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Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa social Universidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais 22 a 26 de Outubro de 2012 179 CRIANÇAS INDÍGENAS NA CIDADE: A EDUCAÇÃO INFANTIL NO CENTRO SOCIAL MITANGUE-NHIRI Driéli da Silva Vieira Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá; Antropóloga da Assindi – Associação Indigenista de Maringá Resumo: Quando falamos em educação infantil nos remetemos à creches e pré-escolas voltadas para crianças brancas moradoras de centros urbanos cujo objetivo é educá-las e discipliná-las conformes os padrões burgueses da sociedade ocidental. No entanto, as cidades têm se tornado reduto de diferentes povos e este é o caso de Maringá que recebe indígenas das etnias Kaingang e Guarani ou para vender artesanato ou estudar nas universidades da cidade. A Associação Indigenista – ASSINDI abriga essas famílias dando o suporte necessário para se manterem no município, tais como, alimentação, moradia e, recentemente, um Centro Social Infantil Indígena a fim de que seus filhos permaneçam na associação enquanto seus pais vão às ruas vender artesanato ou estudar. No entanto, como organizar uma creche ou pré-escola para crianças de diferentes etnias sem ao menos conhecer o que é ser crianças para aquelas sociedades? Os profissionais da educação infantil estão aptos a atuar com essas crianças sem desconsiderar seus sinais culturais diacríticos? A fim de buscar respostas a essas questões é que fui contratada pela associação, para trazer a escola indígena para a cidade, para isto, até o momento, busquei compreender o que é ser criança para ambos grupos étnicos e quais métodos de ensino-aprendizagem são utilizados em sociedades indígenas. Destaco que esta proposta é um esboço de uma futura pesquisa que já fora colocada em prática, mas ainda é prematura. Palavras-chave: Educação infantil; Crianças indígenas; Escola; Cidade.

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Anais do X Seminário de Ciências Sociais - Tecendo diálogos sobre a pesquisa socialUniversidade Estadual de Maringá | Departamento de Ciências Sociais

22 a 26 de Outubro de 2012179

CRIANÇAS INDÍGENAS NA CIDADE: A EDUCAÇÃO INFANTIL NO CENTRO SOCIAL MITANGUE-NHIRI

Driéli da Silva Vieira

Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá;Antropóloga da Assindi – Associação Indigenista de Maringá

Resumo: Quando falamos em educação infantil nos remetemos à creches e pré-escolas voltadas para crianças brancas moradoras de centros urbanos cujo objetivo é educá-las e discipliná-las conformes os padrões burgueses da sociedade ocidental. No entanto, as cidades têm se tornado reduto de diferentes povos e este é o caso de Maringá que recebe indígenas das etnias Kaingang e Guarani ou para vender artesanato ou estudar nas universidades da cidade. A Associação Indigenista – ASSINDI abriga essas famílias dando o suporte necessário para se manterem no município, tais como, alimentação, moradia e, recentemente, um Centro Social Infantil Indígena a fim de que seus filhos permaneçam na associação enquanto seus pais vão às ruas vender artesanato ou estudar. No entanto, como organizar uma creche ou pré-escola para crianças de diferentes etnias sem ao menos conhecer o que é ser crianças para aquelas sociedades? Os profissionais da educação infantil estão aptos a atuar com essas crianças sem desconsiderar seus sinais culturais diacríticos? A fim de buscar respostas a essas questões é que fui contratada pela associação, para trazer a escola indígena para a cidade, para isto, até o momento, busquei compreender o que é ser criança para ambos grupos étnicos e quais métodos de ensino-aprendizagem são utilizados em sociedades indígenas. Destaco que esta proposta é um esboço de uma futura pesquisa que já fora colocada em prática, mas ainda é prematura.

Palavras-chave: Educação infantil; Crianças indígenas; Escola; Cidade.

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DRIÉLI DA SILVA VIEIRA

INTRODUÇÃO

As escolas de educação infantil atendem crianças de zero a seis anos, antes da idade escolar, e são instituições criadas pela sociedade burguesa em razão da urbanização e industrialização no intuito de “educar e disciplinar a criança dentro dos valores sociais dominantes” (AGULERA URQUIZA; BRAND e NASCIMENTO, 2007).

