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1 INTRODUÇÃO Segundo dados da Organização das Nações Unidas 1 , a população indígena soma cerca de 370 milhões de pessoas em todo o mundo, o que representa, ao mesmo tempo, 5% da população mundial e 15% dos pobres do nosso planeta. Conforme estimativas da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, nos dias de hoje existem no Brasil cerca de 460 mil índios em aldeias e entre 100 e 190 mil índios em centros urbanos, sem contar 63 grupos indígenas em estado de isolamento 2 . Esse número se aproxima daquele apurado no Censo 2000 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, no qual 734 mil pessoas se declararam indígenas, o que representa aproximadamente 0,43% da população do país 3 . Ainda no Brasil, as pesquisas apontam que os grupos indígenas encontram-se entre os mais pobres e apresentam os piores índices de desenvolvimento humano 4 . Embora o conceito de pobreza utilizado no Brasil e no mundo nem sempre possua correspondente na cultura das diversas comunidades indígenas do planeta, os dados acima são alarmantes. Apesar disso, de maneira geral no nosso país a temática indígena não tem recebido a atenção que merece nos meios acadêmicos e nas pesquisas científicas da área do Direito, ao contrário do que já ocorre há muito tempo em outras disciplinas do conhecimento humano, como é o caso da antropologia. Embora a contribuição da maioria dos autores que se dedicam ao tema sob o ponto de vista jurídico seja importante e de qualidade indiscutível, não é comum vê-lo nas grades curriculares das faculdades de direito e dos programas de pós-graduação 5 , embora os povos indígenas se incluam dentre aqueles responsáveis pela formação do Brasil. 1 A/HRC/4/77, § 1°. 2 http://www.funai.gov.br/, acessado em 15 de janeiro de 2009. 3 IBGE, Censo Demográfico 1940 – 2000. Disponível em www.ibge.gov.br, acesso em 27 de agosto de 2008. 4 PAIXÃO, Marcelo Jorge de Paula. Crítica da Razão Culturalista: relações raciais e a construção das desigualdades sociais no Brasil. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Humanas: Sociologia. Rio de Janeiro, abril de 2005, pp. 471-472. Disponível em http://www.iuperj.br/biblioteca/teses/marcelo%20paixao%20tese.pdf, acesso em 28/08/2008. 5 O fato não passou desapercebido, por exemplo, de Paulo de Bessa Antunes, que dedica alguns capítulos ao estudo dos índios e do Direito Ambiental, enfatizando a ausência de obras científicas relativas ao novel ramo do Direito Indigenista: “Os estudos jurídicos voltados exclusivamente para os índios e sua realidade são muito poucos em nossa literatura especializada. Poucas são as obras jurídicas voltadas para o exame legal das

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1

INTRODUO

Segundo dados da Organizao das Naes Unidas1, a populao indgena soma cerca de

370 milhes de pessoas em todo o mundo, o que representa, ao mesmo tempo, 5% da

populao mundial e 15% dos pobres do nosso planeta. Conforme estimativas da Fundao

Nacional do ndio FUNAI, nos dias de hoje existem no Brasil cerca de 460 mil ndios em

aldeias e entre 100 e 190 mil ndios em centros urbanos, sem contar 63 grupos indgenas

em estado de isolamento2. Esse nmero se aproxima daquele apurado no Censo 2000 pelo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE, no qual 734 mil pessoas se

declararam indgenas, o que representa aproximadamente 0,43% da populao do pas3.

Ainda no Brasil, as pesquisas apontam que os grupos indgenas encontram-se entre os mais

pobres e apresentam os piores ndices de desenvolvimento humano4. Embora o conceito de

pobreza utilizado no Brasil e no mundo nem sempre possua correspondente na cultura das

diversas comunidades indgenas do planeta, os dados acima so alarmantes.

Apesar disso, de maneira geral no nosso pas a temtica indgena no tem recebido a

ateno que merece nos meios acadmicos e nas pesquisas cientficas da rea do Direito,

ao contrrio do que j ocorre h muito tempo em outras disciplinas do conhecimento

humano, como o caso da antropologia. Embora a contribuio da maioria dos autores que

se dedicam ao tema sob o ponto de vista jurdico seja importante e de qualidade

indiscutvel, no comum v-lo nas grades curriculares das faculdades de direito e dos

programas de ps-graduao5, embora os povos indgenas se incluam dentre aqueles

responsveis pela formao do Brasil.

1 A/HRC/4/77, 1.2 http://www.funai.gov.br/, acessado em 15 de janeiro de 2009.3 IBGE, Censo Demogrfico 1940 2000. Disponvel em www.ibge.gov.br, acesso em 27 de agosto de 2008.4 PAIXO, Marcelo Jorge de Paula. Crtica da Razo Culturalista: relaes raciais e a construo dasdesigualdades sociais no Brasil. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto Universitrio de Pesquisas doRio de Janeiro como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Cincias Humanas: Sociologia.Rio de Janeiro, abril de 2005, pp. 471-472. Disponvel emhttp://www.iuperj.br/biblioteca/teses/marcelo%20paixao%20tese.pdf, acesso em 28/08/2008.5 O fato no passou desapercebido, por exemplo, de Paulo de Bessa Antunes, que dedica alguns captulos aoestudo dos ndios e do Direito Ambiental, enfatizando a ausncia de obras cientficas relativas ao novel ramodo Direito Indigenista: Os estudos jurdicos voltados exclusivamente para os ndios e sua realidade somuito poucos em nossa literatura especializada. Poucas so as obras jurdicas voltadas para o exame legal das

2

O direito ao desenvolvimento, de sua parte, embora j ocupe um espao maior na academia

e tenha despertado o interesse de uma quantidade significativa de autores brasileiros, ainda

no foi esquadrinhado em todas as suas possibilidades, possuindo aspectos que merecem

uma investigao cientfica mais aprofundada, o que talvez se explique pelo fato da sua

construo terica ser ainda relativamente recente.

primeira mirada, o tema direito ao desenvolvimento de comunidades indgenas pode

soar paradoxal, contraditrio. Historicamente, violaes aos direitos dos ndios esto

associadas a atividades ligadas busca de riqueza, e por isso muitas vezes esses temas so

tidos por inconciliveis. A chegada dos europeus Amrica, marco importante da histria

da humanidade, ocorreu em um contexto de grandes empreendimentos de navegaes

martimas motivadas pela busca de novas possibilidades comerciais. O mundo, l e aqui,

sofreu profundas transformaes em decorrncia desse acontecimento. O continente

americano, antes desconhecido de quem aqui no se encontrava, hoje abriga pases

altamente desenvolvidos, dentre os quais a maior potncia blica do planeta, e outros em

processo de desenvolvimento, como o Brasil, considerados estratgicos para o futuro da

economia mundial. A histria dessa metamorfose, entretanto, inclui a dominao daqueles

povos que aqui j viviam, inclusive com o seu macio extermnio, intencional ou no.

As populaes nativas foram prejudicadas, em primeiro lugar, em decorrncia da prpria

idia de que as terras encontradas pertenceriam aos reis europeus por direito de conquista.

Simblico em relao a esse pensamento o fato de que em 07 de junho de 1494, logo

aps Colombo chegar s Bahamas e antes de aqui aportar Pedro lvares Cabral, Portugal e

Espanha firmaram o Tratado de Tordesilhas, disciplinando a diviso entre si dos mares,

ilhas e terras que haviam sido achados ou que fossem dali por diante descobertos. Dessa

maneira foi descartada naquele instante, inclusive com o precioso auxlio do pouco

virtuoso Papa Alexandre VI6, a possibilidade de considerar que esses lugares e,

conseqentemente, as riquezas de qualquer natureza porventura neles existentes, fossem,

de direito, de povos que j os habitassem. A idia era, portanto, tomar posse, dominar e

colonizar. Para tanto, at mesmo a condio humana dos ndios chegou a ser negada.

questes indigenistas. Infelizmente, esta lacuna em nosso universo jurdico ainda est longe de ser superadae, em realidade, os cursos jurdicos e os estudiosos do Direito no tm demonstrado muito interesse seja pelavida dos indgenas, seja pelo Direito Indigenista (ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio deJaneiro: Lumen Juris, 1996, p. 329).6 Alexandre VI, o espanhol Rodrigo Brgia, teve participao importante na elaborao do Tratado deTordesilhas.

3

O contato inicial entre nativos e europeus costumava ser, em geral, amistoso. Entretanto,

esse quadro no era duradouro. Em primeiro lugar, obviamente, como decorrncia da

prpria pretenso colonizatria dos recm-chegados. Mas o modelo de colonizao

colocado em prtica na maior parte dos territrios tambm contribuiu, porque baseado na

explorao das riquezas do Novo Mundo em prol de uma metrpole, que exigia no s a

submisso dos povos originrios, mas, tambm, a sua utilizao como mo-de-obra. A

pretenso europia de subordinar os povos encontrados e a resistncia da decorrente,

levou a situaes de enfrentamento, acirramento dos nimos, dio e guerra de conquista.

Os vencidos foram em geral massacrados pelos vencedores.

Mesmo em situaes nas quais no havia inteno clara e determinada quanto prtica de

atos de violncia ou agresso, o contato necessrio aos objetivos colonizadores foi mortal

para um sem nmero de pessoas nativas, dizimadas por doenas trazidas dalm mar.

No Brasil tal narrativa genrica ganha contornos prprios a partir das conseqncias

advindas de particularidades da nossa histria, como, por exemplo, a monocultura da cana-

de-acar, o extrativismo, a corrida do ouro, o modelo latifundirio, a expanso das

fronteiras pastoris e agrcolas, o agronegcio, o coronelismo. Nos dias de hoje as nossas

populaes originrias no s ainda no se recuperaram plenamente das agruras sofridas

como continuam sendo vtimas de aes movidas por interesses econmicos que muitas

vezes violam os seus direitos constitucionais e legais. Em muitos casos, os prprios

projetos estatais de desenvolvimento so danosos aos interesses indgenas.

No h dvida, portanto, que no Brasil, seja no perodo colonial, no imprio ou na

repblica, os ndios foram e continuam sendo duramente atingidos em nome da gerao de

riqueza econmica. Eis a razo pela qual o desenvolvimento freqentemente apontado

como responsvel pela tragicidade que marca a saga indgena desde os primrdios do

contato intertnico.

natural, portanto, que haja relutncia em associar positivamente desenvolvimento e

direitos indgenas.

A aparente contradio, porm, no resiste a um exame mais agudo, e decorre basicamente

de dois equvocos. O primeiro consiste em entender o direito ao desenvolvimento sob o

plio de uma perspectiva j ultrapassada, que o identifica e confunde com o mero

crescimento ou progresso econmico. O segundo reside na no percepo de que ndios

4

tambm tm direito a processos prprios de desenvolvimento, e que esse fato no

necessariamente os descaracteriza etnicamente. Pretendemos desfazer esses equvocos no

nosso estudo.

Tendo em vista tais premissas, a hiptese de trabalho sobre a qual nos debruamos a de

que existe um direito ao desenvolvimento de comunidades indgenas no Brasil, com

peculiaridades prprias que o distinguem do direito ao desenvolvimento em geral.

