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LUIZA BARROS ROZAS COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS E A SUA INSERÇÃO NA REALIDADE JURÍDICA BRASILEIRA – POR UMA NOVA COMPREENSÃO EPISTEMOLÓGICA DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO ORIENTADORA: PROFESSORA DRA. DILMA DE MELO SILVA FACULDADE DE DIREITO DA USP SÃO PAULO 2009

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LUIZA BARROS ROZAS

COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS E A

SUA INSERÇÃO NA REALIDADE JURÍDICA BRASILEIRA –

POR UMA NOVA COMPREENSÃO EPISTEMOLÓGICA DO

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

ORIENTADORA: PROFESSORA DRA. DILMA DE MELO SILVA

FACULDADE DE DIREITO DA USP

SÃO PAULO

2009

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LUIZA BARROS ROZAS

COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS E A

SUA INSERÇÃO NA REALIDADE JURÍDICA BRASILEIRA –

POR UMA NOVA COMPREENSÃO EPISTEMOLÓGICA DO

PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo, como exigência parcial para a

obtenção do título de Mestre em Direitos Humanos, sob a

orientação da Professora Dra. Dilma de Melo Silva

FACULDADE DE DIREITO DA USP

SÃO PAULO

2009

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Banca Examinadora

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Agradecimentos

À Prof. Dra. Dilma de Melo Silva, pela orientação dedicada e por toda confiança

que desde o início depositou em mim e neste trabalho, concedendo-me plena liberdade no

desenvolvimento do tema escolhido.

Ao Prof. Dr. Kabengele Munanga, por ter me propiciado a rica oportunidade de

ingressar no Mestrado em Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de

São Paulo, bem como pelas críticas construtivas feitas durante o exame de qualificação,

que me proporcionaram maiores reflexões sobre o objeto desta pesquisa.

À Prof. Dra. Nina Beatriz Stocco Ranieri, que desde a participação na banca de

defesa de minha monografia de final de curso, no final de 2003, incentivou-me a

prosseguir nos estudos acadêmicos, bem como pela oportunidade de convívio e trabalho

nas aulas de Teoria Geral do Estado, no Instituto de Relações Internacionais da USP.

À Prof. Dra. Eunice Aparecida de Jesus Prudente, que também participou do meu

exame de qualificação, pela leitura minuciosa do texto e pelas sugestões que possibilitaram

o aperfeiçoamento desta pesquisa.

Ao Dr. Sérgio Gardenghi Suiama, Procurador da República em São Paulo, com

quem tive o privilégio de estagiar no Ministério Público Federal, por todas as contribuições

que recebi ao longo deste estudo e pelo interesse em acompanhar as minhas reflexões.

À minha mãe Lia, pelo apoio incondicional e pela constante torcida.

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Lista de Siglas FUNAI – Fundação Nacional do Índio Fuvest – Fundação Universitária para o Vestibular IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDH – Índice de Desenvolvimento Humano INCLUSP – Programa de Inclusão Social INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada LDB – Lei de Diretrizes de Bases OIT – Organização Internacional do Trabalho PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PNDH – Programa Nacional de Direitos Humanos UFBA – Universidade Federal da Bahia USP – Universidade de São Paulo

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RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo o estudo da política de cotas para negros nas

universidades públicas e sua compatibilidade com os princípios constitucionais da

igualdade e da proporcionalidade. O estudo traz como principal referência a experiência

norte-americana, buscando adaptá-la à nossa realidade nacional, mediante análise de

projetos de lei e de ações já adotadas em algumas universidades públicas brasileiras.

Portanto, esta pesquisa aborda as principais divergências a respeito da implementação da

reserva de vagas para negros e a possibilidade de se estabelecer um sistema de

discriminação positiva para a efetiva proteção dos direitos humanos.

Palavras-chave: Ação afirmativa – Igualdade – Negros – Universidade Pública –

Transformação – Política Pública - Justiça

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ABSTRACT

The present paper has the purpose of studying the quotas policy for black

population in public universities and their compatibility with the equality and solidarity in

the constitutional principles. As a principal reference, the research brings the American

experience, looking for its adaptation in our national reality through the analysis of law

projects and actions already adapted for Brazilian public universities. Therefore, this

research broaches the principal disagreements about the introduction of quotas policy for

black population and the possibility of establishing a positive discrimination system for the

effective protection of human rights.

Key-words: Affirmative actions – Equality – Black population – Public university –

Transformation – Public Politics – Justice

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................... 8

1. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE................................................................................................. 14

2. AÇÕES AFIRMATIVAS ................................................................................................................ 20

2.1. Fundamentos para as ações afirmativas ................................................................................... 25

2.1.1. Teoria da justiça compensatória .................................................................................... 25

2.1.2. Teoria da justiça distributiva .......................................................................................... 26

2.1.3. Teoria mista ...................................................................................................................... 27

2.2. Aspectos positivos e críticas às ações afirmativas ................................................................. 27

3. A EXPERIÊNCIA NORTE-AMERICANA DE AÇÕES AFIRMATIVAS ........................ 33

4. A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA ................................................................................................ 47

4.1. Antecedentes históricos ............................................................................................................. 47

4.2. Existe racismo no Brasil? .......................................................................................................... 50

4.3. Políticas adotadas em universidades públicas brasileiras ...................................................... 58

4.3.1. Universidade do Estado da Bahia (UNEB) .................................................................. 59

4.3.2. Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) ....................................................... 59

4.3.3. Universidade de Brasília (UNB) .................................................................................... 60

4.3.4. Universidade Federal da Bahia (UFBA)....................................................................... 60

4.3.5. Universidade Federal do Paraná .................................................................................... 61

4.3.6. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) ..................................................... 62

4.3.7. Universidade Estadual do Amazonas (UEA) ............................................................... 62

4.3.8. Universidade de São Paulo (USP) ................................................................................. 63

4.4. A legislação educacional ........................................................................................................... 66

5. A RESERVA DE VAGAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS

E SUA COMPATIBILIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL ............................. 71

5.1. O princípio constitucional da igualdade .................................................................................. 80

5.2. O princípio constitucional da proporcionalidade.................................................................... 92

CONCLUSÃO ........................................................................................................................................ 98

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................... 102

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INTRODUÇÃO

O tema a ser desenvolvido na dissertação é “Cotas para negros nas

universidades públicas e a sua inserção na realidade jurídica brasileira – Por uma

nova compreensão epistemológica do princípio constitucional da igualdade”. Por ter

natureza interdisciplinar, o assunto em questão pode ser abordado sob diversos

ângulos, quais sejam, o filosófico, o antropológico, o econômico e o jurídico. O

presente trabalho, contudo, tem por objetivo o estudo da viabilidade das cotas sob o

aspecto jurídico, por meio da análise da constitucionalidade desta ação afirmativa

em face do princípio da igualdade, incluindo-se, também, uma breve abordagem

sobre os princípios da proporcionalidade e da solidariedade.

Importante frisar que, em virtude da abrangência do tema, a presente

pesquisa tem como enfoque a política de cotas para negros nas universidades

públicas sob o aspecto constitucional e principiológico, de modo que não serão

apreciadas outras questões tangenciais, como a autonomia universitária, os aspectos

antropológicos e sociológicos do racismo ou mesmo outras espécies de ações

afirmativas.

Justifica-se a abordagem do tema em tela como resultado da busca incansável

pela realização de justiça racial. A ausência da população negra na universidade, em

especial na universidade pública, representa uma das maiores mazelas da sociedade

brasileira. Apesar de a universidade pública ser um dos poucos redutos de reflexão

crítica em nosso país, constitui, por outro lado, um dos maiores exemplos de

aristocracia racial: mesmo após a adoção de diplomas legais de combate à

discriminação, continua ela sendo o espaço do homem branco.

Segundo dados do Censo Demográfico de 2000, os negros representam

aproximadamente 76.000.000 (setenta e seis milhões) de indivíduos, o equivalente a

cerca de 45% da população total, o que faz do Brasil o país com a segunda maior

população negra do mundo, superado apenas pela Nigéria. Já de acordo com o INEP

e o IBGE, a população do Brasil é de aproximadamente 180 milhões de pessoas,

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sendo que 53% são brancos. Desse número, 72,9% concluem o ensino superior. Por

outro lado, os negros somam 47%, ou seja, praticamente metade da sociedade,

porém apenas 3,6% conseguem concluir o curso superior. A cor do campus,

portanto, é diferente da cor da sociedade. Esse quadro de desigualdade racial é ainda

mais dramático se verificarmos que essa pequena parcela de negros está

concentrada em cursos de baixa demanda. Portanto, sem acesso à educação de

qualidade e ao mercado de trabalho, os negros são deixados à margem da

convivência social e da experiência democrática na comunidade política, restando-

lhes ínfimas oportunidades de ascensão social no Brasil.

Nota-se que, apesar da escolaridade média ter aumentado continuamente ao

longo do século XX, para todos os brasileiros, a diferença apontada manteve-se

absolutamente estável, geração após geração. A estratificação racial no ensino,

portanto, vem de longa data e é inegável.

Ora, não pode o Direito ficar indiferente diante de um quadro de absoluta

desigualdade. Onde há privilégio racial não há universalismo. Onde não há

universalismo não há justiça. E Direito desvinculado de Justiça não tem razão de

existir.

A justiça, a exemplo de outras artes ou ofícios, é uma virtude voltada

inteiramente para os outros e não para o próprio sujeito. A procura da vantagem

pessoal é mesmo o oposto de toda manifestação de justiça. Segundo Aristóteles, de

todas as virtudes, a justiça é a única que se ocupa do bem alheio. Tal assertiva,

embora exagerada, sublinha a essência altruística da justiça, que o liberal-

individualismo moderno procurou negar.1

Assim, cabe ao sistema jurídico estabelecer medidas de compensação com o

intuito de concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os

demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições. Após mais

de 300 anos de escravidão, os afrodescendentes exigem uma compensação, e

garantir o acesso ao ensino superior é uma possível forma de reparação.

1COMPARATO, Fábio Konder. Ética – direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia

das Letras, 2006. p. 525.

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O estudo da política de cotas para negros nas universidades públicas é,

portanto, questão bastante relevante neste cenário de exclusão racial. Ademais, o

questionamento em torno da constitucionalidade dessa política afirmativa é uma

oportunidade para se discutir o direito como instrumento de transformação social e

formas de interpretação do princípio da igualdade compatíveis com o Estado

intervencionista.

Ademais, a implementação recente de um sistema de cotas para estudantes

negros no ensino superior é um fenômeno que rompe radicalmente com a lógica de

funcionamento do mundo acadêmico brasileiro desde a sua origem no início do

século passado. A política de reserva de vagas está provocando um

reposicionamento concreto das relações raciais em nosso meio acadêmico,

começando pelo universo discente da graduação, porém com potencial para

estender-se à pós-graduação, ao corpo docente e aos pesquisadores.2

O ideário das cotas aponta, por conseguinte, para diversos questionamentos

teóricos e metodológicos muito mais densos e amplos do que à primeira vista

podiam parecer.

A importância do tema também se deve ao fato de que as ações afirmativas

para negros em instituições públicas de ensino superior constituem um modelo que

vem sendo adotado em diversos projetos legislativos e discutido em ações no

âmbito do Poder Judiciário.

Esta dissertação está dividida em cinco capítulos, sendo que o primeiro deles

abordará o princípio da igualdade, traçando-se a definição de princípios jurídicos e

sua diferenciação em relação a regras jurídicas, assim como a sua evolução histórica

e a importância da classificação desta norma em igualdade formal e igualdade

material.

O segundo capítulo dedicar-se-á à conceituação das ações afirmativas, aos

seus fundamentos jurídicos, analisando-se as teorias da justiça compensatória,

2CARVALHO, José Jorge de. O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro. Revista USP, São

Paulo, n. 68, p. 88, dez./fev. 2005/2006.

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distributiva e mista, e ao estudo de seus aspectos positivos e negativos, chamando-

se a atenção para a preponderância de seus benefícios.

O terceiro capítulo, por sua vez, ocupar-se-á da experiência norte-americana

de ações afirmativas, em especial das cotas para negros nas universidades públicas,

apontando-se o modo como tais políticas influenciaram o sistema jurídico

brasileiro.

Já o quarto capítulo tratará da experiência brasileira de ações afirmativas,

analisando-se os seus antecedentes históricos, as controvérsias sobre a existência de

racismo no Brasil, os critérios adotados por algumas universidades públicas

nacionais e a legislação educacional pátria.

Por fim, o quinto e último capítulo abordará as cotas para afrodescendentes

dentro do panorama da Constituição Federal de 1988, isto é, será investigado se a

reserva de vagas para negros nas universidades públicas brasileiras se coaduna com

os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.

Porém, antes de adentrar no tema da pesquisa, é fundamental estabelecer uma

distinção terminológica entre racismo, preconceito e discriminação, conceitos

normalmente utilizados como equivalentes, mas que, na realidade, não se

confundem entre si.

Muito embora os termos racismo, preconceito e discriminação sejam

usualmente utilizados como sinônimos, o fato é que existem diferenças entre tais

conceitos. Senão vejamos.

O termo “racismo” tem por premissa a existência de uma hierarquia entre

determinados grupos humanos. Assim, haveria um grupo superior, dominante, e um

grupo inferior, dominado. Trata-se, portanto, de uma hierarquização na escala

humana.

Conforme observou Sidney Madruga, também é necessário distinguir

“racismo”, enquanto comportamento, de “racialismo”, este último fundado nas

doutrinas referentes às raças humanas e de sustentação ideológica baseada no

etnocentrismo, cujas visões teóricas, tendo por fundamento a existência das raças;

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na continuidade entre o físico e o moral; na ação do grupo sobre o indivíduo; na

hierarquia universal dos valores e na política baseada no saber.3

“Preconceito”, por sua vez, é a formação de um juízo de valor antecedente a

respeito de algo que ainda é desconhecido. É pré-julgar, isto é, avaliar

antecipadamente. Trata-se de qualquer opinião ou sentimento, seja favorável, seja

desfavorável, concebido sem exame crítico. Em outras palavras: é uma idéia ou

sentimento formado a priori, sem maior conhecimento ou ponderação.

Já o preconceito racial pode ser entendido como um juízo antecipado de

índole negativa destinado a um determinado grupo racial. Assim, o preconceito não

está unicamente ligado ao critério racial, mas pode também assumir vertentes

religiosas, culturais, políticas, étnicas, econômicas, sexuais, dentre outros.

Por derradeiro, na discriminação elege-se um determinado grupo, que não se

interage com outro, em função exclusiva de suas características étnicas, culturais ou

religiosas.

Em que pese o ato discriminatório esteja normalmente vinculado ao

preconceito, é fundamental destacar que não os conceitos não se confundem,

conforme já destacado anteriormente. Enquanto a discriminação denota um ato

segregacionista, um desigualar entre dois fatores, o preconceito pode ser traduzido

numa postura interna preconcebida, de ordem psicológica, em relação ao próximo.4

A discriminação é um ato, ao passo que o preconceito é um pré-juízo, um

pré-julgamento. A primeira, portanto, envolve uma atitude, ou seja, uma postura

ativa, ao passo que o segundo relaciona-se com uma postura omissiva.

O relatório preparado pelo Comitê Nacional, durante a conferência realizada

em Durban, estabeleceu as seguintes distinções: a) o racismo consiste em um

fenômeno histórico cujo substrato ideológico preconiza a hierarquização dos grupos

humanos com base na etnicidade. Diferenças culturais ou fenotípicas são utilizadas

como justificações para atribuir desníveis intelectuais e morais a grupos humanos

3MADRUGA, Sidney. Discriminação positiva, ações afirmativas na realidade brasileira. Brasília: Brasília

Jurídica, 2005. p. 135. 4Id. Ibid., p. 138.

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específicos; b) o preconceito pode ser definido como um fenômeno intergrupal,

dirigido a pessoas, grupos de pessoas ou instituições sociais, implicando uma

predisposição negativa (...) funcionando como uma espécie torpe de silogismo, o

preconceito tende a desconsiderar a individualidade, atribuindo a priori aos

membros de determinado grupo características estigmatizantes com as quais o

grupo, e não o indivíduo, é caracterizado.

Durante o desenvolvimento da dissertação será utilizada a seguinte

metodologia:

• Análise da doutrina, com ênfase em autores especializados em Direitos

Humanos, Direito Constitucional e Sistema Educacional;

• Coleta de dados estatísticos com objetivo de verificar a qualidade de vida

da população negra no Brasil (IBGE, INEP, IPEA);

• Exame de Projetos de Lei referentes ao tema em questão, tais como o

Projeto de Lei n. º 3627/2004, que institui o Sistema Especial de Reserva

de Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial

negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação

superior;

• Reconstrução histórica dos aspectos políticos, econômicos e sociais que

influenciaram o debate sobre ações afirmativas.

• Análise de resultados da adoção da política de cotas em algumas

universidades públicas brasileiras

Destarte, esta pesquisa tem por escopo aprofundar o debate sobre os

questionamentos relativos ao tema da reserva de vagas para negros nas

universidades públicas, cuidando do sistema de cotas como um instrumento jurídico

de discriminação positiva para a efetivação dos direitos humanos.

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1. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE

Costuma-se definir princípio jurídico como o mandamento nuclear de um

sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre

diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata

compreensão e inteligência.

Os princípios constitucionais são os conteúdos intelectivos dos valores

superiores adotados em dada sociedade política, materializados e formalizados

juridicamente para produzir uma regulação política no Estado. Aqueles valores

superiores encarnam-se nos princípios que formam a própria essência do sistema

constitucional, dotando-o, assim, para cumprimento de suas funções, de

normatividade jurídica.

Do ponto de vista material, os princípios são superiores às demais normas,

pois determinam integralmente qual há de ser a substância do ato pelo qual são

executados. Os princípios funcionam como limite e conteúdo, enquanto as demais

normas nunca chegam a determinar completamente as que lhes são inferiores.

Existe um caráter de fundamentalidade desempenhado pelos princípios, uma vez

que se caracterizam como as fontes primeiras do Direito.

Os princípios jurídicos não devem ser confundidos com as regras jurídicas.

Embora ambos sejam modalidades de normas jurídicas, há uma distinção lógica

entre eles. As regras jurídicas são aplicáveis por completo ou não são, de modo

absoluto, aplicáveis. Trata-se de um mandamento de tudo ou nada. Desde que os

pressupostos de fato aos quais as regras refiram se verifiquem, em uma situação

concreta, e sendo elas válidas, em qualquer caso hão de ser elas aplicadas.

Já os princípios jurídicos atuam de modo diverso: mesmo aqueles que mais

se assemelham às regras não se aplicam automática e necessariamente quando as

condições previstas como suficientes para sua aplicação se manifestam.5

5GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988. 7. ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2002. p. 98.

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Ademais, as regras jurídicas não comportam exceções, isto é, se há

circunstâncias que excepcionem uma regra jurídica, a enunciação dela, sem que

todas essas exceções sejam também enunciadas, será inexata e incompleta. Quanto

aos princípios, a circunstância de serem próprios a um determinado direito não

significa que esse direito jamais autorize a sua desconsideração. É que os princípios

possuem uma dimensão que não é própria das regras jurídicas, qual seja, a dimensão

do peso ou importância. Assim, havendo um conflito entre eles no caso concreto, a

solução do problema deverá levar em conta o peso relativo de cada um deles.

As regras, por sua vez, não possuem essa dimensão. Não se pode afirmar que

uma delas, no interior do sistema normativo, é mais importante do que outra, de

modo que, no caso de conflito entre ambas, deva prevalecer uma em virtude do seu

peso maior. Se duas regras entram em conflito, uma delas não é válida.6

No que tange à igualdade, pode-se afirmar que a idéia de que os seres

humanos são essencialmente iguais, não obstante as diferenças biológicas e

culturais que os distinguem entre si, apareceu pela primeira vez na História durante

o período axial. Segundo Karl Jaspers, o curso inteiro da história poderia ser

dividido em duas etapas, em função de determinada época, entre os séculos VIII e II

A.C., a qual formaria, por assim dizer, o eixo histórico da humanidade. Daí a

designação, para essa época, de período axial.7

Nas civilizações antigas, predominava uma sociedade dividida em

estamentos, ordens ou castas, com exceção de alguns momentos fugazes em que

vigorou a prática de uma vida social igualitária, como na Atenas democrática, em

certas fases da república romana e nas primeiras comunidades cristãs.8

A primeira formulação moderna do princípio jurídico da igualdade deu-se no

decorrer da Revolução Francesa, que proclamou a libertação de todos os homens da

sujeição congênita a um estamento. A Declaração dos Direitos do Homem e do

6GRAU, Eros. op. cit., p. 101. 7COMPARATO, Fábio Konder. op. cit., p. 558. 8Id. Ibid., p. 559.

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Cidadão de 1789 abre-se com a afirmação de que “os homens nascem e

permanecem livres e iguais em direitos”.9

Assim, a juridicização da igualdade, engendrada pelas revoluções burguesas

dos séculos XVII e XVIII, institucionalizou o postulado igualitarista derivado da

ética cristã, segundo o qual todos os seres humanos são dotados da mesma

dignidade. A igualdade de todos perante Deus foi então traduzida, em termos

jurídicos, pela igualdade de todos perante a lei.10

Contudo, nesta fase embrionária, o direito à igualdade figurou como antítese

de privilégios, impondo ao Estado o dever de editar regras gerais e impessoais.

Igualdade significava, portanto, não discriminação. Ocorre que essa postura

meramente negativa, que impunha ao Poder Público um dever de abstenção, não foi

suficiente para criar condições para que todos vivessem, de fato, em situação de

isonomia.

Segundo Fábio Konder Comparato, “o princípio da igualdade perante a lei

tem sido qualificado como o triunfo do formalismo abstrato e hipócrita sobre a crua

evidência das realidades concretas”.11 Revelou-se a insuficiência, senão a falácia do

princípio da não discriminação no enfrentamento da problemática da desigualdade

social. A atitude abstencionista do Estado não tem o condão de reverter problemas

conjunturais e históricos de uma determinada sociedade.

Por essa razão, em meados do século XIX, com o surgimento do movimento

socialista, passou-se a exigir dos governantes uma postura pró-ativa, típica de um

Estado intervencionista. Em 1918 foi proclamada na Rússia a “Declaração dos

Direitos do Povo Trabalhador e Explorado”, que veio a ser conhecida como um

contraponto proletário à Declaração burguesa de 1789. A Declaração russa

inaugurou uma ótica completamente nova da abordagem tradicional dos direitos

humanos. Em vez da perspectiva individualista de um ser humano abstrato, este

9COMPARATO, Fábio Konder. Igualdade, desigualdades. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo,

n. 1, p. 73, 1993. 10SILVA JÚNIOR, Hédio. Direito de igualdade racial: aspectos constitucionais, civis e penais. São Paulo;

Juarez de Oliveira, 2002. p. 101. 11COMPARATO, Fábio Konder. Igualdade, desigualdades, cit., p. 69.