Diante dessas informações nós podemos nos colocar a pensar como é que a educação infantil chegou às aldeias indígenas sendo que ela surgiu num contexto de urbanização e industrialização? Para desvendarmos essa questão não podemos deixar de considerar alguns eventos relativos aos movimentos populares urbanos como o pós-guerra, o êxodo rural e a inserção da mulher no mercado de trabalho; proponho esse esclarecimento para que possamos demarcar as diferenças entre uma escola da educação infantil na cidade e outra em terra indígenas, ou seja, a educação infantil em dois contextos diferentes.

Neste sentido, a educação infantil oferecida nas cidades impõe-se como uma necessidade de assistência, em razão da ausência da mãe trabalhadora; já nas terras indígenas, mesmo com o advento da colonização que gerou grande perda territorial e, por sua vez, alterou todo o modelo econômico das aldeias, a educação das crianças continuou sendo de responsabilidade dos mais velhos e das mulheres que permaneceram aldeados.

Contudo, este artigo tem como objetivo apresentar-nos o caso, não de uma escola indígena de educação infantil na aldeia, mas sim na cidade e, de início já pudemos constatar uma semelhança entre essas instituições em contextos diferentes, o caráter assistencial.

Segundo Bujes (2002) outro fator relevante é que as sociedades indígenas, hoje, assim como a sociedade nacional, reconhece a importância da educação infantil e de suas propostas pedagógicas “a escola infantil e as propostas pedagógicas nela desenvolvidas teriam[...] um papel preponderante na superação da ignorância e da opressão que caracterizariam o nosso sistema social e constituiriam, por certo, um fator significativo na consecução da eqüidade” (id., p,13). Por conseguinte, dados do INEP/MEC/2005 apontam o aumento da oferta da educação indígena nos anos de 2003, 2004 e 2005 em 17,5%. Em 2003 foram matriculados 139.556 estudantes indígenas, em 2004 147.571 e em 2005 164.018, sendo que destes, 18.583 correspondente a 11,3% estavam matriculados na educação infantil1.

No entanto, os direitos das sociedades indígenas previstos na Constituição de 1988, que condiz com a manutenção das diferenças e da autonomia dos povos indígenas, não vêm sendo respeitados, afinal o Estado vem fomentando políticas, no caso, educacionais, externa a realidade cultural daquelas sociedades, isto é, a educação infantil oferecida às crianças indígenas

1 Editado pela Subsecretaria de Comunicação Institucional da Secretaria-Geral da Presidência da República. Nº 410 - Brasília, 15 de março de 2006.

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não se preocupa em compreender a cosmovisão daquelas, a sua socialização primária ou, antes disso, buscar o entendimento do que vem a ser criança para aqueles povos.

Diante desses fatos, pode- se afirmar que as políticas educacionais direcionadas às crianças indígenas são iguais às oferecidas às crianças da sociedade nacional, portanto, entende-se que para o Estado crianças são iguais em todo e qualquer contexto. É fato que existem aspectos universais concernetes ao mundo da criança como o ciclo biológio, segundo Nunes (id.) “a imitação constante (daquilo que as crianças vêem acontecer na vida dos adultos) e a ocorrência de brincadeiras que são praticadas por crianças de todos os lugares e de todas as culturas, como, por exemplo, a brincadeira de casinha” (p. 247).

CRIANÇA INDÍGENA E A ESCOLA

Conforme nos aponta Agulera Urquiza; Brand e Nascimento (2007), o contexto de socialização primária da criança indígena é de bricolage, um espaço de organização socio-temporal diferente: uma outra lógica, outro locus de saber [...] (id., p. 03). Segundo relatos de professoras Guarani, coletados por estes mesmos autores, a educação da criança indígena é feita através da oralidade, das práticas, exemplos e conselhos. Segundo essas professoras, até os seis anos de idade a educação da criança é ofertada pela família que, conforme fora apresentado anteriormente, fica a encargo dos mais velhos e das mulheres. Para estes educadores, criança é sinônimo de herdeiro que adquire um conhecimento que é passado de geração em geração.

Frente esta explicação, podemos estabelecer uma relação entre a fala dos professores indígenas que podem ser os profissionais da educação ou também familiares responsáveis pela educação daquelas crianças com as reflexões teóricas de Benjamin (1985) Berger & Luckmann (1987) a respeito da importância da socialização primária da criança e das narrativas tradicionais a fim de que se possa garantir a sobrevivência de tradições de uma determinada cultura ao longo do processo de construção de identidades.

Segundo Benjamin (id.) através da oralidade é possível a preservação do vivido, das experiências coletivas e/ou individuais, da cultura de um povo; ele ainda destaca a relevância do papel da mulher e dos anciãos que são os transmissores de um conhecimento tradicional e responsáveis pela sua difusão de geração em geração.

