corporeidades em minidesfile

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    Corporeidades em minidesfile

    Sempre que me solicitam, e as pessoas o fazem por me julgarem professor, fico naindeciso a respeito de uma bibliografia sobre o corpo. Vejo-me pensando: em vez de uma

    cansativa e desordenada listagem de livros e artigos sobre esse bicho denominado corpo(coisa que se pode obter at mesmo pela internet), por que no sugerir aos meus queridosamigos e minhas queridas amigas a idia de um plano de pr-ordenao de linhas, um planosempre provisrio e reformvel, claro? Por fora das circunstncias, fui levado a elaborarpara o meu gasto pessoal um plano desse tipo, no qual por vezes eu prprio me apoio paraaventuras tericas e at mesmo para imaginar uma pesquisa bibliogrfica a esse respeito.As mesmas e outras circunstncias levam-me agora a explicitar aqui meu planinho, visandoapenas ser minimamente til a interessados no assunto. Um alerta: o possvel leitorencontrar abaixo o resultado de lambidas de textos e no de exaustivas pesquisas, o que otorna de antemo responsvel pela melhoria da coisa.

    Que plano esse? Um minidesfile de corporeidades pode ser distribudo em pelomenos seis grandes linhas de indagao. Por razes bvias, tanto tericas quanto prticas,privilegiamos nesta apresentao os segmentos numerados a partir de 3.

    I. O corpo como estrito objeto de cincia, seja como coisa fsica ou algoorgnico.

    Estudado em sua composio, nas suas relaes internas e externas, na sua dinmicafuncional, a idia que se tem desse corpo a da sua imerso num conjunto de funes.Nesta linha, perguntar pelo corpo tentar conhec-lo pelas funes que ele implica ou queo implicam. H inmeras maneiras de fazer isso: donde a multiplicidade de micro-linhas decincia. claro que os filsofos deram palpites que podemos juntar a essa grande linha deindagao. Quando Aristteles, por exemplo, (Fsica, III, 5, 204 b 20), define o corpo comoaquilo "que tem extenso em toda direo", ou seja, que extenso em altura, largura eprofundidade, ele est criando um conceito filosfico de corpo compatvel com essa linhade indagao em que as cincias, variando enfoques, mtodos etc., se mostraroextremamente competentes. Surgiram outros conceitos filosficos de corpo compatveiscom a complexidade crescente dessa linha, conceitos que por vezes se parecem com esse deAristteles (caso da noo de corpo apresentada por Descartes em Princpios, II, 4: corpocomo "substncia extensa em comprimento, largura e profundidade") ou que dele sedistinguem, como o de Leibniz, ao qual geralmente atribuda a reorientao maisinteressante dessa linha de indagao mais estritamente cientfica, pois sua noo de corpoimplica a de ao, seja porque um corpo age sobre outro, seja porque sofre a ao de outroscorpos. Esse entrelaamento entre agir e sofrer ao implica, por sua vez, uma idia defora, graas a qual Leibniz renovou a idia de substncia, criando a noo de mnada.Fora, para ele, a substncia, mas apreendida do ponto de vista de fora, ao passo que, doponto de vista de dentro, a substncia alma. por isso que, rigorosamente, a foraconsiste em tendncia e apetio. (Aprendi essas coisas em anotaes feitas por mileBoutroux numa edio de 1880 da Monadologia, de Leibniz). No mesmo sculo XVII, afsica newtoniana leva a noo de corpo para perto da noo de massa. Se esta ltima, paraalm da quantidade de matria, for pensada como relao entre fora e acelerao, tem-seuma espcie de aliana possvel com o conceito leibniziano de corpo como capacidade deagir e de sofrer ao. Segundo os entendidos, a fsica de finais do sculo XIX acabou

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    levando a idia de corpo para perto de uma idia de campo tal que o prprio corpo passou aser pensado (por Einstein-Infeld, em sua "Evoluo da fsica", por exemplo) comodeterminada "intensidade do campo", coisa essa que deveramos estudar, penso eu, nopara imitar, mas para ver como isso ressoaria na idia deleuzeana de corpo sem rgos, esseestranho corpo eminentemente intensivo, como ser indicado na ltima linha deste

    minidesfile.2. a. Uma segunda grande linha de indagao, to antiga quanto a primeira,

    relaciona-se mais diretamente a conceitos filosficos que fazem do corpo uminstrumento da alma.

    Considerado como instrumento da alma, o corpo foi visto de duas maneirasextremas. Para alguns, o corpo foi tido como algo que atrapalha o acesso da alma ao seumais importante mundo, o da verdade; neste caso, o corpo chegou mesmo a ser pensadocomo priso ou tmulo da alma Plato escreveu frases fortes nessa linha, como esta:durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essacoisa m, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos! Ora, este objeto, como dizamos, a verdade. No somente mil e uma confuses nos so efetivamentesuscitadas pelo corpo quando clamam as necessidades da vida, mas ainda somosacometidos pelas doenas e eis-nos s voltas com novos entraves em nossa caa aoverdadeiro real. O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixes, temores, imaginaesde toda sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas que por seu intermdio ... norecebemos na verdade nenhum pensamento sensato (Fedon, 66).

    Menos radical que Plato, nem por isso Aristteles deixa de submeter o corpo acomparaes que dele fazem um instrumento. Por exemplo, o machado est para o corpoassim como a essncia cortante do machado est para a essncia formal do corpo, que justamente a alma, de modo que um machado sem corte no verdadeiramente machado,assim como um corpo sem sua essncia anmica est incompleto. Embora Aristteles saibaque machado e corpo orgnico no estejam no mesmo nvel (visto que o corpo, diz ele,tem em si mesmo um princpio de movimento e de repouso), a fundamentalidade da alma o que nele vigora, assim como a viso que faz do olho um verdadeiro olho e no umasimulao, como a do olho de pedra ou do olho desenhado. E mais: o corpo que possuialma que detm a capacidade de viver Em termos aristotlicos mais precisos, diz-seque a alma a entelquia primeira de um corpo natural organizado, entelquia entendidacomo sendo o sentido fundamental do ser de que ela entelquia, o que significa afirma-la como essncia formal, como completa atualizao daquilo de que ela entelquia.Quando se rastreia o conceito de entelquia, chega-se noo de forma ou razodeterminante de um ser (Aristteles,De anima, II, 1, 412b 5-30).