Dividimos a nossa investigao em trs partes principais. A primeira dedicada ao estudo

descritivo do direito ao desenvolvimento no plano internacional. Procuramos enfocar

inicialmente as abordagens possveis para o fenmeno do desenvolvimento e as suas

relaes com o direito, abordando o direito internacional do desenvolvimento e logo aps o

direito ao desenvolvimento. Em relao a este ltimo identificamos as suas fontes,

dimenses, sujeitos e objeto. Ao abordarmos a dimenso coletiva do direito ao

desenvolvimento, destacamos a posio dos grupos vulnerveis em sentido estrito e das

minorias, diferenciando-os em termos conceituais e tambm no que concerne disciplina

jurdica daquele direito em relao a cada um deles. Dentre as diferenas apontadas

sobressai o fato de que as minorias, tendo em vista suas peculiaridades culturais, podem ser

objeto de medidas de discriminao positiva permanentes.

A segunda parte tem como objetivo o exame do direito ao desenvolvimento das

comunidades indgenas ainda no plano do direito internacional. Logo no incio

apresentamos algumas noes bsicas sobre os ndios, para em seguida afirmar que as

comunidades indgenas constituem verdadeiras minorias, pois apresentam todos os

requisitos necessrios a essa qualificao. O trabalho prossegue com uma abordagem sobre

a noo de desenvolvimento aplicada aos ndios, introduzindo o leitor no tema do

etnodesenvolvimento indgena, cuja face jurdica vem a ser justamente o direito ao

desenvolvimento das comunidades indgenas. As fontes do direito ao desenvolvimento das

comunidades indgenas so identificadas tomando como base as fontes admitidas pelo

direito internacional. Assim, so focalizadas: a) as convenes internacionais que tratam de

aspectos concernentes ao tema, com destaque para a Conveno n 169 da OIT e para a

Conveno de Madrid sobre o Fundo de Desenvolvimento Indgena; b) o soft law, em

especial a Declarao da Organizao das Naes Unidas Sobre os Direitos dos Povos

Indgenas; c) a doutrina especializada em direitos humanos e em direitos indgenas; d) a

jurisprudncia internacional. Tambm nos debruamos sobre os elementos do direito ao

5

desenvolvimento de comunidades indgenas, discorrendo sobre a sua titularidade ativa, a

sua legitimidade passiva e o seu objeto. Em relao a este ltimo, so identificados e

examinados no texto os direitos que compem esse objeto, a saber: a) o direito

autodeterminao indgena; b) o direito manuteno da prpria cultura; c) o direito

opo por um processo prprio de desenvolvimento; d) o direito ao territrio indgena e

utilizao dos recursos naturais; e) o direito participao; f) o direito melhoria das

condies econmicas e sociais; g) o direito sade; h) o direito educao; i) o direito

subsistncia, ao trabalho e obteno de renda; j) o direito cooperao internacional. O

direito ao desenvolvimento das comunidades indgenas, entretanto, no constitui uma

simples soma desses direitos componentes do seu objeto, pois se projeta para alm deles.

Encerrando essa parte, o trabalho observa que tais direitos podem caracterizar

discriminaes positivas permanentes.

A terceira e ltima parte identifica os elementos do direito ao desenvolvimento das

comunidades indgenas no Brasil. Comea apontando o tratamento conferido pela

Constituio de 1988 ao direito ao desenvolvimento, o qual tido como um direito

fundamental como decorrncia do regime e dos princpios por ela adotados, bem como dos

tratados internacionais dos quais a Repblica Federativa do Brasil parte e que foram

incorporados ao direito interno como normas supralegais. Depois, so investigadas as

relaes entre o desenvolvimento e os ndios no nosso pas. O trabalho tem seguimento

com a identificao das fontes do direito ao desenvolvimento das comunidades indgenas

no Brasil, com destaque especial para a Constituio de 1988, a qual rompeu com o

paradigma assimilacionista em direo alteridade. Assim, verifica-se que o direito ao

desenvolvimento de comunidades indgenas tambm deve ser considerado um direito

fundamental, como conseqncia no s do regime e dos princpios adotados pela

Constituio como, tambm, de uma interpretao sistemtica das normas constitucionais

aplicveis aos ndios. Tambm so postas em foco outras fontes do direito ao

desenvolvimento de comunidades indgenas no Brasil, como a normatividade supralegal,

decorrente da integrao ao direito positivo brasileiro dos tratados internacionais de

direitos humanos que sevem de fonte ao direito ao desenvolvimento de comunidades

indgenas no plano internacional, assim como a legislao ordinria. Ao mesmo tempo, o

trabalho tambm reflete sobre a circunstncia da doutrina e jurisprudncia nacionais ainda

serem muito incipientes quanto a esse direito. Seguidamente so apontados os elementos

do direito ao desenvolvimento de comunidades indgenas no Brasil, ou seja, a titularidade

6

ativa, a legitimidade passiva e o objeto. Nesse ponto, so examinados todos os direitos que,

semelhana do que se d no direito internacional, integram o objeto desse direito no

Brasil, o que nos leva a uma abordagem ampla sobre o direito indigenista brasileiro,

versando sobre: a) o direito indigenista autodeterminao no Brasil; b) o direito

indigenista manuteno da prpria cultura no Brasil, incluindo o estudo da cultura

indgena como patrimnio cultural brasileiro, da organizao social, costumes, lnguas,

crenas e tradies indgenas, bem como da presena da viso indgena no ensino da

Histria do Brasil; c) o direito indigenista opo por um processo prprio de

desenvolvimento no Brasil; d) o direito indigenista ao territrio indgena e utilizao dos

recursos naturais no Brasil, abordando as terras tradicionalmente ocupadas pelos ndios e o

seu conceito constitucional, a sua demarcao, o direito posse permanente e ao usufruto

exclusivo das mesmas, o regime jurdico aplicvel, a vedao remoo dos ndios das

suas terras e a cominao de nulidade e de extino dos atos relativos s terras tradicionais;

e) o direito indigenista participao no Brasil; f) o direito indigenista melhoria das

condies econmicas e sociais no Brasil; g) o direito indigenista sade no Brasil; h) o

direito indigenista educao no Brasil; i) o direito indigenista subsistncia, ao trabalho

e obteno de renda no Brasil, englobando o modelo de etnodesenvolvimento

radicalmente alternativo e os modelos de etnodesenvolvimento que incorporam

emprstimos culturais, buscando estudar os diversos mecanismos de obteno de renda e

as relaes entre as atividades de subsistncia e o pluralismo jurdico; j) o direito

indigenista cooperao no Brasil.

Logo aps o texto aponta para a circunstncia de que, tal como ocorre no mbito

internacional, os direitos acima mencionados podem traduzir discriminaes positivas

permanentes em relao aos ndios no plano nacional. As relaes entre o desenvolvimento

e a defesa judicial e extrajudicial dos direitos e interesses indgenas brasileiros so tambm

investigados. Essa parte finda com o exame do possvel choque entre o direito ao

desenvolvimento de comunidades indgenas e outros direitos constitucionais.

Finalmente, so expostas as concluses do trabalho.

Na sistematizao acima preferimos separar em captulos distintos a disciplina

internacional e a disciplina nacional do direito ao desenvolvimento das comunidades

indgenas. Essa deciso embora tenha exigido a retomada posterior de temas j abordados

tem, segundo entendemos, a vantagem de identificar melhor as duas dimenses do direito

7

objeto do nosso trabalho, alm de servir para provar que possvel identificar o direito ao

desenvolvimento das comunidades indgenas apenas tomando como fonte normativa o

ordenamento jurdico nacional.

A utilizao da expresso comunidades indgenas no ttulo do trabalho no importa, de

forma alguma, a negao da condio de povos. Ao contrrio, como ficar claro em

diversas passagens, no temos dvidas a esse respeito, e usaremos tambm,

indistintamente, povos indgenas, grupos indgenas, coletividades indgenas, dentre outros.

A meno a comunidades indgenas, entretanto, justifica-se no s por ser expresso

consagrada na Constituio e no direito positivo nacional, independentemente das razes

subjacentes, mas, principalmente, pelo fato de que, como veremos, em relao ao direito ao

desenvolvimento h aspectos aplicveis apenas aos indgenas, como minorias, e no a

todos os demais povos.

Importante salientar, desde logo, que no temos a pretenso de esgotar as diversas questes

tangenciais de natureza jurdica, antropolgica, sociolgica ou econmica que

naturalmente se apresentaro no decorrer da tese, as quais sero tratadas apenas na

profundidade necessria ao estudo da hiptese de trabalho. Entretanto, buscaremos fazer

indicaes bibliogrficas para auxiliar aqueles que buscam um conhecimento mais

percuciente acerca desses temas.

A idia de direito escrito e formal, dentre muitas outras, no pertence originariamente

cultura dos nossos grupos indgenas. Logo, positivar constitucionalmente direitos voltados

proteo dessas coletividades constitui em si mesmo um paradoxo, pois o fato do

constitucionalismo ocidental ter sado vitorioso na nossa histria uma prova viva de que

os povos originrios e as suas culturas foram vencidos e subjugados. Porm, no possvel

apagar a histria e reescrev-la. Isso no significa que os equvocos cometidos devam ser

simplesmente esquecidos como se nada houvesse a ser feito. Ao contrrio, imperioso

estud-los e divulg-los, o que constitui parte importante do processo de tomada de

conscincia necessrio construo de uma sociedade livre, justa, solidria, igualitria e

tolerante, na qual os direitos humanos sejam permanentemente reafirmados. Alm disso,

preciso lanar mo de todos os meios disponveis para minorar o mximo possvel as

conseqncias desses erros. Nessa tarefa, o Direito pode exercer um papel importante. Por

tais razes, embora, como dito, a Constituio possa, por um lado, representar

simbolicamente a dominao dos povos originrios, tambm pode, por outro, constituir

8

uma forte e imprescindvel aliada na luta pela edificao de um futuro melhor e mais justo

para os povos indgenas brasileiros. Nesse quadro, o reconhecimento de que o nosso

sistema jurdico interno inclui o direito ao desenvolvimento das comunidades indgenas ,

ao nosso ver, um passo decisivo.

9

CAPTULO 1 - DIREITO AO DESENVOLVIMENTO

1.1. O fenmeno do desenvolvimento

No uma tarefa fcil definir desenvolvimento. A palavra desenvolvimento surgiu entre os

sculos XII e XIII, e o seu sentido inicial era o de revelar, expor, passando a significar a

progresso de estgios mais simples, inferiores, para outros mais complexos, superiores,

apenas por volta de 18507. Essa idia de transio evolutiva fez com que a palavra

passasse a admitir diversos prismas ou conotaes, a depender do adjetivo que a qualifica,

podendo ser: social, poltico, humano, econmico, ambiental, infantil, nacional, regional,

equilibrado, sustentvel, dentre muitos outros. Como se no fosse suficiente, cada uma

dessas conotaes normalmente comporta mais de uma compreenso. Sob o ponto de vista

econmico, por exemplo, a expresso desenvolvimento pode ser vista como processo de

crescimento do produto interno bruto, ou como modernizao ou industrializao.