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documento elegeu como ponto de partida o ser humano concretamente existente,

que vive em sociedade, em relação contínua com outros homens.12 Buscou-se tornar

a igualdade formal em igualdade de oportunidade e tratamento, o que é bastante

diferente da cômoda postura de não discriminar.

Dispõe Luis Roberto Barroso que a obtenção da igualdade material

pressupõe reordenamento das oportunidades e impõe transformações políticas

profundas no sistema de produção. O Estado não deve ser um simples garantidor da

ordem assente nos direitos individuais e no título de propriedade, mas um ente

criador de bens coletivos e fornecedor de prestações”.13

O individualismo defendido pela doutrina liberal, caracterizado pelo

“abstencionismo” estatal, não resistiu aos problemas sociais que surgiram com a

Revolução Industrial e o advento dos direitos humanos de segunda geração.

Constatou-se a insuficiência de se tratar o indivíduo de forma genérica, geral

e abstrata, surgindo a necessidade de especificação do sujeito de direito, visto em

sua peculiaridade e particularidade. A partir desta ótica, determinados sujeitos de

direito, ou determinadas violações de direitos, passaram a exigir uma resposta

diferenciada e específica do Estado.

A idéia de Welfare State, usualmente associada à noção de Estado de Bem-

Estar Social ou de Estado Assistencial, pode ter, dependendo do enfoque adotado,

uma conotação muito mais democrática (assim identificada com a definição, pelos

órgãos competentes, de políticas públicas) do que jurídica, ao menos no que tange à

proteção de certos direitos humanos.14

A brutal pauperização das massas proletárias, já na primeira metade do

século XIX, acabou por suscitar a indignação dos espíritos bem formados e a

provocar a indispensável organização da classe trabalhadora. A Constituição

12TRINDADE, José Damião de Lima. História social dos direitos humanos. São Paulo: Peirópolis, 2002. p.

156. 13BARROSO, Luís Roberto. Igualdade perante à lei. Revista de Direito Público, São Paulo, ano 19, n. 78, p.

70, abr./jun. 1986. 14MENEZES, Paulo Lucena de. Reserva de vagas para a população negra e o acesso ao ensino superior:

uma análise comparativa dos limites constitucionais existentes no Brasil e nos Estados Unidos da América. 2006. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. p. 117.

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18

Francesa de 1848 reconheceu algumas exigências econômicas e sociais. Mas a

plena afirmação desses novos direitos humanos só veio a ocorrer no século XX,

com a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919.

O reconhecimento dos direitos humanos de caráter econômico e social foi o

principal benefício que a humanidade recolheu do movimento socialista, iniciado na

primeira metade do século XIX. O titular desses direitos, com efeito, não é o ser

humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente; é o

conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a

marginalização. Os socialistas perceberam, desde logo, que esses flagelos sociais

não eram cataclismos da natureza nem efeitos necessários da organização racional

das atividades econômicas, mas sim verdadeiros dejetos do sistema capitalista de

produção, cuja lógica consiste em atribuir aos bens de capital um valor muito

superior ao das pessoas.15

De acordo com esta nova perspectiva, a norma jurídica deve fazer mais do

que simplesmente reprimir a discriminação: deve ocupar-se da educação para

tolerância, condicionar comportamentos, adotar o princípio aristotélico da justiça

distributiva, prescrever incentivos para a promoção da igualdade e buscar evitar a

ocorrência da discriminação.16

Assim, em termos jurídicos, a igualdade formal é a igualdade perante a lei,

ou seja, todos devem ser tratados da mesma forma ante a norma jurídica. A

igualdade formal pressupõe um tratamento uniforme perante a lei e veda tratamento

desigual aos iguais. Já a igualdade material ou de fato é aquela que resulta em

igualdade real e efetiva de todos, perante todos os bens da vida.

Do ponto de vista de uma teoria geral estrutural dos direitos fundamentais, a

igualdade fática importa no reconhecimento de direitos prima facie a ações

15COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva,

2001. p. 51-52. 16SILVA JÚNIOR, Hédio. Ação afirmativa para negro (as) nas universidades – a concretização do princípio

constitucional da igualdade. In: SILVA, Petronilha Gonçalves e; SILVÉRIO, Valter Roberto (Orgs.). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003. p. 106.

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19

positivas do Estado. Igualdade substancial, portanto, é a busca da igualdade de fato,

da efetivação, da concretização dos postulados da igualdade perante a lei.

Em uma aproximação negativa, o valor da igualdade significa a exigência de

não-discriminação política, jurídica, religiosa, sexual, racial; trata-se, assim, de um

valor individual que pressupõe que, de fato, os homens são diferentes. Mas em uma

aproximação positiva, o valor aponta para a igualdade dos pontos de partida,

enquanto equalização de possibilidade, de oportunidade e de participação

econômica e social.

A igualdade, pois, como conteúdo axiológico de direito deve ser tomada, em

um sentido negativo, como direito de não se discriminado, cujo conteúdo é o dever

(do Estado e dos demais concidadãos) de omitir discriminações. Em um sentido

positivo é também um direito ao máximo de condições e oportunidades e de

participação nos benefícios, cujo conteúdo é o dever (do Estado e dos demais

concidadãos) de agir de modo a propiciá-lo.

A igualdade de fato refere-se principalmente aos efeitos práticos buscados

por uma determinada ação. A Constituição Federal brasileira de 1988, ao fixar

como objetivo fundamental da República a redução das desigualdades sociais,

declarou que é recomendável a progressiva elevação da sociedade brasileira a um

estágio de relativa igualdade na fruição de bens, serviços e ônus sociais e,

conseqüentemente, impôs ao Estado o desenvolvimento dos meios necessários à

realização do fim buscado.

Em geral, a realização da igualdade material depende da execução de ações

positivas destinadas aos grupos socialmente discriminados. Políticas públicas de

cunho universalista são de grande relevância para a promoção do bem de todos,

porém, insuficientes para modificar a grave situação de exclusão social de

determinadas grupos discriminados. Daí a importância das ações afirmativas, que

serão analisadas logo adiante.

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2. AÇÕES AFIRMATIVAS

As ações afirmativas representam um conjunto de ações públicas que visam

o rompimento de desigualdades históricas ou sociais no acesso ao efetivo exercício

de direitos, bens e serviços considerados essenciais para uma vida digna.

Desigualdades essas que não conseguem ser rompidas com os mecanismos

tradicionais de inclusão social, como a expansão do mercado de trabalho ou o

acesso universal à educação.17

Para Paulo Lucena de Menezes, embora o conceito de ação afirmativa seja

vago e tenha sido forjado ao longo do tempo, pode ser utilizado para identificar “as

medidas que, por meio de um tratamento jurídico diferenciado e temporário, têm

por escopo corrigir as desigualdades existentes entre determinados grupos sociais e

uma dada parcela da sociedade na qual eles estão inseridos, desigualdades essas

que, na maior parte das vezes, são oriundas de práticas discriminatórias”.18

Assim, as ações afirmativas são medidas especiais e temporárias que,

visando remediar um passado discriminatório, têm por objetivo acelerar o processo

de igualdade, com o alcance da igualdade material por parte de grupos

historicamente vulneráveis.

Trata-se de políticas compensatórias adotadas para aliviar as condições

resultantes de um pretérito discriminatório, que cumprem uma finalidade pública

primordial à consolidação do projeto democrático. Por meio das ações afirmativas

transita-se da igualdade meramente formal à igualdade substancial.

Costuma-se dizer que o emprego pioneiro da expressão “ação afirmativa” foi

feito em um texto normativo elaborado pelo presidente norte-americano John

Kennedy, qual seja, a Executive Order n.° 10.925, datada de 1961, cujo principal

objetivo foi a imposição da observância de determinadas condutas

17FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Construção da igualdade e o sistema de justiça no Brasil: alguns

caminhos e possibilidades. 2004. Tese (Doutorado) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. p. 59-60.

18MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 12.

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antidiscriminatórias aos órgãos federais e àqueles beneficiados com projetos

financiados com recursos públicos.

Conforme ressalta Paulo Lucena de Menezes, “o ineditismo deve-se à

conotação conferida ao termo, que se referia não apenas a medidas pró-ativas, mas

também antidiscriminatórias, no âmbito da execução de políticas públicas”.19

Segundo Sidney Madruga20, os elementos conceituais e integrantes das ações

afirmativas são:

a) a compulsoriedade ou voluntariedade e a temporariedade, ou não, das

medidas a serem adotadas por órgãos públicos ou privados – as iniciativas

podem advir tanto dos organismos estatais como da iniciativa privada;

b) a concessão de benefício ou vantagem a determinados grupos sociais – o

cerne da discriminação positiva está em direcionar a execução de medidas

públicas ou privadas em favor de grupamentos humanos socialmente

discriminados, adotando como critério a raça, sexo, idade, religião, opção

sexual, deficiência física ou psíquica, dentre outros;

c) a busca da igualdade de oportunidades e tratamento – o intuito principal é

beneficiar determinada parcela da população, colocando-a em igualdade

de condições de competitividade de atendimento com os demais

segmentos sociais;

d) medidas direcionadas, em especial, à área de educação, saúde e emprego.

O surgimento das ações afirmativas contemporâneas deu-se com o Welfare

State, pois foi justamente nos Estados Unidos do pós-guerra, e mais precisamente,

do pleno desenvolvimento do bem-estar social, que a ação afirmativa tornou-se um

dos principais instrumentos políticos de promoção da igualdade do século XX.21

19MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 20. 20MADRUGA, Sidney. op. cit., p. 63-64. 21VIEIRA, Andréa Lopes da Costa. Políticas de educação, educação como política: observações sobre a ação

afirmativa como estratégia política. In: SILVA, Petronilha Gonçalves e; SILVÉRIO, Valter Roberto (Orgs.). op. cit., p. 90.

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Utilizadas em diversos países, a ação afirmativa também passou a envolver

os indivíduos como prejudicados pela discriminação a que eram submetidos.

Alguns documentos internacionais apresentam esse tipo de definição. Segundo os

Anais do documento “Perspectivas Internacionais em Ação Afirmativa”, resultado

de um encontro de pesquisadores ocorrido em agosto de 1982, no Centro de Estudos

e Conferências de Bellagio, na Itália, a ação afirmativa pode ser uma preferência

especial em relação a membros de um grupo definido por raça, cor, religião, língua

ou sexo, com o propósito de assegurar acesso a poder, prestígio e riqueza. De

acordo com a Conferência de Liderança em Direitos Civis, de 1995, esta ação

engloba, além de simples extinção da prática discriminatória, qualquer medida

adotada para corrigir e/ou compensar por atos discriminatórios passados ou

presentes, bem como para prevenir novas ocorrências.22

As ações afirmativas pressupõem uma renúncia do Estado à sua neutralidade,

pois a igualdade perante à lei não se realiza completamente se todas as pessoas não

tiverem efetiva condição de exercê-la. Ora, as desigualdades no Brasil têm raízes

tão profundas que rompê-las não parece depender somente do desenvolvimento

econômico. São necessárias políticas de distribuição de renda sob pena do

desenvolvimento econômico isolado gerar ainda maior desigualdade social e racial.

Na tentativa de fixar um critério justo para a distribuição de recursos, John

Rawls estabelece o “princípio da diferença”, segundo o qual as desigualdades

sociais e econômicas devem ser arranjadas de forma a que sejam benéficas aos

menos favorecidos. Assim, de acordo com este princípio, será justa uma sociedade

se organizada de maneira que as contingências naturais ou sociais trabalhem a favor

dos menos favorecidos.

É neste sentido que as cotas para negros nas universidades caracterizam-se

como uma relevante política pública. Trata-se de um conjunto de ações

compensatórias que tem por objetivo corrigir a situação de desvantagem imposta

aos negros historicamente para a promoção de uma sociedade democrática. Ora, a

22MOEHLECKE, Sabrina. Propostas de ações afirmativas no Brasil: o acesso da população negra ao ensino

superior. 2000. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. p. 7-8.

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universidade, além de ser um espaço de produção de conhecimento, é um espaço de

disputa de poder, de formação de setores dirigentes do país, donde a importância de

ações afirmativas na área de educação, no afã de diminuir o déficit econômico-

cultural entre brancos e negros.

Não se deve utilizar, contudo, “ação afirmativa” e “política de cotas” como

sinônimos. Esta é espécie da qual aquela é gênero. Vale ressaltar a afirmação de

Luiza Cristina Frischeisen de que “ações afirmativas não significam somente cotas

para determinadas parcelas da população, mas também a mudança na representação

da própria imagem dos indivíduos que compõem a sociedade brasileira, em uma

perspectiva multiétnica, multicultural e plural”.23 A convivência entre os diferentes

é essencial para mudar a ordem estrutural de nossa sociedade.

Podem também ser destacadas outras espécies de ações afirmativas, tanto na

esfera pública, quanto na privada, como a concessão de bolsas de estudos e cursos

pré-vestibulares para alunos negros e hipossuficientes, a implementação de

programas de estágio e capacitação profissional aos jovens, a ampliação do

financiamento estudantil e a contratação e a promoção de trabalhadores, levando em

conta, além da qualificação profissional, o viés étnico-racial.

Já as cotas consistem na fixação de um número de vagas ou proporção de

benefícios apenas para certos grupos de pessoas, com base em critérios pré-

estabelecidos, independentemente da qualificação dos respectivos membros. Vale

lembrar que a ação afirmativa está relacionada à correção de desigualdades, não se

vinculando diretamente às diferenças, motivo pelo qual não coincide, diretamente,

com a proteção dos direitos das minorias, em sentido estrito e técnico.

Georg Reid Andrews ensina que:

“enquanto que combater a discriminação implica a eliminação da raça ou da cor como um critério de seleção, a ação afirmativa implica a continuação do uso da cor como um critério, mas em sentido contrário ao seu uso histórico. Tradicionalmente, foram as pessoas brancas as favorecidas para qualquer oportunidade social

23FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. op. cit., p. 61.

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ou econômica; com a ação afirmativa, o Estado estabeleceu certas preferências para as pessoas negras”.24

No que tange ao aspecto legislativo, as ações afirmativas estão previstas na

Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação

Racial de 21/12/1965. O parágrafo 4º do art. 1º estipula que não serão consideradas

discriminatórias “as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar

progresso adequado de certos grupos raciais e étnicos ou de indivíduos que

necessitem de proteção para poderem gozar e exercitar os direitos humanos e as

liberdades fundamentais em igualdade de condições”.

No plano nacional e de jurisdição doméstica, também vale ressaltar que o

Programa Nacional de Direitos Humanos, criado pelo Decreto n.° 1.904/96,

estabeleceu políticas públicas destinadas à população negra, tais como “a criação de

um banco de dados sobre a situação dos direitos civis, políticos, sociais,

econômicos e culturais da população negra na sociedade brasileira que oriente

políticas afirmativas visando a promoção dessa comunidade, bem como o

desenvolvimento de ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos”.

O Programa Nacional de Direitos Humanos tem por função primordial dar

suporte à Constituição Federal, avançando na discussão sobre políticas de ações

afirmativas. Propõe o tratamento desigual à população negra quando estabelece

como objetivo, dentre outras coisas, “desenvolver ações afirmativas para o acesso

dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e as áreas de tecnologia de

ponta”, “formular políticas compensatórias que promovam social e economicamente

a comunidade negra” e “apoiar as ações da iniciativa privada que realizem

discriminação positiva”.

Posteriormente, o Programa Nacional de Direitos Humanos II prescreveu que

o apoio do poder público e da iniciativa privada a políticas de ação afirmativa é uma

forma de se combater a desigualdade.

24FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. op. cit., p. 60.

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Seguindo esta mesma orientação política, o Decreto n.° 4.886/2003 criou a

Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que pode ser definitiva como

um conjunto de diretrizes destinadas à superação das desigualdades raciais.

Deste modo, nota-se que as ações afirmativas, além de estarem previstas em

tratados internacionais ratificados pelo Brasil, passam também a integrar a nossa

legislação interna.

2.1. Fundamentos para as ações afirmativas

Diversas são as teorias que buscam justificar o fundamento das ações

afirmativas. Contudo, as que ganharam maior expressão na doutrina são a teoria da

justiça compensatória, a teoria da justiça distributiva e a teoria mista. Senão

vejamos.

2.1.1. Teoria da justiça compensatória

Segundo esta teoria – nomeada de justiça corretiva por Tomás de Aquino - as

ações afirmativas configuram uma reparação ou ressarcimento dos danos causados

pelas discriminações ocorridas no passado.

Para Sidney Madruga, “fortes são os contra-argumentos em relação à tese

compensatória. Questiona-se, em primeiro lugar, quem seriam os verdadeiros

sujeitos desse tipo de compensação. Em outras palavras, o problema estaria em

como se identificar, hoje, as vítimas e a quem atribuir a reparação vindicada”.25

Será a justiça compensatória a melhor forma de se resolver o problema? Na

realidade, aqueles que optarem por argumentos de justiça corretiva ou

compensatória deverão responder a uma questão basilar: como impor a

25MADRUGA, Sidney. op. cit., p. 94.

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responsabilização coletiva de todos os brasileiros – negros e não negros – pelos

danos pretéritos causados por uma instituição social implantada pelo colonizador

português e que beneficiou fundamentalmente apenas a elite econômica envolvida

no tráfico e exploração da mão de obra escrava? Transcorridos mais de cem anos da

abolição, será possível imputar a brasileiros cujos ascendentes nada tiveram que ver

com a criação e manutenção dessa forma capitalista de barbárie institucionalizada, a

responsabilidade pela reparação pecuniária?

E é justamente a partir de tais indagações que alguns pesquisadores preferem

adotar como fundamento para as ações afirmativas a teoria da justiça distributiva.

2.1.2. Teoria da justiça distributiva

Segundo esta teoria, as ações afirmativas conformam uma redistribuição dos

ônus e bônus entre os membros da sociedade, com o desiderato de viabilizar o

acesso de minorias ou grupos sociais a determinadas posições.

No livro V da ética a Nicômaco, Aristóteles refere-se à justiça distributiva

como a espécie de justiça “que se manifesta nas distribuições de honras, de dinheiro

ou das outras coisas que são divididas entre os que participam do sistema político”.

Segundo John Rawls o sistema deve ser estruturado de forma que a

distribuição se dê de forma justa, ou seja, deve haver um sistema de igualdade de

oportunidades eqüitativas, em oposição à igualdade formal, o que faz com que o

Poder Público assegure oportunidades iguais de educação e cultura para pessoas

semelhantemente dotadas e motivadas.

Para os fins desta manifestação, não é necessário optar por nenhuma

concepção específica de justiça distributiva, bastando a convicção mais ou menos

geral de que não é justo que os ônus e benefícios sociais sejam distribuídos de

maneira desigual entre brancos e negros.

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Contra a tese da justiça distributiva argumenta-se que nem sempre é possível

identificar, dentre as diversas iniqüidades sociais, quais decorreriam da

discriminação racial e quais seriam resultantes de outros fatores.

2.1.3. Teoria mista

Por derradeiro, há os que defendem uma terceira teoria, como, por exemplo,

Álvaro Ricardo de Souza Cruz, segundo o qual as ações afirmativas legitimam-se

com base nos princípios de pluralismo jurídico e da dignidade da pessoa humana,

estruturadas no paradigma do Estado Democrático de Direito.

Contudo, não se trata, na realidade, de uma teoria mista, no sentido

morfológico do termo, mas sim de uma terceira teoria, uma vez que baseada em

fundamentos diversos das teorias da justiça distributiva e compensatória.

2.2. Aspectos positivos e críticas às ações afirmativas

Segundo Paulo Lucena de Menezes, entre os principais argumentos que são

apresentados como justificativa para as ações afirmativas, destacam-se:

a) Correção dos efeitos presentes de atos discriminatórios passados: a ação

afirmativa é um mecanismo corretivo que busca compensar os efeitos de

atos discriminatórios praticados no passado;

b) Instituição de um igualitarismo justo e/ou eficiente: a ação afirmativa

representa um mecanismo de redistribuição que permite a correção de

desigualdades existentes entre grupos sociais. Referida redistribuição, por

sua vez, diminui a pobreza e a tensão social, ampliando a prosperidade em

toda a sociedade;

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c) Prevenção de discriminação futura: a ação afirmativa diminui as

possibilidades de novas ações discriminatórias.

d) Diversidade: a ação afirmativa é uma ferramenta que promove a

diversidade.

No tocante às criticas, destacam-se as seguintes:

a) Discriminação reversa: a ação afirmativa consiste em um procedimento

condenável, na medida em que utiliza o mesmo critério arbitrário de

diferenciação que foi usado no passado, para discriminar um determinado

grupo social, embora com o fito deliberado de compensá-lo;

b) Acirramento da discriminação: a ação afirmativa reforça o preconceito;

c) Comprometimento do sistema meritocrático: a ação afirmativa ocasiona a

escolha de pessoas menos qualificadas;

d) Concessão de benefícios para pessoas que não se encontram em situação

desvantajosa: a ação afirmativa acaba por favorecer indivíduos que não

necessitam de tais benefícios;

e) A penalização de “indivíduos inocentes”: a ação afirmativa prejudica

aqueles que não são pessoalmente responsáveis pelas discriminações e

injustiças ocorridas no passado;

f) Estigmatização: a concessão de benefícios tende a estigmatizar tanto

aqueles que os recebem (a tendência deles depreciarem as próprias

conquistas), como aqueles que deixam de recebê-los (possibilidade deles

desvalorizarem aqueles que obtiveram êxito às custas das vantagens

ofertadas);

g) Equívocos na seleção dos critérios distintivos: em muitos casos, as

desigualdades existentes decorrem, principalmente, de fatores

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econômicos, pelo que a utilização de outros critérios, tais como raça e

gênero, apresenta uma opção injustificada.26

Outro argumento utilizado por aqueles que são contrários às políticas de ação

afirmativa e, especificamente, à proposta de reserva de vagas em órgãos públicos e

universidades, é que esta não encontra apoio por parte da opinião pública brasileira.

No entanto, são raras as pesquisas que já trataram do assunto, não existindo

evidências empíricas suficientes para fazer esse tipo de constatação. Com base nas

pesquisas que já abordaram este assunto, seria mais correto assegurar que a rejeição

é maior entre as classes médias e as elites, e menor em outros segmentos da

população.27

Uma pesquisa de opinião realizada pelo Instituto Datafolha, em 1995, incluiu

uma pergunta testando o apoio à criação de “cotas raciais” na educação e mercado

de trabalho. De acordo com os resultados, foram os segmentos da população de

renda e escolaridade mais elevadas que revelaram maior oposição à proposta. Outra

pesquisa, realizada pelo CEAP/DATAUFF, no ano 2000, também tratou do assunto.

