crendices supersticoes e herancas culturais

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 Crendices, superstições e heranças culturais. Consciência mítica. Certo filosofo disse uma vez que inexiste coisa mais bem distribuída no mundo do que o bom senso. Por aí há muitas explicações sobre o que exatamente ele quis dizer, apesar disso, uma das que é aceita pela maioria, eu penso, é de que o bom senso é relativo. Digo isso por que acredito que o bom senso, como produto da razão, depende de cada indivíduo. É só parar um pouco e perceber que o mundo à nossa volta está cada vez mais complicado pela falta de bom senso, porém, a intenção de estabelecer o certo ou errado sobre o bom senso não é o principal objetivo deste livro. Quero lhes contar uma história que, em partes, envolve o bom senso, crendices populares e uma dose de superstição. Essa última é aquela que veio como herança de nossos pais; pelo menos daqueles que assim como eu, tem mais de 30 anos e tem família de origem européia. A minha infância foi sempre marcada por acontecimentos ligados às crendices  populares. Minha avó, dona Catarina, desde a mais remota lembrança que eu tenho dela, sempre se via às voltas com algumas questões desse tipo, e adorava me contar tudo. Ela era descendente de alemães, que não tinham muita instrução e sabiam mesmo é labutar a terra: plantar, colher, armazenar e consumir. Atualmente isso é quase que improvável em nossos dias. Pergunte aos seus amigos quantas pessoas ou famílias eles conhecem que vivem dessa maneira. É claro que um ou outro vai dizer que tem um amigo ou conhecido que ainda mantêm esse hábito. Ou melhor, tem o privilégio de manter esse estilo de vida. Hoje a agricultura dita familiar é quase toda comercial, inclusive por falta de espaço. Considerando que o espaço é um produto cada vez mais em falta em nosso mundo, certamente estamos no rumo de nos tornarmos uma China na América, cuja  população já não cabe em seu território. Bom, deixando de lado essas explicações  pormenorizad as, é preciso entender que uma vida condicionada aos sabores da natureza, a qual determinava os períodos de plantio e colheita, era uma vida muito dura. Se a natureza resolvesse castigar as pessoas como uma geada mais forte ou uma chuva torrencial, qual era a atitude daqueles que viviam no campo? Recomeçar o plantio e torcer para que não acontecesse novamente? Creio que sim, em partes, pois os antigos eram pessoas muito mais trabalhadoras que as de hoje e não eram de desistir, pois não tinha tempo de pensar nisso. O que eles faziam é recomeçar, sim, mas sempre com o  pensamento voltado na seguinte questão: que fizemos de errado neste ano? Por que fomos castigados por Deus? Dava-se uma importância significativ a às questões divina s,  por isso era comum antigamente a realização de novenas. Algumas cidades em nosso  país ainda perpetuam essa tradição, porém, as novenas sempre foram formas de se  penitenciar e pedir proteção. Isso não é novo, já que mesmo os pagãos da época do  paleolítico já agradeciam por suas colheitas ou realizavam rituais de proteção. A diferença destes para aqueles é essencialmente uma: os tipos de divindades. Para os  povos paleolíticos tudo estava interligado à natureza. Para os nossos antepassados mais recentes tudo era questão de dogma: Deus está furioso, Deus não gostou de tal coisa, Deus quer que façamos isso ou aquilo... Essa foi uma mentalidade que criou um terreno fértil para as mais incríveis crendices populares. Enfatizo que a crendice mencionada aqui não está carregada de negativismo. Não há intenção de menosprezá-la, até porque, no meu entendimento, ela é uma forma de conhecimento e como tal, merece toda

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Crendices, superstições e heranças culturais.

Consciência mítica.

Certo filosofo disse uma vez que inexiste coisa mais bem distribuída no mundodo que o bom senso. Por aí há muitas explicações sobre o que exatamente ele quis dizer,apesar disso, uma das que é aceita pela maioria, eu penso, é de que o bom senso érelativo. Digo isso por que acredito que o bom senso, como produto da razão, dependede cada indivíduo. É só parar um pouco e perceber que o mundo à nossa volta está cadavez mais complicado pela falta de bom senso, porém, a intenção de estabelecer o certoou errado sobre o bom senso não é o principal objetivo deste livro. Quero lhes contar uma história que, em partes, envolve o bom senso, crendices populares e uma dose de

superstição. Essa última é aquela que veio como herança de nossos pais; pelo menosdaqueles que assim como eu, tem mais de 30 anos e tem família de origem européia.