    2. b. Restaura-se a posio instrumental do corpo no problema moderno darelaocorpo-alma.

    geralmente afirmado que a concepo que faz do corpo um instrumento de almafoi abandonada graas ao dualismo que Descartes estabeleceu ao pensar corpo e alma comosubstncias diferentes, uma extensa, outra pensante. Mas possvel duvidar disso. Vejamosporque. Com o dualismo substancialista cria-se o problema da relao entre corpo e alma,problema de certo modo ocultado ou no agravado pela anterior instrumentalizao docorpo, j que, ento, a supremacia da alma estava assegurada, seja maneira platnica, seja maneira aristotlica, como assinalei. Como pensar a unio entre corpo e alma (entre corpo

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    e mente) agora separados como duas substncias distintas? Descartes sabe que o eu pensoest presente ao meucorpo. Ele diz: E, no era tambm sem razo que julgasse pertencer-me, mais do que todas as outras coisas, aquele corpo que, por um direito especial, chamavameu: pois, ao contrrio dos outros, no podia dele me separar; sentia nele e por ele todos osapetites e afectos e, finalmente, era em suas partes, e no nas partes dos outros corpos

    situados fora dele, que sentia a dor e a ccega do prazer (Meditaes, 6, 11, tr. FaustoCastilho, Campinas, ed. Cemodecon, pp. 157-159). Merleau-Ponty valoriza essa passagem,vendo nela a idia da experincia do meu corpo como meu (La structure ducomportement, p. 212). Pois bem, o importante em nosso minidesfile que essa idia deDescartes implica uma crtica ao modo como Aristteles via o comando da alma sobre ocorpo, comando anlogo ao do marinheiro sobre seu navio. Opondo-se a essa metfora,Descartes diz: A natureza tambm me ensina por essas sensaes de dor, fome, sede etc.,que no estou presente a meu corpo como o marinheiro ao navio. Estou a ele ligado demodo muito estreito e como que misturado com ele, a ponto de com ele compor uma scoisa (Md., 6, 24). essa mistura de fato que livra Descartes da relao instrumentalposta por Aristteles, embora isso tambm ameace seu prprio dualismo de direito, isto, sua distino corpo/alma como sendo o de duas substncias (Nota 174 de G. Lebrun tr.br. de J. Guinsburg e B. Prado Jr deMeditaesinDescartes, Obras escolhidas, SP, DEL,1962, p.189). Alm do mais, esse dualismo de direito que acaba predominando e atmesmo repondo em novas bases a instrumentalizao do corpo. Por que? Porque o esprito(alma ou mente), rigorosamente falando do ponto de vista de Descartes, no cresce e nemse enfraquece com o corpo, pois, enquanto unido a este, o esprito dele se serve como deum instrumento, no mais como um piloto em seu navio, certo, mas como um artesocapaz de operar suas ferramentas (Descartes, Rponses aux Cinquimes Objections). Valedizer que o corpo no torna o esprito mais ou menos perfeito do que este em si. que ofato de um arteso trabalhar menos bem quando se serve de um mau instrumento noautoriza a inferncia de que ele tira sua destreza e arte da excelncia de um instrumento. Oque a se afirma, abusivamente, sem dvida, a perfeio do esprito em si, perfeio tantomaior ou mais poderosa quanto mais capaz o esprito for de colocar as foras do corpobiolgico, as prprias paixes, a servio da razo, da moralidade e tambm de certa alegria.Com efeito, falando das paixes, diz Descartes: a maior utilidade da sabedoria reside emensinar-nos a dominar nossas paixes e a controla-las com tanta habilidade que os malesque possam causar sejam bem tolerveis, podendo-se deles retirar at mesmo a alegria(Descartes, As paixes da alma, art. 212; usei neste ponto a tr. br. de Helena Martins doDicionrio Descartesde John Cottingham, RJ, Zahar, 1995, p. 133).

    3. Uma terceira grande linha de indagao aquela que encontra o corpo comoquesto que se impe s variaes de todo e qualquer modo de pensar.

    Em vez de considerar Descartes como o ponto de partida moderno para umavariedade de solues relativas ao problema das relaes entre alma e corpo, essa terceiralinha leva seriamente em conta a ignorncia em que a alma se encontra relativamente ospoderes do corpo. Cincias, artes e filosofias participam de vrias maneiras desse complexoquestionamento, que no se inicia apenas aps Descartes, mas que j aparece entre osesticos, j est em Lucrcio e outros. Leibniz mostra o quanto um ponto de vista no sedefine a partir da posio privilegiada de um sujeito, mas , isto sim, uma complexainterseo entre o que ele percebe clara e distintamente e a poro de mundo que ele sapreende confusa e obscuramente. com Espinosa que se tem a plena conscincia

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    filosfica do corpo como questo que se impe. Em suatica(III, 2, esclio), diz ele: ato presente, ningum determinou o que pode um corpo, porque no conheceu a estrutura docorpo. Perguntar pela estrutura de um corpo, isto , pelo seu modo de ser fbrica, ou seja,pela composio de sua relao, e perguntar por aquilo que ele pode, isto , pelanatureza e limites do seu poder de ser afetado, so perguntas que se equivalem, diz

    Deleuze em sua leitura de Espinosa, pois um modo deixa de existir quando j no podemanter entre suas partes a relao que o caracteriza, assim como deixa de existir quandoele j no est apto a poder ser afetado de um grande nmero de maneiras, conformetica, IV, 39, demonstrao (Deleuze, Spinoza et le problme de lexpression, Paris,Minuit, 1968, p. 197-198).

    Podemos dizer que essa colocao de Espinosa produz um grande susto naprepotncia das almas, susto que repercute variadamente em Hume (afinal devemos aHume a crtica radical da metafsica da substncia), no idealismo alemo, emSchopenhauer, em Bergson etc.

    Um susto comparvel a esse tornado ainda mais dramtico com a interferncia deNietzsche no final do sculo XIX, com o que se reabrem novas linhas de indagao nessaperspectiva.. Depois do questionamento espinosano, eis um texto de Nietzschesuficientemente forte para estancar ou reverter as veleidades de uma alma em seu delrioparanico de instrumentalizar o corpo. Permitam-me a longa citao:

    Quero dizer a minha palavra aos desprezadores do corpo. No devem, a meu ver, mudar o queaprenderam ou ensinaram, mas, apenas, dizer adeus ao seu corpo e, destarte, emudecer.

    Eu no sou corpo e alma assim fala a criana. E por que no se deveria falar como as crianas?Mas o homem j desperto, o sabedor, diz: Eu sou todo corpo e nada alm disso; e alma somente

    uma palavra para alguma coisa do corpo.O corpo uma grande razo, uma multiplicidade com um nico sentido, uma guerra e uma paz, um

    rebanho e um pastor.Instrumento de teu corpo , tambm, a tua pequena razo, meu irmo, qual chamas esprito,

    pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razo.

    Eu, dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior, no que no queres acreditar o teu corpo ea sua grande razo: esta no diz eu, mas faz o eu.Aquilo que os sentidos experimentam, aquilo que o esprito conhece, nunca tem seu fim em si

    mesmo. Mas sentidos e espritos desejariam persuadir-te de que so eles o fim de todas as coisas: tamanha sua vaidade.

    Instrumentos e brinquedos, so os sentidos e o esprito; atrs deles acha-se, ainda, o ser prprio. Oser prprio procura tambm com os olhos dos sentidos, escuta tambm com os ouvidos do esprito.

    E sempre o ser prprio escuta e procura: compara, subjuga, conquista, destri. Domina e , tambm,o dominador do eu.

    Atrs de teus pensamentos e sentimentos, meu irmo, acha-se um soberano poderoso, um sbiodesconhecido e chama-se o ser prprio. Mora no teu corpo, o teu corpo.

    H mais razo no teu corpo do que na tua melhor sabedoria. E por que o teu corpo, ento, precisarialogo da tua melhor sabedoria?

    O teu ser prprio ri-se do teu eu e de seus altivos pulos. Que so, para mim, esses pulos e vos dopensamento?, diz de si para si. Um simples rodeio para chegar aos meus fins. Eu sou as andadeiras do eu e oinsuflador dos seus conceitos.

    O ser prprio diz ao eu: Agora, sente dor! E , ento, o eu sofre e reflete em como poder no sofrermais e, para isto, justamente, devepensar.

    O ser prprio diz ao eu: Agora, sente prazer! E, ento, o eu se regozija e reflete em como poderainda regozijar-se muitas vezes e para isto, justamente, devepensar.