Uma análise preliminar dos resultados mostrou que ainda é grande o

desconhecimento da população sobre as políticas de ação afirmativa, pois 60% dos

entrevistados afirmaram que não tinham ouvido falar dos projetos de reserva de

vagas para os negros nas universidades e no mercado de trabalho. No entanto, entre

os que já tinham ouvido falar do assunto, observou-se que existia uma tendência de

apoio a tais propostas.28

Outrossim, nova pesquisa realizada pelo DataFolha em 2006 indicou que

65% dos brasileiros apóiam a adoção de cotas para afrodescentes nas universidades,

sendo que 87% dos entrevistados também concordam que deveriam ser criadas

reservas de vagas nas universidades para pessoas pobres e de baixa renda,

26MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 16-20. 27BARRETO, Paula Cristina da Silva. Racismo e anti racismo na perspectiva de estudantes universitários de

São Paulo. 2003. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. p. 200.

28Id. Ibid.

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independentemente da raça. Contudo, a aprovação diminui à medida que aumenta a

renda familiar e a escolaridade do entrevistado.29

Já Rita Laura Segato aponta que a reserva de vagas no ensino superior

apresenta nove tipos de “eficácia”:

a) Eficácia reparadora: instaura, no espaço acadêmico, um mecanismo

eficiente para ressarcir, pelo menos em parte, as perdas infringidas na

nação brasileira ao componente negro de sua população;

b) Eficácia corretiva: redireciona o futuro de uma sociedade cuja história

acumula um enorme passivo em relação à população negra;

c) Eficácia educativa imediata: trata-se de uma medida de impacto imediato,

porquanto estritamente direcionada para os estudantes negros pela sua

posição singular e vulnerável em todos os níveis escolares. É, também,

uma medida de cunho emergencial e, por isso, não vem substituir outras

de longo prazo, como aquelas que propõem a melhoria da qualidade do

ensino público e cotas para estudantes pobres ou formados pela rede

pública.

d) Eficácia experimental: o sistema de cotas tem a vantagem de permitir ser

monitorado regularmente, com o intuito de avaliar seu impacto na vida

universitária e, em particular, no sistema educativo.

e) Eficácia pedagógica: será proporcionada uma convivência plural e a

constatação diária da diversidade própria do mundo, do ponto de vista

racial, entre os alunos negros e brancos.

f) Eficácia educativa de espectro ampliado: crianças e adolescentes negros

poderão encontrar estímulo ao observarem adultos de sua cor como seus

professores.

g) Eficácia política: as cotas agem indiretamente sinalizando a questão racial.

Instam a sociedade a refletir o irrefletido e a debater suas conseqüências.

29FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 23 jul. 2006. Cotidiano.

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h) Eficácia formadora de cidadania: as cotas são uma pedagogia cidadã ao

revelarem à sociedade o seu poder de intervir e interferir ativamente no

curso da história.

i) Eficácia comunicativa: a cor da pele negra é um signo ausente do texto

visual geralmente associado ao poder, à autoridade e ao prestígio. À

medida que o signo do negro e o rosto negro se fizerem presentes na vida

universitária, assim como em posições sociais e profissões de prestígio,

nas quais antes não se inseria, essa presença irá tornar-se habitual e

modificará as expectativas da sociedade.30

A autora acima referida também explica que há sete razões para o público

brasileiro reagir ao programa de cotas, tais como:

a) Falta de reflexão e informação, pois muitas opiniões são proferidas na

ignorância dos fatos que sustentam o debate;

b) A existência de diferentes formas de racismo, que pode ser prático

(automático e culturalmente estabelecido), axiológico (conjunto de valores

e crenças que atribuem predicados negativos aos negros), emotivo (rancor e

ressentimento em relação a outra raça) e político;

c) A existência de uma zona de insensibilidade da cultura brasileira: o

padecimento moral e a insegurança das pessoas negras na nossa sociedade

não encontram meios expressivos para se manifestar e não encontram

registro no discurso midiático ou acadêmico;

d) As famílias brasileiras “brancas”, com exceção daquelas formadas

exclusivamente por imigrantes e seus descendentes não miscigenados,

lutaram por diluir e esquecer sua parcela de ancestralidade negra;

30SEGATO, Rita Laura. Cotas: por que reagimos? Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 83-86, dez./fev.

2005/2006.

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32

e) O sujeito da elite pós-escravocrata se constitui numa paisagem de

desigualdade e exclusão: trata-se de uma razão psicológica, fundada no

padrão de formação da subjetividade de muitos brasileiros;

f) A autoridade do professor fundamenta-se no suposto da lisura incontestável

dos processos de seleção que transpôs ao longo da sua carreira acadêmica;

g) O comprometimento histórico das ciências sociais na construção da imagem

hegemônica da nação brasileira como um caso de relações raciais bem

sucedidas.31

Analisando-se os argumentos favoráveis e as críticas às ações afirmativas,

em especial a política de cotas para negros nas universidades públicas, entendemos

que os aspectos positivos superam, em muito, os aspectos negativos apontados,

constituindo poderoso instrumento de transformação social e de superação das

desigualdades raciais. Tal ponderação será melhor analisada no sexto capítulo deste

trabalho, a partir do estudo da constitucionalidade desta ação afirmativa.

31SEGATO, Rita Laura. op. cit., p. 77-82.

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33

3. A EXPERIÊNCIA NORTE-AMERICANA DE AÇÕES

AFIRMATIVAS

A recente literatura e grande parte dos pesquisadores identificam nos Estados

Unidos a principal referência para o debate sobre ações afirmativas relacionadas à

questão racial no Brasil, muito embora a política de cotas não esteja restrita àquele

país.

Sobre este aspecto, é importante mencionar que as ações afirmativas não se

limitam apenas aos Estados Unidos, pois as experiências desenvolvidas na Índia e

Malásia também se tornaram emblemáticas32.

Segundo Sabrina Moehlecke, utilizar os Estados Unidos como paradigma em

termos de relações e políticas raciais expõe-nos a situações contraditórias. Ao

mesmo tempo em que as ações, conquistas e resultados alcançados naquele país

oferecem importante exemplo de um Movimento Negro organizado e forte e do

êxito no tratamento dessa questão, as possibilidades de experiências semelhantes

ocorrerem no Brasil são muito contestadas; afinal, o tipo de racismo lá existente,

com a sua história de segregação e discriminação explícita e legal, é diferente do

brasileiro como também são diversas a organização da população negra, a

conjuntura política e econômica à época de implementação das ações afirmativas, a

estrutura da sociedade, entre outros aspectos.33

Mas o fato é que a experiência jurídica norte-americana, em razão de sua

relevância e de seu pioneirismo, tornou-se um paradigma para os brasileiros, tanto

para os defensores desta espécie de ação afirmativa, como para os seus críticos e

opositores.

O surgimento da política de cotas para negros nas universidades públicas

norte-americanas teve como pano de fundo dois movimentos emblemáticos, quais

32Na Índia, o sistema de ações afirmativas é composto por regras que se aplicam a três grupos, quais sejam:

as castas classificadas (intocáveis hindus e segmentos de minorias religiosas com privações), tribos classificadas e outras “classes atrasadas”.

33MOEHLECKE, Sabrina. op. cit., p. 21.

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34

sejam, o movimento social de luta pela igualdade racial e o movimento pela

universalização do acesso ao ensino superior.

Do ponto de vista histórico, a construção das ações afirmativas nos Estados

Unidos está intimamente relacionada com o fim da segregação legal ou indireta. O

sistema segregacionista norte-americano, conhecido como Jim Crow, envolvia leis

que legitimavam a prática do racismo, pois estabeleciam a separação entre brancos e

negros em diversas áreas da vida social. O movimento segregacionista nasceu na

década de 1890 e atingiu o seu ápice no final da primeira década do século XX.

Durante esses trinta anos vigorou uma separação entre brancos e negros nas escolas

e em diversas áreas das relações cotidianas.

É válido ressaltar que, em 1863, durante a Guerra de Secessão, foi extinto o

sistema escravista nos Estados Unidos, iniciando-se, dois anos depois, o período de

Reconstrução, ocasião em que foram aprovadas as Emenda n.° 14 e 15, conferindo

aos negros os direitos de cidadania.

Ocorre que, simultaneamente, foram aprovadas leis segregacionistas em

alguns estados da região sul, legalizando o sistema do “Jim Crow”, que se

consolidou principalmente em 1896, com o caso Plessy versus Ferguson, quando a

Suprema Corte decidiu que leis estaduais discriminatórias eram autorizadas pela

Constituição, desde que acomodações iguais fossem destinadas a cada um (doutrina

do separate, but equal).

Esta decisão da Suprema Corte abriu precedente para que fossem criados

estabelecimentos públicos distintos para brancos e negros, bem como para que

fossem reservados assentos diferentes para cada grupo racial em ônibus e trens.

Foi apenas no século XX que o sistema segregacionista foi revisto. Em 1945,

um negro chamado Sweatt tentou ingressar na Faculdade de Direito da Universidade

do Texas, mas foi recusado porque uma lei estadual determinava que somente

brancos poderiam freqüentar a universidade. A Suprema Corte declarou que esta lei

violava os direitos de Sweatt, garantidos pela Décima Quarta Emenda da

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35

Constituição dos Estados Unidos, segundo a qual nenhum Estado pode negar a um

homem a igual proteção perante suas leis.

Ocorre que, para Ronald Dworkin, na decisão real do caso Sweatt, a Suprema

Corte aplicou a antiga norma segundo a qual a segregação era constitucionalmente

permitida, desde que se oferecessem aos negros instalações “separadas, mas

iguais”.34 Portanto, na prática, esta decisão foi baseada na doutrina do “separate,

but equal”. O Texas havia criado uma faculdade de direito exclusivamente para os

negros, mas a Suprema Corte entendeu que a escola não era, de modo algum, igual

à dos brancos. O caso Sweatt foi decidido antes do famoso caso Brown, no qual a

Suprema Corte finalmente rejeitou a regra “separados, mas iguais”.

Em 1954, no caso Brown versus The Board of Education de Topeka, a

Suprema Corte declarou inconstitucional a existência de escolas públicas separadas

para brancos e negros. A importância histórica deste julgamento deve-se ao fato de

que ele impôs o fim à segregação racial nas instituições de ensino.

Após a decisão do aludido processo, a Suprema corte norte-americana

deparou-se com inúmeras dificuldades para tornar o julgamento eficaz, pois ainda

havia diversas resistências, em determinadas localidades, para se promover a

integração ordenada judicialmente. A implementação da decisão, portanto, não foi

imediata, fazendo com que a integração em todas as escolas levasse praticamente

dez anos.

Ora, a decisão Brown ocorreu em 1954, sendo que o primeiro decreto a

respeito foi emitido somente em 1955 e o prazo para cumprimento foi até 1956. Em

1955, em oito estados do sul, nenhuma criança negra havia sido admitida em

qualquer escola pública para crianças brancas. Em 1956 foi lançado o Manifesto

Sulista, atacando a decisão Brown e desafiando tanto a Suprema Corte quanto o

governo central, sendo significativa a atuação do povo nas assembléias estaduais e

no Congresso Nacional, juntamente com a criação dos Conselhos de Cidadãos (ou

de brancos) nos estados e cidades como meio de reforçar a oposição à integração.

34DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,

2007. p. 354.

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36

Na esfera jurídica, a execução da decisão foi atribuída aos tribunais inferiores

(distritais), que pouco ou nada faziam.35

O fato é que a Suprema Corte passou a se mostrar insatisfeita com os

avanços pouco significativos, razão pela qual começou a impor medidas

“racialmente balanceadas”, que assegurassem o real desmantelamento da doutrina

do “separate, but equal”. A partir daí, a igualdade racial passou a ser considerada,

na esfera judicial, em termos de resultados. Foi por esta razão que os primeiros

processos sobre ação afirmativa aceitos pela Suprema Corte norte-americana

envolviam instituições de ensino.

Em 1960, iniciaram-se as manifestações mais declaradas pelos direitos civis

e contra a segregação, lideradas pelo protesto estudantil, que amplamente

exploraram as contradições da democracia e do liberalismo norte-americano.

Organizações e protestos negros aos poucos ganhavam força e adesões. Em

fevereiro deste mesmo ano, quatro jovens iniciaram um protesto pacífico contra a

segregação racial em restaurantes, que posteriormente levou a uma série de boicotes

em diversas áreas. Foi forte e crescente a influência de lideranças negras de alcance

nacional, como Martin Luther Ling e Malcolm X, ambos assassinados, e a posterior

radicalização de alguns grupos, como os Panteras Negras. O apoio e envolvimento

da população negra em relação a esses movimentos puderam ser observados na

“Marcha sobre Washington por empregos e liberdade”, realizada em 29 de agosto

de 1963, reunindo cerca de 250 mil pessoas. A luta pelos direitos civis dos negros

também recebia o apoio de grupos religiosos protestantes, católicos e judeus, e de

lideranças brancas. Foi deste modo que a questão racial, aos poucos, passou a ser

inserida na agenda nacional.36

O Estado também passou a assumir uma postura mais ativa em relação à

promoção da igualdade racial em 1961, quando o então Presidente John Kennedy

criou a Ordem Executiva n.° 10.925, utilizando, pela primeira vez, o termo “ação

afirmativa” e estabeleceu a Comissão para Igualdade de Oportunidade no Emprego.

35MOEHLECKE, Sabrina. op. cit., p. 23. 36Id. Ibid., p. 25.

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No ano de 1962, o presidente expediu uma ordem proibindo a discriminação racial

em projetos federais de habitação e, no mesmo ano, o Ministério da Saúde,

Educação e Bem-Estar, ausente até um momento anterior, passou a garantir a

integração final de escolas públicas do sul negando aos distritos escolares que

permanecessem segregando assistência financeira federal.

Porém, foi em 1964 e 1965 que surgiram as principais peças legislativas que

viriam a garantir o desenvolvimento da política da igualdade racial conhecida como

ação afirmativa. Em 1964, foi aprovada no Congresso Nacional a Lei de Direitos

Civis, que vedou a discriminação com base na raça, sexo ou origem nacional. O

Civil Rigth Act limitou-se a vedar a prática de medidas segregacionistas e

discriminatórias em situações e ambientes diversos, incluindo-se as universidades

públicas e privadas.

No ano seguinte, o então presidente Lyndon Johnson assinou a Ordem

Executiva n.° 11.246, exigindo que as instituições vinculadas ao governo federal

adotassem um programa de ação afirmativa para assegurar que pessoas empregadas

sejam tratadas de forma igual e sem discriminação com base na raça, cor, credo ou

origem nacional.37

Referido ato trouxe, dentre outras inovações, a obrigação das agências

governamentais de incluir uma cláusula em todos os contratos públicos, prevendo o

compromisso do contratante de adotar ação afirmativa destinada a assegurar a

inexistência de práticas discriminatórias na contratação e no tratamento conferido a

funcionários.

Constatou-se, portanto, que a mera liberdade não era suficiente para

combater as desigualdades entre os indivíduos, e que a neutralidade estatal

contribuiria apenas para perpetuar o status quo.

Vale a pena ressaltar parte do discurso que o então presidente Lyndon

Jonhson proferiu na Universidade de Harvard em 1965:

37MOEHLECKE, Sabrina. Fronteiras da igualdade no ensino superior, excelência e justiça racial. 2004.

Tese (Doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. p. 84.

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38

“Freedom is not enough. You do not wipw away the scars os centuries by saying now you´re free to go where you want and do as you desire and choose the leaders you please. You do not take a person who for years has been hobbled by chains and liberate him, bring him up to the starting line of race and them say, you´re free to compete with all others, and justly believe that you have been completely fair…It is not enough just to open the gates of opportunity. All our citizens must have the ability to walk through those gates”.38

Seu discurso retrata, assim, a postura assumida por seu governo no cuidado

com a questão racial e no modo como buscou propiciar a igualdade de

oportunidades, garantindo um tratamento desigual para aqueles que se encontravam

em situações desiguais.

Terry Eastland, ao analisar a origem das ações afirmativas a partir da atuação

das várias administrações desde o Presidente John F. Kennedy, identifica a

administração do Presidente Lyndon Jonhson, do partido Democrata, como a

responsável pelos primeiros passos na direção dessas políticas. Além da Lei de

Direitos Civis, a Ordem Executiva n.° 11.246/1965 impôs a adoção de ações

afirmativas na contratação e promoção para todos aqueles que recebem verbas de

contratos com a Federação.39

Mais adiante, em 1966, o Escritório de Queixas de Contratos Federais

(OFCC), vinculado ao Ministério do Trabalho, elaborou o “Plano da Philadélphia”,

estabelecendo objetivos numéricos a serem alcançados por políticas de ação

afirmativa. Foi a partir daí que se espalharam por todo o país experiências de ação

afirmativa, seja como uma iniciativa governamental, seja como uma iniciativa

privada.

38“A liberdade não é suficiente. Não apagamos as cicatrizes de séculos dizendo ‘agora você é livre para ir

aonde quiser e fazer o que desejar e escolher os líderes que lhe agradem’. Não pegamos uma pessoa que por anos ficou presa por correntes e a libertamos, a trazemos para o início da linha de partida de uma corrida e daí dizemos, ‘você está livre para competir com todos os outros’ e acreditamos que, com isso, fomos completamente justos... Não é suficiente apenas abrir as portas da oportunidade. Todos nossos cidadãos devem ter a habilidade necessária para atravessar essas portas”.

39MOEHLECKE, Sabrina. Propostas de ações afirmativas no Brasil: o acesso da população negra ao ensino superior, cit., p. 27.

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Segundo Paulo Lucena de Menezes,

“é na administração do presidente Richard Nixon que se constata um nítido afastamento das diretrizes até então adotadas, mediante a aprovação de uma série de medidas mais incisivas, entre as quais se destaca a revisão de uma das normas regulamentadoras da Executive Order n.° 11.246 (a Implementing Order n.° 04), pelo Secretário do Trabalho, que passou a ser conhecida por Revised Order n.° 04 (1971)”.40

Assim, na segunda metade do século XX, desenvolveu-se nos Estados

Unidos a idéia de um “acesso universal” ao ensino superior, contemplando,

principalmente, a população negra. E foi dentro deste contexto de expansão do

sistema de ensino superior e de luta pela justiça racial que as ações afirmativas

foram ganhando campo no âmbito das universidades norte-americanas.

De acordo com Sabrina Moehlecke,

“durante o período de 1960 a 2000, os dados mostram um quadro positivo e um aumento significativo daqueles que ingressam na educação superior. A percentagem de negros na idade ideal matriculados neste nível de ensino passou de 13% em 1967 para 30,3% em 2000, sendo o período de maior crescimento de 1967 a 1976, quando praticamente dobrou a percentagem daqueles ingressantes”.41

Destarte, nota-se que o quadro de desigualdades no acesso à educação

superior entre brancos e negros alterou-se significativamente nas quatro últimas

décadas, pois houve uma melhora nas taxas gerais de ingresso e uma diminuição

das diferenças entre os grupos raciais.

As divergências em torno do sistema de cotas, contudo, não desapareceram.

Uma das principais polêmicas existentes no tocante às políticas de ação afirmativa

nos Estados Unidos gira em torno da escolha de ações “class-based” ou “race-

based”, seguindo uma tendência de, em contextos políticos mais conservadores,

40MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 23. 41MOEHLECKE, Sabrina. Fronteiras da igualdade no ensino superior, excelência e justiça racial, cit., p. 89.

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privilegiarem políticas de caráter universalista ao invés de particularista, questão

esta também presente no Brasil, que será analisada oportunamente.

A título de exemplo, convém citar que, em 1971, um judeu chamado

DeFunis candidatou-se a uma vaga na Faculdade de Direito da Universidade de

Washington e foi recusado, ainda que as notas dos exames aos quais se submeteu e

as de todo seu histórico escolar fossem tão altas que ele teria facilmente sido

admitido se fosse negro, filipino, chicano ou índio americano. DeFunis pediu à

Suprema Corte que declarasse que a prática observada pela Universidade de

Washington, menos exigente com os candidatos pertencentes a grupos minoritários,

violava os direitos que lhe eram assegurados pela Décima Quarta Emenda.

O caso DeFunis dividiu os grupos de ação política que tradicionalmente

defendiam causas liberais. A Liga Antidifamação B´nai Brith e a AFL-CIO, por

exemplo, juntaram seu parecer aos autos do processo na condição de amicus curiae

(amigo da corte), em apoio à reivindicação de DeFunis, enquanto o American

Hebrew Woman´s Council e a UMWA adotaram uma posição contrária.42

Essas divisões entre antigos aliados demonstram tanto a importância prática

como a importância filosófica do caso. No passado, os liberais sustentaram, como

parte de um conjunto de atitudes, três proposições distintas, quais sejam: a) que a

classificação racial é um mal em si mesma; b) que todos têm direito a uma

oportunidade educacional proporcional às suas habilidades; c) que a ação afirmativa

estatal é o remédio adequado para as graves desigualdades existentes na sociedade

norte-americana.

Alguns educadores alegam que cotas favorecidas são ineficazes e, até

mesmo, contraproducentes, já que o tratamento preferencial reforça o sentimento de

inferioridade que muitos negros já têm. Outros fazem uma objeção mais genérica,

argumentando que qualquer discriminação racial – mesmo aquelas com o propósito

de beneficiar minorias – acaba por prejudicá-las, pois o preconceito é fomentado

sempre que as distinções raciais são toleradas, seja qual for o seu objetivo. De

acordo com o argumento moral, ainda que a discriminação compensatória beneficie 42DWORKIN, Ronald. op. cit., p. 344.

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as minorias e diminua o preconceito a longo prazo, ela é equivocada, pois as

distinções baseadas no critério racial são inerentemente injustas, pois violam os

direitos de membros individuais de grupos não igualmente favorecidos.43

Vale também ressaltar o exemplo do emblemático caso Bakke, julgado pela

Suprema Corte norte-americana em 1978. A Escola de Medicina da Universidade

da Califórnia mantinha um programa de ação afirmativa, cujo objetivo era

privilegiar a admissão de negros e outras minorias. No total de cem vagas, dezesseis

eram destinadas aos membros de grupos minoritários. Allan Bake, candidato branco,

concorreu a estas oitenta e quatro vagas remanescentes, mas não alcançou a média

exigida, embora tivesse obtido uma nota superior aos candidatos que optaram pelo

sistema de cotas. Em razão de tal fato, Bakke instaurou um processo contra a

universidade alegando que a Faculdade de Medicina o discriminou por ser branco

ao adotar sistemas de admissão distintos, um para brancos e outro para não-brancos

e lhe negou a admissão ao mesmo tempo em que aceitou estudantes negros com

notas inferiores às suas.