Tambm a enorme heterogeneidade cultural das mais diversas naes e Estados do mundo

um fator que contribui para aumentar a dificuldade da tarefa de encontrar um

entendimento unvoco para o desenvolvimento.

Tudo isso afasta ou ao menos dificulta enormemente a possibilidade de uma definio que

seja aceita universalmente, o que reforado pelo fato de que o fenmeno do

desenvolvimento, na concepo que interessa ao presente trabalho, era inicialmente objeto

de estudo apenas da economia mas hoje visto como tema interdisciplinar que envolve

tambm, por exemplo, aspectos jurdicos, polticos, sociolgicos e culturais, sem contar

com as nuanas ensejadas pelas diversas percepes ideolgicas. O contedo do termo

desenvolvimento, portanto, dinmico, e tem se ampliado acompanhando a evoluo

histrico-social. Dessa forma, pode-se afirmar que nos dias atuais trata-se de uma palavra

inegavelmente plurvoca.

7 ROULAND, Norbert. Aux Confins du Droit. Paris: ditions Odile Jacob, 1991, p. 186. O autor chama aateno para o fato de que essa mudana de significado coincidiu com a poca da publicao do livro Cursode Filosofia Positiva, de Augusto Comte.

10

Esta realidade, embora constitua um srio desafio a ser vencido8, no suficiente para

impedir o estudo aprofundado e a sistematizao do tema, como prova a enorme

quantidade de debates, artigos, livros e textos em geral sobre desenvolvimento, seja no

mbito nacional ou internacional, inclusive na rede mundial de computadores, em

praticamente todas as lnguas do planeta.

Nessa perspectiva, dentre as diversas abordagens possveis do fenmeno do

desenvolvimento, importa inicialmente para o nosso objetivo abordar as que o ligam ao

crescimento econmico. De maneira geral, inclusive, a economia, por ter sido a primeira

cincia social a se debruar sobre a questo, merece ser o ponto de partida para a

compreenso do desenvolvimento. Entretanto, anote-se que nem mesmo numa concepo

exclusivamente econmica o desenvolvimento encontra uniformidade conceitual. Pode-se

falar, por exemplo, em desenvolvimento segundo os economistas clssicos dentre os

quais Adam Smith e David Ricardo , desenvolvimento marxista, desenvolvimento

malthusiano, desenvolvimento keynesiano incluindo os modelos de Domar, Harrod e

Kaldor , desenvolvimento conforme Kalecki, desenvolvimento na viso schumpeteriana9.

Welber Barral10 anota que na virada do sculo XVI a viso predominante tinha como

centro o poder do Estado, o qual era identificado como poder militar, posse de colnias e

acumulao de metais preciosos. Essa circunstncia compreendida facilmente luz

daquele momento histrico, no qual foram empreendidas aes de expanso martima e

comercial atravs das chamadas grandes navegaes e tiveram lugar prticas econmicas

que mais tarde identificariam o mercantilismo11.

8 As dificuldades inerentes conceituao do desenvolvimento foram descritas pelo Secretrio-Geral dasNaes Unidas j no final da dcada de 70 (E/CN.4/1334, pp. 7-13).9 Sobre essas vises vide, dentre outros autores, Nali de Jesus de SOUZA (Desenvolvimento Econmico. 5edio, revisada. So Paulo: Atlas, 2007). Diversas conceituaes de desenvolvimento, tanto do ponto devista global como em uma perspectiva puramente econmica, podem ser conferidas na obra de Pinto Ferreira(Sociologia do Desenvolvimento. 5 edio, revista e atualizada. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais,1993, pp. 37-39). Tambm Antonio Ponte Jardim se debruou sobre as diferentes concepes dodesenvolvimento (JARDIM, Antonio de Ponte. Consideraes sobre o desenvolvimento. In MARCIAL,Danielle, ROBERT, Cinthia, SGUIN, Elida (coords.). Direito do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2000, pp. 69-81). Florestan Fernandes, de sua vez, estudou as dificuldades de conceituardesenvolvimento e distingu-lo de conceitos como mudana social e evoluo social (FERNANDES,Florestan. Mudanas Sociais no Brasil: aspectos do desenvolvimento na sociedade brasileira. 3 edio. SoPaulo: DIFEL, 1979, pp. 315 e ss).10 Direito e Desenvolvimento: um modelo de anlise. In BARRAL, Welber (org.). Direito e desenvolvimento:anlise da ordem jurdica brasileira sob a tica do desenvolvimento. So Paulo: Editora Singular, 2005, p.34.11 A palavra mercantilismo teria sido cunhada por Adam Smith, em 1776, a partir de mercari, que significavaa administrao comercial de mercadorias e produtos. Tambm foi ele quem fez a primeira tentativa dereconstruo histrica do sistema (cf. MAFFEY, Aldo. Verbete Mercantilismo. In BOBBIO, Norberto,

11

A partir de Adam Smith, que em geral considerado como o pai da economia moderna,

com sua conhecida obra Uma investigao sobre a natureza e as causas da Riqueza das

Naes12, e David Ricardo, o desenvolvimento se identifica com o poder econmico, que

era a principal representao do poder nacional, tendo em conta a difuso da tese de que o

poder britnico devia-se especialmente fora da marinha mercante: o comrcio

consolidava o poder ingls13.

J no incio do breve sculo XX14 o sentido esttico da economia deu lugar

preocupao com a noo de desenvolvimento, especialmente a partir das abordagens de

autores como Schumpeter e Keynes, como lembra Gilberto Bercovici15. A partir da, a

teoria ou ideologia16 do desenvolvimento se tornou um desdobramento da teoria

econmica17, falando-se, portanto, em desenvolvimento econmico.

Aps a Segunda Guerra Mundial o tema se espraiou para outros foros tendo em vista o

debate poltico que se seguiu sobre as causas e conseqncias do conflito, dentre as quais a

guerra fria, num quadro de tomada de conscincia da extrema desigualdade e atraso

econmico que assolava a maior parte da humanidade18.

Para um grupo de estudiosos da economia, que engloba tanto neoclssicos como

keynesianos19, o desenvolvimento identifica-se plenamente com o crescimento econmico,

sendo aceitos como sinnimos. Necessrio apontar, porm, que a palavra crescimento

tambm no unvoca, podendo admitir distintos significados. Por exemplo, h quem

MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. Vol. 2. 12 edio. Braslia: EditoraUniversidade de Braslia, 2004, p. 746). Essa reconstruo histrica encontra-se no clssico A Riqueza dasNaes, especialmente no seu livro IV (SMITH, Adam. A Riqueza das Naes: investigao sobre suanatureza e suas causas. Coleo Os Economistas. So Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, Tomo I, pp. 412-475, Tomo II, pp. 7-170).12 O ttulo original, em ingls An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. No Brasil,uma traduo bem difundida utilizou o ttulo de A Riqueza das Naes: investigao sobre sua natureza esuas causas (Coleo Os Economistas. So Paulo: Editora Nova Cultural, 1996).13 BARRAL, Welber. Direito e Desenvolvimento: um modelo de anlise. In BARRAL, Welber (org.). Direitoe desenvolvimento: anlise da ordem jurdica brasileira sob a tica do desenvolvimento. So Paulo: EditoraSingular, 2005, p. 34.14 A expresso de Eric HOBSBAWN (Era dos extremos. So Paulo: Cia das Letras, 1995. p. 16).15 BERCOVICI, Gilberto. Constituio Econmica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituiode 1988. So Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 45.16 A expresso idologie du dveloppement foi cunhada por Michel Virally (LOrganisation mondiale. Paris:A. Colin, 1971, pp. 314 e ss).17 PRADO JNIOR, Caio. Histria e desenvolvimento: a contribuio da historiografia para a teoria eprtica do desenvolvimento brasileiro. 1 reimpresso. So Paulo: Brasiliense, 1999, p. 19.18 FURTADO, Celso. Pequena Introduo ao desenvolvimento econmico: enfoque interdisciplinar. SoPaulo: Ed. Nacional, 1980, p. 20.

12

entenda que crescimento significa qualquer forma de progresso ou avano econmico, ao

passo em que outros autores o compreendem no sentido do aumento, a longo prazo, da

populao e da pujana do produto obtido pela atividade econmico-produtiva de uma

unidade econmica, que pode ser uma pessoa, uma empresa ou um pas. O crescimento,

nessa viso, deve ser aferido por determinados e especficos indicadores, a exemplo do

produto nacional global ou do produto interno bruto per capita20. Essa ltima concepo de

crescimento econmico normalmente a mais aceita e difundida.

No pensamento de economistas preocupados com dados empricos, o desenvolvimento

econmico pressupe como condio necessria mas no suficiente o crescimento21.

Isso porque o crescimento econmico por si s no assegura o desenvolvimento, j que

possvel que o aumento da produo, da riqueza no se d em benefcio da economia como

um todo ou da melhoria das condies da populao em geral. Esse resultado pode ocorrer

por fora de diversos fatores, dentre os quais a acumulao excessiva de riqueza de

determinados grupos ou elites detentores da propriedade dos bens de produo,

aumentando a concentrao de renda, e a resistncia de altas taxas de desemprego em

decorrncia da informatizao, robotizao e mecanizao dos setores de produo e

servios22. Observa-se, assim, que nessa vertente crescimento corresponde a um dado

objetivo de aumento dos indicadores de riqueza que aferem quantitativamente o produto

econmico, ao passo em que a noo de desenvolvimento est vinculada melhoria

qualitativa das condies de vida da populao, atravs da transformao da economia,

que passaria a corresponder a um modelo moderno, eficiente, e inclusivo. O processo de

desenvolvimento altera no s estruturas econmicas e produtivas, mas tambm sociais,

institucionais e polticas, significando aumento da produo acompanhado do incremento

da renda e da capacidade econmica da populao. possvel se falar em desenvolvimento

integrado, no sentido de que o desenvolvimento depende do crescimento no s da

economia, mas tambm, concomitantemente, dos demais setores da sociedade. O

19 Dentre os autores neoclssicos que adotam essa linha temos James Edward MEADE e Robert SOLOW, edentre os keynesianos encontramos Henry Roy Forbes HARROD, Evsey DOMAR e Nicholas KALDOR. Cf.SOUZA, Nali de Jesus de. Desenvolvimento Econmico. 5 edio, revisada. So Paulo: Atlas, 2007, p. 5.20 Sobre os ndices e algumas das crticas a eles pertinentes, vale conferir, dentre outros autores, RISTER,Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento: antecedentes, significados e conseqncias. Rio de Janeiro:Renovar, 2007, pp. 2-6.21 Pertencem a esse grupo, dentre outros, W. Arthur LEWIS, Albert HIRSCHMAN, Gunnar MYRDAL eRagnar NURKSE. Cf. SOUZA, Nali de Jesus de. Desenvolvimento Econmico. 5 edio, revisada. SoPaulo: Atlas, 2007, p. 5.22 Algumas dessas causas podem ser conferidas no texto de Nali de Jesus de SOUZA, DesenvolvimentoEconmico. 5 edio, revisada. So Paulo: Atlas, 2007, p. 5-6.