    Quero dizer uma palavra aos desprezadores do corpo. Que desprezem decorre de que prezam. Masquem criou o apreo e o desprezo e o valor e a vontade?

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    O ser prprio criador criou para si o apreo e o desprezo, criou para si o prazer e a dor. O corpocriador criou o esprito como mo da sua vontade.

    Mesmo em vossa estultcia e desprezo, desprezadores do corpo, estais servindo o vosso ser prprio.Eu vos digo: justamente o vosso ser prprio que quer morrer e que volta as costas vida.

    No consegue mais o que quer acima de tudo: -- criar para alm de si. Isto ele quer acima de tudo; o seu frvido anseio.

    Mas achou que, agora, era tarde demais para isso; -- e, assim, o vosso ser prprio quer perecer, desprezadores da vida.

    Perecer, quer o vosso ser prprio, e por isso vos tornastes desprezadores do corpo! Porque noconseguis mais criar para alm de vs.

    E, por isso, agora, vos assanhais contra a vida e a terra. H uma inconsciente inveja no vesgo olhardo vosso desprezo.

    No sigo o vosso caminho, desprezadores da vida! No sois, para mim, ponte que leve ao super-homem!

    Assim falou Zaratustra.Nietzsche,Assim falou Zaratustra Os desprezadores do corpo, tr. br. de Mario da Silva, RJ, Civil.

    Brasileira, pp. 59-61)

    Advindo o corpo como questo que se impe ao pensamento, nossa

    contemporaneidade envolve-se com pelo menos mais trs linhas filosficas de indagao,firmando-se em cada uma delas uma maneira distinta de corresponder a esse advento.

    4. Lembrete a respeito da experincia fenomenolgica do corpo prprio.A abertura explcita dessa importante linha de indagao geralmente ligada a

    Edmund Husserl, valorizando-se a experincia vivida sob o lema da intencionalidade,segundo o qual a conscincia conscincia de algo. Isso pode ser notado na passagem emque ele retoma o momento da meditao cartesiana do corpo como meu. Considerando aesfera do que me pertence, diz ele, eu encontro o meu prprio corpo, que no somenteum corpo, mas o meu corpo, isto , o nico de que disponho de forma imediata comodisponho dos seus rgos (Meditaes cartesianas, 44). O corpo como lugar complexo

    de meu combate com o mundo o que se firma nessa linha de investigao, frutificando-sea micro-linhas de pesquisa que incluem, por exemplo, concepes, como as difundidaspela Gestalt (onde encontramos tericos como Wertheimer, Khler, Koffka, Lewin,Goldstein, Guillaume e outros), segundo as quais o todo mais do que a soma das partes,de modo que a apreenso do corpo implica a apreenso da complexidade do seucomportamento. Essa mesma linha, respeitadas as diferenas que singularizam os autores,pode passar por textos de Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty etc. Eis uma frase de Sartreexemplar a esse respeito: Ele [meu corpo] de modo algum uma adio contingente aminha alma, mas, ao contrrio, uma estrutura permanente do meu ser e a condiopermanente de possibilidade de minha conscincia como conscincia do mundo e comoprojeto transcendente em direo ao meu futuro; embora haja absoluta contingncia nofato de eu ser brasileiro e professor, , no entanto, absolutamente necessrio que eu sejaisso ou outra coisa, dado que eu no posso sobrevoar o mundo sem que o mundo sedesvanea (Ltre et le nant, Paris, Gallimard, 1943, p. 392). E mais: explorando a idiaexposta por Heidegger em Ser e tempo, segundo a qual a realidade humana se caracterizacomo o ser no mundo, e fazendo-o no sentido de que meu vnculo com outrem ,primeiro e fundamentalmente, uma relao de ser a ser, e no de conhecimento aconhecimento, Sartre l diretamente o Mit-Sein heideggeriano justamente como o ser-com, de modo que a caracterstica de ser da realidade humana a de que ela seu ser

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    com os outros. Assim, entre um extremo hegeliano (para o qual minha estruturaessencial me viria de fora e de um ponto de vista totalitrio) e de um extremo cartesiano(onde imperaria a descoberta da conscincia por si mesma), Sartre usa o Mit-Sein (nosem antes livrar-se da maneira brusca e um pouco brbara pela qual Heidegger conceituaessas dificuldades) para firmar que explicitando a compreenso pre-ontolgica que tenho

    de mim mesmo, que apreendo o ser-com-outrem como uma caracterstica essencial de meuser (Ltre et le nant, pp. 300, 301).Diferentemente encaminhada e estruturada, encontramos esse mesmo ar de famlia

    filosfica em Merleau-Ponty. J em sua primeira obra, trata-se de evitar antinomiasclssicas entre idealismo e realismo, explorando a noo de comportamento com recursosmais sutis do que os propiciados por certa indigncia filosfica ao comportamentismo deWatson, de modo que se pudesse compreender melhor a viso do homem como debate eexplicao perptua com um mundo fsico e com um mundo social (Merleau-Ponty, Lastructure du comportement, Paris, PUF, 1942, p. 3). Merleau-Ponty relativiza as noes dealma e de corpo, de tal modo que um corpo em certo grau seria alma para outro corpoprecedente: H o corpo como massa de compostos qumicos em interaes, o corpo comodialtica do vivente e do seu meio biolgico, o corpo como dialtica do sujeito social e doseu grupo, e mesmo todos os nossos hbitos so um corpo impalpvel para o eu de cadainstante. Cada um desses graus alma com respeito ao precedente, corpo com respeito aoseguinte. O corpo em geral um conjunto de caminhos j traados, de poderes jconstitudos, o solo dialtico j adquirido sobre o qual se opera uma formao superior, e aalma o sentido que se estabelece ento (p. 227). Em cada uma dessas conexes, mesmoconsiderando que no de substncias a dualidade que a sempre reaparece num nvelou noutro, trata-se de levar em conta a cada vez, diz Merleau-Ponty, a operaooriginria que instala um sentido num fragmento de matria, fazendo-o habitar a, aparecer,ser (p. 226). Ora, essa operao originria tem algo a ver com a idia de corpo prprio,pois este implica a reflexividade de um sentir que sente a si prprio; o que possocomprovar quando, levando minhas mos a se acariciarem uma outra, percebo que elas,sem que meu cogito as comande, se revezam de tal modo que a mo que sente logo a mosentida e a mo sentida logo a mo que sente, e assim por diante. Esse desvio diferencialvivido pelo prprio corpo sensvel entre sentir e ser sentido instala uma reflexividade, umsentido anterior sua expressa tematizao pela conscincia intelectual. Isso refora emMerleau-Ponty a idia de percepo como o ato que nos faz conhecer existncias, o atopelo qual tenho acesso ao que ele chama de estrutura, isto , a regio que fica abaixode palavras e de aes, regio em que elas se preparam, regio que o prpriocomportamento, isso que exprime uma certa maneira de existir antes de significar umacerta maneira de pensar (p.239). O segundo livro de Merleau-Ponty, a Fenomenologia dapercepo, compe uma vasta argumentao tendente a mostrar o quanto esse reflexividadedo corpo prprio impede que o tomemos como mero objeto. A primeira parte desse livro toda ela dedicada ao corpo (La phnomnologie de la perception, Paris, Gallimard, 1945,pp. 79-232). Ela tem incio justamente com a anlise do que ver um objeto, ver que jimplica perspectiva, isto , uma estrutura objeto-horizonte tal que ver entrar numuniverso de seres quese mostram, e eles no se mostrariam se no pudessem ser ocultadosuns atrs dos outros ou atrs de mim, atrs do meu corpo. Em outras palavras, olhar umobjeto vir habit-lo e, da, apreender todas as coisas segundo a face que elas voltam paraele (p. 82). E no caso do meu corpo, no estou simplesmente diante dele, pois estou emmeu corpo, ou melhor, sou meu corpo (p. 175). E mais: no ao objeto fsico que o corpo