A Suprema Corte, por cinco votos favoráveis e quatro contrários, decidiu que

o sistema de ingresso utilizado, baseado em cotas rígidas, era ilegal, mas definiu

como legítimo o uso da raça como critério na seleção de alunos desde que

combinado com outros. Desta forma, justificou-se que a raça poderia ser utilizada

como critério de ingresso desde que isso ocorresse para reparar uma situação de

desvantagem que atingisse determinado grupo devido à discriminação racial

passada e presente. Em síntese: entendeu-se que as ações afirmativas não violam a

Constituição, desde que utilizadas de forma adequada.

Ao analisar o caso Regentes da Universidade da Califórnia contra Allan

Bakke, Ronald Dworkin ressalta que os programas de ação afirmativa nas

universidades norte-americanas usam critérios racialmente explícitos porque seu

objetivo imediato é aumentar o número de membros de certas raças em

determinadas profissões. Segundo ele, tais programas baseiam-se em dois juízos:

43DWORKIN, Ronald. op. cit., p. 345.

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“O primeiro diz respeito à teoria social: que os Estados Unidos permanecerão impregnados de divisões raciais enquanto as carreiras mais lucrativas, gratificantes e importantes continuarem a ser prerrogativa de membros da raça branca (...) O segundo é um cálculo de estratégia: que aumentar o número de negros atuando nas várias profissões irá, a longo prazo, reduzir o sentimento de frustração, injustiça e constrangimento racial na comunidade negra”.44

O que se seguiu ao caso Bakke foi uma série de julgamentos em que,

paulatinamente, foi sendo traçado o perfil constitucional da ação afirmativa. No

período de 1978 a 1995, a Suprema Corte norte-americana julgou doze processos

sobre ação afirmativa, sendo que sete deles foram definidos com base na “equal

protection clause” (incluindo-se a due process of law vertente da Quinta-Emenda

Constitucional), quatro foram decididos com apoio em disposições legais e um foi

solucionado com base em fundamentos constitucionais e legais (Title VII do Civil

Right Act). Em tais processos, as políticas de ação afirmativa submetidas ao crivo

judicial foram mantidas em sete ocasiões e negadas em cinco.45

Conforme bem ressaltou Paulo Lucena de Menezes, apesar da inexistência de

uma definição clara, foram traçados alguns parâmetros gerais pela Suprema Corte

norte-americana: a) ainda que a existência de discriminação passada e difusa não

represente, em si mesma, uma causa suficiente para a instituição de um tratamento

preferencial, referido tratamento, quando instituído, não precisa ficar restrito às

próprias vítimas da discriminação, podendo ser utilizado não só com fins

compensatórios, mas preventivos; b) embora as políticas de ação afirmativa possam

expandir o espectro dos candidatos elegíveis, de forma inclusive a promover a

diversidade, elas não podem adotar sistemas de cotas ou outras exigências

numéricas rígidas; c) essas políticas devem ser delineadas restritivamente e

implementadas do modo mais flexível possível, de maneira a minimizar os

indesejáveis ônus incidentes sobre os indivíduos não beneficiados, isto é, quando

inexistirem outros meios pertinentes disponíveis, não há motivos para medidas

44DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes,

2001. p. 439. 45MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 57.

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drásticas; e d) as políticas de ação afirmativa devem ser não apenas temporárias,

mas revistas periodicamente, para que se verifique se elas ainda são necessárias, no

contexto específico.46

Ao analisar o tema das ações afirmativas, Ronald Dworkin entendeu que

existem dois tipos diferentes de direitos. O primeiro é o direito a igual tratamento

(equal treatment), que é o direito a uma igual distribuição de alguma oportunidade,

recurso ou encargo. Todo cidadão, por exemplo, tem direito a um voto igual em

uma democracia; este é o cerne da decisão da Suprema Corte de que uma pessoa

deve ter um voto, mesmo se um arranjo diferente e mais complexo assegurar melhor

o bem-estar coletivo. O segundo é o direito ao tratamento como igual (treatment as

equal), que é o direito, não de receber a mesma distribuição de algum encargo ou

benefício, mas de ser tratado com o mesmo respeito e consideração que qualquer

outra pessoa. Por exemplo, se tenho dois filhos, e um deles está morrendo de uma

doença que está causando desconforto ao outro, não demonstrarei igual atenção se

jogar cara ou coroa para decidir qual deles deve receber a última dose de um

medicamento. Isso mostra como o direito ao tratamento como igual é fundamental,

e que o direito ao igual tratamento é derivado. Em algumas circunstâncias, o direito

ao tratamento como igual implicará um direito a igual tratamento, mas certamente

não em todas as circunstâncias.47

Também merecem destaque os processos Grutter e Gratz da Universidade de

Michigan. A peculiaridade de tais casos está no fato de que referida universidade,

considerada uma instituição de prestígio nacional, está localizada em um Estado

cujo histórico não é de segregação racial. A escolha dos critérios para a seleção de

alunos, incluindo inclusive aspectos raciais, era fundamentada na autonomia

universitária.

Em outubro de 1997, Jennifer Gratz e Patrick Hamacher foram recusados

pela Escola de Letras, Ciências e Artes e ingressaram com uma ação judicial

alegando que o sistema da universidade adotava critérios raciais e étnicos de forma

46MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 58-59. 47DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, cit., p. 349.

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excessiva. A universidade, por sua vez, aduziu que a adoção de tais critérios

encontrava amparo constitucional (Décima-Quarta Emenda Constitucional) e legal.

A Décima Quarta Emenda Constitucional48 estabeleceu o critério da equal

protection of laws, que significa o direito de um grupo não ser isolado e não ver

negada sua capacidade de procurar proteção diante de discriminação ou qualquer

outra forma de tratamento abusivo por parte da lei.

Porém, a promessa da Décima Quarta Emenda de que nenhuma pessoa será

privada da equal protection of the laws deve coexistir com a necessidade prática da

maior parte da legislação realizar classificações para um propósito ou outro.

O primeiro processo a ser julgado foi Gratz, em dezembro de 2000, quando

foi reconhecida a constitucionalidade do programa de admissão da Escola de Letras,

Ciências e Artes, com base no argumento de que a diversidade estudantil representa

um “interesse estatal cogente”.49

Já a decisão do processo Grutter foi apresentada em março de 2001, quando

um magistrado distinto daquele que apreciou Gratz acolheu o pedido dos alunos e

entendeu que as instituições universitárias não podem empregar fatores raciais na

admissão de candidatos, exceto para compensar os efeitos derivados da própria

prática de atos discriminatórios. Outrossim, a sentença judicial destacou que o

excessivo valor atribuído aos critérios raciais violaria a jurisprudência da Suprema

Corte.

Como salientou Paulo Lucena de Menezes, ao citar constitucionalistas de

grande prestígio, tais como Mak Tushnet, Kenneth Karst, Frank Michelman e

Laurence Tribe,

“as decisões prolatadas em Grutter e Gratz, quando analisadas simultaneamente, deixam patente a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa que objetivam a promoção da

48Emenda constitucional é o mecanismo de alteração das normas constitucionais através de um processo

legislativo especial e mais dificultoso que o ordinário. A emenda à Constituição Federal, enquanto proposta, é considerada um ato infraconstitucional sem qualquer normatividade, só ingressando no ordenamento jurídico após a sua aprovação, passando então a ser preceito constitucional, de mesma hierarquia das normas constitucionais originárias.

49MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 76.

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diversidade do corpo discente no universo acadêmico, justificando a utilização do fator racial como um dos critérios possíveis de serem adotados nos processos de seleção de candidatos, desde que este fator seja empregado de forma flexível e individualizada”.50

No tocante à experiência brasileira, que será apreciada oportunamente,

criticam-se as cotas sob a alegação de que não se deve copiar o modelo norte-

americano, haja vista que se trata de realidades históricas distintas. Argumenta-se

que no Brasil, caracterizado pelo alto grau de miscigenação, não há como se

diferenciar brancos e negros, ao passo que nos Estados Unidos a discriminação está

muito mais ligada à questão racial do que social.

Para Mary Ann Glendon, existem quatro aspectos fundamentais que

distinguem o ordenamento jurídico norte-americano no que tange ao papel atribuído

ao Estado no âmbito social e econômico, quais sejam:

a) a Constituição e o Bill of Rights norte-americanos foram adotados muito

antes do advento do Welfare State e da noção moderna de direitos sociais;

b) a Constituição norte-americana não contempla direitos sociais, no sentido

de “direitos positivos”;

c) a resistência dos Estados Unidos em assinar diversos tratados

internacionais sobre direitos humanos; e

d) a estrutura extremamente peculiar do que se poderia denominar “Welfare

State” norte-americano.51

O constitucionalismo norte-americano representou a expressão do “Direito

Liberal”, pois a Constituição dos Estados Unidos foi concebida não apenas como o

instrumento organizador do poder estatal, mas também como a manifestação dos

valores das elites revolucionárias que tinham a expectativa de que tais valores

modificassem a sociedade.

50MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 81. 51Apud, MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 36-37.

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46

Ao se analisar a Declaração de Independência e a Declaração de Direitos da

Virgínia, o significado da expressão “igualdade de oportunidades” baseava-se no

fundamento de que os indivíduos são iguais em face da sua própria condição humana,

já que todos são indistintamente aptos a ser sujeitos de direitos e obrigações.

Assim, uma das principiais críticas dirigidas às propostas de implementação

de políticas de ação afirmativa no Brasil refere-se à suposta “importação” de

soluções adotadas em outros contextos, que não seriam necessariamente adequadas

ao Brasil. Argumenta-se que existem peculiaridades da sociedade brasileira que

dizem respeito ao modo de operação do racismo – não-segregacionista – à

construção das categorias racializadas e à própria cultura, e que, portanto, não faria

sentido algum copiar modelos de políticas anti-racistas utilizadas, por exemplo, nos

Estados Unidos. Essa interpretação da sociedade brasileira, como tendo

especificidades e peculiaridades que a distinguiriam radicalmente da sociedade

norte-americana, está presente na argumentação de vários autores.52

Alega-se também que há diferenças históricas, sociais e culturais que

engendraram o racismo nos Estados Unidos e no Brasil, sendo que a maior delas

está no fato de que, enquanto no Brasil houve uma integração de raças comandadas

pela intensa miscigenação, nos Estados Unidos houve um sistema institucional de

segregação que proibiu a convivência entre brancos e negros. Ou seja, o problema

da integração do negro à sociedade americana não foi apenas uma herança perversa

da escravidão, mas, sobretudo, conseqüência de um racismo institucionalizado.

Contudo, não se trata de copiar este ou aquele modelo, mas sim de se

aproveitar as experiências de outros países e tentar adaptá-las à realidade nacional,

respeitando-se as peculiaridades culturais e históricas de cada povo. Ademais,

embora o racismo no Brasil não tenha sido institucionalizado, os efeitos das

profundas desigualdades entre brancos e negros, do ponto de vista cultural e social,

acabou sendo o mesmo em ambos os países.

52BARRETO, Paula Cristina da Silva. op. cit., p. 187.

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4. A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA

4.1. Antecedentes históricos

Desde a Constituição de 1824, os textos constitucionais brasileiros

declararam a igualdade de todos perante a lei. Contudo, a Constituição de 1824

excluiu da definição de cidadão a população escravizada, a qual não eram

assegurados sequer os direitos civis.

Já a Constituição Republicana de 1891 ampliou tais direitos, mas impôs a

alfabetização como critério para o direito ao sufrágio, em um contexto em que

praticamente toda a população negra era analfabeta, uma vez que a abolição da

escravidão ainda era fato recente na história brasileira.

A Constituição de 1934, por sua vez, prescreveu, em seu art. 113, a igualdade

entre os cidadãos, independentemente de nascimento, sexo, raça, profissões próprias

ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas.

As Constituições de 1937 e 1946 mantiveram o mesmo padrão de redação,

estabelecendo que “todos são iguais perante a lei”.

Assim, em que pese a legislação pátria não tenha previsto, de forma expressa,

critérios de discriminação racial, ocorreram restrições à população negra nas leis

que cuidavam da imigração. Com efeito, um decreto ratificado em 28 de junho de

1890 prescreveu que os africanos e asiáticos somente poderiam ser admitidos nos

portos brasileiros mediante autorização do Congresso Nacional.

Foi apenas em 1951 que surgiu a primeira legislação anti-racista no Brasil,

conhecida como “Lei Afonso Arinos”, que passou a punir a prática de

discriminação racial.

Dentro de uma perspectiva nacional, com o processo de redemocratização

pelo qual o Brasil passou na década de 80, e de reorganização do Movimento

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Negro, a partir do final dos anos 70, a desigualdade racial existente no país passou a

ser sistematicamente denunciada. Essas denúncias começaram a ser sustentadas

também com dados divulgados por algumas pesquisas realizadas neste período,

particularmente os trabalhos de Carlos Hasenbalg (1979) e Nelson do Valle Silva

(1980).53

Mas coube a Constituição Federal de 1988 a previsão de um Estado

Democrático de Direito fundado na cidadania, na dignidade da pessoa humana, cujo

objetivo primordial é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

O legislador de 1988 não se limitou a estabelecer a isonomia, a proibir e a

estabelecer punição para certos discrímenes. Estabeleceu, em seu art. 3°, inciso IV,

como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “promover

o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer

outras formas de discriminação”. Na realidade, no tocante ao compromisso com o

dogma da igualdade, a Carta de 1988 constituiu-se num verdadeiro divisor de águas.

Em 1989, atendendo às reivindicações do Movimento Negro, foi editada a

Lei “Caó” (Lei n.° 7.716/89) para regulamentar o art. 5°, incisos XLI e XLII,

punindo com pena de reclusão os crimes derivados de preconceito de raça e cor.

Já em 2003 foi editada a Lei n.° 10.639, como resposta às reivindicações e

pressões históricas dos movimentos negro e anti-racista brasileiros. Este diploma

normativo estabeleceu a obrigatoriedade do estudo da história do continente

africano e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira e

do negro na formação da sociedade nacional brasileira.54 Confira-se parte de seu

texto normativo:

Art. 26-A: Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

53MOEHLECKE, Sabrina. Propostas de ações afirmativas no Brasil: o acesso da população negra ao ensino

superior, cit., p. 2-3. 54SANTOS, Sales Augusto. Contextualização da Lei n. 10.639/03: a Lei n. 10.639/03 como fruto da luta anti-

racista do movimento negro. In: EDUCAÇÃO anti-racista: caminhos abertos pela Lei federal n. 10.639/03. Brasília: Ministério da Educação e Cultura, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. p. 34.

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§ 1° - O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2° - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

No que tange ao objeto desta pesquisa, é possível afirmar que ação afirmativa

é um tema relativamente recente no cenário jurídico pátrio. A primeira manifestação

sobre o assunto ocorreu em 1968, quando alguns membros do Ministério do

Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho propuseram a criação de uma lei que

obrigasse as empresas privadas a manter um número mínimo de empregados

negros.

No plano legislativo, uma das experiências pioneiras ocorreu somente na

década de 1980, quando foi apresentado o Projeto de Lei n.° 1.332, propondo a

implementação de medidas de “ação compensatória” em favor dos indivíduos

negros, de forma a assegurar a eles a igualdade jurídica consagrada no plano

constitucional.

No ano seguinte foi apresentado o Projeto de Lei n.° 3.196/84, propondo a

reserva de 40% das vagas abertas para o ingresso no Instituto Rio Branco do

Ministério das Relações Exteriores para candidatos negros, sendo que tais vagas

deveriam ser obrigatoriamente repartidas, em igual número, entre candidatos do

sexo masculino e feminino.55

No âmbito do ensino superior, cumpre ressaltar que o Governo Federal já se

posicionou a respeito da reserva de vagas no ensino superior, quando encaminhou

ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n.° 3.627/2004, que institui o sistema de

cotas nas universidades públicas e estabelece as seguintes diretrizes:

55MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 83.

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a) as instituições públicas federais de educação superior reservarão, em cada

concurso de seleção, no mínimo 50% de suas vagas para estudantes que

cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas;

b) dentro dessa reserva de 50%, as vagas serão preenchidas mediante uma

proporção mínima de negros e indígenas autodeclarados, obedecendo a

representatividade de tais grupos nas unidades da Federação em que está

situada a instituição de ensino e atendendo ao último censo do IBGE;

c) não havendo preenchimento de todas essas vagas, as remanescentes

deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado

integralmente o ensino médio em escolas públicas;

d) o Ministério da Educação e a Seppir serão responsáveis pelo

acompanhamento e avaliação do sistema, ouvida a FUNAI;

e) O Poder Executivo promoverá, no prazo de dez anos, a revisão do sistema.

Seguindo o exemplo da experiência norte-americana, diversas universidades

públicas brasileiras passaram a adotar a política de cotas para negros, tais como, as

universidades estaduais do Rio de Janeiro, do Paraná, do Rio Grande do Sul, da

Bahia, do Mato Grosso e de Brasília, cujos critérios de seleção de candidatos serão

apreciados oportunamente.

4.2. Existe racismo no Brasil?

De acordo com alguns pesquisadores, o estudo do racismo brasileiro deve

levar em consideração, principalmente, duas peculiaridades, quais sejam: a

construção da nacionalidade brasileira, à qual estão associadas a ideologia do

embranquecimento e da democracia racial; e o sistema de hierarquização social, que

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associa “cor”, status e classe, fundado nas dicotomias do sistema escravista:

elite/povo e brancos/negros.56

A principal característica do tratamento da questão racial no Brasil é a sua

ambigüidade. Dela faz parte o que muitos denunciam como o caráter implícito e

silencioso do racismo brasileiro, com a sua pretensão de anti-racismo institucional.

Nosso país foi, durante muito tempo, visto interna e externamente como um

paraíso em termos raciais, fonte de orgulho nacional. Mesmo após as diversas

denúncias do Movimento Negro e de intelectuais, e de um relativo reconhecimento

do Poder Público, essa imagem ainda permanece.

Ocorre que, de acordo com os dados estatísticos, em praticamente todos os

indicadores socioeconômicos há significativas disparidades entre brancos e negros

na distribuição da renda nacional e na fruição dos direitos sociais.

Tal desigualdade remonta ao passado escravista brasileiro. Posteriormente,

com a abolição da escravidão, a política oficial de substituição da mão de obra

escrava por imigrantes europeus assalariados contribuiu imensamente para que o

negro fosse excluído do mercado de trabalho e marginalizado. Importante lembrar

que, a partir da década de 1870, o governo brasileiro passou a financiar a vinda de

imigrantes europeus, deixando o negro brasileiro a margem da sociedade.

Narra Emília Viotti da Costa que, a partir da década de 1870, o governo

brasileiro passou a financiar, cada vez mais, a vinda de imigrantes europeus,

subvencionando-a de várias maneiras:

“Em 1871, era baixada uma lei autorizando o governo a emitir apólices até seiscentos contos para auxiliar o pagamento das passagens de imigrantes (Lei Provincial n.° 42, de 30 de março de 1871), de preferência originários do norte da Europa. Deveria ser atribuída a cada pessoa a quantia de vinte mil-réis. Por um contrato feito entre o governo imperial e provincial, a verba foi elevada a cem mil-réis por pessoa. O governo imperial associava-se dessa forma ao da província para intensificar a corrente migratória. Por um decreto de 8 de agosto de 1871, era constituída a Associação Auxiliadora de Colonização, congregando importantes fazendeiros

56MOEHLECKE, Sabrina. Propostas de ações afirmativas no Brasil: o acesso da população negra ao ensino

superior, cit., p. 51.

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e capitalistas (...). Em 1874, recebia a Associação cem pontos para colaborar no financiamento da passagem dos imigrantes (Lei n.° 44, de 16 de abril de 1874). O Estado chamava a si, cada vez mais, a responsabilidade por esse financiamento, passando a subvencionar a entrada de pequeno número de imigrantes (...) A Lei Provincial n.° 36, de 21 de fevereiro de 1881 consignava 150 contos para o pagamento de passagens de imigrantes e determinava a construção de uma hospedaria. Em 1884, novos créditos foram concedidos, visando à criação de núcleos coloniais e auxílio à imigração destinada à grande lavoura. Em 1885, outras leis nesse sentido. Entre 1881 e 1882 e 1890 e 1891, as despesas feitas pelo Tesouro do Estado com a obra da colonização, estimulando a iniciativa particular, montou elevada soma”.57

Segundo Lilia Moritz Schwarcz, se dentre os analistas parece não existir

dúvida sobre a desigualdade econômica e social vigente no país, as posições têm

oscilado, e muito, quando se trata de equacionar as maneiras de lidar e enfrentar o

tema da exclusão, sobretudo racial. A polêmica, como qualquer polêmica, tem

muitos lados, mas é possível resumir, em apertada síntese, a partir de duas posições

majoritárias. De um lado estariam aqueles que, em nome de uma política mais

universalista, vêm defendendo a adoção de medidas “igualitárias” e que recuperem

uma certa “matriz ibérica refeita num modelo brasileiro”, pautado na mestiçagem e

na assimilação. Faz parte também deste argumento a desqualificação da noção

biológica de raça e, como decorrência, de todas as medidas que impliquem a

“racialização do tema”. De outro, estariam os autores que, mesmo entendendo os

limites do conceito de raça, o têm aplicado de forma mais pragmática ao demonstrar

sua inserção “eficaz” em nossa sociedade. Em outras palavras: acreditam que, a

despeito das falácias do conceito de raça, sua aplicação já estaria disseminada no

senso comum, o que autorizaria a sua utilização política.58

As dificuldades de implementação da política de cotas devem-se ao fato de

que, no Brasil, as propostas de igualdade social para negros sempre estiveram

atreladas às saídas universalistas.59 Tudo se passa como se o nosso país fosse uma

57COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Fundação Ed. UNESP, 1998. p. 233-235. 58SCHWARCZ, Lilia Moritz. Na boca do furacão. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 6-7, dez./fev.

2005/2006. 59VIEIRA, Andréa Lopes da Costa. op. cit., p. 84.

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sociedade racialmente homogênea ou igualitária, onde os grandes vilões da história

são as desigualdades de classe e o status socioeconômico.

A visão do Brasil como um país não racista e como paraíso da democracia

racial e harmonia das raças é amplamente difundida não só na sociedade brasileira,

mas também na estrangeira, conforme podemos notar do discurso de um

abolicionista francês, reproduzido por Célia Maria Marinho de Azevedo:

“O que facilitará singularmente a transição do Brasil é que lá não existe nenhum preconceito de raça. Nos Estados Unidos e em Cuba, todos os homens de cor, mesmo um liberto, são olhados de cima como inferior pelos homens da raça branca. Não há nada disso no Brasil: lá todos os homens livres são iguais; e esta igualdade não é só da lei, mas é também da prática cotidiana. (...) A igualdade, portanto, não é apenas um direito: é um fato”.60

Além da influência das ideologias de democracia racial, outros fatores que

também fortaleceram esta imagem do Brasil foram a ausência de um racismo

institucionalizado depois da abolição da escravidão e a garantia de uma igualdade

perante a lei desde a primeira constituição brasileira.

