiar a compra de terras por 15 mil famílias. Os argumentos do governo FHC para a federalização da política coincidem com aqueles apresentados pelo Banco, em diferentes países onde políticas seme-lhantes estavam em curso, a saber: a) o programa acelera a realização da reforma agrária ao eliminar a burocracia e longas disputas judiciais típicas dos processos desapropriatórios por interesse social; b) tem um custo inferior ao mecanismo desapropriatório, tendo em vista o caráter negociado das operações de compra e venda, fator que possibilitaria sua ampliação; c) estimula o mercado de terras através da compra e venda; d) promove uma atitude colaborativa entre traba-lhadores e proprietários de terras, uma vez que os primeiros podem escolher livremente as terras que desejam adquirir, e negociar seus preços, eliminando os confrontos.

Esta experiência, segundo Navarro (1998, p. 1) estava relacionada com a in-tenção do governo em “produzir lições operacionais e um aprendizado consis-tente, visando a sua possível extensão, possivelmente, ao restante do país.” E, de fato, esta expansão se deu ao longo dos governos FHC, e posteriormente Lula, mediante a criação de novas linhas de financiamento de terras, a incorporação de novas unidades da federação e famílias ao programa.

Este programa foi avaliado como bem sucedido pelo Banco Mundial em seu relatório Brazil poverty reduction, growth and fiscal stability in the State of Cea-rá, publicado em 2000, no tocante a agilidade de realização, participação dos beneficiários e impacto previsto. Esta avaliação contribuiu para a contratação pelo país de novos empréstimos e implantação de uma segunda experiência de crédito fundiário, no início de 1999: o Programa Fundo de Terras e da Reforma Agrária – Banco da Terra.

Este Fundo resulta da aprovação de lei federal (Lei Complementar n. 93, de 4 de fevereiro de 1998) e não apenas de um empréstimo financeiro tomado jun-to a um organismo multilateral. Mediante a garantia de um bilhão de dólares pelo Bird e contrapartida do governo brasileiro de mais um bilhão esta agência multilateral concretiza seu objetivo de criar no Brasil um Fundo de Terras e da Reforma Agrária. Portanto, expressa o avanço do cumprimento da bula das po-líticas de terras neoliberais, exposta no Capítulo 1.

O Banco da Terra, ao mesmo tempo em que buscou esquivar-se dos en-frentamentos realizados pelos movimentos camponeses ao PCT, limitando o tamanho das propriedades a serem financiadas de forma a evitar a compra de imóveis passíveis de desapropriação, aprofundou as diretrizes programáticas da instituição multilateral priorizando a individualização do ingresso no programa e reduzindo o valor financiado como forma de forjar uma ampliação do pro-grama. Operando entre 1999 e 2003, o Banco da Terra implantou empreendi-mentos em 17 dos 27 estados da federação, a saber: Maranhão, Piauí, Ceará,



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Rio Grande de Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe Bahia, Espírito Santo, Minas Gerais, São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul (Mapa 1).

O processo de territorialização da RAM extrapola a materialidade expres-sa na implantação de empreendimentos por diferentes estados da federação e ingresso de milhares de famílias. Faz-se necessário apreender a imaterialidade de sua territorialização configurada na propagação deste modelo como uma al-ternativa ágil para aliviar a pobreza e os conflitos no campo, cujos mecanismos estão presentes na realização de pesquisas encomendadas pelo governo FHC e Banco Mundial (Garcia, 1998a; Garcia e Vegro, 1999; Garcia, 1998b; Corrales, 1998; Navarro, 1998; Buainain, 1999) que nem sempre conseguiram mascarar os seus impactos negativos; elaboração de uma legislação e um conjunto de nor-mas voltadas para sua institucionalização; assim como a realização de dispen-diosa campanha publicitária, veiculada na TV em horário nobre, na qual o go-verno FHC buscou confundir a opinião pública, induzindo-a a condenação dos trabalhadores organizados nos movimentos sociais em confronto (com o Esta-do, latifundiários e Judiciário) e tentando elevar o mérito do crédito fundiá rio, sob o slogan Pra quê pular a cerca se a porteira está aberta?

Outro território imaterial foi construído pelos movimentos socioterritoriais, sindicatos rurais, Comissão Pastoral da Terra (CPT), Fórum Nacional pela Re-forma Agrária e pela Justiça no Campo, Organizações Não Governamentais, governos estaduais, parlamentares e Controladoria Geral da União. Estas ins-tituições denunciaram: o desvio de recursos, o superfaturamento do valor das áreas adquiridas, atendimento de pessoas sem o perfil determinado nas normas do programa, o que resultou em abertura de processos administrativos, inqué-ritos policiais, comissões de sindicância, além de outros instrumentos de apura-ção de responsabilidade administrativa, civil e criminal.

Nos anos que se seguiram, os embates entorno do Cédula da Terra e do Banco da Terra continuaram. Seus impactos negativos ficaram cada vez mais explicita-dos. Todavia, o governo FHC preferiu atender aos interesses do BM em tornar o Brasil uma referência na implantação da reforma agrária de mercado. Valendo-se da institucionalização do Fundo de Terras e da contração de novos empréstimos junto ao Banco Mundial, criou em 2001 o Crédito Fundiário de Combate à Po-breza Rural (CFCPR), iniciando sua operação em abril de 2002.

O orçamento do CFCPR constitui-se de 218.200.000 euros do Banco Mun-dial, 174.600.000 euros originários do Fundo de Terras e da Reforma Agrária, 21.800.000 euros dos governos estaduais, além de igual valor das associações comunitárias, sobretudo, sob a forma de trabalho (Pereira, 2004, p. 205).

A escala de abrangência do programa passou a contemplar os estados do Nordeste, os do Sul, Minas Gerais e Espírito Santo, no Sudeste (Mapa 1). Sua



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meta era atingir 50 mil famílias até 2006. As condições de financiamento pouco diferem dos programas anteriores. A principal diferença refere-se à redução do valor financiável ao beneficiário, para o limite de 15 mil reais e o financiamento a fundo perdido para projetos de investimentos comunitários complementares (infraestrutura, equipamentos produtivos e sociais). A redução do valor finan-ciado representa uma sagaz estratégia para ampliar o número de beneficiários, previsto para 50 mil famílias nos primeiros três anos do projeto.

Vale ressaltar, ainda, que a criação do CFCPR foi marcada pela adesão a esta política pública da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricul-tura (Contag) e Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf ), que mediante previsão no manual de operações passaram a prestar assessoria ao Programa. Por fim, os quatro programas apresentados acima (Projeto São José, Cédula da Terra, Banco da Terra e Crédito Fundiário de Combate à Pobreza Rural) compõem a experiência da contrarreforma agrária do Banco Mundial, no Brasil, durante o governo Fernando Henrique Cardoso.

Em novembro de 2003, o governo Luís Inácio Lula da Silva (2003-2006) divulgou o II Plano Nacional de Reforma Agrária: Paz, produção e qualidade de vida no meio rural (II PNRA). Tendo como princípio a necessidade de execu-ção uma reforma agrária ampla e massiva, o II PNRA rompeu com a prática dos governos anteriores ao estabelecer doze metas a serem cumpridas até o final do primeiro mandato deste novo governo. São elas: 1) assentamento de 400 mil novas famílias em projetos de reforma agrária; 2) regularização fundiária para 500 mil famílias; 3) promoção do acesso à terra pelo crédito fundiário de 130 mil famílias; 4) recuperação da capacidade produtiva e viabilidade econômi-ca dos assentamentos existentes; 5) gerar 2.075.000 novos postos de trabalho permanente no setor reformado; 6) cadastramento georreferenciado dos imó-veis rurais; 7) regularização de 2.200.000 imóveis rurais; 8) reconhecimento, demarcação e titulação de áreas de remanescentes quilombolas; 9) reassenta-mento de ocupantes não índios de áreas indígenas; 10) promoção da igualdade de gênero na reforma agrária; 11) garantir assistência técnica e extensão rural, capacitação, créditos e políticas de comercialização às famílias assentadas; 12) universalizar o direito à educação, à cultura e à seguridade social nas áreas re-formadas.

Evidentemente, Lula não apenas herda do governo anterior o mecanismo fundiário orientado pelo Banco Mundial, como o incorpora às metas da refor-ma agrária, mesmo que o discurso oficial refira-se a este como uma ação com-plementar à reforma agrária. Do ponto de vista das metas de famílias a serem atingidas, a Contrarreforma Agrária pelo Mercado (Cram) representava 32,5% do efetivo de famílias programadas para serem assentadas na reforma agrária. Uma meta bastante ambiciosa se compararmos com o governo Cardoso que, de



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1995 a 2002, assentou 375.277 famílias em áreas de reforma agrária (Dataluta, 2011) e 42.829 famílias entre 1998 e 2002 (BDRAM) em programas de crédi-to fundiário, montante este que representa 11,41% das famílias assentadas via desapropriação (Tabela 2). A meta 3 do II PNRA demonstrou que o primeiro mandato de Lula não só incorporou este modelo de desenvolvimento rural mas, sobretudo, decidiu ampliar o número de famílias atingidas.

tABelA 2 – BrAsil: fAmÍliAs em crédito fundiário e reformA AgráriA Por PerÍodo de governo – 1995-2010

Governo Nº famílias RA Nº famílias CF% Famílias em

CF/RA% famílias CF/

Total

FHC (1995-1998) 232.771 4.856* 2,08 2,04

FHC (1999-2002) 142.506 37.973 26,64 21,04

FHC Total 375.277 42.829 11,41 10,24

Lula (2003-2006) 181.591 34.482 19 16

Fonte: Dataluta; BDRAM. *Dados disponíveis somente para o ano de 2008

O Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) está sendo executado mediante a operação do Fundo de Terras, agora incorporado à política fundiá-ria do Estado brasileiro e funcionando como um instrumento de longo pra-zo. Abriga todas as modalidades de linhas de financiamento da contrarrefor-ma agrária de mercado (Cram) elaboradas durante o governo anterior. Embora cada uma delas tenha passado por um melhoramento nas regras operacionais e ganhado um novo nome, a lógica do programa permanece a mesma.

No lugar do Cédula da Terra e do Crédito Fundiário de Combate à Pobre-za Rural, foi criado o Combate à Pobreza Rural (CPR), no qual o ingresso dos mutuários se dá mediante a formação de associações e apresenta como princi-pal locus de implementação os estados da região Nordeste. Outra linha de fi-nanciamento é a Consolidação da Agricultura Familiar (CAF), cujo acesso dos mutuários se dá individualmente. Configura-se como substituto do Banco da Terra e foi inicialmente voltado para atender os estados da região Sul e Sudeste; hoje já abrange estados das regiões Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. Criou- -se, também, a linha Nossa Primeira Terra (NPT), programa voltado para jo-vens sem-terra, agricultores e filhos de agricultores, e/ou egressos das escolas agrotécnicas e escolas rurais, dentre outras, que se encontrem na faixa etária en-tre 18 e 24 anos, dentre outros critérios de elegibilidade. Ademais, neste gover-no as ações de compra de terras continuaram em todos os estados anteriormen-te mencionados, além da expansão da Cram para os estados do Mato Grosso do Sul, Rondônia e Tocantins.



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Recentemente, foram criadas mais duas ações dentro do PNCF: Terra Negra Brasil (TNB) e Terra para Liberdade (TL). Com a mesma lógica de funciona-mento, visam a atender, respectivamente, populações quilombolas e trabalha-dores vulneráveis ou resgatados de situações análogas ao trabalho escravo. Os empreendimentos são implantados por meio de qualquer uma das três linhas de crédito. O TL integra as ações do Plano Nacional para Erradicação do Tra-balho Escravo, do MDA/Incra, e foi articulado prioritariamente com a linha de crédito Combate à Pobreza Rural.

Permanece nas diferentes modalidades de Cram o deslocamento ideológico do Banco Mundial em relação à reforma agrária constitucional. Insiste-se que a recriação do campesinato, pela relação de compra e venda de terras, promo-verá a distribuição da riqueza. Além disso, a própria nomenclatura das linhas de crédito indica um alinhamento com os pressupostos teóricos das políticas agrárias do Banco Mundial. As linhas de financiamento de crédito fundiário obedeceram no Brasil a três fases: a primeira, de introdução da reforma agrária de mercado com a implantação do Projeto São José, Cédula da Terra e Banco da Terra; a segunda, de ampliação e consolidação com o Crédito Fundiário, o Combate à Pobreza Rural e o Consolidação da Agricultura Familiar; e, mais re-centemente, uma fase de mercantilização das políticas de afirmação expressa na criação das linhas de financiamento Nossa Primeira Terra, Terra Negra Brasil, Terra para Liberdade.

A última fase materializa a intencionalidade das políticas agrárias neolibe-rais em capturar públicos distintos e com uma potencialidade surpreendente de luta, em face dos processos de exclusão e subordinação que estão submetidos. Por exemplo, a juventude rural, diante do parcelamento das terras dos seus pais e inexistência de uma política de reforma agrária que contemple este segmento, caracteriza-se por sua organização para entrar na terra mediante as ocupações. Além do que, nos diferentes estados, são os jovens que têm assumido a função de direção das organizações mais combativas do campo.

A introdução da Terra Negra Brasil em sua lógica mercantil dificilmente conseguirá resgatar e fortalecer os traços étnicos e culturais de uma dada co-munidade afrodescendente. O princípio destas comunidades é o uso comum da terra e transferência geracional do direito de uso. Contraditoriamente, a contrarreforma agrária do Banco Mundial baseia-se no mercado e na titulação alienável da terra. Esta linha de crédito pretende conter as lutas e a organização dos povos remanescentes de quilombolas que reivindicam a demarcação das suas terras, hoje ocupadas, muitas vezes, por grandes proprietários, disfarçando a solução de litígios pela esfera do mercado. Retornarei este debate no quinto capítulo quando discutir a recriação do campesinato no Povoado Bonsucesso, Sergipe.



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Por sua vez, a criação da Terra para Liberdade contradiz o debate e as dispu-tas políticas atuais em torno da desapropriação dos imóveis rurais autuados por prática de trabalho escravo moderno. Novamente, transparece a intencionalida-de de proteger a grande propriedade no Brasil. As políticas afirmativas devem ter por objetivo a emancipação de um segmento social historicamente excluído, mas isto dificilmente se logrará pela lógica mercantil. Estas são dimensões do aprofundamento da Cram durante o governo Lula. A seguir, remeto ao leitor uma análise quantitativa da territorialização do campesinato na Cram neste úl-timo decênio.

deBAtendo A (des)(re)territoriAlizAção do cAmPesinAto e A contrArreformA AgráriA do BAnco mundiAl A PArtir dos números

No início de 2003 presenciamos, na sociedade brasileira, a retomada das espe-ranças por alterações estruturais direcionadas para a redução da pobreza, das desigualdades, para o resgate e garantia da cidadania para uma parcela maior da população. Um importante fator para este sentimento foi a eleição e posse (em janeiro de 2003) na presidência da República do ex-líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva. Uma parcela destes anseios emergia da expectativa de ações e im-plementação de políticas públicas que caminhassem na direção do cumprimen-to do II Plano Nacional de Reforma Agrária (II PNRA).

Tal Plano foi elaborado devido a pressão exercida pelos movimentos socio-territoriais de luta pela terra e por reforma agrária junto ao governo federal. Este nomeou um grupo de trabalho formado por intelectuais ligados aos movimen-tos socioterritoriais, coordenado pelo ativista político brasileiro Plínio Arruda Sampaio7, cuja tarefa era elaborar um documento que constituísse um plano nacional de reforma agrária da envergadura desta problemática. A proposta fi-cou conhecida como Plano Plínio e estipulou, dentre outras metas, o assenta-mento de um milhão de novas famílias em áreas de reforma agrária.

Todavia, o governo capitulou frente às pressões do setor ruralista, rejeitou o documento e colocou em execução uma proposta mais tímida, de fundamenta-ção teórico-conceitual e alinhada com os princípios do capitalismo agrário, elabo-rada paralelamente por técnicos do próprio governo. Diante da derrota imposta

7 Plínio Arruda Sampaio, nascido na cidade de São Paulo em 26 de julho de 1930 é graduado em Direito, mestre em Economia Agrícola. Entre 1959 e 1962 ocupou cargos de destaque no mandato do governador do estado de São Paulo, Carvalho Pinto, sendo um dos responsáveis pela elaboração da Lei de Revisão Agrária que imple-mentou uma política reforma agrária naquele estado. Em 1962 foi eleito deputado federal, sendo a principal liderança da esquerda e foi o relator do projeto de reforma agrária que integrava as reformas de base do governo João Goulart, derrubado pelo golpe militar em 1964. Foi presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrá-ria (Abra) entre 2007 e 2010 e candidato à presidente da República pelo Partido Socialismo e Liberdade (Psol), ficando em quarto lugar com 886.816 votos.



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pelo governo, restou aos movimentos socioterritoriais mobilizar suas bases e reali-zar pressão para exigir o cumprimento das metas previstas no referido plano.

Passados quatro anos do primeiro mandato, o governo divulgou, no final de janeiro de 2007, o documento Desenvolvimento agrário como estratégia: MDA Ba-lanço 2003-2006, vangloriando o cumprimento de 95,35% da meta “estabeleci-da no início da sua implementação” (Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2006, p. 10), ou seja, nos quatro anos teria assentado 381.419 famílias, das 400 mil programadas na primeira meta (assentar 400 mil novas famílias em projetos de reforma agrária). Enfatiza também o crescimento do número de famílias as-sentadas em comparação ao governo anterior. Este crescimento resulta de uma ampliação significativa dos recursos, pois “foram aplicados mais de R$ 4 bilhões na obtenção e regularização de terras” (Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2006, p. 10). Explicita-se a concepção de reforma agrária do governo. Sua conta-bilidade engloba a arrecadação de terras correspondente às grandes propriedades improdutivas desapropriadas, à retomada de terras públicas griladas, à compra de terras, ao reordenamento agrário, bem como à regularização fundiária.

A concepção de reforma agrária apresentada pelo governo é demasiadamen-te ampla e contribui para confundir a sociedade e tangenciar a busca da altera-ção da estrutura na propriedade da terra que está no cerne do conceito (o que buscarei aprofundar no próximo capítulo). A Constituição Federal prevê que as terras rurais que não cumprirem a função social (baseada em indicadores de produtividade econômica, cumprimento da legislação trabalhista e ambiental) e as terras públicas em desuso devem ser incorporadas ao Programa Nacional de Reforma Agrária, no primeiro caso, prioritariamente, mediante processos desapropriatórios.

A regularização fundiária é o reconhecimento do direito de posse que têm as famílias que utilizam terras devolutas há décadas. Terras devolutas são ter-ras pertencentes ao Estado, portanto, públicas e sua regularização não pro-vocam alteração na estrutura da propriedade da terra, embora seja uma im-portante garantia para permanência da condição camponesa dos posseiros. Estudo recente demonstrou que, parte significativa das famílias computadas na reforma agrária do governo, foi assentada na Amazônia, justamente onde se localiza a maior quantidade de terras devolutas e de posseiros. Na prática ocorreu, meramente, a concessão dos títulos de propriedades às famílias que, há décadas, ocupam terras públicas. Nestes casos, portanto, não há alteração da estrutura de propriedade, pois, o Estado somente reconhece a transferên-cia de uma parcela das suas terras que sempre foram utilizadas por posseiros (Oliveira, 2006).

O reordenamento agrário é o ato de beneficiar famílias em assentamentos já existentes como forma de repor as vacâncias surgidas ao longo dos anos. A



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magnitude deste processo foi demonstrada por Fernandes (2006) que consta-tou no período de 2003 a 2005 somente 25% das famílias assentadas em terras desapropriadas. A maioria das famílias foi assentada em antigos e já existentes assentamentos, em terras públicas ou em assentamentos criados em terras do Estado. Este processo foi denominado pelo autor de autofagia, ou seja, a refor-ma se deu, por um lado, prioritariamente sobre terras da própria reforma agrá-ria preenchendo lotes de famílias evadidas devido à incompletude das políticas públicas, e, sobre terras do próprio Estado. Neste contexto, os números apre-sentados pelo governo Lula como a maior reforma agrária de todos os tempos, não condizem com a realidade.

O próprio Ministério, em nota encaminhada ao jornal Folha de São Paulo (2007), assumiu que houve uma “inversão” na prioridade inicialmente traçada como meta no II PNRA, de assentar 71% das 400 mil novas famílias de forma onerosa e 29% de forma não onerosa.8 Na prática, “40% das famílias teriam sido assentadas por meio de obtenção onerosa e 60% via forma não onerosa.” Ou seja, o governo assentou mais famílias em terras públicas em detrimento da desapropriação dos latifúndios propalada como o instrumento central para assentar famílias em reforma agrária (Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2003b, p. 19).

Com esta inversão de prioridade, o governo esvazia o conceito de reforma agrária, reduz o enfrentamento às terras improdutivas e àquelas que descum-prem a legislação trabalhista e ambiental, apropriadas pela classe dos rentistas. Neste contexto, os números da reforma agrária no governo Lula retratam o ga-nho dos proprietários de terras.

Outro instrumento de acesso à terra para o campesinato, previsto na Meta 3 do II PNRA, o Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) objetivava atingir 130 mil famílias durante sua execução. Herdado da política agrária do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002), o governo Lula reproduzia o discurso do governo anterior de que este instrumento é com-plementar à reforma agrária tradicional. Se por um lado, os embates em volta do crédito fundiário promovidos pelos movimentos socioterritoriais amornam ou praticamente desaparecem, tendo em vista, de um lado, o apoio político--operacional do movimento sindical dos trabalhadores rurais e, por outro, a prioridade dos movimentos do arco da Via Campesina de enfrentar o capital configurado no agronegócio, os ruralistas intensificam a defesa deste instru-mento de acesso à terra como uma alternativa pacífica e viável, como pôde ser acompanhado durante a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito – CPMI da

8 O assentamento de famílias de forma onerosa, segundo o governo, diz respeito a desapropriação prevista na Constituição Federal e a compra de terras conforme previsto no Decreto 433. A forma não onerosa inclui a utilização de terras públicas federais ou estaduais.



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Terra9, que visava criminalizar o MST e tornar as ocupações de terras de crimes hediondos.

No supracitado documento do MDA, de balaço do desenvolvimento agrá-rio, o governo vangloriou-se, também, do desempenho do Crédito Fundiário no período. A postura falaciosa se repetiu. Os números revelaram que o exe-cutado, assim como na reforma agrária, ficou muito aquém dos objetivos tra-çados. Quer seja, entre 2003 e 2006, de acordo com o governo, teriam sido atingidas pelo crédito fundiário 35.564 famílias, em 18 estados da federação (Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2006), montante muito abaixo da meta original. Contudo, a partir do monitoramento de desempenho deste pro-grama, mantido no Banco de Dados da Reforma Agrária de Mercado, regis-trou-se apenas 34.482 famílias (cerca de 1.000 famílias a mesmo que a contabi-lização do governo) que representa apenas 26,52% da meta de 130 mil famílias trançadas no II PNRA.

Este debate sobre o balanço do II PNRA demonstra que apesar do governo Lula ter rompido com a postura dos governos anteriores de ignorar a necessi-dade de planejar as ações fundiárias no país, a correlação de forças no governo demonstrou-se mais favorável ao setor ruralista que para os movimentos socio-territoriais, impedindo o cumprimento das metas quantitativas tanto da refor-ma agrária, quanto dos demais instrumentos fundiários. Diante do fracasso do desempenho do governo neste setor, tentou-se escamotear a realidades a partir de um somatório de ações fundiárias com sentido diferentes, como se tudo fos-se reforma agrária. Esta ação é intencional e funcional à difusão da confusão da sociedade e despolitização do conceito de reforma agrária.

A postura do governo Lula foi, em todos os setores, a de comparar seus indi-cadores com o governo FHC a fim de demonstrar que conseguiu avançar muito mais que seu antecessor. Seguindo essa linha de raciocínio para o agrário aqui em debate, a confrontação dos oito anos do governo Cardoso e dos oito anos do governo Lula demonstra que Fernando Henrique Cardoso assentou, entre 1995 a 2002, um total de 389.959 famílias em áreas de reforma agrária, enquanto Lula, entre 2003 e 2010 beneficiou somente 260.756 famílias, ou seja, 66,87% do realizado pelo seu antecessor ou 129.203 famílias a menos que o governo FHC (Dataluta: Banco de Dado da Luta pela Terra).

Considerando os estudos desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos, Pesqui-sas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), através do Banco de Dados da Luta pela Terra (Dataluta) atesta-se que no primeiro mandato de Lula foram, efeti-vamente, beneficiadas pela reforma agrária 181.591 famílias, e que as 34.482

9 Cf.: Lupion, Abelardo. Voto em Separado: relato dos trabalhos da CPMI “da terra”. Brasília: Congresso Nacional, Comissão Mista Parlamentar de Inquérito “da Terra”, 2005.



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mil famílias atingidas pela Cram equivalem a 19%, do montante daquelas be-neficiadas pela reforma agrária, representando-se como um percentual bastante expressivo.

No tocante ao crédito fundiário, verifica-se que FHC em cinco anos (1998 a 2002), atingiu 34.648 famílias, o que representa 8,88% das famílias assenta-das pela reforma agrária no período. Já Lula, nos sete anos que compreendem o interstício de 2003 a 2009 atingiu 81.190 famílias com os programas de cré-dito fundiário, o que representa 32,41% das 250.484 famílias assentadas pela reforma agrária neste período. Não obstante, estes números revelam que além não cumprir nenhuma das metas de ação fundiária do II PNRA, Lula expandiu os programas de crédito fundiário no país mediante reformulação das normati-vas, expansão dos estados parceiros, ampliação do número de famílias atingidas, tanto em números absolutos, quanto relativos, em relação ao governo FHC.

Desde a introdução dos programas de contrarreforma agrária do Banco Mundial no Brasil, há uma carência na disponibilização dos dados referentes ao desempenho dos programas. Geralmente, os governos divulgam os dados agregados, priorizando demonstrar os valores investidos e o quantitativo de fa-mílias atingidas, por programas e unidades da federação. Isso dificulta análises em diferentes escalas do processo de territorialização destas políticas. A fim de superar esta limitação realizei esforço em estudo anterior (Ramos Filho, 2008) para reunir microdados sobre a contrarreforma agrária pelo mercado, primei-ramente no estado de Sergipe. Posteriormente, solicitei à Secretaria de Reorde-namento Agrário (SRA) – Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF) os microdados da implantação do crédito fundiário no Brasil, de modo que me foram fornecidas planilhas com os microdados da contrarreforma agrária pelo mercado no Brasil no período compreendido entre 1998 e 2004. De posse des-tes dados e em diálogo permanente com o Banco de Dados da Luta pela Terra (Dataluta), criei no seu interior a versão Banco de Dados da Reforma Agrária de Mercado (BDRAM).

Em 2006, diante da necessidade deste pesquisador atualizar os dados já or-ganizados no BDRAM, o PNCF atendeu ao pedido de fornecimento dos mi-crodados atualizados sobre o crédito fundiário com o meu cadastramento como leitor nacional do Sistema de Análise e Contratação (SAC) do Sistema de In-formações Gerenciais (SIG) do PNCF, que permite acesso às informações de-talhadas de todas as propostas tramitando no programa e daquelas já contrata-das. Se por uma lado, possibilita acesso à informações variadas de cada uma das propostas de contratação de financiamento e daquelas já contratadas através da home page do programa, por outro a atualização do BDRAM tornou-se exausti-va e morosa, uma vez que as informações necessárias (estado, município, nome do empreendimento, número de famílias, área adquirida e data) encontram-se



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em diferentes janelas do site, além destas informações serem atualizadas perma-nentemente pelos operadores do programa.

Geralmente, a capacidade de atualização do BDRAM é mais lenta que a atuali zação do SIG/SAC pelo Programa. Nestes contexto, as sistematizações que apresento e a leitura dos dados compilados refere-se ao trabalho de atuali-zação realizado até 30 de novembro de 2009, no qual reuni informações refe-rentes aos projetos implantados nos últimos 10 anos (1998 a 2008) de modo que atingimos o registro de aproximadamente 95 mil famílias em crédito fun-diário. Por sua vez, no SIG/SAC constava, na posição de 02 de janeiro de 2009, 72.973 famílias mutuárias. Isto ocorre porque no sistema do PNCF encon-tram-se registrados os empreendimentos das linhas Combate à Pobreza Rural e Consolidação da Agricultura Familiar, e no BDRAM temos inserido os empre-endimentos Banco da Terra e Cédula da Terra, considerados pela Secretaria de Reordenamento Agrário como passivos.

A partir da sistematização dos dados compilados no BDRAM foi possível constatar que, no período compreendido entre 1998 e 2009, foram implanta-dos 28.670 empreendimentos de contrarreforma agrária do Banco Mundial no Brasil, nas modalidades Cédula da Terra (PCT), Banco da Terra (BT), Crédi-to Fundiário de Combate a Pobreza Rural (CFCPR), Combate a Pobreza Ru-ral (CPR), Consolidação da Agricultura Familiar (CAF), Nossa Primeira Terra (NPT-CPR e NPT-CAF). Sobre os projetos dos selos Terra para a Liberdade e Terra Negra Brasil não foi possível identificá-los em nossa fonte de dados, em-bora seja público que tais ações se encontram em implantação. Nesse período, 101.083 famílias entraram na terra por meio da compra de 1.862.153 hectares pelos diferentes programas supracitados. A relação entre o quantitativo de hec-tares comprados e o número de famílias mutuárias demonstra uma média de 19,26 hectares por família (Tabela 3).

tABelA 3 – BrAsil: emPreendimentos de crédito fundiário Por unidAdes dA federAção – 1998-2009

REGIÃO / UF Empreendimentos % Famílias % Área %

NORTE 416 1,45 2006 1,98 54.294 2,93AC 0 0 0 0 0 0

AM 0 0 0 0 0 0

AP 0 0 0 0 0 0

PA 0 0 0 0 0 0

RO 115 0,40 172 0,17 2.246 0,13

RR 0 0 0 0 0 0

TO 301 1,04 1.834 1,81 52.048 2,80



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NORDESTE 4.504 15,71 64.833 64,12 1.458.368 78,29AL 366 1,27 2.762 2,73 31.246 1,68

BA 275 0,95 9.922 9,81 188.148 10,10

CE 509 1,77 7.646 7,56 259.321 13,92

MA 453 1,58 13.102 12,96 338.607 18,18

PB 385 1,34 4.040 4,00 93.135 5,00

PE 352 1,22 6.917 6,84 92.953 4,99

PI 941 3,28 12.555 12,42 317.402 17,04

RN 566 1,97 5.364 5,30 108.828 5,84

SE 657 2,30 2.525 2,50 28.728 1,54

CENTRO-OESTE 3.165 11,04 4.230 4,19 47.024 2,52

DF 0 0 0 0 0 0

GO 863 3,02 1.458 1,44 19.031 1,02

MS 106 0,37 559 0,55 4.351 0,23

MT 2.196 7,66 2.213 2,20 23.642 1,27

SUDESTE 1.391 4,85 9.830 9,74 110.908 5,95ES 267 0,93 1.836 1,84 10.841 0,58

MG 570 1,98 5.301 5,24 87.735 4,71

RJ 254 0,88 261 0,26 3.643 0,19

SP 300 1,04 2.432 2,40 8.689 0,47

SUL 19.194 66,95 20.184 19,97 191.559 10,29PR 2.070 7,23 2.146 2,12 11.827 0,63

RS 11.362 39,63 11.829 11,71 111.232 6,0

SC 5.762 20,09 6.209 6,14 68.500 3,68

BRASIL 28.670 100,00 101.083 100 1.862.153 100

Fonte: Banco de Dados da Reforma Agrária de Mercado (BDRAM)

Tomando como referência os dados do Relatório Dataluta 2011 para con-frontar o desempenho do crédito fundiário com o desempenho da reforma agrária, verifica-se que entre 1998 e 2009 formam implantados no país 6.135 projetos de assentamentos de reforma agrária, beneficiando 459.731 famílias, que foram assentadas em uma área de 59.739.266 hectares. Neste caso, a rela-ção área arrecadada/número de famílias beneficiárias resulta em uma área média de 129,94 hectares/família. Confrontando a relação área/número de famílias no crédito fundiário e na reforma agrária constata-se uma área média por família é aproximadamente 6 vezes maior na reforma agrária que no crédito fundiário.

Embora este dado seja uma média nacional, ele é relevante como um indi-cativo de que o programa de financiamento de terras viabiliza a incorporação



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pelos agricultores de áreas pequenas, na maioria das vezes insuficiente para ga-rantir a sobrevivência das famílias. Considere-se que da área média de 19,26 hectares, as famílias devem destinar pelo menos um ou dois hectares para edifi-cação da habitação familiar, um a dois hectares para destinação da reserva legal, além de áreas de acesso.

De modo que o restante torna-se bastante exíguo para o desenvolvimento das atividades produtivas com vistas à geração das condições de sobrevivência das famílias. Esta situação pode ser ainda mais grave se considerarmos que em boa parte do território brasileiro, em particular nos sertões semiáridos, onde se concentra a pobreza rural, 18 hectares é insuficiente para sobrevivência de uma famílias formada por cinco membros.

Todavia, a área média por família na reforma agrária deve ser relativizada, tendo em vista que boa parte das áreas incorporadas para assentamentos de re-forma agrária estão localizadas na região norte do país, em particular na Ama-zônia, onde as condições naturais exigem uma maior vastidão para realização da produção. De modo que esta média não corresponde à realidade da reforma agrária na maior parte do país.

Outra constatação, a partir da confrontação das duas políticas, demonstra que o número de empreendimentos de contrarreforma agrária pelo mercado (28.670) é aproximadamente 600% maior que o número de assentamentos de reforma agrária criados no período. Isso decorre de que na reforma agrá-ria os assentamentos criados, na maioria das vezes, por meio da luta pela ter-ra beneficia um grande número famílias, enquanto os empreendimentos de crédito fundiário abarcam associações de trabalhadores formadas por grupos reduzidos, em média com 30 famílias; além do que, muitos dos empreendi-mentos, principalmente aqueles das linhas Banco da Terra e o seu substituto Consolidação da Agricultura Familiar serem implantados com apenas uma família. De maneira que, nestes casos, uma família é contabilizada como um empreendimento.

A partir dos trabalhos de campo que venho realizando nos últimos anos, é possível inferir que a promoção da entrada na terra dos camponeses organiza-dos em associações, com pequeno número de integrantes ou mesmo individual-mente, dá-se em virtude das áreas adquiridas serem de tamanho reduzido, me-nores que 15 módulos fiscais, uma estratégia de fragmentar a organização dos camponeses em entidades reivindicatórias ou contestatórias.

Uma evidência desta condição verifica-se na proporção de aproximadamen-te quatro vezes maior de famílias que entraram na terra a partir dos programas de reforma agrária (459.731) confrontando com o quantitativo de famílias em contrarreforma agrária pelo mercado (101.083) (Mapa 2). Apesar do quanti-tativo de famílias que ingressaram na terra por meio dos dois programas nestes



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dez anos alcançar o montante de 560.814 famílias, este número ainda é insufi-ciente diante da enorme massa de excluídos do campo. Os processos de exclu-são e expulsão do campo, proporcionados por diferentes processos, dentre os quais os principais são a territorialização do agronegócio e a modernização da agricultura são muito mais céleres e profundos que as políticas de assentamen-tos de sem-terras e minifundiários.

mAPA 2



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Os trabalhos de campo, que debaterei no capítulo 5, têm revelado que os sujeitos que entram na terra por um ou outro programa têm a mesma trajetória de vida e o mesmo perfil. São, geralmente, trabalhadores assalariados rurais ou urbanos, posseiros, meeiros, sem-terra que sonham em voltar para a terra, ou entrar na terra como alternativa a superação da condição de exploração e exclu-são vivida até então. De modo que a argumentação do governo de que a Cram é um instrumento complementar à reforma agrária, à primeira vista, pode pare-cer coerente com a realidade. Pois, há, indubitavelmente, uma grande massa de pobres no campo que não estão organizados nos movimentos socioterritoriais de luta pela terra e que, a princípio, declaram que não participariam de ocupa-ções de terras.

Contudo, há que considerar que a reforma agrária é preceito constitucional no qual o imóvel rural que descumprir a função social da propriedade (nas di-mensões produtiva, ambiental e trabalhista) é passível de desapropriação. Con-tudo, as desapropriações dos latifúndios, na maioria dos casos, somente têm ocorrido quando os trabalhadores estabelecem o conflito, principalmente por meio das ocupações de terras. Assim, se o Estado brasileiro cumprisse a legisla-ção, antecipando-se na realização da devida fiscalização da condição de cumpri-mento da função social da terra prevista na Constituição Federal, dificilmente haveria necessidade de um programa de financiamento de terras, como o cré-dito fundiário. Este processo seria ainda mais intenso se, aliado à fiscalização, o governo encampasse o compromisso político de atualização dos índices de pro-dutividade rural, defasados desde 1975.

O Gráfico 1, abaixo, é confirmativo da intensidade e importância da luta pela terra na constituição de um processo de criação e recriação do campesi-nato brasileiro. Há várias formas de materialização da luta pela terra, dentre as quais a mais importante, pela intensidade e pressão exercida sobre o Estado, latifundiários e Judiciário ainda é a ocupação de terras. Estas se configuram com uma forma de luta popular que envolve trabalhadores do campo e da ci-dade, que decidem realizar a contestação da propriedade privada concentrada e, a partir disto, denunciar para a sociedade a condição de improdutividade, a condição da propriedade da terra com fins especulativos e mais recentemente denunciar a destruição da natureza e o descumprimento da legislação traba-lhista, inclusive com a prática de trabalho escravo moderno em empresas do agronegócio.

Os estudos realizados no Núcleo de Estudos, Projetos e Pesquisas de Re-forma Agrária (Nera), a partir do Banco de Dados da Luta pela Terra (Da-taluta), possibilitam a constatação de que a maioria dos assentamentos de reforma agrária criados no Brasil resulta da pressão popular exercida a partir das ocupações de terras. O gráfico demonstra a correspondência entre a in-



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tensidade das famílias em ocupações de terras e número de famílias assenta-das em reforma agrária, de maneira que, geralmente, quando aumenta a luta, mais famílias são assentadas. E, nos períodos de arrefecimento das lutas, segue uma redução das famílias assentadas. Verifica-se a partir de 1998 a presença da criação e recriação do campesinato, também, por meio dos programas de crédito fundiário.

Observe-se que, efetivamente, os números da contrarreforma agrária de mercado (Cram), embora com certa oscilação de um ano para outro, man-têm-se em patamares reduzidos, mas presentes em todo o período 1998 a 2009. Contudo, ao analisar os dados relativos, constata-se que o quantitativo de famílias que entraram na Cram entre 1998 e 2009 já representam 22,19% do total de famílias que entraram na terra mediante a conquista de assenta-mentos de reforma agrária decorrente da luta popular.

Este percentual chama a atenção por dois motivos: a) pela celeridade com se estabeleceu; b) pela possibilidade de permanência tendo em vista a insti-tucionalização do programa com a criação do Fundo de Terras e da Reforma Agrária, discutido no subcapítulo As bases da territorialização do campesina-to nas políticas de crédito fundiário. Os impactos negativos verificados sobre a criação e recriação do campesinato nesta política, em suas diferentes fases e respectivas linhas de financiamento de terras, torna preocupante o futuro deste campesinato.

gráfico 1 – BrAsil: fAmÍliAs envolvidAs em ocuPAções, reformA AgráriA e crédito fundiário – 1996-2009

Fonte: Dataluta – Banco de Dados da Luta pela Terra; BDRAM – Banco de Dados da Reforma Agrária de Mercado; Programa Nacional de Crédito Fundiário (dados organizados pelo autor)



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Ademais, estes números contribuem para demonstrar que a contrarreforma agrária do Banco Mundial não só é complementar como propala o governo, mas também concorre com a reforma agrária redistributiva prevista na Consti-tuição Federal do Brasil conforme pode ser observado na tendência decrescente do número de famílias em assentamentos de reforma agrária a partir do governo Lula e ampliação da participação das famílias atingidas pela Cram.

Busquei demonstrar neste capítulo o processo de (des)(re)territorialização do campesinato através dos programas de crédito fundiário a partir da constru-ção de territórios imateriais estruturantes desta política, bem como um análise dos dados quantitativos que esclarecem a territorialização material das famílias na escala Brasil. Todavia, considerando o perfil dos mutuários que ingressam no crédito fundiário, a inexistência de uma política efetiva de reforma agrária e confrontação do número de famílias beneficiárias da reforma agrária e atingidas pelo crédito fundiário, nos conduz a compreender que o crédito fundiário con-corre e se antagoniza à reforma agrária.

Avançando nas análises dos impactos socioterritoriais decorrentes desta po-lítica, buscarei endossar o argumento de que a Cram é não apenas concorren-te com a reforma agrária, mas atua como um instrumento de contrarreforma agrária. Nesse sentido, realizo em seguida uma delimitação do que compreendo por reforma agrária, frente à ofensiva de esvaziamento político deste conceito encampado pelas políticas fundiárias neoliberais do Banco Mundial.


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A tentAtivA de AssePsiA dos conceitos de Questão AgráriA e reformA AgráriA no BrAsil

“... na verdade a questão agrária engole a todos e a tudo, quem vê e quem não vê, quem quer e quem não quer...”

Martins, 1994, p. 12-13

As últimas décadas e este início de século têm sido marcados por intensas transformações nas relações sociais, resultantes de céleres mudanças no desen-volvimento socioterritorial e podem ser interpretadas como estratégias da atual fase do sistema capitalista que objetiva expandir-se a todas as áreas do globo, de modo implacável, intensificando o processo de globalização neoliberal. Diante deste processo, verifica-se a importância assumida pelo conhecimento produ-zido por think thanks que atendem as demandas por acumulação, forjam um imaginário social voltado ao consumo, difundem um padrão de vida urbano e permeado pela utilização da técnica mais avançada. Difunde-se, em todos os pontos do globo, uma realidade marcada pelo desemprego estrutural, pobreza e miséria de vastos contingentes populacionais. No caso brasileiro, o quantitativo da exclusão atinge índices vertiginosos. Tal cenário resulta, dentre outros fato-res, do modelo de apropriação do espaço brasileiro historicamente realizado e, mais recentemente, a forma de inserção do Brasil no capitalismo monopolista.

cAPÍtulo iii



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Frente a este movimento e em diferentes momentos históricos, o povo brasileiro tem perpetrado uma diversidade de formas de luta e resistência aos processos de exploração e expropriação, cuja manifestação tem sido expressiva tanto no campo, quanto na cidade. As relações entre campo e cidade encon-tram-se ainda mais integradas e interdependentes. As atuais formas de pro-dução no campo, sobretudo a capitalista, apresentam uma relação de interde-pendência com o urbano, em particular no tocante a utilização dos pacotes tecnológicos (sementes transgênicas, fertilizantes, agrotóxicos, máquinas agrí-colas etc.), finanças, obtenção de créditos, produção de conhecimentos etc., concebidos e produzidos neste espaço.

A expulsão dos trabalhadores do campo se reflete na cidade mediante os intensos fluxos migratórios que para estas fluíram nas últimas décadas. É na cidade que os trabalhadores do campo realizam seus protestos e que se define a política para o campo brasileiro. Tanto no campo como na cidade, verifica-se a violência dos latifundiários contra os camponeses e suas lideranças, para men-cionar algumas faces da questão. Compreendo, portanto, o campo e a cidade como unidades dialéticas de uma mesma realidade, pois estão unidos quer no processo produtivo, quer no processo de luta.

É preciso pensar o futuro como possibilidade no plano social e, para tanto, há a necessidade de analisarmos o desenvolvimento socioterritorial, porque este pode possibilitar ou dificultar a realização de um dado programa. As interpreta-ções do presente e do passado e as projeções para o futuro, no plano científico, afinam-se a uma questão de método. A opção por um método ou outro implica diretamente estas interpretações e projeções. Nas últimas décadas, presencia-se um aprofundamento da integração da ciência à técnica e, por sua vez, a subor-dinação de ambos aos interesses do capital. As análises do campo têm seguido também esta tendência. Todavia, este pensamento não é único. A centralidade deste estudo reside na análise de componentes atuais da questão agrária, con-siderando sua conflitualidade territorial no Brasil contemporâneo. Esta pro-blemática não é de simples compreensão, mas, também, não, se trata de uma questão enigmática.

No intuito de compreender sua complexidade, diferentes áreas do pensa-mento têm debatido este tema, a exemplo da economia, sociologia, antropo-logia, geografia, história, psicologia, dentre outras áreas do conhecimento. As distintas leituras da questão agrária também se originam a partir do método adotado, que, geralmente, traduz a concepção político-ideológica do sujeito que está realizando a análise. De cada leitura da questão agrária, decorre uma forma peculiar de intervenção desta, ora promovendo sua atenuação, ora seu agravamento. Disto, consequentemente, ocorrerá uma mudança qualitativa na forma de intervir na própria questão agrária, redefinindo os parâmetros para a



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continuidade da intervenção e as condições em que esta pode ocorrer (Martins, 2000; Fernandes, 2005b).

A questão agrária é produto do desenvolvimento desigual, contraditório e combinado do capitalismo. Refere-se ao conjunto de problemas relacionados com o desenvolvimento da agropecuária e das lutas dos trabalhadores e está presente na totalidade das dinâmicas sociais (Fernandes, 2001; Ramos Filho e Fernandes, 2006). O desenvolvimento do capitalismo é: desigual, porque no seu processo de expansão, ao mesmo tempo em que se reproduz ampliadamen-te criando a riqueza, gera, em proporções ainda maiores, a pobreza e a miséria; contraditório, porque ao mesmo tempo destrói o que lhe impede o desenvol-vimento recria o que destruiu sobre novas bases para garantir sua reprodução ampliada; combinado, porque desenvolve os dois processos anteriores conco-mitantemente.

A questão agrária extrapola o tempo de um governo, pois apresenta caracte-rísticas e dinâmicas sociais próprias, face ao estágio de desenvolvimento do ca-pitalismo em uma determinada sociedade; portanto, possui uma temporalidade própria, expressa na sociedade o elenco de

...contradições, dilemas e tensões que mediatizam a dinâmica social e, nela, a dinâmica políti-ca. (...) A questão agrária é, em termos clássicos, o bloqueio que a propriedade da terra repre-senta ao desenvolvimento do capital, à reprodução ampliada do capital. (...) Ele pode se mani-festar com a redução da taxa média de lucro, motivada pela importância da renda quantitativa que a renda fundiária possa ter na distribuição da mais-valia e no parasitismo de uma classe de rentistas (Martins, 2000, p. 89-90).

Nesta primeira década do século XXI, a problemática estrutural do capi-talismo está marcada por elementos antigos e novos. Concentração fundiária exacerbada (Tabela 4) é uma grave permanência da questão agrária brasileira. O Censo Agropecuário 2006 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-ca (IBGE) revelou que apenas 1% dos estabelecimentos agropecuários con-centram próximo da metade (44,5%) da área cadastrada, enquanto que para 90,3% de estabelecimentos (considerados pequenos) restam apenas cerca de 70 milhões de hectares, o que correspondente a 21,4% da área. Conclui-se, por-tanto, que no Brasil temos muita terra controlada por poucos e muita gente com quase nenhuma terra.

Outros elementos históricos da questão agrária brasileira são a manutenção do rentismo fundiário, ausência de uma política de reforma agrária efetiva, su-perexploração do trabalho e trabalho degradante, grilagem de terras, degrada-ção socioambiental e lutas de resistência dos trabalhadores. Nas últimas décadas foram incorporados novos elementos; como o agronegócio baseado na agricul-tura de precisão, sementes transgênicas, biotecnologia, nanotecnologia e, mais recentemente, a expansão da produção da agroenergia.



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tABelA 4 – BrAsil: estruturA fundiáriA – 2006

Estratos de área N° de estabelecimentos % Área em ha %

Menos de 10 ha 2.477.071 50,8 7.798.607 2,3

10 a < de 100 ha 1.923.277 39,5 62.893.091 19,1

Menos de 100 ha 4.400.348 90,3 70.691.698 21,4

100 a < de 1.000 ha 424.836 8,7 112.696.478 34,1

1.000 ha e mais 46.911 1,0 146.553.218 44,5

Total 4.872.095 100 329.941.393 100

Fonte: IBGE, Censo Agropecuario 2006 (organizado por Eraldo da Silva Ramos Filho)

Durante as décadas de 1970 e 1980 vigeu, entre alguns intelectuais, a com-preensão fundamentada no pensamento clássico de que, com a expansão plena do capitalismo no campo, o campesinato se extinguiria de duas formas dis-tintas. Uma delas se daria a partir de um processo de diferenciação interna do campesinato, advinda das contradições do próprio processo de sua inserção no mercado capitalista. Na prática, o camponês, ao produzir para o mercado, apro-funda sua vinculação a este, tendendo a tornar-se refém dos juros (em virtude dos empréstimos contraídos para adquirir os pacotes tecnológicos) já que os preços dos produtos por ele produzidos tendem a cair, dado o aumento da pro-dução. No decorrer deste processo, os camponeses endividados teriam que se desfazer de suas terras e estariam fadados ao assalariamento e à proletarização.

Outra forma de extinção do campesinato se daria pela modernização do latifúndio (mediante a incorporação de máquinas e insumos modernos) trans-formando-os em capitalistas agrícolas. Assim, haveria a unificação de interesses destes e dos camponeses enriquecidos. Em relação aos camponeses pobres, ten-deriam à proletarização. De acordo com os seguidores desta teoria as relações não capitalistas estariam em vias de desaparecimento; por sua vez os campone-ses e os latifúndios se extinguiriam no plano econômico, em virtude da expan-são qualitativa das forças produtivas, restando a compreensão destes enquanto classe fora do capitalismo. Todavia, o próprio decurso do processo histórico de-monstrou que, com a expansão do capitalismo no campo, o campesinato não desapareceu, superando, portanto, esta compreensão de fim do campesinato.

No caso brasileiro, o movimento do real tem nos mostrado a permanência, a resistência, a criação e a recriação do campesinato, tanto pelo número de cam-poneses, quanto mediante a ampliação de sua relevância na economia nacional. Os adeptos desta corrente interpretam o desenvolvimento do capitalismo como um processo contraditório, ou seja, o capital, para se realizar ampliadamente, destrói o que ele mesmo criou e, ao mesmo tempo, em locais distintos, recria o que ele mesmo destruiu. O capital, ao buscar sua reprodução ampliada, estabe-



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lece relações de produção capitalistas realizando a expropriação do trabalhador, bem como materializa, ainda, relações de trabalho não capitalistas (a exemplo da parceria, do trabalho familiar camponês, do arrendamento, da meação etc.). Este é o paradigma da questão agrária (PQA), no qual os pensadores valorizam o pro-tagonismo dos trabalhadores rurais pela realização das suas lutas de resistência e análise dos processos de criação e recriação do campesinato (Fernandes, 2005b).

Oliveira (1990, p. 12) contribui com o entendimento de que a produção do capital é uma “espécie de acumulação primitiva permanente do capital, neces-sária à sua reprodução” logo, “é muito importante discernir entre produção do capital e reprodução capitalista do capital. A produção do capital nunca é capi-talista, nunca é produto de relações capitalistas de produção, baseada, pois, no capital e no trabalho assalariado”. Portanto, não só relações não capitalistas de produção podem ser dominadas e reproduzidas pelo capital, como é o caso da propriedade familiar de tipo camponês, como também determinadas relações podem não aparecer integrantes do processo do capital, embora o sejam, como é o caso da propriedade capitalista da terra (Martins, 1995).

Para Oliveira (1997, p. 19) “A utilização dessas relações de trabalho não ca-pitalistas poupa ao capitalista investimentos em mão-de-obra. Ao mesmo tem-po, ele recebe parte do fruto do trabalho desses parceiros e camponeses, que converte em dinheiro. Assim, realizam a metamorfose da renda da terra em capital”. Esse processo nada mais é do que o de reprodução do capital, feito por meio de relações não capitalistas. Uma vez acumulado este capital, numa próxima etapa do processo de produção poderá ser destinado à contratação de boias–frias, por exemplo, e então se estará implantando o trabalho assalariado na agricultura.

Nesta vertente de pensamento a terra é compreendida como renda capita-lizada e o processo aqui em foco constitui-se na sujeição da renda da terra ao capital, seja subordinando a produção camponesa, o trabalho, ou mediante a especulação com a terra. Enquanto o capital é compreendido como produto do trabalho realizado pelo trabalhador e não pago pelo capitalista, investido em meios de produção e matérias-primas voltadas para a exploração da força de tra-balho, a terra representa uma contradição do capitalismo. Trata-se de um bem natural, finito que não pode ser reproduzido nem criado por qualquer forma de trabalho humano.

O capital, contraditoriamente, ao se expandir no campo engendra, ainda, a subordinação econômica do trabalho familiar camponês de duas formas princi-pais. Há o caso dos camponeses que, de posse de seu território, têm a sua pro-dução subordinada aos interesses do capital. Um exemplo é o dos criadores de aves, fumicultores, produtores de leite etc., integrados à agroindústria. Embora possuam o território e disponham do trabalho familiar são obrigados a aten-



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der a determinado índice de produtividade, consumir os pacotes tecnológicos, cumprir as exigências sanitárias, entre outras, determinados pela corporação e entregar os resultados de seu trabalho a esta (Oliveira, 1997).

Aqui, o capital industrial é uma empresa e o proprietário de terras e o traba-lhador uma única pessoa. Estamos diante da subordinação capitalista da relação não capitalista de produção representada no trabalho familiar, cujo intuito é a realização da reprodução ampliada do capital. Outra forma de sua expansão se dá quando trabalhadores arrendam terra (com pagamento em dinheiro, produ-to ou trabalho) para produzir, por exemplo, o fumo que será entregue a uma indústria. Temos, então, três personagens: o camponês rendeiro, o proprietário rentista e o capitalista industrial (Oliveira, 1997).

Nos dois casos, mediante a integração da unidade de produção camponesa à indústria, seu objetivo passa a ser de fornecimento de matéria-prima para a atividade industrial e a garantia de mercado consumidor no campo voltado aos produtos industrializados (sementes, ração, remédios, agrotóxicos, fertilizantes, maquinário etc.). Neste processo, realiza-se a metamorfose da renda da terra em capital. Estamos diante da monopolização do território camponês pelo ca-pital, mesmo que o capital não se territorialize (Oliveira, 1997). Portanto, ao se desenvolver, o capital no campo promove a desigualdade de diferentes formas. Destrói, cria e recria o trabalho familiar mediante o processo de exploração, as-sim como, com o controle da terra, das formas de produção, das relações sociais, ou seja, sempre busca o controle do território, e, neste movimento, promove a reprodução ampliada das contradições do capitalismo (Martins, 1998, p. 21).

O pensamento consensual costuma propalar o agronegócio como a única forma de desenvolvimento possível, ignorando que à medida que o capital se reproduz ampliadamente, agrava, cada vez mais, o quadro de desigualdades que o sustenta, mediante a exclusão, pobreza e miséria. Determina a política econô-mica forjando a necessidade de manutenção de uma balança comercial favorá-vel com vistas a garantir os superávits da economia nacional, aprofundando a compreensão da agricultura como um “negócio rentável regulado pelo lucro e pelo mercado mundial” (Oliveira, 2004, p. 13).

O agronegócio é o modelo de desenvolvimento que produz um território marcado pela concentração, padronização e artificialização da natureza, voltado para a atividade agrícola (altamente mecanizada), informatizado e globalizado. Diferentes são as definições sobre o agronegócio na atualidade e há, inclusive, os causídicos da tese na qual a agricultura camponesa é parte do agronegócio. Esta é uma forma de apropriar-se da produção camponesa para legitimar o mo-delo capitalista. Evidencia a necessidade de refutar este tipo de compreensão, uma vez que o agronegócio constitui-se no conjunto de empresas capitalistas que, de forma direta ou indireta, relaciona os diferentes processos de produção,



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beneficiamento, industrialização, distribuição e comercialização dos produtos e subprodutos advindos da agropecuária, extrativismo e pesca com as finanças por meio da exploração de grandes extensões de terras, florestas e águas – geralmente sobre base monocultora – e voltada para a produção alimentar e a exportação.

Ao mesmo tempo em que o agronegócio apresenta as relações econômi-co-produtivas modernas, mantém relações sociais atrasadas, típicas do latifun-diarismo colonial. Latifúndio, agricultura capitalista, agricultura patronal ou agronegócio não são novos, nem estão desarticulados. Latifúndio é o nome da forma de produção em larga escala, praticada durante o capitalismo comercial no Brasil; na atualidade, pressupõe grandes propriedades rurais subutilizadas. Agronegócio ou agricultura patronal dizem respeito às formas contemporâneas de produção agropecuária em larga escala, de modo que são apenas eufemismos para o conceito de agricultura capitalista.

Agricultura familiar é um conceito criado academicamente em oposição ao conceito de campesinato, de agricultura camponesa. Seus defensores, na acade-mia, propagam que a agricultura familiar destaca-se pelo caráter moderno das atividades produtivas e a integração da produção ao mercado como formas de desenvolvimento no campo e uma maior especialização da produção, enquan-to o campesinato permaneceria como a expressão do atraso, utilizando técnicas rudimentares e o acesso aos mercados incompletos.

Este marco teórico determinou a elaboração de um conjunto de políticas públicas durante o governo FHC, voltadas para os pequenos e médios agricul-tores, e inaugurou uma nova forma de atuação do Estado brasileiro diante da problemática da reforma agrária. A intencionalidade desta abordagem é a redu-ção da pobreza (nunca sua eliminação), a pacificação do campo a partir de es-tratégias liberais de acesso à terra e a promoção de uma agricultura empresarial integrada ao mercado (Goméz, 2006, p. 62-63).

As formas de produção do agronegócio podem resultar da exploração do tra-balho assalariado dos boias-frias, residentes nas periferias das cidades e da con-centração de parcelas maiores de terras. Estamos diante, portanto, de um proces-so de territorialização do capital monopolista na agricultura (Oliveira, 1997). De um lado, à medida em que as corporações se territorializam ocorre a eliminação dos trabalhadores do campo, concentrando-os na cidade, onde estarão fadados a constituírem-se em força de trabalho para a indústria, comércio, serviços ou para a agricultura capitalista na condição de boias-frias. Mediante uma relação capi-talista plena, o capitalista-proprietário de terras, acumula, concomitantemente, o lucro da atividade industrial e agrícola, os juros financeiros, além da renda da terra. O campo assume a marca da monocultura e a concentração de terra se intensifica (Oliveira, 1997). Este modelo ao mesmo tempo em que promove a produção de riquezas gera a desigualdade em intensidade, profundidade e escala



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maiores. A concentração de terras intensifica a expropriação e a modernização da produção promove a ampliação do desemprego, desencadeando forte êxodo rural, favelização e exclusão dos direitos fundamentais.

Todavia, esta não é a única forma de desenvolvimento do campo. Na me-dida em que o capital se reproduz ampliadamente agrava cada vez mais o qua-dro de desigualdades que o sustenta. Como o número de excluídos é cada vez maior, a luta contra o capital tende a um crescente. Portanto, a reprodução ampliada das contradições do capitalismo é, também, propulsora de condições antagônicas ao próprio capital.

Nesse sentido, o campesinato se organiza politicamente para conquistar a criação e recriação do seu trabalho em uma lógica contrária ao capital. As lu-tas pela terra se configuram em lutas contra o capital. Tal medida busca rom-per com o controle monopolístico da propriedade das terras e instituir relações sociais de produção não capitalistas, fundamentadas no trabalho familiar. Na atualidade, manifestam-se principalmente por meio das ocupações de terras dos latifúndios, de terras griladas e, mais recentemente, de áreas do agronegócio que causam danos ambientais e/ou descumprem a legislação trabalhista.

Os trabalhadores têm utilizado diversas ações de resistência aos processos de subordinação, expropriação e exclusão, tais como o trabalho de base, a ocupa-ção de terras, a construção de acampamentos, a conquista de assentamentos, a realização de marchas, bloqueio de rodovias, a destruição de canteiros de pes-quisas de corporações transnacionais, a destruição de cultivos transgênicos etc. A ocupação de terras permanece, na atualidade, como a principal metodologia de luta e pressão popular, que envolve sujeitos do campo e das cidades, para conquistar os assentamentos de reforma agrária. No período compreendido en-tre 2000 e 2011, 114 movimentos socioterritoriais realizaram ocupações de ter-ras (Banco de Dados da Luta pela Terra, 2011). Elas acontecem em todo o Bra-sil e, mediante a luta popular, dezenas, centenas e, às vezes, milhares de famílias ignoram a propriedade privada da terra, adentrando ao latifúndio no intuito de denunciar para a sociedade e para o Estado o descumprimento da função social da terra nas dimensões produtiva, ambiental ou trabalhista.

Para Fernandes (2001), a política de implantação de milhares de assenta-mentos no país é exclusivamente resultado dessas lutas por terras, realizadas de diversas formas pelos trabalhadores, e não das políticas governamentais, como é costumeiro veicular-se na mídia. A resultante da intensidade das ocupações de latifúndios em escala nacional é uma política de assentamentos de reforma agrá-ria conduzida pelo governo federal. Por sua vez, as ocupações de áreas do agro-negócio, embora ainda incipientes, estão produzindo jurisprudência e exercen-do pressão para concretizar a regulamentação dos ítens ambientais e trabalhistas da legislação agrária brasileira. De acordo com Fernandes (2005b, p. 7-8),



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A ocupação e a conquista do latifúndio, de uma fração do território do capitalista, significam a destruição – naquele território – da relação social capitalista e da criação e ou recriação da relação social familiar ou camponesa. Este é o seu ponto forte, que gera a possibilidade da for-mação camponesa, da sua própria existência, fora da lógica da reprodução das contradições do capitalismo. Este também é seu limite, porque não possui o controle das relações econômicas.

Por causa da lógica desigual e contraditória do desenvolvimento da agro-pecuária na sociedade capitalista, em seu processo de formação e de transfor-mação, o campesinato para ser protagonista da sua história precisa desenvol-ver de forma indissociável duas lutas simultâneas: as lutas para entrar e para ficar na terra. A fragmentação dessas lutas é uma forma de enfraquecimento da classe e de sua subordinação como mero coadjuvante no desenvolvimento da sociedade. A luta pela terra, como explicitei acima, é realizada por meio das ocupações de terras de latifúndios e do agronegócio. As famílias, ao cortar a cerca do latifúndio e da grande propriedade, mediante uma ação de luta po-pular, desencadeiam ao mesmo tempo um conflito direto com os latifundiá-rios, com a polícia, com o Judiciário e/ou com o Estado. A luta para perma-necer na terra é organizada, cotidianamente, no interior dos assentamentos. Inicia-se na organização das famílias para a produção, cuja renda auxiliará no financiamento de outras ações importantes como: cursos de capacitação e/ou formação política, marchas, ocupações de prédios públicos e/ou bancos, den-tre outras formas de luta.

Algumas destas formas de luta devem ocorrer nas cidades para que se alcan-ce a repercussão desejada. Muitas das vezes, as lutas para entrar e ficar na terra estão sobrepostas e interligadas. Por exemplo, uma marcha tem a participação de todos. Caminham, lado a lado, os sujeitos assentados pela reforma agrária e os sujeitos acampados e suas reivindicações sempre demandam por políticas públicas para os assentamentos, bem como a ampliação do número de famílias a serem assentadas. A intensidade e escala destas lutas e a quantidade e diver-sidade de movimentos envolvidos provoca pavor na classe dos proprietários de terras. Como, por meio da atuação no espaço político, os camponeses têm a possibilidade de alcançarem êxito, os capitalistas, com o avanço do neoliberalis-mo, têm deslocado as soluções propostas para o mercado.

No intuito de conter e dissimular esta realidade conflitiva, avança, neste início de século XXI, outro paradigma de interpretação da problemática agrá-ria. Sob forte influência das concepções de desenvolvimento rural das institui-ções multilaterais, difunde-se no Brasil, desde a década de 1990, a leitura da realidade do campo baseada no capitalismo agrário. Tais instituições financiam cursos nos institutos de ensino e pesquisa de referência, bem como pesquisa-dores, que passam a produzir conhecimento científico que confere status de legitimidade à sua peculiar forma de interpretação da realidade. Estes estudos



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também têm originado políticas públicas e forjado uma perspectiva de interpre-tação do campo a partir de um falso modelo único.