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desenvolvimento pode ser visto, portanto, como mudana de estrutura23, que se perfaz

atravs de processo longo e contnuo de crescimento econmico, em ritmo superior ao

crescimento demogrfico, que resulta na melhoria qualitativa das condies de vida da

populao e dos indicadores econmicos, de bem-estar social e ambientais24,

demonstrando preocupaes antropocntricas. Nota-se, assim, que essa viso de

desenvolvimento econmico muito contribuiu para a interdisciplinaridade do fenmeno do

desenvolvimento, que atualmente objeto de estudo de outras cincias sociais25.

Franois Perroux, na esteira dos passos de Schumpeter, contribuiu para essa tendncia com

sua obra Leconomie du XXe sicle, publicada originalmente em 1961, e sua concepo de

desenvolvimento como mudana de estrutura. Segundo Perroux, crescimento o aumento

de um indicador de dimenso, o produto interno bruto ou lquido, que provoca uma

melhoria puramente quantitativa. Desenvolvimento designa a combinao de mudanas

mentais e sociais de uma populao que a tornam apta a fazer crescer, de maneira

cumulativa e permanente, o seu produto real global26. As inovaes tericas de Perroux

contriburam para a formatao da chamada economia do desenvolvimento27, que pode

ser definida como programa de pesquisa que, rompendo com a ortodoxia liberal e

keynesiana, se prope a analisar as economias subdesenvolvidas com a finalidade de

propor estratgias de desenvolvimento adaptadas s suas especificidades28. Perroux

expressamente admite que a economia do desenvolvimento distinta da economia do

crescimento, j que o produto global, em termos absolutos ou per capita, pode ter crescido

23 Nessa viso se inserem economistas crticos, como Raul PREBISCH, Celso FURTADO e Paul SINGER,alm de cepalinos, marxistas e os denominados economistas do desenvolvimento. Cf. SOUZA, Nali de Jesusde. Desenvolvimento Econmico. 5 edio, revisada. So Paulo: Atlas, 2007, p. 06.24 Cf. SOUZA, Nali de Jesus de. Desenvolvimento Econmico. 5 edio, revisada. So Paulo: Atlas, 2007,pp. 6-7. Necessrio tambm, portanto, que o desenvolvimento econmico no implique em devastaoambiental, o que se insere na noo que passou a ser conhecida como desenvolvimento sustentvel, que seradiante examinada.25 Sobre a noo de desenvolvimento nas cincias sociais vide FERREIRA, Pinto. Manual de Sociologia e dePesquisa Social. 3 edio. Rio de Janeiro: Forense, 1988, pp. 292-293.26 (...) le dveloppment est la combinaison des changements mentaux et sociaux dune population qui larendent apte faire crotre, cumulativement et durablement, son produit rel global. PERROUX, Franois.Leconomie du XXme sicle. 2 edio, aumentada. Paris: Presses Universitaires de France, 1964, p. 155.27 Sobre a influncia da economia do desenvolvimento na Amrica Latina e na CEPAL vale conferir oseguinte trabalho: NERY, Tiago. A economia do desenvolvimento na Amrica Latina: o pensamento daCEPAL nos anos 1950 e 1990. Dissertao de Mestrado. Orientador: Prof. Luis Fernandes. Rio de Janeiro:PUC - Instituto de Relaes Internacionais, 2004.28 Cf. MARCHAL, Jean-Paul. De la religion de la croissance lexigence de dvellopment durable. InMARCHAL, Jean-Paul, QUENAULT, Batrice (dir.). Le Dvellopment Durable: une perspective pour leXXIe sicle. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2005, p. 37.

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no passado e ainda crescer no presente sem que a populao e a economia estejam em

condies de desenvolvimento29.

Tais idias, no geral, so abraadas por vrios juristas brasileiros que estudam o fenmeno

do desenvolvimento.

Eros Roberto Grau, por exemplo, acentua que o desenvolvimento pressupe mudanas

dinmicas de natureza quantitativa e qualitativa e um processo de mobilidade social

contnuo, ocorrendo um salto de uma estrutura social para outra e a elevao do nvel

econmico, cultural e intelectual de toda a comunidade. Por tudo isso, o crescimento, que

implica noo quantitativa, representa apenas uma parcela do desenvolvimento e no se

confunde com o mesmo30.

Gilberto Bercovici, de sua vez, afirma o papel central das reformas estruturais na poltica

dos pases subdesenvolvidos, constituindo condio prvia e necessria de

desenvolvimento, para o qual preciso uma atuao ampla e intensa do Estado como

coordenador do planejamento31, visando modificar as estruturas socioeconmicas e a

distribuio e descentralizao da renda, de forma a integrar toda a populao no mbito

social e poltico32.

Pinto Ferreira entende que o desenvolvimento um processo global de mudana social que

implica em transformaes da sociedade e da economia, composto de trs aspectos

bsicos: aumento real da renda per capita, longa durao do processo e melhor distribuio

dos bens da vida, resultando no aprimoramento do bem-estar dos membros da comunidade.

Necessita de medidas no sentido da democratizao da propriedade, dos bens e servios

29 (...) il existe, donc, une conomie du dveloppment et elle est distincte de leconomie de la croissance. Leproduit global, en montant absolut ou par tte dhabitant, a t souvent accru dans le pass et peut ltreencore, sans que les populations et leur conomie soient mises en condition de dveloppment. PERROUX,Franois. Leconomie du XXme sicle. 2 edio, aumentada. Paris: Presses Universitaires de France, 1964,pp. 155-156.30 GRAU, Eros Roberto. Elementos de Direito Econmico. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1981,pp. 7-8.31 Alinha-se, assim, posio da CEPAL. A necessidade de planejamento da ao estatal na superao dodesenvolvimento pode ser conferida tambm na doutrina de Fbio Konder Comparato (COMPARATO,Fbio Konder. Planejar o Desenvolvimento: a Perspectiva Institucional. In COMPARATO, Fbio Konder.Para Viver a Democracia. So Paulo: Brasiliense, 1989, pp. 83-123). Tambm Orlando Gomes destacou opapel do Estado em prol do desenvolvimento, especialmente no que se refere promoo de reformas queampliem a liberdade de ao dos indivduos e facilitem o aproveitamento das oportunidades econmicas,bem como quanto atuao direta na atividade econmica e posio de promotor da industrializao(Direito e desenvolvimento. Salvador: Publicaes da Universidade da Bahia, 1961, pp. 27-31).32 BERCOVICI, Gilberto. Constituio Econmica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituiode 1988. So Paulo: Malheiros Editores, 2005, pp. 51-52.

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disponveis para a populao e da satisfao razovel as necessidades humanas primrias e

secundarias33.

No pensamento do economista Celso Furtado34, a Histria contempornea registra a

utilizao do conceito de desenvolvimento em dois sentidos distintos. O primeiro relativo

ao aumento da eficcia do sistema de produo de uma sociedade atravs da acumulao e

do progresso das tcnicas; o segundo diz respeito ao grau de satisfao das necessidades

humanas, sejam elas elementares, tais como habitao, vesturio, alimentao e

expectativa de vida, ou sejam elas necessidades menos ntidas, compreensveis apenas a

partir de determinado contexto cultural. Salienta, ainda, que o aumento da eficcia do

sistema de produo, dado que normalmente tido como principal indicador do

desenvolvimento, no constitui condio suficiente para o alcance da melhor satisfao das

necessidades humanas, e que a insero de tcnicas mais sofisticadas pode at mesmo

provocar a degradao das condies de vida da populao em geral. De outro lado, essas

mesmas condies podem obter melhoras sem qualquer alterao nos processos

produtivos. Porm, verdadeiro desenvolvimento s se verifica se h benefcios para o

conjunto da populao35. O conceito de desenvolvimento, ainda na concepo furtadiana,

compreende a idia de crescimento, porm vai alm dela, j que o desenvolvimento de uma

sociedade implica a elevao do nvel material de vida das pessoas que a compem, na

forma definida a partir de uma escala de valores que demonstra o equilbrio das foras ali

existentes e prevalecentes36.

A hiptese, de crescimento econmico desacompanhado das transformaes necessrias a

uma melhor satisfao das condies de vida da populao no configura, portanto,

desenvolvimento, mas sim, como salienta Gilberto Bercovici, simples modernizao37.

33 FERREIRA, Pinto. Sociologia do Desenvolvimento. 5 edio, revista e atualizada. So Paulo: EditoraRevista dos Tribunais, 1993, pp. 39-42.34 FURTADO, Celso. Pequena Introduo ao desenvolvimento econmico: enfoque interdisciplinar. SoPaulo: Ed. Nacional, 1980, pp. 15-17.35 FURTADO, Celso. Em Busca de Novo Modelo: Reflexes sobre a Crise Contempornea. So Paulo: Paz eTerra, 2002.36 FURTADO, Celso. Teoria e Poltica do Desenvolvimento Econmico. 10 edio, revista pelo autor. SoPaulo: Paz e Terra, 2000, pp. 102 e 107. Saliente-se que o autor anota que h um empecilho viso dedesenvolvimento como aspirao universal, j que cada sociedade ter a sua prpria escala de valores a partirda qual se infere o aumento da qualidade de vida.37 Quando no ocorre nenhuma transformao, seja social, seja no sistema produtivo, no se est diante deum processo de desenvolvimento, mas da simples modernizao. Com a modernizao, mantm-se osubdesenvolvimento, agravando a concentrao de renda. Ocorre assimilao do progresso tcnico dassociedades desenvolvidas, mas limitada ao estilo de vida e aos padres de consumo de uma minoriaprivilegiada. Embora possa haver taxas elevadas de crescimento econmico e aumentos de produtividade, a

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Salienta ainda Celso Furtado que os indicadores clssicos, tidos at ento como

universalmente aceitos, como o produto nacional global, o produto interno bruto ou a renda

per capita38, foram adotados em decorrncia do enfoque globalizante dos processos

econmicos e esto ligados a uma viso que identifica o desenvolvimento com o mero

crescimento econmico, razes pelas quais no refletem questes como distribuio e

acumulao de renda, desigualdades sociais e preos relativos. necessrio, por isso,

utilizar outros indicadores que se ajustem melhor viso de desenvolvimento como

instrumento de satisfao das necessidades humanas39.

A partir dessas premissas, o subdesenvolvimento pode ser identificado com a situao na

qual o crescimento econmico no ocorre, ou, quando ocorre: irregular; est amparado

muitas vezes por processos ambientalmente condenveis e tecnologicamente atrasados;

no se d em ritmo suficiente para acompanhar o aumento demogrfico; resulta em maior

concentrao de riqueza e renda nas mos de uma elite minoritria, e, conseqentemente,

no aumento ou na manuteno de grandes contingentes de pessoas em situao de pobreza,

promovendo a deteriorizao das condies sociais40.