Mais uma particularidade do “racismo brasileiro” é o processo histórico que

levou a uma inter-relação discursiva entre “raça” e “cor”, e outros conceitos de

hierarquia como classe e status.61

Mas, afinal, o que é uma democracia racial? A ausência de tensões abertas e

de conflitos permanentes é, em si mesma, índice de “boa” organização das relações

raciais?62

Segundo Florestan Fernandes,

“a idéia de que existiria uma democracia racial no Brasil vem sendo fomentada há muito tempo. No fundo, ela constitui uma

60AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Abolicionismo Estados Unidos e Brasil, uma história comparada

(século XIX). São Paulo: Annablume, 2003. p. 158. Google. Pesquisa de Livros. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?id=qEip0IXv4pgC&pg=PA158&dq=que+facilitar%C3%A1+singularmente+a+transi%C3%A7%C3%A3o+do+Brasil+%C3%A9+que+l%C3%A1+n%C3%A3o+existe&ei=mJ_rScyTApWQyASv4a2FDw>.

61Id. Ibid., p. 55 62FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. In: CARDOSO, Fernando Henrique (Coord.).

Corpo e alma do Brasil. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972. p. 21.

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distorção criada no mundo colonial, como contraparte da inclusão de mestiços no núcleo legal das ‘grandes famílias’ – ou seja, como reação a mecanismos efetivos de ascensão social do mulato”.63

Para o sociólogo, as investigações antropológicas, sociológicas e históricas

mostraram, em toda a parte, que a miscigenação só produz efeitos benéficos quando

ela não se combina a nenhuma estratificação racial. No Brasil, a própria escravidão

e as limitações que pesavam sobre o status do liberto convertiam a ordem escravista

e a dominação senhorial em fatores de estratificação racial. Consequentemente, a

miscigenação, durante séculos, antes contribuiu para aumentar a massa da

população escrava e para diferenciar os estratos dependentes intermediários, que

para fomentar a igualdade racial.

A miscigenação e a mobilidade social vertical operavam-se dentro dos

limites e segundo as conveniências de uma determinada ordem social. Após a

abolição da escravidão, sem que se mostrasse qualquer tendência ou processo de

recuperação humana do negro e do mulato, esses fenômenos foram localizados à luz

dos requisitos econômicos, jurídicos e políticos da ordem social competitiva.

Passou-se a ver nesses fenômenos a matriz da democracia racial e a fonte de

solução pacífica para a questão racial no Brasil. Ora, não se processou uma

democratização real da renda, do poder e do prestígio social em termos raciais.

A idéia de que no Brasil não existe racismo também está ligada a certa

confusão entre tolerância racial e democracia racial. Contudo, tais fenômenos são

distintos e não devem ser confundidos. Para que haja democracia racial não basta

que exista alguma harmonia nas relações raciais de pessoas pertencentes a etnias

diferentes. Democracia pressupõe, principalmente, igualdade racial, econômica e

política.

E essa suposta igualdade racial é desmistificada quando se analisam os dados

estatísticos. Vejamos o indicador internacional da desigualdade racial brasileira: o

IDH, que leva em consideração critérios como educação, expectativa de vida e

63FERNANDES, Florestan. op. cit., p. 26.

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renda per capita, ao ser desmembrado por grupo racial, demonstra que há um

abismo de 61 países entre o Brasil negro e o Brasil branco. No ranking de qualidade

de vida, os brancos ficam em 46º lugar e os negros em 107º lugar, pior que todos os

países africanos, inclusive a Nigéria e a África do Sul.64 Destarte, ao se relacionar a

incidência da pobreza com a composição racial da população, é possível notar uma

sobre-representação da comunidade negra no interior das populações pobre e

indigente.65

Do mesmo modo, estudo realizado pelo IPEA demonstrou que os negros não

estão apenas sobre-representados entre os pobres, mas também a renda média dos

brancos é superior à dos negros tanto no segmento mais pobre, quanto no

intermediário e no mais rico da população, o que justificaria a afirmação de que o

“Brasil branco” é duas vezes e meia mais rico do que o “Brasil negro”. Ao tratar da

dimensão educacional, o mesmo estudo mostrou que existe um diferencial de 2,3

anos de estudos entre brancos e negros, o que pode ser considerado muito elevado,

tendo em vista que a escolaridade média dos adultos gira em torno de seis anos no

Brasil. Esse diferencial se manteve praticamente inalterado ao longo de todo o

século XX, apesar da elevação da escolaridade média de brancos e negros, o que

por si só já seria suficiente para confirmar que, embora necessárias, as políticas

educacionais de caráter universalista não são suficientes para reverter as

desvantagens educacionais dos negros.66

Vários são os estudos que ilustram esse contexto segregacionista no Brasil. O

trabalho de Ricardo Henriques envereda por esse caminho ao traçar um diagnóstico

da desigualdade racial no país, com base na análise das informações domiciliares

extraídas da PNAD, de 1999 e em dados do IBGE. O autor destacou em seu

trabalho a composição racial da pobreza, que revelou que os negros, em 1999,

representavam 45% da população brasileira, mas correspondiam a 64% da

64CARVALHO, José Jorge de. Inclusão étnica e racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior. São

Paulo: Attae Ed., 2005. p. 29. 65HENRIQUES, Ricardo. Desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90.

Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); Universidade Federal Fluminense (UFF), 2001. p. 15.

66BARRETO, Paula Cristina da Silva. op. cit., p. 201-202.

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população pobre e 69% da população indigente. Os brancos, ao seu turno, perfaziam

54% da população total, mas somente 36% dos pobres e 31% dos indigentes.67

Outro dado que salta aos olhos é a desigualdade de renda entre negros e

brancos. Constatou-se que, no Brasil, entre o 1% mais rico, quase 88% deles são de

cor branca, enquanto que entre os 10% mais pobres quase 68% declaram-se de cor

preta ou parda. Deste modo, a população negra está sobre-representada entre os

10% mais pobres e sub-representada entre o 1% mais rico.68

A tabela abaixo demonstra que, embora tenha ocorrido um aumento

percentual do número de indivíduos brancos e negros que ascenderam ao ensino

superior, ele não foi proporcional. Mais do que isso, tais dados atestam que os

jovens negros, durante a década de 1990, não tiveram acesso a esse patamar de

ensino, uma vez que cerca de 98% deles não ingressaram na universidade.69

ANO BRANCOS NEGROS

1992 8,0 1,8

1993 8,1 1,9

1995 8,7 2,0

1996 8,8 2,1

1997 9,4 2,2

1998 9,7 2,2

1999 9,8 2,3

2001 10,2 2,5

Porcentagem da população acima de 25 anos de idade e com escolaridade superior a 15

anos (correspondente à graduação universitária).

Essa realidade é pior do que a que vigorava nos Estados Unidos durante a

vigência da doutrina segregacionista “separate but equal”, pois, em 1940, 2% da

população negra norte-americana tinha acesso ao ensino superior. Já em 1960, essa

67Apud, MADRUGA, Sidney. op. cit., p. 154. 68Id. Ibid., p. 155. 69Fonte: IPEA, com base no PNAD/IBGE.

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proporção era de 5,4%, o que corresponde a mais do que o dobro do índice

brasileiro em 2001.

Sob outro enfoque, enquanto o número de estudantes universitários mais do

que duplicou no período de 1991 a 2000, indo de 1.400.000 (um milhão e

quatrocentos mil) para 3.000.000 (três milhões) de alunos matriculados, verifica-se

que a proporção de alunos negros caiu, passando de 19,7% para 19,3%. Essa

diminuição é ainda maior se considerados apenas os indivíduos com idades entre

dezoito a vinte e quatro anos, pois, em tais condições, o índice decresce de 16,7%

para 15,9%. Esses dados somente não são mais desastrosos, porque essa expansão

do sistema universitário se deu, preponderantemente, no setor privado (crescimento

de 88%), e não no setor público (crescimento de 53%), onde o acesso é mais

competitivo e a exclusão racial, consequentemente, mais acentuada.70

Tudo isso leva a crer que, ao contrário daqueles que negam o caráter

racializado da exclusão dos negros do ensino superior, tal exclusão não é apenas

conseqüência da pobreza, mas também um dos fatores explanatórios da maior

incidência da pobreza entre os negros. É justamente aí que está o ponto nevrálgico

da manutenção do círculo vicioso a que Borges Pereira se refere: os negros seriam

mais pobres porque teriam menos instrução formal, e teriam menos instrução formal

porque seriam mais pobres.71

A controvérsia acerca da política de cotas para negros nas universidades

públicas tem como causa a resistência para se assumir uma realidade que sempre

existiu na história brasileira, qual seja, a discriminação racial. O mito da democracia

racial ditado há mais de 60 anos por Gilberto Freyre, segundo o qual não há

diferenças entre negros e brancos, já que todos nós somos mestiços, impede que

enfrentemos o problema do racismo no Brasil.

Segundo Paula Cristina da Silva Barreto,

“o livro Casa Grande e Senzala, publicado em 1933, significou apenas o ápice desse processo, pois apresentava de maneira mais

70MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 156. 71Apud, BARRETO, Paula Cristina da Silva. op. cit., p. 212.

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elaborada e com a legitimidade de teoria científica, algo que já era senso comum, vindo a atender aos anseios de todos aqueles que desejavam uma nova referência para a construção do Brasil como uma nação moderna. Com a publicação da obra em outros países, o Brasil ganhou visibilidade no exterior, talvez pela primeira vez, de maneira positiva, como um país que tinha algo a ensinar ao mundo: como fundar uma nação com base na união harmônica entre populações oriundas de raças distintas. O reconhecimento de que índios, africanos e europeus contribuíram para a formação do Brasil deixou intocável a questão das posições desiguais que estes ocupavam na sociedade, constituindo-se uma interpretação otimista e pouco crítica das relações raciais no Brasil. Essa associação direta entre miscigenação e democracia racial foi tomada como algo certo pela Antropologia Social da época, que não ousou ir além das aparências”.72

Interessante a observação de Ahyas Siss de que “há, entre nós, uma

verdadeira apologia de uma pseudo-harmonia racial que leva a um aprofundamento

das práticas discriminatórias”.73

A crença na democracia racial conduz a uma sutil negação do racismo e de

práticas discriminatórias, o que contribui para a perpetuação do atual estado de coisas.

Portanto, é necessário assumir, de uma vez por todas, que há preconceitos

derivados de raça e que negros e brancos vivem em situações absolutamente desiguais.

Apenas com essa premissa faz sentido discutir a constitucionalidade das cotas.74

4.3. Políticas adotadas em universidades públicas brasileiras

Primeiramente, é importante ressaltar que diversas universidades brasileiras

passaram a adotar o sistema de reservas de vagas para negros, tais como a

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a Universidade Estadual da Bahia

(UNEB), a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade Estadual de

72BARRETO, Paula Cristina da Silva. op. cit., p. 48. 73SISS, Ahyas. Afro-brasileiros, cotas e ações afirmativas: razões históricas. Rio de Janeiro: Quartet, 2003.

p. 81. 74Estudos como os do DATAFolha indicam que 90% dos brasileiros admitem que há racismo no Brasil,

porém, 90% não se acham racistas.

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Londrina (UEL), a Universidade Federal do Paraná (UFPR), a Universidade Federal

de Alagoas (UFAL), a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), a

Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), a Universidade de Brasília (UNB),

a Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), a Universidade Estadual de

Montes Claros (UNIMONTES), a Universidade Estadual do Norte Fluminense

(UENF), a Universidade Estadual de Goiás (UEG), a Universidade Estadual do

Mato Grosso (UNEMAT), a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e a

Universidade Federal do Pará.75

Passemos a analisar algumas destas experiências nas universidades

brasileiras:

4.3.1. Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

De acordo com um ato administrativo interno, estabeleceu-se a cota mínima

de 40% das vagas para a população afrodescendente, relativas aos cursos de

graduação e pós-graduação. Trata-se da primeira universidade pública no país a

sistematizar as cotas em seu exame vestibular.

No processo seletivo realizado em 2005 foram oferecidas 5.500 vagas no

geral, sendo que 40% de tais vagas foram reservadas para os alunos negros oriundos

da rede pública. No total, ingressaram 3.440 alunos negros cotistas.

4.3.2. Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

A implementação do sistema de cotas passou a vigorar no ano de 2003, em

razão da edição de leis estaduais que estabeleceram reserva de vagas para

candidatos oriundos da rede pública de ensino ou autodeclarados pretos ou pardos.

75MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 100.

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No ano de 2003 foram reservadas 700 vagas, no ano de 2004 foram

reservadas 800 vagas e no vestibular de 2005 havia 1.039 alunos negros

matriculados. No total, foram 2.539 alunos negros cotistas.

4.3.3. Universidade de Brasília (UNB)

Em 2004, a Unb lançou seu primeiro vestibular, reservando 20% de suas

vagas para estudantes negros. Foi a primeira universidade federal a implantar o

sistema de cotas para afrodescendentes.

No primeiro processo seletivo, realizado no segundo semestre de 2004,

foram matriculados 380 alunos negros. Já no segundo processo seletivo, realizado

no primeiro semestre de 2005, foram selecionados 402 alunos negros. No total,

ingressaram 782 alunos negros cotistas.

4.3.4. Universidade Federal da Bahia (UFBA)

A Universidade Federal da Bahia implantou, no ano de 2005, um sistema de

reserva de vagas para alunos que tinham cursado os três anos de ensino médio e

mais um ano do ensino fundamental no sistema público de ensino. O sistema

estabelece o percentual de 45% das vagas para todos os cursos e tem um diferencial

em relação à cor do estudante. Dessa reserva, 43% são assim distribuídos: 85%

destinam-se aos autodeclarados pretos e pardos e 15% aos autodeclarados brancos.

Um percentual de 2% foi destinado aos índios-descendentes e uma reserva de duas

vagas, em cada curso, foi destinada aos índios aldeados e aos estudantes vindos de

comunidades quilombolas.76

76SANTOS, Jocélio Teles dos Santos; QUEIROZ, Delcele Mascarenhas. Vestibular com cotas: análise em

uma instituição pública federal. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 57-58, dez./fev. 2005/2006.

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A reserva de vagas adotada pela UFBA implicou mudanças significativas na

forma de ingresso. O sistema tradicional, até então adotado, era amparado,

exclusivamente, no critério da classificação por desempenho na primeira e na

segunda fase do vestibular. Desta forma, variáveis como cor, gênero, renda familiar

ou origem escolar não tinham nenhum peso no ingresso dos estudantes. O sistema

de reserva de vagas, ao contrário do anterior, incorporou candidatos que, oriundos

do sistema público de ensino e tendo obtido uma pontuação mínima na primeira

fase, passaram a ter condições de competir na segunda fase e, consequentemente,

ingressar na universidade mais tradicional do estado da Bahia.77

Ao se passar à análise do desempenho dos cotistas no vestibular,

contrariando a idéia de que a reserva de vagas para negros e estudantes de escolas

públicas determinaria um rebaixamento da qualidade do ensino superior, constatou-

se que no período entre 2003-2005 houve um aumento expressivo do ponto de corte

das notas do vestibular em ambas as fases do processo seletivo.

A se examinar o desempenho médio dos cotistas, atestou-se que a reserva de

vagas não provocou o efeito negativo esperado.78

4.3.5. Universidade Federal do Paraná

Para o vestibular de 2005 foram destinadas 20% das vagas para

afrodescendentes autodeclarados e 20% para alunos oriundos do ensino público, que

tivessem cursado o ensino fundamental e médio em escolas públicas.

No primeiro processo seletivo ingressaram 396 alunos negros cotistas.

77SANTOS, Jocélio Teles dos Santos; QUEIROZ, Delcele Mascarenhas. op. cit., p. 58. 78Id. Ibid., p. 71.

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4.3.6. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Para o vestibular de 2005, a Unicamp instituiu um bônus de 30 (trinta)

pontos para os estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em

escolas da rede pública e que optem em participar do Programa de Ação Afirmativa

e Inclusão Social daquela universidade.

A Universidade Estadual de Campinas criou o “Programa de Ação

Afirmativa e Inclusão Social” (PAAIS), em maio de 2004, por deliberação do

respectivo Conselho Universitário.

Trata-se de um programa que atua em duas frentes distintas. A primeira delas

cuida da isenção das taxas do vestibular, que visa favorecer os candidatos que

cursaram o ensino fundamental e médio integralmente em escolas da rede pública.

A segunda delas diz respeito a uma concessão de um bônus de 30 (trinta) pontos

extras para aqueles que se autodeclararem pretos, pardos ou indígenas.

Os resultados da adoção desta política afirmativa são bastante significativos,

pois houve um aumento expressivo de alunos que se autodeclararam pretos, pardos

ou indígenas, bem como daqueles que cursaram todo o ensino médio em escolas

públicas.

4.3.7. Universidade Estadual do Amazonas (UEA)

Para o vestibular de 2005, a UEA estipulou a destinação de 60% das vagas

para estudantes oriundos do ensino médio de escolas públicas de Manaus e 4% para

alunos indígenas que estudam em cidades do interior, onde estão situados os

campus avançados da universidade.

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4.3.8. Universidade de São Paulo (USP)

O Programa de Inclusão Social (INCLUSP) é uma iniciativa da Universidade

de São Paulo que visa dar sua contribuição à tarefa nacional de superação da

desigualdade que tão fortemente marca a sociedade brasileira, definindo e

implementando sua política institucional nesse âmbito. Propõe-se a fazê-lo a partir

de sua competência específica, qual seja, a da educação superior de alto nível,

consciente das limitações do poder das instituições educacionais no que concerne ao

enfrentamento e à superação dos problemas sociais abrangentes.

A proposta de inclusão social que a Universidade entende ser de sua

responsabilidade funda-se, prioritariamente, na maior democratização do acesso dos

segmentos menos favorecidos da sociedade a seus cursos, sem comprometimento

do critério de mérito como legitimador desse acesso, que será abordado

posteriormente.

Considerando que a maioria dos jovens pertencentes a esses segmentos

realiza a formação básica na escola pública, o Programa de Inclusão Social da USP

tem sua atuação direcionada ao planejamento de ações de apoio voltadas para o

aluno do Ensino Médio da escola pública, antes, durante e após o processo seletivo

para ingresso na Universidade.

Ocorre que, embora exista a louvável iniciativa da Universidade de São

Paulo na criação de programas de inclusão social, visando à superação das

desigualdades sociais, podemos perceber que o Inclusp não contempla ações

específicas para os negros, isto é, não há um recorte racial para o desenvolvimento

de seus objetivos e ações. A política de cotas, assim, ainda é vista com um tabu na

Universidade de São Paulo, diferentemente de outras universidades públicas

existentes no Brasil.

Contudo, o Prof. Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, do Departamento de

Sociologia da USP, ao elaborar estudo sobre o ingresso de negros na Universidade

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de São Paulo, durante o período de 2001 a 2007, constatou o aumento da aprovação

de afrodescendentes nos cursos regulares de ensino superior.

Com efeito, em 2000 apenas 6% dos aprovados no vestibular da FUVEST,

fundação que elabora e administra os exames vestibulares para a USP, tinham se

declarado pretos ou pardos, enquadrando-se na definição de “negros”. Em 2007,

esse número quase dobrou, atingindo 11,8%. Os vestibulandos aprovados em 2000

que cursaram escolas públicas no ensino público eram 16,3%, enquanto em 2007

eram 20,5%, tomando ainda como referência os aprovados na primeira chamada do

vestibular da Fuvest.79

Todavia, ainda que a Universidade de São Paulo tenha propiciado, por meio

de políticas públicas, o maior ingresso de estudantes egressos de escolas públicas, e

o que o número de afrodescendentes tenha aumentado nos últimos anos, observa-se

que o número de negros é ainda inferior ao número de brancos, demonstrando,

assim, a insuficiência da cota meramente social. Confira-se a tabela abaixo:

ANO NEGROS ESCOLAS

PÚBLICAS

BRANCOS

2000 6,0% 16,3% 79,5%

2001 7,0% 16,9% 78,4%

2002 7,7% 17,2% 79,6%

2003 8,5% 19,3% 80,0%

2004 9,7% 18,2% 78,9%

2005 11,5% 20,1% 76,7%

2006 11,1% 18,4% 76,5%

2007 11,8% 20,5% 76,8%

Fonte: FUVEST

79Dados extraídos da Fuvest, principalmente da pergunta 16 do formulário de inscrição, que indaga a respeito

da cor do candidato.

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Nota-se, assim, que o que distingue a experiência norte-americana da

brasileira, na realidade, não é tanto o enfoque dado, mas o método.

Nos Estados Unidos a regra é a análise pormenorizada de cada candidato,

mas ela não é unidimensional. Ao contrário, as instituições dispõem de certa

liberdade para considerarem elementos que muitas vezes não estão diretamente

associados com aptidões inatas ou apenas com desempenhos acadêmicos, tal como

se verifica quando se exige a indicação da proveniência geográfica ou a declaração

da renda média familiar dos candidatos.80

Por derradeiro, embora não seja o enfoque deste trabalho, além das propostas

de reserva de vagas, não se pode deixar de mencionar a existência de outras

políticas públicas destinadas à promoção da igualdade racial. Na esfera federal,

merecem destaque os seguintes projetos:

• “Programa Diversidade na Universidade”, criado pela Lei n.°

10.558/2002, visando o estudo e a implementação de medidas para a

promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a

grupos socialmente desfavorecidos (especialmente os

afrodescendentes e indígenas), o que se efetiva, na prática, pela

transferência de recursos para entidades públicas e privadas, sem fins

lucrativos, “que atuem na área de educação e que venham a

desenvolver projetos inovadores para atender a finalidade do

Programa”;

• “Brasil Afroatitude – Programa Integrado de Ações Afirmativas para

Universitários Negros”, lançado em 1° de dezembro de 2004, volta-se

para a permanência de alunos negros nas universidades brasileiras que

adotam o sistema de cotas, mediante a concessão de 500 (quinhentas)

bolsas de estudos, embora também tenha como enfoque principal a

saúde pública (combate à disseminação de DST/AIDS);

80MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 175.