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    pode ser comparado, mas sobretudo obra de arte, pois em ambos o que se encontra modulao de existncia, um n de significaes vivas (pp. 176, 177). Pela anlise daespacialidade e da unidade corpreas e, mais ainda, atravs de suas consideraesrelativas palavra e expresso, Merleau-Ponty quer ressaltar a natureza enigmtica docorpo prprio. Qual esse enigma? aquele pelo qual o corpo no est onde est, pelo

    qual ele no o que . O corpo sai de si, isto , vira corpo prprio, porque no se atm auma composio natural que seria aquela de partes exteriores umas s outras esimplesmente reunidas por relaes causais. Mas por que o corpo d esse salto? Queacontece nele e que dele faz um corpo prprio? Acontece um sentido, diz Merleau-Ponty.No ltimo dos seus escritos, Visvel e invisvel, o sentido emerge entre as coisas, nointervalo, nos desvios (por isso algum escreveu um livrinho a respeito dele denominadoAvoz do intervalo), mas nessa passagem da Fenomenologia da percepo ele nos diz quevemos o corpo secretar um sentido que no lhe vem de lugar algum; e diz, ainda, que ovemos projetar esse sentido num crculo material e comunic-lo aos outros sujeitosencarnados. Trata-se, para ele, de sentido imanente ou nascente no corpo vivo. advertido por essa experincia do corpo prprio, diz ele, que nosso olhar reencontrarem todos os outros objetos (que, por isso, tambm vivem fora de si, sendo sempre algomais que meros objetos), o milagre da expresso (p. 230). Portanto, em suas duasprimeiras obras, Merleau-Ponty est arrumando nesse jogo entre corpocorpo prprio olugar privilegiado da operao originria j referida em A estrutura do comportamento(ver acima), a operao que instala um sentido num fragmento de matria, fazendo-ohabitar a, aparecer, ser.

    Sem pretender criticar a pluralidade dos fenomenlogos num mero lembrete, impossvel, entretanto, no anotar que nossas leituras, por mais limitadas que tenham sido,sentiram e sentem a necessidade de uma pergunta que a linha fenomenolgica parece terdeixado sem uma suficiente retomada: a reteno do corpo prprio no eixo intencional noacaba inibindo a tematizao daquilo que constitutivo dos estados vividos, mas que estesmascaram em atualizaes subjetivas ou intersubjetivas? A fundamental contribuio deGilbert Simondon para o desenvolvimento do problema da individuao inspiraria uma talretomada, contanto que a prpria individuao passasse a ser pensada como heterognese eno como dependente de um mnimo de semelhana entre as sries de partida. O que osestados vividos pressupem, que eles mascaram, mas que a eles no se reduz, so fluxosintensivos, so transrelaes entre intensidades. Mas isto assunto para o ltimo segmentodeste minidesfile.

    5. A propsito do corpo procurando sadas em meio a saberes e poderes.Principalmente nos escritos de Michel Foucault, tambm herdeiro do susto apontado

    no item 3, ganha fora uma nova grande linha de indagao a respeito do corpo. Em vez depreocupar-se com as foras prprias do corpo, isto , com aquilo que o corpo , trata-se, doponto de vista crtico de uma ontologia foucauldiana do presente, de corresponder a umaoutra pergunta: de que corpo necessita determinada configurao espao-temporal desaberes e poderes? Em outras palavras, trata-se de perguntar pelas prticas discursivas e nodiscursivas que se investem sobre os corpos e os arrastam para uma srie de problemas. nesse sentido que se pode dizer que Foucault ajuda a subverter a ontologia clssica, pois,em vez da primazia do verbo ser, uma pluralidade de outros verbos se impe atravs dapergunta por essas prticas; assim, uma outra ontologia vem tona, uma ontologia histrica

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    de ns mesmos, que se interessa pelas condies concretas que nos constituem. Donde apergunta igualmente crtica e autocrtica: sendo nossa interioridade, ou melhor nossodentro, um complexo de dobras e redobras do fora, que estamos ajudando a fazer de nsmesmos em meio s redes de saber e poder que ao mesmo tempo nos constituem? Como senota, no se trata apenas de constatar uma heteroconstituio de ns mesmos, mas de

    sondar e viabilizar resistncias e sadas no prprio campo dos condicionantes, das mltiplasconexes que nos enredam. Como o corpo capturado em redes de saber e poder, trata-sede sondar a complexidade a embutida. Diz Foucault: no h relao de poder semconstituio correlativa de um campo de saber, nem de saber que no suponha e noconstitua ao mesmo tempo relaes de poder (Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975,p. 32). Em que consistem os termos postos a em correlao? Como se d precisamente essacorrelao? Simplesmente resumindo uma resposta, digamos, a respeito do saber, que setrata de um entrelaamento da luz e do dizer, do visvel e do enuncivel. O saber vai devisvel a enuncivel e de enuncivel a visvel. Mas preciso estar atento heterogeneidadedessas duas linhas de exerccio do saber. Elas no comportam, na perspectiva foucauldiana,uma forma comum totalizante, uma conformidade ou uma correspondnciabiunvoca. Pois bem, o que se passa por essas passagens internas ao saber so justamenteas relaes que constituem a noo foucauldiana de poder, aquelas relaes que japareciam em Nietzsche como relaes de foras, relaes plurais que so a gnese dapluralidade de sentidos. Essas relaes de foras (a fora sempre multiplicidade de foras)atravessam a dualidade das formas do saber (visibilidade e dizibilidade) e encontram nestasas condies de sua ao, de sua atualizao. E essas formas do saber, por sua vez,adaptam-se uma outra por encontro forado, e forado de fora por relaes de foras. o mesmo que dizer que jogos de foras intercalam-se entre o que meus olhos vem e aquiloque minha boca diz a respeito do que vejo. Quebra-se entre ver e dizer qualquer intrnsecaafinidade mtua. Quebra-se a apressada e ingnua adeso reflexividade do corpo prprio.Ver e dizer so forados a conviver como heterogeneidades numa pressuposio recprocainstvel. Lendo Foucault, Deleuze pergunta como fica o pensar em relao ao ver e ao falar.Ver pensar, assim como falar pensar. Mas, o prprio pensar, diz ele, se faz nointerstcio, na disjuno de ver e falar, como j assinalara Blanchot; pensar no exerccioinato de uma faculdade, mas ele deve advir ao pensamento, pois, se ver e falar so formasde exterioridade, pensar se dirige a um fora que no tem forma, um fora que sempreabertura a um futuro, com o qual nada acaba porque nada comea, pois tudo semetamorfoseia (Foucault, Paris, Minuit, 1986, p. 93, 95). Complica-se, assim, a operaooriginria que instala um sentido num fragmento de matria, complica-se a aberturaintracorprea, complica-se a imanncia merleau-pontyana do sentido reflexividade docorpo prprio, complica-se minha familiaridade com o mundo, pois navego em sentidosque brotam de jogos de foras que no esto necessariamente sob meu controle. Emcomplicados processos de subjetivao, um si-mesmo posto a decidir-se numproblemtico campo de diferenciaes complexas que o invadem. Que seria decidir-se ouser forado a decidir-se? Virar ponto de resistncia no meio das correlaes de saber-poder? Pegar linhas de resistncia que atravessem esta ou aquela correlao? Essas linhasde resistncia so tambm foras que confluem cada vez mais, livres ou no de utopias,para uma variedade de aspectos que sejam favorveis vida. Diz Foucault: foi a vida,muito mais do que o direito, que se tornou objeto das lutas polticas, mesmo que estas seformulem atravs de afirmaes de direito. O direito vida, ao corpo, sade, felicidade, satisfao das necessidades (Foucault, Histoire de la sexualit, I. La volont de savoir,