A origem do paradigma do capitalismo agrário (PCA) remonta à metade do século XX, com a obra seminal de Mendras (1984). Na década de 1990, as pro-posições acadêmicas foram transformadas em políticas públicas no Brasil, alte-rando, consideravelmente, as formas e as possibilidades de intervenção no cam-po brasileiro. O PCA tem como fundamentos centrais: a) a defesa de que, com a expansão do capitalismo no campo, o campesinato tende a metamorfosear-se em pequeno capitalista rural; b) a agricultura familiar destaca-se pelo caráter moderno das atividades produtivas, enquanto o campesinato permanece como a expressão do atraso; c) defende a integração da produção ao mercado como formas modernas de desenvolvimento no campo e uma maior especialização da produção. A análise do campesinato, a partir da dimensão mercadológica, não contempla as contradições da sociedade geradora de conflitualidades. O paradigma do capitalismo agrário nega qualquer pensamento contrário, esvazia conceitos carregados de historicidade (por exemplo, da substituição do conceito de camponês pelo de agricultura familiar, de agricultura capitalista por agricul-tura patronal e, atualmente, por agronegócio) e forja novos conceitos para as dinâmicas e os processos antigos (por exemplo, a substituição da noção de tra-balho acessório por pluriatividade). Difunde como meta a redução da pobreza e da fome, mas nunca a eliminação destas.

Este pensamento carrega o modelo de desenvolvimento que atende aos grupos que o defendem e o propagam, e não à sociedade como um todo. Da academia expandiu-se para a esfera governamental, para os movimentos sociais e sindi-cais e, até mesmo, para o senso comum. Nesse sentido, principalmente pelas pressões exercidas pelos movimentos camponeses e pelas políticas de Estado, as formas de acesso e de permanência na terra tornaram-se políticas diferenciadas expressas em dois modelos de tratamento da questão agrária.

Um modelo que defende prioritariamente a desapropriação como forma de acesso à terra e um conjunto de políticas públicas que garantam a existência e a territorialização das unidades familiares. Outro modelo, surgido recentemen-te com o avanço das políticas neoliberais, defende prioritariamente a compra da terra e um conjunto de políticas determinadas pela lógica do mercado e do agronegócio, voltadas para a agricultura familiar.

A espacialização da luta pela terra fez com que diferentes instituições e o setor ruralista procurassem criar políticas para impedir o seu crescimento e ter o controle político sobre o conflito. De fato, foi uma estratégia de transferir o caráter político do conflito para o mercado, pois este conflito é um espaço po-lítico que exige a participação efetiva do Estado como instituição competente para a sua resolução. Neste espaço, os camponeses sem-terra têm maior poder



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de ação; todavia, o mercado é um espaço político de controle do capital, o qual os ruralistas controlam. Como a ocupação da terra diverge das condições im-postas pelo capital para a criação e a recriação do campesinato, foram criados dois tipos de políticas, determinadas pela lógica do mercado: uma de financia-mento para a compra de terras, denominada de Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), e outra de arrendamento de terras vinculada à monocultura e ao agronegócio.

A primeira política foi criada sob o codinome de reforma agrária (Reforma Agrária Solidária). Assim, chegou-se à criação da esdrúxula expressão “reforma agrária de mercado”. Mesmo uma simples política de assentamentos rurais tem sido denominada de reforma agrária, contribuindo com a banalização do con-ceito. Assim, é possível inferir que a questão agrária está diretamente relacio-nada com a problemática da propriedade da terra. As relações sociais, voltadas para garantir a apropriação da terra, desembocam em um conjunto de conflitos que espraia para toda a sociedade o seu ônus, independente da condição econô-mica, opção política ou religiosa, raça, gênero ou geração.

Ao estudar a problemática da reforma agrária na América Latina, na década de 1960, o sociólogo colombiano Antonio García (1970) propôs a seguinte ca-tegorização da realidade dos diferentes tipos e concepções:

a) la de las reformas agrarias estructurales, que integran un proceso nacional de transformacio-nes revolucionarias liberalizado por un agresivo elenco de nuevas fuerzas sociales identificadas en un objetivo estratégico de cambio, fundamentándose en la substitución de las relaciones tradicionales de poder y de las normas institucionales que las preservan y proyectan; b) la de las reformas agrarias de tipo convencional, que forman parte de una operación negociada entre las antiguas y nuevas fuerzas sociales, por intermedio del sistema institucionalizado de partidos (conservadores, reformistas y revolucionarios), intentando modificar el monopolio latifundis-ta sobre la tierra sin cambiar las reglas institucionales de la sociedad tradicional; y c) la de las reformas agrarias marginales, que no apuntan hacia la ruptura del monopolio señorial sobre la tierra o hacia la transformación fundamental de las estructuras latifundistas (relaciones, poder, sistema normativo) sino hacia la reparación superficial de esas estructuras, desviando la presión campesina o la presión nacional sobre la tierra hacia las áreas periféricas y baldías, apoyándose políticamente en el sistema tradicional de partidos y en reglas institucionales de la sociedad tradicional (p. 10).

A primeira categorização está diretamente relacionada a uma concepção de revolução agrária. Pressupõe-se a uma profunda alteração na estrutura agrária concomitante à transformação do sistema social existente e a construção de uma outra sociedade. Isto pode acontecer no capitalismo, a exemplo do Méxi-co (1910), ou como caminho para a superação deste regime e a implantação de um Estado socialista, como ocorreu na República de Cuba (1959). A reforma agrária de tipo marginal visa a manutenção do sistema capitalista e não pressu-põe sequer a alteração da propriedade fundiária, criando, apenas, um conjun-



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to de ações paliativas ou compensatórias que desarticulem e/ou contenham as pressões para que uma falsa reforma se coloque em curso. Assume, portanto, a condição de uma contrarreforma agrária.

Tomando como referência a realidade brasileira no período em que Garcia escreveu este estudo, percebe-se que, embora o Estado brasileiro tenha tomado medidas para abrir espaço para implementação de uma reforma estrutural, as elites desenvolveram um conjunto de procedimentos com o intuito de promo-ver a cooptação e o controle social, e, assim, sufocar a possibilidade de revolu-ções socialistas.

Em 13 de março de 1964, o então presidente João Goulart, no marcante comício da Central do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, realizou a primeira apresentação pública das bases do seu programa de reforma agrária. O Decreto 53.700/64, que ficou conhecido como Decreto Supra, instituiu a desapropria-ção das terras “em um raio de 10 quilômetros dos eixos das rodovias e ferro-vias federais, terras beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclusivos da União, em obras de irrigação, drenagem e açudagem”. Dois dias depois, o mesmo presidente reivindicava ao Congresso Nacional prioridade máxima para a reforma agrária. Para tanto, solicitou ao Parlamento a supressão das palavras “prévia” e “dinheiro” no § 16, artigo 141 da Constituição Federal de 1946, que rezava “É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro” (Brasil, 1946).

Com a alteração destas duas expressões da Carta Magna, Goulart intencio-nava desobstruir o caminho para a reforma e institucionalizar um mecanismo de desapropriação, cuja indenização aos proprietários seria em títulos da dívi-da pública, pois, segundo o presidente, no referido discurso, a “reforma agrária com pagamento prévio do latifúndio improdutivo, à vista e em dinheiro, não é reforma agrária. Reforma agrária, como consagrado na Constituição, com pa-gamento prévio e em dinheiro, é negócio agrário, que interessa apenas ao lati-fundiário, radicalmente oposto aos interesses do povo brasileiro” (Discurso da Central do Brasil in: Stedile, 2005, p. 103-104.).

Exigiu, também, a alteração do artigo 147, que condicionava o uso da pro-priedade rural voltado ao bem estar social e da justiça social ao cumprimento da própria lei, ou seja, não havia a previsão de qualquer instrumento de controle ou acompanhamento por parte do Estado sobre o seu cumprimento. É como se a mera existência de uma lei garantisse a aplicação de seu conteúdo. A proposta de Goulart atribuiu a promoção da justa distribuição e o aproveitamento ra-cional da propriedade rural mediante a desapropriação por interesse social, in-troduzindo o pagamento de propriedades desapropriadas com títulos públicos. Este conjunto de ações políticas representou o primeiro grande enfrentamento



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à propriedade concentrada da terra. Sua repercussão foi tão estrondosa entre as elites do país, em particular entre os grandes proprietários, que a reação foi ful-minante para o governo Goulart, que sucumbiu dezesseis dias depois por um golpe de Estado, promovido pelas Forças Armadas.

Com o golpe militar de 1964, implantou-se, no Brasil, uma ditadura mili-tar extremamente repressiva e conservadora. Sua gênese reside na discordância, oposição e reação às reformas de base propostas por Goulart e o estopim para sua eclosão, foi, exatamente, o plano de reforma agrária divulgado. Paradoxal-mente, no início do primeiro mandato ditatorial, o governo Castelo Branco aprovou, no Congresso Nacional, uma lei agrária que contemplava o que ante-riormente fora motivação para a derrubada de João Goulart. Em que pese a re-pressão promovida pelo governo golpista, a pressão social exercida pelo campe-sinato era crescente. Em resposta a este cenário, foi promulgada a Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964, conhecida como Estatuto da Terra que, na prática, representa a primeira lei de reforma agrária do Brasil, instituindo:

a) Cadastro de todas as propriedades de terra do país;

b) Criou um organismo público federal – Ibra – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária – en-carregado do cadastro das propriedades, dos processos de colonização de terras públicas e de desapropriação de terras (...);

c) Criou o instituto da desapropriação pelo Estado daquelas propriedades que subutilizavam seu potencial produtivo. E, portanto, rompeu com o direito absoluto da propriedade da ter-ra, e condicionou a propriedade à utilização social. E deu poderes ao Estado para intervir em nome da sociedade;

d) Uma classificação geral para todas as propriedades, baseando-se em critérios de tamanho, utilização e capacidade de produção (...);

e) A desapropriação para fins de reforma agrária de todas as propriedades classificadas como minifúndio, visando ao reagrupamento de área; e das propriedades classificadas como latifún-dio, objetivando a distribuição de terras;

f ) Critérios de pagamento da área desapropriada: em dinheiro, apenas as benfeitorias, por resultado do trabalho. Terra nua, pagamento em Títulos da Dívida Pública, resgatáveis em 20 anos;

g) A obrigatoriedade do ITR – Imposto Territorial Rural, que, até então, não existia, e desti-nava esses recursos para o programa de reforma agrária;

h) O conceito e a possibilidade de formação de cooperativas – forma coletiva de organização da propriedade da terra e da produção nas áreas reformadas (Stedile, 2005, p. 147-148).

Embora seu conteúdo tenha forte teor progressista e inovador no campo agrário, na prática essa lei não passou de uma estratégia para dissimular o dis-curso da reforma agrária. As mesmas oligarquias rurais que apoiaram o gol-pe militar discordavam do conteúdo do Estatuto da Terra referente à reforma agrária e influenciaram a não aplicação da lei, de forma que esta se consagrou como um instrumento para o controle dos conflitos sociais e as desapropriações



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somente ocorriam com o intuito de amenizá-los. Estimulou-se a migração for-çada de trabalhadores de regiões brasileiras para a ocupação de frentes pioneiras mediante programas de colonização pública e privada, com o intuito de elimi-nar tensões e conflitos existentes.

Apesar de defender a desapropriação por interesse social, contraditoriamen-te pregava também a compra, a doação e a venda de terras. Outra questão em destaque foi a exclusão da empresa rural da passividade de desapropriação. Nesta lógica, os governos militares desenvolveram a política de colonização no Centro-Oeste e Norte do país em detrimento da reforma agrária. Esta medida enquadra-se no que Garcia (1970) denominou de reforma agrária marginal, ou melhor, assume características de uma contrarreforma agrária. Fernandes (1996, p. 39) endossa essa conjuntura:

Durante as duas décadas em que os governos militares estiveram no poder, garantiram a apro-priação, [através de compra, dos projetos de colonização ou da grilagem] por grandes grupos empresariais, de imensas áreas de terras e também o aumento do número de latifúndios. Fi-nanciaram as mudanças na base técnica de produção, com base nos incentivos criados e do crédito subsidiado pela sua política agrícola. Proporcionaram, assim, a modernização [grifo do autor] da agricultura e a territorialização do capital no campo. Do outro lado, reprimiram toda e qualquer luta de resistência a sua política. Dessa forma, a estrutura fundiária sofreu al-terações profundas (...) [grifo meu] (Fernandes, 1996, p. 39).

Este período é confirmativo da hipótese de que a efetivação de uma lei ou política pública somente é determinada pelo exercício do poder político do segmento social hegemônico, em dado momento, e não pela criação e insti-tucionalização de um fundamento jurídico; pois o controle político territorial não permitiu a realização de uma reforma agrária, mas garantiu a ampliação do poder econômico e político dos latifundiários. Mesmo diante deste cenário, o Estatuto da Terra incorporou elementos importantes tanto para a delimita-ção conceitual quanto para a realização de um programa de reforma agrária. O primeiro deles foi a atribuição da centralidade do Estado no planejamento e execução do programa de reforma agrária. Outro ponto relevante foi a orienta-ção da modificação da estrutura fundiária do país, sendo a obtenção de terra, prioritariamente, por meio da desapropriação. Os seus principais pontos foram, posteriormente, incorporados à Constituição Brasileira de 1988 e na atual le-gislação agrária.

Retomando o pensamento de Garcia, a reforma agrária convencional bus-ca realizar uma negociação entre novas e velhas forças sociais, com o intuito de modificar o monopólio das terras sem alterar as regras institucionais da socie-dade tradicional. Pretende, no processo de transformação agrária, estabelecer um pacto entre as diferentes forças sociais para evitar uma alteração nas formas de poder. Assim, foi realizado o II Plano Nacional de Reforma Agrária no úl-



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timo governo, cujo conceito e prática inclui: (1) programas de assentamentos de famílias sem-terra; (2) otimização dos projetos de assentamentos existentes; (3) regularização fundiária para posseiros; (4) complementado com reforma agrária de mercado. Embora o ordenamento jurídico pressuponha o mecanis-mo desapropriatório como forma de arrecadação de terras, na prática o gover no assentou a maior parte das famílias em terras públicas na região Norte e execu-tou o reordenamento fundiário em assentamentos preexistentes. Nestes termos, a postura governamental atual é tentar pactuar, ao seu modo, com as diferentes forças em disputa.

Esta postura agrada diretamente aos ruralistas que seguem, de alguma for-ma, com o controle fundiário, econômico, político, social, tecnológico etc. Atualmente, não se opõem mais à realização da reforma agrária e o que está em questão é qual reforma agrária pode ser realizada. Apesar de não combaterem o ordenamento jurídico constitucional da via desapropriacionista, enfatizam que as grandes propriedades são produtivas e que a reforma agrária deve ocorrer de forma negociada através das linhas de financiamento de crédito fundiário. O seguinte trecho do Voto em Separado da CPMI da Terra do deputado ruralista Abelardo Lupion, é emblemático:

(...) uma alternativa eficiente à reforma agrária, possibilita a aquisição de terras por negocia-ção, evitando-se os conflitos fundiários, as arbitrariedades e as violências. Através deste me-canismo, o Poder Público, ainda, estará financiando a aquisição da terra para os interessados, livrando-se dos percalços processuais e do pagamento de indenizações. Ponto fundamental da proposta do Banco da Terra é o fato de obter financiamento para a aquisição de imóveis rurais para pessoas que possuem real vocação e vontade de trabalhá-las. A implementação do Banco da Terra ou instrumento similar certamente trará oportunidade de vivenciarmos uma verdadeira reforma agrária e acesso democrático à terra, já que propicia maior grau de liberdade dos favorecidos ao permitir-lhes escolher a terra que desejam e nego-ciar seu preço, a supressão da intervenção da agência estatal no processo de seleção e negocia-ção das terras (Lupion, 2005, p. 372-373).

Este instrumento não apresenta um acordo entre as diferentes forças da so-ciedade envolvidas neste processo. Enquanto o movimento sindical se deixa levar e contribui com o avanço do programa de Cram, os movimentos articula-dos em torno da Via Campesina mobilizam-se e se opõem a este modelo, mo-tivados pelo caráter de contrarreforma agrária embutido nas linhas de financia-mento de crédito fundiário.

Considerando que hoje, no Brasil, com a atual correlação de forças vigente na sociedade é difícil vislumbrar a possibilidade da realização de uma revolução agrária. Menos ainda, o atual cenário apresenta-se como uma reforma agrária estrutural, tendo em vista que a principal nova força, representada pelo MST, nega-se a negociar com as velhas forças políticas e econômicas (em que pese a postura pontual, isolada e contraditória do MST-Sergipe em ingressar como



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demandante do crédito fundiário), bem como, a própria realidade demonstra que este movimento tem alterado as regras sociais tendo como trunfo os assen-tamentos conquistados. Um exemplo disto é a conquista e relativo controle de um programa de educação específico, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), a participação na construção de uma política nacio-nal de Assessoria Técnica, Social e Ambiental (ATES) e no controle do processo de elaboração de alguns Planos de Desenvolvimento Territorial, como no caso do território do Alto Sertão em Sergipe, torna-se difícil categorizar a realida-de atual como uma reforma agrária convencional, estimulando-me a perseguir uma atualização do conceito de reforma agrária.

Seguindo a empreitada na busca de uma delimitação de reforma agrária, concordo com Silva (1971), Accioly Borges (1984) e Oliveira (2006, p. 6) ao defenderem que a reforma agrária deve acontecer de forma massiva, imediata e drástica. É preciso que ela seja implantada em um período determinado, com início e fim previstos para promover o beneficiamento da parcela da sociedade que está excluída do acesso à terra e/ou das condições plenas de produção no campo. Deve ser drástica, porque visa promover alterações estruturais no status quo mediante “a redistribuição dos direitos sobre a propriedade da terra agríco-la, ou seja, a modificação do regime de posse, uso e gozo da terra constitui a es-sência do processo reformista e, sem a reforma no sistema de tenência da terra, nenhuma Reforma Agrária é digna desse nome.” (Silva, 1971, p. 39) Atualmen-te, para que isso ocorra é necessário criar as condições objetivas e subjetivas.

Na atualidade, diferentes estudos têm mostrado a importância da reforma agrária também incluir uma alteração no regime de controle das águas em favor dos seus beneficiários para que o campesinato, em programas de reforma agrá-ria, tenha mais condições de construção de sua autonomia. Uma dimensão fun-damental da reforma agrária é a democrática, ou seja, ela deve buscar o atendi-mento das reivindicações dos trabalhadores sem-terra e suas organizações, bem como contemplar os minifundiários e suas entidades, permitindo que todos os segmentos do campesinato, envolvidos na reforma agrária, possam participar de todas as etapas do processo, desde sua elaboração e planejamento até a execu-ção. A mudança na propriedade da terra deve ser acompanhada de transforma-ções nos sistemas agrícolas, priorizando unidades familiares de produção e suas inerentes formas associativas ou de cooperativismo, além da utilização racional dos recursos naturais e da preservação ao meio ambiente.

Deste modelo, decorrerá uma diversidade de produtos em quantidade sufi-ciente a garantir a soberania alimentar e a qualidade compatível com uma ali-mentação saudável e saborosa. A preservação e o fortalecimento das práticas e dos valores da cultura camponesa devem ser priorizados na execução de qual-quer reforma agrária. Para que se alcancem os efeitos desejados é necessário que



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seja acompanhada de um conjunto de políticas agrícolas, que aqui são conce-bidas como:

o conjunto de ações governamentais que visa a implantar nos assentamentos de reforma agrá-ria a assistência social, técnica, de fomento e de estímulo à produção, comercialização, be-neficiamento e industrialização dos produtos agropecuários. Estão incluídos nessas ações: educação e saúde públicas, [previdência social], assistência técnica, financeira, creditícia e de seguros, programas de garantia de preços mínimos e demais subsídios, eletrificação rural e ou-tras obras de infraestrutura, construção de moradias e demais instalações necessárias etc (Oli-veira, 2005, p. 390) [grifo meu].

Neste contexto, faz-se necessário enfatizar que somente o Estado, juntamen-te ao seu conjunto de instituições, tem o poder de comandar o tempo e a escala de um programa de reforma agrária, delineado sob estes princípios e com esta magnitude, tendo em vista o caráter territorial desta política pública. Contra-riamente, a Cram resulta de um arranjo institucional tripartite no qual o Banco Mundial concede empréstimos internacionais ao Estado-Nação que, median-te convênios, transfere a responsabilidade para os governos estaduais de gerir e implementar o financiamento da compra de terras por trabalhadores sem-terra ou com pouca terra.

São os agentes financeiros e o Estado que definem, preliminarmente, o quan-titativo de área e famílias a ser incorporado ao programa. Dentre as justificativas para o programa está a redução da pobreza rural, a redução dos custos da refor-ma agrária, a eliminação das situações conflitivas e burocráticas etc. Pressupõe-se que a liberdade dos camponeses para escolher o imóvel que desejam comprar e negociar o preço das terras, permitirá comprar os melhores imóveis por preços mais baixos. Porém, o movimento do real tem demonstrado que as associações são formadas, muitas das vezes, por agentes externos, com o objetivo, apenas, de comprar terras, atendendo aos interesses dos proprietários, de políticos e de can-didatos a cargos públicos eletivos locais. Os imóveis adquiridos, ou parte destes, geralmente estão mal localizados, apresentam baixa capacidade produtiva e os preços da terra vão de moderados a altos, de forma que é o próprio mercado que determina o tempo, o espaço e a condição da implantação deste programa.

Embora haja certa agilidade na implantação da infraestrutura comunitária e da liberação de créditos agrícolas, as condições geográficas dos empreendimen-tos demonstram grandes limitações ao desenvolvimento territorial dificultando a construção da emancipação e autonomia das famílias. Dentre as causas vale ressaltar: a baixa capacidade política das associações, exiguidade territorial para o quantitativo de famílias mutuárias por empreendimento, frequentes equívo-cos das equipes de assistência técnica, assim como a irregularidade da prestação de assessoria técnica etc. Estes fatores têm determinado que parte dos trabalha-



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dores destes programas sigam realizando sua subsistência mediante assalaria-mento nas fazendas circunvizinhas.

A criação dos empreendimentos de Cram perpassa uma operação de finan-ciamento bancário aos camponeses pobres para a aquisição, à vista, de um imó-vel rural ou fragmento deste. Trata-se de uma transação imobiliária rural como qualquer outra, que realiza a renda absoluta da terra, favorece diretamente os fazendeiros que disporão de dinheiro em espécie para a aquisição de terras em outros locais, investir em outros setores da atividade produtiva ou qualquer ou-tra coisa; favorece os bancos que receberão os juros dos mutuários mediante a amortização do financiamento. Já os mutuários, por sua vez, apresentam difi-culdades de pagamento destas anuidades e o realizam mediante o comprometi-mento de parte significativa da renda da terra.

Além disso, os empreendimentos de Cram têm, por parte do governo, um tratamento ambíguo, pois ora é contemplado com os recursos e políticas vol-tadas à reforma agrária (ex. créditos agrícolas), ora é tratado como propriedade particular; como exemplo, há a manutenção dos equipamentos comunitários do empreendimento. Isto exige que os mutuários realizem a manutenção, por exemplo, de uma estrada e infraestrutura hídrica, com recursos próprios. Mas, como não há capitalização das comunidades, os equipamentos permanecerão deteriorados. Uma alternativa é reivindicar a contribuição do poder público na recuperação e/ou conservação dos equipamentos produtivos, sociais etc. e, nes-ta questão, residem outros limitantes que são a baixa politização e capacidade de pressão das associações.

Neste contexto, antes de passar à analise os processos de subordinação e re-sistência do campesinato mutuário da Cram organizado na Federação dos Tra-balhadores da Agricultura do Estado de Sergipe (Fetase), no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – Sergipe (MST) e no Movimento dos Atingi-dos pela Reforma Agrária de Mercado (Maram), objetivo no próximo capítulo estabelecer uma delimitação teórica do conceito movimentos socioterritoriais adotado nesse estudo e um breve histórico destas organizações.


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os movimentos socioterritoriAis: conceito, orgAnizAção e ProgrAmA de Ação

No Brasil, nas últimas décadas, os estudos sobre movimentos sociais vêm sendo difundidos. O campo do conhecimento que mais tem contribuído com a análise de diferentes formas de luta engendradas, principalmente pelas classes subalternas, advém da Sociologia, aportando, indubitavelmente, relevante re-flexão teórica na delimitação do conceito de movimentos sociais. Na centralida-de das análises reside o conjunto de relações que os sujeitos constroem coletiva-mente para alterar um problema da realidade em dado momento histórico.

Estou de acordo com Pedon (2009) cuja questão não é se o movimento ocorre no espaço urbano ou no espaço rural, mas o relevante é uma requalifica-ção do espaço em face a natureza do movimento em questão, uma vez que

Um movimento social só existe numa perspectiva de classe, quer dizer, se estiver inserido numa totalidade na qual a classe é uma categoria que engloba o conjunto de suas práticas con-cretas. Em determinados momentos, dependendo das condições conjunturais, o antagonismo entre as classes pode gerar manifestações sistemáticas que vão além das meras ações coletivas transcorridas no cotidiano. Nessa situação, reúnem-se as condições necessárias à formação dos movimentos sociais que podem vir a existir ou não. Sua real existência vai depender da capa-cidade dos envolvidos em se contrapor aos interesses que os mantém numa situação de subor-dinação ou aos mecanismos que os mantêm fora dos processos decisórios. Essa contraposição se dá por meio da autodefinição dos movimentos, de sua singularização diante de um quadro de desigualdade fundamentado no antagonismo (Pedon, 2009, p. 42).

Compreendemos que a classe não é algo dado a partir da posição dos sujei-tos no processo de produção, resultante do desenvolvimento das forças produ-tivas ou mesmo da aplicação de formulações teóricas à realidade. Efetivamente

cAPÍtulo iv



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é a realidade que contribui para produção da teoria. De uma teoria que con-tribua para o desvendamento e explicação da realidade, esse é (ou deve ser) um movimento pertinente ao trabalho dos intelectuais. Assim, a classe resulta da experiên cia humana, ou seja, é o fazer-se classe. Segundo Thompson,

(...) as classes não existem como entidades separadas que olham ao redor, acham um inimigo de classe e partem para a batalha. Ao contrário, para mim, as pessoas se veem numa sociedade estruturada de um certo modo (por meio de relações de produção fundamentalmente), su-portam a exploração (ou buscam manter poder sobre os explorados), identificam os nós dos interesses antagônicos, debatem-se em torno desses mesmos nós e, no curso de tal processo de luta, descobrem a si mesmas como uma classe, vindo, pois, a fazer a descoberta da sua consciên cia de classe. Classe e consciência de classe são sempre o último e não o primeiro de-grau de um processo histórico real (2001, p. 274).

É no processo de identificação de um determinado, ou de determinados conjuntos de problemas antagônicos, que os sujeitos no movimento do fazer histórico buscam a construção de possibilidades e condições materiais para a superação daqueles e a transformação de suas realidades. Este movimento pode desembocar em manifestações coletivas, compreendidas como todo modo de agrupamentos com uma finalidade específica de obter respostas às respectivas demandas.

Um exemplo pode ser visto no estudo de Benítez e Barreto (2009) ao anali-sar a lógica técnica e política na concessão de moradias na Argentina a partir do processo de ocupação de 200 habitações populares, por famílias atingidas pelas fortes chuvas e enchentes no município de Puerto Vilelas, na área metropolita-na de Grand Resistencia, na província de Chaco Argentina. Neste caso, assim que abrigos e/ou novas moradias foram definidas pelo Estado para os atingidos findou-se a luta popular. Neste caso, diante de um problema de ordem política na concessão dos direitos à habitação popular e frente às privações dos flagela-dos das chuvas, a adoção de medidas, mesmo que precárias, sobre os problemas conduzem à desarticulação da organização e luta popular.

A identificação dos problemas antagônicos pode gerar, ainda, formas orga-nizativas coletivas que exigem da delimitação e identificação dos seus integran-tes, a elaboração de uma matriz discursiva, retenção de referenciais históricos e teóricos da luta até a delimitação de estratégias e um programa de ação. Estes componentes dos movimentos sociais pressupõem uma permanência temporal. O conjunto das ações praticadas por um dado movimento social pode produzir transformações no conjunto de relações inerentes a uma determinada forma de estruturação da sociedade.

Os movimentos podem ser reivindicatórios ou contestatórios. Podem atuar para a mudança de alguma condição mais imediata ou podem atuar com vis-tas a transformação estrutural da sociedade. Nesse aspecto, a ação resulta de



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uma relação ou de um conjunto de relações em face das intencionalidades que se encontram em oposição. As ações, sejam elas construídas pelos dominantes ou pelos dominados, não são neutras e inserem-se no espaço geográfico, cons-tituindo-o. De forma que a manutenção, reformulação ou transformação das relações sociais inscreve-se no processo de produção do espaço.

Um conjunto de movimentos sociais tem, no centro do seu programa de ação, questões fundamentalmente espaciais. É nesse raciocínio que se insere o campesinato. Esta classe social tem na centralidade da sua existência o direito de acesso à terra, com vistas à produção de um conjunto de relações que se funda-mentam, principalmente, em relações de produção não capitalistas, materializa-das na realização do trabalho familiar. Isto não que dizer que nego a existência de movimentos socioterritoriais em outros espaços como a cidade e a floresta. É a intencionalidade de melhor apreender as formas de luta por espaços e ter-ritórios que confere notoriedade à atualização do debate sobre os movimentos sociais a partir dos estudos que estão sendo realizados no Núcleo de Estudos Projetos e Pesquisas de Reforma Agrária (Nera), que desde a ótica geográfica realizam um esforço de construção do conceito de movimentos socioespaciais e movimentos socioterritoriais (Fernandes e Martin, 2004; Fernandes, 2005a; Pedon, 2009).

Estou de acordo com Pedon de que os movimentos socioespaciais:são formas de mobilização social. Sua espacialidade está vinculada a sua capacidade de gerir determinadas demandas no âmbito de um determinado espaço, sem buscar introduzir ne-nhum elemento novo, seja material ou imaterial. Um movimento socioterritorial, por outro lado, é uma organização que tem como objetivo criar as capacidades de introduzir novas for-mas de apropriação e uso dos territórios. Seu objetivo é a instauração de uma nova territoria-lidade. Mesmo limitadas e/ou estritamente localizadas, essas novas territorialidades implicam em transformações nas relações sociais e na configuração dos lugares. Na constituição do ter-ritório, o espaço é apropriado de forma a fazer dele o espaço da ação. Este espaço é formado por seus participantes, líderes e mediadores, todos eles, sujeitos da ação política que tem na sua territorialidade a legitimação de sua ação. Todo movimento socioterritorial é ao mesmo tempo um movimento pela autodefinição. Bus-ca-se afirmar uma representação de si mesmo, como indivíduo ou grupo, que se apropria de um espaço. Esta autodefinição constitui-se dentro de um espaço maior, onde as relações de poder estão arranjadas de forma a dar sentido ao ordenamento no território. Impor sua territorialida-de, imprimir no espaço o conjunto de seus valores, ideias e vontades, faz com que a conquista do território seja um trunfo para os movimentos socioterritoriais. O espaço torna-se trunfo ao tornar-se território, nesse processo, ele é a base da criação e recriação das experiências de resis-tência e transformação das relações sociais. É praticamente impossível separar a experiência de resistência das territorialidades, sendo possível falarmos em uma territorialidade resistente, tal como nos mostra os trabalhos de Gonçalves (1999 e 2000) (Pedon, 2009, p. 170).

Este estudioso, em sua reflexão teórico-conceitual, toma como referência empírica as lutas por terra e por moradia realizada no Brasil contemporâneo.



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Nestas mobilizações contra a exclusão social e por direitos, os sujeitos organi-zados em movimentos têm como principal forma de luta a realização das ocu-pações de terras, o que leva o autor a afirmar que “uma ocupação é uma ação complexa, poderíamos até dizer que é um dos principais fatores definidores de um movimento socioterritorial” (Pedon, 2009, p. 173). Indubitavelmente, a re-alização desta forma de luta popular é central para que os objetivos de alteração da propriedade privada da terra possam vir a ser reformuladas e para que, de posse e controle sobre o território, os trabalhadores possam avançar na supera-ção das suas realidades. Porém, a ocupação de terras resulta da lógica organiza-tiva e estratégia de ação adotada por um movimento socioterritorial. Os estudos sobre a formação, organização, estratégias de ação do Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado (Maram) demonstram que este tem o acesso, controle e permanência no território como centralidade de sua ação, mas a me-todologia da luta pela terra mediante realização de ocupações, sequer de prédios públicos, ao menos neste momento, não se encontra no horizonte, conforme debaterei a seguir, na seção A construção do Movimento dos Atingidos pela Re-forma Agrária de Mercado (Maram).

Outro componente para compreensão de um movimento socioterritorial é a sua escala de ação e esta depende diretamente da sua capacidade organizativa para ação. De modo que o movimento socioterritorial pode desenvolver um conjunto de ações que se limitam ao local, um município, uma microrregião, um conjunto de estados de um país, abranger a escala nacional ou mesmo dife-rentes países, até a escala mundial.

Considero, ainda, ser possível um movimento ter ação em escalas reduzidas, como a local, mas obter conquistas que impactem em escalas maiores como a escala nacional. Uma explicação para esta afirmação é que o território apropria-do para/por uma coletividade funciona como um trunfo para impulsionar as conquistas do movimento socioterritorial. Este impulso pode ser materializar seja na territorialização do movimento, mediante a conquista de outros terri-tórios, mas também os territórios articulados em rede de um dado movimen-to socioterritorial podem ser trunfo para impulsionar conquistas em diferen-tes planos, como extensão e/ou garantia de direitos que ultrapassam a base do movimento socioterritorial para outros segmentos da sociedade e sua escala de atuação.

Neste marco teórico-conceitual compreendo o Movimento dos Trabalhado-res Rurais Sem-Terra, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Sergipe e o Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado como movi-mentos socioterritoriais, de forma que conduzo o leitor nas próximas páginas a uma breve delimitação das suas trajetórias históricas e respectivos programas de ação.



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Breve histórico dA confederAção nAcionAl dos trABAlhAdores nA AgriculturA (contAg)

A Contag, indubitavelmente, é a maior organização sindical dos trabalhadores rurais do Brasil na atualidade. Representa os trabalhadores rurais assalariados permanentes e temporários, camponeses assentados na reforma agrária ou não, assim como trabalhadores nas atividades extrativistas. Sua fundação foi antece-dida pela criação, em 1931, da Lei de Sindicalização e, em 1937, da Consoli-dação das Leis Trabalhistas (CLT), em 1943. Ambas legislações foram criadas pelo governo Getúlio Vargas com o intuito de promover a modernização con-servadora no país, que perpassava o controle da força de trabalho a partir de um suposto “pacto social”. A regularização da sindicalização tinha alcance exclusi-vamente urbano e inspirou-se na Carta del Lavoro da Itália fascista de Mussolini (Picolotto, 2009).

Os sindicatos criados, naquele momento, deveriam ter a anuência do Esta-do, por meio do Ministério do Trabalho e da Justiça do Trabalho, que controla-va diretamente a criação, a regularização, a atuação e as finanças das entidades. Esta regulação buscava garantir uma base segura para o projeto de moderniza-ção nacional que fosse ordeira e estável. Por sua vez, a criação da CLT institu-cionaliza um conjunto de direitos trabalhistas (jornada de trabalho de oito ho-ras, férias remuneradas, sistema previdenciário, salário mínimo etc.) que eram apresentadas como concessões do Estado varguista às lutas históricas do opera-riado. A CLT, apesar de garantir o direito ao salário mínino para os trabalhado-res rurais, impedia-os de sindicalizar-se.

Foi após a Segunda Guerra Mundial, com a intensificação da penetração do capitalismo no campo, que os camponeses foram construindo diferentes movi-mentos reivindicatórios por direitos e defesa do campesinato, por exemplo: as Ligas Camponesas, a União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas (Ultab) – ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), Movimento dos Agricultores Sem-Terra (Master). Estes movimentos socioterritoriais realizaram, em que pe-sem as diferenças entre eles, um conjunto de lutas por reforma agrária, condi-ções de trabalho, melhoria salarial para os trabalhadores rurais etc. Decorreu, portanto, das pressões exercidas por estas organizações, considerando a conjun-tura da necessidade de realização de reformas de base apontadas pelo governo João Goulart, a criação, em 1963, do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR).

Sua aprovação em larga medida vinha atender às demandas dos trabalhadores rurais e era, pelo menos parcialmente, uma vitória do PCB, que reclamava há muito a adoção de tais di-reitos. Paradoxalmente, nem sempre trará benefícios ao homem do campo. Um dos resultados negativos da extensão dos direitos sociais ao meio rural foi o grande número de expulsões de trabalhadores que se verificou em seguida. A pressão pelo cumprimento da nova legislação



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provocou um aumento nos custos sociais da mão-de-obra no campo; ademais, a aplicação do ETR estimulava o movimento grevista, situação que deu ensejo a mudanças que resultaram na expulsão de parte dos moradores das fazendas. Mesmos os militantes no campo reconheciam os efeitos negativos das aplicação do ETR (Costa e Marinho, 2008, p. 132).

O entrevistado, Itu 01, (mutuário do Banco da Terra em Ituiutaba, Minas Gerais e militante do Maram) ao recuperar suas memórias sobre a condição de vida e trabalho no campo do Triangulo Mineiro, na década de 1960, época de sua adolescência, confirma a situação apresentada pelos estudiosos da seguinte maneira:

Aqui de primeiro tinha colônia, igual nóis tem aqui, aqui eu conheci muito quando era peque-no, isso aqui era como uma colônia de casa (...) aí quando veio essa Lei do...de...do... do sindi-cato, aí o sindicato imprensou muito os fazendeiro, né. Que aí os fazendeiro tinha que pagar, registrar as pessoas morando. E os morador, igual que muitos dava morada pras pessoa morar e se o... sair da linha lá...tinha que doar, pelo tempo de terra, usucapião os fazendeiro tinha que fazer a doação de pedaço de terra, né. Aí os fazendeiro foram cortando esse negócio. Sendo que hoje você anda na fazenda, você não vê ninguém! Que ninguém não quer dar morada pras pes-soa morar, como antigo, de primeiro. Aqui, em Ribeiro aqui oh! Tem muitos lugar que você chega assim tem lugar de casa que era das colônia. Tinha mais gente nas fazenda que na cidade! Era até bom, quando era aquelas festas, divertimento, era bom demais! Mas só que acabou. Nossa família era desse jeito aí. Minha família foi criada na região de Capinópolis, Brumado, Soledade, Gama, aquela região dali, nas zona das matas (Entrevista Itu 01, Ituiutaba, 2009).

Decorrente da mobilização dos camponeses proliferava no Brasil, do iní-cio dos anos 1960, a criação de associações civis e sindicatos de trabalhadores rurais. Neste período, a polarização das disputas pela liderança da organização sindical rural girava em torno, principalmente, do Estado, do PCB e da Igreja Católica conservadora. O Estado, de uma postura de contenção da organização social no campo, que marcara as primeiras décadas do século XX, agora passa-va a mobilizador da sindicalização rural. O registro e reconhecimento do sin-dicato rural criado pelo Ministério do Trabalho em 1962, pela portaria 209-A de 25 de junho de 1962, era disputado pelas duas forças políticas do momento histórico: o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e a Igreja Católica em sua ala conservadora.

Esta portaria já previa a criação da Confederação Nacional da Agricultura, de natureza patronal e a criação da Contag. Ao mesmo tempo em que a Igreja e o PCB seguiam na disputa para regularizar os seus sindicatos e federações, criticava- -se a grande fragmentação em diferentes categorias dos trabalhadores do cam-po, o que foi alterado por portaria governamental posterior. Por duas vezes, no ano de 1963, a Igreja Católica tentou realizar assembleias de fundação da Contag com a presença de suas federações afiliadas. Na segunda delas, em ou-tubro de 1963, estavam presentes as federações de trabalhadores na agricultu-



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ra de Sergipe10, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Nenhuma das tentativas foi aceita pelo Ministério do Trabalho por falta de representatividade. Segundo Costa e Marinho:

Foram o Consir e o Ministério do Trabalho que viabilizaram a realização da assembleia de fundação da Contag, reunida no Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, entre os dias 20 e 23 de dezembro de 1963, cujas sessões foram conduzidas pela própria Consir. Das 42 federa-ções então existentes, 21 delas tinham orientação do PCB. Por pressões das AP, tendo em vista esse desequilíbrio, chegou-se a um acordo: participariam da assembleia as federações já reco-nhecidas pelo Ministério do Trabalho e aquelas que estavam em processo de reconhecimento. Isso reduzia para 23 o número das federações, que, finalmente, se reuniram para fundação da Contag. (...) Em 31 de janeiro de 1964, o presidente da República reconhecia oficialmente a Contag através do Decreto 53.517, publicado no dia 5 de fevereiro de 1964, e a Confederação Nacional da Agricultura (Costa e Marinho, 2008, p. 139).

As disputas entre a Igreja Católica e a Ultab pela liderança da representa-ção no campo contribuíram para a criação da Confederação sobre um modelo de sindicato tutelado pelo Estado. Sua estrutura é formada por três instâncias: os Sindicatos de Trabalhadores Rurais que atuam na jurisdição municipal, as Federações de Trabalhadores na Agricultura de atuação estadual e a Confede-ração de atuação nacional. Durante a ditadura militar a Contag passou por intervenção e várias lideranças foram perseguidas e/ou exiladas, mas diferente de outros sindicatos não foi fechada.

Durante este período, disputas internas foram travadas para recuperar o controle da entidade. A partir dos anos 1970 a Confederação adotou uma postura de denuncia permanente sobre ocorrência dos conflitos fundiários ocorridos nas distintas unidades da federação, por meio do envio de ofícios aos órgãos governamentais, reivindicando o cumprimento dos direitos à terra e ao trabalho digno previstos no Estatuto da Terra e no Estatuto do Traba-lhador Rural.

O histórico de criação, as disputas internas que permeiam toda a his-tória da organização e a enorme abrangência da entidade a fazem ter dife-rentes formas de ação entre os estados brasileiros, como, por exemplo, as diferenças de metodologia no tocante à reforma agrária, na qual há estados que a adotam como principal metodologia de ação as ocupações de terras, enquanto em alguns estados esta forma de luta é secundária, havendo ainda outros onde não se praticam as ocupações de terras. Uma linha de atuação unificada da entidade diz respeito à centralidade que tem no encaminha-

10 Segundo o site da Fetase, esta Federação “(...) foi fundada em 18 de junho de 1962, e reconhecida pelo Minis-tério do Trabalho e Previdência Social em 11 de julho de 1963, com registro no Ministério do Trabalho – De-legacia Regional do Trabalho em Sergipe – Processo n. 186.481/62 – Livro 02 - fls.83. Os cinco primeiros sin-dicatos que deram origem a Fetase foram: STR de Nossa Senhora da Glória, STR de Aquidabã, STR de Simão Dias, STR de Nossa Senhora das Dores e STR de Itaporanga d’Ajuda”. Disponível em: <www.fetase.org.br>



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mento dos procedimentos para acesso dos trabalhadores aos benefícios da previdência social rural.

No 6º Congresso Nacional da Contag, foi aprovada a incorporação do con-ceito de agricultor familiar no debate e formas de identificação da categoria, a filiação à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a criação da Comissão Nacional das Mulheres Trabalhadoras Rurais (CNMTR). No 7º Congresso, realizado em 1998, aprovou-se o Plano Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável (PADRS), introduzindo o debate sobre o conceito de desenvolvi-mento, sendo o princípio deste plano:

a realização de uma ampla e massiva reforma agrária, expansão, valorização e fortalecimento da agricultura em regime de economia familiar, centrado na inclusão social, no desenvolvi-mento social, econômico, ecologicamente sustentável e no fim de todas as discriminações, em especial as de gênero, de geração, raça e etnia. Para a implementação do Projeto Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável – PADRS desenvolveu-se um trabalho de formação de lideranças em desenvolvimento local, através do Programa de Desenvolvimento Local Sustentá-vel – PDLS, voltado para a animação e estímulo a processos de desenvolvimento sustentável ao nível local, possibilitando uma maior intervenção nas políticas públicas e nos Planos Mu-nicipais (Revista Contag 40 anos) [grifos do autor].

Desde então vem se afirmando como o Movimento Sindical dos Trabalha-dores e Trabalhadoras Rurais (MSTTR).

O 9º Congresso, em 2005, introduziu o debate sobre a importância da so-lidariedade para o desenvolvimento do campo, ajustando diretrizes e o nome para Plano Alternativo de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário.

É, portanto, no contexto desta Confederação que se insere a Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Sergipe (Fetase). Conforme apresentado an-teriormente, desde o ano de 2002, com a criação do Programa Nacional de Crédito Fundiário, que a partir dos ajustes realizados na regulamentação de operação do crédito fundiário que se excluíram os imóveis passíveis de desapro-priação para reforma agrária, ou seja, aqueles maiores que 15 módulos fiscais em condição de improdutividade da possibilidade de aquisição pelo crédito fundiário e com inserção formal da Confederação no Programa, inclusive com a possibilidade de indicar assessores remunerados no âmbito federal e locais. Nesse contexto, a Contag e Fetase vêm aportando apoio político-operacional ao crédito fundiário em todos os estados nos quais o Programa está estruturado.

dA gênese à territoriAlizAção do movimento dos trABAlhAdores rurAis sem-terrA (mst)

A gênese do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) foi an-tecedida pelo golpe de Estado promovido pelos militares, que instituíram um



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regime político ditatorial, impondo a repressão e a perseguição sangrenta aos diferentes setores da sociedade que não se alinharam com os seus pressupostos. No bojo deste regime, foram promovidas ações no sentido de promover a mo-dernização do país, visando a sua inserção no capitalismo monopolista mun-dial, o que ocorreu de forma subalternizada e dependente.

A agricultura cumpriu um papel estratégico para gerar as divisas necessárias ao processo de industrialização do país, mediante, por um lado, a produção de commodities em larga escala realizada em grandes propriedades, e, por ou-tro, mediante a incorporação do pacote da Revolução Verde que exigia a in-trodução (consumo) de elevados índices técnicos na produção agropecuária. No intuito de viabilizar este modelo de desenvolvimento, o Estado ditatorial militar adotou um conjunto de medidas, dentre as quais destaco: a) a criação da primeira lei de reforma agrária do país, o Estatuto da Terra, cuja finalidade era tão somente controlar os trabalhadores excluídos com o processo de mo-dernização conservadora do campo; b) montagem de um aparato institucional para realização de pesquisa científica e tecnológica que desse suporte ao mo-delo produtivo almejado para o campo e criação de linhas de crédito agrícola farto, subsidiado e a baixo custo; c) atração de investidores internacionais para implantação de projetos agropecuários e/ou minerais para promover a “ocupa-ção” do território brasileiro.

O desenvolvimento das relações capitalistas no campo intensificou o pro-cesso de exploração, expropriação e expulsão dos trabalhadores rurais, cam-poneses, arrendatários, parceiros, meeiros etc. Multiplicaram-se, portanto, as conflitualidades no campo, de maneira que o campesinato, mesmo com as vio-lentas repressões praticadas pelos militares, seguiu realizando diferentes formas de luta em todo o território nacional, construindo novas possibilidades no cam-po. Estas experiências foram possíveis, muitas vezes, em virtude da atuação da Comissão Pastoral da Terra (CPT)11 que, através dos agentes de pastoral e nas Comunidades Eclesiais de Base (CEB), construíram espaços de socialização po-lítica que contribuíram para organização, resistência e recriação do campesina-to (Fernandes, 2000, p. 49-50). Foi nesse circuito que foi gestado o MST. Para Fernandes:

O Movimento começou a ser formado no Centro-Sul, desde 7 de setembro de 1979, quando aconteceu a ocupação da gleba Macali, em Ronda Alta no Rio Grande do Sul. Essa foi uma das ações que resultaram na gestação do MST. Muitas outras ações dos trabalhadores sem-terra, que aconteceram nos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul, fazem par-

11 A Comissão Pastoral da Terra, ligada ao setor da Igreja Católica adepto da Teoria da Libertação, foi criada em 1975, durante a ditadura militar e, desde então, vem atuando em três eixos: assalariados e melhores condições de trabalho; com os posseiros e contra a grilagem de terras; com os sem-terra na defesa da reforma agrária, rea-lizando e fortalecendo acampamentos, caminhadas e conquista da terra.



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te da gênese e contribuíram para a formação do Movimento. Assim, a sua gênese não pode ser compreendida por um momento ou por uma ação, mas por um conjunto de momentos e um conjunto de ações que duraram um período de pelo menos quatro anos (Fernandes, 2000, p. 50).

As lutas que ocorreram, neste período, foram basicamente lutas de posseiros e arrendatários contra a expulsão da terra. A troca de informações sobre as di-ferentes experiências de luta pela terra nos estados do centro-sul, a relação com a CPT e a busca de antigos líderes de movimentos camponeses que os antece-deram, como das Ligas Camponesas, Ultabs e do Master proporcionaram um espaço de aprendizagem que contribuíram para o Movimento construir seus princípios, estrutura organizativa e as formas de atuação.

Esta é a fase denominada por Fernandes (2000; 2007) de gestação e nasci-mento do MST estende-se aproximadamente de 1979 até 1985. Este estudioso periodiza a formação do MST em outras três fases: a territorialização e con-solidação (1985-1990), a fase da territorialização e institucionalização (1990-1999), e a partir de 1999, com sua entrada na Via Campesina, inicia-se um novo momento.

A segunda fase de formação do MST caracteriza-se pela sua territorialização mediante a conquista de assentamentos de reforma agrária em todos os estados das regiões sudeste e nordeste, bem como a realização das primeiras ocupações de terras nos estados de Goiás e Rondônia, respectivamente nas regiões Cen-tro-Oeste e Amazônia. Este movimento possibilitou a condição de movimento camponês nacional. A forma de luta adotada para entrada na terra foi a realiza-ção de ocupações de terras dos latifúndios a fim de denunciar para a sociedade, para o governo e Judiciário o descumprimento da legislação e exercer a pressão necessária para conquista de fração de território do capital para edificação dos assentamentos de reforma agrária.

Acompanham as ocupações de terras, como tática de intensificação da pres-são, outras formas de luta como as marchas, caminhadas, ocupações de pré-dios públicos, manifestações em frente a prédios públicos. Gradativamente, as ocupações de terras deixaram de ser práticas pontuais localizadas e passaram ser realizadas de forma massiva, ultrapassando limites territoriais, com núme-ro crescente de famílias e em diferentes espaços simultaneamente. Nesta fase, o Movimento construiu e realizou seus Encontros e elaborou seus temas para cada conjuntura política da luta (Fernandes, 2000; 2007).

A terceira fase é marcada pela territorialização da organização no Distrito Federal e no estado do Mato Grosso, ambos na região Centro-Oeste, e na Ama-zônia, no estado do Pará e Tocantins. A institucionalização do MST é marcada pela estruturação dos fóruns, instâncias de deliberação, suas organizações pro-dutivas e de formação, bem como a constituição dos setores de atividades con-forme o Quadro 2 abaixo.



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QuAdro 2 – estruturA orgAnizAtivA do mst – 2007

Instâncias de representação Setores de Atividades

Congresso Nacional Secretaria Nacional

Encontro Nacional Secretarias Estaduais

Coordenação Nacional Secretarias Regionais

Direção Nacional Setor de Frente de Massas

Encontro Estadual Setor de Formação

Coordenação Estadual Setor de Educação

Direção Estadual Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente

Coordenação Regional Setor de Comunicação

Coordenação de assentamentos Setor de Finanças

Coordenação de acampamentos Setor de Projetos

Núcleos de Base Setor de Direitos Humanos

Coletivo de Relações Internacionais

Setor de Saúde

Setor de Gênero

Coletivo de Cultura

Coletivo de Mística

Organizações Vinculadas

Associação Nacional de Cooperação Agrícola (Anca)

Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil LTDA

Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária

Escola Nacional Florestan Fernandes

Fonte: apud Fernandes, 2007, p. 9.

Esta estrutura organizativa é dinâmica e expressa o aprendizado da luta construída no transcurso de sua trajetória. Abarca as diferentes dimensões da realidade e permite dialogar com as entidades aliadas e aquelas que lhes são contrárias. É a interação permanente entre as diferentes instâncias organizativas que confere legitimidade a todas elas e elaboração diversificada, necessária para as conquistas de melhores condições de vida para as populações camponesas na reforma agrária e no processo de luta pela terra.

Esta estrutura, expressa na organicidade existente entre a base do Movimen-to e suas instâncias diretivas, nas formas de luta realizadas e base formada por milhares de camponeses em todas as regiões brasileiras e 23 unidades da federa-ção, confere a este movimento socioterritorial o reconhecimento pelo governo e por outros setores da sociedade como uma das principais organizações cam-



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ponesas do Brasil. Faz-se necessário ressaltar duas outras características: a) nessa fase o Movimento avança pela realização das ocupações de terras, que envolve não apenas populações do campo, mas também trabalhadores excluídos do pro-cesso produtivo nas cidades; b) ao longo de sua trajetória a organização vem pri-mando pela autonomia política frente a partidos, governos, sindicatos etc.

Sua fase mais recente ocorre com o aprofundamento do modelo de desen-volvimento econômico adotado no Brasil, principalmente a partir da década de 1990, com centralidade na expansão do agronegócio, que tem promovido a intensificação das desigualdades no campo, a eliminação dos postos de traba-lho assalariado, a concentração da propriedade, o aumento da exploração e da degradação ambiental e ampliado o controle por parte dos setores proprietários sobre a política, a economia e o conhecimento.

Neste contexto, o MST tem procurado ampliar as relações com organiza-ções camponesas de diferentes partes do mundo. Em 1996 filiou-se à articula-ção mundial de camponeses: a Via Campesina. Tem sido, no Brasil e América Latina, a principal organização estruturante desta articulação camponesa, de modo a incorporar a pauta desta organização internacionalista cujos princípios podem ser encontrados nas deliberações do seu V Congresso Nacional, realiza-do em Brasília, em junho de 2005, a qual transcrevo abaixo na íntegra:

Carta do 5º Congresso Nacional do MST

Nós, 17.500 trabalhadoras e trabalhadores rurais Sem-Terra de 24 estados do Brasil, 181 con-vidados internacionais representando 21 organizações camponesas de 31 países e amigos e amigas de diversos movimentos e entidades, estivemos reunidos em Brasília entre os dias 11 e 15 de junho de 2007, no 5º Congresso Nacional do MST, para discutirmos e analisarmos os problemas de nossa sociedade e buscarmos apontar alternativas.Nos comprometemos a seguir ajudando na organização do povo, para que lute por seus di-reitos e contra a desigualdade e as injustiças sociais. Por isso, assumimos os seguintes com-promissos:1. Articular com todos os setores sociais e suas formas de organização para construir um proje-to popular que enfrente o neoliberalismo, o imperialismo e as causas estruturais dos problemas que afetam o povo brasileiro.2. Defender os nossos direitos contra qualquer política que tente retirar direitos já conquis-tados. 3. Lutar contra as privatizações do patrimônio público, a transposição do Rio São Francisco e pela reestatização das empresas públicas que foram privatizadas.4. Lutar para que todos os latifúndios sejam desapropriados e prioritariamente as propriedades do capital estrangeiro e dos bancos.5. Lutar contra as derrubadas e queimadas de florestas nativas para expansão do latifúndio. Exigir dos governos ações contundentes para coibir essas práticas criminosas ao meio ambien-te. Combater o uso dos agrotóxicos e a monocultura em larga escala da soja, cana-de-açúcar, eucalipto etc.6. Combater as empresas transnacionais que querem controlar as sementes, a produção e o co-mércio agrícola brasileiro, como a Monsanto, Syngenta, Cargill, Bunge, ADM, Nestlé, Basf,



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Bayer, Aracruz, Stora Enso, entre outras. Impedir que continuem explorando nossa natureza, nossa força de trabalho e nosso país.7. Exigir o fim imediato do trabalho escravo, a superexploração do trabalho e a punição dos seus responsáveis. Todos os latifúndios que utilizam qualquer forma de trabalho escravo de-vem ser expropriados, sem nenhuma indenização, como prevê o Projeto da Lei já aprovado no Senado.8. Lutar contra toda forma de violência no campo, bem como a criminalização dos Movi-mentos Sociais. Exigir punição dos assassinos – mandantes e executores - dos lutadores e lu-tadoras pela Reforma Agrária, que permanecem impunes e com processos parados no Poder Judiciário. 9. Lutar por um limite máximo do tamanho da propriedade da terra. Pela demarcação de to-das as terras indígenas e dos remanescentes quilombolas. A terra é um bem da natureza e deve estar condicionada aos interesses do povo. 10. Lutar para que a produção dos agrocombustíveis esteja sob o controle dos camponeses e trabalhadores rurais, como parte da policultura, com preservação do meio ambiente e buscan-do a soberania energética de cada região.11. Defender as sementes nativas e crioulas. Lutar contra as sementes transgênicas. Difundir as práticas de agroecologia e técnicas agrícolas em equilíbrio com o meio ambiente. Os assen-tamentos e comunidades rurais devem produzir prioritariamente alimentos sem agrotóxicos para o mercado interno.12. Defender todas as nascentes, fontes e reservatórios de água doce. A água é um bem da Natureza e pertence à humanidade. Não pode ser propriedade privada de nenhuma empresa.13. Preservar as matas e promover o plantio de árvores nativas e frutíferas em todas as áreas dos assentamentos e comunidades rurais, contribuindo para preservação ambiental e na luta contra o aquecimento global.14. Lutar para que a classe trabalhadora tenha acesso ao ensino fundamental, escola de nível médio e a universidade pública, gratuita e de qualidade.15. Desenvolver diferentes formas de campanhas e programas para eliminar o analfabetismo no meio rural e na cidade, com uma orientação pedagógica transformadora. 16. Lutar para que cada assentamento ou comunidade do interior tenha seus próprios meios de comunicação popular, como por exemplo, rádios comunitárias e livres. Lutar pela demo-cratização de todos os meios de comunicação da sociedade contribuindo para a formação da consciência política e a valorização da cultura do povo.17. Fortalecer a articulação dos movimentos sociais do campo na Via Campesina Brasil, em todos os Estados e regiões. Construir, com todos os Movimentos Sociais a Assembleia Popular nos municípios, regiões e estados.18. Contribuir na construção de todos os mecanismos possíveis de integração popular Lati-no-Americana, através da ALBA - Alternativa Bolivariana dos Povos das Américas. Exercer a solidariedade internacional com os Povos que sofrem as agressões do império, especialmente agora, com o povo de Cuba, Haiti, Iraque e Palestina.Conclamamos o povo brasileiro para que se organize e lute por uma sociedade justa e igualitá-ria, que somente será possível com a mobilização de todo o povo. As grandes transformações são sempre obra do povo organizado. E, nós do MST, nos comprometemos a jamais esmore-cer e lutar sempre.

Reforma agrária: Por Justiça Social e Soberania Popular!

Brasília, 16 de junho de 2007



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Mesmo diante destes princípios e diretrizes políticas que primam pela luta por justiça social e enfrentamento ao neoliberalismo o Movimento dos Traba-lhadores Sem-Terra, em uma posição isolada no estado de Sergipe tem partici-pado da política fundiária neoliberal do Banco Mundial, o Crédito Fundiário, naquela unidade da federação. As condições, motivações e contradições advin-das desta postura localizada e isolada debaterei mais detidamente no próximo capítulo.

A construção do movimento dos Atingidos PelA reformA AgráriA de mercAdo (mArAm)

O breve resgate histórico do Movimento Sindical dos Trabalhadores e Traba-lhadoras Rurais – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag ) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) demonstra que estas organizações têm sua gênese no agravamento das desigualdades so-ciais, resultantes do processo histórico de desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro. A Contag, dentro da estrutura sindical, sob a tutela do Estado brasileiro e o MST, organizado de forma autônoma frente ao Estado, partidos políticos, sindicatos e outras instituições.

No centro dos objetivos destas organizações, está o encaminhamento de ações com vistas à resolução dos problemas que atingem as diferentes categorias do campesinato e trabalhadores rurais, cuja atuação apresenta-se como de ca-ráter reivindicatório, no caso da Contag, e contestatório, no caso do MST. No decurso de suas trajetórias de lutas, estes movimentos socioterritoriais foram construindo seus fóruns, estruturas organizativas e estratégias de ação, conco-mitante aos seus processos de territorialização em escala nacional.

Por sua vez, o Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado, também, surge como reação aos processos de produção e reprodução das de-sigualdades, fruto do desenvolvimento do capitalismo no campo e na cidade, especificamente no que tange aos impactos negativos produzidos pelo progra-ma Banco da Terra. Trata-se de uma organização recente cuja gestação e gênese encontram-se em curso. Para compreender a criação do Movimento dos Atin-gidos pela Reforma de Mercado (Maram), sua lógica organizativa, pauta pro-gramática e estratégias de ação, se faz necessário delimitar o contexto histórico em que se insere.

Os primeiros projetos de contrarreforma agrária pelo mercado que tenho registro em Minas Gerais datam do ano de 1998 e foram contratados pela linha de financiamento Projeto Cédula da Terra (PCT). De 1998 até junho de 2009, foi implantado, nesta unidade da federação, um total de 562 empreendimen-tos de Cram, cuja área perfaz um total 86.821 hectares, comprados por 5.279



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famílias. No período compreendido entre 1998 e 2002, 37 empreendimentos de PCT foram contratados no estado, atingido 1.314 famílias que financiaram a compra de 30.891 hectares. O Banco da Terra operou entre os anos de 2000 a 2003, financiando a implantação de 220 empreendimentos, cuja área soma 36.952 hectares, comprados por 2.436 famílias mutuárias. Por sua vez, o Pro-grama Nacional de Crédito Fundiário entrou em operação em Minas Gerais a partir do ano de 2003.

O Programa Cédula da Terra foi introduzido no final da década de 1990 quando Minas Gerais e o Brasil eram governados, respectivamente, por Eduar-do Azeredo e Fernando Henrique Cardoso, correligionários e fundadores do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). O Banco da Terra, lançado pelo governo federal em 1999, foi introduzido naquele estado em 2000. Na época, o governo estadual estava sobre o comando de Itamar Franco, integrante do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). A postura política do governador era de oposição ao então presidente Fernando Henrique Car-doso, motivada por um conjunto de fatores como disputas político-eleitorais, discordância com as medidas neoliberais em curso, dentre os quais se destaca o programa de privatizações das empresas estatais.

Obviamente, os enfrentamentos e disputas entre o governador de Minas Gerais e o presidente da República repercutiram no tratamento dado às políti-cas agrárias emanadas do Planalto. Em 27 de setembro de 2000, o governador Itamar Franco assinou o Decreto n. 41.270, que institui o Conselho Gestor para implantação do Fundo de Terras e da Reforma Agrária no estado de Mi-nas Gerais. Porém, na época, o geógrafo e ativista Marcelo Resende ocupava o cargo de presidente do Instituto de Terras do Estado de Minas Gerais. Este ges-tor possui uma longa trajetória de luta na Pastoral da Terra na mesorregião do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba, cuja inserção política junto aos movimentos camponeses, como o MST, confere-lhe uma visão e condição de tratamento das questões fundiárias que prima pela promoção da justiça social e oposição aos interesses dos ruralistas.

Este, prontamente contrariou a proposta de assinatura de convênios de par-ceria entre o Planalto e o governo de Minas Gerais para a introdução do Banco da Terra. O governador Itamar decidiu atender a orientação do seu presidente do Instituto de Terras, sobre a intencionalidade deste programa em proteger os ruralistas do avanço da reforma agrária e dos impactos negativos já largamente conhecidos pelo Programa Cédula da Terra, fato que levou à promulgação do Decreto n. 41.344 de 26 de outubro de 2000 (apenas um mês após a publica-ção do decreto de criação do Conselho Gestor do Banco da Terra) que revoga o decreto anterior, o que na prática representa a interdição da operação do Pro-grama Banco da Terra pelo governo estadual. Nesta perspectiva, não foi possí-



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vel a construção de um ambiente político favorável à assinatura do convênio de parceria entre o Conselho Curador do Fundo de Terras e da Reforma Agrária – Banco da Terra e o governo de Minas Gerais.