A minha infância foi sempre marcada por acontecimentos ligados às crendices populares. Minha avó, dona Catarina, desde a mais remota lembrança que eu tenho dela,sempre se via às voltas com algumas questões desse tipo, e adorava me contar tudo. Elaera descendente de alemães, que não tinham muita instrução e sabiam mesmo é labutar a terra: plantar, colher, armazenar e consumir. Atualmente isso é quase que improvávelem nossos dias. Pergunte aos seus amigos quantas pessoas ou famílias eles conhecemque vivem dessa maneira. É claro que um ou outro vai dizer que tem um amigo ouconhecido que ainda mantêm esse hábito. Ou melhor, tem o privilégio de manter esseestilo de vida. Hoje a agricultura dita familiar é quase toda comercial, inclusive por faltade espaço. Considerando que o espaço é um produto cada vez mais em falta em nossomundo, certamente estamos no rumo de nos tornarmos uma China na América, cuja

 população já não cabe em seu território. Bom, deixando de lado essas explicações pormenorizadas, é preciso entender que uma vida condicionada aos sabores da natureza,a qual determinava os períodos de plantio e colheita, era uma vida muito dura. Se anatureza resolvesse castigar as pessoas como uma geada mais forte ou uma chuvatorrencial, qual era a atitude daqueles que viviam no campo? Recomeçar o plantio etorcer para que não acontecesse novamente? Creio que sim, em partes, pois os antigoseram pessoas muito mais trabalhadoras que as de hoje e não eram de desistir, pois nãotinha tempo de pensar nisso. O que eles faziam é recomeçar, sim, mas sempre com o

 pensamento voltado na seguinte questão: que fizemos de errado neste ano? Por quefomos castigados por Deus? Dava-se uma importância significativa às questões divinas, por isso era comum antigamente a realização de novenas. Algumas cidades em nosso país ainda perpetuam essa tradição, porém, as novenas sempre foram formas de se penitenciar e pedir proteção. Isso não é novo, já que mesmo os pagãos da época do paleolítico já agradeciam por suas colheitas ou realizavam rituais de proteção. Adiferença destes para aqueles é essencialmente uma: os tipos de divindades. Para os

 povos paleolíticos tudo estava interligado à natureza. Para os nossos antepassados maisrecentes tudo era questão de dogma: Deus está furioso, Deus não gostou de tal coisa,Deus quer que façamos isso ou aquilo... Essa foi uma mentalidade que criou um terrenofértil para as mais incríveis crendices populares. Enfatizo que a crendice mencionada

aqui não está carregada de negativismo. Não há intenção de menosprezá-la, até porque,no meu entendimento, ela é uma forma de conhecimento e como tal, merece toda

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consideração e respeito. Porém, a mentalidade mítica, se assim podemos chamá-la,tende a achar resposta para as coisas sempre ligadas à religião. É algo muito enraizadoem nossa cultura até hoje. Se você tiver oportunidade de ir a alguma cidade do interior do Paraná ou do Brasil, vai verificar in loco o que estou dizendo.

Bom, minha vó, como disse um pouco antes, sempre me contava essas histórias

ou crendices que geralmente tinha algo de fantástico. Eu adorava cada uma delas! Parauma criança, não tem coisa mais curiosa do que tentar imaginar que em determinadolocal pode estar enterrado um pote de ouro; que um bicho esquisito foi visto rondandoas pastagens; que o simples piar de uma coruja pode trazer mau agouro ou, a melhor delas: que espíritos dos mortos podem aparecer para os vivos. É claro que nem todacriança gosta desta última parte e da outra ligada aos bichos esquisitos que rondam por aí. Eu, particularmente, sempre gostei dessas histórias bem escabrosas. Não gosto muitodaquelas histórias folclórica como as do Saci Pererê e tal. Prefiro a da Mula semCabeça, do Curupira e por aí vai. Não por que eu seja um sádico, mas é por que essashistórias têm mais ação. Vejam se eu não tenho razão! Olhe a violência dos jogos devídeo game, as diversas profissões que a Barbie tem e a parafernália de brinquedos