Berger & Luckmann (id.) enfatizam a importância da socialização primária das crianças, consequentemente, o conhecimento adquirido pelas crianças dos seus familiares; segundo estes autores a socialização secundária é menos importante que a primária

[...] o tom da realidade do conhecimento interiorizado na socialização secundária é mais facilmente posto entre parênteses (isto é, o sentimento subjetivo de que estas interiorizações são reais é mais fugitivo). [...] é relativamente fácil anular a realidade das interiorizações secundárias. A criança vive quer queira quer não

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no mundo tal como é definido pelos pais, mas pode alegremente deixar atrás o mundo da aritmética logo que sai da aula. (1987. p. 190)

Diante da reflexão de Berger & Luckmann (id.) podemos nos indagar sobre o que acontece com as crianças que são inseridas no sistema escolar na infância e que são, consequentemente, distanciados do modelo de educação tradicional ensinado pelos seus familiares? Segundo estes autores, a mudança no tipo de socialização primária destas crianças prejudica a sedimentação da sua realidade cultural e promove um diálogo intercultural que ela ( a criança) ainda não está preparada para enfrentar.

Agulera Urquiza, Brand e Nascimento (id.), embasados nos conceitos propostos por Barth (2000) e Tassinari (2001) de fronteiras, consideram a escola (indígena ou formal) como um espaço de fronteira onde as crianças sofrem um deslocamento em vários níveis, tais como, no aspecto geográfico (pois trata-se de um outro espaço e que é limitado), no social (pois as relações interpessoais com a família é marcada pela total falta de regras diferentemente daquele espaço) e no simbólico (pois a escola, de início, representa uma ruptura com a cosmovisão da criança por estar fora do imaginário e cotidiano dela) (AGULERA URQUIZA; BRAND e NASCIMENTO, s/a, p. 05).

Portanto, se a criança ainda não assimilou o seu pertencimento étnico-cultural ela está preparada para transitar entre fronteiras e participar deste processo de “negociação” entre culturas distintas?

Até o momento, baseado nos autores citados, acredito que não, porém, as crianças indígenas que são objeto da presente pesquisa não têm alternativa a não ser sofrer esse abrupto deslocamento e conviver entre dois mundos distintos afinal, a cidade já é uma realidade.

A PEDAGOGIA INDÍGENA

Na perspectiva da pedagogia indígena, a criança aprende experimentando, vivendo o cotidiano da aldeia e, principalmente, convivendo com os mais velhos tendo em vista que o grupo familiar oferece a liberdade e autonomia necessárias à criança para ela experimentar. Conforme Nunes (2002) essa liberdade engloba “acesso aos diferentes lugares e às diferentes pessoas, às várias atividades domésticas, educacionais e rituais [...] Essa aparente desordem ou ordem vivida de outro modo, imerso num espírito lúdico, espontâneo e sem compromisso estaria no cerne de todo o processo educacional indígena” (p. 71 e 72).

Enfim, liberdade, autonomia, permissividade, experimentação e participação fazem parte do ensino-aprendizagem dessas crianças e também da aquisição de responsabilidades que, em sociedades indígenas, tem início muito cedo.

Clarice Cohn (2002) se dedicou a vida das crianças Xikrin e constatou que entre eles a

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criança têm a “possibilidade de ver tudo”, do cotidiano aos rituais (exceto aqueles que oferecem riscos a elas). Segundo esta autora “O processo de aprendizagem (e o coração é o lugar entre os Xikrin) parece consistir em ir aperfeiçoando (tornando fortes) o processo de ver e ouvir” (id., p. 142).

Segundo Velanga e Venere (2008) crianças da etnia Oro Waram Xijein participam dos momentos em que todos se ocupam dos afazeres domésticos, mas nada lhes é exigido acima de suas forças físicas e capacidade. Ajudam, à sua maneira, nas atividades da roça, da pesca, da caça, da limpeza do terreiro e ajudam a cuidar dos irmãos menores bem como de

outras crianças, buscam água, lavam os utensílios, ajudam a carregar lenha, a fazer o fogo e a cozinhar. Diante disso, observa-se que essas crianças aprendem brincando, experimentando de modo a se prepararem para a vida adulta.