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• “Programa Universidade para Todos – ProUni”, concebido pela Lei

n.° 11.096/2005, consiste em uma política ampla de concessão de

bolsa de estudos, mas prevê um “percentual de bolsas de estudo

destinado à implementação de políticas afirmativas de acesso ao

ensino superior de portadores de deficiência ou de autodeclarados

indígenas e negros” (art. 7°, II);

• “UNIAFRO – Programa de Ações Afirmativas para a População

Negra nas Instituições Públicas de Ensino Superior”, uma iniciativa

do Ministério da Educação, que visa apoiar as mencionadas

instituições no “desenvolvimento de programas e projetos de ensino,

pesquisa e extensão que contribuam para a implementação e para o

impacto de políticas de ação afirmativa para a população negra”.81

4.4. A legislação educacional

A Constituição Federal de 1988, conhecida como “constituição cidadã”,

prescreve, em seu art. 205, que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da

família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao

pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua

qualificação para o trabalho”.

O texto constitucional ainda garante, em seu art. 206, a igualdade de

condições para o acesso e permanência na escola. O art. 208, inciso V, por sua vez,

estabelece que o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia

de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística,

segundo a capacidade de cada um.

Destarte, o acesso ao ensino superior, diferentemente do ensino fundamental

e médio, não é universalizado, pois depende da “capacidade de cada um”.

81MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 102.

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A Lei de Diretrizes e Bases (LDB), aprovada no final de dezembro de 1996 e

que complementa a Constituição Federal nas questões relativas à educação, dispõe

em seu art. 44 que a educação superior abrange os cursos seqüenciais, cursos e

programas de graduação, de pós-graduação e de extensão.

No que tange às exigências e ao processo de seleção daqueles que

ingressarão no ensino superior, a lei define que os cursos seqüenciais estão abertos

aos candidatos “que atendam aos requisitos estabelecidos pelas instituições de

ensino”, e os cursos de graduação a candidatos “que tenham concluído o ensino

médio ou equivalente e tenham sido classificados em processo seletivo”.

De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases, as universidades têm autonomia

para elaborar seu próprio processo seletivo e para a fixação e criação de vagas.

Porém, a definição de formas alternativas de seleção, segundo o art. 12 do Decreto

n.° 2.207/97 dependerá de sua adequação às orientações do Conselho Nacional de

Educação, que estabeleceu as regras para o acesso ao ensino superior. Desta forma,

a autonomia universitária para a definição das regras relativas ao processo seletivo

ficou subordinada às normas definidas pelo Conselho.

O Conselho Nacional de Educação, por meio da Comissão de Acesso ao

Ensino Superior, em parecer aprovado em 06/07/1999, regulamentou o processo

seletivo para acesso a cursos de graduação de Instituições de Ensino Superior.

Na avaliação realizada por essa Comissão foram estabelecidas algumas

exigências para o ingresso no ensino superior, quais sejam: a conclusão do ensino

médio ou equivalente; a realização de um processo seletivo avaliando a capacidade

do candidato e a garantia de igualdade de oportunidades e equidade no processo.82

No tocante aos mecanismos do processo, estes devem demonstrar a

capacidade de cada candidato e sua respectiva classificação a partir de uma

igualdade de critérios de julgamento, devendo avaliar “não apenas a capacidade dos

alunos para entrar, mas também a de cursar e prosseguir em sua formação”.

82MOEHLECKE, Sabrina. Propostas de ações afirmativas no Brasil: o acesso da população negra ao ensino

superior, cit., p. 111.

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De acordo com o parecer do Conselho Nacional de Educação (1999), é

permitido o uso de dois ou mais processos de seleção por uma mesma Instituição de

Ensino Superior (IES). A propósito, vale mencionar parte do referido parecer:

“É possível que convivam mais de um processo seletivo, acessando cursos de determinada instituição de ensino superior, desde que seja assegurada a igualdade de condições para acesso à mesma (...) A fixação de um certo percentual de vagas para um dos processos e de outros percentuais para cada um dos demais é também admissível, cabendo a distribuição das vagas às próprias instituições. É também necessário que os graus de exigências e de dificuldades de avaliação de todos os processos sejam semelhantes e, portanto, compatíveis”.83

A medida da igualdade é estabelecida como critério fundamental na

determinação da validade de um processo seletivo. Contudo, o próprio parecer da

Comissão Nacional de Educação reconhece a falta de equidade no acesso ao ensino

superior (não apenas na aprovação final, mas também na escolha das carreiras),

devido, principalmente, às condições sócio-econômicas dos candidatos e das

iniqüidades dos níveis anteriores de ensino.

A elaboração de projetos com o intuito de estabelecer em lei ações visando o

acesso da população negra ao ensino superior no nível federal no Brasil pôde ser

observada a partir de 1983, quando o então deputado federal Abdias Nascimento –

PDT/RJ apresentou ao Congresso Nacional o projeto de lei n.° 1.332, que pode ser

identificado como o primeiro precedente do que hoje chamaríamos de propostas de

ações afirmativas. Este projeto, entre outras previsões, impunha como meta a

presença mínima de 20% (vinte por cento) de profissionais negros nos setores

público e privado e a destinação, para estudantes negros, de 40% (quarenta por

cento) das bolsas de estudo concedidas, em todos os níveis, pelo Ministério da

Educação e Cultura e pelas Secretarias de Educação Estaduais e Municipais. O

projeto de lei estipulava em seu art. 12 que a expressão “medidas de ação

compensatória” compreende iniciativas destinadas a aumentar a proporção de

83MOEHLECKE, Sabrina. Propostas de ações afirmativas no Brasil: o acesso da população negra ao ensino

superior, cit.

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negros em todos os escalões ocupacionais, incluindo, entre outras, a preferência

pela admissão do candidato negro quando este demonstra melhores ou as mesmas

qualificações profissionais que o candidato branco, e a concessão de bolsas de

estudo a estudantes negros a fim de aumentar sua qualificação.

No ano seguinte, o mesmo deputado apresentou o Projeto de Lei n.°

3.196/84, propondo a reserva de 40% (quarenta por cento) das vagas abertas para o

ingresso no Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores para

candidatos negros, sendo que tais vagas deveriam ser obrigatoriamente repartidas,

em igual número, entre candidatos do sexo masculino e feminino. Tal projeto

desmembrava, na verdade, uma previsão já existente no citado Projeto de Lei n.°

1.332/83. Constou, porém, da justificativa do projeto: “os africanos que vieram para

o Brasil, forçados, para o trabalho escravo, bem como seus descendentes,

trabalharam por quase cinco séculos construindo esse País, ao qual se deram por

inteiro, sem ódios, sem ressentimentos, procurando apenas a grandeza nacional. A

Constituição da República, em seu art. 153, § 1° (Emenda Constitucional n.° 01/69)

assegura a todos os brasileiros a igualdade na cidadania e nas oportunidades (...)

Esse princípio não vem sendo observado, notadamente na formação de nossos

diplomatas, onde, pelo que se observa, os descendentes de africanos vêm sendo

discriminados, isto é, não têm acesso. Tal anomalia requer as necessárias medidas

concretas para implementar o mencionado direito constitucional de igualdade racial

garantido aos negros e às cidadãs negras para o trabalho na carreira diplomática dos

quadros do Ministério das Relações Exteriores. Por outro lado, é inadmissível, nos

dias de hoje, que o Brasil, mantendo relações diplomáticas com cerca de cinqüenta

países do Contingente Negro, não possua em seus quadros um só diplomata negro,

por razões inexplicáveis, a não ser, a vigência do racismo institucionalizado há

séculos nesse setor das nossas atividades institucionais.84

Nos anos 60, aumentou a quantidade de projetos semelhantes: em 1993 foi

apresentada a proposta de Emenda Constitucional do então deputado federal

Florestan Fernandes (PT/SP); em 1995, a senadora na época, Benedita da Silva

84ABDIAS Nascimento. Atuação parlamentar. Disponível em:

<http://www.abdias.com.br/atuacao_parlamentar/atuacao_parlamentar.htm>.

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(PT/RJ), apresentou os projetos de n.° 13 e 14; no mesmo ano foi encaminhado o

projeto de lei n.° 1239, pelo então deputado federal Paulo Paim (PT/RS); em 1998,

o deputado federal Luiz Alberto (PT/BA) apresentou os projetos de n.° 4567 e

4568; em 1999 foi também apresentado o projeto de lei n.° 298 do senador Antero

Paes de Barros (PSDB).85

No tocante às justificativas estabelecidas pelos projetos, foi destacado o

importante papel da educação, vista como um instrumento de ascensão social e de

desenvolvimento do país. Também mereceram destaque os dados estatísticos

relativos ao acesso restrito da população brasileira como um todo ao ensino superior

e, em especial, da população negra; razões históricas, como a escravidão, que a

levaram à situação de desigualdade ou exclusão; e a incompatibilidade dessa

situação com a idéia de igualdade, justiça e democracia.

85MOEHLECKE, Sabrina. Propostas de ações afirmativas no Brasil: o acesso da população negra ao ensino

superior, cit., p. 112.

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5. A RESERVA DE VAGAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES

PÚBLICAS E SUA COMPATIBILIDADE COM A

CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Conforme observa Paulo Lucena de Menezes,

“é forçoso reconhecer que a reserva de vagas no ensino superior, agrade ou não, constitui uma realidade praticamente irreversível no Brasil, salvo se ela vier a encontrar óbices instransponíveis no Poder Judiciário. Com efeito, além de todos os sistemas já implementados, das manifestações governamentais e dos projetos de lei que acenam no mesmo sentido, existe um aspecto fundamental, que nem sempre é captado, com a real dimensão, pelo mundo acadêmico: o sistema de reserva de vagas, nesse campo, é uma aspiração inequívoca, aparentemente irredutível e amplamente majoritária de vários segmentos sociais, especialmente dos afrodescendentes”.86

Daí a importância de se aferir, até mesmo para a eventual identificação de

novos parâmetros para outras modalidades de políticas de ação afirmativa, a

existência de fundamentos constitucionais que autorizem a reserva de vagas para

negros nas universidades públicas brasileiras.

Os dados estatísticos anteriormente apontados demonstram que existe um

abismo na qualidade de vida entre brancos e negros, o que nos faz concluir pela

existência de um racismo – ainda que velado – na sociedade brasileira.

Assim, o estabelecimento de cotas nas universidades públicas constitui

importante mecanismo de reparação histórica da desigualdade entre brancos e

negros, pois, diante dessas origens pretéritas da desigualdade racial, são necessários

mecanismos de justiça corretiva para reverter este quadro de exploração e

marginalização dos negros.

A experiência norte-americana no campo das políticas de ação afirmativa

torna evidente que, quando há resposta e engajamento políticos do Estado com o

86MENEZES, Paulo Lucena de. op. cit., p. 107.

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objetivo de eliminar ou, no mínimo, de reduzir os elevados índices de

discriminações – sejam de raça, cor, etnia ou gênero -, as relações poderão ser

positivamente modificadas.87

O Projeto de Lei n. º 3627/2004, em seu art. 2º, estabelece que cinqüenta por

cento das vagas das instituições públicas federais de educação superior serão

destinadas a alunos que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas

públicas. Tais vagas também deverão ser preenchidas por uma proporção mínima de

autodeclarados negros e indígenas igual à proporção de pretos, pardos e indígenas

na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição.

Todavia, se as ações afirmativas destinadas às pessoas portadoras de

deficiência ou mesmo às mulheres não causam maior espanto, o mesmo não

acontece quando falamos de ações afirmativas para afrodescendentes.

A Constituição Federal de 1988 não contempla uma norma que autorize,

expressamente, a prática rotineira e generalizada da ação afirmativa. Nosso texto

constitucional consagra o princípio da igualdade perante a lei em termos amplos.88

Diante da ausência de previsão categórica surge então o debate em torno da

viabilidade das cotas nas universidades públicas em nosso sistema jurídico.

Primeiramente é importante ressaltar que, embora não haja norma

constitucional expressa a respeito de ações afirmativas para negros, a Constituição

de 1988 preocupou-se com a discriminação racial em diversas oportunidades: o

racismo é considerado crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de

reclusão (art. 5º, XLII); o repúdio ao racismo e prevalência dos direitos humanos

constituem princípios que regem as relações internacionais brasileiras (art. 4º, II e

VIII); a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,

idade e quaisquer outras formas de discriminação, bem como a redução das

desigualdades sociais são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil

87SISS, Ahyas. op. cit., p. 130. 88MENEZES, Paulo Lucena de. A ação afirmativa no direito norte-americano. São Paulo: Ed. Revista dos

Tribunais, 2001. p. 147.

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(art. 3º, III e IV); a igualdade de condições para o acesso e a permanência nas

escolas constitui princípio básico da educação (art. 206, I).

A previsão contida no art. 3° da Constituição Federal, ao vincular o Estado a

determinados fins, estabelece uma diferença manifesta com o direito constitucional

norte-americano, diferença esta que é extremamente favorável e de grande

importância para o desenvolvimento de políticas de ação afirmativa no Brasil.89

Assim, ainda que não se identifique o direito à igualdade material apenas no

caput do art. 5° da Constituição Federal, nem na interpretação integrada dos demais

dispositivos constitucionais mencionados, as disposições constantes do art. 3°

servem de lastro para as correções das desigualdades sócio-econômicas existentes

na sociedade brasileira, e com isso, para as políticas públicas de ação afirmativa que

apresentem esse perfil.

Ademais, o art. 225, parágrafo 1º, da Constituição contém outro comando de

proteção de matéria racial, relacionado ao reconhecimento das manifestações

culturais afro-brasileiras90. A proteção, neste caso, incluiu tanto ações de natureza

normativa quanto fática.

Deste modo, constata-se que o Estado delineado no texto constitucional

vigente não é, evidentemente, um “Estado mínimo”, isto é, restrito às atividades

públicas essenciais, nem um Estado que tem uma intervenção pontual no domínio

econômico, voltada para a correção das imperfeições do mercado. Pelo contrário: é

um Estado que tem responsabilidades sociais predeterminadas, as quais impõem a

realização de políticas que apresentam um inequívoco caráter redistributivo.

Independentemente da natureza do fundamento que embasou esta opção, é nítido

89MENEZES, Paulo Lucena de. Reserva de vagas para a população negra e o acesso ao ensino superior:

uma análise comparativa dos limites constitucionais existentes no Brasil e nos Estados Unidos da América, cit., p. 133.

90“O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.

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que ela se sobrepõe aos interesses exclusivamente econômicos, ainda que isto tenha

um custo.91

Para Flávia Piovesan, as ações afirmativas encontram amplo respaldo

jurídico, seja na Constituição (ao assegurar a igualdade material, prevendo ações

afirmativas para outros grupos socialmente vulneráveis), seja nos tratados

internacionais ratificados pelo Brasil.92

Do ponto de vista estrutural, os direitos podem ser classificados em três

categorias, quais sejam: a) direitos à proteção; b) direitos à organização e ao

procedimento; c) direitos a prestações em sentido estrito.

“Direitos de proteção” são aqueles cujo objetivo primordial é a delimitação

da esfera jurídica de terceiros. “Direitos à organização e ao procedimento”, ao seu

turno, têm por objeto o estabelecimento de normas procedimentais necessárias à

realização e proteção de um direito fundamental. Destinam-se especialmente aos

direitos a que exista algo para cuja criação são necessárias ações positivas. Podemos

citar como exemplo o direito ao voto, na medida em que seu exercício depende de

um sistema eleitoral conformado pelo legislador infraconstitucional.

Grande parte das posições jurídicas relacionadas ao princípio geral da

igualdade fática em matéria racial tem a estrutura de direitos à organização. O

sistema de cotas nada mais é do que um meio de organizar o preenchimento de

vagas segundo alguma razão suficiente para justificar a combinação da avaliação

meritória com outros critérios fundados em razões juridicamente válidas.

Não há, a priori, inconstitucionalidade alguma na reserva de vagas para um

determinado grupo discriminado. Contudo, isso não significa que qualquer sistema

de cotas deva automaticamente ser considerado constitucional, uma vez que a razão

apresentada no caso concreto para justificar a reserva de vagas pode ser insuficiente

para afastar o princípio geral da igualdade de todos perante a lei.

91MENEZES, Paulo Lucena de. Reserva de vagas para a população negra e o acesso ao ensino superior:

uma análise comparativa dos limites constitucionais existentes no Brasil e nos Estados Unidos da América, cit., p. 134.

92PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas e direitos humanos. Revista USP, São Paulo, n. 6, p. 42, mar./maio 2006.

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Destarte, a organização de um sistema de cotas impõe restrições ao princípio

da isonomia entre os candidatos à vaga; mas, uma vez que tal princípio não tem

caráter absoluto, é possível que, no caso concreto, seja afastado na medida

necessária à realização da igualdade material.

A relação entre a organização de um sistema de reserva de vagas que leve em

conta a desigualdade de facto entre brancos e negros, e a promoção da igualdade

racial é de meio/fim. Em relações deste tipo, somente quando há uma única ação

adequada à promoção do direito é que tal ação pode ser considerada necessária do

ponto de vista jurídico. Ou seja, quando há mais de um meio para alcançar o mesmo

fim, há relativa liberdade do legislador infraconstitucional na escolha das medidas

possíveis. Há, portanto, dois critérios que devem ser observados: a) o Estado tem

que empregar, pelo menos, um meio efetivo de promoção da igualdade fática em

matéria racial; b) se há apenas um meio efetivo, o Estado deve que utilizá-lo.

Ressalte-se, outrossim, que as ações afirmativas têm um caráter temporário, o

que implica o permanente dever estatal de avaliar constantemente os resultados das

ações afirmativas em execução no país.

Por fim, os “direitos a prestações em sentido estrito” são aqueles direitos dos

indivíduos frente ao Estado a algo que também poderiam obter de particulares.

O fundamento para tais princípios constitucionais é a igualdade, que encontra

previsão no caput do art. 5º da Constituição (“todos são iguais perante a lei”).

O principal método de acesso ao ensino superior no Brasil tem sido o exame

vestibular, oficialmente regulamentado no país em 1911, com a Lei Orgânica do

Ensino Superior e Fundamental. O mérito, nesse nível de ensino não universalizado,

é atualmente o critério utilizado para definir aqueles que teriam direito ao ingresso.

Deste modo, a Constituição de 1988 e a LDB de 1996 definem que o ensino será

ministrado com base no princípio da igualdade de condições para o acesso na

escola, e que o Estado garantirá, na forma do art. 208, da Constituição Federal, o

“acesso aos níveis mais elevados de ensino, da pesquisa e da criação artística,

segundo a capacidade de cada um”.

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A tradição brasileira centra-se no uso dos testes do exame de vestibular como

único determinante da capacidade do candidato. Esse exame pode ser pensado como

um avanço na democratização do acesso e avaliação por mérito, se comparado a

critérios que ainda afetam o ingresso em algumas instituições de ensino superior

norte-americanas, como o pertencimento ao grupo de financiadores das

universidades; no entanto, o vestibular, no Brasil, ainda não tem garantido a

igualdade de condições de acesso dos candidatos.93

Aqueles que se posicionam contrariamente à reserva de vagas para negros

nas universidades públicas argumentam que a política de cotas raciais atenta contra

o critério da meritocracia, uma vez que o vestibular considera apenas os

conhecimentos dos candidatos, permitindo, assim, uma maior isonomia. Ora, é

inegável que a universidade pública tem como fundamento a excelência, uma vez

que é do interesse comum que os mais capacitados possam explorar a ciência em

toda a sua profundidade.

Ocorre que a política de cotas não defende a distribuição aleatória de vagas.

Pelo contrário: os alunos que pleitearem o ingresso na universidade pública por

cotas submeter-se-ão às mesmas provas de vestibular que os outros candidatos e

serão avaliados como qualquer outro estudante, conforme a nota de aprovação

prevista. A única diferença está no fato de que os candidatos aspirantes ao benefício

da cota identificar-se-ão como negro ou afrodescendente no ato de inscrição.94

Ressalte-se, ainda, que os recentes estudos apontam que o rendimento

acadêmico dos cotistas é, em geral, igual ou superior ao rendimento dos alunos que

ingressaram pelo sistema universal. Esse dado é importante porque desmonta um

preconceito bastante difundido de que as cotas conduziriam a um rebaixamento da

qualidade acadêmica das universidades. Ora, uma vez tida a oportunidade de acesso

diferenciado, o rendimento dos estudantes negros não se distingue do rendimento

dos estudantes brancos.

93MOEHLECKE, Sabrina. Propostas de ações afirmativas no Brasil: o acesso da população negra ao ensino

superior, cit., p. 103. 94MUNANGA, Kabengele. Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto

de vista em defesa das cotas. In: SILVA, Petronilha Gonçalves e; SILVÉRIO, Valter Roberto (Orgs.). op. cit., p. 127-128.

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Ademais, o vestibular das faculdades estatais caracteriza-se como um

instrumento de uma democracia meramente formal, em que se privilegia a minoria

rica da população. A ideologia do mérito e do concurso mascara de maneira

profunda a desigualdade racial existente no Brasil. É sabido que pouquíssimos são

os negros que conseguem obter uma vaga na universidade pública. E, assim, sem

condições de arcar com os custos de uma universidade privada, são condenados ao

ostracismo da sociedade industrial e capitalista. Há atualmente, portanto, uma séria

distorção na comprovação do mérito dos candidatos.

Tocante ao critério do vestibular sustenta José Jorge de Carvalho o seguinte:

“Como se alguém, independentemente das dificuldades que enfrentou, no momento final da competição aberta e feroz, fosse equiparado aos seus concorrentes de melhor sorte social. Universalizou-se a concorrência, mas não as condições para competir. Como se um negro se dispusesse a atravessar um rio a nado enquanto um branco andasse de barco a motor em alta velocidade e ao chegarem à outra margem suas capacidades pessoais fossem calculadas apenas pela diferença de tempo gasto na tarefa”.95

Ora, as políticas de ação afirmativa não representam uma ameaça ao

princípio do mérito, mas uma defesa da legitimidade deste ao promover sua

“desracialização”.

É certo que a política de cotas, por si só, não tem o condão de resolver o

problema da desigualdade racial no Brasil. Ocorre que a simples adoção de políticas

universais, em um país onde os preconceitos ainda permanecem, não traria

mudanças significativas em curto prazo. Não pode mais a população negra ficar a

mercê da boa vontade dos governantes, aguardando indefinidamente investimentos

na área de educação. As cotas representam uma solução emergencial para o

problema da exclusão dos negros do ensino superior e do mercado de trabalho. Ora,

as vagas em universidades públicas são recursos escassos que devem ser usados

para oferecer à sociedade aquilo de que ela mais necessita.

95CARVALHO, José Jorge de. Inclusão étnica e racial no Brasil: a questão das cotas no ensino superior, cit.,

p. 18.