O subdesenvolvimento, como bem observa Gilberto Bercovici41 na linha dos ensinamentos

de Celso Furtado42, no necessariamente um estgio em direo ao desenvolvimento43,

modernizao no contribui para melhorar as condies de vida da maioria da populao (BERCOVICI,Gilberto. Constituio Econmica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituio de 1988. SoPaulo: Malheiros Editores, 2005, p. 53). Nesse sentido, o Relatrio de Desenvolvimento Humano das NaesUnidas de 1996 aponta claramente que no h ligaes automticas entre crescimento econmico edesenvolvimento humano (United Nations Development Programme - UNDP. Human Development Report1996. New York, Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 1).38 Pinto Ferreira anota que a utilizao da renda per capita para medir o desenvolvimento deve-se s idiasdo economista australiano Colin Clark, divulgadas no livro As Condies do Progresso Econmico,publicado em 1936 (FERREIRA, Pinto. Sociologia do Desenvolvimento. 5 edio, revista e atualizada. SoPaulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 25).39 FURTADO, Celso. Pequena Introduo ao desenvolvimento econmico: enfoque interdisciplinar. SoPaulo: Ed. Nacional, 1980, p. 20.40 Para um quadro geral da doutrina sobre as caractersticas do subdesenvolvimento em uma visosociolgica, vide, dentre outros, Pinto Ferreira, que alm da sua prpria abordagem descreve o pensamentode Balandier, Aldred Sauvy, Claude Levy e Guerreiro Ramos (FERREIRA, Pinto. Sociologia doDesenvolvimento. 5 edio, revista e atualizada. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, pp. 19-23).41 BERCOVICI, Gilberto. Constituio Econmica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituiode 1988. So Paulo: Malheiros Editores, 2005, pp. 52-53.42 O tema abordado por Celso Furtado em vrios textos. Para citar apenas uma passagem, que sintetizasimbolicamente o pensamento furtadiano: s etapas de Rostow no se pode emprestar mais que um alcancedescritivo (FURTADO, Celso. Teoria e Poltica do Desenvolvimento Econmico. 10 edio, revista peloautor. So Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 153).43 Segundo Rostow, todas as sociedades podem ser enquadradas, no que diz respeito s suas dimenseseconmicas, em uma de cinco seguintes categorias: sociedade tradicional, pr-condies para o arranco,arranco, marcha para a maturidade e era do consumo em massa (ROSTOW, William Wilber. Etapas doDesenvolvimento. Rio de Janeiro, ZAHAR, 1974, p. 16).

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mas sim uma condio perifrica44 especfica, e a conformao histrica e concreta de cada

economia afasta a idia de que h fases de desenvolvimento que devem ser percorridas em

um processo evolutivo natural da economia. Os autores citados sugerem, ainda, que a

superao do subdesenvolvimento em direo ao desenvolvimento pressupe uma ruptura

sistmica interna e externa, considerando que o subdesenvolvimento est inserido em uma

relao de dominao econmica, cultural e poltica45. Eis a razo da necessidade de

transformaes nas estruturas econmicas, produtivas, sociais, institucionais e polticas

vigentes, bem como de um planejamento adequado e abrangente liderado pelo Estado. O

desenvolvimento contm em si a idia de bem-estar social, o que implica em reconhecer

no s o papel do Estado como principal agente e promotor do desenvolvimento, a ser

alcanado por meio de um adequado planejamento46, mas tambm a existncia de um

carter ideolgico do desenvolvimento e das suas polticas47.

A dicotomia desenvolvimento/subdesenvolvimento48 pode levar concluso de que esses

fenmenos esto ligados ao maior ou menor progresso ou avano cientfico de uma

determinada sociedade. Bobbio, entretanto, em texto clssico, j advertiu que uma coisa

o progresso cientfico e tcnico, enquanto outra o progresso moral49. Carla Rister anota

que nos sculos XVII e XVIII autores iluministas se debruaram sobre os temas do

desenvolvimento e do progresso, avanando no sentido de uma teoria linear e otimista que

sustentava ser a Histria um caminhar para frente, uma nova conquista, um avano

44 A dicotomia centro/periferia foi foco de vrios estudos de Ral Prebisch, os quais influenciaram a CEPAL.As suas idias bsicas foram publicadas pela primeira vez em um estudo mimeografado, de 1949,denominado El desarrollo econmico de La Amrica Latina y algunos de sus principales problemas (cf.FURTADO, Celso. Teoria e Poltica do Desenvolvimento Econmico. 10 edio, revista pelo autor. SoPaulo: Paz e Terra, 2000, p. 152, nota 4).45 BERCOVICI, Gilberto. Constituio Econmica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituiode 1988. So Paulo: Malheiros Editores, 2005, pp. 52-53, 67. Celso Furtado lembra inclusive que Namedida em que foram sendo percebidas com mais clareza as relaes entre o subdesenvolvimento e asestruturas de dominao, cresceu o interesse dos tericos do desenvolvimento pelos estudos de estratificaosocial (FURTADO, Celso. Pequena Introduo ao desenvolvimento econmico: enfoque interdisciplinar.So Paulo: Ed. Nacional, 1980, p. 35).46 BERCOVICI, Gilberto. Constituio Econmica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituiode 1988. So Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 51.47 FURTADO, Celso. Pequena Introduo ao desenvolvimento econmico: enfoque interdisciplinar. SoPaulo: Ed. Nacional, 1980, p. 26.48 Desenvolvimento e subdesenvolvimento no devem ser entendidos como conceitos opostos absolutos ehermticos, cedendo-se tentao de simplificar ou rotular uma realidade multifacetada. Ao contrrio, trata-se de noes complexas e que comportam em cada sociedade inmeras peculiaridades e contradiesinternas. Como anota Fbio Konder Comparato, Os pases subdesenvolvidos no so totalmente ricos nemtotalmente pobres, assim como no se apresentam tampouco como pases homogeneamente modernos ouatrasados. H sempre, no contexto do subdesenvolvimento, uma oposio ou tenso entre um plo rico e umplo pobre, um setor moderno e um setor arcaico (COMPARATO, Fbio Konder. Planejar oDesenvolvimento: a Perspectiva Institucional. In COMPARATO, Fbio Konder. Para Viver a Democracia.So Paulo: Brasiliense, 1989, p. 103).

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irreversvel50. Desenvolvimento e progresso, entretanto, no so noes coincidentes,

embora em ambas remanesa subjacente o sentido de avano. O desenvolvimento, para

parte dos estudiosos, conteria a idia de um avano de natureza essencialmente positiva, o

que no necessariamente se d com o progresso, que no possui um sentido unvoco

positivo51. A concepo idealstica de progresso, certo, o via como um fenmeno

universal necessrio, levado a efeito por um princpio espiritual, constituindo um processo

contnuo e sem possibilidade de retrocesso, o qual, se observado, seria no mximo

aparente52. Porm, os prprios autores que adotam uma concepo iluminista de progresso

assumiram uma postura crtica em relao atividade humana e ao processo histrico,

identificando pocas de progresso, de decadncia ou de retrocesso. O andamento retilneo

do progresso foi combatido ainda no sculo XVIII por Giovarini Batista Vico, que no s

afirmou que embora o progresso seja determinante para o desenvolvimento das cincias e

das artes o mesmo no se d no campo da moral, como tambm admitiu que a decadncia

componente do progresso, sustentando que a barbrie pode suceder a civilizao como

teria ocorrido na Idade Mdia e propondo por isso um andamento espiral53. No sculo

XX a idia de progresso, aps uma viso romntica inicial, entrou definitivamente em

crise, por vrios fatores, dentre os quais: as teorias evolucionistas de Darwin e Wallace,

que no admitiam as idias de progresso e retrocesso, de bem ou mal; a noo de

irracionalidade do desenrolar da Histria; e o fato de que o progresso cientfico e

tecnolgico significou tambm a consolidao de ameaas globais de destruio total54.

49 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 53.50 RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento: antecedentes, significados e conseqncias. Riode Janeiro: Renovar, 2007, p. 11.51 Nem todos autores, obviamente, adotam essa distino. Pinto Ferreira menciona, por exemplo, que GilbertBlardone, ao distinguir os conceitos de crescimento, desenvolvimento e progresso no estudo denominado OCircuito Econmico, de 1962, afirma que o progresso supe a melhoria das condies de vida da maioria dapopulao (FERREIRA, Pinto. Sociologia do Desenvolvimento. 5 edio, revista e atualizada. So Paulo:Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 37). Por outro lado, comum que os autores apontem a vagueza doconceito de progresso, como o fez Celso Furtado, em mais de uma obra (Teoria e Poltica doDesenvolvimento Econmico. 10 edio, revista pelo autor. So Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 102; PequenaIntroduo ao desenvolvimento econmico: enfoque interdisciplinar. So Paulo: Ed. Nacional, 1980, p. 7).52 BINETTI, Saffo Testoni. Verbete Progresso. In BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO,Gianfranco. Dicionrio de Poltica. Vol. 2. 12 edio. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2004, p.1010.53 BINETTI, Saffo Testoni. Verbete Progresso. In BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO,Gianfranco. Dicionrio de Poltica. Vol. 2. 12 edio. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2004, p.1010.54 Essas e outras questes ligadas ao esvaziamento e impropriedade da noo de progresso no sculo XXpodem ser conferidas mo texto de BINETTI, Saffo Testoni. Verbete Progresso. In BOBBIO, Norberto,MATTEUCCI, Nicola, PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. Vol. 2. 12 edio. Braslia: EditoraUniversidade de Braslia, 2004, pp. 1013-1015. Dentre os autores atuais, vale destacar John Gray, que criticaduramente a crena na cincia e no progresso: A idia de progresso apenas o anseio de imortalidade numaviso tecnofuturista. A sanidade no encontrada aqui, nem nas carcomidas eternidades dos msticos

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Teramos feito uma barganha faustiana55 em relao crena no progresso tcnico. Em

1969, o prembulo da Declarao Sobre Progresso Social e Desenvolvimento, da

Assemblia Geral das Naes Unidas, lamentou o progresso inadequado que se verificava

na situao social mundial, apesar dos esforos dos Estados e da comunidade

internacional56. Celso Furtado, em obra clssica publicada 197457, pouco depois da

Conferncia de Estocolmo de 1972 na qual se debateu o Ecodesenvolvimento58, porm

bem antes da consolidao da idia de desenvolvimento sustentvel e da proliferao dos

debates sobre aquecimento global, chamou a ateno para o carter predatrio da

civilizao e dos processos irreversveis de degradao do mundo fsico, dentre os quais a

elevao da temperatura, afirmando ser ingnuo imaginar que estes problemas seriam

solucionados necessariamente atravs do progresso tecnolgico, como se a acelerao

desse mesmo progresso tecnolgico no fosse, ao contrrio, um dos agravantes da situao.

Essas observaes podem servir de indicativo de que ocorreu um certo distanciamento

entre as cincias, especialmente no que concerne cincia econmica, e a tica, o que tem

lavado autores contemporneos a tentar reaproxim-las59.