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    Paris, Gallimard, 1976, p. 191). Pode-se dizer, seguindo o comentrio de Deleuze, que essaresistncia liga-se vida como portadora de singularidades, plenitude do possvel, queno o homem como forma de eternidade, essa vida que tem de passar pelas mortes queprecedem o grande limite da prpria morte, essa vida que, ao passar pelo fatal cortejo deum morre-se, no deixa, entretanto, de tomar seus lugares, de suscitar acontecimentos

    (Foucault, p. 97, 102).6. Corpos sem rgos no intensivo dos encontros.Alerto, antes de mais nada, que experimento aqui uma leitura absolutamente prpria

    daquilo que os autores citados escreveram a respeito, de modo que no estou praticando umato de fidelidade cronologia de criao dos conceitos em pauta. Os interessados nessacronologia tm hoje (desde 2003) disposio dois interessantes Vocabulrios deDeleuze, cada qual suficientemente inspirador num ponto ou noutro: FranoisZourabichvili, Le vocabulaire de Deleuze, Paris, Ellipses, 2003. R. Sasso e A. Villani(Dir.),Le vocabulaire de Gilles Deleuze, Paris, Les Cahiers de Noesis, n 3 , 2003.

    Com Artaud, esse arteso do corpo sem rgos (Daniel Lins, Antonin Artaud Oarteso do corpo sem rgos, RJ, Relume Dumar, 1999), chegamos a nossa maiscontempornea linha filosfica de indagao a respeito do corpo. No precisamente arespeito do corpo, mas daquilo que se processa no encontro dos corpos, mesmo que esseencontro se faa em regime de solido, pois toda solido imensamente povoada. Docombate levado a cabo por Artaud contra o juzo de Deus e contra os rgos, Deleuze eGuattari extraem mil e uma partculas diablicas, conectando-as a uma complexapragmtica do desejo.

    Como conseguem eles reunir desejo e corpo sem rgos? A pergunta cabe, porqueuma dificuldade surge no confronto do que dizem a respeito dos dois termos: de um lado,esses autores, contrariando a tradio que ligava desejo e falta de objeto satisfaciente,articulam os fluxos e cortes de fluxos da produo desejante ao que eles chamam de

    universal produo primria, esta produo na qual esto imersos homem e natureza, demodo que essa produtividade toda vem a ser caracterizada, como dizem em O Anti-dipo,pelo produzir sempre o produzir, pelo injetar produzir no produto, pela produo deproduo, em suma. Por outro lado, reiteram que o corpo sem rgos o improdutivo, oestril, o inengendrado, o inconsumvel. Como reunir essas duas caracterizaes sem perdero que esses autores de modo algum podem perder: a essncia produtiva da conectividadedesejosa? S podem faze-lo pela criao de um lugar entre o produzir e o produto, umcomplexo lugar que se espalha pelos intervalos e interstcios da prpria produo desejante,um lugar que oAnti-dipoaponta comolivre de cortes e no ainda fluxo, um puro fluidoem estado de liberdade e sem corte, deslizando sobre o corpo pleno, um tremor entreaqum e alm do organismo, mas que deste ainda precisa, embora com este no se

    confunda, um entre aqum e alm de uma organicidade que molda as mquinas desejantesque a pressupem. esse o lugar complexo de um corpo pleno sem rgos, esse algosurgindo como pausa, bem no meio do processo. Ora, acoplado produo, mas nosendo mero instrumento dela, o corpo sem rgos no tambm mera improdutividade,mas interregno pressuposto pela produtividade das mquinas desejantes, tremor intensivoperpetuamente reinjetado na produo.

    Portanto, j em O Anti-dipo, o corpo sem rgos pensado fora de linhas quepoderiam conect-lo a certas concepes que a tradio anterior ou recente armou a

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    propsito do corpo: o corpo sem rgos no a testemunha de um nada original, muitomenos o resto de uma totalidade perdida. Sobretudo no uma projeo; nada a ver com ocorpo prprio ou com uma imagem do corpo. Quando Antonin Artaud o descobriu,dizem, l estava ele, o corpo sem rgos, fluindo nas tenses, mas sem forma e semfigura. O corpo sem rgos no est simplesmente pronto para ser reencontrado graas a

    um esforo intencional meu, nem est pronto para uso etc. No se retorna a ele como seretorna a uma propriedade. H criao de corpos sem rgos nos mais disparatadosencontros. Por isso, o Anti-dipo o chama de superfcie deslizante, opaca e tensa,estranha superfcie que permeia mquinas-rgos; ou ento chamado de fluido amorfo,indiferenciado, fludo que vaza pelos fluxos ligados, acoplados, recortados. E no caso dalinguagem, o corpo sem rgos aparece, por exemplo, como sopros e gritos, estes blocosinarticulados que irrompem nos fluxos das palavras fonticas.

    Se a concepo deleuze-guattariana de desejo, de conectividade desejosa, j nosubordinava as mquinas desejantes ao funcionamento do corpo orgnico ou aofuncionamento das mquinas tcnicas e mesmo das mquinas sociais, embora o desejo,segundo eles, fosse coextensivo a tudo isso, que dizer, ento, dessa livre e intempestiva

    irrupo de corpos sem rgos nessa produtividade j marcada por snteses disjuntivas? Seno h desejo sem pelo menos um corpo sem rgos (como os autores diro emMil plats),se os corpos sem rgos so pensados como pressupostos dos encadeamentos de fluxos ecortes de fluxos desejosos, porque eles ocorrem como imantaes nas linhas de fuga,justamente as linhas pelas quais fogem os agenciamentos desejosos, essa potncia deconectar qualquer coisa a qualquer outra. Criar para si corpos sem rgos cuidar dessasimantaes, experimentar, graas variao dos encontros, esse entrelinhas em que aslinhas de fuga encetam diferenciaes, em que elas cintilam como setas de afirmaesdiferenciais. Por isso, os corpos sem rgos podem oscilar desde a mais suave fluidez at oderradeiro mergulho numa intensidade vulcnica.