tecnológicos que nos rodeiam. A ação é chamativa. Dias atrás vi um menino brincandocom um helicóptero daqueles elétricos, eu creio que realmente voava. Fiquei pensandona minha infância, regada a fazer pipas de bambu e carrinhos de lata de leite em pó. Nãoque fosse menos prazerosos do que o super helicóptero, só eram diferentes. Então, tudoisso corrobora para o entendimento de que algumas histórias antigas não eramentendidas necessariamente como mentiras. As pessoas eram diferentes, o ambiente eradiferente, tudo era muito mais lento, não necessariamente chato, porém, mais digerível,

 por assim dizer, do que essa rotina maluca de hoje. Experimente falar com uma criançade 6 ou 7 anos sobre a Cuca ou Lobisomem. Ela vai rir da sua cara e vai dizer que vocêé bobo e que essas histórias não têm nada a ver, pois no Google tem a explicação detudo. Pelo amor do meu senhor! Fico me lembrando aqui com meus zíperes - pois

 botões quase não há - de quando eu estava na quarta séria do antigo primário, e nafrente da minha escola querida, Ermelino de Leão, havia um pipoqueiro que todos

 juravam ser o lobisomem. Lembro que o coitado era feio, mas para ser um lobisomem penso que ainda faltava muito! Por que acreditávamos nessas coisas naquela época? Oque mudou? Bom, cada um tem sua opinião e uma explicação pra isso. Prefiro pensar que éramos felizes e que hoje as coisas são diferentes por que tudo muda e tem quemudar. Por isso temos adaptações de clássicos e novas histórias que à esteira damodernidade, encantam os que são dessa geração.

Eu começo a divagar sobre essas coisas e me pego sempre analisando oscontextos, os fatos. Eu não era assim, adquiri esse hábito não faz muito tempo. Sempre

fui muito curioso e sempre paguei um preço por isso. Quando criança eu sempre mearrebentava jogando um jogo diferente e sempre fazia inimigos e amigos por tentar algoinusitado, quando ninguém tinha coragem para fazê-lo. Penso que minha infância foimuito mais produtiva do que da minha filha, por exemplo. Não que ela não tenha suasoportunidades, mas é por que as coisas são mais fáceis para ela. Primeiro porque ela tema mim (sem querer ser pedante), que sempre a oriento, converso, explico, brigo, brinco

 – e como brincamos! – escuto, acompanho, divido e principalmente: dou exemplo. Issofaz uma diferença na vida da criança que só quem tem pai sabe. Eu não sei através deexemplo, mas por teoria, pois perdi meu pai muito cedo. O fato é que entendermosquem somos pode ajudar a explicar boa parte das superstições e histórias populares quenos cercam. Cada família de cada cidade e de cada Estado produz história. A tradição é

sem dúvida uma das mais prodigiosas fontes de conhecimentos fantásticos. Não háquem não conheça alguma crendice ou fato esquisito.

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Falando nisso, há dias eu estava passeando pela programação da TV, e quevergonha, diga-se de passagem, só vi lixo. Então, quando eu já estava quase sendoobrigado a desligá-la fui surpreendido por um documentário a respeito de uma cidademineira, da qual não me lembro o nome, cuja população era muito supersticiosa e crentede que tudo que se contava desde as épocas mais remotas, podia ser verdade. Sério,

senti-me impelido a assistir aquele programa até o fim! Havia histórias de noivas quesaiam de sua tumba à noite para pegar os incautos; era um bicho que ninguém sabiacomo era ou nunca tinham visto, o qual atormentava as pessoas em dias de lua cheia;era não sei o quê que apareceu não sei aonde e por aí vai.. Eram históriassaborosíssimas! Aí de você que fica fazendo pouco caso hein?! Você, que pensa queisso é apenas folclore, está muito enganado. Esse repertório de histórias faz parte danossa cultura. Não conheço ninguém que já não tenha ouvido ou que não tenha umahistória assim pra contar. Sem entrar nas análises freudianas ou junguinianas sobre isso,é certo que a cultura de um povo é muito enriquecida e a torna muito singular por conter relatos, casos e “causos”, como se diz aqui no Paraná. Aliás, a nossa colonização nosrendeu muitas histórias em que boa parte envolve alguma coisa ligada à religião. Muito

disso é por causa daquilo que falei anteriormente, sobre o fato de que as pessoasatribuíam tudo ao divino.

O legal é que mesmo sabendo ou não que tudo era lenda, as pessoas mantinhamum respeito por essas coisas. Recordo-me de minha avó, quando contava sobre os potesde ouro que estavam enterrados próximos a casa dela. Lembro que sentávamos navaranda em noites de verão para tomar limonada. Pense em uma casa bem simples, demadeira, não vou dizer isolada, porém, com vizinhança restrita. Assim era a casa dela.