Nos estudos de Schaden (1974) referente aos Guarani, o autor identifca uma caracterísitica do grupo étnico que para este momento é muito importante para compreendermos o que é e como é ser criança entre aqueles. Esta carcterística é “o respeito pela personalidade humana e a noção de que este se desenvolve livre e independente em cada individuo...” (id., p. 59), deste modo, fica evidente o contexto no qual a criança cresce, isto é, num ambiente de liberdade, autonomia e independência perante o mundo dos adultos.

Diante disso, observa-se que o processo educativo indígena está longe de pautar-se na repressão, diferente do nosso sistema de ensino que, parafraseando Foucault (1977), tem como objetivo criar “corpos dóceis”; portanto, mais uma vez, fica evidente os pincípios básicos da pedagogia indígena, liberdade, autonomia e experimentação.

A REALIDADE DOS INDÍGENAS GUARANI E KAINGANG NA ASSINDI

Ainda nos dias atuais, as sociedades indígenas sofrem as consequências dos processos de colonização que acarretaram, especialmente, a perda territorial alterando assim a sua economia, ou de maneira geral, seu modo de vida, forçando-os a irem rumo às cidades a fim de alcançarem melhores condições de vida.

Assim sendo, os indígenas que habitam as cidades saem de suas aldeias em busca de trabalho e neste contexto, as escolas de educação infantil têm a mesma função tanto para a sociedade nacional como para aqueles indígenas, o caráter assistencial, pois os pais dessas crianças indígenas, ao saírem para trabalhar precisam deixar seus filhos em algum lugar, haja vista que estão longe dos seus familiares que poderiam cumprir esse papel.

O caso da Assindi é semelhante, pois os Kaingang e Guarani que moram lá estão trabalhando ou estudando na cidade de Maringá, mas para compreendermos melhor esta

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situação farei um breve resumo da história da associação e seus objetivos.

O Município de Maringá, há décadas vem sendo constantemente visitado por grupos indígenas da etnia Kaingang, originários da Terra Indígena Ivaí, município de Manoel Ribas/PR, distante 180 quilômetros de Maringá e conta com uma população de 2.300 indivíduos.

Nesta conjuntura, no ano 2000 no município de Maringá, visando proporcionar melhores condições durante sua estadia no município, tendo em vista que estes dormiam nas ruas de Maringá e cidades da região como Marialva e Sarandi, mais precisamente nas rodoviárias destas, teve início um projeto de apoio a essas comunidades com a oferta de uma casa abrigo para sua permanência.

Figura 1: Frente do abrigo que acolhe os índios artesãos (Foto de Tabajara Marques).

No ano de 2003, a entidade diversificou seu atendimento aos indígenas, como resposta a nova demanda apresentada, ou seja, os indígenas estudantes universitários, aprovados em vestibular específico, conforme a Lei nº 13.134 de 18/04/2001, que prevê a obrigatoriedade da abertura de 3 (três) vagas para o ingresso de indígenas, através dos vestibulares nas universidades estaduais do Paraná com ampliação para 6 (seis) vagas, segundo a Lei nº 14.995 de 09/01/2006. Diante deste contexto, a entidade oferece apoio e moradia aos estudantes durante o período de graduação (cerca de 04 a 05 anos), assim como aos seus familiares, conforme a disponibilidade de vagas nas 08 residências destinadas a este público alvo, diferentemente dos indígenas artesãos que ficam alojados na casa abrigo. Com essa ampliação no atendimento, a

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associação passou a receber, além dos Kaingang, famílias Guarani.

Figura 2: Moradia dos estudantes (Foto de Tabajara Marques)

Foi implantado no ano de 2012, o serviço de atendimento às crianças, filhos de artesãos e estudantes, pelo Centro Social Infantil Indígena Mitangue-Nhiri no intuito de, no primeiro caso, tirar as crianças das ruas que acompanhavam seus pais na venda do artesanato e, no segundo, dar assistência aos filhos dos estudantes enquanto estes estavam na universidade e/ou realizando seus estágios.

É diante deste contexto que surgiu esta iniciativa de pesquisa, pois conversando com os estudantes indígenas que também são pais, ficou evidente a preocupação deles em relação a transmissão dos conhecimentos tradicionais de seu povo, que seriam repassados às crianças na fase primária de socialização pela qual elas estão passando. A partir destes depoimentos evidenciou-se a diferente dinâmica do tempo na aldeia e na cidade, sendo que no primeiro contexto os pais têm tempo de ouvir a criança, brincar com ela, contar histórias, etc, e na cidade eles têm que ir para universidade, fazer estágios, estudar em casa, fazer cursos de outra natureza como de informática por exemplo; por isso, o centro social Mitangue-Nhiri é tão importante para essas famílias. Abaixo segue uma foto da sala de aula da escola.