O campo mineiro, nesta virada de século XXI, tem sido marcado pela in-tensificação dos conflitos realizados por um número crescente de movimentos socioterritoriais que atuam na luta pela terra e por reforma agrária. Acompa-nhando a dinâmica nacional, também em Minas Gerais, a principal forma de pressão praticada pelos trabalhadores tem sido as ocupações de terras. Em outra face da medalha, estão as reações dos fazendeiros: a violência contra os traba-lhadores rurais, a criminalização dos movimentos socioterritoriais camponeses e perseguição de suas mais proeminentes lideranças.

Este cenário acompanha o processo de expansão do agronegócio globalizado e concentrador nesta unidade da federação, cujo espaço encontra-se integrado aos principais eixos de produção e distribuição das commodities produzidas nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Norte do país. A segunda metade da déca-da de 1990 e os auspícios do novo século também trouxeram outras dificulda-des para o agronegócio como as alterações cambiais, queda dos preços das com-modities e desvalorização da terra. Para enfrentar esta miríade de questões, em particular conter a situação conflitiva no campo e a geração de oportunidades de negócios rentáveis, os ruralistas adotaram várias medidas, dentre as quais se insere a introdução do Banco da Terra no Estado.

Como o governador Itamar havia rechaçado o convênio com o governo fe-deral, a classe dos proprietários de terras passou a operar com o deputado fede-ral mineiro, membro da bancada ruralista, Odelmo Leão Carneiro12, a munici-palização deste programa fundiário. Consolidou-se um arranjo institucional no qual o Conselho Curador do Fundo de Terras e da Reforma Agrária – Banco da Terra firmou convênio de parceria com consórcios de municípios. No caso

12 Odelmo Leão Carneiro Sobrinho é produtor rural, bancário e político mineiro filiado ao Partido Progressista (PP). Foi presidente do Sindicato Rural de Uberlândia e da Federação da Agricultura de Minas Gerais, entidade patronal a qual foi também seu vice-presidente (<http://www.odelmoleao.com.br/trajetoria.php?q=odelmo-leao>). Odelmo foi eleito para o seu primeiro mandato como deputado federal entre 1991-1995; neste período, foi presidente da Comissão de Agricultura e Política Rural e relator do Projeto que regulamentou a reforma agrária. Atuando sempre como membro da bancada ruralista no Congresso Nacional, foi deputado federal também nas seguintes legislaturas: 1995-1999, 1999-2003, 2003-2007. Em 2003 foi Secretário de Estado da Agricultura de Minas Gerais, do governador Aécio Neves, do PSDB, quando apresentou o Programa Terras que, segundo ele é uma “grande bolsa de arrendamento com o objetivo de incorporar novas áreas cultiváveis à agricultura mineira contando com a parceria inclusive de empreendedores de outros estados” (Apud Costa, 2007, p. 56). Costa sintetiza outras realizações do então deputado: a) acrescentou artigo ao Código de defesa do consumidor, compelindo as concessionárias de máquina e implementos agrícolas a manterem estoques de peças destinadas à manutenção das primeiras; b) inclusão nas cestas básicas dos programas sociais do governo federal do leite e seus derivados; c) estabelecimento de novos critérios para o cadastramento dos sem-terra a serem be-neficiados com os programas de reforma agrária (Ibid., p. 56-57). Atualmente, Odelmo é prefeito da cidade de Uberlândia – Minas Gerais para o mandato 2008-2012.



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da mesorregião do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba o convênio foi assinado entre com Associação dos Municípios da Microrregião do Vale do Paranaíba (Amvap), reconhecendo esta organização como Agência do Banco da Terra no estado de Minas Gerais. Vale registrar que na época a Amvap era dirigida por Públio Chaves, também prefeito do município de Ituiutaba.

O arranjo institucional previa que a Amvap realizaria os procedimentos de gestão dos contratos de financiamento do Banco da Terra. Coube a Força Sindi-cal13 do estado de São Paulo o dimensionamento dos espaços da subalternidade, no qual os trabalhadores eram reunidos para a realização da qualificação necessária para organização das associações destinadas à compra das terras, além da emissão das certificações de enquadramento dos trabalhadores no perfil do programa.

Por sua vez, a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater) realizou a orientação da elaboração dos projetos produ-tivos e de infraestrutura, os estudos de certificação de viabilidade econômica e a realização da assistência técnica e monitoramento dos projetos; já o Banco do Brasil atuaria como agente financeiro com a liberação dos recursos.

O convênio estabelecia obrigação de ambas as partes por um período determi-nado, que contemplava apenas o tempo necessário para a execução dos recursos advindos do acordo de empréstimo do Banco Mundial. No ano de 2003, quando tais recursos foram finalizados e um novo governo (Lula) assumiu a presidência do país, o Banco da Terra foi declarado extinto em âmbito federal, e as institui-ções responsáveis pelo programa nos estados e municípios, diante da finalização dos convênios, deixaram de responsabilizar-se pelos empreendimentos.

O Banco da Terra passou a ser tratado como um passivo do recém-criado Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF). Adota-se a matriz concei-tual da Economia e Contabilidade que enfoca a contratualidade da operação financeira, ignorando que mais que uma operação imobiliária, o Banco da Ter-ra tratou-se de uma política pública que envolveu milhares de famílias pobres, com seus sonhos de transformação das suas realidades a partir do acesso à terra e aos meios de produção. Sonhos de trabalho, moradia, cultura, vida, dignida-de. O movimento de descentralização da política fundiária do governo federal para os estados e municípios se recentraliza na esfera federal, em um organismo desprovido da logística necessária para acompanhamento e investimentos nos assentamentos rurais destinados ao combate à pobreza.

Os primeiros projetos implantados no Estado tiveram os impactos negativos agravados a partir de 2003, quando as primeiras anuidades começaram a vencer e, diante da ausência da capacidade de pagamento das famílias, o banco emitiu

13 A Força Sindical é uma das centrais sindicais que atuam no Brasil. Foi fundada em 8 de março de 1991, em um Congresso realizado na cidade de São Paulo, agrupando diferentes campos ideológicos.



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cartas de cobrança, solicitando o pagamento antecipado de toda a dívida. Este quadro impôs às famílias mutuárias a sombra do desespero de ter a terra, seu único bem, tomado pelo Banco do Brasil. À condição de endividamento so-mou-se a fragilidade das associações de mutuários criadas exclusivamente para a compra de terras; a evasão de grande número de famílias dos empreendimentos; casos de corrupção na implantação de alguns empreendimentos; dificuldade e/ou inacessibilidade aos créditos agrícolas; além da incompletude na implanta-ção de boa parte dos empreendimentos.

Portanto, foi exatamente no momento em que vencia o período de carência do financiamento dos projetos, para os primeiros mutuários que as instituições responsáveis pelos programas se desobrigavam, pois o Banco da Terra foi consi-derado extinto! Os sentimentos dos mutuários, que encontrei nos trabalhos de campo em diferentes unidades da federação (Sergipe, Minas Gerais, Rio Gran-de do Sul, Piauí) é de abandono pelo poder público. Diante deste processo, as famílias mutuárias que já dispõem de pouca ou quase nenhuma informação e conhecimento sobre direitos, ficam abandonadas frente à inexistência de ór-gãos que se responsabilizem e/ou contribuíam com a solução dos problemas referentes ao endividamento, principalmente, mas também à conservação dos empreendimentos, garantia de direitos sociais, assistência técnica e extensão ru-ral, transporte, acesso à água e eletricidade, melhoria das condições de moradia. As questões referentes aos empreendimentos passam a ser tratadas apenas na di-mensão financeira junto aos bancos que lhes concederam o financiamento. Tal conjuntura levou os trabalhadores ao desespero e emblemático é o depoimento de uma dirigente do Maram:

Nós pegamos um empréstimo, então você tem que pagar. Não deu outra. O passivo foi pro Crédito Fundiário agora. É onde que a gente começou. E, antes disso, em 2003 eu já comecei procurar. Ficava: onde que a gente vai? Batia em todos os órgãos daqui da cidade, né. Ligava pra Brasília, ligava pra Belo Horizonte, mas ninguém podia informar. A responsabilidade do Banco da Terra daqui era da Amvap, a Associação dos Municípios, e ela também não sabia o que fazer com o Banco da Terra. Como que a gente ia agir? Não tinha jeito. Aí ela falou assim: Não tem jeito. E a gente ficou... (Itu 02, 2009).

Foi a necessidade de construção de soluções para esta problemática que for-jou condições necessárias que culminaram na articulação de associações de mu-tuários do Banco da Terra, que posteriormente daria origem ao Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado (Maram). O início do processo se dá com a referida mutuária do município de Ituiutaba – Minas Gerais, escola-rizada até o nível médio e formação técnica em segurança do trabalho e técnica em raio-X, portanto, com maior acesso a informação e conhecimento de direi-tos que a maioria dos mutuários, passou a procurar diferentes órgãos buscando assistência para a solução dos problemas da dívida.



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Diante do insucesso da sua ação realizou contatos com outros dirigentes de associações do mesmo município e gradativamente foi reunindo-os para discutir os dilemas enfrentados. Dois espaços foram importantes para o con-tato entre os mutuários do Banco da Terra do município de Ituiutaba. Um deles o encontro de mutuários de diferentes associações do Banco da Terra de Ituiutaba, durante o Seminário de Reforma Agrária, realizado por iniciativa do mandato do deputado estadual Ricardo Duarte (PT), em 04 de outubro de 2003.

Com o objetivo de traçar um diagnóstico da real situação dos assenta-mentos da região do Pontal do Triângulo, em virtude da solicitação do então ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Soldatelli Rosseto, durante sua visita a este município, no momento da realização da Reunião Macrorre-gional do PT, ocorrida em 21 de junho de 2003, uma vez que demandava a formalização de um documento que retratasse as condições agrárias da região, apontando proposições que emanassem dos anseios da população camponesa.

No supracitado seminário, estiveram presentes 93 representantes de di-versos assentamentos, acampamentos, comunidades rurais, associações, sin-dicatos e lideranças do MST. Dentre estes, se registre o PA Fazenda Divisa, PA Chico Mendes e PA Engenho da Serra, todos de Ituiutaba, ainda deste município estavam presentes a Fetaemg, o STR – Ituiutaba; do Banco da Terra estavam representantes da Associação Unida Santo Antonio, Associa-ção dos Produtores Rurais Córrego dos Pilões, Associação dos Agricultores Familiares do Pontal e das comunidades rurais estavam o Grupo Nossa Se-nhora Rosa Mística; dentre as demais entidades presentes registra-se: a Fe-taemg – Uberaba, o Movimento Terra e Liberdade, o Movimento Popular Agrário, o STR – Iturama, Acapamento Piratininga, localizado no municí-pio de Capinópolis, Acampamento Piedade no município de Flor de Mi-nas, Assentamento Nova Rosada do município de Gurinhatã, a Associação dos Moradores da Fazenda Tangará, o Assentamento Bonito Esperança do município de Iturama, O Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sindute) do município de Capinópolis, o Acampamento Bonito Tracajás no município de Iturama e o Acampamento Vale da Boa Esperança. Dentre as autoridades que se fizeram presentes, destacam-se o deputado Ricardo Duarte, Ana Luiza Freitas Guimarães (presidente do Di-retório Municipal do PT de Ituiutaba), Claúdio Alberto da Costa (gerente negocial do Banco do Brasil de Uberlândia), Ulisses Vilela Mengaz (gerente de administração do Banco do Brasil de Ituiutaba), Alberto José Almeida (representando a Emater Ituiutaba).

Neste fórum, foram debatidos os seguintes eixos: Educação (escola ru-ral, escola profissionalizante, cultura e lazer), Infraestrutura (eletrificação ru-



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ral, fossas sépticas, abastecimento de água, estradas vicinais, habitação ru-ral, telefonia pública rural), Saúde (Programa Saúde da Família, atendimento odontológico, visita de assistência social, desvinculação da política do PSF), Assistência Técnica , Fome Zero, Questões Jurídicas e dente as Questões Ad-ministrativas propuseram, dentre outros: a delimitação por parte do governo federal,

de uma política clara e objetiva sobre o destino das famílias cadastradas e assentadas no extin-to Banco da Terra; Nossa sugestão é que o Banco da Terra seja, integralmente, absorvido pelo Incra, equiparando assim a situação destas famílias ao de outras de projetos similares; Equipa-ração dos hectares do extinto Banco da Terra a níveis de outros projetos existentes” (Relatório do Seminário de Reforma Agrária, 2003).

Portanto, este seminário configurou-se com um importante espaço de so-cialização política entre os diferentes segmentos do campesinato regional, bem como para politizar o desenvolvimento agrário nesta região. Deste semi-nário, os mutuários do Banco da Terra elaboram documento com um conjun-to de reivindicações, dentre as quais se destacam: o pedido de auditoria nos empreendimentos, liberação dos créditos agrícolas do Pronaf-A, equiparação dos direitos dos mutuários do Banco da Terra com os dos assentados do Incra, e uma assistência técnica efetiva. Este documento foi enviado em 5 de novem-bro de 2003 para os órgãos gestores do Banco da Terra em nível municipal, estadual e federal.

Outro espaço importante para desencadear a organização das associações do Banco da Terra foi a convocação dos mutuários do município de Ituiuta-ba para indicarem um representante para assumir uma cadeira no Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS). Estes espaços possibilitaram o estreitamento de relações entre os mutuários do Banco da Terra de Ituiutaba, que em diferentes espaços e momentos discutiram seus problemas. Descobriram coletivamente que os problemas eram comuns. A fim de dar encaminhamentos para a superação da sua condição, escolhe-ram a mutuária supracitada e um suplente, como representantes para o CMDRS. E, entre o ano de 2003 e 2004, com a participação dos mutuários de todo o município, decidiram pela criação da Representação das Associa-ções de Produtores Rurais do Banco da Terra do Município de Ituiutaba, que atuaria na tentativa de solução das dificuldades vivenciadas no Banco da Terra.

Em 4 de dezembro de 2004, no conservatório de música do município de Ituiutaba, o mandato do deputado estadual Ricardo Duarte promoveu, me-diante prévia e ampla convocação, reunião dos mutuários do Banco da Terra do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba com o delegado do Ministério do Desenvol-vimento Agrário, senhor Igino Marcos da Mata Oliveira, objetivando discutir



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e propor soluções para os problemas enfrentados pelos respectivos empreendi-mentos. Nesta reunião relataram para o então delegado os dilemas enfrentados e criaram um fato político que legitimava a operação deste gestor público junto aos órgãos responsáveis no âmbito federal. Desta reunião, encaminhou-se ou-tro encontro entre os mutuários, no qual elaboraram outro documento, datado de 8 de dezembro de 2004 e, assinado por diferentes dirigentes de empreendi-mentos da região e políticos do PT, seguiu para o MDA em Brasília além dos órgãos estaduais e municipal em nome das Associações de Produtores Rurais do Banco da Terra.

Neste, reivindicavam do governo federal uma medida provisória que incluí sse:

1 – Uma urgente auditoria em todos os assentamentos do Banco da Terra; 2 – Agilização da liberação do Pronaf – A para a subsistência das famílias do Banco da Terra; 3 – Equipara-ção dos direitos dos assentados do Banco da Terra com os direitos dos assentados do Incra, como: crédito fomento, acesso aos créditos em geral, forma e tempo de pagamento da terra etc.; 4 – Assistência técnica mais presente e efetiva, para que seja consolidada a cidadania das famílias assentadas.

Pouco meses depois, contando com a mediação do mandato do deputado estadual Ricardo Duarte, conseguiu-se o agendamento de uma audiência no Ministério do Desenvolvimento Agrário (SRA), com o senhor Eugênio Peixoto Conolly, então Secretário Nacional de Reordenamento Agrário. Realizada em abril de 2005, compareceram a representante das Associações de Ituiutaba, o seu suplente e outro representante de uma Associação do município de Sacra-mento. Esta reunião é narrada da seguinte forma pela dirigente:

Aí nós chegamos lá era oito horas da manhã, fomos olhar, perguntar lá no prédio lá do Incra [em Brasília], era um prédio enorme. E eu disse: ‘vamos vê se tá marcado mesmo aqui pra nós, né.’ Aí nós chegamos lá e tava marcado, eles mandaram a gente entrar. Aí entrou nós. E foi um rapaz de Sacramento, que é do Banco da Terra de lá também. Aí era três representantes: Sacramento e Ituiutaba. Aí nós já tava intercalando. Chegando lá, ro-damos das oito até três da tarde quando o secretário foi atender a gente. Cada um queria especular o que é que a gente queria, o que era que a gente precisava, o quê que era que a gente tava ali pra fazer. A gente só falava assim: Eu e o Luis Marcos só falava assim: ‘mi-neiro não conversa não?’ Eu falei: ‘conversa mais só quando é necessário.’ ‘Mas o que é que vocês querem falar com o secretário, com o senhor secretário’ Aí bom, a gente disse: ‘A gente quer falar com ele’. (...) Na época era o Eugênio Conolly. Aí foi, foi..., mas ele não descobriu antes o quê que nós queríamos com ele, até a hora que nós fomos, aí ele falou assim: ‘Nós tentamos mas não conseguimos não, senhor Secretário, agora talvez eles falem.’ ‘O quê que vocês querem?’ Aí eu falei: ‘Isso!’ E a gente entregou uma documenta-ção, no qual solicitava alguma providência pra ver na troca de famílias, a dívida da gente pra rever tudo, aquele negócio, porque a gente não tinha como pagar, não tinha como fazer, o quê que tava acontecendo. Que nem o banco mais recebia, a gente não sabia mais o que fazer. Aí soltamo tudo e cima dele. Aí ele disse: ‘Calma aí, uma de cada vez! Eu vou anotando!’ Aí foi anotando.. (Entrevista Itu 02, 2009).



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Desta reunião encaminhou-se o atendimento da solicitação da Represen-tação de Associações: o envio de um membro da SRA para apresentar as pos-síveis soluções à pauta de reivindicações entregue. Aproximadamente um mês depois da audiência em Brasília, ou seja, por volta de maio de 2005, a SRA enviou um representante para debater com as famílias camponesas mutuárias do Banco da Terra. Ainda com o apoio do supracitado deputado a Represen-tação de Associações transformou a reunião em uma assembleia dos campo-neses com a presença de várias instituições, tornando-a um importante ato político, como forma de exercer a devida pressão sobre os envolvidos na im-plantação do programa.

O local marcado para a reunião foi o Conservatório de Música da cidade de Ituiutaba. Foram convocados todos os mutuários dos nove empreendimen-tos existentes no município, independente dos representantes integrantes da diretoria da associação. O convite foi estendido por ofício a outras entidades, dentre as quais compareceram: Amvap, Ministério da Justiça, Banco do Brasil, Emater, Animação Pastoral no Meio Rural (APR), Ação Franciscana e Solida-riedade (Afes), deputado Ricardo Duarte. A memória da dirigente do Maram sobre este dia apresenta-se da seguinte forma:

O representante do governo não conseguiu falar nada, porque ele não sabia nada do Banco da Terra. Nada! Nada, sobre nada! Ele não tinha nem noção do que era o Programa Banco da Terra, porque cada pergunta que a gente fazia pra ele, sobre os procedimentos que teria de ser tomado, ele não sabia responder. Aí ele falou: ‘Você me jogou numa gelada.’ Aí eu falei: ‘Não. Eu só convoquei o pessoal, que tá todo mundo aflito, não é só a minha cidade não, é a região inteira (Entrevista Itu 02, 2009).

Nesta assembleia, os trabalhadores encontraram-se pela primeira vez com Frei Rodrigo Peret, antigo ativista da luta pela terra no Triângulo Mineiro; este líder religioso militou na Comissão Pastoral da Terra e, atualmente, con-tribui com a Animação Pastoral no Meio Rural (APR) e a Associação Francis-cana e Solidariedade (Afes). Diante do impasse enfrentado pelos mutuários, observando o desespero e ao mesmo tempo a potencialidade organizativa da-quele grupo, o Frei sugeriu uma contribuição com a luta dos mesmos. O que foi prontamente aceito pelos camponeses. Os entendimentos ocorreram na-turalmente e nova reunião foi marcada com os membros das associações do Banco da Terra.

Nas primeiras reuniões, decidiu-se pelo encontro com as demais associa-ções de trabalhadores mutuários do Banco da Terra de toda a mesorregião do Triân gulo Mineiro/Alto Paranaíba. A mobilização foi facilitada tendo em vista o advogado Igino Marcos, militante da APR, estar no período à frente da Ouvidoria Agrária do Instituto Nacional de Colonização e Refor-ma Agrária, em Minas Gerais. Ele passou a realizar visitas aos empreendi-



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mentos criados em todo estado e fomentar a participação das famílias nas reuniões.

Enquanto isso, a Representação das Associações de Ituiutaba seguia com a mobilização das famílias nos municípios da mesorregião. Com o apoio logís-tico da Afes os trabalhadores dimensionaram espaços de socialização política, formatados como seminários destinados a apresentação das famílias, suas tra-jetórias de vida e debates sobre os problemas enfrentados. Os seminários assu-miram a periodicidade bimestral e produziam espaços de formação política nos quais se abordavam temas relacionados aos problemas das famílias mutuárias, como a questão agrária, lógica de organizativa dos movimentos socioterritoriais e esclarecimentos sobre os trâmites burocráticos com os organismos gestores do Banco da Terra.

Nestes seminários, dimensionaram-se os espaços comunicativo e interativo, culminado na deliberação coletiva de criação de uma organização social com vistas à realizar o encaminhamento de ações para resolução dos problemas en-frentados. Alguns meses depois, com apoio da APR, os representantes de As-sociações do Banco da Terra do município de Ituiutaba, realizaram, na cidade de Uberlândia, um grande seminário para o qual foram convidados todos os representantes das associações do Banco da Terra do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba. Em 11 de novembro de 2005, realizaram outra grande reunião de representantes de mutuários, no auditório do INSS da cidade de Ituiutaba. Nesta reunião deliberaram pela criação do Movimento dos Atingidos pela Re-forma Agrária de Mercado (Maram), sua estrutura organizativa e deliberativa, bem como pauta política de reivindicação.

Estiveram presentes neste ato: Francisco de Araújo, do STR de Gurinhatã; Júlio César, vereador de Gurinhatã, e o Frei Rodrigo Peret, da APR; além das seguintes Associações do Banco da Terra de Ituiutaba: Associação dos Agri-cultores Familiares Ribeirão dos Baús, Associação dos Agricultores Familiares Córrego dos Pilões, Associação dos Agricultores Familiares do Pontal, Associa-ção dos Agricultores Familiares Vale da Esperança, Associação dos Agricultores Familiares Unidas Santo Antonio. Do município de Gurinhatã: Associação dos Agricultores Familiares Furna da Nascente, Associação dos Agricultores Fami-liares Freitas Oliveira, Associação dos Agricultores Familiares Norte de Minas, Associação dos Agricultores Familiares Monte Sião; do município de Campo Florido participou a Astrucampo; do município de Monte Alegre de Minas a Parma II e Agrimonte; e de Capinópolis a Associação dos Pequenos Produtores de Capinópolis.

A estrutura organizativa definida para o Maram foi uma articulação de associações de mutuários dos empreendimentos do Banco da Terra locali-zados na mesorregião do Triangulo Mineiro/Alto Paranaíba. O Movimento



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estrutura-se em diferentes níveis organizativos. Na base da organização estão todas as famílias mutuárias, as quais, nos respectivos empreendimentos, de-vem escolher dois representantes da sua associação, sendo um titular e outro suplente para comporem o conselho de representação das associações. São os mutuários que têm poder de deliberação, as demais instâncias têm a finali-dade de contribuir com a descentralização do fluxo de informações referen-tes às negociações. Os representantes das associações do Maram têm o papel fomentar na base das respectivas associações a reflexão sobre os problemas, a busca de soluções, discutir os encaminhamentos a serem tomados nos níveis representativos superiores, realizar a socialização das informações, delibera-ções etc., encaminhadas nos fóruns, negociações etc.

Cada um dos representantes das associações compõe o conselho de re-presentantes do município. Neste espaço, reúnem-se todos os representantes das associações (titulares e suplentes) eleitos em um determinado município. Nesta instância são socializados os dilemas, ações exitosas e/ou fracassadas adotadas nos empreendimentos. Discute-se e se encaminham, ainda, as tá-ticas e estratégias de ação coletiva da organização, frente aos órgãos gestores no nível municipal. Cada um dos conselhos de representantes do município tem a atribuição de eleger dois destes para compor o nível da representação geral do Maram.

A representação geral do Maram é formada por dois representantes (um ti-tular e um suplente) de cada município onde está organizado o Movimento e tem como atribuição realizar a representação dos mutuários da organização jun-to a reuniões, audiências, fóruns etc., com os governos estadual e federal. Mes-mo existindo estas diferentes instâncias, o Maram enfatiza que as deliberações somente são tomadas após um fluxo de discussões e avaliações junto à base da organização, formada pelos mutuários de cada uma das associações integrantes.

Dos espaços de socialização política que originaram a decisão de organiza-ção de um movimento socioterritorial, coletivamente decidiu-se pela elabora-ção de símbolos que identificassem suas lutas, os quais foram grafados na ban-deira (Figura 1). Envolto em um grande campo verdejante encontram-se quatro mãos entrelaçadas. O campo verdejante representa a esperança de transforma-ção, a esperança de uma vida melhor. São diferentes as cores das mãos entrela-çadas, pretendendo recuperar todas as formas de diversidade existente, como a étnica, de sexo, idade, nacionalidade etc. Portanto, a diversidade de mãos en-trelaçadas significa a necessidade de unidade na/da diversidade para alcançar a transformação e a superação dos dilemas.

figurA 1 – BAndeirA do movimento dos Atingidos



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PelA reformA AgráriA de mercAdo

Elaboraram, também, um mecanismo de autofinanciamento a partir de contribuições das famílias integrantes, o que permitiu a mobilização na escala da mesorregião do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba. De cada associação que decidiu aderir livremente ao Maram, foram eleitos dois representantes, sendo um titular e um suplente. E, em 8 de junho de 2006 publicaram a Carta de Uberlândia, a qual transcrevo abaixo sua pauta na íntegra:

1 – Entendemos que a iniciativa do governo federal, de “Recuperação e Regularização dos Projetos financiados pelo Fundo de Terras (Programa Banco da Terra e Cédula da Terra)” é importante, porém insuficiente.2 – A discussão da dívida para a compra da terra e a do Pronaf contraída pelas Associações no Programa Banco da Terra não pode ser isolada das condições de sobrevivência, manutenção e da sustentabilidade dos assentamentos, como foi prometido pelo governo durante a implan-tação do Programa.3 – Adquirimos uma terra, cuja viabilidade como empreendimento agrícola tinha a garantia de laudos técnicos, de órgãos oficiais (Emater), e aprovados nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável municipais e estaduais e Associação dos Municípios, e na verdade nos deparamos em muitas áreas que não são aptas a agricultura, muitas vezes super-faturadas, e áreas pequenas para desenvolver qualquer atividade agropecuária, em relação ao número de famílias que ali foram colocadas.4 – Somos favoráveis ao pagamento justo, desde que seja revista toda a dívida.5 – A regularização dos associados, bem como a legalidade, é importante, levando em con-sideração a realidade de sofrimento, abandono e descaso por parte dos gestores e unidades técnicas durante anos.6 – Os problemas internos devem ser tratados com respeito à organização social e com uma metodologia participativa, com acompanhamento do governo. 7 – Os problemas, sejam eles no campo de organização interna ou de viabilização econômi-ca dos assentamentos, são comuns à todas as Associações, o que demonstra que o principal problema é do Programa; portanto, essa Política de Crédito Fundiário nos jogou numa arma-dilha, cuja saída se encontra na inclusão destes nossos Assentamentos do Banco da Terra, no Programa Nacional de Reforma Agrária do Incra.8 – O governo deve respeitar a autonomia e representatividade das Associações e de sua arti-culação enquanto movimento, garantindo os recursos necessários ao desenvolvimento de or-ganização e formação do movimento.



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9 – Devem ser garantidas as condições de sobrevivência dos assentados bem como a retirada dos nossos nomes do Serasa e Cadin. 10 – Entendemos necessária a suspensão do Programa Nacional de Crédito Fundiário e que sejamos incorporados na verdadeira reforma agrária.

No mesmo ano de sua criação (2005) o Maram realizou sua primeira audiên-cia com a Secretaria de Reordenamento Agrário, em Brasília. Aproveitando que o delegado do MDA, em Minas Gerais, era um militante da APR, assim como da influência desta entidade em Brasília, reuniram-se com os gestores do pro-grama em nível federal, apresentando para os mesmos suas reivindicações. A partir de então, outras reuniões foram realizadas com diferentes órgãos e a Uni-dade Técnica Estadual. A Carta de Uberlândia foi amplamente divulgada en-tre os mutuários, organismos públicos e autoridades parlamentares. Adotaram como tática de ação a realização de reuniões com órgãos e elaboração de notas políticas públicas.

Realizaram outra audiência com a SRA, em fevereiro de 2008 e, segundo seus dirigentes, das pressões realizadas junto ao Instituto de Terras de Minas Gerais e Ministério do Desenvolvimento Agrário – Secretaria de Reordenamen-to Agrário – conquistou-se Medida Provisória n. 432, de 28 de maio de 2008, que instituiu as condições de renegociação e individualização das dívidas e ter-ras, bem como a regularização e recuperação dos empreendimentos do progra-ma Cédula da Terra, Banco da Terra e Crédito Fundiário.

Neste ínterim, decidiu-se pela visita às associações de mutuários em outras regiões do estado a fim de angariar adesão de mais mutuários; contudo, as con-dições encontradas em outras áreas eram da mais profunda desterritorialização, expressa no abandono das áreas e completa alienação dos mutuários, inviabili-zando esta empreitada. Durante a finalização deste estudo, entre 2009/2010, o Maram esforçava-se para conseguir realizar a reorganização do quadro social das associações a fim de assegurar adesão à referida medida provisória e reali-zar renegociação das dívidas. Além disso, alguns mutuários, geralmente aque-les com maior inserção política nos municípios, estão conquistando vagas nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável, onde é possível apropriar-se de informações em primeira mão e deliberar sobre questões impor-tantes para este segmento do campesinato, bem como atuando na política local, inclusive com a eleição de uma mutuária para o cargo de vereadora, no muni-cípio de Monte Alegre de Minas.


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resistênciA e suBordinAção do cAmPesinAto nA contrArreformA AgráriA de mercAdo: os cAsos dA

fetAse, do mst e do mArAm

Hoje, mais que nunca, não existe pensamento sem utopia. Ou então, se nos contentarmos em constatar, em ratificar o que se tem sob os olhos, não

iremos longe, permaneceremos com os olhos fixos no real. Como se diz: seremos realistas... mas não pensaremos! Não existe pensamento que não explore uma

possibilidade, que não tente encontrar uma orientação

(Lefebvre, 2008, p. 73)

O ano de 2010 marca o 14º ano, sem interrupção, de operação da contrar-reforma agrária de mercado no Brasil. Neste período, tem despertado a atenção de diferentes setores da sociedade como: pesquisadores do agrário, movimen-tos socioterritoriais, gestores públicos, organizações não governamentais etc. Os dados apresentados e debatidos anteriormente demonstram o lugar deste instrumento nas políticas fundiárias brasileiras. Estes dados chamam a aten-ção pela celeridade como a política em foco avança no tocante a criação de empreen dimentos, incorporação de milhares de famílias mutuárias, área com-prada, bem como ajustes normativos nos programas que possibilitam construir espaços e conjunturas políticas favoráveis à sua expansão. O que demonstra o quanto a lógica de mercantilização da terra é muito mais ágil que a realização da reforma agrária, que demanda longos processos de luta política, embate com os latifundiários, com o Judiciário. Contraditoriamente, esta rapidez na sua ter-ritorialização não é acompanhada do cumprimento das metas divulgadas pelos

cAPÍtulo v



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governos ao início de cada período, uma vez que sempre o número de famílias atingidas ficou abaixo do programado.

No intuito de promover o monitoramento do processo de implantação e con-solidação dos empreendimentos do Programa Nacional de Crédito Fundiário, como parte das exigências do Banco Mundial de implementar, sistematicamente, mecanismos avaliativos e de controle dos empreendimentos e políticas públicas implantadas com recursos financeiros advindos desta instituição financeira supra-nacional, o Banco e os gestores constroem territórios imateriais, como avaliações acadêmicas de sua implantação. Destaco aqui o último estudo divulgado pelo governo, no qual o engenheiro agrônomo e professor Dr. Gerd Sparovek, da Uni-versidade de São Paulo/Escola Superior Luiz de Queiroz (Esalq), realizou pesqui-sa entre 2003 e 2006, em um conjunto de empreendimentos de crédito fundiário de combate à pobreza rural (CF-CPR) nos estados nordestinos, com apoio finan-ceiro do Instituto Americano de Cooperação para Agricultura (IICA). Dentre os resultados, destaca-se a avaliação da eficácia sobre a redução da pobreza:

Em três anos, boa parte dos beneficiários superou a renda dos critérios de focalização do CF--CPR [que possuía renda anual de até R$ 4.800,00 e patrimônio máximo até R$ 9.000,00, sem contar a casa de moradia da família], isto é, deixou de ser pobre [grifos meus]. O aumento da renda ocorreu por efeitos intrínsecos ao CF-CPR (aumento da produção agrícola decorrente do acesso à terra e aos meios de produção), efeitos secundários mas relacionados ao CF-CPR (salários e diárias, decorrentes da maior estabilidade familiar) e externos (programas de transfe-rência de renda, pensões, aposentadorias e outras fontes não agrícolas) (Sparovek, 2006, p. 65).

Neste estudo, considera-se a renda das famílias formada pela soma de: renda agrícola de autoconsumo, renda agrícola advinda da comercialização da produ-ção no mercado, renda de trabalho fora da propriedade (salários e diárias), apo-sentadorias ou pensões, renda de programas de transferência de renda, venda de produtos não agrícolas ou aluguel de máquinas e doações. Constatou-se, entre 2003 e 2005, uma elevação na renda familiar de R$1.656,00 para R$ 4.064,00 por ano, o que representa uma média de R$ 338,00/mês.

Apesar da elevação de renda em torno de 145%, apenas para fins de exem-plificação do patamar deste rendimento e sem ignorar a especificidade das ren-das agrícolas de autoconsumo, registre-se que o salário mínimo, instituído em 1º de maio de 2005, era de R$ 300,00 (trezentos reais). De forma que os mu-tuários alcançaram com esta elevação na renda mensal um patamar superior ao salário mínimo. Porém, para o Departamento Intersindical de Estatísticas Econômica e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o salário mínimo necessá-rio14 deveria atingir R$ 1.588,80/mês, ou seja, mesmo diante de uma elevação

14 Salário mínimo de acordo com o preceito constitucional “salário mínimo fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saú-de, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajustado, periodicamente, de modo a preservar o po-



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considerável dos rendimentos dos mutuários na Cram, não houve, sequer, uma aproximação da eliminação de pobreza, como sugere o relatório.

O conceito de pobreza adotado por este think tank e, consequentemente, a defesa de que os sujeitos saíram da pobreza, é unidimensional e limita-se à men-suração do valor monetário produzido após a entrada na terra, cujo patamar supera o mísero salário mínimo aplicado no Brasil. Deve-se considerar que esta elevação ocorreu, em parte, com marcante participação das atividades externas ao projeto produtivo, seja sobre a forma de proletarização de membros das fa-mílias sob a forma de trabalhadores volantes, seja pelo acesso dos idosos a bene-fícios previdenciários, seja pela maior abrangência das políticas compensatórias, como o programa assistencialista de transferência de renda Bolsa Família15. As reflexões do estudo da Esalq parecem, a partir da mensuração da transformação da renda dos indivíduos, demonstrar resultados positivos no alívio da pobreza e aquisição da capacidade de quitação da dívida contraída junto aos bancos.

Contudo, diferentes estudos realizados nos últimos anos me levam ao ques-tionamento de eficácia da saída dos sujeitos da pobreza tendo em vista que, em muitos dos casos, a geração de renda viabilizada unicamente pelo trabalhado desenvolvido nos empreendimentos ou com a combinação de diferentes ativi-dades produtivas como o assalariamento temporário, as pensões previdenciárias etc., não têm sido suficientes para manter a sobrevivência das famílias com dig-nidade e ainda sem a geração de um excedente que possibilite o pagamento das anuidades da compra da terra ou dos créditos agrícolas. Muitas vezes as famílias têm demonstrado uma extrema necessidade e dependência dos programas assis-tencialistas de combate à pobreza, como o já mencionado Bolsa Família.

A fim de melhor demonstrar e apreender esta realidade discuto, neste capí-tulo, os processos e condições de criação e recriação do campesinato, em dois estados brasileiros: Sergipe, localizado na região Nordeste, e Minas Gerais, situa do na região Sudeste, que configura-se como uma das unidades da federa-ção mais importantes no setor da agropecuária comercial e agroindústria.

Busco compreender o movimento dialético de subordinação e resistência do campesinato de empreendimentos selecionados de contrarreforma agrária de mercado, nos quais os camponeses estão organizados nos movimentos socioter-ritoriais: Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Sergipe (Fetase), ligada à Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag); o Movimento dos

der aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim” (Constituição da República Federativa do Brasil, capítulo II, Dos Direitos Sociais, artigo 7º, inciso IV). O Dieese considera, em cada mês, o maior valor da ração essencial das localidades pesquisadas. A família considerada é de dois adultos e duas crianças, sendo que estas consomem o equivalente a um adulto. Ponderando-se o gasto familiar, chegamos ao salário mínimo necessário.

15 Bolsa família é um programa de transferência de renda direta do governo com o objetivo de aliviar a extrema pobreza. Transfere mensalmente para as famílias em extrema pobreza, ou aquelas em situação de pobreza que mantém os filhos frequentando a escola, valores em variam de R$ 22,00 a R$ 200,00.



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Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) – Sergipe e o Movimento dos Atingi-dos pela Reforma Agrária de Mercado (Maram).

Adoto este caminho com a finalidade de produzir reflexões e análises condizen-tes com o tema da convocatória em que se pautou este estudo: Estratégias contra a pobreza: desenhos do Norte e alternativas do Sul. Nas seções anteriores, realizei um esforço para analisar as influências dos desenhos do Norte e a partir dos impactos so-cioterritoriais sofridos e vivenciados cotidianamente pelos sujeitos pobres atingidos pelas políticas de reforma agrária de mercado no Brasil, vislumbro diferentes alter-nativas do Sul que estão em construção no contexto dos movimentos socioterrito-riais, cujos processos inserem-se na dialética subordinação e resistência.

A estruturAção dA contrArreformA AgráriA do BAnco mundiAl no estAdo de sergiPe

Assim como a realidade brasileira, o campo sergipano, neste princípio de sécu-lo XXI, continua marcado pela desigualdade na distribuição das terras, um dos principais vetores da produção e reprodução das condições de pobreza. Tomando os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), observa-se que a estrutura fundiária sergipana permanece marcada pela polariza-ção latifúndio-minifúnido conforme representado na Tabela 5 abaixo.

tABelA 5 – sergiPe: estruturA fundiáriA – 2006

Estratos de área Nº de estabelecimentos % Área em ha %

menos de 10 75.759 75,3 181.314 12,24

10 a menos de 50 17.349 17,25 372.890 25,2

de 50 a menos de 100 2.706 2,69 191.340 12,92

de 100 a menos de 500 2.284 2,27 460.531 31,1

de 500 a menos de 1.000 180 0,18 121.702 8,25

de 1.000 a menos de 2.500 67 0,07 95.587 6,45

2.500 e mais 15 0,01 57.049 3,84

Produtor sem área 2.246 2,23 0 0

Total 100.606 100 1.480.413 100

Com área territorial de quase 22 mil km2, Sergipe se configura como a uni-dade da federação de menor dimensão territorial, o que implica a necessidade de delimitação de uma classificação dos estratos de área dos estabelecimentos agro-pecuários. São considerados pequenos estabelecimentos aqueles com área entre menos de 1 hectare a menos de 100 hectares, médios os estabelecimentos de 100



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hectares a menos de 1.000 hectares, e grandes os estabelecimentos de 1.000 hec-tares e mais. De um total de 100.606 estabelecimentos agropecuários, que ocupa 1.480.413 hectares no estado, verifica-se que os 95.814 estabelecimentos con-siderados pequenos predominam no campo sergipano, representando um per-centual de 95,24% dos estabelecimentos. Já a participação na área rural atinge 745.544 hectares, o que representa 50,36% da área. Os médios estabelecimen-tos, que representam 2,45% dos estabelecimentos (o equivalente a 2.464 estabe-lecimentos), controlam 39,92% da área (ou 582.233 hectares). Por sua vez, os 82 estabelecimentos considerados grandes, apesar de atingirem apenas o percen-tual de 0,09%, controlam 152.636 hectares o que equivale a 10,29% da área.

Para complementar este raciocínio, vale ressaltar que, em Sergipe, de acordo com as condições edafoclimáticas, existem quatro grupos de módulos fiscais: 70 hectares no sertão sergipano, 20 a 70 hectares na faixa do agreste, 10 a 45 hec-tares na faixa litorânea e módulos menores na região metropolitana. Conside-rando esta informação os estabelecimentos com menos de 10 hectares, abarcam o quantitativo alarmante de 75,3% dos estabelecimentos e a área irrisória de 12,24%. Concomitantemente, no outro pólo estão as propriedades com 1.000 hectares e mais, que em relação ao percentual do número de estabelecimentos atingem apenas 0,09% mas que controlam 10,29% da área.

Soma-se a este cenário de concentração fundiária a existência de grandes imóveis cadastrados no Incra e declarados com improdutivos, bem como proje-tos públicos de modernização da agricultura, como exemplo o projeto de irriga-ção Platô de Neópolis destinado ao capital. Decorre desta conjuntura um con-junto de ações impetradas pelo campesinato e suas organizações como forma de resistência aos processos de expulsão da terra e/ou com vistas à sua criação e recriação mediante ações de luta pela terra e pela reforma agrária.

Desde meados da década de 1970, as ocupações de terras têm sido a princi-pal forma de criação e recriação do campesinato em Sergipe. Naquela década, destaca-se a atuação de segmentos da Igreja Católica progressista organizada sob fomento da Diocese de Propriá, em cuja direção encontrava-se o arcebispo dom José Brandão de Castro. Esta atuação foi fundamental no processo de mo-bilização, politização e organização do campesinato para travar diferentes lutas dentre as quais se destacam a luta dos meeiros de arroz, expulsos para implanta-ção do projeto de irrigação Betume, pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf ), bem como a luta dos posseiros de Santana dos Frades. A atuação da Diocese foi importante, também, na gestação e gênese de organizações camponesas, tanto no plano do movimento sindical, como no plano dos movimentos sociais, com a criação do MST-SE, em 1985.

A atuação deste movimento socioterritorial em Sergipe está marcada pela rea-lização das primeiras ocupações de terras no ano de 1987. Foi somente nos anos



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1990 que o Movimento ganha o reconhecimento como o principal interlocutor dos sem-terra no estado, em face de seu processo de territorialização e mediante a conquista de assentamentos nas diferentes microrregiões do estado. Tomando a série histórica compreendida entre 1996 e 2008, do número de famílias em ocu-pações de terras, famílias assentadas em projetos de reforma agrária e aquelas em empreendimentos de Crédito Fundiário (Gráfico 2) verifica-se uma tendência, mesmo que oscilante, de intensificação das ocupações terras a partir de 1996. Em Sergipe, assim como no caso do Brasil, as ocupações de terras têm empurrado a desapropriação dos latifúndios e o assentamento de famílias na reforma agrária.

gráfico 2 – sergiPe: fAmÍliAs envolvidAs em ocuPAções, reformA AgráriA e contrA-AgráriA de mercAdo –1996-2008

Fonte: Incra; MDA/PNCF/SIG-SAC; Pronese; Emdagro; Dataluta – Banco de Dados da Luta pela Terra; BDRAM – Banco de Dados da Reforma Agrária de Mercado

Historicamente o governo estadual tem sido controlado pelo grupo dos ca-pitalistas do campo e da cidade. Em 1995 assume o governo de Sergipe Albano do Prado Pimentel Franco, sucessor do governador João Alves Filho16. Enquanto

16 João Alves Filho é construtor e político sergipano. Foi prefeito de Aracaju de 1974-1977, durante a ditadura militar. Foi governador eleito governador de Sergipe para o mandato 1982-1987, em 1987 assumiu o cargo de Ministro do Interior do governo de José Sarney. Exerceu outros mandatos de governador de Sergipe pelo an-tigo Partido da Frente Liberal (PFL) entre 1991-1994 e 2003-2006. Nas eleições de 2007, quando disputava o quarto mandato perdeu as eleições por sete pontos percentuais para o ex-prefeito Marcelo Déda. João Alves Filho representa um dos campos mais conservadores da política sergipana, tem como marca dos seus governos as políticas assistenciais para os pobres e os mega-projetos de desenvolvimento que atendem diretamente os in-teresses do capital monopolista em Sergipe.



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este último manteve uma postura truculenta no trato com os movimentos cam-poneses, Albano decide abrandar a relação com os movimentos socioterritoriais camponeses, especificamente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), principal agente na ocupação de terras. O mecanismo encontrado para tanto foi a transformação do paradigma da Segurança Pública, cujo secretário Wellington Mangueira, ex-perseguido pela ditadura militar, criou uma agência de negociação de conflitos e buscou a construção de uma polícia cidadã. No campo, substitui-se a truculência praticada pelo governo anterior, que diante das limi-nares de reintegração de posse praticava a queima dos barracos das famílias, pela prática do diálogo com os movimentos socioterritoriais em luta.

Se por um lado o abrandamento no tratamento dos conflitos agradou aos movimentos socioterritoriais, em particular o MST, possibilitando a fortaleci-mento dos mecanismos de resistência dos trabalhadores, por outro, a postura do então governador no que tange ao tratamento da questão fundiária demons-tra-se ambígua, pois foi no seu segundo mandato consecutivo que este repre-sentante local da política neoliberal do PSDB, em curso em âmbito federal sob o comando o presidente FHC, que foram introduzidas no estado as políticas fundiárias de compra e venda de terras arquitetadas pelo Banco Mundial, me-diante a introdução, em 2001, do Programa Banco da Terra (BT).

A partir de então, a criação e recriação do campesinato, realizada por suas próprias lutas de resistência, deixou de ser a única forma de entrada na terra no período recente. A desigualdade na distribuição fundiária e os processos de ex-pulsão decorrentes dos projetos de modernização da agricultura conduziram à formação de milhares de excluídos, difícil de precisar seu quantitativo, de modo que uma parte destes pode ser verificada nos milhares de trabalhadores que se reúnem sob as lonas das ocupações e acampamentos de sem-terra. Outra parte significativa é de mutuários, posseiros, meeiros, desempregados etc.

Os dados das ocupações, representados no Gráfico 2, comprovam a enorme pressão popular para entrar na terra e me permitem inferir que as ações do go-vernador Albano Franco, no tocante à questão agrária estadual, foram motivadas pela intensificação da luta popular no campo. Astutamente, percebeu-se que a continuidade da repressão aos trabalhadores em luta, provocaria maior resistên-cia destes e intensificação da violência por parte dos ruralistas. Esta era uma fase de amplo apoio e legitimidade conferida pela sociedade ao MST e o agravamen-to da violência poderia comprometer a popularidade do próprio governo. Na contramão, estavam os ruralistas que exigiam do governador a proteção da pro-priedade privada. A fim de contemplar este setor, Albano, ao invés de construir as condições institucionais para criação de um Instituto de Terras e um programa estadual de reforma agrária, preferiu desenvolver ações de contrarreforma agrá-ria, criando condições políticas para introdução do Banco da Terra. Enquanto os



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trabalhadores eram tratados nos conflitos fundiários por uma segurança públi-ca cidadã, consolidava-se um arranjo institucional favorável à Cram que, pouco tempo depois, passaria a contribuir com a desarticulação da própria luta pela terra, sem a necessidade de interpor o aparato da segurança pública do Estado a serviço dos interesses dos ruralistas, conforme demonstrarei a seguir.

Pode-se constatar que a luta pela terra, mediante a realização das ocupações, está presente em todo o período analisado. Estabelecendo relação com as fa-mílias em assentamentos de reforma agrária, verifica-se que a permanência das ocupações garante a conquista de áreas de reforma agrária. Porém, há que con-siderar que os assentamentos criados em um determinado ano, na maioria dos casos resultaram de lutas implementadas em anos e até mesmo décadas, ante-riores. De forma que a intensificação das famílias em ocupações não repercute diretamente no número de famílias assentadas no mesmo ano, mas sim em anos e períodos seguintes, sempre em quantitativo inferiores ao número de trabalha-dores envolvidos na luta pela terra, onde a exclusão é muito maior que os pro-cessos de inclusão possibilitados pela reforma agrária.

Outro processo a ser constatado no gráfico é que o número de famílias em ocupações de terras apresenta uma tendência crescente até o ano de 2004 e forte declínio a partir de 2005, não se recuperando mais desta situação até a atuali-dade. A ascensão das ocupações atravessou a tratamento brando conferido pela polícia cidadã do governo Albano, o retorno da truculência e criminalização dos movimentos socioterritoriais camponeses, por outro mandado de João Alves Filho (2004-2006). Mas reduziu-se brutalmente a partir do ano 2006, quando inicia o mandado do governador Marcelo Chagas Déda, do Partido dos Tra-balhadores e aliado histórico dos sem-terra e movimentos populares. O arre-fecimento das ocupações de terras no estado repercute decisivamente sobre o desempenho das famílias assentadas em reforma agrária, especialmente a partir dos pífios resultados obtidos a partir de 2006.

Somente um estudo mais detido sobre esta questão poderá produzir análi-ses seguras sobre este processo. Contudo, ouso, neste texto, levantar algumas ilações sobre a questão apontada. Primeiramente, a tendência de declínio de famílias assentadas entre 2000, 2001 e 2002 deve ser compreendida como um momento de forte criminalização dos movimentos socioterritoriais camponeses pelo governo federal e tentativas de difusão da contrarreforma agrária de mer-cado por todo o país. Entre 2003 e 2004, é período de início do primeiro man-dato do governo Lula, que inicia um processo de recuperação da capacidade de trabalho do órgão encarregado da reforma agrária no país, o Incra, mediante concursos públicos e aquisição de equipamentos, além da corrida do governo para atingir de qualquer modo as metas da II PNRA. O ano de 2007 é marcado pela paralisação temporária do órgão, em virtude de uma greve dos servidores



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– o que promoveu atrasos na reforma agrária, gerando protestos dos sem-terra, materializadas em ocupações de prédios públicos, por exemplo (Figuras 2 e 3).

figurA 2 – sergiPe: ocuPAção do incrA – de forA PArA dentro do Prédio – 2007

(Foto: Eraldo da Silva Ramos Filho, Aracaju, 2007)

figurA 3 – sergiPe: ocuPAção do incrA com os funcionários Ao fundo nA áreA externA – 2007

Foto: Eraldo da Silva Ramos Filho, Aracaju, 23 de agosto de 2007)

Como o limite da propriedade a ser negociada no Programa extingue os imóveis acima dos 15 módulos fiscais, ou seja, aqueles que se enquadram no programa nacional de reforma agrária, os proprietários rentistas estão promo-vendo a fragmentação dos grandes imóveis rurais, em imóveis de dimensão que barre a desapropriação para reforma agrária e garanta, quando desejado,



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a negociação do mesmo, ou parte deste, pelo programa de reforma agrária de mercado. Verifique-se que todo período da redução do número de famílias em reforma agrária é acompanhado da introdução, consolidação e expansão pro-gramada do crédito fundiário em Sergipe. Estes são alguns indícios que eviden-ciam o caráter de contrarreforma agrária deste programa em Sergipe.

A Tabela 6 abaixo, elaborada a partir da combinação dos dados da implan-tação da Cram, fornecidos pelos gestores do programa nas escalas nacional e estadual, e sua comparação com os dados da reforma agrária possibilita avançar um pouco mais na fundamentação deste raciocínio. Entre 2001 e 2008, 6.629 famílias entraram na terra, sendo 61,53% (ou 4.079) das famílias beneficia-das pela reforma agrária e 38,46% (ou 2.550) atingidas pela reforma agrária de mercado. Foi transferido um total de 101.324 hectares de terras, das quais 66,86% (equivalente a 67.753 hectares) são áreas de reforma agrária, em sua maioria arrecadadas por meio de desapropriação, e 33,13% (33.571 hectares) referem-se à compra de terras por meio de uma das três linhas de financiamento (Banco da Terra, Combate a Pobreza Rural, Consolidação da Agricultura Fami-liar) do Programa Nacional de Crédito Fundiário.

O custo total da aquisição das terras, para a implantação dos assentamentos, foi de R$ 76.018.247,00 dos quais 50,19% (ou R$ 38.160.875,00) foi des-pendido com os assentamentos de reforma agrária e 49,08% (o equivalente a R$ 37.857.372,00) dos gastos com a compra de terras pela Cram.

tABelA 6 – sergiPe: distriBuição do número de fAmÍliAs e áreA de rA e crAm – 2001-2008

Nº de famílias Área (ha) Valor contratado (R$)*

RA CRAM RA CRAM RA CRAM

FHC – Albano2001 250 576 4.044 4.682 851.612 8.519.920

2002 1.569 354 24.608 6.649 5.752.836 5.580.201

Lula – João

2003 63 392 1.882 3.194 458.533 3.636.042

2004 305 319 4.773 4.170 1.940.579 3.282.014

2005 1.236 352 15.732 3.345 9.059.027 3.603.524

2006 116 117 2.775 1.215 1.768.623 2.058.048

Lula – Déda2007 92 222 1.535 2.764 1.251.717 4.296.949

2008 448 218 12.404 2.870 17.077.948 6.880.674

Total 4.079 2.550 67.753 33.571 38.160.875 37.857.372

Fonte: Banco de Dados da Luta pela Terra – Dataluta; Superintendência Regional do Incra, em Sergipe; MDA/SRA/PNCF; Pronese; Emdagro* Os valores de contratação da RAM incluem apenas o Subprojeto de Aquisição de Terras (SAT) e para a RA referem-se ao valor pago pela terra nua.



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Pode-se inferir que a Cram, em que pese os descumprimentos das metas dos governos estaduais para implantação das linhas de crédito fundiário (quer seja pelo mal uso dos recursos, pela elevação do preço da terra e/ou pela dificuldade de qualificação dos proponentes), avança rapidamente em Sergipe a contrarreforma agrária de mercado. Em que pese ainda vigorar a reforma agrária como principal instrumento de acesso à terra, a Cram em menos de uma década atingiu 38% das famílias que entraram na terra no período em análise, em 33% da área redistribuí-da e utilizando quase a metade dos recursos despendidos na aquisição de terras no estado. Este feito ocorreu com um dispêndio de recursos por família mais elevado na Cram que na RA. Verifique-se o valor médio por hectares pago na Cram girou em torno de R$ 1.127,68 e na RA foi de R$ 563,23.

Além dos valores de venda de terras praticados na Cram apresentarem pata-mares 50% mais elevados que os praticados na RA, há que enfatizar que o primei-ro instrumento realiza o pagamento à vista e em dinheiro para os proprietários, enquanto na reforma agrária os proprietários recebem indenização em Títulos da Dívida Agrária, resgatáveis em até 20 anos. Diante deste dado, o argumento dos causídicos da Cram de que o funcionamento do mercado de terras e a suposta igualdade entre camponeses e proprietários na negociação dos preços das opera-ções imobiliárias barateariam os custos da reforma agrária vai por água abaixo, ao menos na escala local de Sergipe. Estes dados me fazem crer, ainda mais, que uma baixa dos preços da terra nos processos de reforma agrária somente ocorrerão no campo da luta popular e não no campo das leis de mercado.

Além da aquisição de terras na Cram apresentar um custo 50% mais elevado que a RA em Sergipe, verifica-se que o número de famílias é também inferior que a RA, representando 38% das famílias que entraram na terra, no período, con-forme demonstrei acima. Como se diz no sábio ditado popular: para bom enten-dedor, meia palavra basta, é possível resumir esta situação assim: A Cram, embo-ra célere em seu processo de territorialização, atinge quase 50% menos famílias, com um custo na aquisição de terras 50% mais alto que a reforma agrária. Esta é outra condição que pode exemplificar a ação da contrarreforma agrária, ao favo-recer diretamente o capital rentista, que incorpora os pagamentos da terra à vista e em espécie.

Mas outra preocupação que trago, diante destes dados, recai sobre os dois pro-gramas em curso e diz respeito a área média atribuída por família. A área média destinada a cada família beneficiada na RA tem sido de 16,61 hectares e de 13,16 hectares nos programas de Cram, dimensões bem abaixo do módulo fiscal prati-cado em Sergipe, conforme apresentado acima. Desta área média por família de-ve-se, ainda, ser debitado alguns hectares referentes às áreas de proteção ambien-tal permanente, estradas, cursos d’água, áreas destinadas à moradia e convivência comunitária etc. de modo que o lote produtivo é ainda menor. Os dois progra-



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mas têm contribuído, portanto, com o processo de minifundização no estado, ao promover este tipo de parcelamento. De maneira que não é frequente encontrar famílias em condições de penúria para produzir suas condições de sobrevivência no campo, queixando-se da exiguidade dos lotes produtivos.

Na reforma agrária, este processo decorre da enorme pressão popular para entrada na terra, inclusive com famílias que se encontram nos acampamentos de sem terras há mais de uma década. Frente à dificuldade de conquistar as de-sapropriações, os movimentos socioterritoriais, quando ocorre uma desapro-priação de latifúndio, pressionam o Incra para realizar o assentamento de um número de famílias superior à capacidade da área prevista nos laudos técnicos.

Por sua vez, na Cram, o quantitativo de famílias reunidos nas associações criadas para compra da terra encerra-se por se definido pelos preços que os pro-prietários impõem para a venda destas. Como há um teto de financiamento por família, que varia de acordo com as linhas de financiamento, quanto maior o preço do imóvel, maior deverá ser o número de componentes da associação para que o montante da operação seja garantido. Neste caso, há associações onde camponeses declaram que exerceram pressão sobre o órgão gestor da Cram para que aceitasse um quantitativo de famílias superior ao constatado como viável nos laudos técnicos.

Diante desta complexa e grave conjuntura, delineia-se a certeza da impossi-bilidade de superação da pobreza a partir dos mecanismos de redistribuição de terras que não atendam pelo menos a área territorial suficiente para a reprodu-ção das famílias. Dificilmente uma ação fundiária logrará êxito no combate à pobreza quando redistribui terras em parcelas em dimensões iguais ou inferio-res ao módulo fiscal praticado em determinada região.

Este é um processo de produção do espaço rural sergipano. Como nos en-sinou Lefebvre, a produção do espaço não é neutra, está, portanto, carregada de intencionalidade e ideologias. A análise dos Planos Operativos Anuais 2004, 2005, 2006 e 2007 (POA)17 do PNCF em Sergipe, demonstram que os plane-jamentos executados pelos governadores Albano Franco, pelo truculento João Alves Filho e, mais recentemente, o petista Marcelo Déda, embora apresentem metas variadas de disponibilização de recursos, de acordo com os acordos fir-mados com o governo federal, há uma permanência no tocante à previsão de financiamento de uma média de 10 hectares por família. Compreendo que es-tamos diante de uma tendência programada de minifundização, fenômeno que

17 Os Planos Operativos Anuais (POA) são documentos de planejamento e/ou avaliação, balanço das atividades, metas e custos de implantação desta política elaborados a cada ano. Solicitei à Empresa de Desenvolvimento Sus-tentável de Sergipe, em 10 de setembro de 2009, os POA de 2008 e 2009, os dados referentes à amortização das anuidades por parte dos mutuários, bem como as adesões às medidas de renegociação das dívidas previstas na MP 432/2008; contudo, até a finalização deste texto, em fevereiro de 2010, os dados não me foram fornecidos.



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Josué de Castro, na sua obra Geografia da Fome, em 1946, já decretava como uma irracionalidade.

Ainda mais, a transferência de parcelas exíguas de terras, seja através de uma transação imobiliária ou política de reforma agrária, demonstra um caráter, con-comitantemente, subordinador e imediatista destes programas. Subordinador, porque manterá as famílias beneficiadas ou atingidas, em condições de depen-dência das políticas compensatórias que impulsionam o clientelismo político, das poucas vagas de trabalho volante no campo e/ou na cidade etc. É imedia-tista porque, ao destinar às famílias pobres as parcelas de terras exíguas e/ou insuficientes impede a reprodução familiar com dignidade. Despreza o aspecto da sucessão geracional mantendo os mesmos problemas de acesso a terra para as futuras gerações e suas respectivas famílias, desestabilizando o grupo familiar em futuro próximo. Parece-me importante concluir esta seção introdutória ao estudo dos processos de criação e recriação do campesinato pelas políticas em foco em Sergipe, conduzindo o leitor ao cartograma abaixo, que remete à dis-tribuição territorial das famílias nestes empreendimentos.

Ao logo dos últimos 10 anos, as linhas de financiamento de terras para tra-balhadores rurais pobres, sem terras ou com pouca terra, foram implantadas em todas as microrregiões sergipanas e em 36 dos 75 municípios, a saber: Aquida-bã, Arauá, Areia Branca, Campo do Brito, Carira, Cristinápolis, Estância, Feira Nova, Frei Paulo, Graccho Cardoso, Indiaroba, Itabaiana, Itaporanga d’Ajuda, Japaratuba, Japoatã, Lagarto, Macambira, Monte Alegre de Sergipe, Nossa Se-nhora Aparecida, Nossa Senhora da Glória, Pacatuba, Pedra Mole, Poço Re-dondo, Poço Verde, Porto da Folha, Riachão do Dantas, Salgado, Santa Luzia do Itanhy, Santana do São Francisco, Santo Amaro das Brotas, São Cristóvão, Simão Dias, Tobias Barreto, Tomar do Geru e Umbaúba. O município e a mi-crorregião, respectivamente, que concentram o maior número de famílias mu-tuárias é Lagarto e a microrregião sergipana do Sertão do São Francisco, onde predomina o clima semiárido e as maiores limitações edafoclimáticas para o desenvolvimento da agropecuária, portanto, os valores mais baixos das terras (Mapa 3).

Do conjunto das áreas, realizei trabalho de campo em cinco municípios e sete associações de mutuários, a saber: em Simão Dias a Associação Fruto da Terra Simão Dias, em Porto da Folha a Associação de Desenvolvimento dos Pequenos Produtores Rurais da Comunidade Senhor do Bonfim, em Salgado a Associação de Desenvolvimento dos Trabalhadores Rurais de Salgado, em Poço Redondo a Associação Nossa Senhora do Rosário a e Comunidade de Pescado-res Z-10 de Poço Redondo, no município metropolitano de São Cristóvão as Associações de Cooperação Agrícola Florestan Fernandes I e II, as quais passo à análise a seguir.



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mAPA 3 – sergiPe: número de fAmÍliAs em crAm Por municÍPio e áreAs estudAdAs – 1998-2008



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comBAtendo A PoBrezA com A Prisão dA dÍvidA nA AssociAção fruto dA terrA simão diAs

O primeiro empreendimento do Banco da Terra implantado, em Sergipe, foi inaugurado em 30/1/2001, com a compra da Fazenda Fabiana, de 373 ha, situa-da no município de Simão Dias, pela Associação Fruto da Terra Simão Dias. Vinte e sete famílias contraíram um empréstimo solidário no total de R$ 686.165 reais, dos quais R$ 447.840 reais foram pagos diretamente aos proprietários, o advogado Hernani Romero Libório e a renomada juíza Rosalgina Almeida Pra-ta Libório. Foi destinada à implantação do projeto comunitário a quantia de R$ 220.325 reais com a construção de 27 casas de moradia dos mutuários, um tanque para piscicultura, um silo bunker de 150 toneladas, construção de cercas internas, apriscos, custos cartoriais de registro do contrato de compra e venda e transferência de propriedade, despesas topográficas, licenças ambientais, elabo-ração dos projetos e até a confecção da placa do Banco da Terra.