 Na varanda, havia duas cadeiras de madeira forradas de palha, bem como alguns poucostapetes feitos de pacote de leite. Isso mesmo, feito com pacote de leite. Isso sim erasustentabilidade!! minha avó cortava aqueles saquinhos de leite em pequenas tiras efazia tapetes! E os balaios feitos de capim? Sabe aquele tipo de capim que nasce em

 beira de estrada? Ela os colhia ainda verdes e deixava secar na varanda. Eu até tenteiaprender como se fazia, mas infelizmente não consegui. O interessante é que eu nuncavi esse tipo de objeto em outro lugar. Ainda temos alguns desses na casa de minha mãe.São heranças que os antigos nos legavam e que em alguns casos morrem com eles,como é o caso desses balaios, eu penso.

Bom, voltando à varanda, lembro-me que sentávamos à noite e ficávamosconversando sobre coisas do cotidiano. Às vezes minha avó via algo brilhante no meiodo mato e dizia que poderia ser o brilho do ouro enterrado. Hoje até consigo imaginar oque passava na cabeça dela vendo algum brilho no meio de um matagal. Naquela épocaquase não havia luz elétrica nas ruas. O lugar era um verdadeiro breu à noite. Logo, isso

suscitava várias explicações. Arrisco a dizer que até fomentava, por assim dizer, certacondição mítica. Eu, particularmente, como tinha um temperamento um pouco maiscurioso gostava de imaginar os bichos que à noite andavam por ali; lembro de escutar ocoaxar de uma rã perto da casa, e o legal era o jeito que ela fazia, como se estivessefalando comigo! Era muito divertido aquele unnnhéééé. Já de tarde, com o por do sol,havia aqueles passarinhos que vivem no meio dos campos onde há painas. Eu não seinem como descrever aquele som. Sei que pareciam dois assovios consecutivos tipo  fi-

 fí.. bem seco, sem prolongamento...sei lá. Penso que tudo corroborava para deixar acoisa interessante. Esses sons, cheiros, dias que se arrastavam e noites que pareciammais noites que as de hoje. Era tudo muito simples e prático. As coisas eram bemdefinidas; dormíamos muito cedo e acordávamos muito cedo; nossas tarefas tinham que

ser feitas durante o dia, pois à noite era muito escuro e não havia luz suficiente. Eu brincava no mato, pescava, carpia, fazia brinquedos com barro do olaria que existia ao

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lado da casa da minha avó, pipas, arco e flecha e tudo que se pode imaginar que umacriança largada fazia. Digo “largado” no bom sentido, pois no geral eu passava minhasférias escolares na minha avó. Eu vivia com bicho de pé e piolhos! Não tinha como nãoter, pois vivíamos numa certa pobreza que hoje eu consigo entender. O melhor é queisso suscitava uma capacidade de empreender brincadeiras e fazer brinquedos que me

são úteis até hoje. Naquela época nós não tínhamos acesso a muitos brinquedosindustrializados e tal. Fazíamos brinquedos com tudo que aparecia. Mas o melhor mesmo era brincar no mato. Por isso citei anteriormente a questão dos cheiros, gostos,formas. Quando íamos nadar no rio, não tinha esse estresse que hoje em dia toma contados pais; vivíamos livres. Às vezes rolava alguma encrenca, lógico, mas nada deassustador. Hoje não podemos nem sair à rua: corre-se o risco de ser atropelado ouassaltado. Passávamos o dia inteiro brincando e às vezes só voltávamos para casa detardezinha. O almoço eram as frutas colhidas direto do pé. Lembro-me até de épocas emque íamos caçar Tatu, e atualmente não ouço nem mais falar no nome desse bicho! Poiseu comia Tatu, Rã, e até Sabiá. Desculpe aos leitores de estomago mais frágil, eu seique parece bizarro comer esses bichos, mas naquele contexto isso era normal. Devo ter 

comido até coisa bem pior, só que não me recordo.