    Talvez convenha explicitar um pouco mais essa idia de corpos sem rgos comosingulares imantaes ocorrendo entre linhas de fuga. Resumidamente, um agenciamentodesejoso comporta um estado de coisas e corpos, fluxos enunciativos e linhas de fuga comsuas setas multidirecionais, prontas para se dispersarem em conectividades as maisintempestivas.Se tivssemos apenas isso, no haveria lugar para os corpos intensivos (CsO)que se formam nos encontros, vale dizer, nosprprios agenciamentos e nas intersees destes. Por que no teramos lugarpara CsO? Porque, por definio, eles so, diz Deleuze, a outra face da produtivaconectividade desejosa, a face improdutiva, todavia implicada nessa mesma produtividade;eles so o interregno no qual o desejo (sem ser desejo dealgo, coisa que o reduziria falta de) est, entretanto, em estado decondensao, de conjuno at mesmo determinvel. Em outras palavras, os CsO so

    conjunes de fluxos, reunies momentneas (de certo modo identificveis, pois possodizer CsO alfa ou mega do drogado x ou y, beta ou gama do afsico x ou y, alucinado dopistoleiro x ou y, amoroso cantante ou ciumento acabrunhado etc. e tal). Ora, se eu possodeterminar um tipo de CsO, se eles no s deslizam por mim como posso at cri-los paramim, porque eles so imantaes momentneas de linhas de fuga. Quandomomentaneamente presas numa determinada ou determinvel conjuno (CsO x, y ou z), aslinhas de fuga esto como que em tenso descanso, vale dizer, nem esto, de um lado,submetidas a relaes funcionais ou estruturais, e nem esto, por outro lado, pura e

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    simplesmente se dispersando numa multidirecionalidade intempestiva, embora elasretomem sempre a potncia de suas pontas em seta, a potncia que as insufla nos encontros.Alis, graas a esse eterno retorno da potncia produtiva que podemos criar n+1 corpossem rgos que, por imantao das linhas, suspendem momentaneamente uma pura einconsistente disperso. Mais concretamente: entre a funcionalidade do corpo orgnico e a

    intempestiva conectividade desejosa, mas sem confundir-se com a intencionalidade docorpo prprio ou com o corpo investido de saberes e poderes, os CsO aparecem comocoeses ou imantaes momentneas de linhas de fuga, operando ali como variveisconsistncias dessas linhas. Como consistncia, o CsO o intensivo que vibra nasimantaes passageiras de umas linhas pelas outras por ocasio de encontros; passageirasimantaes, repito, mas o suficiente para que se possa determinar qual a singularidade doCsO que est me pegando aqui e agora. Por isso que eu posso at certo ponto interferir nacriao de corpos sem rgos para mim.

    Por isso, tambm, a idia de corpo sem rgos implica um universo de cuidadosticos e estticos, pois diz respeito s prticas que cuidam da imantao, da magnetizaodas fugas. A coisa grave, porque os corpos sem rgos ocorrem em mim, mesmo que eu

    deles no cuide, mesmo que eu no cuide dessas imantaes. A coisa grave porque, comopressuposto do funcionamento desejoso, o corpo sem rgos potencializa umaconectividade desejosa por assim dizer cega, isto , que no se guia por uma causa final,por uma finalidade, seja boa ou m. E seria timo se essa conectividade s operasse emmim em funo da minha vida. Para os autores, claro que o desejo deseja a vida, j queos rgos da vida so justamente essas mquinas de investimento e reinvestimento dodesejo. Mas acontece que o desejo pode desejar tambmisso, a morte. Por que? Porqueele pode querer confundir-se com ela enquanto nela encontrar seu prprio motor imvel.O nome desse motor, ao qual a tradio aristotlica ligou Deus, , aqui, no Anti-dipo,corpo pleno da morte. Ora, este o outro nome do corpo pleno sem rgos. Pois bem,este , precisamente, o outro nome que o Anti-dipo reserva de forma explcita para o

    instinto de morte (tr. br. 46; 11-15).Portanto, o problema dos vnculos entre desejo e corpo sem rgos, longe de se

    esgotar numa teoria a esse respeito, desemboca na questo prtica de criar para si corpossem rgos, isto , de cuidar das imantaes das linhas de fuga. Essa pragmtica do desejo um campo de experimentao em meio a agenciamentos de desejo. Pois bem, Mil Plats(as referncias que seguem, e que dizem respeito ao "corpo sem rgos", foram retiradas dosexto plat de Mille Plateaux, Minuit, 1980, pp.185-204) retoma a idia de corpo semrgos nos termos de uma questo que pode ser assim enunciada: como criar para si corpossem rgos e no ceder ao limite mortal? Essa pergunta j implica uma relao ardilosacom as foras que nos atravessam, uma difcil e complexa relao ardilosa com o desejo,isto , com aquilo que nos lana em conectividades intempestivas. A condio necessria

    para que seja possvel uma tal experimentao ardilosa propiciada pelo plano tecido pelasprprias imantaes das linhas de fuga, pois, impedindo a pura e simples disperso dessaslinhas, operando como pausas tensas, as imantaes, mesmo que provisrias, emitem sinaisque nos avisam em que lance de fluncias nos encontramos. Pois bem, a esse plano deimantao que os autores do o nome de plano de consistncia prprio do desejo ou decampo de imanncia do desejo. Mais ainda: esse plano privilegiado porque somentenele, dizem os autores, que um corpo sem rgos se revela pelo que : conexo dedesejos, conjuno de fluxo, contnuo de intensidades. Portanto, graas a uma pluralidade

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    de imantaes de linhas de fuga que posso levar a cabo minhas experimentaes aqumdo limite mortal.

    No posso, aqui, desenvolver toda a argumentao dos autores. A quem seinteressar longamente por isso, sugiro que leia as obras j apontadas, claro; mas a quem seinteressar por um percurso mais concentrado, tomo a antiptica liberdade de sugerir a

    leitura de um texto meu: Pulso e campo problemtico, inArthur Hypplito de Moura(org.), As pulses, SP, Escuta e Educ, 1995, pp. 147-195. A propsito da noo de pulso,esse percurso acabou observando uma interessante valorizao da idia de experimentaodesejosa em pleno problema do limite. Com efeito, ao longo de algumas obras dessesautores, nota-se a passagem da idia de instinto de morte como limite transcendente idia(de inspirao espinosana) de um Corpo sem rgos (conjunto de todos os corpos semrgos) como limite imanente, um contnuo de circuitos de intensidades. As estratgiase tticas do ardil, entendido este como condio suficiente para uma experimentao quepasseia aqum do limite mortal (j que morrer ocorre, seja qual for o limite), alimentam-seno precisamente de certezas morais tpicas de um comportamento exemplar, masaventuram-se no meio de questes que saltam a cada passeio tentado nesse campo de