Em visita à localidade, em meados de 2005, durante os trabalhos de campo da pesquisa Avaliação dos programas de crédito fundiário do Banco Mundial, rea-lizada pela Rede Terra de Pesquisa Popular, braço de pesquisadores populares da Via Campesina, o então presidente da associação relatou que a venda da fa-zenda foi articulada por um ex-prefeito do município, de nome Luiz Alberto, e que o valor recebido contribuiria para que os filhos dos proprietários adqui-rissem outra fazenda no Maranhão. Quando retornei, em novembro de 2009, o mesmo complementou que a negociação propriamente dita foi realizada por uma liderança comunitária do Povoado Salobra, onde se localiza o imóvel rural , e que é sabido por todos na localidade que tal líder recebeu, obscuramente, cer-ca de 1% do valor da negociação da fazenda. Sobre a negociação da fazenda, o entrevistado declarou que:

Agora toda a desgraça daqui quem fez foi eles mermo pra receber esse dinheiro, porque na época que a gente entrou aqui foi oitocentos mil reais que entrou no Banco e se não pegasse esse dinheiro logo, ele voltava. Então essa fazenda foi pega a todo custo pra que esse dinheiro não voltasse! Então por isso que essa terra hoje em dia nois num paguemo e nunca vamo con-seguir pagar. Por quê? O valor dessas terras aqui era duzentos e trinta reais [por tarefa] na épo-ca e nois paguemo no valor de quatrocentos reais. Quer dizer que nois paguemo a mais quase a metade! Então, tem como você pagar uma dívida dessa? Mesmo com muito recurso que o Banco dê, que o governo dê dispensa. (...) E o pior que quando nóis peguemo isso aqui, nóis foi muito iludido em tipo de vantagem! Quando...teve muitas reuniões que ela dizia assim: ‘Não, sua esposa vai ter dinheiro pra movimentar, com negócio, com galinha, com uma coisa ou com outra. Mas, você vai movimentar de um lado e sua esposa vai movimentar de outro. (...) Houve muita ilusão! (...) Que a gente não teve vantagem. Teve vantagem pra eles pegar, porque doutor Hernani foi o dono dessa fazenda, ele pegou quanto na época? Quatrocentos e cinqüenta mil! Quer dizer só parte dele foi quatrocentos e cinqüenta mil ou foi quatrocentos e sessenta e cinco mil! (Entrevista Simão 01, Simão Dias, 2009).



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Embora as casas não tivessem sido contempladas com eletrificação, água en-canada ou até mesmo cisternas, o projeto foi dado por implantado. Em seguida, as famílias acessaram, cada qual, aproximadamente sete mil reais pelo crédito agrícola Pronaf-A, destinados à compra de duas vacas, 10 ovelhas e um repro-dutor como principal investimento destinado à geração de renda. Como com-plemento, foi incentivado pelo técnico agrícola a implantação de uma roça de mandioca, juntamente com uma pequena lavoura de autoconsumo. Somava- -se a expectativa de exploração de uma balança embarcadeira bovina, comprada como benfeitoria da Fazenda Fabiana. Como o imóvel se encontra situado em uma zona pecuarista, na qual há diversas transações de compra e venda de gado, esperava-se gerar significativa renda com a prestação de serviços de pesagem do gado, voltada aos pecuaristas e abatedouros.

Devido às limitações do solo, segundo a comunidade, a lavoura de man-dioca não vingou levando as famílias ao endividamento com o banco em face do crédito agrícola. Outra condição que agrava a falência do projeto produtivo para além da inadequação da assistência técnica é o relato da ocorrência de cor-rupção na distribuição dos recursos no momento de implantação dos projetos produtivos e solicitação de propinas para encaminhar documentos.

Porque no início aqui foi muita coisa irregular! Não vale a pena nem a gente comentar. Que foi muita coisa irregular aqui no início foi. Foi! Eu mesmo era pra pegar dez ovelhas e um reprodutor, e eu fui dar fé que eu tinha sido lesado, pra não dizer outra palavra, com mais de ano! Com mais de ano foi que veio uma cobrança pra mim (...) o rendimento das suas ovelhas. Eu dei a quantidade das ovelhas que tinha, né. Aí só faltou o reprodutor. Por que o reprodu-tor, ainda hoje eu tô com o carneiro do lugar do véio meu pai. Aí disse: ‘Não. O carneiro era pra tá no meio’. E eu fui o presidente que assumiu na época aí falei: Agora, depois de mais de ano que o senhor vem atrás desse reprodutor, Seu Zé? Que dizer que foi uma irregularidade que não devia usar com a gente aqui, né. Porque além de umas, outras. Além de a gente com-prar a fazenda já caríssima, ainda ter que pagar propina naquilo que num devia ter. Porque as vaca a gente comprou mais teve que pagar! Dizia assim: ‘Ói! A gente só libera o dinheiro lá no banco se o senhor me der cinqüenta reais’. Então é irregularidade ou não é? Muitos...Isso aí num foi só eu não que passou por isso. Eu perdi um carneiro, que era pra ser reprodutor, e perdi cinqüenta reais ou foi cem das vaca. Diz: ‘Não, o senhor pode pegar amanhã, bem cedo, o dinheiro lá no banco. Agora, só se o senhor me der cinqüenta reais’. E a gente já tava apiado no dizer da estória. (Entrevista Simão 01, Simão Dias, 2009).

Também a implantação do sistema pecuário, já no primeiro ano, amargou perdas no rebanho em virtude de problemas ambientais e de execução. A li-beração do crédito destinou a compra de pequeno rebanho antes mesmo dos agricultores formarem pastos ou condição de adquirir ração para alimentar os animais. Diante da primeira seca esgotou-se a pastagem, conduzindo à perda gradativa do rebanho. Em outro período da implantação do projeto, o excesso de chuvas destruiu a estrada interna do imóvel que dá acesso à balança embar-cadeira, tornando-a inacessível para veículos automotores. Diante dos sucessi-



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vos fracassos, superfaturamentos, propinas, erros técnicos e destruição da in-fraestrutura por fenômenos climáticos o empreendimento entrou em situação de falência, a associação vivenciou a evasão de sócios e início das substituições mediante a revenda e o endividamento das famílias.

O estado tem destinado um tratamento ambíguo aos empreendimentos de crédito fundiário. Se por um lado são considerados empreendimentos de reforma agrária ao impedir os sujeitos atingidos de participar, posteriormente, de qualquer outro programa público com esta finalidade, por outro lado, depois de implan-tados, os empreendimentos são entregues ao abandono. Não há nenhum órgão público federal, estadual ou municipal que se obrigue da manutenção, recupera-ção ou investimento na infraestrutura dos empreendimentos. Como as associa-ções encontram-se, geralmente, em situação de falência, os empreendimentos vão tornando-se, com o passar do tempo, a expressão do abandono. A solução encon-trada em muitas partes tem sido solicitar auxílio das prefeituras municipais.

Neste contexto, quatro anos após a criação do empreendimento, encontra-mos na localidade apenas nove mutuários realizando trabalhos produtivos. Des-tes, os que dispunham de melhores condições financeiras preferiam morar na cidade de Simão Dias ou no povoado vizinho, onde estavam disponíveis serviços básicos inexistentes na localidade. Muitos deles eram mutuários que haviam re-comprado a terra e a dívida dos pioneiros, processo que poderia ter se dado por duas, três, quatro, cinco até seis vezes, de acordo com relatos da comunidade. Naquela época (2005), as famílias há alguns meses haviam recebido a carta do Banco do Nordeste do Brasil, que por inadimplência cobrava antecipadamente o montante de R$ 764.386,44, na posição de 8/3/2005, referente à contração do empreendimento. Dizia que: “a teor do art. 11 do Decreto Lei n. 413, de 9/1/1969, importa em vencimento antecipado do título, independentemente de aviso ou interpelação judicial ou extrajudicial”. Chama-nos a atenção que o De-creto-lei mencionado na carta de cobrança trata de expedientes referentes a Títu-los de Crédito Industrial, cuja lógica econômica não apresenta, sequer de longe, qualquer relação com a dinâmica socioeconômica de um assentamento rural, muito menos com a natureza da economia natural das famílias camponesas.

Diante desta difícil situação, que mais que denota a falência do empreendimen-to, quando retornei à localidade, no final de 2009, apenas oito famílias fundadoras permaneciam praticando, ao menos, a criação de bovinos na e/ou caprinos na área. Destas, apenas três famílias moravam no empreendimento e desenvolviam, tam-bém, uma agricultura autoconsumo (feijão, mandioca, milho, batata, aves, ovos e leite esporadicamente) com geração de pequeno excedente que, comercializado no mercado, permitia a aquisição de arroz, café, açúcar e carne, não produzidos no assentamento. Os demais 18 lotes foram recomprados por outros sujeitos, com a ocorrência de revenda de um mesmo lote, em média nove vezes.



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Os lotes das famílias desterritorializadas pela inexistência das condições ne-cessárias à reprodução familiar, mesmo com a incerteza causada pela dívida, retornam de modo informal para o mercado de terras para ser comprado por outro sujeito pobre e sonhador. Informal porque, geralmente assina-se um re-cibo passando determinado lote e casa para o comprador, que se compromete a assumir os compromissos contratuais com a associação e credores, mas o con-trato de compra e venda e os registros de créditos públicos continuam no nome dos primeiros mutuários. O sonho e a ansiedade dos pobres para entrar na ter-ra fazem com que as famílias decidam por pagar um montante ao mutuário e comprometem-se a arcar com as dívidas junto ao banco.

Possivelmente um estudo mais detalhado sobre o comportamento dos preços das terras revendidas dos empreendimentos de Cram poderá revelar que, a cada momento que um determinado lote é vendido, com o tamanho da dívida ainda maior impulsionado pelos juros bancários, o preço de revenda sofrerá arrefecimen-to. Isto pode seguir até que o preço atinja valor tão baixo que se torne um bom negócio para fazendeiros desejosos de ampliar seus pastos a baixo custo. Diante do elevado índice de evasão, já se observa este processo de incorporação de lotes por fazendeiros do entorno que estão comprando as terras de ex-mutuários.

Para este expediente, verifica-se a utilização de laranjas que se enquadram economicamente na condição de pobreza exigido pelo programa. Segundo os relatos da comunidade, aproximadamente 12 lotes já foram comprados pelos capitalistas rentistas sob este tipo de operação fraudulenta. As áreas compradas são destinadas à implantação de pastagens para um rebanho bovino trazido de outras áreas. Os tratos culturais necessários ao rebanho e/ou pasto são realiza-dos com a contratação de força de trabalho daqueles mutuários que residem no local, alguns dias na semana.

Daquelas três famílias que ainda resistem no empreendimento, pelo menos um dos membros de cada grupo doméstico desenvolve atividades laborais fora do lote de produção, com vistas à obtenção de ganhos monetários que garan-tam o dinheiro suficiente para a compra dos produtos que não são produzidos na agricultura de autoconsumo. Em uma das casas que visitei, o chefe da família continua da mesma forma que o encontramos em 2005, trabalhando como em-pregado de uma das fazendas vizinhas ao imóvel. Seu salário mensal é de qua-trocentos reais, sem o registro obrigatório em carteira de trabalho. Em outro do-micílio, também visitado em 2005, formado por um casal e seis filhos, o marido desenvolve atividades na agricultura e a esposa é funcionária pública municipal, exercendo a função de professora de educação infantil do povoado vizinho.

Para sobreviver, este mutuário remete-se à importância da regularidade do pequeno salário recebido mensalmente por sua esposa, ao mesmo tempo em que relata múltiplas atividades que expressam, concomitantemente, a subor-



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dinação e a resistência do camponês ao capital. Este agricultor vende sua força de trabalho aos fazendeiros que estão operando no empreendimento por vin-te reais a diária para cuidar do pasto e do rebanho, enquanto que outros dois dias da semana são empregados na roça familiar de autoconsumo (Figuras 3 e 4). Este mutuário declarou também que, por deter a terra, pode ainda arrendar alguns poucos hectares do seu pasto para os pecuaristas do entorno. Ademais, mantém com outro produtor uma relação de meação, onde este último entra com os animais e o mutuário com os tratos da criação, o pasto e água.

figurA 4 – simão diAs – sergiPe: resistênciA cAmPonesA: reBAnho ovino com Açude Ao fundo

(Foto: Eraldo da Silva Ramos Filho, 2009)

figurA 5 – simão diAs – sergiPe: resistênciA e suBordinAção cAmPonesA: AgriculturA de Autoconsumo

Ao fundo ArrendAmento de PAsto PArA fAzendeiros




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Na roça familiar, o mutuário relatou que produz hortaliças, mandioca, ba-tata, ervas medicinais, milho, um pequeno rebanho ovino e duas novilhas. É preferência da comunidade, em função da tradição local e das condições edafo-climáticas, as atividades ligadas à pecuária. Todos afirmam que caso a assistência técnica tivesse orientado adequadamente o projeto para este ramo, seguramen-te, não estariam na situação de falência em que se encontram.

Quando questionado sobre a adesão à medida provisória de negociação da dívida da terra e do crédito agrícola do Pronaf-A foi-me relatado que os mutuá-rios pioneiros foram procurados para assinar os documentos de renegociação do crédito agrícola, sendo pouco precisa a informação sobre os encaminhamentos para regularização do quadro de sócios da associação, com vistas à individuali-zação da dívida da terra e dos lotes agrícolas.

Possivelmente as queixas da permanência dos nomes dos mutuários no Ca-din e Serasa, mesmo após a negociação, sejam resultantes da negociação apenas da dívida do crédito agrícola em detrimento da adesão da dívida da terra. Como a associação encontrava-se sem presidente eleito ou outro representante à frente da entidade, e como o mutuário que se encontra responsabilizado por este ex-pediente não reside na localidade e nem se encontrava no empreendimento no momento do trabalho de campo, não foi possível comprovar esta hipótese.

Diante da gravidade desta situação, questionei o mutuário sobre sua percep-ção da eficácia do programa no combate à pobreza rural e tomando como refe-rência a experiência vivida o camponês, assim contestou:

Rapaz, sei não. Pelo que eu tinha... que antes eu tinha budega, veja bem, ói! Eu tinha uma bu-dega que supria o povoado todo lá do Muriango, tinha minha casa de morada no Muriango, tinha dois chão de casa em Simão Dias e eu destruí tudo pra botá aqui. Porque depois que eu entrei aqui vendi budega, vendi dois chão de casa que eu tinha na rua (...) quer dizer que eu ven-di tudo e empreguei em criatório, e botei aqui. E daqui eu fui mantendo pra me manter, e fazer pasto...e... Um garrote mesmo eu vendi por mil reais pra botá uma roça. Porque eu já num tinha mais crédito no banco. Eu digo, eu boto por minha conta. Aí vendi um garrote por mil reais e botei dez tarefa. O milho todo nessa altura, aí bateu um chuvêro! Aquele chuvêro de 2004, com quinze dia o milho tava a paia seca como tivesse passado um sol de mais de quarenta graus. Aí também me desgostei. Antes de eu entrar aqui eu tinha! Eu posso dizer que eu tinha (...) e hoje eu tenho essa casa na rua que foi construída com o dinheiro dessa do Muriango, que eu vendi e a mulher queria ir pra rua, aí a gente construiu com o dinheiro dessa do Muriango e outra coisa só aqui mermo, só tem só aqui mermo, três novilha agora no pasto e poucas novilha, mas tudo fazendo economia pra ver se Deus ajude quando chegue o tempo de negociar essa dívida que a gente negociou agora em 2010 e ver se eu arrumo com o quê pagar (Entrevista Simão 01, Simão Dias, 2009).

Diante da condição de endividamento, os nomes dos mutuários perma-necem com restrições no sistema financeiro, impedindo-os de acessar outros programas sociais voltados para agricultura camponesa, um exemplo é o Pro-grama de Aquisição Antecipada de Alimentos (PAA), desenvolvido pelo Mi-



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nistério do Desenvolvimento Social, como uma das ações de combate a fome e a pobreza.

As entrevistas que realizei com as famílias do empreendimento demonstram um sentimento comum de desolação frente à inviabilidade do projeto, da ine-xistência de alternativas e do alto endividamento. Em uma família, o casal afir-mou insistentemente que pretendia abandonar o empreendimento para aven-turar melhores condições de vida para seus filhos em outro local. Por sua vez, o entrevistado Simão 01 relatou que abandonar o projeto não mudaria em nada sua condição, já que a saída não implicaria em retirada dos nomes dos mutuá-rios da lista do sistema de crédito. Para ele, a opção é continuar no empreendi-mento onde está garantido o acesso a terra, da qual é possível, ao lavrá-la, retirar o essencial para o sustento familiar e como o projeto de financiamento tem du-ração de 20 anos, terá que esperar 20 anos pra ver o que ocorrerá. Esta condição foi descrita da seguinte forma:

(...) Aqui ficou pior pra quem vivia lá solto! Porque eu me considero que eu vivia solto, né, e aqui eu me sinto preso! Aqui me sinto preso pela divída! Tô preso por essas divida, né. (...) Se eu tivesse lá fora ou sem-terra ou com terra minha mermo. Não, isso aqui é meu, não depen-do de banco, não dependo de ninguém, eu vou vender uma novilha, vou vender uma ovelha. Meu amigo, duas pessoa ou três já ofereceram geladeira segunda mão, troca ne ovelha e eu vou animado pra tocar e depois não troco. Eu digo não. Se eu trocar já vai diminuir para pagar a dívida. Eu tô preso ou não tô? Agora eu tô preso pela dívida! É mole! (...) Ele veio [o Progra-ma Banco da Terra] beneficiar, não! Ele veio destruir! Eu acredito assim, porque se eu tivesse onde eu tava, pelo jeito que eu sou, graças a Deus, econômico, talvez eu tivesse (...) procurado um tipo de negócio, ter uma renda melhor e num tá como eu tô hoje. (Entrevista Simão 01, Simão Dias, 2009).

Embora este empreendimento não seja considerado uma área de influên-cia ou ligada a Fetase, já que sua criação ocorreu quando a entidade ainda não apoiava o programa e os respectivos mutuários também declaram terem solici-tado a desfiliação do Sindicato Rural de Simão Dias, a realidade nos empreen-dimentos de Crédito Fundiário, adquiridos a partir de 2003 sob a tutela da Fe-deração, na maioria dos casos, não se encontram em situação muito diferente. De acordo com as análises dos Planos Operativos Anuais 2003 a 2007, forne-cidos ao pesquisador pela Empresa de Desenvolvimento Sustentável de Sergi-pe (Pronese), constatamos que, com relação ao pagamento das anuidades dos dez empreendimentos do PNCF que tiveram o período de carência esgotado até 2007, a metade das associações não havia conseguido, até o ano seguinte [2008], quitar os compromissos.

Estas são algumas dimensões que encontrei no primeiro empreendimento de reforma agrária de mercado do estado de Sergipe. As famílias que resistem na localidade, desde a criação do empreendimento, não contam com nenhuma representação sindical, movimento socioterritorial ou mediadores que contri-



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buíam com o encaminhamento das reivindicações e soluções para os respectivos problemas. Estes expedientes devem ser encaminhados pela figura do presiden-te da Associação na época. E como esta entidade está totalmente fragmentada dada a enorme evasão dos sócios, os mutuários encontram-se em uma situação de ausência de representatividade e vulnerabilidade. Mesmo sobre esta grave situação, a fala do entrevistado demonstra que a superação desta realidade per-passa pela necessidade de organizar-se enquanto classe: “Mudava sabe como? Se tivesse uma pessoa de responsabilidade, que tivesse condições de juntar todos. Vamos se juntar todos, ou a gente se junta todos ou se não, não tem nada feito!” (Entrevista Simão 01, Simão Dias, 2009).

o cAso dA federAção dos trABAlhAdores nA AgriculturA de sergiPe (fetAse)

Conforme debatido alhures, o ingresso da Confederação Nacional dos Tra-balhadores na Agricultura (Contag) na política de crédito fundiário somente ocorreu a partir de 2002, quando o governo federal, na época, capitaneado por FHC, criou o Programa Nacional de Crédito Fundiário e alterou as nor-mas de execução, excluindo do rol dos imóveis passíveis de compra aqueles que dispõem de área territorial a partir de 15 módulos ficais, portanto, pas-síveis de desapropriação para fins de reforma agrária. O manual de operações do PNCF regulamentou também a participação do movimento sindical no Programa, na condição de assessoria, o que envolve inclusive o pagamento de pró-labore.

Em Sergipe, foi a partir deste ano que os candidatos ao ingresso nos em-preendimentos de crédito fundiário passaram a ser mobilizados, orientados, certificados e acompanhados pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Sergipe (Fetase). Nesse contexto, a realidade que ora me debruço apresenta, em todos os casos analisados, um menor tempo de implantação que o Banco da Terra, como o caso da Associação Fruto da Terra Simão Dias debatido aci-ma, bem como aos demais empreendimentos ligados ao MST e Maram, que discutirei nas próximas seções. Evidentemente, é possível encontrar diferenças no estágio de desenvolvimento dentre o conjunto dos empreendimentos in-vestigados, mas nenhuma condição que impeça a comparação e o confronto dos processos, já que todos ultrapassaram o período inicial de implantação e o decurso dos três anos de carência para pagamento das anuidades referentes ao financiamento da terra.

Para selecionar os empreendimentos de crédito fundiário ligados a Fetase, adotei alguns critérios, a saber: a maior antiguidade dentre os projetos implan-tados no estado, visita às áreas que venho estudando nos últimos anos a fim de



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identificar transformações ao longo do tempo, dentre as quais optou-se por vi-sitar uma área referência para a Fetase e para os gestores do Programa e outra considerada pelos mutuários e Fetase um grande dilema ao desenvolvimento. Antes de mergulhar nos processos em curso na Associação Comunitária dos Trabalhadores Rurais de Salgado e na Associação de Desenvolvimento dos Pe-quenos Produtores Rurais da Comunidade Senhor do Bonfim, com a finalida-de de melhor caracterizar a dinâmica do Crédito Fundiário em Sergipe, discuto sucintamente as condições gerais da implantação do Programa no estado a par-tir de estudos anteriores. (Ramos Filho, 2008a, Via Campesina, 2006).

O estudo realizado pela Rede Terra de Pesquisa Popular denominado Avalia-ção dos programas de crédito fundiário do Banco Mundial no Brasil (2006), consi-derando os dados específicos desta unidade da federação com relação às atividades laborais praticadas antes da entrada no empreendimento, revelou que 76% dos mutuários desenvolviam anteriormente atividades ligadas ao campo e 24% ati-vidades urbanas. Dentre os últimos, as respostas apresentaram uma grande pul-verização entre várias atividades de trabalho assalariado permanente, trabalho as-salariado temporário e outras atividades autônomas. Já aqueles que declaram ter desenvolvido atividades ligadas ao rural, verifica-se que 12% trabalhavam para o antigo proprietário do imóvel adquirido, enquanto outros 39% dos entrevistados declaram ter desenvolvido atividades laborais na condição de trabalhadores rurais assalariados temporários ou boias-frias; os demais entrevistados declaram ter atua-do como diaristas, meeiros, posseiros, agregados ou desempregados.

Estes dados revelam que a contrarreforma agrária do Banco Mundial tem atingido população do campo e da cidade, denunciando que a desigualdade na distribuição da riqueza socialmente produzida atinge a população destes dois ter-ritórios, levando ao descredenciamento da concepção de que os programas de re-distribuição de terras devem estar direcionados apenas para as populações pobres do campo. Na prática, deveriam possibilitar a criação de condições de adaptação e aprendizado para aqueles sujeitos provenientes das cidades e que vislumbram a possibilidade de reproduzir-se como camponês. Os programas de crédito fundiá-rio têm atingido um número significativo de sujeitos que atuam no rural sob a condição de assalariados temporários ou mesmo arrendatários e meeiros.

Dentre os mutuários que de alguma forma e em algum momento de suas vidas, tiveram acesso à terra, o discurso está marcado concomitantemente por desilusão e esperança. Desilusão por enfocarem a condição de existência sob o jugo dos fazendeiros como uma situação que perpassa a incerteza de ter as ter-ras na safra seguinte para a realização do trabalho familiar e à exploração a que é submetido tal trabalho a fim de garantir o acesso às terras e às diferentes formas de apropriação e controle da renda da terra produzida pela família. A esperan-ça reflete-se no próprio acesso à terra. De posse desta, o camponês sonha com



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a possibilidade de concretizar o trabalho familiar, assegurando uma maior au-tonomia sobre as relações de produção, o tempo de trabalho e os objetivos da produção, de modo a garantir melhores condições de existência da sua família e grupo doméstico. A grande questão que levanto é: qual a possibilidade de atin-gir este sonho no contexto de um programa de financiamento de terras, criado dentro da lógica dos proprietários e do capital, cujo mercado tem centralidade na determinação dos processos socioespaciais e socioterritoriais?

Conforme esclareci alhures, a criação e recriação do campesinato por meio do programa de crédito fundiário ocorre mediante os processos geográficos de espacialização e territorialização. Para Marx e Engels, na introdução à Ideologia Alemã, a forma de viver dos sujeitos revela muito sobre o que efetivamente eles são e isso depende diretamente das formas materiais de produção, a que estão submetidos e o que produzem. As formas e resultados da produção decorrem das relações sociais desenvolvidas espacialmente com seus respectivos conteú-dos, dinâmicas, processos e intencionalidades. Neste contexto, os empreendi-mentos de crédito fundiário apresentam determinadas formas-conteúdo que decorrem dos processos implementados na sua estruturação, dos sujeitos que participaram da sua edificação, das intencionalidades envolvidas no seu proces-so de materialização como programa público, das circunstâncias que edificaram cada empreendimento e as histórias de vida dos mutuários.

Neste contexto, é importante delimitar que embora se trate de uma política pública com diretrizes nacionais, e todos os empreendimentos em análise nes-ta seção estarem ligados à mesma organização sindical, cada empreendimento de crédito fundiário apresenta realidades muito parecidas no tocante às condi-ções de implantação e desenvolvimento, mas formas-conteúdo muito peculia-res, que geralmente refletem o conjunto das histórias de vida da comunidade de mutuários.

Os estudos que tenho realizado nos últimos anos me permitiram o conheci-mento de realidades do crédito fundiário em diferentes estados brasileiros atra-vés da realização de trabalhos de campo em Sergipe, Piauí, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Em todos os estados e empreendimentos foi possível constatar que o processo geográfico de espacialização antecede a territorialização das fa-mílias. A espacialização se dá mediante o dimensionamento de um espaço de socialização política constituído pelo espaço jurídico-institucional e espaço da subalternidade, conforme apresentado alhures.

Em cada espaço dimensionado, considero a importância da participação dos trabalhadores rurais e/ou suas entidades representativas. Neste contexto, o espaço jurídico-institucional, de caráter multiescalar, pode ser dimensionado em reuniões do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e na Unidade Técnica Nacional, conselhos que, após os acordos internacionais



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firmados entre o governo brasileiro e o Banco Mundial, deliberam sobre as di-retrizes, metas e regulamentos da implantação do Programa no Brasil, com a participação da Contag e Fetraf. Na escala dos estados as Unidades Técnicas Estaduais dão o aval para o planejamento, para implantação do programa e, juntamente com os Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Susten-tável, decide-se pela viabilidade da operação de compra e venda de um imóvel qualquer e certificação das associações contratantes, com vistas à implantação de empreendimento de crédito fundiário.

Definidas as normas e as metas que determinam o espaço, o tempo e o custo da implantação da RAM em determinada unidade da federação, verifica-se um conjunto de ações dimensionadoras de espaços da subalternidade, cuja materia-lização se dá mediante o agrupamento de sujeitos pobres que se enquadram na tal focalização do Programa. As diretrizes e documentos oficiais sobre o progra-ma afirmam que uma das potencialidades é a existência de um suposto controle social, que segundo os gestores é a capacidade que as entidades sindicais têm de orientar sua base, monitorar o desenvolvimento dos empreendimentos e asses-sorá-los na resolução de problemas.

O primeiro questionamento que teço sobre esta compreensão está relacionado com os preceitos que efetivamente definem aqueles sujeitos que entrarão na terra e os que ficarão de fora da transação imobiliária. Ou seja, as famílias, para serem selecionadas como ingressantes em qualquer linha de financiamento, devem estar na focalização de pobreza do Programa, ter certificação de agricultor emitida pelo movimento socioterritorial; contudo não é efetivamente a necessidade de entrar na terra ou uma suposta aptidão para o trabalho agropecuário que prevalecem no momento da seleção dos mutuários que comporão a associação.

O critério eliminatório do ingresso no programa é a adimplência financei-ra do candidato para acessar o empréstimo bancário. Se esta condição não for cumprida, o próprio agente financeiro exclui o candidato da possibilidade do negócio, logo, indiretamente o exclui também da possibilidade de associar-se, já que as associações são criadas exclusivamente para a compra da terra. O aval final da composição da associação é dado pelo agente financeiro, pelo órgão gestor e pelos respectivos conselhos. Dizendo de outra forma: o reconhecimen-to da associação se dá por sua capacidade de ingressar no mercado financeiro e não por sua competência política, produtiva ou a necessidade de acesso a terra dos seus membros.

Outro questionamento sobre a tese do controle social diz respeito aos agentes que impulsionam a criação das associações. Ora, se o controle social fosse algo central na participação das entidades do sistema Contag, certamente, este sairia na dianteira da mobilização e preparação de sua base para ingresso no Progra-ma. Contudo, estudo anterior (Ramos Filho, 2008a) revelou que em Sergipe,



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dentre as áreas visitadas, a menor parte das associações de mutuários foi criada em função da atuação do Sindicato de Trabalhadores Rurais ou da Fetase. A fundação das associações tem sido articulada e estimulada, com maior frequên-cia, por atores políticos como líderes comunitários locais (que podem conver-ter-se em vereadores com apoio das respectivas associações) e por atuação de corretores fundiários que atentem aos interesses dos fazendeiros.

Em geral, no primeiro caso, ou seja, quando criadas por lideranças comuni-tárias, a criação ocorre no interior de outra associação pré-existente, que, geral-mente, mobiliza as famílias na comunidade de atuação. Quando o número de famílias, por algum problema, não atinge o quantitativo mínimo para comprar uma dada propriedade, os convites são estendidos para as comunidades dos po-voados adjacentes. É comum, nessa forma de mobilização, a formação de novas associações compostas por grande número de parentes e/ou relações de compa-drio. Esta composição pode ser potencial para o desenvolvimento das atividades no empreendimento.

A criação das associações também pode ser fomentada por agente externo a comunidade e ligado ao fazendeiro. Verifica-se que quando uma associação é criada por outra pré-existente, mesmo que haja um fortalecimento do persona-lismo dos respectivos presidentes, há uma menor possibilidade de intervenção dos agentes imobiliários que realizam a intermediação entre os fazendeiros inte-ressados em vender as terras e os trabalhadores rurais. Em ambas as origens, são realizadas reuniões com a Empresa do Desenvolvimento Sustentável de Sergipe (Pronese), cujo objetivo é a qualificação dos candidatos para o acesso aos crédi-tos. O conteúdo das reuniões realizadas pelos líderes comunitários, corretores fundiários ou gestores do programa é centrado nos procedimentos financeiro-burocráticos, necessários à qualificação das propostas e liberação dos financia-mentos. Não há reflexão sobre as condições materiais das famílias, sobre suas realidades, seus dilemas. Visa unicamente forjar nos trabalhadores uma decisão de ingresso no Programa. Estas são algumas das formas e relações que pode as-sumir o espaço da subalternidade.

Os gestores do programa podem promover, ainda, outros eventos voltados a difundir a concepção do programa, angariar apoios estruturantes que garan-tam a sua territorialização. Entre maio e junho de 2002, a Pronese realizou qua-tro seminários regionais para difundir a implantação e a execução do Crédito Fundiário no estado, em diferentes localidades a saber: em Salgado, na porção centro-sul do estado, Itabaiana, na zona do agreste; em Nossa Senhora da Gló-ria, cidade polarizadora do alto sertão sergipano e em Propriá, no vale do São Francisco. Participaram destes: lideranças de trabalhadores rurais, membros dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS) e se-cretários municipais de Agricultura do Estado de Sergipe (Nead, 2002).



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A distribuição dos eventos demonstra uma estratégia espacial e escalar bem pensada, de forma a ampliar a implantação do programa para diferentes mi-crorregiões de Sergipe. O público envolvido é formado por atores que dispõem de capacidade para propagar a proposta regionalmente, bem como por poten-ciais beneficiários, na medida em que os gestores públicos, as lideranças comu-nitárias, sindicatos, corretores fundiários e outros sujeitos despendem energia para a formação de grupos de famílias, criação de espaços voltados ao conven-cimento dos camponeses a concretizar uma operação de compra de terras pela RAM; estas ideias, primeiramente, se territorializam em um espaço cognitivo ao serem incorporados pelos camponeses que podem desencadear ações no sen-tido de ingresso no Crédito Fundiário.

Neste caso, tais ideias, aceitas pelo grupo, desencadeiam um conjunto de ações orientadas por atores externos, que se materializam na organização da associação destinada a acessar o financiamento bancário e comprar um frag-mento do território do capital, determinando, assim, a territorialização da con-trarreforma agrária de mercado, mediante a implantação dos empreendimen-tos. Passemos agora à análise dos conteúdos dos espaços de socialização política e processos de resistência e subordinação nos empreendimentos selecionados para este estudo.

O empreendimento de Combate à Pobreza Rural, considerado referência para os diferentes atores envolvidos na execução do crédito fundiário, situa-se no município de Salgado, agreste sergipano. O contrato de aquisição da Fazen-da São José das Quebradas, de 151 ha, foi firmado no dia 10 de abril de 2003 entre o agente financeiro e as 25 famílias que compõe a Associação Comunitá-ria dos Trabalhadores Rurais de Salgado. Estas famílias são originárias de dife-rentes localidades do município de Salgado, dentre as quais se destacam a sede municipal e o povoado Tombo.

As famílias pioneiras afirmam que foram convidadas pela então presidente da Associação dos Moradores de Salgado (Asdeco) para participar das primeiras reu-niões com vistas à formação de uma nova Associação para comprar a terra. Das primeiras reuniões a notícia correu de boca em boca, de povoado em povoa do, através dos 200 sócios da Asdeco, entre os parentes, amigos, vizinhos etc. A notícia que chegava sobre a possibilidade de tomar dinheiro do governo para comprar ter-ra ganhava mais credibilidade quando se sabia que quem estava a frente era a refe-rida líder comunitária, uma vez que ela já era conhecida por ter conseguido acessar outras verbas públicas para construção de casas populares, banheiros etc. Detinha significativo conhecimento sobre os direitos e formas de acessá-los, bem como cer-ta desenvoltura na elaboração dos projetos. A líder informou-se do lançamento do Programa Nacional de Crédito Fundiário por meio do programa de rádio oficial A Voz do Brasil, veiculado em cadeia nacional todos dos dias às 19 horas.



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Ciente desta informação pôs-se a articular reuniões e assembleias com os cam-poneses com vistas a formar uma associação. Neste ínterim, buscava angariar in-formações no governo do estado, e, em Brasília, junto ao governo federal, logran-do êxito apenas com este último, já que na época o PNCF ainda se encontrava em gestação em Sergipe. Pouco tempo depois o governo de Sergipe lançaria o Progra-ma no estado. De acordo com os relatos dos entrevistados, nas reuniões se tratava principalmente de esclarecimentos sobre os objetivos do programa, as normas de execução, as condições contratuais e critérios de seleção dos mutuários.

As reuniões passaram a ocorrer semanalmente e tinham por objetivo inicial formar uma associação com 35 pessoas para comprar uma fazenda no municí-pio. Como havia um grande número de pretendentes que estavam endividados e com nome retido nas instituições financeiras foram excluídos de imediato da possibilidade de compor a nova organização. Aprovou-se apenas 25 candida-tos e suas respectivas famílias, alguns dos quais apresentam laços de parentesco entre si, o que neste caso demonstra ser uma potencialidade para o desenvolvi-mento da área, sobretudo pelas formas de realização do trabalho comunitário entre si conforme debaterei mais adiante. A articuladora do grupo declarou que conduzia as reuniões fundamentada no seguinte raciocínio:

(...) aí consegui trazer eles pra sociação, pra Asdeco. Eu era presidente na época, comecei a esclarecer, né, na cabeça deles, o que era a cidadania, mudá de vida, aquelas pessoas ter opor-tunidade de ter um pedacinho de terra, de ter sua casa digna, invés de tá na roça dos outro trabalhando, dando rendimento pros outro, que ele poderia tá na dele. Até que teve pessoas que no final entrou, pessoas que não precisava nem ter entrado, que devia tê passado um, mas aí a gente não teve como fazer mais, porquê na verdade entrou pessoas ali que realmente não é trabalhador rural, só dá dor de cabeça a Zé Domingo, mas, infelizmente, existe o bom e existe o ruim (...) (Entrevista, P., 2007).

Decorrido um conjunto de reuniões que desembocaram na seleção dos sujeitos desejosos de comprar terras e que se enquadrasse no perfil do pro-grama, juntamente à formação da Associação, seu registro e validação pelos conselhos municipais e estudais de desenvolvimento rural, Pronese e Fe-tase, as famílias puseram-se em busca de um imóvel e encontraram um de dimensões e localização no interesse dos mutuários: a Fazenda São José das Quebradas, estava à venda no jornal de classificados e com placa de venda apostada na cancela.

As famílias participaram diretamente da escolha da área realizando a vis-toria do imóvel. Na medida em que caminhavam sobre a terra que nunca possuíram, sentiam a aproximação do sonho de todas suas vidas. Todos os trâmites até então eram favoráveis: a Associação havia sido aprovada pelas câmaras gestoras e o imóvel apresentava, de acordo com os laudos técnicos, uma condição de excelência. No momento das negociações sobre o valor a ser pago, os camponeses afirmam que se limitaram a acompanhar os acertos que



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foram conduzidos diretamente pela Pronese junto ao fazendeiro, ainda que nesta época a coordenação do processo estivesse a cabo da líder comunitária da Asdeco. Contudo, no momento de efetivação do negócio, os depoimentos indicam para a existência de grande endividamento do proprietário junto ao Banco do Brasil, condição que levou ao emperramento da liberação da certi-dão negativa de débitos do imóvel.

Diante do impasse que poderia levá-lo a leilão e a ansiedade das famílias de entrar na terra, os candidatos a mutuários, sob a organização da líder comunitá-ria, conseguiram um veículo utilitário e dirigiram-se para a capital para exercer pressão junto a Pronese, Banco do Nordeste, Banco do Brasil, e buscar apoio da Fetase para conseguir a liberação dos recursos para a compra do imóvel. Aqui se faz necessário, ao menos, duas inferências: verifique-se que o dimensionamento do espaço da subalternidade destinado à formação da associação que compraria terras no Programa foi realizado por um ator político local, em detrimento do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Salgado (STR) que, segundo a comu-nidade, não acreditava, a princípio, na possibilidade de concretização da im-plantação do projeto. De modo que a aproximação da Fetase e do STR ocorre, posteriormente à organização do grupo, com vistas a sanar uma dificuldade normativa do programa.

Outra inferência diz respeito a que, embora não tenha havido uma discussão profunda sobre os riscos do empreendimento, ou mesmo uma reflexão sobre as realidades das famílias, a ansiedade para ingresso na terra, e neste caso, um imó-vel localizado às margens da rodovia SE 216 (que liga à BR-101 Sul sergipana ao Sertão Ocidental), com disponibilidade de água para produção o ano inteiro e condições de solo satisfatórias, conduziu, ainda no momento de organização do grupo, à manifestação da primeira forma de luta dos trabalhadores. Obviamente, reconheço que a ação dos trabalhadores, ao pressionar os gestores do programa para a liberação dos créditos, atende diretamente os interesses do capital rentista que almejava uma solução privilegiada para sua condição de endividamento. Por outro lado, esta ação dos camponeses demonstra um potencial para organização política para reivindicar direitos. O conflito instituído entre os camponeses can-didatos a mutuários e o órgão gestor do Programa foi desencadeado pelo próprio capital em sua forma rentista (desejoso de vender suas terras) e financeiro. Apesar de dimensionar-se uma luta política, o fundamento desta reside sobre o controle do capital e, portanto, pode ser caracterizado com um espaço da subalternidade e não deve ser confundido com o dimensionamento de um espaço de luta e re-sistência, cujo fundamento é a emancipação.

Após um acordo que possibilitou ao Banco do Brasil receber do agente fi-nanceiro do PNCF (o Banco do Nordeste do Brasil) os créditos liberados para transação de compra e venda da terra, referente ao montante da dívida do pro-



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prietário, a contratação do projeto foi liberada. Com a implantação do proje-to a líder comunitária desvinculou-se da coordenação dos trabalhos junto aos mutuários e entregou a condução da organização da comunidade ao presidente eleito. Faz-se mister destacar que os associados criaram no corpo diretivo da en-tidade o cargo de coordenação destinado a líder, além de homenageá-la com seu nome em negrito na placa de fundação do empreendimento .

Ademais, angariou significativo aprendizado com a implantação deste em-preendimento possibilitando uma agilidade para encaminhamento de projetos para a compra de lotes urbanos e construção de casas populares destinados a pobres, e, mais recentemente, sua atuação na mobilização de outros campo-neses pobres para entrarem na linha de financiamento Consolidação da Agri-cultura Familiar (CAF). A líder angariou, ainda, junto aos atingidos profundo respeito e consideração. Pouco depois da implantação do primeiro projeto por ela fomentado, nas eleições municipais de 2004 obteve respaldo da comunida-de e conquistou o pleito para ocupar uma cadeira na Câmara de Vereadores do município de Salgado, pelo Partido Republicano. De acordo com relatos dos camponeses o referido mandato tem sido conduzido com princípios populares e ligado à comunidade.

O empreendimento foi implantado rapidamente, inaugurado com efeitos midiáticos pelo então Ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Ros-seto. Foram construídas 25 unidades habitacionais dispostas linearmente ao longo de uma estrada principal, situadas na entrada dos lotes de moradia de 0,5 hectares de dimensão, formando uma agrovila. A cada família destinou-se um lote produtivo cuja área é 4 hectares. Definiu-se tecnicamente uma área para implantação da roça comunitária com 7 hectares, sendo 20 hectares des-tinados à área de preservação permanente prevista em lei (Figuras 6 e 7). Não foi possível precisar as respectivas benfeitorias advindas do crédito para ins-talação de infraestrutura comunitária e crédito agrícola, mas foi implantado, também, um sistema de irrigação nos lotes de moradia e roça comunitária. O ordenamento territorial foi definido unilateralmente pelos técnicos contrata-dos para elaborar o projeto.

Foram implantados, também, projetos produtivos ligados ao cultivo de milho, mandioca, compra de animal de tração e a respectiva carroça, im-plantação de galinheiro nos lotes familiares etc. Várias foram as dificuldades encontradas no processo de implantação dos projetos produtivos como: a li-beração de recursos nos momentos impróprios para realização do plantio; a insuficiência e incompletude da política de assistência técnica, que inviabiliza um acompanhamento mais minucioso para os neófitos em um dado sistema agrícola e/ou na atividade agropecuária, uma vez que há mutuários originá-rios da cidade.



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figurA 6 – sergiPe – simão diAs: AgrovilA com hABitAções e lotes destinAdos Aos PomAres fAmiliAres

irrigAdos

(Foto: Eraldo da Silva Ramos Filho, agosto de 2005)

figurA 7 – sergiPe – simão diAs: AgrovilA e mArco referenciAl do movimento socioterritoriAl

(Foto: Eraldo da Silva Ramos Filho, agosto de 2005)

Diante das limitações e dificuldades, alguns projetos produtivos, apesar de terem sido implantados, não lograram êxito e foram extintos. As granjas domés-ticas, por exemplo, amargaram o extermínio dos frangos por uma doença que os mutuários não conseguiram controlar por falta, possivelmente, de orientação veterinária e, atualmente, na quase totalidade dos lares, tem sua função alterada para armazenamento de ferramentas, implementos e/ou insumos agrícolas.

A figura 6 possibilita uma visão panorâmica da agrovila. Destaque para as habitações com os respectivos lotes de moradia, circundados por uma agricul-



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tura de subsistência onde predomina a mandioca e a fruticultura de mamão e maracujá, desenvolvidos com irrigação, cuja água é capturada no riacho que corta o imóvel, no limite ao fundo. Ladeando cada moradia é possível, também, identificar as granjas familiares implantadas a partir de 2005. Na porção direita da fotografia se observa o limite do imóvel com a rodovia estadual SE 216. A proximidade desta facilitou o abastecimento de água encanada e a implantação da eletrificação, cuja estrutura pode ser visualizada na figura 7, que registra tam-bém o padrão de arruamento da agrovila e marcos referenciais do movimento socioterritorial ao qual a Associação é vinculada. No canto esquerdo inferior, embora pouco visível, encontra-se a área destinada à roça comunitária. A foto-grafia foi tirada de um platô mais elevado onde se localizam os lotes produtivos individuais.

O ordenamento territorial do empreendimento foi definido previamente no espaço jurídico-instituicional, ou seja, ainda no momento de definição das diretrizes previstas no manual de operações do PNCF. Destina-se uma área es-pecífica para o desenvolvimento de um sistema de roça comunitária (neste caso 7 hectares), cuja renda que porventura venha a ser produzida já tem sua desti-nação previamente definida: a amortização das anuidades referentes a compra da terra. Apesar das famílias concordarem com o projeto antes de entrarem no negócio, o espaço de socialização política dimensionado no processo de forma-ção da entidade não tratou com o devido apreço as formas e potencialidades da prática do associativismo, dificultando o engajamento do conjunto dos mutuá-rios no momento da implantação do empreendimento.

Logo nos primórdios do processo de implantação do empreendimento, os depoimentos indicam que o então presidente, apesar de contar com apoio da comunidade e trabalho de boa parte dos mutuários, não agiu com transparência no que tange à prestação de contas dos rendimentos advindos da roça comu-nitária. Acredita-se que o mesmo não dispunha de conhecimento suficiente de gestão deste microempreendimento, gerando o fracasso do trabalho e disto de-correu o descontentamento dos mais críticos frente ao método de gestão, levan-do à desativação da área entre 2006/2007, aproximadamente. Evidentemente, não gera a renda almejada para quitação da primeira anuidade, que venceu no ano de 2007.

Os relatos revelam ainda que a localização destinada à roça comunitária foi definida previamente a partir dos laudos técnicos do projeto, portanto, antes da entrada na terra e início das atividades produtivas. No dia-a-dia do trabalho na agricultura, as famílias constataram que outra área do próprio empreendimen-to era mais propícia para os cultivos com esta finalidade. Após um conjunto de tentativas com mandioca, maracujá, banana constatou-se, a partir do baixo ren-dimento dos cultivos, a fragilidade dos solos nesta porção do empreendimento.



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Em 2007, apenas três famílias, sob a coordenação da então direção da Associa-ção, tentavam reativar este sistema. O raciocínio fundamenta-se no desenvolvi-mento de um cultivo que viabilizasse uma renda compatível com a manutenção do empreendimento e geração da renda suficiente ao custeio das amortizações. Nesta perspectiva, substituíram-se os cultivos temporários por um cultivo per-manente com a implantação de um pomar de laranja. A intencionalidade era recuperar a credibilidade das famílias e convencê-las a destinar ao menos um dia de serviços na roça comunitária.

Durante o primeiro ano de implantação do projeto, as famílias relataram a necessidade de alguns integrantes do grupo doméstico se assalariassem na condição de trabalhadores diaristas nas fazendas do entorno, tendo em vista a inexistência de uma produção que gerasse ao menos a renda necessária ao sustento da família e a ausência de recursos públicos destinados à manutenção das mesmas nesta fase inicial. Um grupo de três famílias composta por jovens camponeses que têm laços de parentesco entre si, apresentam maior domínio da prática agropecuária, e ao mesmo tempo em que realizavam troca de dias de serviço entre si, mantinham nesta época áreas cultivadas nas terras dos pais, condições que lhes possibilitaram rapidamente uma visível diferenciação so-cioeconômica, quando comparados aos demais mutuários. Após dois anos de implantação do projeto, nenhuma família relatou a necessidade de assalariar-se fora dos lotes produtivos, uma vez que já era possível retirar a subsistência do próprio empreendimento.

As três famílias mencionadas introduziram na comunidade a prática da fru-ticultura irrigada de mamão, banana e maracujá, inclusive com a produção das próprias mudas (Figuras 8 e 9). De acordo com os interesses dos demais mutuá-rios, os primeiros realizavam a transferência dos seus conhecimentos sobre este sistema produtivo. Contudo, verifica-se que a principal forma de organização para o trabalho na comunidade é o desenvolvimento das roças familiares tra-balhadas individualmente, na qual cada uma define reservadamente o destino da produção, onde e como comercializar. Nas andanças pelo empreendimen-to salta-se aos olhos um colorido mosaico formado por lotes familiares e lotes de moradia cultivados com pimenta, cheiro-verde, mamão, banana, maracujá mandioca, milho, feijão etc.

Os irmãos camponeses afirmavam que preferiam destinar a produção de frutas ao Ceasa, feiras livres em Salgado e na capital sergipana, sendo a produ-ção levada por um deles em transporte fretado para este fim, com o intuito de reter maior renda que na negociação com os atravessadores. Por sua vez, ouvi depoimentos enfáticos sobre a necessidade de implantação de uma casa de fari-nha comunitária na localidade, uma vez que esta é a maior produção da área e a inexistência deste equipamento os deixava a mercê dos atravessadores.



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figurA 8 – sergiPe – sAlgAdo: fruticulturA irrigAdA no lote fAmiliAr

(Foto: Eraldo da Silva Ramos Filho, março de 2005)

figurA 9 – sergiPe – sAlgAdo: Produção de mudAs PArA fruticulturA irrigAdA Ao lAdo dA morAdiA

(Foto: Eraldo da Silva Ramos Filho, março de 2005)

Durante os trabalhos de campo da pesquisa da Rede Terra de Pesquisa Po-pular, foi possível constatar que as famílias seguiam, permanentemente, um movimento de resistência e subordinação, conforme os relatos descritos aci-ma. Talvez o exemplo mais emblemático disso tenha sido a adesão de número significativo de mutuários ao cultivo de tabaco, produto tradicional da região juntamente com a produção de cítricos. Na ocasião, foi declarado que a comer-cialização do primeiro produto e seu preço eram controlados por três grupos:



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a Empresa Maratá18, o Grupo Coringa de Arapiraca (AL), e pelo Grupo Rocha (pertencente ao ex-prefeito do município vizinho, Lagarto). Segundo os agri-cultores, considerando os elevados custos de produção de fumo para a confec-ção de cigarros feitos à mão e a necessidade de grande quantidade de mão de obra, o preço pago pelas três empresas – R$ 3,90 – estava muito abaixo dos R$ 8,00 a R$ 10,00 considerados justos.

Os baixos preços pagos pelas corporações industriais e a exigência de enor-me volume de braços necessários para o cumprimento dos contratos impunha uma condição aos agricultores que poderia levar à especialização da produção desenvolvida no empreendimento, sem o acompanhamento de uma elevação na rentabilidade monetária, além de consolidar o aprisionamento dos campo-neses às indústrias. Diante desta avaliação, as famílias foram aos poucos elimi-nando a produção de tabaco e, a fim de superar a possibilidade de ampliar a de-pendência de um único cultivo, frente às expectativas de obtenção de melhores preços no mercado e uma maior regularidade na produção, parte dos campo-neses, em particular os mais capitalizados, introduziram pomares de laranja nos lotes produtivos familiares. A figura 10 abaixo registra parte de um lote com a introdução dos pomares de laranja e, ao fundo, a última colheita do fumo.

figurA 10 – sergiPe – sAlgAdo: introdução de lArAnjAis e Ao fundo A Produção de tABAco


18 O Grupo José Augusto Vieira, também conhecido como Grupo Maratá, nasceu na década de 1970, quando seu fundador, José Augusto Vieira, dedicava-se à comercialização de fumo, produzido nos estados de Sergipe e Alagoas. Ampliando sua atuação, ainda nesta década, dedicou-se à agropecuária e deu os primeiros passos no ramo da torrefação de café. Hoje, o Grupo José Augusto Vieira é um conglomerado de empresas de sucesso, que abrange desde o comércio de café (situa-se entre os maiores torrefadores do Brasil, segundo o ranking da Abic), fumo, sucos naturais concentrados, aguardentes, agropecuária, fábrica de plásticos, até automóveis. Atuan do também no âmbito social, o grupo mantém a Fundação José Augusto Vieira, a qual recebe crianças carentes de Lagarto e adjacências, proporcionando-lhes educação, saúde e iniciação à profissionalização. Disponível em: <http://linux.alfamaweb.com.br/marata/new/empresa.php>. Acesso: 15 abr. 2008.



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Apesar do visível progresso no acesso dos mutuários a bens de consumo, que podem ser encontrados nos lares, tais como aparelhos televisores e de som, liquidificadores, ferros elétricos etc., em 20 de agosto de 2007 foi rea-lizada uma assembleia dos mutuários com a presença do assessor do Crédito Fundiário ligado à Fetase, o presidente do STR de Salgado e o Diretor do Crédito Fundiário no estado. Nesta, identificou-se certa desarticulação das famílias para o pagamento da primeira anuidade junto ao Banco. Poucos dias haviam se passado da data de pagamento e alguns poucos mutuários, que dis-punham do montante referente à sua parte realizaram a entrega do dinheiro ao banco individualmente. Outros tantos, na reunião, resmungavam as con-dições de pagamento. A partir dos esclarecimentos realizados pelas autorida-des, sobre as consequências pela não quitação do negócio, a representação da Federação defendeu com veemência a obrigação de realizar os pagamentos para permanência no empreendimento. Não havendo espaço para questiona-mentos a respeito, apenas acordou-se a realização de uma cota entre os asso-ciados para viabilizar o pagamento da anuidade de um mutuário sexagenário que tinha no momento sua esposa enferma. Este episódio demonstra que há um alinhamento da direção da Associação com a Fetase e PNCF no tocante à quitação das amortizações pelos mutuários, mesmo que este feito perpasse um grande sacrifício para as famílias que conseguiram produzir menor valor monetário no empreendimento.

Outro empreendimento estudado, ligado à Fetase, foi contratado pela Asso-ciação de Desenvolvimento dos Pequenos Produtores Rurais da Comunidade Senhor do Bonfim, fundada exclusivamente para comprar terras pelo Crédito Fundiário. As 29 famílias camponesas concretizaram, em 08 de abril de 2003, a compra da Fazenda Senhor do Bonfim, situada no município de Porto da Folha, semiárido sergipano, cuja área e valor pagos são, respectivamente, 332 hectares e R$ 959 mil, dos quais R$ 304.400,00 destinaram-se ao pagamento das terras e R$ 654.600,00 aos investimentos comunitários. Um preço abaixo da média praticada na microrregião do Sertão do São Francisco, que era de R$ 1.650,00/hectare, de acordo com a planilha do preço da terra nua aprovada pelo Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural e praticada pelo Incra em 2003. No caso da referida fazenda o hectare foi comercializado o valor de R$ 945,34.

Segundo os relatos da comunidade, nas visitas que realizamos em diferen-tes momentos, os mutuários pioneiros da Associação residiam anteriormente à entrada no empreendimento, por toda a vida, no povoado Lagoa do Roçado, situa do no município de Monte Alegre de Sergipe. As famílias trabalhavam como jornaleiras nas fazendas da região ou arrendavam terras para produzir uma roça de subsistência e um pequeno rebanho, condição que perpassava a incerteza de ter acesso as terras na safra seguinte, de acordo com os interesses



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dos proprietários. No intuito de superar a condição de incerteza, subordinação e pobreza, a Associação dos Moradores do povoado conseguiu acessar créditos públicos e adquiriu um trator. Como a região passava pela intensificação da me-canização do campo que eliminava vorazmente os postos de trabalho, as famí-lias decidiram, sob a influência do líder comunitário, ter a sua própria máquina para prestar serviços para os fazendeiros da região a fim de gerar renda para as mesmas. A máquina entrou em operação em regime de contrato de horas de serviço pelos proprietários da região, mas, obviamente, que contribuiu para eliminação dos postos de trabalho que atendiam periodicamente estas e outras famílias, agravando, portanto, sua situação.

Pouco tempo após esta situação, o tal líder comunitário tomou conheci-mento do PNCF, assim como o caso relatado anteriormente, pelo programa de rádio A Voz do Brasil, e viu uma possibilidade concreta de superar as difi-culdades vividas por parte da comunidade. De pronto, procurou informar-se sobre os procedimentos e convocou os gestores do programa em Sergipe para reunir-se com a comunidade. Neste contexto, dimensionou-se o espaço da su-balternidade pela iniciativa da própria liderança comunitária e reali zação das reuniões por técnicos da Empresa de Desenvolvimento Sustentável do Estado de Sergipe (Pronese), cujo conteúdo versou sobre os procedimentos necessários para fundar uma nova Associação destinada à compra de terras, bem como as regras do programa.

Após um conjunto de reuniões e diante da possibilidade de adquirir a tão sonhada terra de trabalho, as famílias puseram-se em busca de um imóvel para comprar. Encontraram a Fazenda Senhor do Bonfim e, ao visitá-la, fo-ram acometidos de grande ansiedade para concretizar rapidamente o negó-cio, antes que algo desse ao contrário daquela possibilidade de realização do sonho de toda uma vida. Visitaram a propriedade e avaliaram que as condi-ções de produção eram ótimas para reprodução das suas vidas com dignida-de. Porém, neste momento viveram um grande impasse. O preço estipulado pelo fazendeiro na negociação se apresentava muito elevado. Efetivamente, o preço encontrava-se abaixo da tabela do mercado de terras vigente na região, contudo, como há um teto de recursos por famílias, o quantitativo de famílias reunido na Associação era insuficiente para comprar o imóvel e construir as benfeitorias comunitárias.

Sob o comando direto do líder comunitário do povoado Lagoa do Roçado, aglutinaram-se 29 famílias, quantitativo suficiente para angariar o montante de recursos suficientes para compra do imóvel e implantação do empreendi-mento. Por sua vez, os órgãos gestores do programa se opuseram, inicialmen-te, à operação, tendo em vista as condições naturais e a dimensão do imóvel para número tão elevado de famílias. Ou seja, nessa área a média por família



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girava em torno de 11 hectares (dimensão esta sem considerar a área de reser-va ambiental, agrovila, estradas e caminhos), enquanto que o módulo fiscal praticado na região é de 70 hectares.

As famílias se organizaram e passaram a exercer pressão sobre a Pronese e Fetase a fim de obter a liberação da área. Ao final, aos trabalhadores alcançaram a aprovação da Pronese e da Unidade Técnica Estadual. Este processo é emble-mático na caracterização do conteúdo do espaço de socialização política dimen-sionado no contexto da contrarreforma agrária de mercado. Diante das regras definidas no espaço jurídico-institucional, o conteúdo do espaço da subalterni-dade vai além das meras reuniões que convencem os camponeses que a compra de terras pelo programa é a melhor saída para transformar suas vidas. Os agri-cultores pobres ofuscados pela falsa possibilidade de superação esquecem-se da experiência adquirida em anos de trabalho e organizam-se politicamente para obter financiamentos em circunstâncias impróprias à sua necessidade de repro-dução. O mais grave é que os gestores do programa encarregados da avaliação de viabilidade, supervisão das áreas e emissão de posicionamento sobre a viabi-lidade dos projetos cederam à pressão dos trabalhadores, aprovando a concre-tização de um negócio em condições de explícita desvantagem e inviabilidade para os trabalhadores.

Ora, como se trata de uma operação imobiliária sob a tutela do Estado e com aval do movimento sindical, na qual o proprietário recebe seu pagamento à vista e em boas condições de remuneração, não é exagero de nossa parte inferir que esta operação trata-se de um grande absurdo, uma vez que o Estado aprova uma operação mercantil de combate a pobreza que perpassa explícito processo de minifundização!

A partir da contração do financiamento, iniciou-se o processo de implan-tação do empreendimento com a construção de 29 casas, inseridas em lotes de moradia, dispostos linearmente, formando uma agrovila. Estava prevista ainda a implantação de cercas internas nos lotes produtivos e de moradia, a refor-ma do curral já existente na propriedade e a escavação de uma aguada. As fa-mílias conseguiram acessar, cada uma, R$ 9 mil por meio do crédito agrícola Pronaf-A, cujo recurso estaria destinado à aquisição de algumas cabeças de re-banhos bovino e ovinos e seus respectivos reprodutores, além da construção de um açude comunitário e outro menor em cada lote familiar, bem como o plan-tio de capim e palma destinados a forragem, cuja utilização estaria disponível entre 2008/2009. O empreendimento possuía, ainda, uma área comunitária conforme previsão do manual de operações do PNCF (na qual implantou-se o cultivo de palma forrageira - Figura 11), reserva ambiental de preservação per-manente e abastecimento de água potável encanada, para uso doméstico, forne-cida pela Companhia Estadual de Saneamento (Deso).



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figurA 11 – sergiPe – Porto dA folhA: áreA coletivA com cultivo de PAlmA forrAgeirA


O empreendimento situa-se no sertão semiárido, zona caracterizada pelo bai-xo regime pluviométrico e irregularidade na ocorrência das precipitações, portan-to, é marcante a dependência da ocorrência de chuvas para o acesso à água para realização das atividades produtivas, sejam elas ligadas ao cultivo de alimentos ou à criação de animais. Esta condição se constitui em um dos limites entre o suces-so ou o fracasso do empreendimento. O próprio técnico agrícola, que fiscalizou a implantação dos investimentos, declarou que a viabilidade do empreendimento estava condicionada à existência de chuvas. Obviamente que um empreendimen-to de combate à pobreza, implantado em zona semiárida e dependente da existên-cia de chuvas para lograr êxito, culminará em situação de fracasso.

Embora o açude comunitário tenha sido concluído (Figura 12), a comu-nidade relatou que a empresa contratada recebeu o repasse dos recursos, mas não realizou os serviços conforme previsto, restringindo a segurança hídrica das famílias. Há relatos também da não implantação das cercas internas dos lotes familiares e dos lotes produtivos. Os rebanhos foram adquiridos antes mesmo da realização dos referidos cercamentos e da disponibilidade de pastos e cultivos forrageiros desenvolvidos e suficientes para o rebanho. Decorreu desta situação um conjunto de problemas: o gado cioso por alimentos (e água) passou a en-trar nos lotes produtivos familiares, nos lotes de moradia, onde se iniciava uma agricultura de autoconsumo, em busca de alimentos, além de entrar também na área coletiva semeada com o cultivo forrageiro previsto para ser utilizado so-mente na safra 2008/2009. Diante desta situação, as famílias que dispunham de algum recurso guardado ou bem que pudesse ser vendido, utilizaram-no para aquisição de ração e/ou palma para alimentar o rebanho.



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figurA 12 – sergiPe – Porto dA folhA: AsPectos do Açude coletivo nA éPocA dAs chuvAs


Este tipo de investimento era mais elevado que a própria remuneração pro-porcionada pela venda do leite aos laticínios da região. Diante desta situação, é muito comum o relato de mutuários que tiveram de vender um animal a fim de alimentar o restante do rebanho, até findar todo o plantel neste processo auto-fágico. Diante da inexistência das condições para alimentar o rebanho, os agri-cultores veem-se obrigados à utilização da área de reserva permanente de caa-tinga como pasto para alimentação destes (Figura 13). Este é um grande dilema para os camponeses que, vivenciando um cotidiano de escassez dos recursos ne-cessários à sua subsistência, e para a garantia das condições de sobrevivência do seu rebanho, tem que optar entre cumprir a legislação ambiental ou ver morrer de fome todos os animais. Isso tudo atesta que qualquer política, plano ou ação de preservação ambiental somente terá eficácia se o homem tiver suas necessida-des multidimensionais atendidas, conforme aportou Diegues (1996).

Em todas as visitas que realizei na área (2005, 2007 e 2010), encontrei recla-mações dos mutuários sobre a exiguidade dos lotes familiares e sua inviabilidade para garantir as condições de subsistência sequer do grupo doméstico, exigindo que um ou mais membros buscassem, permanentemente, trabalho assalariado nas fazendas do entorno, na maioria das vezes sem sucesso. Decorrente des-ta situação, encontrei a substituição de 12 mutuários. Enquanto os primeiros atingidos decidiam voltar às condições de sobrevivência anterior, isto é, apenas assalariando-se nas fazendas, outros sem terras pobres decidiam pela compra da dívida dos mutuários como forma de alimentar o sonho da transformação das suas realidades.