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Alega-se, outrossim, que as cotas para negros não são compatíveis com o

princípio da igualdade, uma vez que geram um novo apartheid social por meio da

divisão da população em duas categoriais (brancos e negros), incentivando ainda

mais os preconceitos. Nas palavras de Eunice Durham:

“não podemos admitir que as dificuldades de ingresso dos negros no ensino superior se devam a características genéticas dos afro-descendentes que os tornem incapazes de atingir um bom desempenho escolar, mas ao oficializar a raça como critério de admissão pressupomos que todos os portadores de traços negróides, mesmo os de famílias com renda mais elevada, filhos de pais mais escolarizados e que tiveram maiores oportunidades de receber uma boa formação escolar, são igualmente incapazes de competir com os brancos. Fortalece-se desse modo a falsa identificação entre ascendência africana e inferioridade intelectual.”96

Esse posicionamento, contudo, não parece ser o mais acertado. Primeiro

porque os negros não são obrigados a competir pelo regime de cotas. Segundo

porque as ações afirmativas não prejudicam o orgulho e a dignidade da população

negra. Muito pelo contrário: vão conferir ao negro a oportunidade única de ingressar

na universidade pública, adquirir conhecimento e competir no mercado de trabalho.

Para Kabengele Munanga “ninguém perde seu orgulho e dignidade ao reivindicar

uma política compensatória numa sociedade que, por mais de quatrocentos anos,

atrasou seu desenvolvimento e prejudicou o exercício de sua plena cidadania”.97 E

terceiro porque as cotas podem inclusive contribuir para a diminuição dos

preconceitos, possibilitando a pluralidade de identidades raciais em convívio

harmônico na universidade pública e, conseqüentemente, o enriquecimento da

produção de saberes. Ora, a diversificação social e racial da turma é importante para

trazer para dentro da sala de aula um pouco da realidade da maioria da população

brasileira.98

96DURHAM, Eunice R. Desigualdade educacional e cotas para negros nas universidades. Novos Estudos

CEBRAP, São Paulo, n. 66, p. 8, jul. 2003. 97MUNANGA, Kabengele. op. cit., p. 126. 98FONSECA, Marcus Vinicius da; SANTANA, Patrícia Maria de Souza; JUNQUEIRA, Eliane Botelho;

VERAS, Cristiana Vianna; SILVA, Julio Costa da; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e; PINTO, Regina Pahim (Orgs.). Negro e educação: presença do negro no sistema educacional brasileiro. São Paulo: Ação Educativa, 2001. p. 89.

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Ademais, a divisão racial já existe há muito tempo na sociedade brasileira, de

modo que não será a política de cotas a responsável por isso. Ora, a reserva de

vagas para negros em instituições de ensino superior somente é exigida porque a

sociedade está racialmente dividida entre os que são “merecedores” e os que são

“não-merecedores”.

Outrossim, os casos de racismo que têm surgido após a implementação das

cotas têm sido enfrentados e resolvidos no interior das comunidades acadêmicas,

em geral, com transparência e eficácia maiores do que havia antes das cotas. Sob

este prisma, a prática das cotas tem contribuído para combater o clima de

impunidade diante da discriminação racial no meio universitário.

Vale frisar que, no que tange à escravidão brasileira, o Brasil foi o pais que

recebeu o maior contingente de escravos trazidos da África. Somente aqui

ingressaram aproximadamente 4.000.000 (quatro milhões) dos cerca de 10.000.000

(dez milhões) de escravos enviados à América, o que perfaz praticamente 40% do

total de negros africanos capturados e expatriados.

Ora, esses dados demonstram que o Brasil recebeu sete vezes mais escravos

negros do que os Estados Unidos, cujo total é estimado em 560.000 (quinhentos e

sessenta mil) indivíduos. O número ainda é bem superior à quantidade de escravos

levada para os países de colonização espanhola, bem como para as colônias

britânicas. Ademais, o Brasil foi o último país ocidental a abolir a escravidão,

somente fazendo-o em 1888, através da edição da Lei n.° 3.353.

Sobre este aspecto, marcantes são as palavras de Joel Zito Araújo, que assim

se manifestou sobre a miscigenação como um discurso estratégico do

branqueamento: “esse evidente choque racial entre o mundo branco da universidade

e o mundo negro das lideranças defensoras de cotas me faz perguntar por quanto

tempo manteremos uma realidade social tão cindida e esquizofrênica. Por quanto

tempo o debate negará a existência de um componente racial na sangrenta guerra que

os jovens negros e negros-mulatos escalados pelo narcotráfico fazem com a polícia (a

ordem branca) nos morros do Rio de Janeiro? Enfim, até quando a oxigenação que se

anuncia no mundo da universidade com a entrada de negros e índios pelo sistema de

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cotas será tão severamente condenada pelos editoriais dos principais jornais de São Paulo

e do Rio de Janeiro, assim como por reitores das universidades de norte a sul do país?”.99

Desta maneira, o Projeto de Lei n.° 73/99 (ou Lei de Cotas) deve ser

compreendido como uma resposta coerente e responsável do Estado brasileiro aos

vários instrumentos jurídicos internacionais a que aderiu, tais como a Convenção da

Organização das Nações Unidas para a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Racial, de 1969, e, mais recentemente, o Plano de Ação de Durban,

resultante da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação

Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, na África do Sul,

em 2001. O Plano de Ação de Durban corrobora a ênfase de adoção de ações

afirmativas como um mecanismo importante na construção da igualdade racial, uma

vez que as ações afirmativas para minorias étnicas e raciais já se efetivam em

inúmeros países multiétnicos e multiraciais semelhantes ao Brasil. Foram incluídas

na Constituição da Índia, em 1949, adotadas pelo Estado da Malásia desde 1968;

nos Estados Unidos desde 1972; na África do Sul, em 1994; e desde então no

Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, na Colômbia e no México. Existe uma

forte expectativa internacional de que o Estado brasileiro finalmente implemente

políticas consistentes de ações afirmativas, inclusive porque o País conta com a

segunda maior população negra do mundo e deve reparar as assimetrias promovidas

pela intervenção do Estado da Primeira República com leis que outorgaram

benefícios especiais aos europeus recém-chegados, negando explicitamente os

mesmos direitos à população negra.

5.1. O princípio constitucional da igualdade

Mas, afinal, a adoção de cotas para negros nas universidades públicas se

coaduna com o princípio constitucional da igualdade?

99ARAÚJO, Joel Zito. A força de um desejo, a persistência da branquitude como padrão estético audiovisual.

Revista USP, São Paulo, v. 69, p. 78, mar./maio 2006.

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Na realidade, o princípio da igualdade deve ser compreendido a luz da lição

clássica de Rui Barbosa, inspirada em Aristóteles, devendo-se “tratar igualmente os

iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades”.

Desde os gregos o conceito de justiça é definido com base na igualdade. No

livro V da Ética a Nicômaco, Aristóteles cuida da justiça como virtude. No aspecto

formal, ela corresponde à idéia de proporcionalidade aritmética e geométrica. A

distinção entre, respectivamente, justiça comutativa ou a virtude da

proporcionalidade entre as coisas de sujeitos pressupostamente iguais entre si, e

justiça distributiva ou a virtude da proporcionalidade entre as coisas de sujeitos

diferentes, apontava para a igualdade como cerne da justiça.

Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, para saber se determinada

discriminação se coaduna com o princípio constitucional da igualdade é necessário

analisar três critérios, quais sejam: o fator de discrímen; a correlação lógica entre tal

fator e a desequiparação procedida; e a consonância da discriminação com os

interesses protegidos na Constituição.100

No que tange ao primeiro critério, o fator de discrímen para as cotas para

negros nas universidades públicas é a raça. Para Ahya Siss, a categoria “raça” é,

“entendida como mecanismo de estratificação social fundamentado na percepção da diversidade fenotípica (...) A raça se constitui como um mecanismo importante e poderosíssimo na medida em que opera enquanto determinante de distinção social, ou seja, da alocação dos indivíduos na estrutura social”.101

No passado, a crença de que as “raças” humanas tinham diferenças

biológicas contribuiu para justificar a discriminação, a exploração e outras

atrocidades. Na realidade, o conceito de “raça” é carregado de ideologia e sempre

traz algo não explicitado: a relação de poder e dominação.

100MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo:

Malheiros Ed., 1995. p. 21. 101SISS, Ahyas. op. cit., p. 21.

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A palavra “raça” possui um sentido morfológico, fenotípico, que denota um

conjunto de caracteres físicos, os quais estão dissociados dos genes que influenciam

a inteligência ou outras formas de talento. Assim, do ponto de vista genético, a

subdivisão da espécie humana em raças não existe, pois brancos, negros, pardos e

índios fazem parte da raça humana.

Atribui-se ao botânico Carolus Linnaeus a criação, no século XVIII, do atual

sistema de classificação dos seres vivos. Em 1758, Linnaeus deu ao homem o nome

científico Homo sapiens e dividiu a humanidade em quatro subespécies: os

vermelhos americanos, “geniosos, despreocupados e livres”; os amarelos asiáticos,

“severos e ambiciosos”; os negros africanos, “ardilosos e irrefletidos”; e os brancos

europeus, “ativos, inteligentes e engenhosos”.102

Segundo Ashcroft, o vocábulo “raça” foi usado pela primeira vez em língua

inglesa em 1508, em um poema de Willian Dunbar. Durante os séculos XVII e

XVIII, permaneceu basicamente como um termo literário, denotando uma classe de

palavras ou coisas. Apoiando-se no trabalho de Banton, Wade também mostra que

quando a palavra “raça” começou a ser usada na Europa, no início do século XVI,

foi no sentido de linhagem, para identificar um grupo de pessoas ligadas por uma

descendência comum.103

Atualmente, a subdivisão dos seres humanos em raças não mais subsiste,

pois o termo “raça” restringe-se ao seu fundamento histórico, político e social,

apresentando-se, portanto, como verdadeiro fenômeno sociocultural, à luz de uma

hodierna interpretação jurídico-constitucional.104 Cientistas do Projeto Genoma

estimam que exista somente 0,01% de diferença genética entre um ser humano e

outro. Deste modo, com o mapeamento do genoma humano, não existem diferenças,

do ponto de vista científico, entre os homens, seja pela segmentação da pele,

formato dos olhos, altura ou quaisquer outras características físicas, visto que todos

se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres

humanos, pois, na essência, são todos iguais.

102MADRUGA, Sidney. op. cit., p. 172. 103Apud, BARRETO, Paula Cristina da Silva. op. cit., p. 25. 104MADRUGA, Sidney. op. cit., p. 206-207.

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Para Sérgio Pena e Telma Birchal, existem três linhas de pesquisa molecular

que atestaram a inexistência de raças humanas. A primeira é a observação de que a

espécie humana é muito jovem e seus padrões migratórios demasiadamente amplos

para permitir uma diferenciação e consequentemente separação em diferentes

grupos biológicos que pudessem ser chamados de “raças”. A segunda é o fato de

que as chamadas “raças” compartilham a vasta maioria das suas variantes genéticas.

E a terceira, por fim, é a constatação de que apenas 5-10% da variação genômica

humana ocorre entre as “raças” putativas. As evidências levam à conclusão de que

raças humanas não existem do ponto de vista genético ou biológico.105

A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo

meramente político-social, sendo que deste pressuposto surge o racismo e,

consequentemente, o racismo e o preconceito segregacionista.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu nos seguintes termos:

“Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Na essência são todos iguais”.106

Destarte, partindo-se do pressuposto de que a “raça”, em seu sentido

biológico, não mais existe, o conceito de “raça” passou a ter o sentido de

construção social.

Contudo, observa Paula Cristina da Silva Barreto que:

“afirmar que se utiliza o conceito de raça como construção social não é suficiente para acabar com as divergências existentes em torno do assunto. Alguns autores continuam se colocando de modo totalmente contrário a qualquer uso do conceito de raça, seguindo a tendência que já se insinuava nos anos de 1930, quando surgiram as primeiras propostas de eliminação do termo do vocabulário das Ciências Sociais. Outros concordam com esse uso, mas

105PENA, Sérgio D. J.; BIRCHAL, Telma. A inexistência biológica versus a existência social de raças

humanas: pode a ciência instruir o etos social? Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 15, dez./fev. 2005/2006. 106HC n.° 82.424-2 QO/RS, rel. Min. Moreira Alves

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reconhecem a existência de limitações e, por isso, o fazem com ressalvas e impondo condições”.107

Kabengele Munanga, ao seu turno, preconiza que:

“sabemos todos que o conteúdo da raça é social e político. Se para o biólogo molecular ou o geneticista humano a raça não existe, ela existe na cabeça dos racistas e de suas vítimas. Seria muito difícil convencer Peter Botha e um zulu da África do Sul de que a raça negra e a raça branca não existem, pois existe um fosso sócio-histórico que a genética não preenche automaticamente”.108

No Brasil, o termo “raça” está bastante associado à “cor da pele”. Tanto é

assim que a “cor” em nosso país corresponde ao termo em inglês race e é baseada

em uma avaliação fenotípica complexa, que leva em conta a pigmentação da pele e

dos olhos, o tipo de cabelo e a forma do nariz e dos lábios. Em princípio, o motivo

pelo qual o termo “cor” é usado no Brasil ao invés de “raça” é que ele enfatiza a

natureza contínua dos fenótipos. Ocorre que pesquisas científicas demonstraram que

a “cor” tem pouca ou nenhuma relevância biológica, pois a sua correlação com o

grau de ancestralidade africana é bastante fraca.

Assim, há quem entenda que “a dimensão da raça ultrapassa a pigmentação

da pele e só pode ser compreendida no plano cultural”.109 É certo que uma

delimitação precisa entre “raças” não é encontrada em nenhum lugar do mundo

graças ao mecanismo da mestiçagem, que não é privilégio do Brasil. O que

devemos legar em conta é a construção social da raça, ou seja, a forma pela qual as

pessoas se autodeclaram.

107BARRETO, Paula Cristina da Silva. op. cit., p. 25. 108MUNANGA, Kabengele. Algumas considerações sobre "raça", ação afirmativa e identidade negra Brasil:

fundamentos antropológicos. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 52-53, dez./fev. 2005/2006. 109FONSECA, Marcus Vinicius da; SANTANA, Patrícia Maria de Souza; JUNQUEIRA, Eliane Botelho;

VERAS, Cristiana Vianna; SILVA, Julio Costa da; SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e; PINTO, Regina Pahim (Orgs.). op. cit., p. 77.

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Segundo Kabengele Munanga, “a identidade mestiça seria uma espécie de

identidade legitimadora e ideologicamente projetada a recuperar o mito da

democracia racial”.110

Então surge a questão de se saber o que é “ser negro”. É aquele que tem

ascendência africana independentemente da tonalidade da pele? Como identificar o

candidato que tem direito a concorrer a uma vaga pelo regime das cotas?

Para essa questão responde Cidinha da Silva com a seguinte observação:

“soa realmente estapafúrdia a dúvida sobre quem é negro(a) no Brasil apresentada pelos oponentes das ações afirmativas. É contraditório que todas as pessoas saibam quem é negro(a) quando se trata de preteri-lo(la) por pressupostos e características raciais, e que não se saiba quem é a pessoa negra, quando se trata de resguardá-la dessas manifestações ignóbeis do racismo”.111

Continua afirmando que “para discriminar, o tiro vem sendo historicamente

certeiro, mas para garantir direitos (desconstruindo privilégios),

surpreendentemente, a pessoa negra se desvanece na decantada miscigenação racial

brasileira”.112

Neste sentido, para a identificação do candidato negro, aparecem duas

alternativas principais: a auto-identificação e a negritude atribuída ou

heteroclassificação. O ideal é que essas duas técnicas sejam aproximadas. Para

Cidinha da Silva, a pessoa negra é aquela “que se identifica como negra e que é

tratada como tal”.113

O PNAD 96, usado no Programa de Ação Afirmativa da Fundação Carlos

Chagas para concessão de bolsas de pós-graduação, faz a classificação de cor ou

raça de duas maneiras complementares: critério utilizado pelo IBGE (responder à

pergunta: sua cor é branca, preta, parda, amarela ou indígena?); e declaração da

110MUNANGA, Kabengele. A identidade negra no contexto da globalização. Ethnos Brasil, São Paulo, n. 1,

p. 20, mar. 2002. 111SILVA, Cidinha da (Org.). Ações afirmativas em educação: experiências brasileiras. São Paulo: Summus,

2003. p. 19. 112Id. Ibid., p. 39. 113Id. Ibid., p. 41.

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pertença racial. Um dos princípios adotados no programa é o de acreditar na

informação do candidato até prova em contrário. Solicitar foto e realizar entrevistas

são estratégias para estimular o controle de candidatos que passariam a linha de cor

por oportunismo.114

Interessante frisar que os procedimentos para o levantamento da raça/cor da

população brasileira têm constantemente suscitado debates, refletindo, em certos

aspectos, a própria dinâmica das relações raciais na sociedade brasileira. Essa

disputa pode ser entendida ainda como uma luta pela legitimação de classificações,

que dividem nosso mundo social e estabelecem ou desfazem grupos. Um exemplo

disso são os dados do PNAD de 1976, a respeito da classificação racial da

população, objeto de controvérsias na interpretação dos seus resultados, muito

citados por apresentarem 135 designações de cor diferentes da população brasileira.

A pesquisa investigou o quesito cor através de dois procedimentos: um aberto (a

designação era dada espontaneamente pelo entrevistado) e outro fechado (o

entrevistado opta por um dos termos previamente definidos, seguindo as categorias

do IBGE). A análise das respostas à primeira pergunta mostrou que, apesar do alto

número de cores diferentes, a maioria (95%) estava concentrada em sete

designações, dentro das quais constavam as existentes na pergunta fechada. Este

mesmo resultado foi novamente comprovado em outras pesquisas, em uma

observação mais detalhada desta informação, o que indica a complexidade da

classificação racial brasileira, diferente do modelo binário e baseado na

ascendência, como o norte-americano.115

Dentro desta discussão em torno da identidade racial e sobre “quem é negro

no Brasil” temos uma nova perspectiva de análise que tem facilitado a reintrodução

da categoria “raça” como variável explicativa das desigualdades, isto é, a divisão de

grupos de cor em apenas duas categorias – brancos e não-brancos. Percebeu-se que,

nos grupos de brancos, pretos e pardos, a situação de desigualdades raciais atingia

de maneira muito semelhante pretos e pardos, quando comparada ao grupo de

114ROSEMBERG, Fúlvia. O branco no IBGE continua branco na ação afirmativa? Estudos Avançados, São

Paulo, v. 18, n. 50, p. 63-64, jan./abr. 2004. 115MOEHLECKE, Sabrina. Propostas de ações afirmativas no Brasil: o acesso da população negra ao ensino

superior, cit., p. 95.

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brancos, nas mais diversas áreas, inclusive a educacional. Esse agrupamento de

pretos e pardos no grupo de “não-brancos” não significa que eles não sejam grupos

distintos, que devem ser analisados da mesma maneira em qualquer situação, por

exemplo, quando a discussão envolve a identidade de cada um; mas, para fins

estatísticos e definição de políticas públicas, ele pode representar um avanço nas

análises sobre desigualdades raciais, pois permite uma avaliação das diferenças que

caracterizam os grupos racialmente, estabelecendo uma desigualdade mensurável.116

Interessante notar que a forma de classificação racial é outra grande diferença

entre o Brasil e os Estados Unidos. Neste país, o critério de definição racial é o de

ascendência, ou seja, negro é aquele que possui uma gota de sangue negro (critério

do one drop rule). Já no Brasil, prevalece o critério da aparência.

Nos Estados Unidos, a Equal Employment Opportunity Commission

reconhece quatro métodos para identificar a raça ou a origem nacional dos

indivíduos: a) o uso dos dados disponíveis; b) a confirmação visual; c) a contagem

por conhecimento pessoal; e d) a autodeclaração.

Já no Brasil o IBGE utiliza um sistema misto, pois a orientação é para que o

entrevistado se autodefina e indique a “cor” ou “raça” das demais pessoas que

convivem com ele no mesmo ambiente, sem a interferência do entrevistador.

Portanto, em princípio a identidade negra deverá ser aferida pelo critério

subjetivo, isto é, de acordo com a autodeclaração, conforme estabeleceu o Decreto

n.° 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação e

reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por

remanescentes quilombolas como grupos étnicos-raciais, segundo critérios de auto-

atribuição.

No mesmo sentido, a FUNAI, desde 2003, vem adotando, nos termos

prescritos pela Convenção n.° 169 da OIT, a auto-identificação como critério

fundamental para o reconhecimento da identidade étnica de um determinado grupo

indígena. 116MOEHLECKE, Sabrina. Propostas de ações afirmativas no Brasil: o acesso da população negra ao ensino

superior, cit.

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Conforme já ressaltado anteriormente, não se nega a possibilidade de

ocorrência de possíveis fraudes, tornando necessário o aperfeiçoamento de

mecanismos destinados à avaliação da veracidade dos dados pessoais fornecidos

pelo candidato.

Vale mencionar a sistemática adotada pela Universidade de Brasília, que

exigiu dos candidatos que se declararam negros ou pardos a apresentação de

fotografia como elemento para a avaliação do fenótipo por uma Comissão de

especialistas, de cuja decisão cabe recurso para aqueles que não tiveram sua

inscrição homologada.

Paulo Lucena de Menezes adverte, contudo, que:

“a eleição da raça ou cor, como fator isolado de discrímen para a seleção de candidatos tende a apresentar um efeito duplamente negativo: primeiro, ele termina privilegiando os raríssimos casos de indivíduos negros que dispõem de melhores condições de vida (que existem, ainda que à míngua) e que não encontram outros obstáculos – senão aqueles também existentes para os indivíduos não-negros – para o ingresso nos cursos universitários. Em segundo lugar, sendo procedente a assertiva que vigora no país o “preconceito racial de marca” e não “de origem”, tais indivíduos são justamente aqueles que tendem a ser objeto de menor discriminação racial, em face da posição social diferenciada de que gozam. Em outros termos, sob o manto de “medidas anti-discriminatórias”, corre-se o risco de se favorecer uma camada diferenciada (ainda que ínfima) da população negra”.117

Por outro lado, a cota social, tomada isoladamente, não teria o condão de

minimizar esse contexto histórico de desigualdade entre brancos e negros. Isso

porque os brancos já estão em vantagem com relação à maior e melhor

escolaridade, o que faz com, consequentemente, tenham melhores condições de

acesso aos mais atraentes empregos. Se forem abertas cotas somente para os

estudantes de baixa renda, ainda que, de fato, venham a beneficiar inúmeros alunos

negros, estará se ampliando, ainda mais, a vantagem da parcela branca às expensas

de se continuar discriminando os negros. 117MENEZES, Paulo Lucena de. Reserva de vagas para a população negra e o acesso ao ensino superior:

uma análise comparativa dos limites constitucionais existentes no Brasil e nos Estados Unidos da América, cit., p. 184.