    imanncia dos corpos sem rgos. As questes so mltiplas, repetem os autores, e elasenroscam suas diferenas umas nas outras, complicando a complexidade daexperimentao. Por exemplo: o como fazer para si um corpo sem rgos uma questodistinta desta outra, com a qual se engancha: como produzir as intensidadescorrespondentes, sem as quais ele permaneceria vazio? Outra questo: como chegar aoplano de consistncia? Por conjugao das intensidades produzidas em cada corpo semrgos? E mais: como fazer um contnuo de todas as continuidades intensivas? Asexperimentaes se agitam a tal ponto que o prprio plano de consistncia, o prprio campode imanncia, vem a ser questionado como aquilo que deve ser construdo, e construdocomo que a cada instante, a cada imantao atual de intensidades transversalizando o cursodo tempo. Tudo indica, portanto, que a construo de um corpo sem rgos exige umaespcie de centelha seletiva faiscando numa promiscuidade de diferenas. Por exemplo,determinada construo acontece em formaes sociais muito diferentes; pode acontecerpor meio de agenciamentos muito diferentes, perversos, artsticos, cientficos, msticos,polticos, agenciamentos que no tm o mesmo tipo de corpos sem rgos. Como ligarum agenciamento com outro e evitar o perigo permanente de cruzamentos monstruosos?. Retirando pedaos de Pulso e campo problemtico, volto a chamar a atenopara o seguinte: preciso estar atento a essa profuso de linhas que se fundem emimantaes do campo de imanncia, mesmo porque este no simplesmente interior aoeu e nem vem de um eu exterior ou de um no-eu. Como salientam os autores de queestamos tratando, o plano de imanncia escapa da alternativa interior/exterior, pois estesextremos foram deglutidos justamente pela imanncia, estando fundidos nela. Se se podefalar numa imanncia a algo (fala criticada pelos autores em O que a filosofia?, porconfundir plano de imanncia e conceito, confuso que acaba relanando otranscendente (Deleuze e Guattari, Qu'est-ce que la philosophie?, Minuit, Paris, 1991,p.47.), a imanncia aqui remetida a um Fora absoluto. Por que? Para marcar a radicalestranheza do plano de imanncia chamado corpo sem rgos em relao ao corpoorgnico. Quando assoma a estranheza, como se o corpo orgnico, o corpo comrgos,fosse levado ao limite da perda de sua organicidade, assim como uma lngua maior radicalmente posta fora de si por efeito de derivas e desvios, por efeito de estranhoscurtos-circuitos, de enleamentos criptogrficos e outros procedimentos nela agitados por

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    uma lngua menor, como a de Melville, no exemplo dos autores, ocorrendo sob oingls, ou a de Guimares Rosa trespassando o portugus. Em casos assim, a prprialinguagem forada a entrar em fugas, levada ao seu limite prprio, onde descobre,diz Deleuze, seu Fora, silncio ou msica (Deleuze, Critique et clinique, Minuit, Paris,1993, pp.93,94), uma audibilidade ou lisibilidade escavando-se em tenses de surpresa.

    Mas a pergunta ardilosa continua ferroando a experimentao: como fluir em corpossem rgos aqum do limite mortal? A questo insiste, pois, no limite do seu limite, ocorpo sem rgos (este spatium intensivo, esta matria intensa e no formada, estamatria no estratificada, esta matriz intensiva, esta intensidade=0, esta matriaigual energia, em suma, este ovo pleno, isto , esta realidade intensiva noindiferenciada) no suporte e nem prolongamento do organismo, podendo at mesmovoltar-se contra a forma organismo. A est um ponto a ser esclarecido: os corpos semrgos so imantaes de linhas de fuga, como dissemos, so conjunes de fluxosintensivos que ocorrem, que acontecem nos encontros de corpos. Cada um desses corpossubmete partes de si e do estado de coisas ao conjunto de relaes que o estruturam, com oque cada rgo de cada um desses corpos funciona numa integrao orgnica, funcionasubmetido a uma forma de organismo. Pois bem, quando, nos encontros, fluem corpos semrgos, temos acontecimentos, temos imantaes intensivas que no redundamsimplesmente numa supresso de rgos. Numa fluncia intensiva, momento em queexplodem sentidos de modo algum retidos num arco intencional familiar ao corpo prprioda fenomenologia, numa imantao de linhas de fuga, em suma, os rgos sointensificados de tal modo que se tornam, nesse entretempo ainico, nesse entretempo deeternidade, independentes da forma de organismo. Os rgos entram numdisfuncionamento intensivo nessa momentnea suspenso da funcional necessidade que osliga forma orgnica. Em vez de corpos sem rgos, os autores prefeririam dizer corpossem forma orgnica ou corpos transorgnicos, no porque se possa encontrar ou reencontrarcorpos intensivos em cada rgo ou num conjunto de rgos, mas porque, nas imantaesintensivas, (imantaes, repito, que s podem ocorrer nos encontros, de modo que criarcorpos sem rgos implica cuidar dos encontros e no simplesmente afundar-se em cadargo), os rgos so momentaneamente liberados da forma de organismo, das relaesestruturais em que eles funcionam em consonncia com necessidades vitais. Mas justamente nisso que reside o perigo: que as formas, quando tomadas nas flunciasintensivas de corpos transorgnicos, tornam-se contingentes, e os rgos viramintensidades produzidas, fluxos, limiares, gradientes. Enquanto o necessrio implicarelaes que o fazem necessrio, o contingente implica fluxos intensivos que o determinamcomo tal. Quando se diz umolho, umaboca, grifando-se o artigo indefinido (que no um indeterminado e nem um indiferenciado), o que se est exprimindo a puradeterminao de intensidade, a diferena intensiva, o condutor do desejo, como dizemexpressamente os autores.

    Retomando o artigo j indicado, anoto que o perigo marcado por esse indefinidoest justamente na vibrao intensiva que subverte a organizao dos rgos, aformao de estratos. Uma certa arte, portanto, ser conveniente para que no se faadessa subverso uma burra oposio a ser mantida a qualquer preo. Quais seriam asfrentes de batalha dessa arte? Essa arte subversiva de experimentao das fluncias decorpos transorgnicos comea, de modo astuto, com a proteo do prprio organismo. Comefeito, contra um tecido canceroso e sua expanso dominadora, por exemplo, preciso

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    restaurar o domnio da regra que visa a sobrevivncia do prprio organismo no melhorde sua forma, mesmo porque a morte tambm acaba com os corpos sem rgos que se querexperimentar. Essa arte deve dar ainda mais um passo importante: preciso proteger oorganismo contra a dimensionalizao excessiva, exorbitante, de um corpo sem rgosidiotamente voltado para a quebra de todos os estratos orgnicos, quando se entrega a

    uma auto-destruio pura, sem outra sada alm da morte. Ora, desfazer o organismonas experimentaes do corpo sem rgos, nunca foi matar-se, lembram os autores.Implica mais arte e astcia abrir o corpo para conexes que supem todo umagenciamento, circuitos e conjunes, abri-lo para passagens e distribuies deintensidades, para territrios e desterritorializaes no meramente suicidas, a no serque o suicdio comporte a afirmao de um ltimo corpo sem rgos que j no pode disporde um corpo orgnico, justamente por estar este reduzido a uma intolervel massa deimpossibilidades de se viver dignamente um resto de vida, um resto de mortes cumulativas.Finalmente, outra linha de combate dessa arte desenvolvida no agenciamento de corpossem rgos a que se verifica nos problemas e lutas que atingem o prprio corpo semrgos na intimidade dos seus planos. que, de repente, pode crescer o corpo sem rgoscanceroso de um fascista em ns ou o corpo sem rgos vazio de um drogado. Isto querdizer que somos lugares de batalhas a serem travadas na imanncia, com muito cuidado earte.

    Pois bem, quando se pergunta pela melhor estratgia a ser adotada nessaslutas, quando se pergunta pela estratgia que possa salvaguardar uma difcil e dinmicapressuposio recproca entre a criao de articulaes intensivas dos corpos sem rgos ea conduo do organismo no melhor dos seus estados de funcionamento, a resposta dosautores aciona um velho nome, defletindo-o: prudncia. Prudncia como difcil artedos encontros intensivos e saudveis; a arte de fazer de cada corpo sem rgos o lugar deuma variao intensiva, como diz Jean-Clet Martin, aqum do aniquilamento (Martin,Jean-Clet, Variations - La philosophie de Gilles Deleuze, Payot, Paris, 1993, p.50).