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figurA 13 – sergiPe – Porto dA folhA: reBAnho ovino PAstAndo nA reservA AmBientAl


Com aproximadamente quatro anos de implantação do empreendimento, a comunidade foi atendida pelo programa de eletrificação rural do governo fede-ral, o Luz para Todos, possibilitando maior comodidade às famílias que passa-ram a dispor nos seus lares de geladeira, televisor, aparelho de som, dentre ou-tros poucos equipamentos básicos. Outro serviço essencial que apresentou ao longo do tempo variação na forma de acesso é a educação. Durante a primeira visita (2005) as famílias relataram que as crianças nos níveis de educação infan-til e educação básica (primeiros ciclos), para acessar a escolarização, deveriam se deslocar para o Povoado Caatinga, cujo percurso dura aproximadamente duas horas a pé, e um pouco menos em lombo de animais.

Em face da longa distância a ser percorrida, ir para escola significava um grande esforço físico, principalmente para as crianças menores. Após reivindi-cações dos mutuários junto à prefeitura municipal de Porto da Folha, as famí-lias conquistaram do prefeito José Júlio Nunes de Santana Gomes (do Partido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB), mesmo que por um curto perío do, a instalação de um posto escolar na comunidade. Com vistas a garan-tir a implantação desta, as mães comprometeram-se a atuar voluntariamente no preparo diário da merenda escolar, cujos suprimentos eram fornecidos pela prefeitura municipal. Aqui reside uma estratégia de educação e de alimentação para as crianças menores, reduzindo a abrangência e impactos da fome e da ex-clusão. Contudo, com a alternância do poder político municipal, com a eleição do prefeito Manoel Gomes de Freitas (do Partido dos Trabalhadores – PT), o grupo escolar implantado na comunidade foi extinto, tendo as crianças que vol-tarem a deslocar-se para o Povoado Caatinga. Já aqueles que cursam entre o 3º



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e 4º ano do ensino fundamental tiveram, após reivindicação da comunidade, transporte fornecido pela prefeitura municipal para deslocar os estudantes até o povoado Lagoa do Rancho, apenas no período noturno.

Sobre a implantação e desativação da escola no empreendimento, o arti-culador da associação relatou que aquela foi desativada por discordâncias de orientação política entre este líder e o prefeito eleito. A situação evidencia que a comunidade tem, de alguma forma, uma potencialidade organizativa para reivindicar direitos, mas também demonstra a fragilidade na conquistas, cujo serviço de educação básica demonstra uma das faces da manifestação do clientelismo político. Outro serviço educacional que funcionou na comu-nidade durante o ano letivo 2006-2007 foi o Programa Brasil Alfabetizado, destinado aos jovens e adultos. Formou-se uma turma de 20 alunos e muitas foram as evasões, de modo que poucos foram os que efetivamente termina-ram o curso.

As condições limitadas ao desenvolvimento multidimensional do empreen-dimento conduzem as famílias à dependência das políticas compensatórias de transferência de renda, especificamente o Programa Bolsa Família. Nos de-poimentos as famílias afirmam que os parcos recursos acessados em espécie pelo referido programa são fundamentais para a garantia da compra de pro-dutos essenciais à alimentação familiar. Se por um lado as falas retratam a necessidade destes recursos, por outro lado enfatizam a preferência por polí-ticas estruturais que lhes possibilitassem as condições de trabalho adequadas com vistas a prover os seus próprios meios de subsistência com dignidade. As formas econômicas de manutenção das famílias dependem também de outras duas atividades: a prática de uma parca agricultura de autoconsumo que lhes provêm mandioca, milho, feijão, algumas hortaliças, ovos e esporadicamente carne de galinha; os recursos monetários são acessados através do assalaria-mento em fazendas do entorno.

Quando encontram serviços nas fazendas próximas, os trabalhadores po-dem auferir uma remuneração diária entre R$ 12 e R$ 15. O somatório das bolsas de transferência de renda (para aqueles que são contemplados) e os ga-nhos monetários obtidos com o assalariamento temporário nem sempre são suficientes para garantir a compra dos alimentos que não são produzidos nos lotes, além do pagamento dos custos mensais das taxas de água, luz elétrica e a contribuição associativa, cujo total gira por volta de R$ 115,00.

Os camponeses relataram que geralmente destinam dois dias para o trabalho nos lotes familiares, um dia na roça comunitária do empreendimento, de modo a deixar livre outros dois dias da semana para buscar e realizar trabalho assala-riado nas fazendas da região. A necessidade de buscar trabalho fora do empreen-dimento foi apresentada como inibidora da prática de trocas de dias de serviço



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entre os camponeses, mutirão, apesar de ser frequente a existência de laços de parentesco entre famílias, seja o grupo pioneiro que ainda resiste na localidade, seja o grupo que chegou recentemente.

No ano de 2006, quando se aproximava o vencimento da primeira anuidade do financiamento da terra e do crédito agrícola Pronaf-A, as famí-lias se reuniram para avaliar as condições de pagamento das dívidas. Cons-tataram o que já era esperado. Não havia condições econômicas para qui-tar os compromissos assumidos. Avaliaram, ainda, que para seguir com as atividades produtivas no empreendimento era fundamental a manutenção de possibilidade de acessar créditos agrícolas que garantissem investimentos nos sistemas agrícolas, neste caso, em particular, a pecuária bovina leiteira de baixo rendimento.

Para tanto, decidiram realizar a quitação das dívidas referentes ao Pronaf-A, mesmo que tivessem que utilizar os parcos recursos poupados, ou mesmo des-fazer-se de algum animal ou eletrodoméstico. Neste ínterim, as famílias orga-nizaram-se e exigiram uma reunião com os gestores do crédito fundiário em Sergipe, com a gerência do Banco do Nordeste do Brasil e a Fetase. Embora a reunião tenha ocorrido na comunidade, não foi encontrada uma solução e as famílias passaram a figurar no quadro de inadimplência do BNB, com os res-pectivos nomes registrados nos sistemas Cadin e Serasa.

Estas são as características centrais que consegui reunir sobre o processo de territorialização do campesinato neste empreendimento. É fundamental obser-var que a territorialização, neste caso, se dá apenas no plano físico-material, constituída pelo processo de compra do imóvel e estruturação do empreendi-mento com suas diversas partes constituintes (moradia, lotes de produção, re-serva ambiental, roça comunitária etc.).

Concomitantemente, verifica-se um processo de desterritorialização econô-mica, materializado na criação deste campesinato como um sujeito consumi-dor, mediante a oferta de créditos para compra do imóvel e sua conversão em mutuário do crédito fundiário, seguido do processo de endividamento por des-cumprimento do pagamento da anuidade; por conseguinte, o banimento do sujeito consumidor do seguimento dos créditos. A condição de endividamento provoca uma sensação de desilusão nos camponeses, cujo depoimento é emble-mático a esse respeito, conforme publicado em Ramos Filho (2008):

(...) Não tinha terra, era sem-terra. Hoje é com pouca terra e sem sossego, porque deve, né? (...) E com fome também! Porque você pega essas terra numa área semiárida que nem o sertão, sem chuva, pra você pagá é inviável! Não tem como você pagá! (...) Não se pode conseguí mais nada que seje reembolsave. A gente aqui já tá muito endividado, não tem meio de conseguí mais recurso porque a gente vai se endividar mais, então não vai ter con-dição de pagar.



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A flexiBilizAção PolÍticA do mst em sergiPe e A comPrA de terrAs Pelo crédito fundiário

O campo sergipano vem passando, nas últimas décadas, por um processo de in-tensificação da modernização da agricultura em cujo bojo encontra-se a amplia-ção da mecanização, utilização em larga escala de insumos e defensivos químicos, implantação de projetos de irrigação destinados aos grupos capitalistas urbanos e rurais, incentivos à implantação e modernização de agroindústrias em diferentes setores, dentre os quais se destaca mais recentemente a recuperação do setor açu-careiro, e realização de investimos na atualização do seu parque produtivo para a produção de álcool combustível. Este processo tem provocado o aumento do desemprego estrutural no campo, a exclusão e expulsão da terra, ampliação da po-breza e a miséria no campo e nas cidades. É preciso registrar que, muitas vezes, os estímulos a este modelo de desenvolvimento ocorrem através da ação estatal.

Frente à ampliação das desigualdades sociais decorrentes deste modelo de desenvolvimento capitalista no campo sergipano, forjam-se as condições neces-sárias para a organização e mobilização dos trabalhadores, bem como a criação de novos atores sociais que passam a contribuir com a implementação da luta social reivindicatória por direitos e contestatória do modelo de desenvolvimen-to hegemônico.

Neste contexto, surge em Sergipe, no ano de 1985, o Movimento dos Tra-balhadores Rurais Sem-Terra (MST). Os anos de gestação do MST em Sergi-pe foram marcados por uma atuação localizada no Alto Sertão Sergipano e no Baixo São Francisco, na qual se buscava realizar ações conjuntas com a Igreja Católica, por meio da Diocese de Propriá. Gradativamente, o MST vai se dis-tanciando da Diocese e construindo ocupações que culminam, em 1990, em seu processo de territorialização por todo o estado, o que lhe confere a condição de principal interlocutor dos sem-terra, bem como o maior e mais combativo movimento social.

Desde a sua gestação à territorialização, diferentes táticas de luta têm sido construídas, como a realização de caminhadas, marchas, ocupações de prédios públicos, acampamentos no campo e na cidade e, mais recentemente, a reali-zação de ações solidárias (a exemplo dos mutirões de distribuição de sangue e leite materno). Todavia, a tática que mais impacto tem causado na pressão pela reforma agrária é a ocupação de terras.

Com o advento das medidas provisórias de criminalização da luta pela terra, promulgadas pelo governo FHC, as ocupações cederam lugar às manifestações na frente dos imóveis reivindicados para reforma agrária, que seguem com a edificação de acampamentos rurais nas margens das rodovias, na entrada das fazendas ou em outros locais de visibilidade pública. Tais lutas, além da reforma



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agrária, reivindicam do Estado políticas e programas destinados ao desenvolvi-mento dos assentamentos como: créditos agrícolas, assistência técnica, garantia dos direitos sociais para as famílias etc.

A formação do MST, em Sergipe, não somente tem impulsionado as reivindi-cações dos pobres do campo, como tem gerado um processo político-pedagógico que contribui com as lutas de outras categorias da classe trabalhadora, como pro-fessores da educação básica e superior, estudantes secundaristas e universitários, bancários, mineiros, sem-teto, mulheres camponesas, Movimento dos Pequenos Agricultores etc. Este processo pode se dar com a participação do MST nas mo-bilizações e protestos dos trabalhadores contra os aumentos dos preços dos trans-portes públicos urbanos, nas lutas por moradia nas cidades, e/ou contribuindo com o processo de fomento à organização de novos movimentos socioterritoriais, cujo exemplo emblemático é a formação do Movimento Organizado dos Traba-lhadores Urbanos (Motu). A intensidade e profundidade das lutas, sobretudo as ocorridas no campo, provocaram a reação das elites com a prática da violência, materializada nas perseguições, prisões de lideranças camponesas e assassinatos de trabalhadores, queima de barracos de famílias acampadas, conforme praticado di-versas vezes pelo ex-governador João Alves Filho (Figura 14).

figurA 14 – sergiPe: violênciA contrA A lutA PelA terrA, governo joão Alves filho – 2005

(Foto: Eraldo da Silva Ramos Filho. Fonte: Jornal da Cidade, PG B1/capa, n. 9325, 5/8/2005)

Foi somente no governo Albano Franco que se adotou na segurança públi-ca estadual uma postura de negociação com os movimentos socioterritoriais do campo e da cidade, a fim de evitar que os conflitos entre sem-terra e latifundiá-rios chegassem a situações mais violentas. Por outro lado, este mesmo governo,



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introduziu, em 2001, o instrumento fundiário de mercado com a criação do Banco da Terra. Foram implantados 208 empreendimentos mediante o finan-ciamento de mais de 4.682 hectares, para 576 famílias dos seguintes municípios e respectivos números de famílias atingidas: Simão Dias (53 famílias), Lagarto (327 famílias), Itaporanga D’Ajuda (6 famílias), Itabaiana (1 família), Campo do Brito (1 família), Malhador (2 famílias), Pacatuba (30 famílias), Nossa Se-nhora Aparecida (30 famílias), Nossa Senhora da Glória (15 famílias), Monte Alegre de Sergipe (30 famílias), Poço Redondo (60 famílias).

Neste processo, como evidenciado pelos números, destaca-se o município de Lagarto, localizado no Centro-sul do estado. A causa da rápida expansão do Banco da Terra neste município tem relação direta com dois fatos: a existência de propriedades rurais com finalidades meramente especulativas e a chegada do MST, que entre 1998 e 2001, realizou a ocupação de 6 latifúndios, com 1.320 famílias. Este cenário provocou o temor nos latifundiários que, diante da nova possibilidade de vender seus imóveis, trataram de articular uma rede de corre-tores fundiários que atuavam dimensionando espaços de subalternidade, confi-gurados no convencimento de camponeses pobres a tomar financiamentos do Banco da Terra, seja individualmente, seja de modo associado.

Outra região de Sergipe que vivenciou, na virada do século XX, a explosão das ocupações de terras foi o Alto Sertão Sergipano. Interessa-nos para este es-tudo o município de Poço Redondo, no qual, entre 1996 e 2001, foi realizada a ocupação de 12 latifúndios, envolvendo 1.432 famílias, a maioria destas coor-denada pelo MST. Contraditoriamente à intensificação da luta pela terra, as 60 famílias que adquiriram terras pelo Banco da Terra naquele município, estavam sob a influência desta organização.

Trata-se de um agrupamento de famílias residente no povoado Bonsucesso, ribeirinho do Rio São Francisco, município de Poço Redondo, distante apro-ximadamente 12 km da sede municipal. Esta comunidade é composta por aproximadamen te 300 famílias que, historicamente, vivem às margens do rio. Segundo um dos entrevistados, a localidade onde está edificado o povoado foi conhecida no passado como “cativeiro”, uma referência à condição de escravidão em que viveram os primeiros trabalhadores da antiga fazenda de mesmo nome do povoado. Com abolição da escravidão, os trabalhadores passaram a construir

(...) uma casa aqui, uma casa acolá, até que um prefeito daqui, não sei se foi o primeiro pre-feito..., Artur, se não me engano foi Artur, pegou essa área aqui e deu de mão aberta pra quem morava aqui na época, já em Bonsucesso. Até hoje Bonsucesso é registrada. Como, por exem-plo, esse terreno aí pra construir uma casa a gente não precisa da Prefeitura, pegar documen-to nenhum porque aqui é da comunidade. A terra que a gente tem aqui é da comunidade, a Prefeitura não tem registro nenhum de terra que seja dela (Entrevista Poço Redondo 01, Poço Redondo, 2009).



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Durante todo o século XX, a população dedicou-se às atividades da pesca ar-tesanal no rio São Francisco, atuaram como diaristas nas fazendas do entorno

(...) trabalhando na fazenda de Viana de Assis, que foi um ex-prefeito, também, de Aracaju. Trabalhava em outra fazenda aqui ne Alagoas chamada Pacu, que era de um proprietário de Palmeira dos Índio. Tinha a Cajueiro aqui também, o pessoal trabalhava lá. Nas fazendas (...) a gente arrancava toco, derribava as matas pra fazer os paus, pra fazer pasto pra eles, roçando, plantando palma. Em Viana de Assis foi onde a gente trabalhou mais. Lá só era desmatando pra ele viver de vender madeira pras padarias do Estado. No Cajueiro, era também desmatan-do, plantando capim, plantando palma, arrancando toco também (Entrevista Poço Redondo 01, Poço Redondo, 2009).

Paralelamente ao assalariamento, as famílias realizavam a pesca artesanal, mesmo nos períodos de maiores dificuldades em que não dispunham de re-cursos ao menos para a compra dos materiais de pesca, realizavam a pesca por terra. A memória do entrevistado recupera que, no final dos anos 1980, alguns integrantes do próprio povoado Bonsucesso realizaram a articulação entre as famílias para realizar a primeira ocupação da vizinha Fazenda Várzea, situação que foi narrada da seguinte forma:

Essa fazenda que a gente tá hoje ela não era dividida em vários dono, era de um dono só. Uma das vez as pessoas entraram nessa Fazenda (...) não foi aqui pertinho, era mais um pouquinho distante (...) as pessoas, umas das que tão aqui dentro entraram também lá, mas como não deu certo porquê a polícia bateu em cima, na época o governo aqui era, não deu apoio, nem a prefeitura também, ninguém deu apoio. Pra ser sincero, esse MST, nem o MST a gente tinha conhecimento. (...) Quem entrou com esse pessoal foi um rapaz aqui, é falecido já, Dionízio19. Ele foi quem fez esse movimento aqui, colocou o pessoal lá, ele era, fazia parte do Sindicato. Mas quase que já vinha já nascendo já o Movimento Sem-Terra, foi depois da Barra da On-ça20. (...) A polícia bateu em cima e o juiz decretou a ordem de prisão do pessoal que tava lá dentro. O pessoal sofreram! Eles andavam, caminhavam aqui quem nem cangaceiro. Dormia hoje aqui dentro mato, tá vendo essas catinga aí? Dormia no mato (...) Tinha um tio meu que tava dentro dessas terra, era todo mundo aqui. Aí pra atrevessar a estrada o que eles fazia? Eles botava uma pedra no meio da estrada. (...). Botava uma pedra no meio das estrada, pulava em cima daquela pedra, pra do meio da pedra pular no outro lado da estrada, pra não deixar rastro. E sempre eles fi-

19 Manoel Dionízio da Cruz foi dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Poço Redondo e importante líder das lutas camponesas no Alto Sertão Sergipano durante a década de 1980, com destaque para a ocupação da Fazenda Barra da Onça, em Poço Redondo.

20 O Projeto de Assentamento de Reforma Agrária Barra da Onça, localizado no município de Poço Redondo, resulta da desapropriação da fazenda de mesmo nome realizada em 27 de junho de 1986. A conquista das terras deste latifúndio resulta do processo de ocupação desencadeado no ano de 1985, por dezenas de famílias orga-nizadas pelos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de Poço Redondo, Porto da Folha, Nossa Senhora da Glória, com apoio da Diocese de Propriá e Comitê de apoio à luta dos trabalhadores rurais de Sergipe. Com um total de 6.261 hectares, até a atualidade, é o maior assentamento em área territorial já criado em Sergipe, benefician-do 211 famílias. Cf. Silva, Rosemiro Magno e Lopes, Eliano Sérgio Azevedo, 1996. Conflitos de terra e reforma agrária em Sergipe. Aracaju: Adufs. Lopes, Eliano Sérgio, 1989. A reforma agrária em Sergipe: estudo sobre a luta pela terra, condições de trabalho e vida dos assentados da Barra da Onça. Aracaju: mimeo.



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cava perto da estrada, né, no alto que tem por aí, pra conseguir se via algum movimento de carro de polícia. De certo jeito que eles desceram um pouquinho distante aqui, uns 2 ou 3 quilômetros. A noite eles estavam debaixo de uma quixabeira no beiço do rio, fora da água, né. Aí o pessoal se assustaram, né. A pessoa quando anda com medo qualquer coisa se assusta. O quê que eles fizeram? Tem um... o beiço do rio é cheio de calumbi, é um mato que ele é daqui da água mesmo, do beiço do rio. Até que ele protege muito a margem do rio ele segura muito a erosão da água. Mas que é cheio de espinho, tem muito aqui ainda. Eles passaram a noite com água aqui pelo pescoço, pra não sair. (...) Tinha um rapaz na época que era um pouco jovem, aí eles vieram aqui, mandou esse rapaz vim aqui, pediram uma canoinha, um barquinho daqueles pra botar eles do outro lado, em Alagoas. Repare o sofrimento que o pessoal passava com medo! Foram pra Alagoas, aí Durval Rodrigues Góes mandou um recado não mandou recado. Eles foram lá falar com Durval, que ele era amigo do governador para ver se ele conseguia. Ele disse: ‘Rapaz! A coisa tá feia pra vo-cês, e é ordem para vocês serem preso mesmo!’ Aí foi que os home endoidaram mesmo. Aí vol-taram pra caatinga. Isso foi mais de mês, dentro da caatinga! Quem tinha coragem ria, quem não tinha começava a chorar. Até que eles conseguiram através da justiça engavetar o processo deles. E a terra nada. Perderam! (Entrevista Poço Redondo 01, Poço Redondo, 2009).

Com o crescimento demográfico da comunidade ribeirinha, resultante da sucessão geracional, aqueles sujeitos mais jovens que decidiram não migrar para capital de Sergipe ou outros estados brasileiros, a exemplo do Rio de Janeiro, passaram a discutir uma saída para suas realidades. Novas famílias eram cons-tituídas e seguiam adensando as habitações dos pais de um dos cônjuges, além de permanecerem desprovidos de terras que lhes garantisse as condições de tra-balho, tendo que sujeitar-se aos mecanismos de assalariamento existentes na re-gião como forma de complemento econômico às atividades pesqueiras.

Nesta época, o então governador do estado, Albano Franco, esteve no po-voado Bonsucesso e, em discurso, prometeu que compraria a Fazenda Várzea localizada vizinho ao povoado. O tempo passou e a promessa não foi cum-prida. Com a explosão das lutas por terra em Sergipe, a partir da década de 1990, particularmente no Alto Sertão Sergipano e município de Poço Redon-do, parte destas famílias aproximaram-se do MST e iniciaram um diálogo para encontrar alternativas para que eles também pudessem entrar na terra. Com o auxílio da organização, dimensionaram espaços de socialização polí-tica, reunindo-se, refletindo coletivamente sobre suas realidades. Dialogaram com outros camponeses em luta nos acampamentos de sem-terra e visitaram outros que já a haviam conquistado e viviam em assentamentos de reforma agrária. Poucos meses depois, decidiram pelo dimensionamento do espaço de luta e resistência mediante a ocupação, por 64 famílias, deste imóvel. O local que anteriormente servira à exploração e humilhação das famílias pelo fazendeiro, convertia-se em uma trincheira de luta que reivindicava o imóvel para a reforma agrária. Sobre o conteúdo do espaço de socialização relatou-se o seguinte:



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O que eles discutia era o seguinte: o que podia acontecer de bom e o que podia acontecer de ruim. O que mais nóis discutia era força de vontade, a coragem pra lutar, um pedaço de chão que era o que mais a gente tinha vontade, como hoje a gente conseguimos. E casa que a gente não tinha, as pessoas não tinham, escola, essas coisas. Era o que a gente mais discutia era isso. Não deixamo, que a gente também ia sofrer, ia demorar, porquê essas coisa demorava mesmo (Entrevista Poço Redondo 01, Poço Redondo, 2009).

Dois meses após da edificação do acampamento, o proprietário obteve, no Judiciário, uma medida liminar de reintegração de posse, sendo as famílias des-pejadas da fazenda em litígio por ação da polícia militar, sendo as roças de arroz e milho plantadas pelas famílias destruídas por tratores. Porém, como habita-vam vizinho ao imóvel, sempre estavam na área reatualizando a luta pela terra, reconstruindo o acampamento e insistindo no desenvolvimento de cultivos na terra reivindicada.

Então passamos ai dentro em torno de um mês, dois meses, depois veio a polícia pediram para gente sair, retirar de vez, a gente saímos. Já tinha plantado essa área aqui, tinham plantado tudo, os trator vieram e passaram por cima mas, sem problema nenhum, ninguém foi brigar com a polícia. Só veio a ordem pra gente sair, a gente saiu. Se acampamos onde hoje é o fundo dessas casas. Tinha minha casa que ficava há 100 metros do barraco de lona, mas toda noite a gente dormia ali. E a polícia sempre vinha, sempre vinha, que a gente também não deixava de tá aí dentro mexendo em alguma coisa. Eles arracavam um pé de milho aqui, a gente plantava outro ali na frente. A polícia vinha de novo. Até que uma das vezes a ex-primeira dama do es-tado, que era Leonor Barreto Franco, ela veio aqui na casa que hoje é de um cunhado meu, de uma irmã minha, mora ali. Ela chegou lá dentro, a casa tava até em construção, ela disse que a partir daquele dia a polícia não viria mais aqui. E foi provado isso, a polícia não veio mais e daí pra cá comecemos as negociação, junto com o MST mesmo. Esse nunca nos abandonou! (Entrevista Poço Redondo 01, Poço Redondo, 2009).

Enquanto isso, o MST realizava as negociações e pressões junto aos órgãos competentes. Embora as famílias afirmem que, à época, a propriedade encon-trava-se abandonada, após os trâmites de vistoria se constatou que o imóvel não poderia ser desapropriado para fins de reforma agrária em virtude de apresentar dimensão inferior aos 15 módulos fiscais mínimos para a desapropriação por descumprimento da função social. Seguindo os relatos, ocorreu uma tática ar-dilosa do fazendeiro que tratou de fragmentar o imóvel, convertendo-o em duas propriedades de dimensões inferiores ao mínimo estabelecido para ingresso no programa de reforma agrária, mantendo uma em sua propriedade e outra des-tinada à sua filha.

Diante do impasse, restaram poucas alternativas às famílias: desistir da luta pela terra e acomodar-se na casa dos pais e parentes e seguir na condição de sem-terra; seguir na luta pela terra integrando-se aos acampamentos já realiza-dos em outras localidades ou mesmo buscar outro latifúndio para realizar nova ocupação. Contudo, a necessidade de transformar suas realidades mediante a entrada na terra de trabalho e obtenção de um espaço de moradia alimentava



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o sonho das famílias. Decidiram que o sonho deveria ser alcançado de modo a garantir sua permanência no local em que nasceram e cresceram. Buscavam a preservação das raízes deixadas pelos ancestrais. Almejava-se ampliar a exígua área territorial do povoado com a incorporação de terras agricultáveis que nun-ca haviam possuído até então. A decisão foi de negociar a compra dos dois imó-veis pelo Programa Banco da Terra. O MST, mesmo que contrariado nas suas diretrizes, acatou a decisão da comunidade e seguiu conferindo apoio ao grupo que manteve a ocupação da fazenda.

Passaram, então, à formação da associação de trabalhadores com vistas ao in-gresso no Banco da Terra. O MST auxiliou também neste processo, bem como na negociação do preço e compra das fazendas até o processo de implantação do empreendimento. Durante a fase de negociação da compra, descobriram que cada imóvel somente poderia ser comprado por uma associação composta por no máximo 30 famílias, criando novo impasse já que eram ao todo 64 famílias reivindicantes. As relações de parentesco e a vivência na luta pela terra contri-buíram para o fortalecimento da solidariedade entre as famílias.

Decidiram sobre o prosseguimento das negociações e fundação de dois agru-pamentos: a Associação Nossa Senhora do Rosário, com 32 membros, e a Co-lônia de Pescadores Z 10 de Poço Redondo, também com 32 membros. Após a aprovação destas pelo órgão gestor do programa realizaram a tomada de em-préstimos em nome de 60 famílias que se converteram em mutuárias. No mo-mento de implantação do projeto, demarcação dos lotes, construção das mora-dias etc., realizaram a divisão igualitária dos lotes e recursos acessados entre as 64 famílias que participaram da luta. Mesmo que as 4 famílias excedentes não tivessem nenhum tipo de contratualidade legal junto aos bancos, registraram em ata de reunião das Associações criadas que as famílias excedentes assumiriam os compromissos financeiros como um mutuário regular.

O caso das famílias do Povoado Bonsucesso comprando a Fazenda Várzea foi o primeiro envolvimento do MST de Sergipe com a compra de terras pelo Banco da Terra. A organização atuou nesta luta como mediadora junto à uma comuni-dade ribeirinha que demandava se (re)territorializar, e, esclarecida da situação e dilemas do referido programa, decidiram livremente pelo ingresso no programa de terras. Portanto, este caso não se configura como uma ação deliberada do MST de adesão à política fundiária neoliberal. Mesmo assim, a organização, até a atu-alidade, reconhece os mutuários daquela localidade como sua base no Banco da Terra. Por sua vez, os mutuários não se apresentam como membros do MST, mas reconhecem a importância da interlocução com este movimento socioterritorial nos momentos de necessidades.

Para as famílias, a possibilidade de entrar na terra tão sonhada, iniciar os plantios e obter suas casas para moradia gerou um grande anseio coleti-



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vo que bloqueou qualquer condição de avaliação sobre o negócio que esta-va sendo rea lizado. Os relatos indicam que a condição dos imóveis era de completo abandono, pois nem rebanhos havia no seu interior há tempos antes da ocupação. Mesmo que o MST tenha contribuído com o processo de negociação do preço da fazenda, a condição de venda já estava defini-da em uma articulação que perpassava o apoio político do governador do estado ao fazendeiro, no qual o primeiro buscava emplacar sua estratégia fundiária.

Diante desta conjuntura, o negócio foi firmado pelo valor de R$ 180.179,00 para cada imóvel que foram pagos a vista ao fazendeiro e sua filha. Estranha-mente, cada imóvel resultante da fragmentação da Fazenda Várzea foi vendido pelo mesmo valor, ainda que apresentassem áreas diferentes, respectivamente, 133 hectares e 297 hectares e nenhuma diferença situacional ou infraestrutu-ra que justificasse essa discrepância no valor de venda praticado. A questão do preço unificado de venda dos imóveis de áreas diferentes, pertencentes à mesma família e resultantes da fragmentação de uma única fazenda atestam o contro-le dos fazendeiros sobre o processo de negociação e definição dos preços a seu favor e em detrimento dos camponeses. Sobre o preço da terra, um mutuário posicionou-se com indignação: “...É caro! Porque essa pessoa na época quan-do que foi comprado, com certeza, até um pé de árvore se tinha aí dentro eles venderam pelo Banco da Terra. Foi caríssimo!” (Entrevista Poço Redondo 01, Poço Redondo, 2009).

Se por um lado a terra foi comprada por elevado preço, os investimentos nas benfeitorias comunitárias limitaram-se à ordem de R$ 7.776,96 para a Colô-nia de Pescadores Z 10, de Poço Redondo, e R$ 9 mil para a Associação Nossa Senhora do Rosário. Com este montante, as famílias deveriam realizar a im-plantação de 32 casas em cada associação, cercar as áreas de produção e iniciar os primeiros cultivos. Os valores repassados para a construção da infraestrutura comunitária representavam, respectivamente, 4,3% e 4,9% do valor pago pela terra diretamente fazendeiro, o que comprova que a prioridade na alocação de recursos do Banco da Terra é o repasse de dinheiro para os fazendeiros em de-trimento da implantação da infraestrutura do empreendimento rural, no qual as famílias passariam a morar e trabalhar.

Mesmo que o número de famílias tenha sido o mesmo nas duas associações e os projetos de implantação da infraestrutura comunitária elaborado para o coletivo, com os mesmos padrões para todos - vale recordar que outros 4 cam-poneses entraram no projeto informalmente – os montantes alocados foram di-ferenciados entre os dois grupos comunitários. Se por um lado a liberação dos recursos ocorreu instantaneamente para os fazendeiros, por outro o repasse para os agricultores não ocorreu com a agilidade, de modo que



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Só perdeu mesmo foi a parte de casas, de animais...foi o da gente! A parte que era pra ser da gente mesmo, sem ser a terra, essa a gente perdeu porque o tempo que foi elaborado o projeto, para gente conseguir, o que valia R$ 300,00 a gente comprou por R$ 800,00, R$ 1.000,00. Aí a gente perdeu muito, que era pra gente ter mais coisas ainda (Entrevista Poço Redondo 01, Poço Redondo, 2009).

Diante da escassez de recursos para a implantação do projeto, atraso na libe-ração e, consequente aumento dos preços dos produtos, os trabalhadores viram-se na necessidade de eles mesmos elaborarem parte do projeto, de forma que o então presidente, diante da inexistência de recursos para pagamento dos servi-ços profissionais como engenheiros, topógrafos etc., elaborou ele próprio o tra-çado das duas agrovilas criadas, a disposição das casas que foram representados no croqui da nova área que passava a ser edificada no limite oeste do povoado antigo. Esta figura serviu para a coordenação dos trabalhos de terraplanagem, realizado com uma máquina cedida pela prefeitura municipal de Poço Redon-do, para os pedreiros construírem as casas cujos terrenos haviam sido previa-mente divididos pelo mesmo presidente da associação. Assim relata a situação:

Eu. Fui eu mesmo que fiz. Porque o dinheiro era tão pouco que a gente não tinha como pagar um engenheiro, pagar topografia nem nada. Eu mesmo foi quem fiz. Aquela rua lá a gente fez primeiro, essa daqui. A prefeitura deu uma máquina aqui, a gente fez uma terraplanagem aqui, fez outra ali. Como aqui é um pouco acidentada, se fosse jogar essa rua lá pro fundo ia cair no buraco, o alicerce ia pegar mais alto. Essa planta mesmo foi eu que fiz! Peguei uma pa-pelzinho meu, fiz um rascunho e fiz a planta. Coloquei ali, marquei a área todinha, os pedreiro e vieram e fizeram as casas (Entrevista Poço Redondo 01, Poço Redondo).

Quanto ao ordenamento do assentamento, vale ressaltar que o novo em-preendimento passou a contar com os equipamentos sociais já existentes no povoado, como escola, posto de saúde, televisão comunitária e igreja. Com relação aos investimentos, foi previsto o desenvolvimento de cultivos irriga-dos na planície mais próxima do leito do rio, onde havia maior facilidade para a instalação da infraestrutura de bombeamento e redes de tubos. As áreas mais elevadas do imóvel ficaram destinadas ao pastoreio e de reserva ambiental. As travas burocráticas atrasaram a liberação da verba, de forma que priorizaram a construção das casas, o cercamento das terras e cultivos de palma. Sobre as primeiras, vale ressaltar que foi realizada a construção das moradias, porém, os recursos disponíveis não permitiram a instalação de uma rede de drenagem na agrovila e nem mesmo uma rede de água encanada para abastecer as mes-mas, impondo aos moradores a necessidade de carregar água diariamente des-de a caixa d’água do povoado para o uso doméstico (Figura 15).

Somente quatro anos após a inauguração do empreendimento é que as famí-lias conseguiram acessar recursos da Conab e realizar uma segunda fase de in-vestimentos, em um projeto produtivo que promoveu a introdução junto às fa-



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mílias do cultivo irrigado de coco, além de plantios de milho, melancia, capim pisoteio e capim sempre verde. Receberam capacitação técnica oferecida pelo Sebrae com vistas à estruturação dos primeiros cultivos alimentares, utilizando a técnica da mandala em cada um dos lotes. Para ampliar o conhecimento so-bre a irrigação realizaram uma visita monitorada ao Projeto de Assentamento de Reforma Agrária Jacaré-Curituba.

figurA 15 – sergiPe – Poço redondo: PAnorâmicA dAs duAs AgrovilAs do BAnco dA terrA nA PeriferiA do PovoAdo


Durante as aulas, foram estimulados a adquirir equipamentos elétricos para implantação do bombeamento da água para as respectivas mandalas. Diante da novidade técnica, um grupo de famílias se mobilizou para comprar os respec-tivos equipamentos, enquanto outro, mais receoso de realizar gastos desneces-sários, manteve-se reticente. Apontam que apesar da professora ter ministrado as aulas e disponibilizado vários manuais de elaboração do projeto produtivo, os funcionários que viabilizariam a estrutura necessária prevista, quando da au-sência da professora, não mais sabiam como efetivamente se implementava o projeto. Para viabilizar a implantação do projeto foi preciso que um mutuário conhecedor do oficio da construção civil tomasse a iniciativa de construí-lo, fato relatado do seguinte modo:

Começamos aqui pelo Sebrae, tem aquelas caixas de 5.000 litros? Começamos com aquilo ali. A professora que acompanhava a gente aqui naquela aflição: ‘aqui tem que começar, tem que correr, tem que correr’. A gente fizemos o possível. Ela pedia, a gente fazia. Ela pedia, a gente fazia. Ela: ‘tem que comprar material de energia.’ Eu já trabalhei na Energipe eu digo ói, rapaz não compre esse material agora que a Energipe não vai colocar energia em cada mandala. Para eles fazerem isso, ele vai colocar um transformador em cada área dessa, e ela não vai fazer. E



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ela veio aqui: ‘pode comprar que vai.’ Uns comprou, eu não comprei. (...) Quem comprou tá aí com o material jogado, as caixas jogada, nem mandala nem energia, nem nada. Tem que fazer um documento pra levar pra Energipe. Fazemos mil documentos, não deu certo. Era pra vim bomba. Tava tudo no projeto, bomba de puxar água, mangueira...Galinheiro. Pediu pra gente buscar madeira aí na serra, nas costas a poxa toda. Fizemos galinheiro. Nossa parte nós fizemos, agora quando chegou, era a hora deles nada funcionou. (...) Faltou mangueira pra uns. Tinha as mangueira como veio completo. Adepois o rapaz veio panhá aqui pra levar pra Currais Velho, depois trazia outras e a mangueira acabou(...) (Entrevista Poço Redondo, 01, Poço Redondo, 2009).

Ademais dos estímulos ao consumo para a implantação frustrada do proje-to, no primeiro ano agrícola dos investimentos produtivos, as famílias sofreram com as cheias periódicas do Rio São Francisco, que retomou a planície de inun-dação abandonada onde estavam instaladas as mandalas e a parca infraestrutura de irrigação. A força das águas foi tamanha que não apenas levou com a corren-teza os cultivos, como também destruiu a parafernália de irrigação, chegando, em alguns casos, a engolir lotes inteiros mediante processos erosivos decorrentes da ação fluvial. O impacto da natureza no projeto produtivo não pôde ser recu-perado devidamente com novos investimentos, ficando a critério de cada famí-lia a recuperação dos prejuízos com o próprio esforço e/ou investimentos.

Este fato, associado à implantação incompleta do projeto produtivo, bem como a introdução de cultivos novos para a comunidade, como a cocoicultura, impossibilitaram as famílias de produzir a renda excedente necessária à quitação dos compromissos financeiros assumidos junto ao banco, no tocante à compra da terra e os créditos agrícolas, gerando uma situação de endividamento gene-ralizado. Decorrente deste último, verifica-se ao longo dos anos, a desistência de 16 famílias pioneiras do empreendimento, que decidiram retornar, princi-palmente, a dedicar-se exclusivamente à pesca, geralmente vendendo os lotes (e as dívidas) para outras famílias do mesmo povoado, Bonsucesso, dispostas a aventurar-se nos lotes agrícolas. Dentre os pioneiros desistentes, somente me foi relatado o caso de um mutuário que abandonou a comunidade, passando a viver na sede municipal de Poço Redondo.

Dentre as famílias que permanecem no local, os relatos apontam para a complementaridade entre diferentes atividades e formas de renda a fim de ga-rantir a subsistência da família. Cada uma das famílias dispõe de um lote agrí-cola com dimensão média de 1 hectare, duas ou três cabeças de um rebanho bovino leiteiro criado nas áreas mais elevados do terreno. Parte da produção é para a alimentação da própria família e o excedente vendido ao laticínio União, pertencente à cooperativa do Assentamento Barra da Onça. Embora reclamem do preço (R$ 0,60) pago por litro fornecido ao laticínio. No período do inver-no, o fornecimento diário de leite pode chegar até 15 litros, gerando uma renda diária de aproximadamente R$ 9. Contudo, em geral , no período do “verão”



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caracterizado pela escassez de chuvas, a situação se agrava, uma vez que aumen-ta a dependência da compra de ração, farelo, soja etc. para alimentar o rebanho, tendo em vista se tornam rarefeitas a alimentação natural.

Ademais, praticamente todos os homens mantêm a tradição da pesca (Fi-gura 16) no rio São Francisco, que é realizada, principalmente, no período noturno, enquanto que durante o dia são realizadas a atividades ligadas à pe-cuária e agricultura. O pescado atende diretamente ao consumo das famílias, assim como as roças familiares que dispõem de pouco ou quase nenhum ex-cedente.

figurA 16 – sergiPe – Poço redondo: BArcos de PescA AncorAdos nA mArgem do rio são frAncisco – PovoAdo Bonsucesso


Além disso, as famílias em geral têm como fonte de renda o pagamento de pensões, quando da existência de aposentados nos respectivos lares, e/ou acesso aos programas compensatórios de transferência de renda, como o Bolsa Famí-lia, do governo federal. É frequente a procura de empregos volantes no campo do entorno; contudo, nas fazendas, a modernização da agricultura eliminou a necessidade contratação de trabalhadores, restando às famílias alguns bicos nos lotes dos assentados de reforma agrária, durante poucos dias ao ano. Outra al-ternativa tem sido a migração para outras localidades – capital sergipana e esta-dos do Sudeste – onde é comum atuarem na construção civil.

A dependência destes meios de existência não gera o essencial para a so-brevivência familiar, muito menos a produzir excedentes agrícolas que quan-do comercializados garantam a renda necessária para o pagamento das dívidas contraídas. A condição de inviabilidade é tamanha que nem a renda para o pagamento das taxas de eletricidade utilizada nas atividades de irrigação das



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lavouras conseguem auferir, levando a maioria dos mutuários a não utilizar a infraestrutura de irrigação.

A situação atual das famílias expressa a ampliação da sua subordinação ao capital, sobretudo o financeiro, mediante as dívidas adquiridas para compra da terra e implantação do projeto produtivo. Como não possuíram as condições de realizar a quitação dos débitos na data de vencimento das anuidades, fica-ram impossibilitados de amortizações e decidiram, posteriormente, quando da promulgação da medida provisória de renegociação das dívidas do Banco da Terra, não realizá-la já que não dispunham de condições financeiras para isso, tampouco perspectivas de cumprir tais compromissos creditícios. Esta situação atesta a falência do empreendimento materializada na condição de reprodução da pobreza, que é compreendida por um mutuário do seguinte modo:

Olha, pobreza pra mim é você chegar amanhã e não ter uma xícara de café pra o filho, pra você, ou você ver o vizinho ali necessitando e você...eu sou mais pobre, eu fico mais pobre vendo aquela pessoa precisando e eu não poder ajudar, eu acho que eu fico mais pobre ainda. Então eu acho que pobreza é isso. Porque desde quando você procura o alimento e você não tem de manhã, eu acho que pra mim isso é uma das piores coisas que existe é isso. Mas graças a Deus aqui a gente não tem, também nunca passei. Pessoas da minha idade já passaram muito por aqui por essas dificuldade, chegar o dia de amanhã e não ter café pra tomar. A única coisa que teve comigo foi, é comprava os bulachão, um negocinho assim que vende nas padaria, aqui não era, aqui não tinha padaria, comprava nas feira, passava oito dias. Ficava até aquele mal cheiro de urina, que é o fermento. Aí abria uma banda daquele bulachão ali, mamãe abria com a faca, cada qual uma banda daquele bulachão ali, mas uma banda de bulachão a gente tinha de manhã. Mas muitos daqui não tinha. Mas hoje graças a Deus não existe isso não. Se na minha casa não tem, o vizinho ali tem ele me dá. Se o vizinho tem, ele me dá. Se aquela dali não tem e eu tenho, eu ajudo (Entrevista Poço Redondo 01, Poço Redondo, 2009).

Mesmo diante deste impasse, quando questionados sobre a condição presen-te e a anterior, o entrevistado consegue vislumbrar uma melhoria de vida. Este sentimento está relacionado à possibilidade do acesso a bens que nunca tive-ram anteriormente como habitação própria, um lote agrícola e ferramentas de trabalho com os quais é possível praticar alguma agricultura de autoconsumo, criar um pequeno rebanho. O elemento central deste sentimento relaciona-se à capacidade de decidir sobre a realização do trabalho agrícola, antes condicio-nado pelo clientelismo político resultante do monopólio sobre a propriedade fundiária, o que é relatado da seguinte forma:

apesar da gente ter sido criado em fazendas, a gente nunca conseguiu comprar um cabrito (...) para plantar a gente não esquenta a cabeça, se chover amanha eu vou ali e planto. Porque antigamente quando chovia a gente tinha que esperar que o dono fosse escolher as pessoa que queria dar (...) aqui tinha os chefes político, não é pra dar a fulano, sicrano e sicrano, os outros não é pra plantar não que não votaram naquele candidato naquela época e agora não (Entre-vista Poço Redondo 01, Poço Redondo, 2009).



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Vale ressaltar um avanço importante no tocante a participação de represen-tação da comunidade no Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sus-tentável, que embora possibilite acesso às informações e decisões sobre os pro-jetos para o campo, no município não garante a conquista de melhorias para a comunidade por meio desta participação.

Quando questionado sobre o sonho para o futuro, o entrevistado relatou o seguinte:

O meu sonho é vê essa área aí todinha de lavoura, de verdura, uma coisa que tenha continua-mente. Que não seja tudo um plantio só, mas que cada um, um plantio um pedacinho que eu veja isso aí tudo coberto. Quando eu vi isso aí inaugurado, que a gente olhou daqui que tava bem alvinho, parecia essa pedra de mármore aqui. Ave Maria! Aquilo me deu uma emoção tão grande que o meu sonho era esse. Não tem riqueza maior de conseguir ver isso aí tudo completo. Tenho certeza que um dia a gente vai conseguir. Plantar. Todo mundo colhendo, aí vai ser bom demais! Então meu sonho só era esse, queria mais que isso não (Entrevista Poço Redondo 01, Poço Redondo, 2009).

Nestas circunstâncias, o sentimento dos agricultores mutuários do povoado Bonsucesso e acreditar que as políticas de crédito fundiário podem elevar a qua-lidade de vida dos atingidos desde que

Se não acontecer o que aconteceu com a gente. Porque você sabe, eu nunca me embarquei num barco, pra andar no rio. Você diz: ói, tá aqui esse barco, tá aqui os remo, os pano, tudo e pá! Me joga lá no rio. Qual é a minha tendência? É afundar! Eu não sei nem pra onde é que eu vou, se é para esse lado o pro outro. Eu acredito assim, se fosse pra eles chegar colocar as pessoa como eles colocou e tivesse dado o acompanhamento técnico, a vida da gente era ou-tra. Com certeza! Era melhor 100% porque muitas coisa aqui a gente não evoluiu por falta de acompanhamento técnico. A gente plantou aqui em balde, aguando aqui em balde antes da irrigação, a gente colhida na raça mesmo. Veio muita semente, plantava e adoecia, num dava certo. Num sabia o que era que ia usar (Entrevista Poço Redondo 01, Poço Redondo, 2009).

Esta é uma situação recorrente no contexto do povoado Bonsucesso que, diante do impedimento do acesso à terra, imposto pelo monopólio fundiário de algumas fazendas ainda existentes na região, inclusive no seu entorno, que não foram superadas pelo avanço da reforma agrária no município, leva outras famílias de jovens sem-terra e sem-teto a procurar o MST para realizar novas ocupações de terras. As mesmas, também motivadas a permanecerem na loca-lidade, decidiram pela realização da ocupação do imóvel vizinho ao povoado, no seu limite leste. Os relatos também indicam a possibilidade deste imóvel ter sido fragmentado aquém dos 15 módulos fiscais, passíveis de desapropriação para fins de reforma agrária. De modo que a única condição de acessar o imóvel é pagar o tributo ao proprietário mediante a compra das terras, neste caso já em negociação avançada pelo Programa Nacional de Crédito Fundiário, linha de financiamento Consolidação da Agricultura Familiar (Figura 17).



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figurA 17 – sergiPe – Poço redondo: ocuPAção do imóvel limÍtrofe Ao PovoAdo Bonsucesso


Esta é mais uma dinâmica em curso que possibilita compreender as políticas de crédito fundiário como um instrumento eficiente no combate à realização da reforma agrária redistributiva. Contudo, deixa- nos pista para compreender como a atuação do MST na política de crédito fundiário anteriormente à nego-ciação busca estabelecer o conflito com o fazendeiro, mediante a realização de uma ocupação de terras que, ao mesmo tempo em que denuncia para a socie-dade a necessidade das famílias frente ao caráter monopolista da terra por uma família, grupo econômico ou empresa, estabelece mediante o conflito uma con-dição de negociação que poderá dirimir o poder de controle dos proprietários sobre o processo de negociação dos preços em favor dos trabalhadores. Institui- -se, assim, um processo geográfico de dimensionamento dos espaços comuni-cacional, interativo e de luta e resistência, com a formação do acampamento de sem-terras, onde o processo de politização decorrente da luta pela terra poderá impulsionar a construção de uma consciência de direitos e de classe que permi-ta, no futuro, superar as condições de subordinação característicos dos espaços da subalternidade. Neste contexto, a fim de avançar com os levantamentos em-píricos sobre a ação deste movimento socioterritorial na política em foco, reme-to o leitor, a seguir, à uma segunda experiência de envolvimento do MST nas política fundiárias de orientação neoliberal em Sergipe.

O segundo envolvimento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra de Sergipe com as políticas de crédito fundiário ocorreu no ano de 2003. No ano anterior, em 2002, o setor Frente de Massas do MST decidiu realizar a ocupação da Fazenda Taboca, localizada no município de Nossa Senhora do So-corro e de propriedade da Igreja Católica, passando a reivindicá-la para o pro-



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grama de reforma agrária. A mobilização dos trabalhadores e o trabalho de base ocorreram no próprio município que integra a região metropolitana de Araca-ju, sobretudo, junto àqueles que vivam em espaços periurbanos, comunidades rurais e povoados no entorno do Projeto de Assentamento de Reforma Agrária Moacir Wanderley. Anteriormente à ocupação, as famílias dimensionaram os espaços interativo e comunicativo, de modo a conhecer o movimento socioter-ritorial e trocar experiências sobre suas realidades, até decidirem entrar na luta pela terra, realizando a ocupação da fazenda.

Consumada a ocupação, os proprietários entraram com limitar de reinte-gração de posse na Justiça, prontamente acatada pelo Judiciário. Poucos dias depois, a área foi desocupada e as famílias deslocaram o acampamento para as margens de rodovia, próxima ao imóvel em litígio, para dar continuidade ao processo de resistência. Com a ocupação, abriu-se um processo de negociação sobre o destino das famílias sem terras, envolvendo seus representantes, a Igreja e o Incra. Posteriormente, entrou nas negociações o governo do estado de Ser-gipe que conseguiu forjar um acordo, oferecendo a troca do imóvel reivindicado por outro no município vizinho.

Os sem-terra reuniram-se em assembleia e decidiram coletivamente por trocar a Fazenda Taboca pelo assentamento das famílias na Fazenda Aliança, próxima do acampamento original. O imóvel proposto pelo governo estadual localizava-se no município metropolitano de São Cristóvão, no povoado Rita Cacete. Pesou bas-tante para a decisão dos trabalhadores a certeza da implantação do assentamento, a proximidade de serviços básicos como posto de saúde, transporte coletivo su-burbano, escolas, dos mercados do município e da capital Aracaju, distante desta última, aproximadamente 15 quilômetros. Sobre este processo, a memória do lí-der da frente de massas que coordenou a ocupação revela o seguinte:

De repentemente mandaram me chamar, eu cheguei lá e nós tivemos uma reunião. Nessa reu-nião foi convocado João Daniel. Daniel veio. Foi colocado o governo de frente e o governo trocou, né. Isso aqui era da Torre21, então, a gente troquemo né, a Taboca pela Fazenda Alian-ça aqui, que era da Torre, né. Que era pra vim botar um lixo ali na mata que tem. Mas não ficou lixeiro não, ficou a gente mesmo. (...) Quando nós viemos saber que a gente tava aqui pelo crédito fundiário, a gente já tava aqui. A terra aqui não pegava as 60 pessoas. Aí exigiram duas associação. Eu perguntei por que era as duas associação. ‘Não, porque a troca vai ser pelo Banco da Terra, porque tem que tornar um dinheiro e quem pode tornar esse dinheiro é o Banco da Terra’. Aí a gente fizemo o projeto como a área tinha que ser irrigada, e a área não foi irrigada e nós fiquemo sem irrigação. E aí fechemo negócio pelo Banco da Terra e o Banco da Terra liberou o dinheiro pra gente fazer as casas, a gente fizemo as casa. Liberou dinheiro pra botar água e energia, agora dinheiro pra irrigação até agora não apareceu o dinheiro (En-trevistado Cristóvão 01, São Cristóvão, 2009).

21 A Torre Empreendimentos Rurais e Construções Ltda presta os serviços de limpeza pública na capital Aracaju e outros municípios sergipanos.



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A Fazenda Aliança possuía área total de 318 hectares, que foram vendidos em dois fragmentos de 159 hectares cada um. Os sem-terra tiveram que cons-tituir duas associações de trabalhadores rurais destinadas à compra das parcelas do imóvel, conforme a composição e respectivos preços, a seguir: a Associação de Cooperação Agrícola Florestan Fernandes I, formada por 29 famílias, ad-quiriu o fragmento do imóvel por R$ 301.490,00 e a Associação de Coope-ração Agrícola Florestan Fernandes II, composta por 26 famílias, pagou R$ 298.164,00 pelas terras.

O estado, ao mesmo tempo em que pode ter salvado a Igreja [e a Empre-sa] da perda de sua propriedade para o programa de reforma agrária, destinou terras aos trabalhadores em dimensão inferior ao módulo fiscal, mediante uma linha de financiamento bancário, uma vez que na Associação de Cooperação Agrícola Florestan Fernandes I, formada por 29 famílias, a área média para cada uma foi de 5,48 hectares e na Associação de Cooperação Agrícola Florestan Fernandes II, composta por 26 famílias, a área média foi de 6,11 hectares. Se excluirmos destes cálculos médios as áreas destinadas à preservação, moradias e equipamentos comunitários, estradas, corpos d’água, dentre outras área não agrícolas, resta para cada um dos mutuários uma ínfima área de “aqui [lote de moradia] eu tenho 3 tarefa22 e [no lote de produção] 10” (Entrevista Cristovão 01, São Cristovão, 2009).

Duas questões precisam ser elucidadas. A legislação de reforma agrária prevê que os imóveis acima de 15 módulos fiscais, que não cumprirem a função so-cial, serão passíveis de desapropriação para implantação de projetos de reforma agrária. A respectiva fazenda, com sua área total, caso não cumprisse a função social, tranquilamente poderia ser arrecada para fins de reforma agrária, uma vez que possuía dimensão acima dos 15 módulos previstos na legislação agrária, considerando que o módulo para o município de São Cristóvão é de 10 hectares. Evidencia-se, conforme os relatos dos agricultores, uma ação dos agentes do Es-tado em fragmentar imóvel em dois estabelecimentos de modo a dissimular, pela segunda vez, o óbice interposto ao avanço da reforma agrária. Já que a primeira foi convencer os trabalhadores da troca do latifúndio pela falsa reforma agrária.

A mesma legislação prevê que a reforma agrária deve atacar os dois extremos dos problemas de acesso a terras no campo, ou seja: redistribuir a grande pro-priedade improdutiva, atendendo as famílias sem-terras, bem como promover a redistribuição de terras para aqueles que dispõem de pouca terra, compreendi-das como abaixo do módulo fiscal adotado em cada região. Neste caso, ocorreu exatamente o inverso. Ao financiar a compra de terras para camponeses pobres que buscam se ressocializar mediante a entrada na terra, o governo de Sergipe

22 1 tarefa equivale a 0,30 hectares.



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em articulação com o governo federal, promoveram a minifundização. E, como se trata da compra e venda de terras por meio de uma operação creditícia, auto-maticamente produz o aprisionamento destes sujeitos a uma dívida financeira que dificilmente conseguirão pagar. Sobre este processo de minifundização o entrevistado atesta que essa permissividade irresponsável e enganação é caracte-rística das diretrizes do programa levado adiante pelos seus gestores.

...Pra cabê o povo, porque pelo Incra, o Incra não ia aceitar, né? Se fosse pelo Incra mermo ele só ia aceitar aqui umas 20 pessoa. Porque aqui ficou 13 tarefa para cada um. Então a faixa do Incra ia ser umas 30 tarefa à 35, no mínimo, no mínimo a 25 tarefa. (...) Mas a negociação foi essa, foi fechada, todo mundo acordou e tal. Agora lá a gente fizemo um acordo como a gente vinha praqui sem ser pelo Banco da Terra, até aí a gente vinha pelo Incra. Quando nós cheguemo aqui devido a volta do dinheiro, que tinha que voltar, que eu não me conformo com essa volta desse dinheiro, essa que é a realidade, e a gente fiquemo pelo Banco da Terra (Entrevistado Cristóvão 01, São Cristóvão, 2009).

Com a contratação do projeto, o empreendimento foi implantado com a cons-trução de casas para o conjunto das famílias e demais estruturas comunitárias. Em seguida cada uma das famílias acessou o crédito agrícola Pronaf A/C, sob a super-visão do técnico agrícola vinculado ao Centro de Capacitação Canudos (Cecac), ligado ao MST. A soma dos investimentos comunitários e Pronaf possibilitaram aos trabalhadores, que em geral nenhum recurso ou instrumento de produção possuíam até então, adquirir as primeiras ferramentas de trabalho (facão, enxada etc.) vaca, carroça, besta, cabra, além da aquisição de mudas de coqueiro e início de roças de maracujá. Especificamente sobre os recursos do Pronaf que estavam destinados à implantação de roças familiares de milho, os trabalhadores reclama-ram que os recursos foram liberados após o período do plantio delimitado no mês de março, antecedente do período das chuvas em Sergipe.

Enfatizaram também a inadequação das terras para este cultivo, tendo em vista a necessidade de investimentos em adubos químicos e corretivos para o solo, ampliando assim a dependência de produtos industrializados, vetor de redução da autonomia do agricultor. Soma-se a esta condição a não realização dos investimentos previstos para implantação de infraestrutura de irrigação dos lotes familiares, conforme depoimento acima.

Diante deste impasse, as famílias com menor experiência na prática da agri-cultura e gerenciamento dos créditos, encerraram por utilizar os recursos li-berados em outras atividades, que não lhes geraram o rendimento necessário para quitar futuramente os compromissos assumidos junto ao agente financei-ro. Aqueles de maior experiência redirecionaram os créditos para outros siste-mas agrícolas, caso da liderança entrevistada, que substituiu as roças de milho pela aquisição de 400 mudas de acerola, com vistas a iniciar a formação de um pomar (Figura 18). Pois, segundo este, a fruticultura necessita de menor quan-



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tidade de força de trabalho e menor esforço da família nos tratos culturais ao longo do ano, bem como tem produção o ano inteiro, desde que diversificado em várias espécies frutíferas, conforme a seguir:

Então você tem o caju, já vende o caju, já vende a castanha. Você tem a jaca, já vende a jaca. Tem a manga, já vende a manga. Então, você tem o sítio que sempre ele lhe dá direto, sem você prantar e arrancar, e sem ter a preocupação de limpar duas vez no ano ou três vez no ano. O sítio você só roça e pronto (Entrevista Cristóvão 01, São Cristóvão, 2009).

figurA 18 – sergiPe – são cristóvão: colheitA no PomAr de AcerolA


Outro entrave ao desenvolvimento do empreendimento foi a limitação na prestação dos serviços de assistência técnica. Embora, a empresa contratada fosse integrante do movimento socioterritorial, cujos profissionais estão dire-tamente envolvidos e comprometidos com a luta pela terra e desenvolvimento dos assentamentos de reforma agrária, o arranjo contratual e operacional do Banco da Terra – Pronaf preponderou na forma de acompanhamento das famí-lias. Neste caso em particular, a liderança nos relatou que o acompanhamento das famílias ocorreu satisfatoriamente durante a fase de implantação do projeto. Porém, encerrado este período as famílias ficaram desprovidas do serviço já que o contrato havia expirado. Mesmo que exista a organicidade entre o empreen-dimento, as famílias mutuárias, o movimento socioterritorial e o Cecac, a de-manda para implantação e acompanhamento de milhares de famílias em pou-co mais que uma centena de assentamentos de reforma agrária e, em Sergipe, impediu que um técnico continuasse acompanhando os mutuários da Fazenda Aliança, fato interpretado da seguinte forma:



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(...) é uma parceria que é feita aí entre o banco, o Incra e o Movimento...que entra um di-nheiro do Movimento, que é um dinheiro nosso. (...) Entra outra parceira aí do Incra com o banco, o governo aí, uma coisa aí. Só que é o seguinte: como isso num tem dinheiro pra esse setor, tamém num pode crescer, né. Tem a falta de técnico, né. Aí acontece que fica um ténico pra 3, 4, 5, 6 área, aí num dá mode ele acompanhar, né. Então mais ou menos a gente discute isso, né. Como é que a gente...Nóis samo responsave por isso. Como é que a gente agora vai discutir pra butar cada ténico em duas área, três área? Né. A gente tá fazendo esses estudo, né. A gente tem um bucado de militante nosso fazendo curso pra ténico aí na Escola Agrícola23, né. Aqui tem menino e tal. Mas a gente tamo estudando, né. Mesmo esse pessoal que hoje tá se formando, se entrar hoje não dá pra demanda (Entrevista Cristóvão 01, São Cristóvão, 2009).

Esta dimensão do desenvolvimento dos empreendimentos de contrarrefor-ma agrária de mercado expressa uma permanência constatada em todas as áre-as implantadas, seja por associações isoladas, associações vinculadas a Fetase, aquelas ligadas ao MST, bem como associações articuladas no Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado (Maram), que tratarei no próximo subcapítulo. A assistência técnica destinada às famílias camponesas, tal como está estruturada, limita-se a condição de um serviço contratado privadamente pelos trabalhadores, como condição para acessar créditos, sejam fundiários ou agrícolas, sendo o custo do serviço pago com o próprio crédito. Este princípio mercantil ofusca por completo a condição estratégica de estruturação de uma política pública permanente e estratégica para a viabilização da agricultura cam-ponesa.

O tipo de contrato firmado contribuiu para fazer da ação do técnico ape-nas uma intervenção pontual, esporádica, tecnicista e fiscalizadora. A resolução deste problema deve ser iniciada pelo estabelecimento do caráter permanente do programa, sua desvinculação dos empréstimos financeiros, garantindo a am-pliação da apropriação da oferta do serviço por prestadoras de assistência téc-nica que conheçam em profundidade os anseios dos trabalhadores e os dilemas da reforma agrária e a lógica da economia camponesa, preferencialmente, liga-da aos movimentos socioterritoriais e/ou cujos profissionais tenham formação compatível com uma atuação que supere a perspectiva tecnicista e desempenhe uma ação de gestor de políticas públicas.

23 Decorrente da pressão exercida pelo MST, com destaque da Marcha Nacional sobre Brasília em 1997, con-quistou-se o Programa Nacional de Educação do Campo (Pronera). Ofertando inicialmente cursos de alfa-betização e educação de jovens e adultos, este programa diversificou suas ações e níveis de ensino, sobretudo, a partir do governo Lula, de maneira que no ano de 2003 foi inaugurado na Universidade Federal de Sergipe o primeiro curso de graduação voltado para assentados e filhos de assentados da reforma agrária da história brasileira. O curso de graduação em Engenharia Agronômica formou, entre 2003 e 2008, 60 camponeses dos estados da região nordeste do Brasil, cujos egressos atualmente encontram-se atuando no desenvolvimento territorial camponês. Em 04 de novembro de 2010 o presidente Lula assinou o Decreto 7.352 instituciona-lizando a política nacional de educação do campo e o Pronera/Lagea, abrindo novas possibilidades ao desen-volvimento do território camponês.



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A fala do entrevistado estende-se para além das permanências. Demonstra que o movimento socioterritorial tem discutido e atuado pra superar a limita-ção do programa público de assistência técnica, criando possibilidades para a formação de profissionais da organização, conhecedores dos desafios da agri-cultura camponesa e do desenvolvimento dos assentamentos. A busca pela for-mação de seus militantes tem como ponto de partida ações de escolarização, a criação e acesso a cursos técnicos e de nível superior; abrange as crianças, jovens, adultos e idosos das áreas de assentamentos de reforma agrária e acampamentos. Tais espaços educativos podem ocorrer no esforço de acessar os cursos regulares oferecidos por instituições de ensino básico, técnico, tecnológico e superior pú-blicos, bem como a articulação de convênios com instituições de ensino e pes-quisa e para a criação de cursos especiais destinados aos camponeses e aos seus filhos e filhas, principalmente, através do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera).