Particularidades de família

Bom, eu falei de várias coisas que para muitos não passam de histórias e paraoutros, lembranças de infância. Tem quem se solidarize comigo, pois viveu coisasemelhante, como também teve gente que ficou pensando em como eu sobrevivi paracontar tudo isso, depois de ter comido aquelas coisas. O fato é que eu não tenho dúvidade que o tipo de vida e o ambiente formam a personalidade das pessoas. Quem teveoportunidade de ter uma infância “largada” como a minha, tem muito maisdesenvolvido o senso de liberdade do que uma criança confinada a um quarto e a umcomputador. Não que minha vida tenha sido melhor do que qualquer criança, mas sem

 pestanejar eu posso afirmar: foi diferente. E no que ela foi diferente? Principalmentenos contextos, nas formas de se encarar as situações, nas interações e nas orientaçõesque recebi. Que atire a primeira pedra aquele que acha que as crianças de hoje são maisobedientes aos pais do que as de antigamente! Que elas são mais espertas isso eu não

 posso negar, porém, suas aptidões são funcionais somente no contexto em que vivem.Minha filha, por exemplo, não sabe nem cavoucar a terra para tirar uma minhoca,

enquanto na minha infância eu chegava até a comê-las!Sei que isso pode não ter umaserventia atualmente, mas.. Desculpe mais uma vez aos desavisados, mas essa ênfasenesse ponto gastronômico se fez necessária para que entendam que eu era bom nocavucar! Lembro-me que bastava um olhar atravessado de minha mãe ou minha avó

 para que eu imediatamente parasse de fazer uma coisa desagradável. Hoje está maisdifícil de lidar com os filhos.

Falamos em contexto, em esperteza e na formação do adulto. Sim, isso tudo quefoi falado aqui, até o momento, diz respeito à nossa formação: a minha, a sua. Claro querespeitadas as diferenças, nossas crianças hoje têm muito mais visão singularizada dascoisas. Nós há alguns poucos anos, tínhamos uma visão mais espacial de tudo; maisgeneralista. Nós também éramos um pouco mais trouxas, eu acho, pois acreditávamos

em quase tudo que nos diziam. Vejam que novamente os contextos corroboram paracriar em nós aqueles conceitos míticos de que falei anteriormente. Lembrei-me daquelas

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superstiçõezinhas básicas que nossos avós nos ensinaram sobre algumas coisas, como por exemplo: jamais deixar chinelos virados com a sola pra cima; não abrir guarda-chuva dentro de casa, sob pena de não se casar ou não crescer; deixar vassoura atrás da

 porta para espantar visitas indesejadas; nunca apontar o dedo para estrelas – nasceverruga; e mais recentemente: não deixar bolsa no chão sob risco de perder dinheiro.

Alguém me falou sobre uma de passar a gordura do bacon na verruga e depois enterrar o pedaço em um formigueiro.. Caramba, dessa eu nunca tinha ouvido falar! Na verdade, posso me estender por páginas e páginas sobre exemplos como esses. Cada um de nós jáouviu algo semelhante ou variações dessas crendices. No geral, algumas até sãoencaradas como simpatias, outros como feitiços e até benzimentos. Quem já não teveum parente que já precisou dos serviços de uma benzedeira? Isso ainda é muito forte nointerior de qualquer cidade brasileira. Eu não sei vocês, mas às vezes me pego pensandonesse tipo de coisa. Tenho uma tendência a não acreditar nisso, mas, ao mesmo temponão consigo simplesmente esquecer. É um vínculo tão forte que me pega de supetão eme tira a racionalidade. Isso é cultura. Isso é fazer parte de uma história... é que osantigos chamavam de raízes, eu penso.

Falando em benzimentos, gostaria de lhes contar uma historia que talvez seja amais fantástica delas. É fantástica porque me envolve direta e indiretamente. Envolvetambém os da minha família e até gente estranha. Ficou meio confuso isso, não? Bom,vou explicar melhor. É que de tudo o que falei anteriormente, muitas pessoas se viramrelembrando sua infância e alguns rememorando algo parecido com o que contei. O fatoé que geralmente essas histórias nos ligam sentimentalmente falando, visto que envolvecoisa de nossa infância. Bom, sabendo disso, posso afirmar que desde a minha tenrainfância eu sempre soube de uma mesa que minha avó possuía cujo dom principal nãoera servir de apoio para alimentos, pois nem sequer parava em pé sozinha! Na verdade amesa fica encostada em um canto do quarto da casa de minha avó. O pouco que sei delaé que foi feita para uma finalidade específica. Finalidade essa que já perdura a mais de100 anos. Sim, pelos cálculos de minha querida avó, essa mesa tem pelo menos 100anos. Minha avó dizia que seus pais já a possuíam desde que ela era criança. Se a donaCatarina, que Deus a tenha, morreu aos 85 anos, creio que o que ela dizia tinhafundamento. O fato é que esse “artefato” está na família a mais de três gerações. Antesde contar pra quê esse negócio serve, preciso contextualizá-lo amigo leitor, sobre uma

 pequena história que nos envolve, se você for paranaense, é claro.Em algumas cidades do nosso Estado há uma lenda sobre certo monge chamado