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Partilhamos do entendimento de que uso conjugado dos dois fatores, isto é,

as condições sócio-econômicas e o critério racial parece ser a solução mais

adequada. E é justamente neste sentido que o Projeto de Lei n.° 3.627/2004

estabeleceu a conjugação dos critérios social e racial. Confira-se o texto normativo:

Art. 1° - As instituições públicas federais de educação superior reservarão, em cada concurso de seleção para ingresso nos cursos de graduação, no mínimo, cinqüenta por cento de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Art. 2° - Em cada instituição de educação superior, as vagas de que trata o art. 1° serão preenchidas por uma proporção mínima de autodeclarados negros e indígenas igual à proporção de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

Parágrafo único: No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios do caput, as remanescentes deverão ser completadas por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Art. 3° - O Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República serão responsáveis pelo acompanhamento e avaliação do sistema de que trata esta Lei, ouvida a Fundação Nacional do Índio – FUNAI.

Art. 4° - As instituições de que trata o art. 1° terão o prazo de duzentos e quarenta dias para se adaptarem ao disposto nesta lei.

Art. 5° - O Poder Executivo promoverá, no prazo de dez anos, a contar da publicação desta lei, a revisão do sistema especial para o acesso de estudantes negros, pardos, indígenas, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas, nas instituições de educação superior.

Art. 6° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

A questão, no entanto, permanece aberta, donde a necessidade de permanente

reavaliação dos critérios utilizados na condução de políticas públicas que dizem

respeito às ações afirmativas.

Tocante ao segundo e terceiro aspectos de análise de constitucionalidade da

reserva de vagas para negros nas universidades públicas a questão é igualmente

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complexa. É preciso verificar se o elemento raça justifica um tratamento desigual.

Segundo Boaventura de Souza Santos “temos o direito de ser iguais, quando a

diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes, quando a igualdade nos

descaracteriza.”118 Completa Celso Antônio Bandeira de Mello afirmando que:

“o que se visa com o preceito isonômico é impedir favoritismos ou perseguições. É obstar agravos injustificados, vale dizer, que incidam apenas sobre uma classe de pessoas em despeito de inexistir uma racionalidade apta a fundamentar uma diferenciação entre elas que seja compatível com os valores sociais aceitos no Texto Constitucional”.119

Muito embora nossa Constituição assegure a igualdade de todos perante a lei,

a realidade nos mostra profundas mazelas sociais de origem histórica e que, até

hoje, não foram superadas. A igualdade alcança concreção exclusivamente no nível

formal, uma vez que a lei é uma abstração, ao passo que as relações sociais são

reais.

O negro brasileiro, durante muito tempo, foi considerado objeto de direito,

pertencentes à classe dos semoventes, junto com os animais. A negação da

dignidade, as violências suportadas, as revoltas pela liberdade marcaram para

sempre os afrodescendentes. A história da descendência européia no Brasil é

traçada por políticas de inclusão, enquanto a história da descendência africana é

marcada pela exclusão e pela omissão.120

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 3º, inciso III, estabelece como

objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza

e da marginalização social e a redução das desigualdades sociais e regionais. Ora, a

política de acesso de minorias raciais ao ensino superior tem exatamente o objetivo

de reduzir as desigualdades sociais, encontrando-se, assim, em sintonia com nosso

118Apostila do Prof. Fábio Konder Comparato distribuída aos alunos de Filosofia de Direito da Faculdade de

Direito da USP em 2001. 119MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Principio da isonomia: desequiparações proibidas e desequiparações

permitidas. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n. 1, p. 83, 1993. 120PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. Uma análise jurídica sobre a exclusão social dos afro-

descendentes numa ordem constitucional integradora. In: DURHAM, Eunice; BORI, Carolina (Orgs.). Seminário O negro no ensino superior. São Paulo: USP/NUPES, 2003. p. 91-93. (Série Capa Azul – Seminários CA 1/03).

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texto constitucional. Sendo nossa Constituição dirigente, volta-se à transformação

da sociedade, impondo-se reconhecer no art. 3º o fundamento à reivindicação, pela

sociedade, do direito à realização de políticas públicas. As políticas públicas, por

sua vez, importam o fornecimento de prestações positivas à sociedade.121

Importante ressaltar também que a igualdade garantida na Magna Carta não

se esgota na igualdade meramente formal, decorrente de certa “neutralidade estatal”

em matéria de educação e exigente de mera atitude negativa do Estado. São notórias

as insuficiências dessa concepção de igualdade para a transformação da sociedade.

A igualdade deve ser entendida sobretudo em seu sentido material, cabendo ao

Estado adotar medidas positivas aptas a interromper a dinâmica de exclusão social.

Nas palavras de Joaquim Barbosa, “as proclamações jurídicas por si sós não são

suficientes para reverter um quadro social que finca âncoras na tradição cultural de

cada país”.122 Em outras palavras: não basta proibir a discriminação; são necessárias

políticas públicas de inclusão de minorias no espaço público.

Neste sentido, faz-se necessário distinguir novamente “isonomia” de

“igualdade material”. A primeira significa a ausência de privilégios, isto é, de

superioridade de status jurídico de certos grupos sociais em relação a outros.

Atualmente, o grande atentado contra a isonomia é a discriminação, ou seja, a

distinção, exclusão ou restrição imposta a um grupo social com o intuito de

estabelecer uma desigualdade no gozo ou exercício de direitos e liberdades

fundamentais. A igualdade material, por sua vez, pressupõe a equalização das

condições sociais de vida. É a distribuição dos bens sociais segundo um critério

inversamente proporcional às carências individuais ou grupais. A negação dessas

condições elementares de vida digna caracteriza exclusão social. Assim, enquanto a

isonomia representa a justiça legal, a igualdade material representa a justiça

legítima.

Não há como negar que a universidade é um dos principais instrumentos de

ascensão social, uma vez que viabiliza o desenvolvimento intelectual do indivíduo e

121GRAU, Eros. op. cit., p. 258. 122BARBOSA, Joaquim. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como

instrumento de transformação social, a experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 37.

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aumenta suas chances de ingressar no competitivo mercado de trabalho. Enfim, abre

portas ao sucesso e às realizações pessoais. Sendo assim, a política de cotas cumpre

o importante papel de transformação social, possibilitando o acesso de minorias

raciais ao ensino superior, em harmonia com o caráter plúrimo da sociedade.

Ensina Sidney Madruga que:

“a discriminação positiva acaba por propiciar, ainda que de forma gradual, não só uma maior convivência com a diversidade, sobretudo com a diversidade racial, mas, também, uma espécie da ruptura com o meio social dominante, no que diz respeito à prevalência de certos estigmas arraigados culturalmente no imaginário coletivo, ao contrapor-se a inúmeras idéias preconcebidas baseadas em falsas generalizações – verdadeiros esteriótipos culturais – como, por exemplo: o negro é burro; o índio é indolente e preguiçoso; a mulher é incapaz, etc.”123

Portanto, é necessária uma nova interpretação do princípio constitucional da

igualdade, que não se esgote no plano da lei, mas alcance também o campo da

realidade fática. A igualdade perante a lei não é suficiente para dar conta do

problema da discriminação racial no Brasil, razão pela qual é importante considerar

também a igualdade na lei e a igualdade através da lei.

O Direito, longe de ser apenas um conjunto formal de normas que regula a

conduta dos indivíduos, conferindo direitos e estabelecendo deveres, é um poderoso

mecanismo de transformação social.

5.2. O princípio constitucional da proporcionalidade

A questão da constitucionalidade da política de cotas para negros nas

universidades públicas também abrange o questionamento sobre a existência de

limites constitucionais que impediriam, em tese, a implementação de tais medidas.

123MADRUGA, Sidney. op. cit., p. 75.

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A resposta a esta indagação também repousa no princípio da

proporcionalidade (origem alemã) ou da razoabilidade (origem norte-americana).

Referido princípio tem sua origem e desenvolvimento ligados à garantia do devido

processo legal e sua matriz remonta à cláusula law of the land, prevista pela Magna

Carta de 1215. Posteriormente, sua positivação se deu por meio das emendas 5ª e

14ª à Constituição norte-americana.

Tratando-se de um superprincípio ou de um “princípio dos princípios”, o

princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios, quais sejam, da

necessidade da restrição para garantir a efetividade do direito, da adequação da

medida restritiva ao fim ditado pela própria lei e da proporcionalidade em sentido

estrito, pelo qual se pondera a relação entre a carga de restrição e o resultado. A

ponderação é realizada segundo um “modelo de fundamentação”, isto é, uma

ponderação pode ser considerada racional se o enunciado de preferência a que

conduz poder ser fundamentado racionalmente. Cuida-se, aqui, de uma verificação

da relação de custo-benefício da medida, ou seja, da ponderação entre os danos

causados e os resultados a serem obtidos.

Do ponto de vista científico, há quem sustente que a proporcionalidade não é

um princípio autônomo, mas um critério, pois não possui um conteúdo próprio e

definido, isto é, uma carga axiológica, que traduza um valor. Trata-se de um índice

que permite aplicar uma técnica de solução de problemas de concorrência e

conflito.124

Encarada como um princípio, a proporcionalidade estaria sempre em

concorrência com qualquer outro, devendo ambos se compor para uma adequada

solução, numa sorte de composição necessária. Ora, isso na verdade não ocorre. Sob

uma perspectiva lógica, é possível a incidência simples de apenas um princípio, no

caso de não ter havido desafio de qualquer outro (não há concorrência ou conflito).

Ademais, havendo concorrência ou conflito entre dois princípios, a

proporcionalidade não seria um terceiro que também devesse ser ponderado, mas

124ROTHENBURG, Walter Claudius. Princípios constitucionais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.

p. 42.

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justamente a própria ponderação, a resolver a concorrência ou o conflito. Portanto,

parece melhor compreender o fenômeno como de ajustamento (adequação) de um

ou diversos princípios ao caso, e reconhecer a proporcionalidade, não como

princípio, mas sim como critério de interpretação, a aferir cada aplicação normativa,

determinando o modo de incidência.125

O campo de aplicação da proporcionalidade que se apresenta com maior

importância é justamente o da restrição de direitos, liberdades e garantias. Isso quer

dizer que qualquer limitação a direitos, liberdades e garantias dever ser necessária

(exigível), adequada (apropriada) e proporcional (com justa medida).

E nem se alegue que o princípio da proporcionalidade não está positivado em

nossa Constituição Federal de 1988, pois o art. 5º, § 2°, do texto constitucional,

estabeleceu que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem

outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados

internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. A

proporcionalidade, embora não exista enquanto norma geral de direito escrito,

existe como norma esparsa no texto constitucional.

Conforme ensina Eros Roberto Grau,

“a existência – ou, se me for permitido desde logo assim afirmá-lo, a ‘positividade’ - no ordenamento jurídico, de determinados princípios que, embora não enunciados em nenhum texto de direito positivo, desempenham papel de importância definitiva no processo de aplicação do direito, é inquestionável”.126

A proporcionalidade é o princípio de interpretação dos demais princípios

constitucionais. Já a razoabilidade é o princípio que impede excessos na aplicação

dos princípios constitucionais.

Paulo Lucena de Menezes, ao estudar o tema, afirma que:

“dos subprincípios ou máximas que integram o princípio jurídico da proporcionalidade, o da necessidade é o que primeiro se

125ROTHENBURG, Walter Claudius. op. cit., p. 42-43. 126GRAU, Eros. op. cit., p. 81.

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sobressai, diante do cenário brasileiro. A adequação, realmente, oferece menos subsídios para discussões, diante da relação de conformidade (e utilidade) existente, no plano concreto, entre os fins visados e os meios empregados”.127

Um aspecto que chegou a ser cogitado em algumas demandas judiciais

envolvendo a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que pode ter repercussões,

neste âmbito, é a concessão de vagas desprovida de qualquer suporte financeiro, de

modo que o ônus imposto pela política de ação afirmativa poderia ser inócuo, em

termos de resultados. Todavia, constata-se que grande parte dos esforços públicos

estão concentrados na concessão de bolsas de estudos para os alunos beneficiados

com as cotas. Por esta razão, algumas instituições de ensino prevêem a reserva de

vagas associadas a um plano de apoio econômico.

A prova da necessidade exige a comprovação de que foram adotados os

meios menos drásticos para a obtenção da finalidade perseguida. A prova da

adequação, ao seu turno, exige a demonstração de que a medida adotada pelo Poder

Público se mostra apta a atingir os objetivos pretendidos. Por derradeiro, a prova da

proporcionalidade em sentido estrito é feita através da ponderação entre o ônus

imposto e o benefício trazido.

Conforme observa Luis Roberto Barroso, o princípio da proporcionalidade

faz uma imperativa parceria com o princípio da isonomia. Tendo em vista que

legislar, em última análise, consiste em discriminar situações e pessoas por variados

critérios, a proporcionalidade é o parâmetro pelo qual se vai aferir se o fundamento

da diferenciação é aceitável e se o fim por ela visado é legítimo.128

Destarte, estabelecida a premissa de que é possível distinguir pessoas e

situações para o fim de dar a elas tratamento jurídico diferenciado, cabe determinar

os critérios que permitirão identificar as hipóteses em que as desequiparações são

juridicamente toleráveis. Parece, então, que a compatibilidade entre a regra 127MENEZES, Paulo Lucena de. Reserva de vagas para a população negra e o acesso ao ensino superior:

uma análise comparativa dos limites constitucionais existentes no Brasil e nos Estados Unidos da América, cit., p. 180.

128BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 239.

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isonômica e outros interesses prestigiados constitucionalmente exige que se recorra

à idéia de proporcionalidade, de modo que somente assim será possível obter um

equilíbrio entre diferentes valores a serem preservados.129

O critério da proporcionalidade é usado, inclusive, pela Corte Interamericana

de Direitos Humanos. Segundo a jurisprudência desta corte, para que a

diferenciação ou discriminação seja justa é necessária a observância de

determinados requisitos, quais sejam: a) a norma que estabelece o tratamento

diferenciado deve ter um objetivo lícito; b) a distinção deve estar baseada em

desigualdades reais e objetivas entre os indivíduos e as demais circunstâncias; e c)

deve ser respeitado o princípio da proporcionalidade.

Destarte, o ato estatal é proporcional quando atende a necessidade ou

exigibilidade (verificação da inexistência de meio menos gravoso para o

atendimento do fim visado), a utilidade ou adequação (as medidas devem ser aptas

ao alcance do fim almejado) e a proporcionalidade em sentido estrito (o ato deverá

trazer mais vantagens do que desvantagens). Em síntese: para que um ato do poder

público seja tido com legítimo, o fator de discriminação deve ter um nexo plausível

com o objetivo da norma.

Por derradeiro, é importante frisar que a relação entre a organização de um

sistema de reserva de vagas que leve em conta a desigualdade de facto entre brancos

e negros, e a promoção da igualdade racial é de meio/fim. Em relações deste tipo,

somente quando há uma única ação adequada à promoção do direito é que a aludida

ação pode ser considerada necessária do ponto de vista jurídico. Em outras palavras:

quando há mais de um meio para alcançar o mesmo fim, há relativa liberdade do

legislador infraconstitucional na escolha das medidas possíveis. Deste modo,

existem dois critérios que devem ser observados, quais sejam: a) o Estado deve

empregar, no mínimo, um meio efetivo de promoção da igualdade fática em matéria

racial; b) se há apenas um único meio efetivo, o Estado deve utilizá-lo.

129BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática

constitucional transformadora, cit., p. 236.

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Feitas estas premissas, partilhamos do entendimento de que, em princípio, a

política de cotas para negros em universidades públicas é compatível com o

princípio da proporcionalidade, pois a utilização de políticas universalistas ou de

caráter meramente social não são suficientes para combater o problema da

desigualdade racial no Brasil a curto prazo. Ademais, a reserva de vagas se mostra

juridicamente adequada à finalidade de diminuir o déficit educacional entre brancos

e negros. Por fim, a desequiparação é absolutamente legítima, tendo em vista o

caráter dirigente da Constituição Federal e os objetivos da República Federativa do

Brasil previstos no art. 3° da norma fundamental.

Percebe-se, assim, que é possível discriminar em prol dos etnicamente

desfavorecidos, mas esse tratamento desigual há de encontrar limites de

proporcionalidade para que seja legítimo.

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CONCLUSÃO

Após a análise de inúmeros argumentos referentes à política de cotas para

negros nas universidades públicas, concluímos que os aspectos positivos da reserva

de vagas para afrodescendentes superam – em muito – os aspectos negativos.

Ademais, trata-se de modalidade de ação afirmativa que se coaduna com os

princípios da igualdade, da proporcionalidade e da solidariedade, presentes, ainda

que de forma indireta, no texto constitucional de 1988.

Ora, não há como proporcionar igualdade de tratamento e de condições de

vida sem a realização de políticas públicas. São objetivos fundamentais da

República Federativa do Brasil a erradicação da pobreza e da marginalização social

e a redução das desigualdades sociais e regionais, ex vi do art. 3º, inciso III, da

Constituição Federal.

O estabelecimento de cotas para negros nas universidades públicas, além de

compatível com o princípio da igualdade, é também imprescindível para a

concretização do princípio da solidariedade. Este último prende-se à idéia de

responsabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo ou

grupo social.130

O substantivo solidum, em latim, significa a totalidade de uma soma; solidus

tem o sentido de inteiro ou completo. A solidariedade não diz respeito, portanto, a

uma unidade isolada, nem a uma proporção entre duas ou mais unidades, mas à

relação de todas as partes de um todo, entre si e cada uma perante o conjunto de

todas elas. São de cunho solidário não só o conjunto das relações interindividuais

dos cidadãos na sociedade política, e dos povos na cena internacional, mas também

a relação do Estado com qualquer cidadão ou grupo de cidadãos, ou da Organização

das Nações Unidas com qualquer de seus membros.131

130COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, cit., p. 62. 131Id. Ética – direito, moral e religião no mundo moderno, cit., p. 577.

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O fundamento ético do princípio da solidariedade encontra-se na idéia de

justiça distributiva, entendida como a necessária compensação de bens e vantagens

entre as classes sociais, com a socialização dos riscos normais da existência

humana.

O sentimento de solidariedade é próprio do ser humano, podendo-se

constatar que a preocupação com o próximo está presente em todos os tipos de

sociedade.

A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 trouxe evidentes

traços solidarísticos, embora não contenha expressamente o termo “solidariedade”.

Porém, em seu preâmbulo há menção de que todas as pessoas são membros da

“família humana” e o art. 1° estabelece que todos “devem agir uns para com os

outros em espírito de fraternidade”.

É possível afirmar que, de acordo com a teoria clássica das gerações de

direitos humanos, os direitos de solidariedade podem ser enquadrados na quarta

geração de direitos fundamentais.

E a própria Constituição Federal de 1988 está ungida pela idéia de

solidariedade, pois, já no preâmbulo, o constituinte trouxe a preocupação de

construir uma sociedade onde impere “a igualdade e justiça como valores supremos

de uma sociedade fraterna”.

A solidariedade atua em três dimensões complementares: nacional,

internacional e intergeneracional. A cada uma delas corresponde um conjunto

específico de direitos humanos, os quais são, hoje, objeto de normas específicas do

direito internacional.

O vínculo de solidariedade entre todos os que compõem politicamente o

mesmo povo de um Estado determinado está na origem do conjunto dos direitos

fundamentais de natureza econômica, social e cultural. O titular desses direitos não

é o ser humano abstrato, mas sim o conjunto dos grupos sociais marginalizados.

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Assim, diante da teoria – bastante discutível, aliás – de que a todo direito

corresponde um dever, é possível dizer que o corresponde lógico aos direitos

fundamentais é o dever de solidariedade.

Necessário ressaltar, contudo, que o estabelecimento de cotas para negros

não dispensa, de forma alguma, as políticas de caráter universalista, de equidade de

oportunidades. Pelo contrário: o ideal é que as ações afirmativas sejam conjugadas

com medidas universalistas, tais como iniciativas políticas que promovam o avanço

qualitativo do ensino nos níveis fundamental e médio.

Outrossim, conforme já destacado anteriormente, a escolha do critério da

raça ou cor, como fator isolado de discrímen para a seleção de candidatos que

pretendem ingressar nas universidades públicas, pode acabar por privilegiar os

raríssimos casos de indivíduos negros que dispõem de melhores condições de vida

(que existem, ainda que à míngua) e que não encontram outros obstáculos – senão

aqueles também existentes para os indivíduos não-negros – para o ingresso nos

cursos universitários. Em segundo lugar, a prevalecer a assertiva de que vigora no

país o “preconceito racial de marca” e não “de origem”, tais indivíduos são

justamente aqueles que tendem a ser objeto de menor discriminação racial, em face

da posição social diferenciada de que gozam. Em outros termos, sob o manto de

“medidas anti-discriminatórias”, corre-se o risco de se favorecer uma camada

diferenciada (ainda que ínfima) da população negra”.132

Por outro lado, a cota social, considerada isoladamente, não seria suficiente

para minimizar todo esse contexto histórico de desigualdade entre brancos e negros,

em razão das significativas desigualdades entre tais grupos, conforme demonstrado

pelos dados estatísticos.

Por tais razões, o uso conjugado dos dois fatores, isto é, as condições sócio-

econômicas e o critério racial, aliado às medidas universalistas, parece ser a solução

mais adequada para o problema da desigualdade racial em nosso país.

132MENEZES, Paulo Lucena de. Reserva de vagas para a população negra e o acesso ao ensino superior:

uma análise comparativa dos limites constitucionais existentes no Brasil e nos Estados Unidos da América, cit., p. 184.

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A crise de representação que vivemos também oferece a oportunidade para

renovação teórica e formulação de propostas de inclusão étnica e racial. Todavia,

isso somente será possível se admitirmos que a academia contribuiu, no Brasil, para

a produção do nosso quadro de desigualdade entre brancos e negros, que não

melhorou apesar dos investimentos significativos do Poder Público no ensino

superior durante toda a metade do século.

Os direitos humanos, como reivindicações morais que são, nascem quando

devem e quando podem surgir. Como ensina Norberto Bobbio, os direitos humanos

“não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem

quando o aumento do poder do homem sobre o homem – que acompanha

inevitavelmente o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem de

dominar a natureza e os outros homens – ou cria novas ameaças à liberdade do

indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências”.133

Que fiquem vivas as palavras de Ahyas Siss: “a conquista e a posse dos

direitos da cidadania, bem como a garantia de que os afro-brasileiros possam

exercer esses direitos, de forma efetiva, certamente vão requerer muito mais que a

implementação de políticas de ação afirmativa entre nós. Entretanto e certamente,

há que se passar por elas”.134 Eis o desafio.

133BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 6. 134SISS, Ahyas. op. cit., p. 197.

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