Para o entrevistado, uma diferença fundamental entre os assentamentos cria-dos no bojo da política nacional de reforma e aqueles resultantes dos programas de crédito fundiário é que este último não dispõe de acompanhamento e orien-tação voltados para os trabalhadores, pois após a instalação do empreendimento não há nenhum órgão público que lhes garanta qualquer tipo de acompanha-mento ou a que possam recorrer em caso de dificuldades. Por sua vez, na refor-ma agrária, mesmo após a instalação do assentamento e execução orientada e supervisionada por técnicos agrícolas contratados, o Incra responsabiliza-se por ações públicas de acompanhamento, desenvolvimento e recuperação, conforme o caso. Nesse sentido, o entrevistado enfatiza que o crédito fundiário não pode jamais ser confundido com a reforma agrária, pois:

Pra você ter uma ideia, né. Que seis mês você tá pronto com um débito pra você pagar e uma terra pra você trabaiá, muito grande. Um débito da terra muito grande pra você pagar, certo. Um débito de 40 mil para você pagar, com mais 19 mil. […] Então, não é reforma agrária, en-tendeu. Não é reforma agrária. É um comércio do governo brasileiro. Comprar terra do governo brasileiro de comprar e vender terra. Então, ele compra terra ao rico e vende ao pobre e pronto, cabou-se. Então não é reforma agrária, é um comécio, é um intujo. Pega você e bota ali, bota esse intujo aí! O que é reforma agrária? Reforma agrária é manifestação. Reforma agrária é ocupação. Reforma agrária é reivindicar os direito do povo brasileiro, não é nem os direito do agricultor, é o direito do povo brasileiro pela educação, pela saúde, pela moradia, pelo emprego, pela uma alimentação digna de qualidade. Então a reforma agrária luta por tudo isso e o crédito num luta, o banco num luta por tudo isso (Entrevista Cristóvão 01, São Cristóvão, 2009).

A incompletude na implantação do empreendimento e a irregularidade na prestação dos serviços de assistência técnica, associada às limitações edafocli-máticas em que se encontrava o imóvel adquirido impactou negativamente as famílias, cujo efeito direto foi a redução da produtividade e capacidade de pro-dução, contribuindo para o estabelecimento de uma situação de endividamento



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generalizada dentre os mutuários que se encontram, atualmente, inadimplentes com o agente financeiro no tocante ao débito de aquisição da terra e com rela-ção aos créditos agrícolas.

Esta situação levou à evasão de aproximadamente metade dos mutuários pioneiros, que realizaram a venda da dívida para outros terem o direito de uso da terra. Os que permaneceram na localidade realizaram, no ano de 2009, a negociação da dívida do Pronaf no âmbito da Medida Provisória 432/200824, rebaixando a dívida individual do crédito agrícola para R$ 2.952,72, cujo ven-cimento era 24 de dezembro de 2009 (Figura 19).

figurA 19 – sergiPe – são cristóvão: frAgmento do contrAto do crédito AgrÍcolA

24 A Medida Provisória 432/2008, de 27 de maio de 2008, instituiu medidas de estímulo à liquidação ou regula-rização de dívidas originária de operações de crédito rural e de crédito fundiário foi substituída pela Lei 11.775 de 18 de setembro de 2008.



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Intrigado com a eficácia da Lei 11.775 de 18 de setembro de 2008, não es-pecificamente em estabelecer um mecanismo de renegociação das dívidas dos mutuários do Banco da Terra e Pronaf, mas, sobretudo, de averiguar se efeti-vamente haveria condição de pagamento da dívida renegociada por parte das famílias, interpelei o entrevistado sobre sua estrutura familiar e composição de renda. Foi-me revelado que vive no empreendimento juntamente com sua esposa e nove filhos, dos quais um ainda é bem pequeno e não desenvolve ati-vidades laborais. Todo o trabalho necessário para cuidar do lote semeado com acerola e mandioca é realizado pelo mutuário e sua esposa, contando, espora-dicamente, nos períodos de safras maiores, com o auxílio de dois ou três dos filhos maiores.

O destino da produção é a comercialização na Central de Abastecimento do estado de Sergipe (Ceasa), localizada na capital, Aracaju. Periodicamente, no pe-



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ríodo das safras, o mutuário freta um transporte pelo preço de R$ 40 para car-regar a produção de, aproximadamente, 40 caixas de acerola. Cada uma destas é vendida por R$ 25 (em média) aos feirantes da Central. Como isto, o agricul-tor consegue eliminar a apropriação da sua renda pelos atravessadores e perfazer uma renda em dinheiro que pode variar entre R$ 1.000 a 1.200 de acordo com a entrega realizada. Esta condição é viabilizada pela proximidade do empreendi-mento da capital e a boa condição das estradas que interliga os dois pontos.

A renda familiar é complementada pelos rendimentos advindos do trabalho temporário de um dos filhos que limpa canavial para médios produtores do en-torno, bem como pelos ganhos obtidos por outros dois filhos que vendem ali-mentos nas feiras de Aracaju. Estes últimos perfazem juntamente, por semana, aproximadamente R$ 80 a R$100. Segundo o entrevistado, a irregularidade no volume da composição da renda monetária é uma constante. Semanalmente dispõe-se de pelo menos R$ 200 para os gastos da casa, somadas todas as ren-das. Para o autoconsumo retira-se muito pouco do lote agrícola, de modo que os únicos produtos que a família não necessita comprar na feira são a acerola, o leite e a mandioca. Esta condição demonstra a insuficiência de renda monetária e produção de autoconsumo para seus nove membros; a alternativa criada para este dilema é relatada assim:

Quanto mais a gente tem, mais gasta […] eu matava aqui um porco de 50, 60 quilo butava dentro do freezer, quando era com 15 dias não tinha nada (...) se tem, quanto mais tem mais gasta, e quando não tem se come o que tem. Então só tem o pão e uma xiquinha de café, então um pão e uma xiquinha de café. Ah! Não tem o pão, então compra um bulachão. Compra, um real o pacote de bulachão, toma café todo mundo, todo mundo vai dormir. Tchau! (Entrevista Cristóvão 1, São Cristóvão, 2009).

Estamos diante de uma família numerosa que, ao mesmo tempo em que ex-pressa a potencialidade na disponibilidade de força de trabalho para a agricul-tura e atividades não agrícolas que permitem complementar a composição da renda familiar, configura-se, também, um grave dilema, tendo em vista o baixo patamar da renda alcançada pela familiar e frente ao elevado custo da reprodu-ção de todos os seus componentes. Analisando os relatos sobre a composição da renda, atesta-se a irregularidade da conversão do produto agrícola em renda monetária, sujeito, sobretudo, aos períodos das safras da acerola e aos preços pagos pelo produto no mercado. Este fato torna-se mais grave pela escassez dos cultivos de autoconsumo no lote da família, que depende quase que exclusiva-mente da aquisição dos víveres no mercado local, neste caso a feira da cidade de São Cristóvão. A permanente ausência de excedentes monetários atesta a impossibilidade desta família quitar as dívidas de compra da terra e do crédito agrícola. Todavia, o entrevistado, quando, questionado sobre a embaraçosa si-tuação, apresenta o seguinte testemunho:



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Assim, a necessidade a gente divide ela, né. Se existe uma necessidade para uma coisa e pra outa, então a gente tem que dividir ela. A necessidade da minha casa hoje [por exemplo] eu gasto mais ou menos 1.500 conto, pra passar mais ou menos um mês. Mas para o mês eu vou ter 2 mil para pagar. Então se eu tenho 2 mil pra pagar para o mês, então precisa agora reduzir esse gasto, reservar 300 reais pra comida e já vou prevenindo todo o pessoal. Pessoal senta aqui pra discutir: ‘tem 2 mil pra pagar para o mês e então, então essa semana que ia gastar 1.500 conto, já não vou gastar 1.500 conto. Vou ficar com 1.300 conto, só vai ser gasto na feira 200 conto. Vocês se vi-rem lá...arrume uma barraquinha por aí, vai ajeitando por aí, porque só vai ser assim mesmo, que essa parte aqui eu vou negociar com o banco porque para o mês eu vou ter que arranjar o resto. E para o mês vai ser a mesma coisa, eu não vou poder gastar o 1.500 conto na feira (Entrevista Cristóvão 01, São Cristóvão, 2009).

Este relato revela a perversidade do processo de subordinação da renda produzida pela família camponesa ao capital financeiro, contratualizada no crédito fundiário e crédito agrícola, bem como nas respectivas renegociações. O impacto reside diretamente sobre o direito das pessoas se realizarem como seres humanos plenos. O nível de vida da família, que tem como principal di-mensão a alimentação, é rebaixado para que os bancos recebam suas parcelas em dia. Cada membro passa da ter de criar por si próprio alguma alternativa para alcançar o suprimento energético necessário para reproduzir-se como trabalhador e/ou estudante. A família, para quitar as anuidades da dívida, vê-se impelida a comprometer sua forma de existência e reprodução, seu acesso à cultura, lazer, vestimentas, cuidados de saúde etc., para que o agente financei-ro tenha sua parcela de dívida quitada em dia. Esta contradição é ainda mais grave ao considerar que esta situação é produzida e reproduzida no bojo de uma política pública de combate a pobreza rural! Mas essa situação tem um limite para o camponês:

Meu pensamento é eu pagar, eu quero pagar, né. Até pagar pra dizer que paguei, né! Agora também eu sou mais pagar o débito [Pronaf ], a minha certeza é essa: pagar o débito, a terra não! Porque essa terra, diz o bíblico que Deus disse que nóis samo herdeiro dele. Nóis samo herdeiro desse vento maravilho mermo, dessa água maravilhosa que a gente bebe. A gente somo herdeiro dele mermo. Dessa luz que nos alumeia, nóis samo herdeiro dela mermo. É! Agora...que a terra não ficou para ninguém comprar ela e nem vendê ela não, ela ficou pra ser nossa! É nossa mermo! Agora o débito do projeto [Pronaf ] tal, lá vai...esse eu concordo a pagar e esse eu vou pagar (Entrevista São Cristóvão 1, São Cristóvão, 2009).

Este trecho do depoimento revela a indignação do agricultor frente à realiza-ção da mercantilização da terra, cuja contratualidade prevê a tomada do imóvel por parte do banco em caso de não pagamento. Questionei-o sobre este fato diante da decisão de não cumprimento e execução do contrato por parte do agente financeiro, o que foi respondido assim:

Primeiro, pro banco tomar essa terra vai dar uma brigada mais eu! Num só é mais não, é mais uma rapa de gente que ele vai brigar e ele nunca vai tomar. Primeiro que ele não tem terra, ele



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não preparou terra nenhuma pra ninguém morar, né verdade? A maior ilusão da gente é dizer que tudo tem um dono. […] Ele não tem nada aqui! Aqui é meu! Eu lutei. Eu devo dinheiro do projeto [Pronaf ], da terra eu disse que comprei, eu disse que comprei porque queria. Mas a terra é um praneta. Ela num ficou pra ser negociada. Ela ficou pra tudo mundo ter uma par-te, pra cada um que nascer ter uma parte. Cada um que nascer nessa Terra ter uma partizinha dela, pra ter onde morar! Entendeu como é? (Entrevista São Cristóvão1, São Cristóvão, 2009).

As condições de incompletude na implantação e desenvolvimento dos em-preendimentos originários das diferentes linhas de crédito fundiário, assim com a contratualização assinada entre os camponeses, proprietários de terras, ges-tores públicos e agentes financeiros materializam no campo brasileiro (e sergi-pano) um novo mecanismo de sujeição da renda da terra ao capital. Nesta, é necessário, primeiramente, forjar uma falsa igualdade entre os sem-terra e lati-fundiários, a partir de uma igualdade jurídica, na qual os primeiros, por passa-rem a ter direito a créditos públicos, são convertidos em cidadãos-consumido-res, que podem comprar terras dos segundos, também livres para vender parte do seu patrimônio (a terra). Este arranjo jurídico é falso porque os sem-terra em geral, em um primeiro momento, nada dispõem para realizar a reprodução de sua família além da sua força de trabalho, mas são colocados em igualdade (jurídica) com aqueles de dispõe da terra concentrada e cobram um tributo à sociedade para que se dê o acesso a este bem. O Estado tem papel fundamen-tal no pagamento deste tributo, mediante a criação de linhas de financiamento para os mais pobres comprarem a terra mediante o pagamento à vista aos pro-prietários, realizando a renda absoluta da terra.

Quando o camponês entrevistado enfatiza que todos são herdeiros da terra e têm direito de viver nela, que “(...) a maior ilusão da gente é dizer que tudo tem dono” e demonstrar resistência a uma possível execução da dívida fundiária pelo agente financeiro, expressa, exatamente, a negação da terra como mercadoria, uma vez que a mesma não pode ser produzida pelo trabalho humano, bem como que o uso e posse desta deve ser condicionada ao cumprimento da função social, neste caso da produção de alimentos e reprodução das condições de existência de famílias e seus múltiplos grupos domésticos. Esta afirmação, que parte de um camponês ativista de um movimento socioterritorial, tem como tendência a ade-são dos mutuários que ainda permanecem no empreendimento, tendo em vista posturas semelhantes de outros mutuários dos empreendimentos perscrutados.

Contudo, para que se alcance alguma possibilidade de promover transfor-mações na política pública será preciso superar uma posição individualizada frente ao problema e alcançar um agir coletivo dos camponeses ligados a esta organização. Indo mais além, a ação individualizada, semelhante àquela que é pregada no capitalismo, das igualdades individuais jurídicas, na qual cada mu-tuário do empreendimento busca a defesa apenas de seu lote, não proporciona-



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rá a pressão necessária para superação dos dilemas. Se a defesa se ampliar para resolução na escala do respectivo empreendimento, ainda assim não surtirá efei-to. Mas, se o agir for coletivo em defesa do território da organização, formado pelos mutuários do conjunto de empreendimentos articulados ao movimento socioterritorial, aí já se configura uma possibilidade de pressão que pode cul-minar na politização da problemática destas famílias que até então é completa-mente ocultada da sociedade pela omissão do Estado e seu comprometimento com uma resolução mercantilizada, promotora do aprisionamento de milhões de camponeses à dívida financeira.

Esta forma de resistência do campesinato, frente à sujeição da renda da terra ao capital financeiro, caracteriza-se por ser uma ação contra o capital, cuja efe-tivação somente logrará resultados a favor dos camponeses, se tomada de modo coletivo pela classe camponesa. Isto implica que outros movimentos socioter-ritoriais envolvidos na política de contrarreforma agrária de mercado devem tomar decisões na mesma direção, além de envidar esforços para organizar o enorme contingente de outras famílias mutuárias que ainda se encontram de-sarticuladas de algum movimento socioterritorial, garantindo assim a amplia-ção da ação, culminando gradativamente com a escala nacional da ação. Este é um desafio que está colocado para as organizações camponesas, ativistas e inte-lectuais que lidam com a esta questão.

Os dois empreendimentos de Cram identificados como de base social ligada ao MST foram selecionados como um esforço de pesquisa para contribuir com a análise e entendimento das condicionantes de como este movimento socioter-ritorial, contraditoriamente, se inseriu nos programas de terras do Banco Mun-dial, no estado de Sergipe. Para que possamos prosseguir com esta análise, vale ainda ressaltar que a compra das fazendas que originaram os empreendimentos Colônia de Pescadores Z-10 de Poço Redondo, Associação Nossa Senhora do Rosário, Associação de Cooperação Agrícola Florestan Fernandes I e Associação de Cooperação Agrícola Florestan Fernandes II, não resultou de uma ação de-liberada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Na realidade, re-sultaram da forma contraditória da expansão do capitalismo no campo que, ao produzir riqueza ampliadamente, gera em proporções ainda maiores a pobreza e a miséria. Os casos destes empreendimentos evidenciam a atuação ostensiva do Estado na busca pelo estabelecimento do controle social, mediante, por um lado, a desarticulação das lutas populares com a disponibilização de dinheiro para conversão dos sem-terra em consumidores de terras. Por outro lado, o con-trole social se estabelece no aprisionamento dos camponeses às dividas bancá-rias que lhes rouba o sono, tangenciando sua ação no tocante às questões estru-turais da reprodução social e organização política.



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Tais famílias foram, ao meu ver, cooptadas pelo Estado para abandonarem as lutas pela reforma agrária e aderirem ao programa de compra e venda de ter-ras, mesmo que estivessem sendo apoiadas ou fossem orgânicas do MST, mo-vimento contrário às políticas fundiárias neoliberais. O avanço destas políticas tem sido marcado por diferentes outras formas de tentativa de desarticulação das lutas pela terra, como nos caso a seguir.

No município de Nossa Senhora da Glória, fazendeiros atuaram ardilosa-mente para convencer um grupo de famílias para formar uma associação para comprar a Fazenda Poço do Capim, onde 43 famílias acampavam reivindican-do a implantação do PA Luis Beltrano, conquistado no ano de 2005. No muni-cípio de Estância, às margens da rodovia BR-101 Sul, onde hoje está constituí-do o PA 17 de Abril, a fazendeira, amedrontada com uma ocupação de terras no imóvel vizinho, a Fazenda Vera Cruz, decidiu ela mesma negociar sua fazenda pelo crédito fundiário. Com perspicácia diante da situação, os coordenadores do acampamento sem-terra decidiram pela ocupação, tendo a vistoria denun-ciado a improdutividade do imóvel. Neste ínterim, o proprietário da Fazenda Vera Cruz, dividiu a propriedade, originando a Fazenda Planalto, de modo que o acampamento segue no local, onde, de um lado da estrada vicinal que corta o imóvel, um conjunto de famílias do MST resiste reivindicando a desapropria-ção, enquanto do outro lado da estrada estão famílias do MST e Fetase reivin-dicando a compra pelo crédito fundiário da Fazenda Planalto.

É possível ainda encontrar famílias que, ansiosas por entrar na terra mantêm um barraco e/ou pequenos cultivos alimentares em ambos imóveis, não impor-tando para as mesmas o instrumento de acesso a terra. As diferentes linhas de crédito fundiário vêm sendo operadas pelo estado não somente para desarticu-lar os conflitos de terra, mas, sobretudo, para enfraquecer o movimento social mais combativo, o MST. Estas são dimensões do crédito fundiário que explici-tam sua ação de contrarreforma agrária.

Uma nova fase da participação do MST na contrarreforma agrária do Ban-co Mundial foi iniciada no ano de 2007, quando a organização flexibilizou sua posição política e deliberou por demandar a compra de terras pelo Programa Nacional de Crédito Fundiário, mesmo que esta posição contrarie suas diretri-zes gerais e a linha de ação da Via Campesina.

Esta é uma postura isolada do MST-Sergipe. Decorre da especificidade da questão agrária sergipana e conjuntura atual da política local. Segundo Esme-raldo Leal, dirigente estadual da organização em depoimento ao site do Prone-se (Secretaria de Estado do Planejamento, 2007), no estado de Sergipe, menor unidade da federação, com 21.910,348 km², “existe uma demanda de terra reprimida ocasionada pela pouca quantidade de terras passíveis de desapropria-ção no estado” e esta condição derivaria, principalmente, dos seguintes fatores:



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a) desapropriações de grandes latifúndios decorrentes das lutas realizadas na década de 1990; b) intensificação de capitais no campo mediante os projetos públicos e privados de modernização da agriculta; c) políticas de incentivo à produção dos agrocombustíveis. Por outro lado, há uma enorme pressão social para entrada na terra e pode ser verificada no vertiginoso número de famílias em acampamentos a espera de assentamentos de reforma agrária (para o Incra são 7.512 famílias em acampamentos rurais, segundo o MST há 13.800 famí-lias acampadas no estado), algumas delas há mais de 13 anos.

No plano político, o ano de 2007 foi marcado pela alteração do pacto político que tem governado o estado de Sergipe há décadas, com a eleição e posse do go-vernador Marcelo Chagas Déda25, do Partido dos Trabalhadores, aliado histórico do MST. Neste contexto, esta organização iniciou um processo de aproximação do governo (postura oposta àquela adotada durante o governo anterior contro-lado pelas elites rurais e urbanas de Sergipe). Creio que este comportamento se deu no âmbito dos fóruns de construção da política de planejamento e desenvol-vimento territorial do estado de Sergipe, nos quais o MST, de forma organizada, conseguiu inserir na pauta ações que beneficiavam o desenvolvimento dos assen-tamentos de reforma agrária existentes. Considera-se que neste governo é interes-sante a adoção de uma postura mais flexível, uma vez que é possível avançar em um conjunto de projetos para o desenvolvimento dos assentamentos já criados.

Neste contexto, Sergipe configura-se como o único estado da federação em que o Programa Nacional de Crédito Fundiário conta com o apoio político do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra e, para o ingresso dos mes-mos, em abril de 2007, a Pronese dimensionou um espaço de subalternidade ao reunir 38 integrantes da organização para realizar a capacitação para elaboração de proposta técnica destinada à obtenção do financiamento do PNCF.

Embora exista um conjunto de trâmites burocráticos específicos, o MST adotou uma metodologia própria para o ingresso das famílias no programa. Enquanto a Contag e outros movimentos camponeses adotaram a mobilização de grupos de famílias para formar associações de trabalhadores rurais voltadas à compra da terra pelo PNCF, o MST prioriza contemplar aquelas famílias que se encontram na luta pela terra, particularmente em acampamentos rurais, por longos períodos como cinco, dez anos ou mais; geralmente os imóveis que ocu-pam tem seus processos judicializados e sem perspectivas de prazos para con-quista dos assentamentos.

25 Marcelo Chagas Déda foi eleito governador de Sergipe, pelo Partido dos Trabalhadores, para exercer o mandato de 2007 a 2010. Exerceu o mandato de deputado estadual de 1986-1990. No ano de 1994, foi o deputado federal mais bem votado do estado e, reeleito, em 1998, com a maior votação proporcional do Brasil. Foi eleito prefeito de Aracaju, em 2000, ainda no primeiro turno, com 52,8% dos votos válidos. Em 2004, foi reconduzido ao mandato com 71,38% dos votos válidos.



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A reivindicação de uma nova área para assentamento de famílias sempre se dá primeiramente com a realização da ocupação do imóvel ou manifestação próximo ao mesmo. Esta tática impõe ao Incra a necessidade de realizar a visto-ria do imóvel a fim de averiguar o cumprimento constitucional da função social da terra. Após o laudo de vistoria, se o imóvel for considerado produtivo, viável para assentamentos de famílias de trabalhadores rurais e seu proprietário esti-ver disposto a vendê-lo, o Incra pode iniciar a negociação de compra direta do imóvel utilizando o instrumento legal previsto na Lei Federal 433/1992. Caso a arrecadação tenha algum impedimento de se dar por este mecanismo, o MST pode reivindicar a compra do imóvel pelo PNCF.

Neste caso, a ocupação do imóvel que instituiu o conflito se converte em tá-tica adotada pela organização para pressionar os fazendeiros a um rebaixamen-to dos valores da terra. Este fato é confirmado pelos gestores do programa no estado que afirmam que o MST tem conseguido os menores preços praticados no programa em Sergipe.

Entre 2007 e 2009, foram comprados oito imóveis rurais: a Fazenda Souza, localizada no município de Japaratuba, adquiridas por 16 famílias da Associa-ção Nova Esperança (2007), pela linha de crédito Combate à Pobreza Rural; no ano de 2008, 81 famílias compraram a Fazenda Umbuzeiro do Matuto, no município de Porto da Folha; 12 famílias compraram a Fazenda Poço dos Bois, em Monte Alegre de Sergipe e 25 famílias adquiriram a Fazenda Xinduba em Itaporanga D’Ajuda; no ano de 2009, oito famílias compraram a Fazenda Sa-mambaia, no município de Santo Amaro das Brotas, oito famílias compraram em São Cristóvão a Fazenda São Francisco, e outras oito no mesmo município compraram a Fazenda Bom Jesus, enquanto em Lagarto, 22 famílias compra-ram a Fazenda Miranda. Neste contexto, a participação do MST-SE na Cram dá-se mediante a organização de 12 empreendimentos (envolvendo linhas de financiamento do Banco da Terra, Combate a Pobreza Rural e Consolidação da Agricultura Familiar), totalizando 295 famílias que compraram 4.037 hectares em oito municípios sergipanos, até o ano de 2009.

Vale ressaltar que, desde o ano de 2008, os empreendimentos contratados no estado têm sido por meio da linha de financiamento Consolidação da Agri-cultura Familiar, cuja característica, além de um teto maior (40 mil reais) por família, prevê somente o ingresso individual no Programa. De maneira que as fazendas são fragmentadas em tantos lotes quanto for o número de mutuários, enquanto que os empreendimentos implantados anteriormente se davam me-diante o financiamento solidário entre os membros das associações de trabalha-dores. Sob a alegação de criar maior autonomia dos camponeses no momento de quitação das anuidades, pois não dependem da soma das parcelas de cada mutuário individualmente, verifica-se por meio deste crédito fundiário a pro-



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moção deliberada de estímulo ao processo de individualização dos sujeitos, em detrimento das lógicas organizativas comunitárias e solidárias, já a partir da contratualidade.

Antes de avançar para a finalização deste subcapítulo, faz-se necessário recu-perar o argumento – para tentar desmistificá-lo – de que, em Sergipe, não há, ou melhor, é cada vez mais difícil encontrar terras para a reforma agrária. Faz-se necessário recorrer às estatísticas disponíveis.

Para tratar da distribuição da terra por estratos de área no Brasil, frequente-mente se utilizam as fontes do Censo Agropecuário do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Sistema Nacional de Cadastro Rural do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (SNCR – Incra). Há es-tudiosos que têm utilizado ambas as fontes como equivalentes e, muitas vezes, comparando-as sem as devidas precauções, resultando em graves distorções. No princípio deste capítulo analisei a estrutura fundiária de Sergipe, a partir do úl-timo Censo Agropecuário do IBGE, referente a 2006. Esta fonte adota como unidade básica, para coleta de informação, os estabelecimentos agropecuários, compreendidos como

toda unidade de produção dedicada, total ou parcialmente, às atividades agropecuárias, flores-tais e aquícolas, subordinada a uma única administração: a do produtor ou a do administra-dor. Independente de seu tamanho, de sua forma jurídica ou de sua localização em área urbana ou rural, tendo como objetivo a produção para subsistência e/ou para venda, constituindo-se assim numa unidade recenseável (IBGE, 2006, p. 40).

Por sua vez, o Incra no Sistema Nacional de Cadastro Rural, criado pela Lei 5.868/72, utiliza como unidade básica o imóvel rural que é uma área contínua, na zona urbana ou rural, que se apresenta em exploração ou com aptidão para exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial. Em suma, o IBGE adota como unidade básica as unidades econômico-adminis-trativas e o Incra as propriedades agropecuárias. De modo que é possível, no interior de uma imóvel rural existir, mais de um estabelecimento agropecuário e diferentes condições do produtor (proprietário, arrendatário, meeiro etc.) ou também encontrar diferentes imóveis rurais que se agrupam em um único esta-belecimento agropecuário.

Para efeito do tema em questão (o sentido da realização da reforma agrá-ria em Sergipe, que provoque uma justa e equânime distribuição das terras) os dados do SNCR se aproximam mais da capacidade analítica necessária. No princípio deste capítulo, analisei os dados do Censo Agropecuário 2006 que demonstram a estrutura fundiária de Sergipe (a partir da unidade bási-ca estabelecimentos agropecuários) marcada pela polarização entre minifún-dios e grandes propriedades e cujo índice de Gini de 0,776 é considerado concentrado .



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Do ponto de vista da propriedade da terra, o cadastro rural do Incra de 2011 demonstrou que predominam em Sergipe as pequenas propriedades (até 100 hectares) representando 96% do número de imóveis (79.327 sítios) que se espremiam em 951.165,7 ha (ou seja, 51,9% da área). Na outra ponta estão as grandes propriedades (mais de 1.000 hectares) e representavam apenas 72 imóveis/fazendas (ou 0,09% do total de imóveis cadastrados) que controlavam 133.361,7 hectares, o que equivale a 7,28% da área26 (Tabela 7).

tABelA 7 – sergiPe: estruturA fundiáriA segundo iBge e incrA

Censo IBGE 2006 SNCR Incra 2011

Estratos de área (ha) Imóveis % Área (ha) % Imóveis % Área (ha) %

Menos de 10 ha 75.759 75,30 181.314 12,25 53.257 64,45 179.606,20 9,80

10 < 100 ha 20.055 19,93 564.230 38,11 26.070 31,55 771.559,60 42,10

Menos de 100 ha 95.814 95,24 745.544 50,36 79.327 96, 951.165,70 51,90

100 < 1000 ha 2.464 2,45 582.233 39,33 3.236 3,92 748.044,70 40,82

Mais de 1000 ha 82 0,08 152.636 10,31 72 0,09 133.361,70 7,28

Produtor sem área 2.246 2,23 0 0 -- -- --

Total 100.606 100 1.480.413 100 82.635 100 1.832.572 100

Obs: Total de imóveis rurais inconsistentes excluídos em 2011: 4.524 Fonte: Sistema Nacional de Cadastro Rural (Incra), apuração especial realizada em 7/2/2011; Dataluta Sergipe, 2010 - Banco de Dados de Luta pela Terra, 2012. <www.laberur.ufs.br>. Fonte: Censo Agropecuário 2006, IBGE. Organização: Eraldo da Silva Ramos Filho.

Em que pese a dificuldade de comparar os dados destas duas fontes de in-formação por suas diferentes naturezas, assim como os períodos das fontes apre-sentarem uma distancia temporal razoável (cerca de quatro anos), embora sejam os mais atuais e próximos, ao confrontarmos os resultados absolutos e relativos, por estratos de área, constata-se grande semelhança dos resultados obtidos en-tre as duas fontes, permitindo inferir sobre a permanência de uma estrutura fundiária marcada pela polarização grande propriedade/minifúndio, de caráter concentrada, com o Gini do Incra em 0,725. A Tabela 8 demonstra que, histo-ricamente, a estrutura fundiária de Sergipe, ainda que haja um levíssimo alívio nas últimas duas décadas, provavelmente decorrente das conquistas dos 206 as-sentamentos de reforma agrária, que reformaram 173.504 hectares e beneficia-ram 9.296 famílias entre 1982 e 2010 (Dataluta Sergipe, 2010).

26 Sobre as transformações recentes na estrutura fundiária de Sergipe cf. Ramos Filho, Eraldo da Silva, “Os (des)cami-nhos da estrutura fundiária e reforma agrária em Sergipe”. In: Boletim Dataluta. Presidente Prudente: Nera, n. 58, out. 2012. Disponível em: <http://www2.fct.unesp.br/nera/boletimdataluta/boletim_dataluta_10_2012.pdf>



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tABelA 8 – sergiPe: evolução do Índice de gini dA ProPriedAde dA terrA – 1967-2011

Ano Índice de Gini

1967 0,808

1972 0,799

1978 0,799

1992 0,787

1998 0,788

2003 0,773

2011 0,725

Fonte: Sistema Nacional de Cadastro Rural (Incra); Dataluta Sergipe 2010. <www.laberur.ufs.br>Organização: Eraldo da Silva Ramos Filho

Se considerarmos que os módulos fiscais no estado variam de 10 a 45 hecta-res no litoral, de 20 a 70 no agreste e 70 hectares no sertão sergipano, o cadastro do Incra revela que a problemática agrária sergipana está marcada pela existência de 64,45% dos imóveis que se enquadram na condição de minifúndio. No Pla-no Regional de Reforma Agrária de Sergipe (2004-2007), publicado pelo Incra, recuperando os dados do supracitado cadastro, revela que 203.309 hectares de terras encontravam-se ociosas. Portanto, um estoque de terras passível de ser de-sapropriado para beneficiar cerca de 13 mil famílias através da reforma agrária.

Observa-se que o Censo 2006 indica a existência de 2.246 estabelecimentos que têm produtores sem área, ou seja, de acordo com nota técnica do IBGE, são trabalhadores de estabelecimentos rurais que cultivam/criam em parte do imóvel do produtor/proprietário/patrão. Em outras palavras, trata-se de traba-lhadores rurais sem-terra e podem ser somados aos 6.210 estabelecimentos com produtores na condição de ocupantes, 456 parceiros e 1.066 arrendatários, to-talizando, aproximadamente, 9.978 sujeitos potenciais para a reforma agrária, cuja quase totalidade arrenda ou realiza parcerias em pequenos e médios esta-belecimentos. Este quantitativo de trabalhadores pode ser somado às 7.512 fa-mílias em acampamentos rurais registradas em setembro de 2009. Portanto, o público potencial estimado para beneficiar-se com a reforma agrária em Sergipe ultrapassa facilmente a marca das 17.490 famílias.

Ademais da dinâmica dos números fundiários de Sergipe, é importante reafir mar que os índices de produtividade agrícola adotados no país, como re-ferência para classificar o nível de exploração dos imóveis rurais no país, foram fixados em 1980, tomado como base o Censo Agropecuário de 1975. Logo, desconsideram o avanço tecnológico obtido nos processos produtivos do setor.



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A título de ilustração, os índices vigentes consideram como suficiente, em Ser-gipe, para criar uma rés bovina, em fase adulta, uma área de 10 hectares. Porém, sabe-se que de acordo com os parâmetros tecnológicos de produção adotados atualmente é possível criar a mesma rés em aproximadamente 3 hectares.

Há anos os movimentos camponeses vêm reivindicando do governo federal a atualização dos índices de produtividade. No ano de 2005, o MST realizou a Marcha Nacional pela Reforma Agrária. Em 2009 o governo Lula anunciou que atenderia aos camponeses e atualizaria os índices. Os ruralistas intensifica-ram a pressão política mediante atuação dos seus lobbies, grupos de interesses e bancada ruralista, forçando o presidente a recuar. Venceram os ruralistas e pre-valeceu o congelamento dos índices de produtividade agropecuários nos dois mandatos do governo Lula. Este fato permite que grandes imóveis, com baixa produtividade, não se enquadrem na condição legal de passíveis de desapropria-ção. Por detrás dos pífios índices vigentes se esconde o agronegócio que, com sua blindagem midiática, impede o avanço da reforma agrária e propala a redis-tribuição de terras pelo mercado.

Aqui reside a atualidade da defesa da realização da reforma agrária no esta-do de Sergipe: o enorme contingente de famílias sem-terra existente no Estado, uma estrutura fundiária concentradora e polarizada pelo binômio latifúndio-minifúndio, a existência de setor de proprietários rurais absenteístas que de-têm o monopólio fundiário como instrumento de mera especulação e a vigên-cia de índices de produtividade desatualizados, que protege o agronegócio da possibili dade de cumprimento da função social da terra. Neste contexto, certa-mente a alteração dos referidos índices ampliaria o estoque de terras passível de desapropriação, no Brasil e em Sergipe.

Antes de encaminharmos para a finalização deste capítulo, faz-se necessá-rio realizar algumas reflexões sobre a participação do MST na contrarreforma agrária do Banco Mundial, mesmo que este seja um processo muito recente e intrigante para os diversos segmentos que acompanham o desenvolvimento do campo brasileiro. Primeiramente, há que endossar que esta é uma posição isolada do MST-SE, que descumpre a orientação nacional da organização, que é de enfrentamento às políticas fundiárias neoliberais. Tal posição resulta das contradições geradas pela forma de expansão do capital no campo, trajando a roupagem de uma política de crédito fundiário. Explicita um pouco do desa-fio de territorializar um movimento camponês nacionalmente em um país tão extenso e de grande diversidade humana, natural, econômica etc., fatores que contribuem para a delimitação de distintas conjunturas agrárias nas escalas lo-cal e regional.

Esta dinâmica revela, ainda, a perspicácia do capital em criar as condições necessárias para que o Estado, com o conjunto de suas instituições, opere ins-



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trumentos que legitimam perante a sociedade seus próprios interesses. A par-ticipação do MST-SE na Cram confere, primeiramente na escala local, a legi-timação desejada pelos causídicos do programa. Goméz (2008) ao discutir as políticas de desenvolvimento territorial elaboradas pelas agências multilaterais, na qual se inserem os programas de Cram, aponta que outro pilar do estrata-gema das políticas fundiárias neoliberais, além do alívio a pobreza, é a questão da participação, que para este estudioso trata-se nada mais que estabelecer um controle social, travestido de participação dos sujeitos e suas organizações.

Esta é uma noção muito controversa. Segundo os gestores e os documentos normativos da política pública, refere-se à capacidade que as organizações têm de mobilizar a sua base para ingressarem nos programas, acompanhar a implan-tação dos projetos e garantir o cumprimento das normas. Em outras palavras, as formas de participação estão institucionalizadas e pré-definidas pelo projeto societário capitalista.

Como demonstrei no subcapítulo em que trato do empreendimento São José das Quebradas (Fetase), muitas vezes esse controle social é exercido quando a organização pressiona os mutuários a realizar os pagamentos das anuidades, mesmo que estes não disponham de condições de pagamento das terras. Enten-do, em consonância com Goméz, o controle social, praticado na Cram como formas diferenciadas de ter conhecimento prévio das intenções, projetos e inte-resses dos sujeitos e suas organizações.

O ingresso do MST na Cram proporciona para os gestores públicos a le-gitimidade necessária para o programa. A preocupação central dos gestores na sutilização desta forma de controle social é dar a garantia que os mutuários rea-lizarão os pagamentos conforme programado, como expressa a declaração do presidente da Pronese, José Sobral: “o princípio da articulação entre o Governo do Estado e sociedade é fundamental para a boa aplicação dos recursos finan-ceiros” (Agência Sergipe de Notícias, 2007).

A boa aplicação dos recursos pode ser compreendida tanto como a idonei-dade na aplicação dos recursos para a implantação dos projetos, bem como a capacidade de retorno das anuidades que deverão ser pagas pelos mutuários aos bancos. Os agricultores estudados, que se organizam e se articulam no/com o MST, demonstram uma compreensão sobre a realidade na qual a terra assume valor de uso. Esta condição esta acompanhada à incompletude da implantação dos respectivos projetos, falhas na orientação técnica, ausência de acompanha-mento etc., que tem levado, consequentemente, ao aprisionamento dos mutuá-rios à dívida financeira. Esta conjuntura os têm feito descartar a necessidade de quitar os compromissos contraídos junto às instituições bancárias.

Os princípios e diretrizes de atuação do MST, frente à questão agrária bra-sileira e enfrentamento global ao capital, demonstram que as conquistas do



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campesinato têm se dado a partir da organização social, da luta política e pres-são popular exercida junto aos diferentes setores da sociedade. As possibilidades têm sido criadas a partir de um processo relacional, que se constrói no entre-os-homens pois

(...) os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças” (Arendt, 2007, p. 21-22). Sua marca é a conflitualidade e diferentes formas de conflitos. Estes, por sua vez, são o estado de confronto direto ou indireto entre forças, grupos ou classes opostas. Ao buscar a permanente superação e construção de uma sociedade pautada na justiça social atualizam que o sentido da política como expressão da liberdade (Arendt, 2007).

A luta pela terra e pela reforma agrária realizada nacionalmente pelo MST reivindica, a um só momento, o acesso à terra, à ruptura com o rentismo fundiá-rio, a garantia dos direitos sociais e combate ao capital na medida que contes-tam a propriedade privada concentrada e seu modelo de desenvolvimento ine-rente. Ao passo em que os mutuários da Cram, ligados ao MST-SE, seguirem compreendendo a terra enquanto valor de uso, buscando construir as possibi-lidades de realização da dignidade de suas famílias e atuarem na contramão do capital, vislumbra-se uma tendência a não realizarem o pagamento das anuida-des referentes ao financiamento das terras.

Algumas razões podem ser destacadas para esta posição: a) para o Movi-mento a terra é um bem natural, não passível de ser convertida em mercado-ria – atitude já demonstrada pelos mutuários que adquiriram os dois primei-ros empreendimentos contratados, por sujeitos ligados direta ou indiretamente ao MST; b) porque os empreendimentos de Cram, conforme venho demons-trando, limitam-se a viabilização do acesso à terra, desvinculado de qualquer perspectiva de garantia de direitos sociais; c) inexistência de organismos pú-blicos que realizem o acompanhamento do processo de desenvolvimento dos empreendimentos .

Portanto, é previsível uma decisão pelo não pagamento das anuidades refe-rentes ao financiamento da terra, por parte dos integrantes do MST (ou outros movimentos socioterritoriais) que contrataram os empreendimentos, a partir de 2007, cujo período de carência deve terminar no curso do ano de 2010. O cenário de inexistência do acesso aos direitos sociais e ausência de acompanha-mento e investimentos no desenvolvimento das áreas, como é característico do programa, desencadeará determinadas formas de pressão popular junto aos ór-gãos gestores do PNCF em Sergipe, reivindicando a superação desta realidade. Contudo, esta ação se dará somente na escala local e as diretrizes sobre a Cram são definidas em um espaço jurídico institucional em nível de governo federal.

Portanto, o deslocamento da Cram do território da economia para o territó-rio da política necessitará da pressão para além de Sergipe, especificamente jun-



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to à Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Ministério do Desenvolvimento Agrário e junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável. Certamente, o efeito será exitoso caso os diferentes movimentos como o MST-SE, Contag e o Maram convirjam nas ações, reivindicações e contestações. Tor-na-se imperioso deslocar a contrarreforma agrária de mercado do território da economia para o território da política e politizar o debate sobre as condições dos trabalhadores mutuários; e, uma vez neste território da política, somente a permanente pressão e negociação dos camponeses será capaz de produzir trans-formações estruturais em seu favor, contribuindo para a destruição desta políti-ca por dentro, uma vez que o que está em pauta não somente é o pagamento ou não da terra, mas a natureza do seu uso, o cumprimento da sua função social, da terra como valor de uso e do trabalho.

Este pode ser um momento de conquista não apenas de admissão pelo go-verno brasileiro da necessidade de anistiar as dívidas de aquisição da terra pela política de crédito fundiário, bem como importante conjuntura para a conquis-ta, pelos trabalhadores, de infraestrutura, equipamentos comunitários e polí-ticas de crédito, assistência técnica, educação e capacitação, comercialização, saúde etc.

Mas o MST-SE deve estar alerta para o afloramento de novas contradições no seu interior, dada a opção de ingresso no crédito fundiário. O mecanismo de compra e venda é, efetivamente, mais célere que o mecanismo de arrecadação via desapropriação. Isto pode criar uma expectativa na base social nos acampa-mentos rurais de soluções imediatistas via crédito fundiário. Será que a lógica do dinheiro conduzirá à fragmentação da base do MST-SE, que buscará outros mecanismos de ingresso na Cram, forjando assim as condições para atuação de líderes que atuam como corretores fundiários e dificultando a mobilização de famílias para realização das ocupações de terras? Esta é uma questão que o tem-po histórico nos demonstrará.

resistênciA e suBordinAção no movimento dos Atingidos PelA reformA AgráriA de mercAdo (mArAm)

O estado de Minas Gerais, integrante da região sudeste, é a quarta unidade da federação brasileira em extensão territorial, com 586.520,36 km², no qual predominam três biomas (cerrado, caatinga e mata atlântica), áreas de transi-ção e diferentes variações. Suas condições sociais, econômicas e ambientais são extremamente diversificadas, de modo que se faz necessário nesta introdução advertir o leitor que o foco desta seção do estudo é a mesorregião do Triângu-lo Mineiro/Alto Paranaíba, tendo em vista minha preocupação em analisar os processos de subordinação e resistência, vivenciados/praticados pelo campesi-



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nato organizado no Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mer-cado (Maram), cujos territórios rurais encontram-se na mesorregião geográfica supracitada27.

mAPA 4 – minAs gerAis: divisão mesorregionAl – 2010

Fonte: Dataluta – Banco de Dados da Luta pela Terra, 2009. Lagea/Nera

O Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba abrange uma área territorial de 94.241 km², localizada na porção extremo ocidental do estado de Minas Gerais, espe-cialmente na confluência dos Rios Grande e Paranaíba, que formam o Rio Pa-raná. Segundo classificação de Ab’Saber (2003) compõe um dos quadrantes do domínio morfoclimático dos chapadões recobertos por cerrados e penetrados por florestas galeria. “O domínio dos cerrados é um espaço territorial marcada-mente planáltico em sua área core. Paradoxalmente, é dotado de solos pobres, e condições climáticas bastante favoráveis” (Ab’Saber, 2003, p. 19). Limita-se ao

27 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) adota como unidade de análise a mesorregião do Trian-gulo Mineiro/Alto Paranaíba, enquanto que Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), com a finalidade de organização e sistematização dos dados, trata as regiões em separado. Adoto, concomitantemen-te, ambas definições.



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norte com o sul do estado de Goiás, ao sul com os municípios paulistas de São José do Rio Preto e Ribeirão Preto, a leste com a Central Mineira e o Oeste de Minas e a oeste faz fronteira com o estado do Mato Grosso do Sul.

mAPA 5 – minAs gerAis: triângulo mineiro – divisão municiPAl – 2010

Fonte: Dataluta – Banco de Dados da Luta pela Terra, 2009. Lagea/Nera

Sua situação, justamente no ponto de contato das regiões Centro-oeste e Su-deste do Brasil, assume importância econômica e geopolítica pela diversificada rede de circulação aí instalada que agiliza a circulação de mercadorias, intensifi-ca os processos produtivos na mesorregião, seja para os mercados consumidores e portos de exportação na faixa litorânea, seja a força de trabalho demandada nas atividades agropecuárias, agroindustriais e urbano-industriais. Destacam-se as rodovias federais BR-262 (que interliga o Triângulo Mineiro ao dinâmico porto de Vitória no Espírito Santo), BR-050 (interliga a região aos estados de São Paulo e Goiás), BR-153 (que contribui com integração paralela, sobretudo, de transporte de cargas à BR-050), BR-365 (dá acesso ao Goiás, norte de Minas Gerais e BR-116 (Rodovia Rio-Bahia, importante interligação com o Nordeste brasileiro), BR-146 (acesso à São Paulo e Sul de Minas), BR-354 (que interliga cidades do Alto Paranaíba).

Os estudos de Gomes (2004) elucidam que o processo de ocupação popu-lacional e econômica do Triângulo Mineiro se desenvolveu com o declínio da atividade de mineração, que desencadeou historicamente a ocupação do estado de Minas Gerais. Foi somente em finais do século XVIII que o Triângulo Mi-neiro, por meio de incentivos estatais, passou gradativamente a integrar o espa-ço econômico nacional, mediante a produção agropecuária mercantil. No final do século XIX, a mesorregião recebeu importantes investimentos do Estado na



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implantação de infraestrutura ferroviária que a interliga, especialmente com São Paulo e Rio de Janeiro.

Durante o século XX, esta mesorregião seguiu recebendo investimentos go-vernamentais, com destaque para as políticas do governo Getúlio Vargas (1930-1945), no bojo do plano da “Marcha para o Oeste”, que visava estimular mi-gração da força de trabalho excedente do Centro-Sul do país para atuarem na produção alimentar e de matérias primas a baixo custo, com vistas a subsidiar a industrialização do país. Contudo, foi na década de 1970 que o Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba foi inserido nos Planos Nacionais de Desenvolvimento (PNDs) que marcaram a estratégia desenvolvimentista dos governos militares, com vistas à inserção do Brasil no capitalismo monopolista mundial, conforme postulado por Oliveira (2003).

O planejamento rural no Brasil, adotado em seus diferentes planos e pro-gramas implantados a partir dos anos 1950, deve ser compreendido como uma decisão eminente política, encampada pelo Estado como forma de produzir transformações institucionais, burocráticas, econômicas, técnicas e físicas, bem como amenizar os embates entre as classes sociais e os embates intraclasses, adoção de medidas de política (crédito agrícola farto, seletivo e subsidiado, ga-rantia de preços mínimos, investimentos em pesquisa agropecuária, implanta-ção do sistema de assistência técnica e extensão rural, introdução e difusão dos insumos modernos etc.) destinadas a promover a industrialização do país, cujo motor seria o setor agrícola modernizado, sendo um dos eixos a expansão da fronteira agrícola. Esta concepção de desenvolvimento está consonante com o proposto por Poulantzas quando afirma que “todas as disposições tomadas pelo Estado capitalista, mesmo as impostas pelas massas populares, são finalmente e a longo prazo inseridas numa estratégia a favor do capital ou compatível com sua reprodução ampliada” (1980, p. 213). Segundo Gomes e Cleps Jr.

a ocupação do cerrado mineiro constituiu, assim, parte integrante dessas estratégias, sendo incluída no Plano Nacional de Desenvolvimento concebido neste período. Várias iniciativas governamentais se configuraram para apoiar esse processo, destacando-se o Programa de Cré-dito Integrado e Incorporação dos Cerrados (PCI), o Programa de Assentamento Dirigido do Alto Paranaíba (Padap), o Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (Polocentro) e o Pro-grama de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento do Cerrado (Prodecer) (Ibid., 2006, p. 133).

De modo geral, estes programas destinaram milhares de hectares a produ-tores vindos de outros espaços, particularmente da região Sul do Brasil, em de-trimento das populações locais. Mediante a fartura dos créditos subsidiados, o governo militar impulsionou a atividade agrícola empresarial, baseada em ex-tensas monoculturas de commodities (destacando-se a soja e o café) e o desenvol-vimento de agroindústrias e pecuária extensiva. Buscava-se a elevação da pro-



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dutividade e geração de divisas através da exportação dos resultados produtivos. Este modelo estava consonante com os interesses de industrialização do país, dentre outros fatores, porque o setor agrícola se convertia em consumidor dos produtos elaborados pela indústria de máquinas, implementos, insumos quími-cos, situadas tanto a montante, quanto a jusante das atividades agropecuárias.

Ademais, “as grandes jazidas de fosfato e calcário existentes no Triângulo Mineiro e no Alto Paranaíba atraíram para a região, por exemplo, a indústria de fertilizantes (...). Instalam-se na região as indústrias de fosfato Valefértil, e Fosfértil e a indústria de fertilizantes Arafértil, cujos os investimentos necessá-rios ultrapassam os US$ 300 milhões” (Gomes e Cleps Jr., 2003, p. 134). Ade-mais destes empreendimentos, instalaram-se na mesorregião grandes empresas do setor de laticínios, óleos vegetais, frigoríficos, setor sucroalcooleiro, rações, avicultura, fumo, frutas etc.

No bojo deste processo, verifica-se a ampliação da concentração fundiária, a expansão das relações de produção capitalistas no campo e a destruição de rela-ções de produção não capitalistas decorrentes da expropriação dos camponeses, a expulsão dos agregados das fazendas, dos arrendatários e parceiros e sua subs-tituição pelo trabalho assalariado, sobretudo em sua forma temporária.

Atualmente, vivencia-se o fechamento da fronteira agrícola dos cerrados mineiros, emergindo a tendência à intensificação da produção mediante a in-corporação de tecnologias substitutivas de força de trabalho, impondo a redu-ção nos postos de trabalho assalariado temporário e permanente. Este processo pode ser identificado na introdução da colheita mecanizada do café e, mais re-centemente, na introdução do corte mecanizado dos cultivos de cana de açúcar, que se favorece da topografia predominantemente dos terrenos.

Este processo de territorialização do capital monopolista no campo produz a desterritorialização do trabalho familiar camponês, em suas diferentes formas de realização. O estudo do lugar permite evidenciar o processo global de feroz avan-ço das desigualdades, da pobreza e da miséria. Este processo contraditório, ao mesmo tempo em que carrega a condição destrutiva do capital, engendra as con-dições de acirramento da luta de classes, materializada na intensificação das lutas dos trabalhadores assalariados e nas lutas por terra, tornando o Triângulo Minei-ro uma das regiões mais explosivas no tocante à disputa pela terra no país.

As décadas de 1950 e 1960 marcam os primeiros registros de organização dos trabalhadores rurais no Triângulo Mineiro, cuja organização institucional no estado iniciou-se em duas frentes: o movimento sindical e a atuação das Ligas Camponesas. A frente sindical estava ancorada na atuação União dos Lavradores e Trabalhadores da Agricultura do Brasil (Ultab), organização sob controle do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Esta União foi fundada em 1954 durante o II Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado na



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capital mineira, Belo Horizonte, e contou com a participação de trabalhadores rurais e camponeses do Triângulo Mineiro e sul do estado (Gomes, 2004).

A linha de ação da Ultab objetivou, em um primeiro momento, a formação e fundação de associações de trabalhadores agrícolas. No ano de 1956, fundam Associação dos Trabalhadores Agrícolas de Minas Gerais (ATAMG) como um dos resultados da realização da 1ª conferência da organização. Além da coordena-ção política realizada por parte do PCB, outras instituições exerceram influência sobre ATAMG, destacando-se a Igreja Católica, o estado de Minas Gerais, além de setores ruralistas. Desde então, as ações deste segmento dos trabalhadores agrícolas foram norteadas pelo esforço em fundar os Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STRs). Na prática, conforme tentei demonstrar na seção “Histórico da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag)”, a criação dos sindicatos se davam sob a tutela do Estado, como forma de garantir um ins-trumento de mediação entre o primeiro e os trabalhadores (Gomes, 2004).

Após o golpe militar de 1964, um dos instrumentos utilizados pelo governo para reduzir a combatividade da classe trabalhadora foi, em que pese a extrema repressão, a ampliação dos direitos sociais; neste caso, destaca-se a criação, em 1971, da previdência rural, o Fundo de Assistência Rural (Funrural).

A distribuição dos recursos do FUNRURAL, assim como de outras formas de assistência, foi entregue aos sindicatos rurais. Em muitas localidades do interior, o único médico disponível, inclusive para os proprietários, passava a ser o médico do sindicato. A repressão inicial exer-cida contra esses sindicatos, aliada às tarefas de assistência agora a eles atribuída, contribuiu muito para reduzir a sua combatividade política e gerou dividendos políticos para os militares (Carvalho, 2006, p. 171-172).

A outra frente de organização do campesinato do Triângulo Mineiro se deu, por meio das Ligas Camponesas. Estas atuaram na região entre o final da década de 1950 e início da década de 1960. As Ligas no país, de certa forma, escaparam do controle governamental e da própria estrutura sindical, por se constituírem em sociedades civis. Segundo Gomes (2004), no Triângulo Mineiro as Ligas se voltaram em parte para sindicalização rural. Na década de 1960, Francisco Ju-lião, fundador das Ligas, visitou Cuba, e após seu retorno, a forma de atuação das Ligas radicalizou-se, sendo que uma parcela destas optou pela realização da luta armada, com o financiamento e orientação cubana. Foram criados campos de treinamento no estado de Goiás, limítrofe ao Triângulo Mineiro. “A aproxi-mação com Cuba assustou ainda mais os proprietários de terras, cuja reação se tornou mais violenta. Os Estados Unidos também se inquietaram e começaram a dirigir para o Nordeste pessoal e recursos da Aliança para o Progresso” (Carva-lho, 2006, p. 139). Em 1962, os campos de treinamento foram desarticulados pelo governo federal e, em 1963, o Conselho Estadual da Ligas Camponesas do Triângulo Mineiro foi fechado.



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Em 1968, foi criada a Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetaemg). Sob forte influência dos setores conservadores da Igreja e tutela do Estado, desempenhou uma atuação consonante com a orien-tação nacional do sistema Contag, fundamentada no assistencialismo (Gomes e Cleps Jr., 2006, p. 142). Foi somente a partir do III Congresso Nacional, em 1979, que esta orientação começa a ser transformada gradativamente. Deste fórum, o Movimento Sindical dos Trabalhadores Rurais decidiu apoiar as lutas de resistência na terra e realização de mobilização dos trabalhadores para ocu-parem terras.

Em princípios da década de 1980 as lutas na/pela terra se multiplicavam em todo o país e também no Triângulo Mineiro. Como condicionantes, pode-se mencionar sucintamente o processo de distensão do regime repressivo militar, o aprofundamento das desigualdades desencadeadas pela modernização conser-vadora, bem como a atuação de novos sujeitos sociais na luta pela terra, espe-cialmente na região em análise, dentre os quais estão: a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terras (MST).

O redirecionamento da ação da Fetaemg, a partir da década de 1980, resul-tante das orientações do III Congresso, focou-se na defesa dos direitos dos assa-lariados rurais. Objetivava-se a implantação da Convenção Coletiva do Trabalho, cumprimento da legislação trabalhista, melhorias nas condições de trabalho e de remuneração. A principal forma de luta era a organização de movimentos grevis-tas entre os boias-frias do café, cana etc. Segundo Gomes (2004) tais lutas salariais contribuíram significativamente para a construção mais combativa no interior do movimento sindical.

Somente na segunda metade da década de 1980 é que a Fetaemg passou a se envolver com as lutas de resistência na terra e somente na década de 1990, envol-veu-se diretamente com as ocupações de terras e conflitos fundiários (Gomes e Cleps Jr., 2006). Na prática “a ação da Fetaemg restringia-se ao acompanhamen-to e à divulgação dos fatos e conflitos mediante encaminhamentos legais e ainda atrelados ao Estado, e não como uma ação de mediação efetiva visto tratar-se de um acompanhamento de ações que se originavam sem a contribuição direta da Federação” (Gomes e Cleps Jr., 2006, p. 147). Portanto, foram os sindicatos ru-rais que realizaram as diferentes lutas pela posse da terra ao longo dos anos 1980, no Triângulo Mineiro e demais regiões do estado, forçando a transformação da forma de ação da Federação, sobretudo a partir de 1993. Há que registrar-se que parte importante destas lutas contou a atuação da CPT e do MST.

A primeira luta pela posse da terra de grande enfrentamento e repercussão no Triângulo Mineiro foi desencadeada por 120 posseiros que enfrentaram as tentativas de expulsão da Fazenda Barreiro, no município de Iturama. Após



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cinco anos de resistência, perseguições, assassinatos, judiciarização, em nove de março de 1986 foi conquistada a implantação do primeiro assentamento de re-forma agrária do Triângulo Mineiro (e um dos três primeiros do estado de Mi-nas Gerais): o PA Iturama. A atuação de duas entidades foi importante para esta conquista desta área: o STR de Iturama e a Comissão Pastoral da Terra. A luta pela Fazenda Barreiro gerou importante aprendizado para os trabalhadores em movimento e tornou-se referência no desencadeamento de outras lutas, como a ocupação, em 1986, de uma área da Companhia de Luz e Energia de Minas Gerais (Cemig) e as lutas de conquista do PA Nova Santo Inácio Ranchinho28, no município de Campo Florido, em 1994 (Gomes e Cleps Jr., 2006).

As lutas por terras na região estão marcadas por forte e violenta ofensiva por parte dos proprietários, organizados na União Democrática Ruralista, que reagem implantando a perseguição aos camponeses e suas lideranças por meio dos jagunços, a judiciarização da questão agrária, assassinatos etc. Na década de 1990 a região vivenciou nova onda de intensificação da mecanização nas fazen-das, aprofundando ainda mais o desemprego estrutural, agravando a desigual-dade, ampliando a pobreza e a miséria. Como reação de classe, os trabalhadores seguiram intensificando a luta pela terra, por meio dos sindicatos rurais, além da formação de novos movimentos socioterritoriais. Em que pesem as diferen-ças programáticas entre eles e o alcance da área de atuação, consolida-se a ocu-pação de terras como a principal forma de recriação do campesinato na região.

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi uma das mais importantes enti-dades na mobilização dos trabalhadores e produção de espaços de socialização política, proporcionando a multiplicação das lutas e construção de novas expe-riências na região. Atuou até o ano de 1989, quando

(...) frente à divergências da coordenação regional com as direções estadual e nacional é trans-formada em APR – Animação Pastoral e Social do Meio Rural, assumindo o apoio às ocupa-ções de terra como uma de suas principais estratégias de luta. Além de assessorar os movimen-tos sociais nos conflitos por terra e contribuir como importante mediadora das ações, a APR tem também uma significativa atuação na área de formação política, especialmente entre os trabalhadores rurais envolvidos na luta pela terra na região, e como prestadora de assistência técnica aos assentados (Gomes, 2004, p. 145).

Apesar de iniciar as atividades na região em 1986, somente no ano de 1997 que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terras cria sua Regional no Triângulo Mineiro, o que contribui para a intensificação da luta pela terra. Ou-tra organização que se destaca na luta pela terra na região é o Movimento Ter-ra, Trabalho e Liberdade (MTL). Fundado em 1995 através da articulação da

28 Cf. Guimarães, Letícia de Castro 2002 Luta pela terra, cidadania e novo território em construção: o caso da Fazen-da Santo Inácio Ranchinho, Campo Florido – MG (1989 – 2001) Dissertação de Mestrado em Geografia (Uber-lândia: Universidade Federal de Uberlândia).



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APR, primeiramente se denominou Movimento Democrático dos Sem-Terra (MDST), posteriormente, passou a chamar-se Movimento de Luta pela Terra. Em 1997, decidiu fundir-se com movimentos de outros estados da federação criando o Movimento de Libertação dos Sem-Terra (MLST)29, um dos poucos movimentos socioterritoriais criados no Brasil na década de 1990 que almeja uma atuação nacional. “Será o movimento que realizará o maior número de ocupações, especialmente no Triângulo Mineiro, desde o período de sua cria-ção até novembro de 2000, quando o MLST Regional rompe com a direção nacional e passa a se denominar MLST de Luta. Apenas um grupo reduzido da região permanecerá, ainda hoje, vinculado ao MLST Nacional” (Gomes e Cleps Jr., 2006, p. 156).

Neste contexto, a segunda metade da década de 1990 em Minas Gerais e no Triângulo Mineiro, acompanhando a tendência nacional, é marcada pela explosão das lutas por terras. De acordo com os números apurados pelo Banco de Dados da Luta pela Terra, entre 1988 e 1995 foi registrado em Minas Gerais 28 ocupações de terras, envolvendo 3.551 famílias. No mesmo período foram conquistados 28 imóveis, beneficiando 3.677 famílias em assentamentos de reforma agrária.

Um olhar menos atento para estes números pode levar à conclusão de que as lutas resolveram os conflitos fundiários do período, o que não é a expressão da realidade. Há que mencionar que os registros da luta pela terra, neste pe-ríodo, eram realizados e publicados quase que exclusivamente pela Comissão Pastoral da Terra, decorrentes da atuação dos agentes pastorais que realizam o acompanhamento das comunidades mediante trabalho de base30. Estes núme-ros expressam apenas parte da realidade, de modo que, seguramente, muitos outros conflitos e lutas realizadas pelos trabalhadores não puderam ser registra-dos pelos agentes da CPT. A ocupação de terras é uma forma de luta popular adotada pelos trabalhadores que, através do dimensionamento do conflito, reti-ra os expropriados, expulsos das terras e trabalhadores assalariados da condição de invisibilidade social. De modo que os números de sujeitos que demandam a redistribuição da terra é ainda maior que aquele registrado nas ocupações. Os imóveis arrecadados para fins de reforma agrária nem sempre são aqueles reivin-dicados pelas lutas das ocupações, bem como, podem estar em outros municí-pios ou microrregiões onde as lutas dos trabalhadores foram desencadeadas, não solucionando, portanto, os problemas da desigual distribuição fundiária.

No período compreendido entre 1996 e 2008, o Dataluta registrou a ocor-rência de 572 ocupações de terras no estado, envolvendo 55.694 famílias, das

29 Cf. Mitidiero Junior, Marco Antonio 2002 O Movimento de Libertação dos Sem-Terra e as contradições da luta pela terra no Brasil Dissertação de Mestrado em Geografia (São Paulo: Universidade de São Paulo).

30 Importante fonte de registros da luta pela terra no Brasil desde os anos 1980, consulte os Conflitos no campo, da CPT, disponível em: <http://www.cptnacional.org.br/>



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quais somente 18.166 famílias foram assentadas em 315 assentamentos de re-forma agrária (Gráfico 3). Observe-se que ação estatal de implantação de assen-tamentos de reforma agrária fica muito aquém dos imóveis reivindicados pelos trabalhadores e beneficia apenas 32,61% das famílias envolvidas nas ocupações de terras.

Faz-se relevante ressaltar que, de acordo com o Relatório Dataluta Minas Ge-rais, 2008, o Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba é a mesorregião de Minas Gerais com a maior ocorrência de ocupações de terras e famílias envolvidas no período compreendido entre 1990 e 2008 (Tabela 9). Se considerarmos o ranking dos 10 municípios mineiros que neste período registraram o maior número de ocu-pações de terras e famílias envolvidas, cinco deles estão localizados no Triângulo Mineiro, a saber: Uberlândia, Santa Vitória, Prata, Ituiutaba e Araxá.