João Maria. Segundo essa lenda João era um eremita, aquelas pessoas que não tinhameira nem beira, como se dizia, e viviam por aí de contemplação e rezas. A história nosconta que ele era considerado um profeta milagreiro. Um de seus milagres mais comuns

era fazer nascentes de água, comumente conhecidas como olho d´água. Dizia-se que seele chegasse a uma cidade e fosse bem recebido, tocava a terra com seu cajado e nesselugar nascia uma fonte. Existem algumas dezenas dessas fontes perdidas por essesrincões do Estado. Aqui, próximo a Curitiba, na cidade de São Mateus tem uma fontedessas. Quem já ouviu falar na gruta do monge na Lapa? Pois é, essa gruta tem essenome porque dizem que o santo morou nela por um tempo, e também tem uma fonte lá.Mas ele também era conhecido por ser muito severo. Perto da cidade de MarechalMallet, há relatos de que ele amaldiçoou duas cidades vizinhas, que desde então nuncase desenvolveram e não passam de um matagal só. O cara era brabo mesmo! Era severo,mas era milagreiro, diz a lenda.

Bom, é nesse contexto que primeiramente lhe digo: há dezenas de outras

histórias envolvendo João Maria até no Rio Grande do Sul, onde supostamente ela fora

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morto por soldados que participaram da Guerra do Contestado. Suas histórias seestendem também por Santa Catarina, nas cidades próximas à fronteira com o Paraná.O fato é que minha avó morou algum tempo em Rio Negrinho-SC, aonde andava JoãoMaria. Ou seja, minha avó acabou por conhecer essa figura quase mitológica!Antigamente era costume dos viajantes passarem por algum vilarejo e pedir comida aos

moradores. Não foi diferente com João Maria. Minha avó me disse que certa feita elechegou à casa dela e pediu água. Minha avó já aproveitou e lhe serviu também café. Naocasião ela era pequena, ela disse não se lembrar qual sua idade na época, mascomentou que lembrava bem dele. Não era uma figura muito carismática, porém, as

 pessoas da cidade o conheciam e até o temiam. Minha avó, como sempre foi temente aDeus, sempre o tratou com respeito. Na verdade, nunca vi minha avó ser grosseira comninguém. Bom, considerando que até aqui o simples fato de minha avó ter conhecidoeste homem já é algo muito singular, porém, retomando a narrativa não posso deixar delhes contar em que contexto a mesa, conforme disse anteriormente, vai entrar em cena.

 Na época em que isso aconteceu era comum as pessoas pedirem a João Mariaque realizasse uma cura, fizesse uma prece ou abençoasse as crianças. Além de ter 

conhecido este santo, minha avó obteve dele duas graças que podemos chamar literalmente de Graça, com maiúscula mesmo. Um dos oito filhos de minha avó, meu tioOrinde, quando criança sofria com uma alergia no nariz que lhe causavam feridas.Minha avó conta que em uma de suas passagens pela cidade João Maria passou na casadela para pedir água quando viu (reparou) na ferida no nariz do menino. Minha avódisse que ele simplesmente olhou quase que indiferente para meu tio, que na época tinhauns sete anos, e perguntou o que era aquilo no nariz dele. Na ignorância minha avóapenas disse que era uma ferida que a muito persistia e não dava sossego ao seu filho.Então João Maria falou que aquilo iria passar.. Simplesmente disse que na manhãseguinte ele estaria melhor. Caro leitor, eu não preciso nem dizer o desfecho da história,certo? Pois bem, mesmo assim lhe digo que na manhã seguinte meu tio, que Deu otenha também, não tinha uma mancha sequer no nariz. Isso aconteceu há muitos anos,

  porém, minha avó sempre lembrava dessa história. Podem alegar o que quiser eargumentar que a ferida já devia estar curada, que a pomada coincidentemente fizeraefeito e tal. Não importa. As coisas aconteceram de tal forma que era difícil nãoacreditar nessa história. Eu na verdade, nunca duvidei.