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Figura 3: Sala de aula do Centro Social Infantil Mitangue-Nhiri (Foto de Tabajara Marques).

O centro social conta com uma estagiária de pedagogia, uma merendeira, uma assistente social e mais recentemente, uma antropóloga (no caso, eu). Fazendo um estudo preliminar sobre essa instituição percebeu-se que trazer a escola indígena pra cidade é tarefa dificílima, até mesmo porque como foi observado anteriormente, a escola indígena se fundamenta em princípios bem diferentes de uma escola da sociedade ocidental, no entanto o que se pretende é trazer para o Mitangue-Nhiri as bases da educação indígena, isto é, liberdade, autonomia e experimentação, mas vocês leitores devem estar se questionando como isso será possível? De início, as “aulas” são realizadas mais extra-classe, ou seja, as crianças realizam atividades nos arredores da escola como, por exemplo, no parquinho, brincam na terra, sobem em árvores, aprendem a separar o lixo em ôrganico e reciclável; mas também não deixam de usar recursos tecnológicos como a televisão e o dvd, eles também tem acesso a brinquedos (carrinhos, bonecas, livros de pintura, massinha de modelar) além dos brinquedos pedagógicos. Abaixo segue uma foto do pátio da assindi, espaço de socialização não só dos alunos do centro social, mas também das famílias, e é onde está o parquinho.

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Figura 4: Pátio da Assindi (Foto de Tabajara Marques).

Atualmente, estamos elaborando atividades relacionadas ao meio ambiente como a confecção de uma composteira a fim de que produzamos adubo que será, posteriormente, utilizado na horta da Assindi. Acreditamos que esta seria uma maneira de, mesmo essas crianças morando nas cidades, não perderem o contato com a natureza e o prazer do lidar com a terra.

A alimentação é uma outra preocupação, pois os hábitos e a dieta alimentar são diferentes dos da sociedade envolvente. Sabe-se que a base alimentar das etnias Guarani e Kaingang é vegetal, basicamente de milho, mandioca, batata e frutas, mas isso não significa que eles não se alimentam de arroz e feijão, pelo contrário, eles gostam muito desses alimentos, acredito que até em função das cestas básicas que recebem de instituições como a Funai, prefeituras municipais e até igrejas. Enfim, os alimentos não são tão distintos dos da sociedade nacional, na verdade o que difere é o modo de preparo, o modo de comer. Conversando com a merendeira do centro social ela relatou que percebeu que as crianças gostam muito das comidas “secas”, sem caldo (farofa, mandioca frita, arroz); mas, os filhos dos estudantes (que moram na cidade) se adaptaram melhor a sua comida, diferentemente dos filhos dos artesão que vêm à cidade esporadicamente; para estes últimos a comida devem ser “insossa”, segundo a merendeira, com pouco sal e sem nenhum outro tempero. Por isso a alimentação é também uma preocupação, pois a intenção é fazer com que elas (as crianças) sintam-se em casa, provem sabores que os remeta a aldeia, ao seu povo; no entanto isso ainda é uma dificuldade, pois os alimentos da

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escola são fornecidos por um programa do SESC chamado Mesa Brasil2 e são, basicamente, berinjela, abobrinha, chuchu, batata, pimentão, mandioca, cenoura, pepino, couve-flor, banana, entre outros. Nota-se que vários alimentos desta lista não fazem parte da dieta habitual daquelas pessoas, por isso é necessário um trabalho de reeducação alimentar, deste modo, no que tange a alimentação, o objetivo do centro social é fazer pratos que resgatem a cultura alimentar indígena (Kaingang e Guarani), mas também complementar esta dieta com outros alimentos. Abaixo está a foto do carro do programa Mesa Brasil no dia da distribuição dos alimentos.

Figura 5: Carro do programa Mesa Brasil no dia de distribuição dos alimentos recebidos pelo centro social (Foto de Driéli Vieira).