Sobretudo a partir do ano 2000, a luta pela terra, nesta mesorregião, foi in-tensificada pela diversificação dos movimentos socioterritoriais que passaram a aí atuar, ademais dos apresentados acima, dentre os quais elenco: Movimento Terra, Trabalho e Liberdade (MTL), Liga Operária e Camponesa (LOC), Mo-vimento de Luta pela Terra (MLT), Caminho de Libertação dos Sem-Terra (CLST), Movimento pela Reforma Agrária (MPRA), União Nacional de Luta Camponesa (UNLC), Movimento dos Trabalhadores Rurais (MTR) Movi-mento Sindical dos Trabalhadores Rurais (MSTR), Animação Pastoral e Social no Meio Rural (APR).

tABelA 9 – minAs gerAis: mesorregiões com mAior número de ocuPAções 1990-2008

Classificação Mesorregiões Nº de ocupações Nº de famílias

1º Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba 207 20.668

2º Norte de Minas 161 13.554

3º Noroeste de Minas 110 10.610

4º Vale do Rio Doce 39 5.769

5º Jequitinhonha 29 3.352

6º Metropolitana de Belo Horizonte 25 3.250

7º Sul/Sudoeste de Minas 12 950

8º Vale do Mucuri 7 1.003

9º Oeste de Minas 5 395

10º Central Mineira 4 160

11º Zona da Mata 2 67

Total 601 59.778

Fonte: Dataluta Minas Gerais: Banco de Dados da Luta pela Terra, 2009. Lagea/Nera



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A classe dos proprietários, em uma atitude reativa contra a organização dos trabalhadores, atualiza, permanentemente, suas tentativas de ter o controle do conflito de diferentes formas. Mesmo com a extinção da UDR em Minas Ge-rais, no ano de 1994, os ruralistas têm se mantido organizados por meio da atua ção da sua bancada ruralista nas esferas estadual e nacional, com vistas à defesa e garantia da vigência dos seus interesses, bem como das propriedades fundiárias. É, também, através do espaço parlamentar que os ruralistas conse-guem influenciar as decisões do Judiciário favoravelmente aos seus interesses de classe, bem como controlar os governos locais.

Em 1997, quando da intensificação da luta pela terra, os ruralistas decidi-ram sistematizar e institucionalizar as ações de eliminação física dos trabalha-dores, que já ocorria assistematicamente mediante a contratação de jagunços: a ordem agora era a formação de milícias para dar proteção à propriedade priva-da. Nesse sentido, fundaram a União de Defesa da Propriedade Rural (UDPR), sediada no município de Ituiutaba. De acordo com o Estatuto da UDPR são finalidades desta organização:

Art. 2º - Pleitear e adotar medidas cabíveis aos interesses dos associados, constituindo-se em defensor e cooperador ativo e vigilante de tudo quanto possa concorrer para defender o direito de propriedade, a proteger, orientar, resguardar, defender e colaborar em todos os sentidos sem fins lucrativos aos associados, notadamente: a) Conclamar os Produtores Rurais da região da propriedade invadida a se unirem em torno da agremiação, de modo a conferir-lhe qualidade e quantidade representativa. b) Comparecer no local determinado da propriedade invadida com os demais sócios, no dia e hora marcado, previamente pela diretoria. c) Prestar outros serviços aos sócios sob a forma de ação comunitária, coordenando todos os programas relativos a inva-sões, tais como: alimentação, jurídico, transporte, contratação de seguranças, retirada dos inva-sores e solidariedade em um todo (UDPR, 1997, p. 1 apud Gomes e Cleps Jr., 2006, p. 163).

Esta União promoveu várias ações truculentas e violentas contra os trabalha-dores, dentre as quais vale destacar, no dia 22 de setembro de 1998, a tentativa de assassinato do Frei Rodrigo de Castro Amedée Peret, coordenador da APR e tortura do agente de pastoral da APR, Marcelo Resende. O fato ocorreu quan-do 800 famílias ocuparam a Fazenda Perobas, de 1.500 hectares, no município de Santa Vitória. No dia seguinte, quando os agentes de pastoral, juntamente com dirigentes sindicais, dirigiam-se para a localidade, tiveram o carro inter-ceptado pela milícia armada dos ruralistas e sofreram a agressão.31 Além desta, outras milícias armadas foram formadas no Triângulo Mineiro, a exemplo do Movimento Contra Invasões de Terras, bem como o Movimento Nacional dos Produtores, todas buscando através da eliminação física dos trabalhadores en-volvidos nos conflitos por terras, demonstrar para a sociedade a ordem da sa-

31 <http://www.ofm.org/3/just/JUSperet3.html>.



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cralidade do monopólio da propriedade da terra, de modo a aterrorizar aqueles sujeitos que estivessem planejando entrar na luta pela terra.

Diante dessa tática, que tentava forjar no imaginário social a intocabilida-de das grandes fazendas, mediante a eliminação física, fazia-se necessário criar na região o seu complemento, ou seja, um instrumento de acesso a terra para os mais pobres, desde que estivesse sobre o controle de classe dos ruralistas. Ao mesmo tempo, este instrumento deveria disponibilizar dinheiro, ser um negó-cio rentável, especialmente para aqueles produtores que face às políticas agrí-colas e cambiais do período encontravam-se endividados. Portanto, foi neste contexto que os ruralistas se articularam para introduzir e difundir no Triângu-lo Mineiro e, em Minas Gerais, os mecanismos de contrarreforma agrária do Banco Mundial.

Retomando o Gráfico 3, verifica-se que, entre 1998 a 2008, foram implan-tados, nesta unidade da federação, 578 empreendimentos de crédito fundiário, que atingiram 5.3546 famílias nas linhas de financiamento Cédula da Terra, Banco da Terra e Crédito Fundiário. Tomando como referência os depoimen-tos obtidos no trabalho de campo com o Maram, no Triângulo Mineiro o perfil político dos mutuários diz respeito àqueles sujeitos excluídos do acesso à terra e que não estavam dispostos a realizar ações de ocupações; possivelmente esta decisão/opção possa se manifestar pelo receio da truculência dos proprietários ao reprimir os trabalhadores em luta.

Nestes doze anos de vigência da Cram em Minas Gerais, verifica-se que das 20.178 famílias que entraram na terra, seja pela reforma agrária ou crédito fundiá-rio, aquelas que foram atingidas pela Cram representam 26,54% do total e, ainda, 36,16% daquelas beneficiadas pelo programa nacional de reforma agrária. O que atesta também nesta unidade da federação a celeridade da expansão deste instru-mento de crédito fundiário, cuja espacialização pode ser vista no Mapa 6.

Apesar das tentativas de desarticular os movimentos socioterritoriais e as lu-tas por terras em Minas Gerais com a introdução da Cram, os dados revelam que as lutas populares não somente continuam, como também se intensificam. No tocante àquelas famílias que ingressaram nos empreendimentos de contrar-reforma agrária de mercado, o capital buscava eliminar sua capacidade organi-zativa para a reivindicação e contestação, implantando empreendimentos com vários vícios e fadados ao fracasso, conforme tentarei demonstrar a partir dos próximos subcapítulos.

Diante da falência dos empreendimentos, os sujeitos aprisionados aos siste-mas bancários mediante dívidas, não teriam condições de se organizar para bus-car a superação das suas realidades. Todavia, a realidade tem demonstrado no Triangulo Mineiro/Alto Paranaíba exatamente o contrário. As famílias mutuá-rias do Banco da Terra têm buscado organizar-se no Movimento dos Atingidos



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pela Reforma Agrária de Mercado (Maram) com vistas a construir a superação das suas realidades.

Neste sentido, passo em seguida para análise dos impactos socioterritoriais da implantação de empreendimentos do Banco da Terra, cujas associações inte-gram o Maram, no município de Ituiutaba.

mAPA 6 – minAs gerAis: fAmÍliAs em crédito fundiário Por municÍPio. 1998-2008

o cAso dA AssociAção dos Agricultores fAmiliAres do PontAl: A PossiBilidAde dA construção dA soBerAniA AlimentAr

A formação da Associação dos Agricultores Familiares do Pontal foi desencadea-da por volta do ano 2000, quando um dos meus entrevistados ouviu no pro-grama de rádio, A Voz do Brasil, uma propaganda do Banco da Terra. Este era



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um momento de forte difusão desta linha de financiamento, em particular no Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba que acabara de introduzi-la, mediante o pro-cesso de municipalização analisado no subcapítulo A construção do Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado (Maram).

O município de Ituiutaba viveu uma particular difusão desta linha de crédito frente as ações do então prefeito, Públio Chaves, que também acumulava o cargo de presidente da Associação dos Municípios do Alto Paranaíba (Amvap), órgão responsável pela introdução do Banco da Terra na região. Ao ouvir a propaganda no rádio, o referido camponês, que havia vivido boa parte da sua vida na con-dição de agregado de fazendas e arrendatário, reatualizou seu sonho de retornar para a terra de trabalho. Primeiramente buscou informações no Banco do Brasil, onde descobriu, para sua contrariedade, que o ingresso no programa, na região, seria somente mediante a demanda de uma associação de pequenos produtores. Diante disso, buscou conversar com um amigo com maior desenvoltura na orga-nização de grupos. Este último passou a convidar pessoas próximas para reuniões com vistas a formar uma associação destinada a pleitear o financiamento.

Diversas reuniões foram realizadas, contando com o apoio organizativo da Emater. Após a formação da associação, as famílias saíram a campo em busca de um imóvel que estivesse à venda. Encontraram uma fazenda na localidade do Baú Velho. A Emater elaborou a proposta de financiamento do Banco da Ter-ra e contribuiu com a negociação do preço da fazenda. Quando o negócio de compra e venda já estava fechado e a proposta de financiamento do empreen-dimento tramitando, o proprietário desistiu de vendê-la para os candidatos a mutuários do BT e concretizou o negócio com um grupo de fazendeiros do en-torno do imóvel.

Este período, conforme discuti na introdução deste subcapítulo, foi marca-do pelo acirramento da luta de classes no campo mineiro e na mesorregião do Triângulo. Os ruralistas encaravam toda e qualquer movimentação de famílias sem-terra com grande suspeição, receio e reações de ódio. Na perspectiva dos mutuários, o negócio foi desfeito porque os fazendeiros integrantes da UDR “morriam de medo da gente, por isso que eu te falei no início, que quando a gente foi, eles juntaram os fazendeiros comparam a fazenda pra não deixar o ra-paz vender pra gente. Porque eles tinham medo da gente, achavam que a gente era vândalos, né” (Itu 02, Ituiutaba, 2009).

Diante desta frustração, seguiram buscando outro imóvel até encontrarem a Fazenda Vertente Comprida, localizada há 16 km da sede municipal de Ituiu-taba, percorrendo 11 km pela rodovia BR-365 sentido Ituiutaba – Santa Vitó-ria, entrando a esquerda no km 772, defronte à Estância Vitória, integrada à Sadia, percorre-se mais 5 km em estrada de terra até a entrada da fazenda. Este imóvel localiza-se em uma zona do agronegócio, em cujas proximidades estão



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diferentes fazendas pecuaristas, dentre as quais se destacam a Estância Tijucano e a Fazenda Santa Paula, bem como realiza limite com a destilaria Companhia Nacional de Açúcar e Álcool (CNAA) (Figuras 20 e 21).

A fazenda possuía ao todo 311 hectares e o grupo interessado no seu finan-ciamento pelo Banco da Terra era formado por 30 famílias. Contudo, as diretri-zes de aplicação do Banco da Terra no Triângulo Mineiro se assemelham com o que foi encampado em Sergipe, ou seja, ingresso dos mutuários seria de forma associativa e em pequenos grupos. Neste contexto a Fazenda Vertente Compri-da foi desmembrada em dois imóveis cuja venda foi concretizada para Associa-ção dos Agricultores Familiares do Pontal e para a Associação dos Agricultores Familiares do Pontal II, com 10 sócios.

figurA 20 – minAs gerAis – ituiutABA: territoriAlidAde do Agronegócio no Acesso Ao emPreendimento do BAnco dA terrA


figurA 21 – minAs gerAis – ituiutABA: limite entre o emPreendimento BAnco dA terrA e destilAriA de etAnol cnAA




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Este estudo debruça-se sobre a primeira associação de mutuários do Ban-co da Terra por ser esta emblemática para o registro, análise e compreensão do processo de formação e atuação do Maram. Pois, as iniciativas de interlocução com outras associações de mutuários do Triângulo Mineiro e as primeiras rei-vindicações junto aos órgãos gestores do programa que desencadearam a gênese do Maram, partiram do seu interior.

De acordo com proposta de financiamento elaborada pela Emater, a Fa-zenda Vertente Comprida, com total de 237,9525 hectares, de propriedade de Clóris Paula Bruno Diogo, Arnaldo Santos Diogo e Gisele Conceição Bruno, foi vendida em julho de 2001 por R$ 475.058,32 para a Associação dos Agri-cultores Familiares do Pontal. Deste montante, R$ 432.558,32 foram pagos diretamente aos proprietários, referente à terra nua e R$ 42.500,00 relativos às benfeitorias do imóvel, que incluíram casa sede, galpão, curral/seringa/tronco/embarcadouro, bebedouro d’água, roda d’água, rede de energia elétrica, três km de cerca de arame liso divisória, cinco km de cerca de arame liso interna e duas represas. Ademais, foi desembolsado R$ 18.822,00 com custos cartoriais, R$ 1.370,00 com a elaboração do projeto de financiamento e R$ 400,00 com a confecção da placa do empreendimento. De modo que o valor global de con-tração do empreendimento alcançou R$ 495.650,32.

A Associação dos Agricultores Familiares do Pontal foi formada por 28 fa-mílias originárias do mesmo município de Ituiutaba. No tocante aos custos de aquisição do imóvel ficou programado, após três anos de carência, o pagamen-to da primeira anuidade no valor de R$ 46.605,57 e a última das 17 parcelas anuais programadas, no valor de R$ 131.489,41. Observe-se que o contrato prevê o aumento das parcelas ao longo do tempo, contrariando o que pregavam os gestores do programa, que no futuro a parcela seria menor que uma caixa de fósforos, conforme discurso de promotor do Banco da Terra, discutido no subcapítulo A criação e recriação do campesinato e os processos de espacialização e territorialização.

Foram contratados junto ao Banco da Terra outros R$ 137 mil com vistas à implantação da seguinte infraestrutura comunitária e os respectivos valores: 28 casas de moradia no valor de 98 mil, eletrificação rural comunitária no valor R$ 26 mil, um poço artesiano no valor de por R$ 6 mil e juntamente com uma caixa d’água com capacidade de armazenamento de 20 mil litros e respectiva rede de distribuição, para atender o abastecimento de água para a comunidade em implantação. O projeto previa os seguintes investimentos produtivos, cujos recursos adviriam do Pronaf – A: a) formação/recuperação de 110 ha de pastagens com capim mombaça, ao valor de R$ 10 mil, para a criação de 140 cabeças de rebanho bovino, ao preço de R$ 187.524,00, destinados à produção de carne, leite e queijo; b) 0,5 ha para implantação



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de estrutura de suinocultura integrada com agroindústria, com investimen-to previsto de R$ 157 mil; c) 5 ha para implantação de estrutura de granja e aquisição de 10 mil cabeças de frango caipira por R$ 36.666,00; d) 5 ha destinado à implantação de lavoura de mandioca por R$ 1.750,00; R$ 8 mil para implantação de 3 ha de lavoura de figo, com vistas a elaboração de do-ces; e) 10 ha de lavoura de cana-de-açúcar ao custo de R$ 10 mil destinada à alimentação do gado e usina de açúcar e álcool.

Ao todo, o projeto previa a demanda, por parte das famílias, de outros R$ 420 mil do crédito agrícola Pronaf-A. De acordo com os cálculos e proje-ções dos profissionais que elaboraram a referido projeto de financiamento, os custos anuais de todos os empreendimentos ficavam abaixo da rentabilidade prevista, atestando, portanto, a viabilidade do negócio.

Chama à atenção o planejamento de todos os sistemas produtivos em regi-me de trabalho comunitário, cujo montante total de investimentos supera a ca-pacidade de obtenção de crédito das famílias mutuárias, e cujo perfil enquadra-se na categoria do Pronaf-A, que no ano de implantação dos créditos previa o teto de financiamento de R$ 12 mil por família, o que aportaria, no máximo, R$ 336 mil para a comunidade. Considerando que as famílias estavam saindo da condição de sem-terras, dificilmente teriam condições de realizar o investi-mento restante de R$ 84 mil. Este fato anuncia que a estrutura produtiva pro-gramada para a implantação do empreendimento sofreria algum tipo de redi-mensionamento e/ou incompletude, o que poderia resultar na amortização das parcelas do crédito fundiário e/ou do próprio crédito agrícola.

Após a liberação dos recursos do Banco da Terra e aquisição da terra, ime-diatamente iniciaram-se as obras de implantação das moradias e da infraes-trutura comunitária. Terminada esta fase, era grande a expectativa dos agri-cultores para a liberação imediata do crédito agrícola pronafiano com vista a iniciar a implantação dos projetos produtivos de geração da renda, destinada à reprodução social das famílias e formação de poupança para pagamento dos empréstimos. Os projetos apresentados para solicitação de crédito agrícola foram redimensionados nos valores e ajustados nos projetos produtivos, para apenas quatro eixos: implantação de granja e aquisição de matrizes de frango de postura, agroindústria de farinha, bovinicultura de leite e suinocultura in-tegrada a Sadia.

Nesta fase de implantação do empreendimento, os mutuários vivenciaram a primeira dificuldade uma vez que os recursos do Pronaf - A somente foram liberados dois anos depois da implantação da agrovila, dificultando, neste ínte-rim, a sobrevivência das famílias e comprometendo a capacidade de pagamen-to das mesmas. O atraso na liberação do crédito agrícola foi tamanho que no momento em que os projetos produtivos estavam sendo instalados, vencia o



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período de carência e chegava aos mutuários a cobrança bancária da primeira anuidade da terra.

Na perspectiva da presidente da Associação, estes fatos foram agravados pela limitação das famílias em trabalhar de forma associativa/cooperativa, condição imposta verticalmente pelas regras do programa. Sobre esse dilema, vejamos o relato a seguir:

Só que a gente encontrou muita dificuldade no associativismo porque nós não temos essa cultura de associativismo aqui. Que a maior parte do pessoal era meeiros, trabalhava com seu fulano, pro seu sicrano, entendeu. Então eles achava que associação era patrão! E eles era os empregados e queria receber da associação como empregado, só que não trabalhava, mas acha-va que sendo da associação.. (Itu 02, Ituiutaba, 2009).

Decorrente destas situações, os mutuários foram registrados no cadastro de inadimplentes do Serasa e Cadin, multiplicando e aprofundando as divergên-cias entre os associados. Esta situação conduziu à desestruturação da associação no seu primeiro triênio, conforme atesta-nos a carta enviada ao delegado do MDA em Minas Gerais (Figura 22).

Apesar do atraso na liberação dos créditos agrícolas, os investimentos reali-zados foram importantes para implantação de uma boa infraestrutura produ-tiva em cada um dos quatro sistemas agrários adotados. Contudo, há aqueles mutuários que relatam que o principal problema para o desenvolvimento das atividades foi a falta de mão de obra. Uma vez que parte dos sócios nunca se-quer pisou no empreendimento, outros não se realizavam com o trabalho agrí-cola e outros acreditavam que teriam apenas que cumprir tarefas em troca de salários, além do que, as divergências internas levaram muitas famílias a evadi-rem-se do empreendimento.

Os sistemas produtivos, como a granja de frangos e a agroindústria de fa-rinha, somente têm viabilidade econômica se houver força de trabalho em-penhada nas diferentes atividades exigidas, como o manejo da granja, abate e comercialização dos animais/ovos, bem como o cultivo, beneficiamento e co-mercialização da mandioca. Acrescente-se a esta reflexão que o ordenamento territorial do empreendimento previu a utilização de toda a área com a utiliza-ção de pastagens, destinando-se apenas os quintais produtivos às lavouras; logo, dificilmente seria possível obter a matéria prima necessária para a operação da fábrica de farinha.

No ano de 2009, quando realizei trabalho de campo nesta comunidade, os muitos desentendimentos internos, evasões, expulsões, falecimentos etc., que impulsionaram a desestruturação organizativa da associação, deixaram impres-sas na paisagem do empreendimento os sulcos da desterritorialidade, materiali-zados na agrovila, nos equipamentos comunitários e investimentos produtivos (Figura 23).



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figurA 22 – minAs gerAis – ituiutABA: cArtA endereçAdA Ao delegAdo regionAl do mdA




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figurA 23 – minAs gerAis – ituiutABA: desterritoriAlidAde nA AssociAção dos Agricultores fAmiliAres do PontAl


Dos quatro projetos produtivos implantados com os recursos do Pronaf-A, foi possível verificar que apenas a bovinicultura de leite e suinocultura integrada à Sadia, conseguiu, de alguma maneira, ter continuidade. Já a granja de postura e a agroindústria de farinha encontravam-se totalmente sucateados e abando-nados (Figura 24).

Para solucionar os problemas de evasão de mão de obra, a solução encon-trada pelos remanescentes da associação, para não perderem os projetos produ-tivos e, assim, ampliarem a condição de endividamento, foi contratar força de trabalhado para os sistemas agrários que demandam pouca mão de obra e cuja rentabilidade garante os custos de produção e contração da força de trabalho. Assim, a bovinocultura de leite conta com um vaqueiro que realiza todos os procedimentos de manejo do gado e coleta diária do leite que é vendido para os laticínios da região.

A suinocultura, por sua vez, emprega dois funcionários, especificamente um casal, que tem como atribuições todo o manejo necessário ao bom funciona-mento do galpão de suínos e garantia dos padrões sanitários e de qualidade exi-gidos pela agroindústria Sadia. Os três funcionários são contratados como tra-balhadores assalariados, cuja remuneração mensal é de R$ 600,00, com registro no Ministério do Trabalho. A Associação destina às duas famílias moradia nas casas do empreendimento e direito de exploração com agricultura de autocon-sumo no quintal produtivo, circundante das casas. A única proibição para todos os mutuários é a de criação dos suínos, tendo em vistas as normas de biossegu-rança impostas pelo contrato de integração com a Sadia.



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figurA 24 – minAs gerAis – ituiutABA: desterritoriAlidAde nA AgroindústriA de fArinhA ABAndonAdA


Em 2009, foi possível encontrar apenas dois mutuários realizando ativida-des produtivas no empreendimento, particularmente nos lotes de moradia. Por outro lado, o momento do trabalho de campo era também uma fase de muita esperança dos mutuários no que tange à reversão da falência do empreendimen-to, pois se buscava a recomposição do quadro de sócios prevista na recém publi-cada MP 432/2008. Dos 28 mutuários pioneiros, haviam permanecido apenas 7 famílias, cuja maioria não residia ou trabalhava no local. Com os trâmites de renegociação da dívida, decidiram por reduzir o número total de sócios para 16 famílias, várias das quais com laços de parentesco entre si.

Segundo a presidenta da Associação, os rendimentos auferidos, sobretudo, com a suinocultura integrada têm sido suficientes para pagar os funcionários, os direi-tos trabalhistas, a manutenção dos sistemas produtivos, a renegociação do Pronaf e contam com este recurso, também, para pagar o 1% da renegociação da dívida da terra, para que saiam da prisão da dívida e da sombra da inadimplência.

A associação produz e comercializa com a Sadia periodicamente cerca de 1.850 suínos. Os projetos produtivos com a agroindústria expressam um pro-cesso de monopolização do território camponês pelo capital agronegociante, uma vez que determinam os padrões e infraestrutura produtiva, controlam o conhecimento, o preço e as condições de comercialização dos resultados da pro-dução realizados pelo trabalho camponês e dos seus funcionários.

Pode ser analisado como um modo de subordinação camponesa na medida em que o capital se beneficia da capacidade do campesinato de endividar-se, primeiramente, para adquirir a terra e, posteriormente, para aquisição e im-plantação de infraestrutura produtiva e implementos de custeio, mediante aces-



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so ao crédito agrícola que lhes é de direito. Muitas vezes, os equipamentos e serviços são comprados da própria agroindústria, como no caso da integração com a Sadia. Os produtos do trabalho familiar devem ser estritamente comer-cializados pela empresa, que pratica preços de acordo com a dinâmica do mer-cado globalizado.

Todavia, um dos principais dilemas da agricultura, em particular da pe-quena agricultura, são os preços de comercialização praticados. A integração para os camponeses desta associação representa a garantia de auferir uma renda monetária, importante para financiar formas de saída da prisão da dívida im-posta pelas diretrizes da política de contrarreforma agrária de mercado e cuja execução compete ao capital financeiro. Portanto, esta condição de subordina-ção converte-se, a partir do fazer cotidiano do campesinato, nas condições de realizar a construção do seu processo de resistência na terra, de recuperação do empreendimento para realização do trabalho familiar e construção de uma con-dição digna de existência.

A localização deste empreendimento em uma zona controlada pelo agrone-gócio não somente cria formas de subordinação/resistência como discutido aci-ma, mas também permite o desencadeamento de conflitos na apropriação dos recursos naturais entre os camponeses e o agronegócio. Na introdução desta seção, mencionei que o empreendimento contava com duas represas, que po-deriam ser aproveitadas para a irrigação dos cultivos agrícolas, abastecimento dos rebanhos ou mesmo prática da aquicultura. Porém, uma das fontes de água decorria do represamento de um córrego, cuja nascente encontrava-se a poucos metros a montante, nas terras arrendadas pela destilaria Companhia Nacional de Açúcar e Álcool (CNAA)32.

Com a decisão da destilaria em ampliar sua área plantada com cana-de-açúcar , a mata ciliar que protegia a nascente foi derruba e toda a superfície, antes ocupada pela nascente e canal de drenagem do córrego foi recoberta com terra e semeada com cana-de-açúcar. Obviamente, a consequência foi a morte do córre-go, cujo valor era incalculável para os camponeses da Associação dos Agricultores Familiares do Pontal. Os trabalhadores denunciaram o crime ambiental ao órgão competente, mas, frente ao poder do capital monopolista, nada foi feito, restan-do no território camponês as marcas da destruição ambiental e uma significativa perda da disponibilidade de água na propriedade (Figura 25).

32 Esta empresa carrega na sua razão social o disfarce para uma joint venture formado por cinco grupos estrangeiros, a saber: Global Foods Holdings, The Carlyle Group/Riverstone, Goldman Sachs, Discovery Capital, DiMaio Ahmad Capital. A CNAA detém o controle de três destilarias, cada qual com capacidade de processamento de 2,5 milhões de toneladas de cana por ano, voltadas à produção de açúcar cristal, açúcar VHP, álcool anidro, álcool hidratado e energia elétrica a partir do bagaço da cana. Suas três unidades fabris estão localizadas em Minas Gerais (municípios de Ituiutuba e Campina Verde) e Goiás (Itumbiara).



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Retomando a discussão sobre a condição de endividamento das famílias, ressaltasse-se que esta comunidade (e as demais associações de mutuários liga-das ao Maram), esforçava(m)- se, no período de realização do trabalho de cam-po, para criar as condições financeiras de renegociação da dívida e reestrutura-ção do quadro de sócios da associação. Nas diversas conversas que realizei com camponeses, presidentes de associações e dirigentes do Maram denotei que as principais dificuldades são: a) conseguir a recomposição do quadro de sócios, tendo em vista que muitos mutuários abandonaram os empreendimentos há anos, outros sequer chegaram a visitar seus lotes, sendo difícil de localizar o seu paradeiro; b) todas as deliberações para renegociação devem se dar em assem-bleia dos sócios e há aqueles empreendimentos em que as condições de conví-vio estão profundamente abaladas, a ponto de impossibilitar o agrupamento de pessoas para uma simples reunião; c) as dificuldades e limitações dos mutuários em lidar com os trâmites burocráticos necessários; d) ausência de condições econômicas para efetuar o pagamento do montante exigido para adentrar a re-negociação proposta pelo governo.

figurA 25 – minAs gerAis – ituiutABA: A Ação destrutivA do Agronegócio nA eliminAção dos recursos hÍdricos


No caso da Associação dos Agricultores Familiares do Pontal, no momento do trabalho de campo, a reestruturação do quadro de sócios já havia sido con-cretizada e o pagamento do montante negociado do Pronaf efetuado. Aguar-davam os procedimentos por parte da Unidade Técnica Estadual para realizar a divisão das terras entre os 16 mutuários que seguiriam no empreendimento, bem como a retirada do nome dos mutuários pioneiros do cadastro de inadim-plentes do Serasa e Cadin. Na reestruturação do empreendimento, permanece-



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ram sob gestão coletiva da comunidade: a suinocultura, a granja de frangos de postura, a agroindústria de farinha, a reserva legal, a mata ciliar e as benfeitorias comunitárias da agrovila. Uma avaliação sobre os resultados deste processo de renegociação e individualização somente será possível com o monitoramento desta situação nova. Contudo, somente a práxis do trabalho possibilitará o de-senvolvimento exitoso do empreendimento, como nos ensinou o mutuário em destaque a seguir.

Durante minha visita na área, foi possível conhecer um único agricultor que, efetivamente, possui produção agrícola. Trata-se do mesmo sujeito que desenca-deou o processo de formação da associação após ouvir a propaganda do Banco da Terra no rádio. Nascido em 1954, na zonal rural do município de Capinópolis, morou com seus familiares até os 16 anos de idade nas fazendas, na condição de agregado. Foi quando conseguiu um emprego em uma empresa privada e partiu para trabalhar na montagem e instalação das torres da linha de transmissão de energia elétrica, primeiramente da Usina Hidrelétrica de São Simão (localizada na divisa entre os estados de Goiás e Minas Gerais) até Ituiutaba. Posteriormente, foi recrutado para trabalhar neste ramo em Belo Horizonte, Itabira, Tanura.

Em 1974 ingressou na Companhia Energética de São Paulo (Cesp) tendo que migrar para a cidade de Mogi das Cruzes, em São Paulo, onde exerceu dife-rentes funções em subestações de energia elétrica. Nesta cidade, foi morar com um primo, cujos proprietários da casa alugada era uma família de japoneses que praticava horticultura. Como nosso entrevistado demonstrava contagiante paixão pelo trabalho na agricultura, os japoneses convidaram-no para realizar algumas atividades nas horas de folga. Como trabalhava no regime da semana americana, a partir do fim de tarde da sexta-feira ele dirigia-se para o campo de horticultura dos japoneses e retornava apenas no domingo de noite. Apesar da jornada de trabalho ininterrupta, este sujeito se sentia realizado com o traba-lho na terra, ademais da oportunidade de aprender um conjunto de técnicas de desenvolvimento deste sistema produtivo. Não sabia ele que isto em um futuro próximo transformaria sua vida.

No início dos anos 1980, quando começou a escassear os serviços industriais em São Paulo, decidiu retornar para sua região juntamente com sua esposa e dois filhos pequenos. No regresso buscou emprego nas empresas instaladas em Ituiutaba, como: Nestlé, destilaria Triálcool, frigoríficos, metalúrgicas etc., não obtendo sucesso, o que o fez dizer:

Eu, voltei, tô procurando, não achei até agora. Eu não vou procurar mais. Eu vou voltar de onde que eu vim, que lá ela num vai me expulsar, porque ela aceita, ela que cria nóis. Eu vou vortar pra natureza. Seja um pedacinho de nada eu sei que eu vou dar sustento, porque eu tenho conhecimento com ela, e outra: comecei num brejo, que o brejo dava desse jeito aqui assim (Itu 01, Ituiutaba, 2009).



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Quando se refere a começar em um brejo, refere-se às terras que recebeu de empréstimo do primeiro fazendeiro, na qual pôs em prática os conhecimen-tos em horticultura, paradoxalmente absorvidos quando migrou para trabalhar como operário. Com o passar dos anos, foi expulso da terra por duas vezes e ar-rendou terras em outras duas ocasiões. Por um período de aproximadamente 10 anos, deixou de produzir e foi morar na cidade, onde se deslocava semanalmen-te até o Ceasa de Uberlândia para adquirir os produtos que vendia na feira de Ituiutaba. Quando ouviu a notícia do Banco da Terra, já estava de volta à terra na condição de arrendatário. Foram 20 anos trabalhando com terra empresta-da ou arrendada até a realização do sonho, com a entrada no Banco da Terra.

Atualmente este camponês divide seus dias entre a “casa da cidade e a casa da roça”. Na primeira, vivem seus três filhos já adultos e sua esposa, dois dias por semana, aproximadamente, ele fica por lá. Mas sua satisfação é mesmo a de tocar as atividades produtivas no seu lote na Fazenda Vertente Comprida. Aí, trabalha sozinho uma agricultura diversificada, espacializada em uma área de 1 hectare no entorno da sua casa (Figura 26). Nesta pequena área foi possí-vel visualizar vários canteiros, primorosamente cuidados e semeados, com ce-bola, cebolinha, coentro, salsa, agrião, orégano, hortelã, alecrim, alface, couve, pimentas, tomate, beterraba, cenoura, mandioca, abóbora, milho, maracujá, ervas medicinais como cidreira, capim-santo, nívea, sálvia, boldo, terramicina, alfavaca; árvores jovens de banana, goiaba, maracujina, pinha, café, guabiroba, figueiras, abacate, laranja, tangerina, mangueira, limão tahiti, amora e coquei-ros, todas davam seus primeiros frutos. Além de uma granja com 100 pintos e pequena produção semanal de ovos caipira.

figurA 26 – minAs gerAis – ituiutABA: QuintAl Produtivo semeAdo com horticulturA e PomAr




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Segundo o entrevistado, no seu quintal produtivo, é possível colher 200 fei-xes de folhas por semana, 8 caixas de mandioca a cada quatro dias, 200 quilos semanais de pimentas, além das frutas, verduras, ervas, frangos e ovos. A pro-dução retirada do lote já tem três destinos: a) o abastecimento alimentar da fa-mília; b) o fornecimento para comerciantes de Ituiutaba, que toda quarta-feira recolhem no lote uma variedade de alimentos; c) e a comercialização direta ao consumidor na feira de Ituiutaba aos domingos, onde este camponês atuou du-rante 19 anos, mesmo que não possuísse terra própria (Figura 27).

Como trabalha sozinho, a jornada é exaustiva, principalmente nos dias de feira, quando a labuta inicia-se, como nos velhos tempo, ainda de madru-gada na realização da colheita das hortaliças, organização do seu carro utili-tário, deslocamento até a feira e comercialização dos alimentos diretamente ao consumidor. É perceptível o entusiasmo e a realização deste camponês ao comercializar os alimentos na feira, onde os clientes, em boa parte, parecem já dispor de certa amizade (outros intimidade) com o agricultor. Esta ativi-dade tem, na centralidade, a reprodução social, conforme expressa a seguinte afirmação: “quando as coisa é da gente mesmo, cê tem como fazer preço, né. Quando chega naquela hora do mais forte a gente aproveita um pouquinho, né. Quando a gente vê que vai fracassando vai baixando a balança também” (Itu 01, Ituiutaba, 2009).

figurA 27 – minAs gerAis – ituiutABA: comerciAlizAção dos Alimentos nA feirA de ituiutABA


A práxis camponesa deste sujeito foi uma das poucas que encontrei nas an-danças pelo campo brasileiro para realização deste estudo que contribui para construção do paradigma da soberania alimentar, compreendida aqui como:



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a) Dar prioridad a la producción de alimentos saludables, de buena calidad y culturalmente apropriados en primer lugar para el mercado doméstico. Es fundamental mantener una capa-cidad de producción de alimentos basada en un sistema de producción agrícola diversificado – que respete la biodiversidad, la capacidad de producción de la tierra, los valores culturales, la preservación de los recursos naturales – para garantizar la independencia y soberanía alimen-taria de las poblaciones. b) Suministrar precios competitivos para los agricultores (hombres y mujeres), lo que supone un poder para proteger los mercados internos contra las importacio-nes de bajos precios. c) Regular la producción de los mercados internos para abolir la creación de excedentes. d) Detener el proceso de industrialización de los métodos de producción y desarrollar una producción sostenible basada en familia agraria. e Abolir cualquier ayuda a la exportación directa o indirecta (Desmarais, 2007, p. 56-57).

Princípios que podem ser incorporados na práxis política do Maram.

A AssociAção dos Produtores rurAis do córrego dos Pilões: recriAção do trABAlho cAmPonês e A relAção cAmPo-cidAde

A Associação dos Produtores Rurais do Córrego dos Pilões foi fundada com 10 famílias no ano de 2001, especialmente para comprar uma fazenda com 39 hectares, cujo valor do contrato pelo Banco da Terra foi de R$ 229.440,00. A fazenda localiza-se estrategicamente há 7 km da sede municipal de Ituiutaba, quase às margens da rodovia BR-356, possuindo, ainda, excepcional potencia-lidade agrícola. A formação desta está relacionada com o sonho de recampesi-nização de um homem, filho de meeiros do Triângulo Mineiro, escolarizado somente até a segunda série do ensino fundamental menor.

José Vicente Tavares dos Santos, no seu livro Colonos do Vinho, assinala di-versos elementos estruturais da produção camponesa, dentre os quais ressalto a socialização, desde quando criança são iniciados como protagonistas da divisão do trabalho na unidade de produção camponesa, brincando com os instrumen-tos de trabalho e, ao crescer um pouco, trabalhando com estes instrumentos. Assim, iniciou-se a trajetória deste sujeito, que aos seis anos de idade já contri-buía com as atividades no lote que sua família trabalhava. Aí permaneceu, ao lado do seu pai, até os 17 anos de idade.

Ao atingir a maioridade, decidiu sair para trabalhar por conta própria, con-seguiu empregos de condutor de trator nas fazendas da região. Aos vinte anos, optou por aventurar-se em busca de melhores condições de vida e passou a tra-balhar como vendedor ambulante de aviõezinhos de isopor. Com este ofício viajou boa parte do território brasileiro, principalmente a faixa litorânea. Con-tudo, o que lhe fazia feliz eram as atividades no campo, de maneira que, após alguns anos, resolveu regressar para Ituiutaba, onde aceitou convite para geren-ciar uma fazenda pecuarista no estado do Tocantins. Depois de sete anos longe da sua terra e da sua família, realizou migração de retorno a Ituiutaba. Diante a



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inexistência de um emprego, comprou uma motocicleta e partiu para o ofício de motoboy, que lhe rendia apenas o necessário para comer.

Os trabalhos que havia realizado até então como assalariado no campo ou na cidade, não lhe renderam o suficiente para alcançar o seu sonho de construir uma vida digna desde o trabalho na agricultura, pois “Quem planta e cria tem alegria!” (Itu 03, Ituiutaba, 2009). Um meio possível era o ingresso na luta pela terra e ocupação dos latifúndios, mas este seria, em sua avaliação, um caminho muito penoso e incerto que não estava disposto a enfrentar. Foi quando viu na televisão uma propaganda do Banco da Terra. Buscou informações na Emater sobre os trâmites necessários e decidiu articular uma associação para acessar o financiamento e comprar uma fazenda.

Realizou consultas a parentes e recebeu o apoio de um primo. Avaliaram que teriam sucesso garantido no empreendimento se reunisse outros membros da família, como primos e irmãos. Após sete meses de reuniões conseguiu formar a associação em foco, com dez integrantes. Assessorado por um corretor fundiá-rio encontrou a fazenda em análise. Apesar de pequena em extensão agradou-se da localização, da existência de uma estrutura em galpões para avicultura, dis-ponibilidade de água e qualidade de solo compatível com a produção da po-licultura alimentar a que almejavam. Comprado o imóvel, foram implantados os equipamentos comunitários, porém, somente um ano depois liberados os recursos do crédito agrícola Pronaf. Enquanto isso, os mutuários realizavam as mais diversas atividades laborais fora do empreendimento, com vistas a conse-guir os recursos para sobrevivência familiar.

Com a liberação do Pronaf em 2002/2003 foi implantada infraestrutura completa de irrigação em uma área de 2 alqueires: compraram 10 vacas leitei-ras, havia também investimentos para implantação de 7 mil galinhas de postura e compra da quantidade de ração necessária para o desenvolvimento destas. Os mutuários decidiram por conta própria ousar e implantaram 11 mil galinhas de postura. Nesta época a Emater prestava capacitação técnica para o manejo dos sistemas produtivos e expunha a necessidade de realizar um cronograma de vacinação das aves.

Os mutuários estavam entusiasmados com a possibilidade de célere geração de renda a partir da avicultura e, diante da existência de infraestrutura adequa-da para avicultura, que estava ociosa, decidiram que ao invés de vacinar as aves, iriam ampliar o negócio mediante a implantação dos 16 mil frangos, voltados ao abate. A Emater opôs-se da decisão, advertiu os agricultores dos riscos de conta-minação dos frangos pelas galinhas e enfatizou a necessidade da vacinação. Nos-so entrevistado alertou a todos do risco iminente de perder parte das aves, convo-cou reuniões e assembleias para decidir sobre o óbvio, nas quais foi voto vencido. Já o técnico da Emater passou a ser desqualificado pelos demais mutuários.



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Cerca de 30 dias após, quando os mutuários começarem a colher cerca de 20 caixas de ovos/dia, parte das galinhas começou a adoecer e a produção a cair gradativamente. Os recursos para comprar a ração para alimentar as aves que ainda produziam, escassearam, frente à necessidade de investir em remédios. Como a produção estava em declínio, a arrecadação diminuía e a dívida com os fornecedores aumentava. De modo que, para saldar os compromissos e alimen-tar as galinhas e frangos, tiveram que paulatinamente vender as vacas. Até que se extinguiu toda a empresa, conforme relatado a seguir:

Vendeu todas, né. Aí foi preciso de vender tudo. Então, as galinhas comeu as vacas! Comeu as vaca, comeu o que tinha na fazenda comeu, comeu tudo! Sobrou a irrigação, por quê? A enca-nação tudo é enterrada, porque se tivesse a encanação com os cano tudo no jeito aí, por certo na época eles tinha vendido também. Ainda sobrou as casas, a terra e a irrigação, dos cento e vinte mil que foi ampliado, isso cento e vinte mil foi embora sem ter retorno, aí como que faz uma coisa dessa? É complicado! (Itu 03, Ituiutaba, 2009)

Segundo o idealizador da Associação dos Produtores Rurais do Córrego dos Pilões, apesar de ter existido acompanhamento técnico na implantação do empreendimento, o grupo pensava com as referências dos grandes produtores, para os quais trabalharam a vida inteira, e não tinham experiência alguma de gestão de negócios, limitação que na sua visão seria superada com capacitação prévia. Quando ocorreu a falência do empreendimento no ano de 2004/2005, “...depois de tudo acabado, a maioria, cada um pegou suas mala e foi embora, trabalhar de empregado de novo (...) E nisso, por eu ter uma cabeça mais firme, mais coisa, hoje eu tô aqui, né. Tentando levantar a Associação e eles estão tudo lá fora... desse jeito!” (Itu 03, Ituiutaba, 2009). Quando questionado o que o levou a permanecer na área, o mutuário respondeu da seguinte forma:

Porque eu sou da terra eu, na moda do outro, um camponês da terra. Então o que acontece? Eu pra mim viver eu não preciso, vamos supor, de muita renda, pra poder subir, né. A renda que a gente precisa é o seguinte: é ocê gostar de trabaiar e pensar sempre no futuro. Porque no momento que você tá aqui, você tá plantando, você tá fazendo o que você gosta de fazer, de produção, saber que você sai daqui e vai lá na cidade, você leva uma caixa de quiabo, você leva um pé de alface, uma você leva uma uma cebolinha, uma abobrinha, então que é que aconte-ce, você tá levando alegria pra aqueles que tá lá na cidade. É assim, cê leva um leite, uma coisa. Então, quer dizer, isso aí você tá passando pros outros o que você gosta de fazer e o que você gosta de viabilizar pras pessoa (Itu 03, Ituiutaba, 2009).

Para este sujeito, a reestruturação da unidade produtiva é a possibilidade única de manter a sua condição camponesa e da sua família. Esta realização tem estreita relação com a cidade que demanda os alimentos produzidos pelo campesinato, em uma região controlada pelo agronegócio produtor de commo-dities. Para tanto, este sujeito tem realizado diferentes estratégias para permane-cer produzindo na terra, sobretudo no tocante à construção de alternativas para (re)organização do trabalho e redimensionamento da produção no empreendi-



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mento. Neste sentido, passo a seguir a uma breve caracterização dos sistemas agrários em desenvolvimento, das relações de produção, os dilemas e as pers-pectivas da reprodução camponesa e os efeitos sobre a pobreza no empreendi-mento em foco.

Quando da visita de campo, foi possível constatar no empreendimento a seguinte infraestrutura: a) uma área de 2 alqueires com estrutura de irrigação, cuja água é bombeada desde o Córrego da Mamona; b) quatro barracões com estrutura adequada para a prática da avicultura, necessitando reforma urgente, sobretudo no telhado e piso (Figura 28); c) estrutura para confinamento de 500 cabeças de gado; d) cercado com criação de 60 suínos caipiras; e) água abun-dante o ano inteiro captado no Córrego da Mamona e o Córrego dos Pilões, que cortam o empreendimento; f ) um galpão amplo onde funciona a prepa-ração de ração para aves e armazenamento de sementes, grãos etc.; g) diversos implementos agrícolas; h) no que tange a logística de transporte da produção, há uma perua Kombi e uma motocicleta utilizada para deslocamentos rápidos à cidade; i) 10 casas de moradia, sendo 8 construídas com recursos do Banco da Terra e outras duas herdadas das benfeitorias da antiga fazenda; j) destaca-se uma área de preservação permanente e matas ciliares, ambas em processo de re-cuperação espontânea; faz-se mister registrar que o imóvel está circundado por outras propriedades que são exploradas pelo agronegócio pecuarista, em cujas margens dos córregos, as matas ciliares encontram-se visivelmente degradadas.

No intuito de recuperar a capacidade produtiva do empreendimento, o pre-sidente da Associação tem se esforçado para realizar a recomposição do quadro de sócios, mediante convite a familiares e conhecidos que têm se interessado no projeto. Foi realizado o processo de exclusão dos mutuários pioneiros utili-zando a cláusula do abandono prevista na MP 432/2008 e reestruturação com seis novos candidatos a mutuários, de maneira que houve uma redução de dez para sete integrantes da Associação. Dentre os novos membros, no momento do trabalho de campo, três seguiam trabalhando nas atividades fora do estabe-lecimento, até que fosse liberado um novo aporte de créditos agrícolas, uma vez que não dispunham de capacidade de investimento naquele momento. Os outros três novos membros já se encontravam habitando e produzindo no esta-belecimento, cujo acerto previa a partilha dos investimentos, trabalho e renda obtida em determinado sistema agrário e sendo que um destes novos mutuários é a genitora do líder comunitário, que contribui, principalmente, no sistema produtivo do leite.

Dentre os novos mutuários, um sobrinho do presidente da Associação, com 30 anos, que atua como funcionário da destilaria CNAA, conduzindo carretas de máquinas e equipamentos agrícolas, assumiu o compromisso de dividir os custos de renegociação da dívida do Pronaf com o presidente da Associação,



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bem como, a partir dos seus ganhos salariais, tem realizado importantes inves-timentos para a recuperação da capacidade produtiva do sistema de avicultu-ra. Para o final do segundo semestre de 2009, estava prevista a necessidade de pagamento de R$ 8 mil referente à negociação do crédito agrícola, cujo valor seria divido entre este e o presidente da Associação. Esta última entrou com a estrutura física existente e a força de trabalho da família do seu líder. No ano de 2008/2009, este sujeito já havia adquirido 2.000 galinhas de postura, os instrumentos e alimentação necessários para viabilizar a produção, alavancan-do este sistema agrário, que é a principal fonte geradora de renda monetária da comunidade.

figurA 28 – minAs gerAis – ituiutABA: lAvourA de QuiABo irrigAdo Ao fundo, mAtA ciliAr do córrego dA mAmonA


Durante o trabalho de campo, constatou-se a ocupação de parte de cada um de dois galpões existentes na localidade, com aproximadamente 2 mil galinhas de postura, com uma produtividade diária de aproximadamente 1.500 ovos, totalizando um investimento aproximado de R$ 11 mil. Excetuando uma pe-quena quantidade que abastece as famílias mutuárias, os ovos são comercializa-dos junto a supermercado, sacolão e padaria da cidade de Ituiutaba. A média de preços de comercialização da caixa com 360 ovos é R$ 52,00, o que possibilita perfazer R$ 208,00/dia e R$ 6.240,00/mês que, se deduzidos os custos de pro-dução, perfaz o montante líquido aproximado de R$ 2.000,00. Esta rentabili-dade somente é possível porque os próprios camponeses são os que preparam a ração das aves, mediante a compra dos ingredientes, e utilizam exclusivamente o trabalho familiar (Figura 29 e 30).

A dupla de camponeses está atenta para a potencialidade do mercado consu-midor ituiutabano, cuja população total é de 97.159 habitantes, sendo 93.122



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(95,86%) de população urbana e somente 4.037 (4,15%) de população rural. O abastecimento do mercado ituiutabano, no tocante aos ovos, conta somente com este empreendimento local, uma vez que não existe outra granja de postu-ra com tal estrutura no município. Cientes desta situação, estes dois sujeitos já programam ampliar o número de envolvidos na parceria, para ampliar a quan-tidade de aves e produção diária, cuja meta é atingir a produção de 30 caixas de ovos/dia, o que totaliza 10.800 ovos/dia, condição viável se considerarmos a existência prévia de infraestrutura de galpões para abrigar até 18 mil galinhas. Uma preocupação será disponibilidade de mão de obra, já que o empreendi-mento não dispõe de solidez econômica para realizar o assalariamento de tra-balhadores.

figurA 29 – minAs gerAis – ituiutABA: grAnjA de ovos de PosturA


figurA 30 – minAs gerAis – ituiutABA: estruturA ociosA PArA AviculturA




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O outro sujeito também ingressou no empreendimento dentro da relação de produção da parceria, aportando diretamente o trabalho da sua família no sistema agrícola de lavouras de sequeiro e irrigadas, bem como contribuindo com o ma-nejo do sistema bovino e da avicultura. Todos os custos de produção, transporte e rendimentos são divididos entre o presidente da associação e a família deste par-ceiro. Durante o trabalho de campo foi possível percorrer o 1,5 alqueires irrigados semeado, cerca de 2/3 da área com quiabo e 1/3 com feijão e milho. O destino do quiabo é o abastecimento dos clientes da Associação e a produção semanal é de 12 caixas de quiabo, sendo cada caixa comercializada por R$ 10,00.

Por sua vez, as lavouras de feijão e milho têm relevância singular para segu-rança alimentar das famílias que moram no empreendimento, pois toda a co-lheita vai diretamente para a alimentação. Estes gêneros alimentícios resultam das sementes doadas pelo estado de Minas Gerais através do Programa Minas Sem Fome, que se trata de um subprograma do programa federal Fome Zero, que realiza várias ações de combate à fome e à pobreza, dentre as quais um delas é doação de sementes para agricultores excluídos do processo produtivo, com vistas a garantir a segurança alimentar.

No sistema de lavouras, há meta também de ampliação. Almeja-se a que a área plantada com quiabo (ou outros legumes rentáveis) atinja os 2 alqueires irrigados e, mediante a integração com os demais sistemas produtivos, passem a aproveitar a matéria orgânica, de modo a reduzir a dependência de insumos e fertilizantes químicos. Planeja-se, também, o cultivo de mais 2 alqueires de milho sem irrigação com vistas a produzir cerca de mil sacos de milho que con-tribuíram para a redução dos custos com ração destinada às aves.

No tocante à bovinocultura leiteira, a Associação possuía cerca de 5 vacas, cujo manejo do rebanho competia na divisão comunitária do trabalho à famí-lia de um dos parceiros e, às mulheres das quatro famílias que habitavam a co-munidade, a transformação do leite em um queijo artesanal, denominado por eles de flamengo (Figura 31). Foi possível verificar na cidade, junto aos comer-ciantes, uma grande aceitação deste produto, uma vez que os consumidores o procuram bastante por ser a expressão da qualidade dos produtos frescos, direto da fazenda para mesa do consumidor. Segundo a comunidade, a cada 2 litros de leite é possível realizar a produção de uma peça de flamengo. A produção é entregue todas as manhãs em padarias, supermercados e armazéns da cidade de Ituiutaba, ao preço de atacado de R$ 2,50 a unidade.

Esta prática de produção do queijo artesanal permite que as famílias re-tenham maior renda que se o leite cru fosse entregue aos laticínios da região, tanto pelo beneficiamento da matéria-prima (leite), quanto pela comercializa-ção direta entre agricultor e comerciante. Vale ressaltar, também, que o sistema produtivo do leite tem importância particular na construção da segurança ali-



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mentar das famílias, pois parte da produção as abastece. A meta neste sistema produtivo é ampliar o rebanho para 20 vacas leiteiras, aumentando a produção leiteira, e consequentemente a produção de flamengo, contribuindo para am-pliar a renda monetária da comunidade. Por fim, vale ressaltar que se busca integrar os diferentes sistemas produtivos, de maneira que a perspectiva de am-pliação da roça de milho contribuirá na elevação da disponibilidade de alimen-tação para o gado, tendo vista a destinação da palha. E, da produção de leite, após a produção do flamengo, pode-se retirar o soro para alimentar os suínos, reduzindo assim a dependência da compra de alimentação para os animais e contribuindo para a elevação da produtividade.

figurA 31 – minAs gerAis – ituiutABA: trABAlho fAmiliAr feminino nA Produção de Queijo ArtesAnAl


O processo de recuperação da capacidade produtiva do empreendimento revela um conjunto de estratégias de reprodução camponesa que devem ser des-tacadas. Todas as metas de ampliação da capacidade produtiva, relatadas pelo presidente da Associação, está condicionada a dois elementos estruturantes: a disponibilidade de créditos para realização de investimento e custeio, e a natu-reza e capacidade do trabalho familiar disponível.

Esta primeira dimensão, o acesso a créditos agrícolas, perpassa primeira-mente a necessidade de realização do sobretrabalho na unidade de produção familiar, com vistas à geração de um excedente monetário suficiente para re-negociar as dívidas referentes ao crédito agrícola e de financiamento da terra, para conseguir a condição de adimplência dos mutuários, tendo em vista a ne-cessidade de retorno da possibilidade de acessar os créditos agrícolas, que viabi-lizariam investimento e custeio, na estruturação dos sistemas produtivos e sua possível ampliação, condição relatada da seguinte maneira:



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Então, na moda do otro, igual a gente vai pagar agora, que é que acontece, tudo é tirado dos braços, não tem nada do Pronaf que os outro menino gastou, né. Tudo é da cabeça da gente, é do trabalho da gente que a gente tá tentando sobreviver e tentando pagar a dívida, pra po-der limpar o nome, pra você ter como cê comprar. Porque eu vou numa firma comprar um adubo, comprar uma semente, eu não tenho crédito! Então como que eu vou? (Entrevista Itu 03, Ituiutaba, 2009)

Nesta dimensão, verifica-se uma convergência entre as famílias mutuárias contatadas na localidade, sobre o dimensionamento do fortalecimento e, sobre-tudo, ampliação, de cada um dos sistemas produtivos de acordo com a capaci-dade de realização de trabalho da família e o seu nível de satisfação, o que deno-ta a atualidade da teoria chayanoviana dos sistemas econômicos não capitalistas (Chayanov, 1981), condição expressão no seguinte relato:

É o outro problema é os sócios, as pessoas precisam ser mais firmes, o problema maior mesmo que eu tenho em mim mesmo assim, é o que eu já falei, é uma estrutura pra frente pra poder aumentar os projetos, assim, viabilizar os projetos pra pessoa ter uma renda compatível com o que você gasta e que você tem pra pagar (Itu 03, Ituiutaba, 2009).

Observe-se que os novos mutuários, que já se encontram trabalhando e mo-rando no empreendimento, ingressaram nesta fase inicial mediante o estabe-lecimento da relação de trabalho parceira, que é outro componente da produ-ção camponesa utilizado como alternativa à ausência de condições econômicas para a contratação do trabalho assalariado, e como forma de reduzir os custos de produção e repartição dos ganhos (Tavares dos Santos, 1985). Esta tem se demonstrado na área uma estratégia importante para recuperar a capacidade produtiva do empreendimento e construção de perspectivas de sua ampliação. Ademais de que cada uma das famílias, ao ingressar nesta condição de parcei-ros, já tem garantido o direito de explorar os quintais produtivos com hortas familiares.

Esta estratégia tem relação direta com a ausência de recursos para contrata-ção de trabalho assalariado e cumprimento da legislação trabalhista com o pa-gamento dos impostos, férias, 13º salários etc., bem como, para o presidente da Associação, o trabalho na unidade de produção familiar gera em todas as dimen-sões e formas de sua realização, um estratégico processo pedagógico para todos os sujeitos, não somente na execução das atividades cotidianas de manejo, bem como nas atividades da gestão e planejamento das estratégias de reprodução para o futuro, com foco na especificidade da unidade de produção familiar

Porque se eu fazer igual foi feito o Banco da Terra juntar todo mundo e fazer. Mas a pessoa não conviveu com ocê aqui, a pessoa não tem uma formação aqui dentro, que lá fora a formação dele é uma, aqui dentro tem que ser outra. Porquê se ele formar aqui dentro, aí ele vai ter uma viabilidade de futuro. Se ele não formar aqui dentro, porque o meio de trabalho da fazenda é um, de outra fazenda é outro diferente. Então cada setor tem que tá, na moda do otro, o exér-



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cito tem que tá formando os seus peão de batalha porque se não num vai a lugar nenhum (...) mas aí ó Deus tá preparando as pessoas certa, a lá, o menino tá trabaiando, cê tá vendo o vei-nho tá trabaiando, então o que acontece, eu não chego lá, eu num vou amolar eles, eles trabaia do jeito que eles dá conta, né. Eu vou chegar lá, chegar como patrão lá falando assim: “não, cê tá fazendo errado, você não pode fazer assim, você não pode fazer assim, você não pode fazer aquilo, você tá parado, o serviço não tá andando”, não. Eles é que sabe a necessidade deles, se eles tá ali, se eles tá pelejando eu tenho certeza procê que num precisa deu tá lá abalando, en-chendo o saco deles não, porque as coisa anda (Entrevista Itu 03, Ituiutaba, 2009).

Outra dimensão fundamental para a reestruturação do empreendimento e motor central do sonho de reprodução da condição camponesa dos sujeitos en-volvidos no processo, nesta fase, é a possibilidade de estabelecimento de rela-ções com a cidade, pois “Pra nóis que tá aqui, na moda do otro, a cidade em pri-meiro lugar, porque o que falta aqui nois busca lá, o que nois produz nóis leva lá e vende. Então, a cidade é uma parceria nossa” (Entrevista Itu 03, Ituiutaba, 2009). A cidade representa a possibilidade de aquisição dos meios necessários à continuidade do processo produtivo no empreendimento e satisfação mate-rial das famílias. Condição que é potencializada pela eliminação da atuação dos atravessadores na circulação dos produtos do empreendimento, tendo em vista que a disponibilidade de transporte próprio permite que toda produção da uni-dade familiar seja diretamente vendidos aos comerciantes locais, o que possi-bilita uma garantia de preços mais acessíveis para os consumidores, bem como maior retenção de renda pelos agricultores.

As estratégias camponesas adotadas até aqui, sobretudo, no tocante à adoção da parceria, para o presidente desta Associação é apenas um fase necessária neste momento de reestruturação do empreendimento, cujo desenvolvimento apon-ta para objetivo de realizar a coletivização dos meios de produção, da terra, do trabalho e da renda, condição completa distinta das tendências individualizan-tes que encontrei em todos outros empreendimentos de contrarreforma agrária de mercado. Reside nesta perspectiva, a opção de (re)criação e consolidação da condição camponesa, forjando, assim, as condições para a construção da auto-nomia do trabalho familiar camponês, pois:

A reforma agrária, assim, no meu ponto de vista é o melhoramento das pessoas carentes, das pessoas mais fracas que precisa de ajuda, né. E aquelas pessoas igual a eu, assim, que tem garra, que gostam do campo, que gostam de produzir, que a reforma agrária... que é um projeto que ajuda muito a gente né. Tem pessoas que não sabe fazer outra coisa a não ser plantar, tirar leite de uma vaca, né. (...) E pensar que lá em Ituiutaba, aqui na minha região, tem um que precisa comprar um pé de mandioca, tem um que precisa comprar uma dúzia de mio, o otro precisa de uma cartela de ovo, ou que seja uma caixa ou dez caixa. Então quer dizer, a cidade precisa de pessoas igual eu, porque o camponês é o que segura a cidade, o que segura tudo. Que segura o governo, que segura a parte da cidade, tudo aí. Então quer dizer, se o governo não olhar por essas pessoas igual eu, como que vai ser o Brasil amanhã? O que vai ser o mundo? (Entrevista Itu 03, Ituiutaba, 2009).



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AssociAção dos Agricultores fAmiliAres riBeirão dos BAús: resistênciA, suBordinAção e lição de solidAriedAde

A Associação dos Agricultores Familiares Ribeirão dos Baús foi formada no de-correr do ano 2001, com o objetivo único de comprar um imóvel rural pelo Programa Banco da Terra (BT). O processo para sua criação foi desencadeado pelo presidente da Associação dos Produtores Rurais Córrego dos Pilões, ana-lisada na seção anterior, que motivou um amigo a formar outro grupo para in-gressar no Programa. Este sujeito por sua vez, no dizer de nossa entrevistada, “Foi batendo de porta em porta convidando as pessoas, sem saber se elas tinha essa aptidão para a terra ou não” (Entrevista Itu 04, Ituiutaba, 2009). Obede-cendo as diretrizes do BT e orientações da Emater-MG formaram um grupo de 16 famílias que decidiu adquirir a Fazenda Pouso Alegre, de 148 hectares. Localizada na região do Brumado, próximo ao município de Capinópolis, dis-ta, aproximadamente, 30 km da sede municipal de Ituiutaba, sendo que 5 km destes são percorridos em estrada não pavimentada, que interliga o imóvel e a rodovia; dista do município de Capinópolis, 14 km, dos quais 5 km na estra-da vicinal mencionada. Esta é uma diferença importante, com relação aos de-mais empreendimentos pesquisados no Triângulo Mineiro, a maior distância do mercado consumidor ituiutabano indubitavelmente é uma dificuldade in-terposta aos mutuários deste empreendimento.

De acordo com os relatos dos mutuários, a Fazenda Pouso Alegre dedica-va-se à pecuária intensiva de gado de corte, atividade comum na região Bru-mado, onde no entorno há vários grandes criadores de gado, como a Fazenda Santa Maria do Brumado, de Luis Adauto, Agropecuária Cury, Fazenda Santa Edwiges, de Celso Vilela Guimarães, Fazenda Campo Verde, de David Gou-veia, dentre outros. Os mutuários tomaram conhecimento da venda da Fazen-da Pouso Alegre através de um anúncio no jornal e buscaram a Emarter para realização da avaliação econômica e produtiva do imóvel. Descobriram que o imóvel estava hipotecado ao banco por conta de endividamento do então pro-prietário e declararam que eles próprios tiveram que quitar a hipoteca, para poder realizar os procedimentos de compra do imóvel. Ao realizar a vistoria, o preço estipulado para a transação de compra e venda de R$ 288 mil, aproxima-damente R$ 2 mil por hectare.

Apesar de existir no momento da entrada na terra apenas “aquele chiqueiro quebrado que cê viu lá, aquele barracão véio que tá ali caindo os pedaço e a sede e os pau da cerca, só! Não tinha mais nada!” (Entrevista Itu 04, Ituiutaba, 2009) o imóvel apresentava boa disponibilidade de água, terra e área com um pasto formado levando-os à decisão de fechar o negócio, apostando na possi-bilidade de converter o modelo produtivo empresarial para um modelo pro-



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dutivo familiar, mediante os investimentos a ser realizados com a aplicação do crédito agrícola.

De acordo com as memórias da atual presidente da associação, foram liberados outros R$ 89 mil para a construção das casas de moradia, R$ 16 mil para a eletrificação da agrovila, R$ 7 mil para estrutura hídrica dos do-micílios (perfuração de poço artesiano, bomba, caixa d’água e tubulações). Faz-se mister registrar que, conforme previsto do manual de operação do BT, compete ao mutuário dar uma contrapartida de 10% do valor do projeto, que pode ser paga em dinheiro, produtos, equipamentos ou como mão de obra. Como geralmente os mutuários dispõem unicamente de sua força de trabalho, é com o suor do seu próprio trabalho que implantam parte do em-preendimento. No caso da Associação dos Agricultores Familiares Ribeirão dos Baús, as famílias aportaram os 10% sob a forma de trabalho empregado na construção das casas, de maneira que as 16 casas foram construídas em regime de mutirão.