Essa reaproximao, ao nosso ver, pode ter como um de seus instrumentos a adoo de

mecanismos de promoo da igualdade que valorizem a dimenso da justia distributiva e

que atuem em relao ao produto excedente do processo de crescimento econmico,

evitando-se a concentrao de renda e o aprofundamento das desigualdades. Ao mesmo

tempo, o processo de efetivo desenvolvimento no poder descuidar do fato de que

diversas necessidades humanas, para serem satisfeitas, dependem de mecanismos que

(GRAY, John. Cachorros de Palha: reflexes sobre humanos e outros animais. 4 edio. Rio de Janeiro:Record, 2006, p. 212).55 A respeito, vide o verbete faustian bargain, em HIRSCH JR., E.D., KETT, Joseph F., TREFIL, James(eds). The New Dictionary of Cultural Literacy. 3 edio. Boston: Houghton Mifflin Company, 2002.56 Regretting the inadequate progress achieved in the world social situation despite the efforts of States andthe international community. Resoluo 2542 (XXIV), de 11 de dezembro de 1969. Texto integraldisponvel no site http://www.un-documents.net/a24r2542.htm, acesso em 10/06/2008.57 FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econmico (texto extrado da primeira parte de O mito doDesenvolvimento Econmico, Paz e Terra, 1974). Coleo Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, pp. 12-13.58 A conferncia ser abordada de maneira mais detida adiante.59 Sobre o tema, abordando inclusive a questo do egosmo tico, vide, dentre outros, BORGES, DanielDamsio. tica e Economia Fundamentos para uma reaproximao. In AMARAL JNIOR, Alberto do,(org.). Direito Internacional e Desenvolvimento. Barueri: Manole, 2005, pp. 1-51. Cabe desde logo anotarque a noo de desenvolvimento humano adotada pelo Programa das Naes Unidas para oDesenvolvimento, assim como a proposta do economista indiano Amartya Sen no sentido de entender odesenvolvimento como um processo de expanso das liberdades reais das pessoas (SEN, Amartya Kumar.Desenvolvimento como liberdade. So Paulo: Companhia das Letras, 2000), que sero abordadas adiante,possuem potencial para auxiliar a reaproximao entre tica e economia.

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concretizem outra projeo da justia, tendo em vista que diz respeito a fenmenos no

quantificveis economicamente, como, por exemplo, a aceitao do pluralismo cultural60.

Nessa tica, faz-se necessrio tambm promover a igualdade no que concerne dimenso

da justia relativa ao reconhecimento de identidades61.

Verifica-se, assim, que o fenmeno do desenvolvimento no abrange apenas a perspectiva

normalmente identificada como desenvolvimento econmico, consubstanciando um

processo mais amplo e mais abrangente do que o crescimento quantitativo da economia,

ainda que se abrace a viso mais ampla de desenvolvimento econmico, que prega a

mudana de estrutura e a melhor redistribuio de renda com vistas melhoria qualitativa

das condies de vida da populao em geral. J se alertou, inclusive, que a idia de

desenvolvimento econmico, mesmo que nessa viso mais positiva, pode no passar de um

mito que termina por servir aos interesses de dominao dos pases do centro em relao

periferia. O alerta vem, dentre outros, de Celso Furtado, que desmontou a tese de que os

pases subdesenvolvidos podem atingir o desenvolvimento econmico alcanado pelos

pases que lideraram a revoluo industrial. O modelo de desenvolvimento econmico e os

padres de consumo dos pases ricos no so universalizveis, as economias da periferia

nunca sero desenvolvidas nesse padro, e a afirmao contrria, ilusria, nada mais do

que uma prolongao do mito do progresso, e consubstancia uma idia que tem sido

historicamente til para mobilizar os povos perifricos e convenc-los a aceitar sacrifcios

enormes, bem como para legitimar a destruio de formas de cultura supostamente arcaicas

e do meio fsico62. A utopia de que o desenvolvimento econmico ser capaz de levar os

excludos do planeta a obterem padres de vida similares aos da minoria da humanidade

60 O desenvolvimento humano exige mais do que sade, educao, um padro de vida digno e liberdadepoltica. A identidade cultural dos povos deve ser reconhecida e aceita pelo Estado, e as pessoas devem serlivres de exprimir essa identidade sem serem discriminadas noutros aspectos das suas vidas. Em resumo: aliberdade cultural um direito humano e um aspecto importante do desenvolvimento humano e, assim,merecedora de ateno e ao do Estado (Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento PNUD.Relatrio de Desenvolvimento Humano 2004. Queluz: Mensagem, 2004, p. 6).61 As duas dimenses da justia necessrias promoo da igualdade sero retomadas adiante.62 Esse mecanismo, de utilizar o discurso do progresso e da luta contra o subdesenvolvimento comojustificativa de sacrifcios para a populao que, na verdade, servem para perpetuar vantagens de certosgrupos, no passou desapercebido do olhar de Florestan Fernandes, que o identificou no cenrio internobrasileiro. Em conferncia proferida em 06 de agosto de 1959, para a CIESP e a FIESP, disparou: Em todasas situaes de mudana rpida, surgem indivduos ou grupos de indivduos que exploram, calculadamente,propsitos altrusticos com fins particulares. Doutro lado, ainda que sem intenes inconfessveis, gruposinteiros de indivduos tendem a encarar como legtima a perpetuao de certas vantagens. Os dois fenmenosso visveis, na cena brasileira, mostrando, aqui e ali, como industriais modernos e seus prepostos procuramtirar vantagens, lcitas ou ilcitas, de uma ideologia [desenvolvimento e industrializao] que se tornousocialmente inatacvel (FERNANDES, Florestan. Mudanas Sociais no Brasil: aspectos dodesenvolvimento da sociedade brasileira. 3 edio. So Paulo: DIFEL, 1979, p. 75).

21

que vive nos pases industrializados uma crena irrealizvel por diversos motivos, dentre

os quais a constatao de que se tal hiptese ocorresse haveria enorme presso sobre os

recursos no renovveis e aumento de poluio ambiental to significativos que haveria um

colapso no sistema econmico mundial. Essa crena, entretanto, serve de razo

justificadora de formas de dependncia nas relaes mundiais e tem desviado a ateno

para objetivos abstratos como investimentos, exportaes e crescimento, ao invs de

centr-la naquilo que deveria ser a tarefa bsica: identificar as necessidades fundamentais

da coletividade e as possibilidades abertas ao Homem pelo avano da cincia no sentido de

alcan-las63.

A insuficincia da noo de crescimento e de desenvolvimento econmico repercutiu no

mbito da economia e de outras cincias sociais, tendo sido objeto dos mais diversos

estudos e teorias. Vrios desses estudos tiveram por objeto as relaes entre o

desenvolvimento econmico e o meio ambiente. As questes ambientais ganharam

destaque e maior relevncia a partir da ltima dcada de 6064. Alguns pases em

desenvolvimento de incio apresentaram certa resistncia, pois viam no tema um obstculo

s pretenses desenvolvimentistas e de industrializao, que inevitavelmente trariam

passivos ambientais. Os debates ficaram centrados entre a idia de crescimento zero de um

lado o crescimento em primeiro lugar, ou a qualquer custo, de outro.

O conhecido debate sobre o crescimento zero envolve o relatrio do denominado Clube de

Roma, intitulado Os limites do crescimento, publicado em 1972 por Donella H.

Meadows, Dennis l. Meadows, Jorgen Randers e William W. Behrens III65, e as opinies

de autores como Nicolas Georgescu-Roegen. De certa forma, trata-se de uma retomada da

teoria malthusiana sobre a progresso geomtrica da populao em contraste com a

progresso aritmtica da produo de alimentos, o que levaria a um desequilbrio gerador

63 FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econmico (texto extrado da primeira parte de Omito doDesenvolvimento Econmico, Paz e Terra, 1974). Coleo Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, pp. 8,11-13, 88-89.64 Em geral, a Histria da humanidade anterior ao sculo XX no registra que as preocupaes com apreservao da natureza tenham ocupado uma posio central ou de elevado destaque nas discussesfilosficas e jurdicas. Isso se deve, provavelmente, ao fato de que os recursos ambientais eram abundantes, eo estgio do desenvolvimento tecnolgico da sociedade no oferecia maiores riscos. Como marco maisprximo de mudana de paradigma podemos citar a utilizao da bomba atmica na II Guerra Mundial, quetrouxe tona, dentre inmeras outras preocupaes, a questo da possibilidade de srios danos ambientais.65 Um resumo do estudo foi disponibilizado pelo Clube de Roma no seu site na internet:http://www.clubofrome.org/docs/limits.rtf, acesso em 25/06/2008.

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de fome e pobreza de maneira generalizada66. Sob os auspcios do Clube de Roma,

fundado em 1968, o relatrio foi elaborado por uma equipe de especialistas, tendo frente

o Professor Meadows, do Massachusetts Institute of Technology MIT. O estudo sugeria

que o avano tecnolgico no seria suficiente para garantir as condies necessrias para o

planeta suportar o crescimento da populao, tendo em vista o esgotamento dos recursos

naturais e das fontes de energia, alm do aumento da poluio. Uma das suas concluses

a de que se as presentes tendncias de crescimento da populao mundial, industrializao,

poluio, produo de alimentos e degradao dos recursos continuarem inalterados, os

limites de crescimento do planeta sero alcanados nos prximos cem anos, e o resultado

mais provvel ser um sbito e incontrolvel declnio tanto na populao como na

capacidade industrial67. O declnio da populao estaria ligado fome e poluio. Alm

disso, seria necessrio escolher entre crescimento e qualidade do meio ambiente, que

seriam excludentes. O tom apocalptico deu ensejo a muitas crticas ao relatrio68, dentre

as quais a de Ignacy Sachs, para quem os zeristas fizeram confuso com dois temas

problemticos, porm diferentes: a taxa de crescimento e a taxa de explorao da

natureza69. A idia de crescimento zero terminou rejeitada por razes de ordem social70.

A tese do crescimento em primeiro lugar preconizava o rpido crescimento como soluo

para todos os problemas, pois ajustaria automaticamente todas as dimenses do

desenvolvimento atravs das novas riquezas ou forneceria os meios para a melhoria das

condies assim que fosse atingido um produto per capita mais alto, e tambm terminou

no sendo adotada71.

66 MALTHUS, Thomas Robert. An essay on the Principle of Population. Mineola: Dover Publications, 2007.O trabalho foi originalmente publicado em 1798, e desde ento tem sido objeto de acalorados debates. Osneomalthusianos acreditam que o problema do crescimento pode ser amenizado pelo desenvolvimentotecnolgico, capaz de fazer a produo de alimentos aumentar, e pelo planejamento familiar, que faria ocrescimento demogrfico sofrer reduo.67 MEADOWS, Donella H., MEADOWS, Dennis l., RANDERS, Jorgen. Limites do crescimento: aatualizao de 30 anos. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2007.68 Sobre as discusses deflagradas a partir do relatrio do Clube de Roma vide, dentre muitos outros,CORAZZA, Rosana Icassatti. Tecnologia e Meio Ambiente no Debate sobre os Limites do Crescimento:Notas `a Luz de Contribuies Selecionadas de Georgescu-Roegen. In Revista Economia, Braslia, v.6, n.2,Jul./Dez. 2005, pp. 435461.69 Economia e Ecologia. In SACHS, Ignacy. Rumo Ecossocioeconomia: teoria e prtica dodesenvolvimento. Organizao de Paulo Freira Vieira. So Paulo: Cortez, 2007, p. 77.70 A rejeio opo do crescimento zero foi ditada por bvias razes sociais. Dadas as disparidades dereceitas entre as naes e no interior delas, a suspenso do crescimento estava fora de questo, pois issodeterioraria ainda mais a j inaceitvel situao da maioria pobre (SACHS, Ignacy. Caminhos para odesenvolvimento sustentvel. Rio de Janeiro: Garamond, 2002, p. 52).71 SACHS, Ignacy O desafio do meio ambiente. In SACHS, Ignacy. Rumo Ecossocioeconomia: teoria eprtica do desenvolvimento. Organizao de Paulo Freira Vieira. So Paulo: Cortez, 2007, pp. 203-204.