A outra graça que minha avó recebeu pode ser considerada a que mais perdurou, pois até hoje ainda está na família. Lembram da mesa citada anteriormente? Pois bem,não sei exatamente em que momento e se a mesa foi realmente criada para algumafinalidade específica. O fato é que João Maria antes de sair da cidade para nunca maisvoltar, benzeu a mesa de minha avó de tal forma que lhe conferiu certos “poderes”.

Digo poderes pela falta de um substantivo-adjetivo para explicar o que a mesa faz. Elaestá mais próxima de um oráculo do que de uma mesa propriamente dita, por issochamei-a de artefato anteriormente Lembra-se que comentei que a mesa mal parava em

  pé? Pois é, justamente por ela ter essa flexibilidade é que se podem obter delas“respostas”, que na sua maioria são quase que expressas através de sinais demovimento. É como se a mesa fizesse os movimentos de sim e não que nós fazemosgeralmente com a cabeça. Se a resposta é positiva, o tampo move-se no sento vertical(cima -baixo) se for negativa o tempo roda (esquerda-direita). E quando a resposta não

 pode ser considerada sim ou não, aí o tampo da mesa se move como que num rebolado.Já reparou quando se joga uma moeda e a faz girar, e depois de um tempo a velocidadevai diminuindo e ela começa a “cambalear” até parar? É esse o movimento que a mesa

faz. Eu sei que é bizarro, mas é exatamente assim que acontece. Tem vezes também emque ela anda (ou cambaleia), apoiada por alguém, é claro, pois se ele andasse sozinha

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vai que ela resolvesse fugir de casa? Tudo bem que para ela seria difícil descer a escadatipo caracol que sai do meu quarto e chega à cozinha. Eu mesmo tenho que tomar umcuidado ferrenho para não descer rolando escada abaixo, quanto mais a mesa com os

 pezinhos que tem!Bom, deixando claro que a coisa aqui não é brincadeira, saliento que a mesa,

 pensando bem, foi concebida para ter a função que tem. Eu cheguei a essa conclusãodepois de inquirir minha mãe sobre detalhes da construção dela. Pode-se dizer que elafoi feita com o mais rigoroso processo de funcionalidade: A flexibilidade, a pequenaárea dos pés, a altura e a forma são mais do que adaptáveis aos meios em que ela foiconcebida. Minha avó era pequena, um pouco mais do que um metro e cinqüenta dealtura. A flexibilidade da mesa em alguns momentos confere a ela algo jamais visto,

 pois é um oráculo que dificilmente lança respostas obscuras. A única questão, talvez,que não se encaixe bem no conceito de funcionalidade são seus pequenos pés. Eles e oresto do “corpo” não permitem que ela consiga parar em pé. Por isso para andar ela

 precisa de alguém para guiá-la e não deixa-la cair. Acho que é uma certa forma deligação íntima com a pessoa que a interpreta, no caso, minha mãe, hoje em dia. Quando

eu era menor dormíamos na cama da minha avó, que era enorme. Recordo-me deacordar e às vezes não ver a mesa no local habitual onde ela deveria estar. Minha avódizia que a mesa tinha andado e ido até a sala ou coisa assim. Fico pensando que ela só

 pode ter ido voando ou rodando, pois caminhando, jamais!Fiz questão de enfatizar que hoje em dia é minha mãe que tem o privilégio, por 

assim dizer, de falar com a mesa. De uma penca de oito filhos apenas minha mãeinterpreta os movimentos da mesa. Nem minha querida e saudosa tia Alzira, que erauma mulher muito boa, tinha esse dom. Confesso que já tentei diversas vezes falar, masa mesa nem se mexe. Minha mãe diz que é por que eu duvido da mesa, por isso ela nãoquer falar comigo. Eu não posso dizer que ela está errada. Mesmo estando a tanto tempono seio da família eu ainda tenho minhas dúvidas. Procuro não recorrer muito a ela parasaber das coisas, pois acredito que cada um faz o seu destino, logo, se eu ficar 

 perguntando tudo, é possível que eu me deixe influenciar pelas respostas. Claro que pergunto se as coisas vão bem em meu ambiente de trabalho, se minha filha tem boasaúde e se meus planos vão se concretizar. Eu sei que não devia, mas tem vezes que nãoresisto perguntar coisas desse gênero. Antes de a minha filha nascer a mesa tinha ditoque ela seria uma menina. Também disse que eu não passaria no vestibular. Que minhaviagem para Paris seria ótima... tudo bem que essa última é quase impossível dar errado,né? Até a parte ruim da viagem posso dizer que foi boa, pois coloquei em prática meufrancês..