No tocante à formação da Associação, verifica-se uma grande fragilidade desde os seus primórdios, tendo em vista que parte dos mutuários assinaram a escritura de compra e venda apenas como uma formalidade necessária para acessar o crédito fundiário, mas não tinham nenhuma intenção de ingressar na terra de trabalho, conforme expresso no seguinte trecho de depoimento:

Porque tem casa aqui, inclusive a casa que meu irmão mora, se trazer o dono daquela casa ali que tá na escritura, aqui na fazenda, ele não sabe qual que é a casa dele... é ela e outra casa lá na frente. Eles não sabe qual que é a casa deles porque eles nunca tiveram aqui na Associação. Eles só fizeram...eles só assinaram na escritura e fizeram o que precisava de ter as 16 famílias para conseguir o dinheiro pra poder comprar aqui, pra fazer o financiamento. Aí eles entraram para ajudar, não pra vim morar. Já começou, a nossa associação começou errada por aí. Aí já no...quando montou mesmo Associação no início, já teve uma desistência que o rapaz num quis, ficou quinze, e o presidente pegou, o desistente passou uma procuração pra ele assinar no banco a parte dele na escritura, quando fosse pra assinar que ele nem veio pra assinar a es-critura no banco. Aí teve essa desistência já no início, teve um desistente e ficou 15 famílias (Entrevista Itu 04, Ituiutaba, 2009).

Outros mutuários ingressantes nesta associação tinham interesse diverso da produção agrícola e empreenderam o desvio de verbas destinadas à implanta-ção da infraestrutura comunitária, sobretudo aqueles sujeitos que estavam no comando da entidade. A presidente que entrevistei, denuncia que, após muitas divergências internas entre os mutuários e desistência da diretoria pioneira da Associação, momento em que ela assumiu o comando da entidade, somente descobriu as falcatruas que foram realizadas porque se colocou a analisar os do-cumentos da entidade, a conferir os recibos das finanças e a somar os seus valo-res, constatando uma série de irregularidades como a falsificação de assinaturas, recibos frios, superfaturamento de serviços e notas em branco.



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Duas práticas são emblemáticas da corrupção praticada na localidade. Na implantação eletrificação da agrovila foram liberados R$ 16 mil. O então pre-sidente da Associação contratou, por R$ 8 mil, uma empresa particular da ci-dade de Ituiutaba para implantar a estrutura que atenderia a distribuição de eletricidade às 16 casas da agrovila. Porém, a eletricidade foi ligada somente até o casarão que funcionou como sede da antiga fazenda, e, de lá, estendeu uma rede improvisada para cada um das casas. Mesmo que a fiação não atendesse ao padrão e as casas não possuíssem os respectivos medidores, o serviço foi dado como concluído. Já os R$ 9 mil restantes foram informados pela Associação como gastos com mão de obra. Outra prática de corrupção foi adotada na com-pra dos materiais de construção para edificação das casas. Tijolos, telhas, portas e janelas foram comprados a preço de material de primeira qualidade, mas os efetivamente empregados na obra eram de segunda qualidade.

O desvio de verba do projeto de eletrificação da comunidade criou um proble-ma estrutural no abastecimento de eletricidade para as famílias. Há, de um lado, um risco permanente de curtos circuitos e queima de aparelhos elétricos e eletrô-nicos, pois é frequente a oscilação da corrente elétrica e a sobrecarga da rede. Basta que dois domicílios liguem concomitantemente os chuveiros elétricos para que o disjuntor de energia, instalado no casarão sede, desarme. Quando isto ocorre é preciso que alguém se dirija até a sede, há cerca de 300 metros da agrovila, para religar a rede. Periodicamente, o problema não pode ser resolvido facilmente, sendo preciso chamar o serviço especializado da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). De acordo com os relatos da comunidade, esta empresa, para regularizar a situação e implantar a estrutura correta afirma que é preciso investir R$ 7 mil, recurso que os mutuários, obviamente, não dispõem.

Sobre o ordenamento territorial do empreendimento, verifica-se a destina-ção de 29 hectares para a reserva ambiental e áreas de preservação permanente, demarcação de 16 lotes de moradia medindo 50 × 100 metros e o respectivo ar-ruamento de acesso, sendo o restante da área estabelecido como de uso coletivo dos mutuários. Este tipo de ordenamento ocorreu também na Associação dos Agricultores Rurais do Pontal e na Associação dos Produtores Rurais Córrego dos Pilões. Todos os procedimentos de ordenamento territorial dos empreen-dimentos eram realizados pela Emater – MG. Aparentemente, a destinação da terra coletiva parece ser opção interessante para desencadear formas de realiza-ção de trabalho coletivo, como estratégia de ampliar a capacidade de trabalho, produção e geração de renda dos mutuários. Utilizo a expressão aparentemente, porque a fragilidade no processo de formação das associações, voltadas exclusi-vamente para a compra da terra, pautou-se, como discuti em seção anterior, no dimensionamento de espaços de subalternidade, onde os valores do consumo e do individualismo são a tônica.



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Dentro destas bases, a destinação de terras coletivas, no contexto de imóveis antes orientados para a atividade pecuária, e situações de inacessibilidade ao crédito agrícola, perde sentido porque as famílias não dispõem dos recursos ne-cessários para realizar a conversão do sistema de pastagem em lavoura policul-tora familiar, nem de capacidade organizativa para lavrá-la através do trabalho familiar. Neste contexto, os pastos passam a ser alugados para fazendeiros do entorno como forma única de exploração destas áreas. Foi relatado que toda a área de pastagem da fazenda era arrendada aos fazendeiros por até R$ 1.700,00/mês, chegando o empreendimento a ficar alugado por 3 anos seguidos. Com este recurso as famílias pagavam a conta de eletricidade e dividiam entre si o restante dos recursos. A condição econômica dos mutuários era tão precária que estes repasses eram fundamentais para a reprodução das famílias, mediante a compra dos alimentos necessários.

Pode-se inferir que a opção de ordenamento territorial dos técnicos da Ema-ter – MG atende diretamente às necessidades dos agronegociantes de terem pastos disponíveis próximos aos seus empreendimentos, e a baixo custo. Em outras palavras pode-se concluir que este processo é a ação do Estado no aten-dimento das exigências do capital, que por meio de sua ação, (re)cria o campe-sinato sobre o seu controle, de forma subordinada, impedindo a construção das condições objetivas e subjetivas que se estabeleça a dignidade, condições que me conduz à negação das políticas de contrarreforma agrária de mercado como um instrumento eficaz de combate à pobreza rural. Estamos aqui diante de uma forma de manifestação da monopolização do território camponês pelo capital conforme apregoado por Oliveira (1997).

Mas outro entrave ao desenvolvimento do empreendimento decorreu da re-cusa de um dos mutuários em assinar o termo de concessão do Pronaf, pois estava em processo de desistência do empreendimento. Esta ação impediu os mutuá rios de acessar o crédito agrícola Pronaf, sob a alegação de que para a liberação dos re-cursos, todos os membros da Associação deveriam estar de acordo, uma vez que o empréstimo, neste caso, é associativo e não individual. Sem o crédito agrícola os trabalhadores não tiveram como realizar os investimentos produtivos. Passaram a investir a única coisa que lhes restavam: a sua força de trabalho. Aqueles que tinham alguma poupança passaram a investir no empreen dimento. Há casos de mutuários que haviam saído do emprego, e investiam na área seus rendimentos obtidos com o processo de demissão e/ou seguro desemprego. A condição de so-brevivência foi se agravando, na medida em que os tais recursos iam se escassean-do, até que as famílias começaram a abandonar o sonho de recampesinização. A fala de uma mutuária sintetiza esta fase assim:

Se eu pudesse tá aqui hoje, se eu tivesse um Pronaf hoje eu não sairia daqui. Eu não tô aqui porque eu preciso trabalhar pra mim tentar implantar alguma coisa aqui. E, eu ainda vou im-



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plantar! O meu sonho é eu vou vim pra cá, eu pretendo vim, mas eu quero vim... Porque eu já morei aqui! Eu já passei muita dificuldade aqui. Eu vou te falar sinceramente, a gente não pode falar fome, porque fome é muito triste de ser falado, mas eu passei muita vontade! Por-que quando eu fui embora daqui, nóis voltamos pra cidade, se não fosse a ajudar de amigos, de pessoas que a gente conhecia nóis tinha passado fome. Aí sim, nóis tinha passado fome mesmo! Porque quando nóis viemo praqui, isso aqui era pura braquiária, do jeitinho que é os pasto que cê vê aí para cima, era aqui. Aí depois que foi capinando, pondo fogo, matando um toco daquele ali e plantando. Num tinha um pé de mandioca aqui nessa fazenda! Num tinha um pé de mandioca, num tinha um pé de abóbora, num tinha nada! Aqui tudo o que a gente comia tinha que ir buscar na cidade, até um ovo. Aí depois foi que começou a plantar, plantou mandioca, aí começaram a trazer um porquinho, uma galinhinha, uma coisa. Aí começou a ter como sobreviver, mas até então a maioria das pessoas aqui sobrevivia com, é, como eu te falei, com os desvio de verba que era pra se fazer uma coisa e desviava pra poder fazer feira, sabe? (Entrevista Itu 04, Ituiutaba, 2009)

Dos 16 mutuários que assinaram a escritura de compra e venda ape-nas 15, efetivamente, ingressaram no empreendimento. Com o agravamento das condições de trabalho e produção no empreendimento, diversas famílias evadiram-se. A cada evasão, as famílias buscavam outra para realizar a subs-tituição. As famílias neófitas se deparavam com os mesmos problemas das famílias anteriores e também desistiam, e novas substituições eram realiza-das, perfazendo um movimento tautológico. Foi inevitável, para aqueles que permaneciam no empreendimento, converter-se em trabalhadores assalaria-dos temporários nas fazendas do entorno. Demonstrando como o empreen-dimento de contrarreforma agrária de mercado atende as necessidades do capital, seja através da disponibilidade de terra para alugar, quer por meio de força de trabalho, ambos a baixo custo. Dos 15 mutuários pioneiros, sobra-ram apenas seis, dentre os quais a maioria decidiu retornar para a cidade, a fim de garantir alguma atividade assalariada que possibilitasse a reprodução da família e, nas horas de folga dos empregos, realizam sobretrabalho no em-preendimento, geralmente cultivando uma roça de hortaliças e legumes no quintal produtivo.

No momento do trabalho de campo, as famílias demonstraram gran-de expectativa com relação à possibilidade de recuperação da capacidade produtiva do empreendimento tendo vista o anúncio de individualização das dívidas e das terras, retirada das restrições interpostas pelo cadastro de inadimplentes e possibilidade de, finalmente, cerca de nove anos após a cria-ção do empreendimento, possam acessar o crédito agrícola. Já haviam reali-zado todos os procedimentos referentes a recomposição do quadro de sócios da Associação, que foi reduzido de 16 mutuários para apenas 12. Decorrente do processo de renegociação, já sabiam que devem ao todo 670 mil reais, re-ferente à compra da Fazenda Pouso Alegre e que deverá ser paga em parcelas anuais de aproximadamente R$ 2.100,00 por família. Já haviam elaborado



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o memorial descrito do imóvel rural, com a repartição dos lotes familiares entre os 12 mutuários. Como é sabido, de acordo com a MP 432/2008, para desencadear este processo é preciso pagar antecipadamente 1% dos juros do Banco da Terra, o que foi realizado com os recursos obtidos com o aluguel do pasto, uma vez que os mutuários não dispunham de rendimentos suficientes para esta empreitada.

Decorrente da recomposição do quadro de sócios e individualização das terras, o empreendimento estava passando pela divisão da área coletiva de pas-tagem em lotes individuais de aproximadamente 2 alqueires para cada família. Embora a divisão já tivesse sido realizada há seis meses quando do trabalho de campo, o pasto continuava sendo explorado em regime de aluguel pelos fazen-deiros do entorno, uma vez que os mutuários não dispunham de recursos para cercar o respectivo lote familiar, muito menos para realizar investimentos pro-dutivos. Como já havia ocorrido a mudança da direção da associação, a então presidente, com a renda obtida do aluguel do pasto, seguia quitando a conta de eletricidade da comunidade, mas não mais fazia a repartição da sobra entre os mutuários. Esta parte do recurso passou a ser investido na manutenção do próprio empreendimento, a exemplo: do cercamento da nascente existente no interior da propriedade, conserto de cercas, conserto da carroça, compra de máquina de esticar arame etc. Vale ressaltar que mensalmente uma parte destes rendimentos são poupados para, nos períodos em que o pasto não está alugado, tenham à disposição recursos para o pagamento da eletricidade, que represen-ta um gasto significativo para as famílias que continuam sobrevivendo como trabalhadores volantes das fazendas próximas, onde batem pasto e/ou cortam cana, além daqueles que trabalham no urbano como empregadas domésticas diaristas e pedreiros.

Esta condição denota que a MP 432/2008, que trata da renegociação, indi-vidualização e recuperação dos empreendimentos do Banco da Terra, não tem qualquer efetividade na dimensão de recuperação do empreendimento. O obje-tivo do governo é de criar as condições para a renegociação da dívida junto aos bancos, resolvendo os problemas de inadimplência que recaem sobre estes, sem qualquer preocupação ou ação efetiva com as condições de realização da vida nos empreendimentos. Neste contexto, toda e qualquer ação de recuperação dos empreendimentos se dará a partir dos investimentos a partir da capacidade de investimento, agora de cada família individualmente.

No tocante à recuperação do empreendimento é possível identificar duas perspectivas dentre os mutuários. A primeira é que com a retirada dos nomes dos cadastros de inadimplência passam, finalmente, pela primeira vez, acessar o crédito agrícola Pronaf. Com os recursos deste programa esperam conseguir converter o modelo de aluguel do pasto em lotes policultores familiares. Outra



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possibilidade é de continuar a exploração do aluguel do pasto, mas com os lo-tes divididos, como se a fazenda estivesse piquetada, exigindo apenas o manejo do gado entre os diferentes piquetes. Com a renegociação da dívida e indivi-dualização dos lotes, os trabalhadores vivem entre o dilema do prosseguimento da subordinação ao capital e a construção de um modelo de desenvolvimento camponês.

Caso a primeira alternativa seja a adotada pelas famílias, está assegurado a condição de proletarização e endividamento em que vivem neste momento. Ob-serve-se que o pagamento pelo aluguel do pasto do estabelecimento rende R$ 1.700,00/mês. Caso o imóvel permaneça alugado por todo o ano, o rendimen-to desta atividade será de R$ 20.400,00. Decorrente da renegociação, as famílias devem pagar ao banco anualmente, cada uma delas, R$ 2.100,00, o que totaliza R$ 25.200,00 se considerar todos os mutuários. A diferença entre o arrecadado com o aluguel do pasto e a anuidade a ser paga ao banco é de R$ 4.800,00 deficitá-rio. Na prática, se todos os lotes permanecerem alugados por todo o ano, ao mesmo valor, cada um dos mutuários deverá completar o montante de R$ 400,00 para sal-dar os compromissos com o agente financeiro.

Portanto, conclui-se que do modo como vem sendo explorado o pasto, mes-mo com a renegociação da dívida, os rendimentos auferidos estão aquém do necessário para quitar os compromissos com o banco. Certamente os trabalha-dores terão que acrescentar mais recursos advindos de outra atividade. E o que é mais absurdo é que em nenhum momento levaram-se em consideração as condições de reprodução da família camponesa e a necessidade de recuperação dos pastos, da terra etc. Assim como o incremento da fragilidade do indivíduo no momento de definição dos preços de aluguel do pasto, em comparação com a capacidade de negociação da Associação.

Mediante a realização de uma caminhada transversal pelo empreendimen-to, foi possível verificar o abandono de muitas das 16 casas edificadas. Ao perguntarmos à presidente da Associação sobre a produção existente no em-preendimento, a desterritorialização mais um vez comparece: “Nada! A úni-ca coisa que produz aqui é nada! (risos) Porque a produção aqui é assim, as pessoas se, é, todos que trabalham, trabalham assim...Então, eles trabalham uma semana pra comer na outra, então aqui não tem como produzir nada!” (Entrevista Itu 04, Ituiutaba, 2009). Amenizando um pouco o cenário da desterritorialização, é possível encontrar alguma pequena agricultura ao redor daquelas poucas casas que seguem habitadas pelas famílias, mesmo que algu-mas delas estejam ocupadas, apenas nos finais de semana; por exemplo, en-contram-se pequenas criações, roças de hortaliças, legumes e pomares, man-diocais etc. (Figura 32)



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figurA 32 – minAs gerAis – ituiutABA: criAção de suÍnos no QuintAl Produtivo


Durante o trabalho de campo, neste empreendimento, foi possível conver-sar com quatro famílias das seis que se encontravam no local no momento. To-das as conversas estavam marcadas pela esperança de conseguir construir uma vida digna naquele empreendimento e a partir do trabalho familiar. Mas, vale registrar a condição da família da então presidente da Associação, por dois mo-tivos: pela lição de amor e solidariedade e pela perseverança do sonho da recam-pesinização. A referida líder comunitária, de 42 anos de idade, viveu nas fazen-das do Triângulo com seus pais, na condição de moradores das fazendas até os 18 anos, quando se casou. Transferiu-se para a cidade onde passou a atuar como empregada doméstica diarista e gerou três filhos. Quando os filhos ainda eram pequenos, separou-se do marido e passado algum tempo decidiu viver com ou-tro companheiro. Posteriormente, seu primeiro esposo, que atuava como mo-torista, sofreu grave acidente automobilístico que o deixou tetraplégico. A nova família, com o que este homem vivia, avaliou que não teria condições de cuidá-lo e decidiu colocá-lo em um asilo. Descontente com esta condição, a líder co-munitária decidiu assumir a guarda do enfermo, obtendo imediata aprovação do seu atual companheiro.

No momento do trabalho de campo, a família da líder comunitária cuidava há 15 anos deste homem. Viviam em uma pequena casa, na cidade de Ituiuta-ba, ela e os três filhos do primeiro casamento, o companheiro e o ex-marido en-fermo. A forma como cada integrante da família cuidava do enfermo preenchia todos os cantos da pequena casa de uma contagiante forma de amor. O compa-nheiro atual era o responsável de realizar diariamente os cuidados de higiene do enfermo, assim como o levava com frequência, na cadeira de rodas, para assistir às partidas realizadas no estádio de futebol da cidade.



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A condição laboral do companheiro da líder comunitária é de trabalhador volante, cortador de cana para as usinas da região. Apesar de ter entrado por acaso no Banco da Terra, ou seja, quando o primeiro presidente da Associa-ção, que era seu amigo, articulava a formação daquela, pediu-lhe um pouco de dinheiro emprestado para quitar contas de tributos, que giravam entorno de R$ 70,00, o que foi prontamente atendido com cheques. Como os cheques não foram pagos, decidiu entrar no empreendimento como mutuário. No mo-mento de implantação das casas, o recurso disponibilizado não era suficiente para uma construção que contemplasse uma infraestrutura doméstica que pro-porcionasse segurança e conformo para uma pessoa cadeirante. Então, decidiu requerer a demissão da Usina Triálcool, onde cortava cana na época para com a indenização demissional, investir na construção de uma casa adequada para sua família. Durante os contatos com esta família, ficou marcado que as decisões tomadas, inclusive a de resistir na terra, ou resistir para retornar a viver na terra tem motivação na paixão do enfermo pela condição de recampesinização con-forme o depoimento a seguir:

Ele ficou lá [na casa da cidade] na maior paixão porque ele queria vim, porque pra ele isso aqui é o mundo que ele tem hoje. Por incrível que pareça, isso aqui é o mundinho dele, porque ele num fala, ele num anda, ele é da cadeira de roda pra cama, da cama da cadeira de roda (...) aqui ele vai pra todo lado, aqui os menino brinca muito com ele aqui, empurra ele pra tudo que é lado. Aqui hoje é a paixão da vida dele, pra ele é a felicidade dele essa casa aqui (...) Isso pra ele aqui é um sonho. Ele vem aqui dá ordem...fica mandando a gente fazer as coisa, “planta aqui, planta ali” (Entrevista Itu 04, Ituiutaba, 2009).

Nesta família, encontrei a líder comunitária e seu companheiro, alongando sua jornada de trabalho pelos momentos de descanso, mediante a realização de trabalho agrícola no quintal produtivo do empreendimento (Figura 33), com a esperança de um dia poder deixar de serem, respectivamente, empregada domés-tica e cortador de cana, para terem autonomia sobre o seu trabalho e proporcionar maior bem-estar e felicidade ao membro da família cadeirante (Figura 34).

Nessa perspectiva: Meu sonho é viver aqui na minha casinha, eu gosto disso aqui. Isso aqui pra mim é o paraíso. O ano passado eu fiz uma mandala (...) ficou ótima! Na época da minha horta aqui ia verdura pra duas escola: ali do frigorífico, né, da Vila Luíza, e lá pra escola lá onde eles estudam, no Paulo Salgado. Porque deu muita verdura aqui. Muita, muita que perdeu. Aí pra não perder, eu pedia pra mulher que ficava aqui pra mim ajudando, assim final de semana ela cuidava pra mim, ela colhia, punha nos saco e mandava pelos perueiro. Os perueiro levar pras professoras servir pras criança lá. Esse ano eu não fiz, mas eu tenho o meu sonho de fazer minha mandala. (...) Mas aí entra a parte financeira. Porque pra eu fazer um mandala hoje, do jeito que ela é feita...porque eu fiz ela uma mandala assim, eu não fiz a mandala original (...) porque a man-dala tem todo um processo de ser feito. Eu não, eu só fiz os canteiro em volta e só deu fazer os canteiro circular, já me deu lucro. Um dia chegou uma pessoa aqui e perguntou: “Você mora



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aqui?” Eu disse, não. “Mas como é que sua horta tá tão bonita desse jeito, e de quem mora aqui não tá bonita?” (...) Meu sonho é implantar, colocar minhas galinha, tenho vontade de implantar uma miniestrutura de galinha de postura, não em grande escala. Eu quero ter em pouca escala, tipo assim umas 200 galinha, de 50 em 50 para poder nunca faltar ovo e nunca ficar sem. E também o de corte, pretendo colocar em pequena escala, umas 200, mas também de 50 em 50, quando sair um lote o outro tá chegando. E continuar minha plantação e meu bananal que eu já comecei. Eu pretendo levar a linha de banana até lá em cima, rodear todi-nho aqui, o quintal é 50 de largura e 100 de comprimento. Pretendo rodear todinho, em volta de banana e entre uma bananeira e outra pretendo plantar mamão. Eu vou fazer um cinturão verde no meu quintal, mas sendo de coisas frutíferas. E no meio, assim, eu pretendo plantar minhas mandioca, pretendo continuar com as minha hortalice, pretendo ter minha criação de galinha caipira (Entrevista Itu 04, Ituiutaba, 2009).

figurA 33 – minAs gerAis – ituiutABA: mAndAlA no QuintAl Produtivo e A sociAlizAção cAmPonesA


figurA 34 – minAs gerAis – ituiutABA: fAmÍliA cAmPonesA, solidAriedAde e Amor



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considerAções finAis

Segundo projeções da FAO, no ano de 2009 o mundo atingiu a horripi-lante marca de mais de um bilhão de pessoas sobrevivendo sob as sombras da fome. Inúmeros são os estudiosos, instituições supranacionais, organismos go-vernamentais, organizações não governamentais etc., que se debruçam sobre esta problemática, produzindo reflexões sobre suas causas, bem como as mais variadas proposições resolutivas.

Raros são os estudos, políticas públicas e outros tipos de ações que se vol-tam à erradicação da pobreza. As soluções para esta problemática geralmen-te residem no plano do desenvolvimento capitalista, nas soluções pela via do mercado e, mais recentemente, são dirigidas pela racionalidade neoliberal, cujo princípio central é a conversão de todas as dimensões do real e suas múltiplas relações possíveis em mercadorias, negócios rentáveis e apropriação privada de riqueza ampliada. As propostas e ações vigentes se limitam a condição de mi-tigação da pobreza. Nesta perspectiva, conforme nos sugere Carvalho (2009) a pobreza, a miséria e a fome se convertem em um negócio rentável de maneira que as políticas voltadas para a sua redução logram cumprir, tão somente, sua própria reprodução.

Os dirigentes do cassino global, reunidos no G2033, decidiram, em 2 de abril de 2009, sobre a adoção de um conjunto de medidas para saída da crise fi-

33 O grupo dos vinte maiores economias do mundo, também conhecido como G20 financeiro é integrado pelos seguintes países: África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia



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nanceira mundial (desencadeada partir do ano de 2008, com a eclosão da bolha financeira do mercado imobiliário norte-americano). Programaram-se vultosas injeções de dinheiro para reforçar instituições financeiras supranacionais (como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM) e Organização Mundial do Comércio (OMC)) e grandes bancos privados. No plano subna-cional, os governos dos Estados-Nação tomariam as medidas necessárias para financiar as perdas dos usurários-especuladores, concedendo-lhes extraordiná-rias somas de dinheiro advindas dos tributos pagos pela população, bem como disponibilização de créditos com vistas a estimular o consumo geral.

Para uma crise de escala mundial, as soluções propostas acompanharam a escala-mundo e reafirmaram o papel do Estado na sociedade, em particular no salvamento e recuperação da capacidade de acumulação do capital. A crise fi-nanceira mundial eclipsou a crise mundial dos alimentos. Produziu medidas que ignoraram a massa crescente de mais de 1 bilhão de terráqueos, distribuídos pelo planeta, em situação de brutal inanição, decorrente das fomes epidêmicas e endêmicas cotidianas, conforme nos mostrou Castro (2001) em sua Geografia da Fome.

As saídas propostas pelo fórum do G20 suplantaram a Organização das Na-ções Unidas (ONU), no tocante aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM)34, mesmo que suas metas encontrem-se em consonância com os pres-supostos neoliberais. Aquelas seguramente não serão atingidas nos próximos cinco anos que nos separam de 2015, já que as políticas e ações de redução da pobreza se fundamentam na reprodução da pobreza e desigualdade, conforme demonstrei ao longo deste estudo sobre as políticas de crédito fundiário do Banco Mundial.

Diferentes são as conceituações sobre pobreza. Escobar (1998), alertando que a pobreza como campo de investigação se estabeleceu com a incorporação deste expediente à agenda dos organismos supranacionais, aponta- nos que em 1948 o Banco Mundial delimitou seu conceito de pobreza: seriam pobres os países com rendimento per capita inferior a 100 dólares. Esta concepção con-cebe a pobreza de forma unidimensional, reduzida a condição de baixa capa-cidade econômica dos países e dos indivíduos, impedindo-os de consumir os recursos essenciais para a reprodução do indivíduo e da sua vida. Logo, as solu-

do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia, Turquia e União Europeia

34 Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) preveem até o ano de 2015: reduzir a metade o quanti-tativo de pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza; proporcionar que crianças de todo o mundo possam terminar um ciclo completo de ensino primário; eliminar a desigualdade de escolarização entre os gêneros; reduzir em dois terços a mortalidade das crianças menores de cinco anos; reduzir em 75% a taxa de mortalidade materna; deter a contaminação por Aids, especialmente o continente africano; difundir os princípios do desenvolvimento sustentável nas políticas públicas nacionais; fomentar uma aliança mundial para o desenvolvimento.



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ções residem no crescimento econômico e desenvolvimento, o que pressupõe a erradicação das formas de existência comunitária e/ou comunal.

A pobreza do conceito de pobreza dos organismos financeiros supranacio-nais impede-os de enxergar que a extrema pobreza é uma problemática estru-tural do capitalismo, uma vez que “en el sentido moderno solamente apareció [a pobreza] cuando la difusión de la economia de mercado rompió los lazos co-munitarios y privo a millones de personas del aceso a la tierra, al água y a otros recursos” (Escobar, 1998, p. 53). Compreendo a pobreza como processo his-tórico, relacional e multidimensional. Resulta das relações sociais construídas historicamente no confronto entre as diferentes classes sociais, resultando em contínuo movimento de produção de desigualdade econômica, social, política, cultural, indo além da renda. Envolve a interação entre as diferentes formas de manifestação do “...subconsumo, desnutrição, condições precárias de vida, bai-xa escolaridade, inserção instável no mercado de trabalho e pouca participação política e social decorrente de um processo histórico que gera exclusão social, econômica e política” (Melo, 2005, p. 7).

Recentemente o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) divulgou o primeiro Relatório sobre Desenvolvimento Humano para América Latina e Caribe 2010 (IRDH), intitulado Atuar sobre o futuro: romper a transição intergeracional da desigualdade. O centro da análise reside na dimen-são econômica, anunciando que a América Latina é a região mais desigual do mundo, abrigando 10 dos 15 países com os maiores índices de desigualdade do planeta. No contexto regional, tomando o índice de Gini para distribuição da renda, o Brasil (empatado com o Equador) tem índice de Gini igual a 0,56, o que lhe confere a posição de terceiro país mais desigual em renda da região. Os outros dois países mais desiguais da região são Bolívia e Haiti, respectivamente, com índices de Gini 0,60 e 0,59. Em comparação com outras regiões do mun-do, levando em consideração as últimas estatísticas válidas, a concentração de renda é pior que o Brasil somente em Camarões e Madagascar que possuem 0,60 de Gini, e, África do Sul e Tailândia que apresentam 0,59 de Gini.

A análise da agência supranacional enfatiza as influências na transferência geracional da desigualdade, os baixos níveis de escolaridade dos pais, além das faces feminina, negra e indígena da pobreza. Como forma de mitigação da pro-blemática sugere políticas de transferência de renda, já presente em diferentes países da região e denominado, no atual governo brasileiro, de Bolsa Família. Não toca na questão agrária! Os programas de transferência de renda são ins-trumentos paliativos de mitigação da pobreza, nos quais o Estado incumbe-se de atribuir uma espécie de mesada aos mais pobres, para que possam consumir o mínimo essencial à reprodução da família. A manutenção do programa está condicionada ao compromisso político de cada governo, assumindo, portan-



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to, uma condição intermitente e compensatória. As políticas compensatórias se limitam em mascarar momentaneamente os problemas, infla as estatísticas, criando assim uma pauta favorável para a propaganda política. Quando a con-juntura mais favorável passa, os programas são suspensos e os problemas emer-gem com maior gravidade.

Do colonialismo escravocrata à colonialidade contemporânea, as bases da concentração fundiária seguem inabaladas, seja através do latifúndio, passan-do pelo agronegócio moderno, até o capital monopolista mundializado. O governo brasileiro, com três anos de atraso, divulgou em setembro de 2009 o resultado do Censo Agropecuário 2006, realizado pelo Instituto de Geogra-fia e Estatística (IBGE). Neste é possível constatar, dentre outras dimensões, a permanência de uma concentração fundiária exacerbada, expressa no con-trole, por apenas 1% dos estabelecimentos agropecuários, de aproximada-mente a metade (44,5%) da área agrícola cadastrada (ou 146.553.218 hec-tares), enquanto que a 90,3% dos estabelecimentos agrícolas (considerados pequenos) restam apenas cerca de 70 milhões de hectares, o correspondente a 21,4% da área.

Observemos, ainda, que o índice de Gini para a distribuição da terra no Bra-sil evoluiu da seguinte forma: 0,731 em 1960, 0,858 em 1970, 0,867 em 1975, 0,857 em 1985, 0,856 em 1995 e 0,854 em 2006. Demonstra-se que a concen-tração de terras no país aumentou entre 1960 e a atualidade, mesmo que haja uma pequena redução na última década. Quando comparamos o índice de 0,854 para a distribuição das terras em 2006 no país, com o Gini dos demais países do continente americano (considerando os dados disponíveis) verifica-se que o Brasil asssume a posição do 4º país com a maior concentração fundiária do continen-te, ficando atrás dos seguintes países: 1º) Paraguai (1980) - 0,928; 2º) Panamá (1990) - 0,871; 3º) Barbados (1989) - 0,928. Enquanto que o Canadá (1980), com 0,602 destaca-se com a melhor distribuição fundiária (Dieese , 2008, p. 35). Estes números tingem no Brasil uma tarja das maiores desigualdades sociais do mundo.

A partir das estatísticas enunciadas acima, é possível inferir que a concen-tração fundiária no Brasil é um processo histórico instituído com o regime co-lonial português de domínio do território, com a implantação das capitanias hereditárias e distribuição de sesmarias, aprofundado com a criação da proprie-dade privada fundiária com a Lei de Terras de 1850 e, posteriormente, com as medidas de modernização conservadora, resultante dos planos de desenvolvi-mento do país com vistas à inserção subalternizada do Brasil no capitalismo monopolista internacional. Ao longo da história do país, a classe dos proprietá-rios tem interposto diferentes óbices para impedir o avanço de qualquer tipo de reforma agrária no país com a anuência e atuação do Estado.



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A intensificação da pobreza e desigualdade no campo e na cidade tem levado os trabalhadores a se organizarem de diferentes formas, em coletivos, sindicatos, movimentos socioterritoriais etc., e construírem diferentes mecanismos de luta e resistência. No intuito de estabelecer o controle sobre o conflito, organismos financeiros supranacionais vêm formulando, especialmente a partir dos anos 1990, uma segunda agenda de ajustes estruturais, cujo um dos focos têm sido o combate a pobreza rural, mediante a mercantilização dos processos de trans-ferência de terras para os mais pobres, no qual o Brasil apresenta-se como uma referência internacional, por ser o país que mais avançou na institucionalização dos programas e políticas, pela escala de difusão, pelo número de atingidos, vo-lume de recursos investidos e institucionalidade implementada.

Este proceso coaduna com os estudos de Martins quando afirma que A tendência do capital é dominar tudo, subordinar todos os setores e ramos da produção e, pouco a pouco, ele o faz. Só não poderá fazê-lo se diante dele se levantar um obstáculo que o impeça de circular e dominar livremente, que o impeça de ir adiante. A terra é esse obstáculo. Sem a licença do proprietário da terra, o capital não poderá subordinar a agricultura. Como o capital tudo transforma em mercadoria, também a terra passa por essa transformação, adquire preço, pode ser comprada e vendida, pode ser alugada. A licença para a exploração capitalista da terra depende de um pagamento ao seu proprietário. É a renda da terra (...) a renda capi-talista da terra também se distingue da renda pré-capitalista porque não tem o caráter de ser um tributo pessoal e sim o caráter de um tributo social, o conjuto da sociedade paga pelo fato de que uma classe, a dos proprietários, terem o monopólio da terra. A dedução não é feita sobre os ganhos deste ou daquele , mas sobre os ganhos do conjuto da sociedade, sobre a ri-queza socialmente produzida, ainda que sujeita a apropriação privada do capitalista” (1995, p. 160-165).

Nesse contexto, busquei analisar as estratégias contra a pobreza, identifi-cando os desenhos elaborados pelo Norte a as alternativas em construção no Sul, compreendendo que as políticas de crédito fundiário implantadas no Bra-sil compõem os desenhos do Norte contra a pobreza. Pois os documentos do Banco Mundial, sobre a pobreza rural no Brasil e a problemática da posse da terra, têm claramente influenciado a formulação de ações, programas e políti-cas públicas, bem como a elaboração de formulações acadêmicas como teses, dissertações e livros que legitimam tal concepção de desenvolvimento. Busquei tratar das alternativas do Sul, analisando os processos de subordinação e resis-tência camponesa no bojo dos programas de crédito fundiário impletandos pelo Estado brasileiro, nos últimos 14 anos.

Neste estudo, o campesinato é considerado parte do capitalismo, porque é (re)criado pelo capital por meio das políticas de arrendamento e/ou da compra e venda de terras. Nesta última, a família camponesa pode aumentar o sobre- -esforço do trabalho familiar para, em um tempo programado, economizar a quantia necessária para comprar uma parcela rural. Outra forma de compra da



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terra necessária para a realização do trabalho familiar é mediante a aquisição de empréstimos bancários destinados a sujeitos pobres. Porém, o campesinato também pode decidir ser protagonista da sua (re)criação mediante as lutas por terras. É a partir da realização das ocupações de terras que os camponeses, inau-guram a possibilidade de se (re)criar no movimento de construção da reforma agrária no país. Este é o caso de uma luta contra o capital, por se configurar como uma luta contra a propriedade privada (Fernandes, 1996).

Portanto, na existência do campesinato estão os processos dialéticos de su-balternidade e resistência. A subalternidade é a condição de desterritorialização do campesinato, seja através da expropriação da família camponesa, da prole-tarização do campesinato, ou mesmo do controle do trabalho camponês via o processo de monopolização do seu território pelo capital. A resistência engloba todas as formas de enfrentamento empreendidas pelo campesinato contra a des-truição do trabalho familiar, bem como de construção das possibilidades da sua permanência. Subordinação e resistência são dimensões dialéticas e contradi-tórias da existência do campesinato no capitalismo, que busquei analisar nesta investigação, particularmente no bojo dos movimentos socioterritoriais Contag e MST, nos estados de Sergipe, e Maram no estado de Minas Gerais.

Um pilar teórico fundamental para a análise dos processos estudados está em José de Souza Martins, na obra O Cativeiro da Terra (1978/1998), quando afirma que

A produção capitalista de relações não capitalistas de produção expressa não apenas uma for-ma de reprodução ampliada do capital, mas também a reprodução ampliada das contradições do capitalismo – o movimento contraditório não só de subordinação de relações pré-capitalis-tas, mas também de criação de relações antagônicas e subordinadas não capitalistas. Neste caso o capitalismo cria a um só tempo as condições da sua expansão, pela incorporação de áreas e populações às relações comerciais, e os empecilhos à sua expansão, pela não mercantilização de todos os fatores envolvidos, ausente o trabalho caracteristicamente assalariado (Martins, 1998, p. 21).

Ao mesmo tempo em que o capital ao se expande no campo e destrói o trabalho familiar, necessita-se (re)criá-lo em diferentes escalas e/ou tempos his-tóricos. No caso das políticas de terras em análise, verifica-se uma estratégia internacionalizada do capital em ter o controle do processo de (re)criação do campesinato, de maneira que o trabalho familiar se materialize sem ameaçar a possiblidade de expansão do próprio capital. Contudo, a rebeldia inerente ao campesinato o leva construção de diferentes formas de resistência ao capital, mesmo que as bases da sua (re) recriação estejam sobre controle do capital.

Neste contexto, faz-se necessário enfocar as principais constatações decor-rentes do estudo realizado. O ponto de partida foi o questionamento se o cré-dito fundiário, propalado pelos últimos governos no Brasil como um instru-



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mento complementar à reforma agrária seria, na prática, um instrumento de contrarreforma agrária, disfarçado de complemento da reforma agrária.

O argumento que as linhas de financiamento de crédito fundiário são com-plementares à reforma agrária, pressupõe a existência efetiva de uma política efetiva de desconcentração fundiária em curso no país. Justamente aí reside o primeiro equívoco, pois observando os quantitativos de famílias que entraram na terra, por meio do programa de reforma agrária no Brasil, desde a década de 1960, verifica-se que resulta, na maioria das vezes, da ação do Estado para dirimir os conflitos fundiários interpostos pelas lutas dos trabalhadores, do que uma ação planejada e programática dos governos ou do Estado.

A observação da espacialização das terras arrecadadas e das famílias beneficiá-rias com o programa de reforma agrária, demonstra que a maior parte das famí-lias foi assentada na região amazônica, onde o Estado brasileiro possui o maior estoque de terras públicas. Desta maneira, o elemento central de qualquer po-lítica de reforma agrária, a desconcentração fundiária, fica em segundo plano, permitindo-lhe apenas a condição de uma política de assentamentos rurais.

A reforma agrária é uma política pública que visa à desconcentração fundiá-ria e deve ser implantada, principalmente, pelo Estado. Deve ser acompanhada de um conjunto de políticas e programas de garantia dos direitos sociais, aces-so ao crédito agrícola, assessoria técnica, comercialização, previdência pública. Deve promover a alteração do controle das águas em favor dos sistemas fami-liares de produção. A atual política de assentamentos rurais, levada adiante pelo governo federal, embora apresente resultados positivos na elevação da qualidade de vida das populações, tem o seu funcionamento marcado pela intermitência, incompletude e algumas inadequações das políticas e programas em curso. As análises de impactos socioterritoriais das políticas de crédito fundiário demons-tram que todos os princípios de um programa de reforma agrária não são aten-didos, impedindo de ser um programa complementar de reforma agrária.

Quando analisamos o perfil dos beneficiários da política de assentamentos e dos mutuários do crédito fundiário, verifica-se que ambos os sujeitos podem ser caracterizados como pobres rurais ou urbanos, com um histórico de exploração e/ou expropriação. O que leva à constatação de que as linhas de financiamento de crédito fundiário concorrem com a política de assentamentos rurais, já que tem a mesma focalização de público. Ao observarmos as dinâmicas desencadea-das pela implantação dos empreendimentos de crédito fundiário, ressalta-se a atuação incisiva dos governos e/ou parlamentares ligados aos ruralistas na sua defesa, construindo espaços políticos favoráveis à difusão dos programas e atra-ção de mais famílias mutuárias, como o observado em Sergipe, onde o governo foi o responsável pela desarticulação de lutas por terras e incorporação das famí-lias ao Banco da Terra ou como ocorrido no Triângulo Mineiro, onde a Associa-



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ção dos Prefeitos do Vale do Alto Paranaíba, controlada por prefeitos ruralistas e articulada à bancada ruralista mineira no Congresso Nacional, forjou um ar-ranjo institucional favorável à municipalização do programa, enquanto que o governo estadual mineiro proibia por decreto a contratação do programa Banco da Terra pela esfera estadual.

Quanto à condição dos imóveis adquiridos, verifica-se com certa frequên-cia a transação de compra e venda de imóveis hipotecados, em vias de serem leiloados, pertencentes a fazendeiros endividados, ou mesmo àqueles que são fragmentados pelos proprietários rurais em dimensões inferiores ao mínimo previsto em lei para desapropriação para fins de reforma agrária. Constatei que, mesmo após o estouro do litígio reivindicatório da reforma agrária, o fazendei-ro conseguiu dividir o imóvel e vendê-lo para o crédito fundiário. Estas foram duas formas manifestas de utilização dos créditos disponíveis para a compra de terras a favor dos fazendeiros e contra o avanço da reforma agrária.

Outra dinâmica muito frequente, diz respeito às incompletudes na implan-tação dos empreendimentos e os equívocos nos projetos produtivos que dificul-tam ou impedem os mutuários de conseguir da agricultura os meios para uma reprodução digna das famílias camponesas. Buscando uma alternativa econô-mica de sobrevivência as famílias podem arrendar as terras do empreendimento ao capital, implantar projetos produtivos integrados com a agroindústria e, no extremo, chegam ao assalariamento de um, alguns ou todos os mutuários de uma mesma família e/ou empreendimento nas fazendas do entorno ou em ati-vidades de baixa qualificação nos espaços urbanos. É possível, ainda, encontrar mutuários cujo trabalho assume essas diferentes condições simultaneamente.

Decorrente da incapacidade de geração de excedentes monetários suficien-tes para a reprodução das famílias, portanto, ausência de capacidade de paga-mento das dívidas financeiras contraídas para a compra da terra e/ou crédito agrícola, forja-se uma subjetividade do endividamento, que se materializa em um sentimento de aprisionamento à condição da dívida. Em alguns locais esta subjetivida de do endividamento contribui para amortecer a capacidade orga-nizativa dos sujeitos para reivindicar direitos sociais, limitando os esforços or-ganizativos à busca de condições de pagamento das dívidas. Por outro lado, há aqueles sujeitos que, coletivamente, decidiram pelo não pagamento das dívidas financeiras referentes à compra da terra. Neste caso, verifica-se uma organiza-ção política em movimento socioterritorial anterior à entrada no empreendi-mento.

Ademais, no plano teórico, a difusão dos programas de crédito fundiário, com sua centralidade nas diretrizes de mercado intencionam esvaziar politica-mente o conceito de reforma agrária ao tentar, de modo comparativo, demons-trar a maior celeridade no processo de implantação dos empreendimentos de



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crédito fundiário em detrimento dos assentamentos de reforma agrária; difun-dir a falácia do menor custo deste instrumento em relação a arrecadação de terras via desapropriação. Isto torna mais frequente as formulações acadêmicas que se distanciam do conceito de reforma agrária desapropriatória, previsto na Constituição Federal e que naturalizam os instrumentos de compra e venda como as únicas alternativas possíveis na contemporaneidade. Portanto, estas dinâmicas em curso me fazem concluir que as políticas de crédito fundiário im-plantadas no Brasil, cumprem um papel de política de contrarreforma agrária.

O processo de recriação do campesinato, na contrarreforma agrária de mer-cado, dá-se a partir dos processos geográficos de espacialização e territorializa-ção. A espacialização é o processo de dimensionamento de espaços de relações entre camponeses e diferentes sujeitos sociais que antecede ao processo de terri-torialização. São dimensionados dois espaços: o espaço jurídico-institucional e o espaço da subalternidade. No primeiro se definem todas as diretrizes, tempo e escala do programa; no segundo se difunde o programa e convence os sujeitos a converterem-se em mutuários. É a partir da decisão de acessar um empréstimo bancário para comprar um imóvel, e passando na qualificação de adimplente, que o sujeito-camponês, certificado por alguma organização social reconheci-da, efetivamente compra parcela do território do capital, territorializando-se e ao mesmo tempo territorializando a contrarreforma de agrária de mercado (Cram). Este processo produz a desterritorialização física do capital naquele lugar, que impõe-se como condição da sua reterritorialização em outro espaço econômico.

No tocante às relações sociais e aos conteúdos dos espaços de socialização política construídos nos processos de acesso à terra fomentado pela Contag/Fe-tase, MST-SE e Maram, verifica-se que todas as organizações estão submetidas as regras muito parecidas de criação dos empreendimentos, disponibilidade de recursos similares e mesmo vácuo institucional. Portanto, as relações podem diferir entre os movimentos socioterritoriais no tocante aos conteúdos das prá-ticas sociais realizadas no espaço da subalternidade.

As entidades do sistema Contag podem realizar reuniões com trabalhadores rurais e urbanos com vistas, exclusivamente, a formar uma associação e sindica-lizar os trabalhadores, e efetivar a compra de um imóvel não discutindo as con-dições dos sujeitos e nem despertando uma consciência de classe. A conjuntura atual aponta que as entidades do sistema Contag seguirão concedendo apoio político operacional ao Programa Nacional de Crédito Fundiário, uma vez que participa diretamente dos conselhos de desenvolvimento rural nas três esferas de governo, tem a possibilidade de contratar um conjunto de assessores do pro-grama no país, bem como tem apresentado ao governo reivindicações de apri-moramento sobre o programa, como a elevação do teto de financiamento.



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Esta última reivindicação foi acatada pelo governo Lula e já entrou em ope-ração através da Resolução 3.869, elevando para R$ 80 mil o teto para o finan-ciamento de terras. Todavia, o atendimento do governo não foi diretamente às reivindicações do trabalhadores, mas sim ao mercado, que neste momento apresenta uma célere e vertiginosa elevação dos preços das terras no país, decor-rente das políticas de incentivo à agricultura comercial, atualização da infraes-trutura e financiamento do negócio dos agrocombustíveis. Diante deste cená-rio, os valores praticados no mercado de terras levariam à eliminação do crédito fundiário. Entretanto, aqui o Estado age com vetor da garantia do mercado de terras, sob o discurso do compromisso com o combate à pobreza rural.

Na intrigante experiência do MST-Sergipe na Cram, verifica-se o dimensio-namento do espaço de socialização política característico das lutas por terras, com a formação de espaço interativo, comunicativo e o espaço de luta e resis-tência, com a concretização das ocupações e edificação dos acampamentos ru-rais. Contudo, a ação do governo deslocou o espaço de luta e resistência para o espaço da subalternidade, ao conduzir as famílias para a compra da terra pelo programa Banco da Terra. Atualmente, em uma ação isolada no estado de Ser-gipe, o MST tem demandado oficialmente terras pelo Programa Nacional de Crédito Fundiário. Mas, segue dimensionando os espaços interativo, comuni-cativo, de luta e resistência, fundamentais para despertar a consciência e recriar o campesinato como classe.

Embora exista um conjunto de trâmites burocráticos específicos, o MST adotou uma metodologia própria para o ingresso das famílias no programa. En-quanto para a Contag e outros movimentos camponeses, adota-se a mobiliza-ção de grupos de famílias para formar associações de trabalhadores rurais volta-das à compra da terra pelo PNCF, o MST prioriza contemplar aquelas famílias que se encontram na luta pela terra, particularmente em acampamentos rurais por longos períodos como 5, 10 anos ou mais, geralmente os imóveis reivindi-cados mediante ocupações têm seus processos judiciarizados e sem perspectivas de conquista dos assentamentos.

A reivindicação de uma nova área para assentamento de famílias sempre se dá, primeiramente, com a realização da ocupação do imóvel ou manifestação próximo ao mesmo. Esta tática impõe ao Incra a necessidade de realizar a vis-toria do imóvel, a fim de constatar a condição de cumprimento da função so-cial da terra. Após o laudo de vistoria, se o imóvel for considerado produtivo e de interesse para o programa nacional de reforma agrária o Incra, pode iniciar negociação de compra do imóvel utilizando o instrumento legal da compra di-reta previsto na Lei Federal 433/1992. Caso a arrecadação tenha algum impe-dimento de se dar por este instrumento, o MST pode reivindicar a compra do imóvel pelo PNCF.



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No caso do Maram, verifica-se que os mutuários entraram no programa Banco da Terra antes mesmo de conhecerem algum tipo de organização clas-sista. Foi dimensionado primeiramente o espaço jurídico-institucional, que viabilizou no marco legal nacional a experiência inédita de municipalização da Cram no país, como ação reativa ao bloqueio da introdução do Programa Banco da Terra no estado de Minas Gerais. Em seguida dimensionou-se o espaço da subalternidade com a atuação da Força Sindical do Estado de São Paulo, contratada para convencer os agricultores da viabilidade dos projetos. Já a Emater, nas reuniões e na elaboração dos projetos produtivos dos em-preendimentos, atestava a viabilidade econômica e social de cada um dos em-preendimentos. Neste caso, os trabalhadores passaram a organizar-se entorno de alguma ação reivindicatória, somente após territorializados, em busca de soluções contra a desterritorialização.

Foi a partir do dimensionamento de espaços interativos e comunicativos que os mutuários do Banco da Terra do Triângulo Mineiro/Alto Paranaíba de-cidiram pela criação do Maram, como forma de organização política para exer-cer pressão junto aos governos municipais, estadual e federal e, assim, forçar condições de realizar a negociação da dívida da terra, recuperar a capacidade de aquisição de créditos agrícolas e reestruturar as condições produtivas dos em-preendimentos falidos. Reivindicaram, ainda, os mesmo direitos e acessos às políticas públicas que os beneficiários da reforma agrária.

O Maram é um movimento socioterritorial porque tem uma pauta reivindica-tória e um programa de ação desde a perspectiva da classe camponesa, que reivin-dica transformações nas formas de tratamento do Estado para com as condições de falência dos empreendimentos do Banco da Terra. Encontra-se em processo de formação, no qual o dimensionamento constante dos espaços de socialização política tem sido fundamental para o fazer-se da classe camponesa.

Gradativamente, um número maior de sujeitos tem se formado para ocupar e intervir em outros espaços como os conselhos municipais de desenvolvimento rural sustentável, eleição de vereadores, audiências com autoridades, elaboração de documentos etc. Todavia, em diversas associações ainda permanece um cer-to desconhecimento de direitos e mecanismos de reivindicá-los. Estas têm sido capturadas por escritórios de advocacia regionais, que cobram de cada família um salário mínimo/mês), para reorganizar o quadro de sócios, lavrar atas, or-ganizar os documentos e realizar os encaminhamentos necessários para a rene-gociação das dívidas previstas na MP 432/2008. A fala de um dos mutuários entrevistados é reveladora, da relevância deste movimento socioterritorial, que é o único a contestar as condições do Banco da Terra no país:

O Maram, eu vejo o Maram o seguinte, um ponto de referência, um ponto de apoio, né. O que a gente precisa é um ponto de reunião, de a gente ter uma estabilidade, de... pra gente



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e pra aqueles que precisa que a gente pode levar pra frente, né. É, é isso que eu vejo o Ma-ram, uma coisa que serve de ajuda pra gente. Na moda do outro, é ocê ser uma pessoa mais respeitada ainda, que cê tem uma ajuda pra frente e você pode ajudar pra frente, né. Que a gente é um ponto de apoio, um ponto que cê pode ajudar e ser ajudado (Entrevista Itu 02, Ituiutaba, 2009).

Por um lado a territorialização da Cram, no Brasil, viabiliza aos sujeitos po-bres o primeiro acesso à moradia, terra de trabalho, às primeiras ferramentas, portanto a uma condição de bem-estar até então jamais vivida por boa parte dos atingidos. Por outro lado, tem demonstrado impactos socioterritoriais pre-ocupantes, dentre os quais destaco: a) estímulo ao processo de minifundização; b) aquisição de imóveis rurais ou parcelas de imóveis com preços elevados, iso-lamento geográfico e condições de produção inadequadas, a exemplo da insufi-ciência ou ausência de águas para consumo humano e produtivo, infertilidade dos solos etc.; c) baixa capacidade organizativa das associações resultante das relações sociais construídas no processo de formação destas.

Todos os elementos elencados anteriormente impactam direta e negativa-mente no processo de desenvolvimento dos empreendimentos, mas gostaria aqui de explorar um pouco mais, quatro vetores: o estímulo a minifundização; o descompasso da liberação dos recursos para compra da terra e forma de finan-ciamento dos investimentos produtivos; a mercantilização da assistência técnica e extensão rural; ausência de órgão responsável pelo programa após a realização dos investimentos previstos.

A legislação prevê que a reforma agrária deve atacar os dois extremos dos problemas de acesso às terras no campo, ou seja: redistribuir a grande proprie-dade improdutiva atendendo às famílias sem terras, bem como promover a re-distribuição de terras para aqueles que dispõem de pouca terra, compreendidas como abaixo do módulo fiscal adotado em cada região. Todavia, em alguns ca-sos estudados, ocorreu exatamente o inverso. Ao financiar a compra de terras para camponeses pobres que buscam se ressocializar mediante a entrada na ter-ra, o governo de Sergipe, em articulação com o governo federal, promoveram a minifundização. E, como se trata da compra e venda de terras através de uma operação creditícia, automaticamente produz o aprisionamento destes sujeitos a uma dívida financeira que dificilmente conseguirão pagar.

Todos os empreendimentos de contrarreforma agrária de mercado estuda-dos tiveram recursos liberados para compra da terra, com respectivas benfeito-rias, em cujos projetos produtivos elaborados por empresas públicas estaduais, atestavam a viabilidade econômica dos projetos produtivos, no tocante a gerar a rentabilidade necessária para pagar os empréstimos tomados e viabilizar as condições de existência da família. Alguns empreendimentos previam a recupe-ração de infraestrutura produtiva preexistente e em todos estava programada a



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implantação de equipamentos produtivos definidos. Em diferentes empreendi-mentos os projetos produtivos se complementariam com a liberação do crédito agrícola. Contudo, pode dificultar o desenvolvimento do empreendimento ou até mesmo inviabilizá-lo: atrasos na liberação do crédito agrícola; a ocorrência de projetos produtivos elaborados de acordo com as especializações agrícolas locais e em desacordo com as culturas e/ou mercados locais.

Ademais, há que relembrar que os mutuários têm de dar uma contrapar-tida ao projeto, em espécie, trabalho ou produtos, que geralmente é aportada sob a única mercadoria que os trabalhadores possuem, a sua força de trabalho. Atuam na construção das casas, cercas etc., ou seja, o próprio lugar de moradia e trabalho. Porém, durante este período de implantação do empreendimento os mutuários necessitam investir tempo de trabalho na estruturação do empreen-dimento, ao invés de dedicar-se à agricultura. Paralelo ao trabalho de contrapar-tida costumam assalariar-se no entorno como forma de adquirir rendimentos para garantira subsistência, em detrimento do inicio dos primeiros cultivos, que originarão as primeiras colheitas, que abastecerão as famílias até a completa im-plantação o empreendimento. Esse é um problema que conduz ao sobre-esforço do trabalho familiar, ao assalariamento nos primeiros anos do empreendimen-to, “roubando” o camponês do seu próprio trabalho, do seu próprio lote.

Outro entrave ao desenvolvimento territorial dos empreendimentos é a mercantilização da assistência técnica e extensão rural. Esta dimensão do desen-volvimento dos empreendimentos de crédito fundiário expressa uma perma-nência constatada em todas as áreas visitadas neste estudo, seja por associações isoladas, associações vinculadas à Fetase, aquelas ligadas ao MST, bem como associações articuladas no Movimento dos Atingidos pela Reforma Agrária de Mercado (Maram).

A assistência técnica destinada às famílias camponesas, tal como está estru-turada, limita-se a condição de um serviço contratado privadamente pelos tra-balhadores, como condição para acessar créditos, seja fundiários ou agrícolas, sendo o custo do serviço pago com parte do próprio crédito. Este princípio mercantil ofusca por completo a condição estratégica de estruturação de uma política pública permanente e estratégica para a viabilização da agricultura cam-ponesa.

A natureza do contrato firmado contribuiu para fazer da ação do técnico, apenas uma intervenção pontual, esporádica, tecnicista e fiscalizadora. A trans-formação desta realidade pode se dar pelo estabelecimento do caráter perma-nente do programa, sua desvinculação dos empréstimos financeiros garantindo a ampliação da apropriação da oferta do serviço por prestadoras de serviços de assistência técnica que conheçam em profundidade os anseios dos trabalhadores e os dilemas da reforma agrária e a lógica da economia camponesa, preferencial-



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mente, ligada aos movimentos socioterritoriais e/ou cujos profissionais tenham formação compatível com uma atuação que supere a perspectiva tecnicista e desempenhe uma ação de gestor de política públicas.

Este conjunto de vetores atuando conjuntamente nos empreendimentos de contrarreforma agrária de mercado, localizados nas duas unidades da federação e coordenados por qualquer dos movimentos socioterritoriais, tem determina-do grandes dilemas ao desenvolvimento territorial camponês. Esta condição tem se agravado com a inexistência de um órgão público que se responsabilize pela manutenção, recuperação e investimento nos empreendimentos.

A condição dos mutuários frente aos órgãos públicos após o período de rea-lização dos investimentos contratado é de completo descaso e abandono. Quan-do foi possível encontrar casos isolados de sucesso produtivo foi decorrente do conhecimento prévio, criatividade camponesa, disponibilidade de recursos ob-tidos de outras fontes e grande sobre-esforço do trabalho familiar, para produ-zir e comercializar. Em nenhuma localidade perscrutada foi possível constatar ações governamentais de recuperação dos empreendimentos de crédito fundiá-rio, conforme previsto na MP 432/2008. Portanto, recomendo a inclusão dos empreendimentos de crédito fundiário nas ações do órgão fundiário federal, In-cra. Bem como defendo investimentos públicos de aparelhamento deste órgão como forma de suportar a certeira demanda que advirá desta ação.

Diante deste cenário de desterritorialização camponesa na maior parte dos empreendimentos estudados, verifica-se a fragilização comunitária, tornando o trabalho familiar mais suscetível à ação do capital no campo que demanda força de trabalho e/ou terras a baixo custo. Esta dinâmica pode ser encontrada nos casos de arrendamento das terras dos empreendimentos de crédito fundiá-rio, como alternativa única de garantia do mínimo necessário para existência das famílias mutuárias. Onde o processo de desterritorialização é mais intenso, sobretudo o que atinge verticalmente a organização política dos sujeitos sociais mutuários, possibilita que o capital atue na reincorporação das terras ao patri-mônio dos proprietários. Este é o caso da denúncia da utilização de “laranjas” para comprar a dívida e a terra dos desistentes. Nestes casos, a apuração do Mi-nistério Público Federal é fundamental para reversão desta tendência, onde ela se encontra em curso.

Por fim, gostaria de debater a questão: a flexibilização da posição política do MST-SE e a fundação do Maram criarão dinâmicas que trarão a Cram do território da economia para o território da política, criando a possibilidade de destruição desta política neoliberal por dentro, ou gerará contradições internas nos Movimentos a ponto de enfraquecê-los?

As condições de incompletude na implantação e desenvolvimento dos em-preendimentos originários das diferentes linhas de crédito fundiário, assim com



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a contratualização assinada entre os camponeses, proprietários de terras, gesto-res públicos e agentes financeiros materializam no campo brasileiro um novo mecanismo de sujeição da renda da terra ao capital. Nesta, é necessário, primei-ramente, forjar uma falsa igualdade entre os sem-terra e fazendeiros (e todos os demais atores: gestores públicos e agentes financeiros) a partir de uma igualdade jurídica, na qual os primeiros, por passarem a ter direito a créditos públicos, são convertidos em cidadãos-consumidores, que podem comprar terras dos segun-dos, também livres para vender parte do seu patrimônio, a terra.

Este arranjo jurídico é falso porque os sem-terra, que em geral em um pri-meiro momento, nada dispõem para realizar a reprodução de sua família além da sua força de trabalho, mas são colocados em igualdade (jurídica) com aque-les que dispõem da terra concentrada e cobram um tributo à sociedade para que se dê o acesso a este bem. O Estado tem papel fundamental no pagamento des-te tributo, mediante a criação de linhas de financiamento para os mais pobres comprarem a terra mediante o pagamento à vista aos proprietários, realizando a renda absoluta da terra.

Partindo da premissa que o mercado é um território do capital e a política o território dos camponeses, somente o deslocamento da Cram do território da economia para o território da política poderá concretizar transformações importantes na política pública a ponto de possibilitar a construção de uma soberania laboral, esta compreendida aqui como as condições e capacidade dos próprios sujeitos decidirem como, em que condições, com quais finalidades e por qual custo devem laborar os respectivos territórios.

Contudo, para que se alcance alguma possibilidade de promover transfor-mações na política publica, será preciso superar uma posição individualizada frente ao problema e alcançar um agir coletivo dos camponeses ligados às dife-rentes organizações. Indo ainda mais além, a ação individualizada, semelhante àquela que é pregada no capitalismo, das igualdades individuais jurídicas, na qual cada mutuário do empreendimento busca a defesa de apenas o seu lote, não proporcionará a pressão necessária para superação do problema.

Se a defesa ampliar para resolução na escala do respectivo empreendimento, ainda assim não surtirá efeito. Mas, se o agir for coletivo em defesa dos territórios das diferentes organizações, formadas pelos mutuários do conjunto de empreen-dimentos articulados ao respectivo movimento socioterritorial, aí já se configura a possibilidade da pressão que pode culminar na politização da problemática des-tas famílias que, até então, é completamente ocultada da sociedade pela omissão do Estado e seu comprometimento com a resolução mercantilizada do dilema do aprisionamento de milhares de camponeses à dívida fundiária.

Esta forma de resistência do campesinato, frente à sujeição da renda da terra ao capital, caracteriza-se por ser uma ação contra o capital, cuja efetivação so-



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mente logrará resultados a favor dos camponeses se tomada de modo coletivo pela classe camponesa. Isto implica que todos os movimentos socioterritoriais envolvidos na política de reforma agrária de mercado, devem tomar decisão igual, além de envidar esforços para organizar o enorme contingente de outras famílias mutuárias que ainda se encontram desarticuladas, garantindo assim a ampliação da ação, culminando em uma escala nacional.

Os resultados desta mobilização podem conduzir à conquista da anistia pelo governo brasileiro, das dívidas de aquisição das terras, bem como desencadear importante conjuntura para a conquista, pelos trabalhadores, de infraestrutu-ra, equipamentos comunitários e políticas de crédito, assistência técnica, edu-cação e capacitação, comercialização, saúde etc. Já é chegada a hora do Estado brasileiro reparar todos os atingidos pela contrarreforma agrária de mercado e assumir o compromisso político de assentar na verdadeira reforma agrária os milhões de brasileiros excluídos do acesso à terra, como ação estrutural no com-bate à pobreza e à desigualdade.


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movimentos socioterritoriais, a contrarreforma agrária do banco

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