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Uma espcie de compromisso entre essas teorias72 viria em um dos marcos do debate

mundial sobre as questes ambientais, que ocorreu em 1972, quando se realizou a

Conferncia das Naes Unidas sobre o Ambiente Humano, que teve lugar em Estocolmo,

na qual restou afirmada a inter-relao entre desenvolvimento e meio ambiente, inclusive

com a ampliao do contedo da degradao ambiental, que passou a abranger os efeitos

do subdesenvolvimento73. A Conferncia deu origem ao Programa das Naes Unidas para

o Meio Ambiente, com sede no Qunia, com o objetivo de promover liderana e fomentar

parcerias visando proteger o meio ambiente, inspirando, informando e capacitando naes

e povos a melhorar sua qualidade de vida sem comprometer a das futuras geraes74. As

discusses ocorridas durante e aps a Conferncia de Estocolmo resultaram na insero no

contexto dos debates mundiais de temas como poluio da pobreza75 e

ecodesenvolvimento. Este ltimo tem o seu conceito atribudo ao Secretrio-Geral da

Conferncia, Maurice Strong76, como uma nova estratgia baseada na utilizao criteriosa

dos recursos humanos e naturais, inicialmente no plano local das reas rurais e

posteriormente tambm no mbito das cidades dos pases Terceiro Mundo77. A extenso do

ecodesenvolvimento s cidades tem como marco a Declarao de Cocoyoc, no Mxico, em

1974. O ecodesenvolvimento pode ser definido como o desenvolvimento que, em cada eco-

regio, consiste nas solues especficas de seus problemas particulares, levando em

conta os dados ecolgicos da mesma forma que os culturais, as necessidades imediatas,

como tambm aquelas de longo prazo78.

72 Sobre o meio-termo atingido, vide SACHS, Ignacy O desafio do meio ambiente. In SACHS, Ignacy. Rumo Ecossocioeconomia: teoria e prtica do desenvolvimento. Organizao de Paulo Freira Vieira. So Paulo:Cortez, 2007, pp. 208-209.73 CORDANI, Umberto G. As Cincias da Terra e a mundializao das sociedades. In Estudos avanados,,Set./Dez. 1995, vol. 9, n 25, p.13-27.74 http://www.unep.org/Documents.Multilingual/Default.asp?DocumentID=43, acesso em 21/06/2008.75 A poluio da pobreza refere-se a questes ligadas sade pblica, como higiene e alimentao, e aosaneamento bsico, ao passo em que a poluio da riqueza resulta dos processos de produo industrial.76 O termo ecodesenvolvimento teria sido lanado no Seminrio de Founex, em 1971, que foi uma reuniopreparatria para a Conferncia de Estocolmo. Cf. MARCHAL, Jean-Paul. De la religion de la croissence lexigence de dvellopment durable. In MARCHAL, Jean-Paul, QUENAULT, Batrice (dir.). LeDvellopment Durable: une perspective pour le XXIe sicle. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2005,p. 37. Entretanto, o termo no apareceu no relatrio final, denominado Founex Report (disponvel emhttp://www.isc.niigata-u.ac.jp/~miyatah/nu/2004/env_and_socity/founex_report1971.pdf, acesso em21/06/2008).77 Cf. LAYRARGUES, Philippe Pomier. Do Ecodesenvolvimento ao Desenvolvimento Sustentvel: evoluode um conceito? In Proposta, 1997, 25 (71), pp. 05-10.78 Verbete Ecodesenvolvimento. In KRIEGER, Maria da Graa, MACIEL, Anna Maria Becker, ROCHA,Joo Carlos de Carvalho, FINATTO, Maria Jos Bocorny, BEVILACQUA, Cleci Regina (orgs.). Dicionriode Direito Ambiental: terminologia das leis do meio ambiente. Porto Alegre: Ed. Universidade, UFRGS,Procuradoria Geral da Repblica, 1998, p. 146.

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A idia de ecodesenvolvimento foi evoluindo no correr do tempo, sendo lapidada, dentre

outros, por Ignacy Sachs, que se dedicou ao estudo dos princpios gerais e das estratgias

desta projeo do desenvolvimento79, cujas premissas, ao seu ver, seriam eficincia

econmica, justia social e prudncia ecolgica80. Alm disso, identificou as cinco

dimenses do ecodesenvolvimento em termos de sustentabilidade, que devem ser

simultaneamente satisfeitas81: a) sustentabilidade social, segundo a qual o

desenvolvimento deve ser subsidiado por uma viso do que seja uma boa sociedade, com

maior equidade na distribuio da renda e menor abismo entre ricos e pobres; b)

sustentabilidade econmica, viabilizada pela alocao e gerenciamento eficiente dos

recursos e fluxo constante dos investimentos pblicos e tambm privados; c)

sustentabilidade ecolgica, atravs da utilizao de vrias ferramentas dirigidas

preservao ambiental; d) sustentabilidade espacial, visando obter uma configurao mais

equilibrada entre as reas rurais e urbanas, com melhor distribuio territorial no s dos

assentamentos humanos mas tambm das atividades econmicas; e) sustentabilidade

cultural, que inclui a busca de razes endgenas dos modelos de modernizao e dos

sistemas agrcolas integrados, com processos de mudana que preservem a continuidade

cultural e utilizem o conceito de ecodesenvolvimento em diversas solues que se ajustem

s especificidades dos contextos scio-ecolgicos em que esto inseridas.

Alguns autores entendem que o ecodesenvolvimento e o desenvolvimento sustentvel so

sinnimos82, enquanto outros vem o segundo como a evoluo ou conceito aprimorado do

primeiro83.

79 Um panorama geral do pensamento de Ignacy Sachs, desde a reunio de Founex em 1971 at o ano 2000,pode ser encontrado na coletnea de artigos publicada com o nome de Rumo Ecossocioeconomia: teoria eprtica do desenvolvimento (organizao de Paulo Freira Vieira. So Paulo: Cortez, 2007).80 SACHS, Ignacy. Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. SP. Vrtice. 1986.81 SACHS, Ignacy. Estratgias de transio para o sculo XXI. In SACHS, Ignacy. Rumo Ecossocioeconomia: teoria e prtica do desenvolvimento. Organizao de Paulo Freira Vieira. So Paulo:Cortez, 2007, pp. 181-183.82 Por exemplo Elida Sguin (Desenvolvimento sustentvel. In MARCIAL, Danielle, ROBERT, Cinthia,SGUIN, Elida - coords. Direito do Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, pp. 69-81).83 O prprio Ignacy Sachs parece no dar muita ateno distino: Quer seja denominadoecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentvel, a abordagem fundamentada na harmonizao deobjetivos sociais, ambientais e econmicos no se alterou desde o encontro de Estocolmo at as confernciasdo Rio de Janeiro, e acredito que ainda vlida (...) (SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimentosustentvel. Rio de Janeiro: Garamond, 2002, p. 54). Em todo caso, para um panorama sobre asaproximaes e diferenas entre ecodesenvolvimento e desenvolvimento sustentvel vide, dentre outros,LAYRARGUES, Philippe Pomier. Do Ecodesenvolvimento ao Desenvolvimento Sustentvel: evoluo deum conceito? In Proposta, 1997, 25 (71), pp. 05-10.

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A sociedade tambm tem um importante papel na construo deste conceito. Podemos

destacar a Unio Internacional para a Conservao da Natureza84, conhecida pela sua sigla

em ingls IUCN, que tem tido um papel relevante na afirmao da idia de

desenvolvimento sustentvel. No ano de 1978, a 14 Sesso da Assemblia Geral da IUCN,

reunida em Ashkhabad, na ento Unio Sovitica, demonstrou preocupao com a

possibilidade de projetos petroqumicos em Palau, na micronsia, serem to destrutivos ao

meio ambiente marinho que pudessem impedir o desenvolvimento sustentvel85. Em 1980

aquela entidade elaborou um plano de ao que definiu e pugnou por uma poltica de

desenvolvimento sustentvel e pelo fortalecimento do direito ambiental86. No ano seguinte,

na 15 Sesso da sua Assemblia Geral, reunida em Christchurch, Nova Zelndia,

conclamou os governos a desenvolver estratgias que combinassem polticas para a

populao, produo e consumo, utilizao sustentvel dos recursos naturais e conservao

do meio ambiente, declarando ainda que a preservao ambiental e o desenvolvimento

sustentvel so compatveis, e que questes relacionadas conservao da natureza devem

ser integradas aos planos de desenvolvimento e aos processos decisrios de todas as

naes87. e em 1986 promoveu na cidade de Ottawa a conferncia Conservao e

Desenvolvimento: Implementando a Estratgia de Conservao Mundial, na qual a

necessidade de um desenvolvimento sustentvel luz da equidade foi largamente

debatido88. Na ocasio foram identificados cinco princpios do desenvolvimento

sustentvel e eqitativo, que seriam89: a) integrar desenvolvimento e conservao da

natureza; b) satisfazer as necessidades humanas fundamentais; c) buscar equidade e justia

84 A International Union for Conservation of Nature IUCN, fundada em 1948, provavelmente a primeiraorganizao voltada proteo do Meio Ambiente no mundo, e hoje a maior rede de profissionais ligados temtica da conservao, congregando mais de mil organizaes de cento e quarenta pases, comaproximadamente dez mil cientistas e estudiosos. Para uma descrio da entidade videhttp://cms.iucn.org/about/index.cfm, acesso em 21/06/2008.85 Disponvel em http://www.iucn.org/congress/2004/documents/IUCN_previous_Congress_outputs_en.pdf,acesso em 21/06/2008.86 Caring for the Earth: A Strategy for Sustainable Living. International Union for Conservation of Nature(IUCN), United Nations Environment Programme (UNEP), Worldwide Fund for Nature (WWF), 1980. Aobra ganhou edies posteriores. Apud ROBINSON, Nicholas A. The IUCN Academy of Environmental Law:Seeking Legal Underpinnings for Sustainable Development. In Pace Environmental Law Review, v. 21,2003-2004, pp. 325-353.87 Disponvel em http://www.iucn.org/congress/2004/documents/IUCN_previous_Congress_outputs_en.pdf,acesso em 21/06/2008.88 Os resultados podem ser conferidos em JACOBS, Peter, MUNRO, David A. (editores). Conservation withequity: strategies for sustainable development: proceedings of the Conference on Conservation andDevelopment: Implementing the World Conservation Strategy, Ottawa, Canada, 31 May - 5 June 1986.Gland: IUCN, 1987.89 ASSED, Gustavo. Desenvolvimento Sustentvel. In BARRAL, Welber (org.). Direito e Desenvolvimento:anlise da ordem jurdica brasileira sob a tica do desenvolvimento. So Paulo: Editora Singular, 2005, p.82.