Conversando com uma estudante Guarani de enfermagem e mãe de duas crianças que ficam na escola da associação, ela nos revelou que uma das filhas afirmou não ser índia, porque segundo ela, índio mora em casa de madeira e a casa dela não é de madeira. Uma outra estudante Guarani do curso de letras também disse que seu filho de três anos também afirmou não ser índio, mas ela logo enfatizou que o repreendeu dizendo que ele era índio sim! Ao mesmo tempo, a pedagoga da escola perguntou à criança do primeiro exemplo onde ela mais gostava de morar, se na aldeia ou na cidade, e a menina respondeu que prefere a aldeia. Percebem as consequências do deslocamento (aldeia/cidade) para essas crianças? Elas estão confusas quanto a sua identidade cultural, as fronteiras entre uma cultura e outra ainda não são bem definidas. Diante disso eu me pergunto se é possível sanar esse impacto sobre estas

2 O programa Mesa Barsil visa o combate a fome e ao desperdício de alimentos, para isto faz a coleta em restaurantes da cidade e repassa-os para as entidades cadastradas e também oferece cursos de capacitação aos profissionais responsáveis pelo manuseio destes alimentos a fim de que eles possam reaproveitá-los da melhor maneira possível.

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crianças e logo eu mesma respondo: Não! Esse impacto é forte tanto para os adultos e jovens como para as crianças, no entanto, para essas crianças parece ser um pouco mais difícil porque como foi levantado anteriormente, ela é privada de uma relação muito importante na sua formação, o contato com seus familiares, especialmente os avós, que são detentores de um extenso conhecimento tradicional; porém é possível sim amenizar, mas não sanar, esse impacto proveniente do deslocamento e o locus desse processo é o centro social, pois lá é que se dá a socialização primária daquelas crianças, haja vista que é lá que elas passam a maior parte do dia com a pedagoga.

Por fim, diante deste contexto eu encerro este ensaio com os seguintes questionamentos: Essa profissional está sendo preparada na universidade para lidar com esta situação? O tema da diversidade cultural está sendo tratado de modo eficaz dentro das universidades? A melhor alternativa seria a contratação de uma professora indígena? Essas são questões a serem pensadas futuramente, pois essa pesquisa ainda está em fase preliminar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste ensaio me propus a pensar se seria possível trazer o modelo de educação indígena para a cidade e para isto, utilizei-me do exemplo do Centro Social Infantil Indígena Mitangue-Nhiri. A fim de responder esse questionamento busquei compreender, em primeiro lugar, o que as sociedade indígenas, a princípio de uma maneira geral, entendem por ser criança e o seu papel naquelas sociedades. Posteriormente, procurei identificar os educadores daquelas crianças e entender o método de ensino-aprendizagem utilizados em comunidades indígenas.

Após ter absorvido essas informações constatei que crianças indígenas são indivíduos com autonomia e liberdade e têm os mais velhos da comunidade e os pais como professores e portanto, o deslocamento da aldeia pra cidade interfere completamente no processo de socialização primária destas crianças, pois estas perdem o contato com seus avós (principais educadores) e também porque seus pais trabalham e/ou estudam.

Desse modo, quase todo o tempo que as crianças teriam com os seus familiares como uma maneira de transmissão de conhecimento foi transferido para o ambiente escolar e o seu educador passou a ser a professora; no entanto eu me pergunto se esta pedagoga está sendo preparada na universidade para lidar com esta particularidade, pois como foi observado pouco acima, as políticas educacionais indígenas são falhas por considerar que crianças são iguais independente do contexto em que vivem.

Durante este ensaio observour-se que as crianças quando saem de suas aldeias transitam entre dois mundos diferentes, o que por sua vez, cria uma dificuldade de aceitação quanto ao seu pertencimento étnico e é justamente por isso que é tão importante profissionais capacitados em volta destas crianças.

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Enfim, esta é a proposta do Centro Social Infantil Mitangue-Nhiri, mas sabemos que esta não é uma tarefa fácil, pois este trabalho independe da Assindi, a responsabilidade está na formação dos profissionais responsáveis por socializar aquelas crianças e mais uma vez eu pergunto: A universidade forma professores capazes de compreender as particularidades culturais destes alunos? Acredito que este seja um longo caminho a ser percorrido, mas não podemos perder de vista que o primeiro passo já foi dado, afinal o ensino da história e cultura indígena nas séries iniciais e do ensino médio3 vem ganhando espaço no universo pedagógico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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3 Através da Lei 11.645 a partir de 2008.

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CRIANÇAS INDÍGENAS NA CIDADE: A EDUCAÇÃO INFANTIL NO CENTRO SOCIAL MITANGUE-NHIRI

SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo: Pedagógica/USP, 1974.

TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz. Escola indígena: novos horizontes teóricos, novas fronteiras de educação. In: SILVA, Aracy Lopes da. LEAL FERREIRA, Mariana Kawall. (Orgs.). Antropologia, história e educação. São Paulo: Global/Mari, 2001.