 Nunca entendi o motivo de a mesa falar somente com minha mãe. Escrevendo

essas linhas ainda me pego pensando sobre isso. Creio que é algo muito relevante se queconsiderar o número reduzido de pessoas da família que tem esse dom. Nem mesmo as primas ou a própria tia de minha avó, que eram muito religiosas, conseguem obter damesa o que minha mãe consegue. Falando em primas me lembrei da Leoni, que volta emeia aparece lá em casa para visitar a mãe e é claro: se consultar com a Virgínia. Sim, éesse o nome da mesa. Infelizmente não sei quem deu esse nome a ela e o porquê disso.Sei que o nome dela é esse mesmo desde que eu me conheço por gente. Pensando bemeu não me recordo de ter inquirido minha avó ou minha mãe sobre esse nome. O fato éque Virgínia sempre teve um ligar cativo na família e ainda o tem.

5/13/2018 Crendices Supersticoes e Herancas Culturais - slidepdf.com

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Bem, olhando a trajetória da mesa eu fico pensando comigo se tudo é realmentequestão de crendice ou superstição. Não quero fazer apologia ao ateísmo ou defender omisticismo cético sobre tal referência que é a mesa. A intenção é apenas refletir sobrecoisas que nem sempre são passíveis de reflexão. Digo isso porque dos poucosexemplos que dei anteriormente sobre as façanhas executadas pela mesa, não detalhei

outro importante que fez diferença até então: a mesa como mito familiar. É difícil pensar o quanto essa mesa foi útil no passado. Como ela reuniu as pessoas. Como ela passou a ser uma fonte de sabedoria e como fomentou a criação de uma rede de  pensamento. Ao exemplificar o caso da Leoni, prima de minha mãe, queconstantemente vem até nossa casa para nos visitar, digo nos visitar literalmente – nós ea mesa, que é parte da família. Há um respeito envolto nessa história que me sintoimpelido a hora acreditar, hora desacreditar. Às vezes penso se ela pode errar alguma

 previsão ou se minha mãe pode se enganar com alguma resposta. O único jeito nestecaso é acompanhar os prognósticos e ir verificando os erros e acertos. Eu já fiz algumas

 perguntas, é claro, às vezes meio a contragosto, pois acredito que não é bom sabermosdas coisas antes que elas aconteçam. Penso que nossos pensamentos podem influenciar 

na construção do destino. É aquela coisa quântica que nos diz que o que você pensa criao mundo a sua volta.

O santo e suas andanças.

Parece-me que o santo gostava mesmo é do Paraná. Apesar de alguns registrosdarem conta de que ele passou por Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a maior parte desua vida foi perambular pelas terras paranaenses. Fico pensando se ele nasceu aqui; se

 passou sua infância nessas terras; se sua família viveu aqui. Na verdade o pouco que sesabe dele são relatos de sua vida adulta, pra não dizer já na terceira idade. Não éestranho que ele se configure exatamente com a maioria dos profetas: idade avançada,origem incerta, vida eremita e milagres no currículo. Ele me lembra muito João Batista,que vivia sozinho perambulando pelo deserto da Judéia. Ambos não tinham posses edependiam da solidariedade alheia. Não se sabe quais eram os fundamentos evangélicosque guiavam o monge João Maria, como era conhecido. Os poucos relatos dizem queele era severo, porém, tranqüilo e atencioso com as pessoas mais simples. Talvez seja

 por isso que na maioria das histórias a seu respeito ele sempre procurou os pobres,claro. Há um livro editado pelo Governo do Estado do Paraná, em 2005, organizado por Renato Augusto Carneiro, onde se podem encontrar boas histórias sobre o monge.

Aliás, no livro há indicações de que eram três monges, pois há registros muito antigosque dão conta de sua passagem pelo Paraná desde os tempos da escravatura. O mongeque supostamente benzeu a mesa de minha avó apareceu em meados da década de 30,ou mesmo antes. Logo, muitos dizem que os três monges eram na verdade a mesma

 pessoa. No livro inclusive também há afirmações de que era comum à época chamar todo e qualquer monge/profeta de João Maria. Não há documentos ou qualquer outroregistro que possa afirmar qual dos monges teria benzido a mesa de minha avó. Naverdade isso só tem importância para a História.