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social; d) conquistar autodeterminao social e respeito pela diversidade cultural; e e)

preservar a integridade ecolgica. Os participantes definiram o desenvolvimento

sustentvel como um paradigma emergente derivado de dois outros paradigmas correlatos,

tambm voltados conservao, que seriam: a) a reao contra a teoria econmica do

laissez-faire, de forma a considerar os recursos naturais como externalidades e bens

inapropriveis; b) o conceito de gesto de recursos ambientais.

A noo de desenvolvimento sustentvel foi difundida a partir do famoso relatrio da

Comisso Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, denominado O Nosso

Futuro Comum, de 1987, conhecido tambm como Relatrio Brundtland90. Segundo o

relatrio, o desenvolvimento sustentvel aquele que prov as necessidades do presente

sem comprometer a possibilidade das geraes futuras proverem as suas prprias

necessidades91. Contm dois conceitos-chave, que so: a) o conceito de necessidades,

especialmente as principais necessidades da pobreza mundial, que devem ter prioridade; e

b) a conscincia das limitaes impostas pelo estado da tecnologia e da organizao social

em relao possibilidade ambiental de prover as necessidades presentes e futuras92.

Conforme o relatrio, os objetivos do desenvolvimento econmico e social devem ser

definidos em termos de sustentabilidade ambiental em todos os pases, sejam eles

desenvolvidos ou no. Alm disso, o desenvolvimento envolve uma progressiva

transformao da economia e da sociedade. Dessa maneira, afirma o documento que em

essncia o desenvolvimento sustentvel um processo de mudana, no qual a explorao

dos recursos, a direo dos investimentos, a orientao do desenvolvimento tecnolgico e a

mudana institucional esto todos em harmonia e melhoram o potencial presente e futuro

de satisfao das necessidades e aspiraes humanas93.

O relatrio foi feito a pedido das Naes Unidas, com o objetivo de estudar as questes

globais relativas ao meio ambiente e desenvolvimento, e sua forte repercusso mundial foi

90 Documento A/42/427 das Naes Unidas, denominado Our common future. Gro Harlem Brundtland foiPrimeira Ministra da Noruega e presidiu a comisso que redigiu o relatrio. Participou da comisso obrasileiro Paulo Nogueira Neto.91 Sustainable development is development that meets the needs of the present without compromising theability of future generations to meet their own needs. Relatrio Brundtland (A/42/427), p. 54.92 It contains within it two key concepts: the concept of needs, in particular the essential needs of theworlds poor, to which overriding priority should be given; and the idea of limitations imposed by the state oftechnology and social organization on the environments ability to meet present and future needs. RelatrioBrundtland (A/42/427), p. 54.93 In essence, sustainable development is a process of change in which the exploitation of resources, thedirection of investments, the orientation of technological development, and institutional change are all in

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um dos motivos que levaram realizao da Conferncia das Naes Unidas sobre

Ambiente e Desenvolvimento, na cidade do Rio de Janeiro, em 1992, conhecida como

UNCED-92 ou Rio-92. A Conferncia do Rio deu origem a vrios documentos: a) a

Agenda 2194; b) a Declarao do Rio de Janeiro para o Desenvolvimento e Meio

Ambiente95; c) a Declarao de Princpios sobre o Uso das Florestas96; d) a Conveno-

Quadro das Naes Unidas sobre Mudanas Climticas97; e) a Conveno sobre a

Diversidade Biolgica98. Desses, os dois primeiros nos interessam mais particularmente no

presente instante.

A agenda 21 foi adotada em um processo de consenso do qual participaram governos e

instituies de 179 pases, e veicula, em seus 40 captulos, um plano de ao, de natureza

global mas que deve ser adotado tambm no mbito nacional e local, que busca

implementar o paradigma do desenvolvimento sustentvel em todas as atividades humanas

que produzem impacto ambiental99. A construo de um novo paradigma ambiental para o

sculo XXI j se infere a partir da prpria denominao de Agenda, a qual remete idia

de um projeto de mudanas para o futuro. O prembulo do documento reconhece que o

mundo sofre de graves problemas, com disparidades entre as naes e no interior delas,

agravamento da pobreza, da fome, das doenas e do analfabetismo, alm da deteriorao

contnua dos ecossistemas dos quais depende o bem-estar de todos, e prope que se planeje

o desenvolvimento a partir de uma viso que objetive a sustentabilidade, traduzida no

equilbrio na utilizao dos recursos ambientais e na justia social. A partir da integrao

das preocupaes relativas ao meio ambiente e ao desenvolvimento e da dedicao de

maior ateno a esse tema, a Agenda 21 entende ser possvel satisfazer as necessidades

bsicas, elevar o nvel da vida de todos, proteger e gerenciar mais eficazmente os

harmony and enhance both current and future potential to meet human needs and aspirations. RelatrioBrundtland (A/42/427), p. 57.94 A/CONF.151/26.95 A/CONF.151/26 (Vol. I). Texto original disponvel emhttp://www.unep.org/Documents.Multilingual/Default.asp?documentid=78&articleid=1163, acesso em12/06/2008. O texto em portugus pode ser encontrado no sitehttp://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/MeioAmbiente/texto/texto_2.html, acesso em 12/06/2008.Um balano feito em 1997 sobre a aplicao e implementao dos princpios pode ser encontrado documentoE/CN.17/1997/8.96 A/CONF.151/26 (Vol. III).97 A Conveno foi promulgada no Brasil pelo Decreto n 2.652, de 01.07.98.98 Promulgada no Brasil pelo Decreto n 2.519, de 16.03.98.99 A Agenda 21 foi amplamente divulgada e publicada em vrios idiomas. A verso em portugus estdisponvel no site do Ministrio do Meio Ambiente:http://www.mma.gov.br/index.php?ido=conteudo.monta&idEstrutura=18&idConteudo=575, acesso em28/06/2008. O texto original em ingls est disponvel no site das Naes Unidas:http://www.un.org/esa/sustdev/documents/agenda21/english/agenda21toc.htm, acesso em 28/06/2008.

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ecossistemas e construir um futuro mais prspero e seguro. Tais metas, entretanto, so

inalcanveis pelas naes se consideradas isoladamente, mas factveis atravs de uma

associao mundial em prol do desenvolvimento sustentvel, a qual deve ter como

premissas a Resoluo 44/228 da Assemblia Geral de 22 de dezembro de 1989, adotada

quando da convocao da Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento, e da aceitao da tese de que se faz necessrio adotar uma abordagem

equilibrada e integrada das questes que dizem respeito ao meio ambiente e ao

desenvolvimento, especialmente nos processos decisrios.

A Declarao do Rio de Janeiro para o Desenvolvimento e Meio Ambiente, reafirma a

Declarao da Conferncia das Naes Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, adotada

em Estocolmo em 16 de junho de 1972, e em 21 princpios define parmetros para o

Direito Ambiental Internacional e estabelece direitos e responsabilidades para os Estados.

Alguns merecem destaque. Logo no primeiro princpio coloca os seres humanos no centro

das preocupaes com o desenvolvimento sustentvel, reconhecendo o direito a uma vida

saudvel e produtiva, em harmonia com a natureza. O princpio 4 determina que para

alcanar o desenvolvimento sustentvel necessrio que a proteo ambiental seja

considerada parte integrante do processo de desenvolvimento, no podendo ser tratada de

maneira isolada. Por sua vez, o princpio 5 afirma ser requisito indispensvel para o

desenvolvimento sustentvel que todos, Estados e indivduos, cooperem na execuo da

tarefa essencial de erradicar a pobreza, como forma de reduzir as disparidades nos padres

de vida e de atender melhor s necessidades da maioria da populao mundial. A

prioridade, conforme o princpio 6, deve ser o atendimento das necessidades dos pases em

desenvolvimento e daqueles ecologicamente mais vulnerveis. O princpio 8, de sua vez,

preconiza que para alcanar o desenvolvimento sustentvel e uma qualidade de vida mais

elevada os Estados devem reduzir e eliminar padres insustentveis de produo e

consumo, bem como promover polticas demogrficas adequadas.

Verifica-se, assim, que o desenvolvimento sustentvel procura conciliar o progresso

tcnico com a natureza100, visando evitar que a fruio do necessrio satisfao das

necessidades atuais impea as futuras geraes de terem suas prprias necessidades

100 Essa uma preocupao antiga e que perpassa a filosofia em geral. Como lembra Paulo de Bessa Antunes,por exemplo, A superao da alienao [o afastamento do Homem de sua essncia verdadeira], por meio deum projeto poltico que levasse o Homem a ter suas necessidades satisfeitas, para ele [Jean-JacquesRousseau] seria alcanada pela harmonia entre a natureza e a civilizao (ANTUNES, Paulo de Bessa.Dano Ambiental: uma abordagem conceitual. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2000, pp. 35-36).

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satisfeitas em razo da degradao ambiental. H, assim, ntida e ntima correlao entre a

preservao do meio ambiente e a possibilidade das atuais e futuras geraes usufrurem

todos os direitos humanos101.

Nesse sentido, Cristiane Derani anota que segundo os autores em geral a idia de

desenvolvimento sustentvel envolve duas condies: uma que pode ser chamada de

proporcionalidade econmica, a qual diz respeito composio de valores materiais,

envolvendo interesses particulares de lucros; e outra dirigida a uma proporcionalidade

axiolgica, que coordena valores de ordem moral e tica relativos justa distribuio da

riqueza entre os pases e no mbito interno de cada um deles, e a interesses de bem-estar

coletivo. Essas duas condies, ainda segundo a autora, apesar de necessrias no so

suficientes para a construo da teoria do desenvolvimento sustentvel, cujo contedo

passa tambm por uma idia de relao intertemporal entre a atividade econmica atual e

os resultados que dela podero retirar as geraes futuras. Por isso, a expanso da atividade

econmica deve se vincular a uma sustentabilidade de dupla natureza: econmica e

ecolgica, em uma correlao de valores na qual o mximo econmico seja um reflexo do

mximo ecolgico102.

Vale registrar, ainda que rapidamente, que muitos autores so cticos quanto

possibilidade real de implementao de um desenvolvimento sustentvel, o qual seria uma

proposta ecolgica neoliberal revestida de roupagem reformista103, ou algo que tenta

conciliar duas noes contraditrias entre si104. H, tambm, quem aponte a

incompatibilidade entre o desenvolvimento sustentvel e a globalizao105. Outros

denunciam a mutilao e deturpao do conceito de desenvolvimento sustentvel pela

101 Sobre o tema, vide FONSECA, Flvio Eduardo. A convergncia entre a proteo ambiental e a proteoda pessoa humana no mbito do direito internacional. In Revista Brasileira de Poltica Internacional, v. 50,n. 1, jan./jun. 2007. Braslia: Instituto Brasileiro de Relaes Internacionais, 2007, pp 121-138.102 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econmico. So Paulo: Max Limonad, 1997, pp. 127-128.103 Cf. LAYRARGUES, Philippe Pomier. Do Ecodesenvolvimento ao Desenvolvimento Sustentvel:evoluo de um conceito? In Proposta, 1997, 25 (71), pp. 05-10.104 Segundo Ignacy Sachs, esta a posio dos autores malthusianos como Herman Daly (SACHS, Ignacy. Odesafio do meio ambiente. In SACHS, Ignacy. Rumo Ecossocioeconomia: teoria e prtica dodesenvolvimento. Organizao de Paulo Freira Vieira. So