    Prudncia como arte das linhas de experimentaes a serem feitas com precauo, aserem construdas fluxo por fluxo e segmento por segmento, dosando-se pressas eesperas, alianas e desenlaces. Essa prudncia pede que seja ela prpria ritmada eredesenhada a cada problema vindo pauta, a cada problema que se imponha tanto sfluncias do corpo sem rgos quanto ao funcionamento dos rgos. Entrev-se, nesseponto, o quanto a arte das experimentaes prudentes implica uma arte dos problemas, umacomplexa apreenso do problemtico, pois este que j atua na trama que tece acomunicao entre os prprios corpos sem rgos. Esses corpos so extremamentevulnerveis ao nomadismo dos problemas, nomadismo j to conhecido pelos corpos comrgos, mas que estes so tentados a disciplinar em conformidade com uma hierarquizaoque lhes chega das formas de saber e das relaes de foras que caracterizam os poderes.

    possvel que as trocas intensivas que vazam entre eles sejam marcadas por sintonias edisparidades entre problemas que neles se contraem. Essa possibilidade conceitualmentepensvel no campo dessa filosofia da diferena, dado que as intensidades, sendoconstitudas por diferenas que remetem a outras diferenas (Deleuze, Diffrence etrptition, Paris, PUF, 1968, p. 155), implicam o problemtico enquanto elo que se faz e sedesfaz nas prprias diferenas. uma radical abertura ao problemtico, o que equivale aexplorar virtualidades, a virtualizar, portanto, que talvez possa evitar a reduo dessa arteinterrogativa da prudncia a um repertrio de virtudes medianas do bom senso. Se

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    praticarmos essa reduo virtuosa, estaremos contrariando a vocao crtica da idia decorpo sem rgos, e isso no s em relao forma-organismo como tambm em relao organizao das faculdades atravs do seu ancoradouro no senso comum, ancoradouro queDeleuze tanto critica ao tratar da idia de imagem do pensamentonos mais variados pontosde sua obra. O CsO, no caso das faculdades , pode ser tomado como uma onda

    inorgnica, no dizer de Jean-Clet Martin (Variations La philosophie de Gilles Deleuze,Paris, Payot, 1993, p.49-50), essa onda que no passa entre duas faculdades sem asdesterritorializar mutuamente.

    Continuamos insistindo na pergunta pelas condies necessrias esuficientes de uma ardilosa experimentao intensiva, porque a prpria vida que a estcorrendo riscos nas relaes dos corpos orgnicos e nas vagas intensivas de corpos semrgos. Organicidade e transorganicidade, ambas pressupem a vida, mas nenhuma deixade fazer com ela jogos perigosos: a primeira, por fora de relaes que impem vidamonstruosos aniquilamentos; a segunda, porque no deixa de fazer com a vida o tambmperigoso jogo criativo de um desejo consumindo a si prprio, o jogo de uma intensidadeque grita ou chora na intempestiva exploso de limites alm dos quais o que havia de vidaj no se reencontra. A rigor, volto a dizer que quem continua ganhando nisso tudo eproliferando cada vez mais o impulso das questes do viver, dos problemas da existnciasulcada por linhas de diferenciao complexa, linhas que a colocam agora, em nossamodernidade, em perspectivas de ilimitao, sem que nos seja dada de antemo a seguraimagem do que seremos, restando-nos to-somente encarar aquilo que deve ser necessrio esuficiente: o questionamento, o combate no prprio meio, no aqui-e-agora em que se decidea proliferao da histria, o combate no meio das causas eficientes, onde a vida pode lanarinterferncias e cavar sadas na versatilidade do intolervel.

    PS1: A releitura de Desejo e prazer (ver bibliografia) sugere a necessidade deacrescentar algo a respeito da prudncia deleuze-guattariana. Empreguei o termoestratgia para salientar, com base em Foucault, que esse tipo de prudncia que meinteressa no se caracteriza em funo de uma oposio ou de uma contradio. como se,praticando prudncias diferenciais numa arte dos problemas, eu pudesse estrategizar minhaexistncia pelos meandros intensivos mais favorveis aos encontros dignificantes. Isso querdizer que uma tal estratgia pode sedimentar-se ao longo das prticas, no sendo, portanto,um projeto de vida pr-concebido por um sujeito. Deleuze evita pensar o social em termosde estratgia, pois, para ele, o que primeiro o social fugindo por todos os lados naslinhas de fuga. Ora, considerando, a propsito da minha existncia, o complexo jogo entreas linhas de fuga e os corpos sem rgos, a ardilosa prudncia diferencial ocorre justamentepara que, a cada emergncia de CsO, as linhas de fuga que me levam sofram imantaesque, singularizando-me, evitem minha mera disperso esquizofrnica sem se enquistaremcomo repetio de uma mesmice. Pois bem, ao dizer que o social, pelas linhas de fuga, fogepor todos os lados, Deleuze est pensando em multiplicidades de agenciamentos desejosos,de modo que tambm no social o fugir por todos os lados no mera disperso e nem merarepetio de mesmice. Delineiam-se, portanto, corpos sem rgos dos mais variados tipos edas mais variadas dimenses, CsO que se aproximam e se afastam, intersecionais ouseparados, mas que podem exibir algo como um jogo de perfis determinveis, perfis queoscilam desde os mais sutis (acessveis a microanlises) at os mais grosseiros (de que senutrem as caricaturas macrointerpretativas, os esteretipos, os preconceitos, clichs etc.).

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    O perfil grosseiro de agenciamentos desejosos resulta de uma substituio dapergunta interessada nos CsO (enquanto modos de magnetizao de linhas de fuga) pelaexacerbao de prticas e interpretaes que rebatem as linhas de fuga desejosas em linhasde segmentaridade dura que estruturam prazeres. Pois bem, a prudncia diferencial deleuze-guattariana opera como experimentao entre linhas de fuga e corpos sem rgos, vale

    dizer, na imanncia com o desejo, ao passo que a prudncia mediana, moralista, operacomo deciso entre os prazeres e a transcendncia normativa.Por enquanto isso.

    Luiz B. L. Orlandi

    Bibliografia sumria:

    Alm de algumas obras e textos j referidos, segue uma pequena bibliografiaa respeito dos itens 4 a 6 desse minidesfile de corporeidades:

    Merleau-Ponty, Maurice,La structure du comportement, Paris, PUF, 1942. (H tr.:A estrutura do comportamento, tr.br. de Jos de Anchieta Corra, BH, Interlivros,1975).

    __Phnomnologie de la perception, Paris, Gallimard, 1945. (Primeira parte: OCorpo). H tr.:Fenomenologia da percepo, tr.br. de Reginaldo di Piero, RJ, Liv.Bastos, 1971.

    __.Loeil et lesprit, Paris, Gallimard, 1963. (H tr. br. de N. Aguilar : O olho e oesprito, SP, Abril,1975).

    __.Le visible et linvisible, Paris, Gallimard, 1964.

    Foucault, Michel. Surveiller et punir, Paris, Gallimard, 1975. (Especialmente ParteIII. Disciplina). H tr.: Vigiar e punir, Petrpolis, Vozes, 1978.

    __Larchologie du savoir, Paris, Gallimard, 1969. (H tr.br.: Aarqueologia dosaber, Petrpolis, Vozes, 1972).

    __.Histoire de la sexualit(vols.1,2 e3), Paris, Gallimard, 1976, 1984. (H tr. br.:RJ,Graal).

    __.Microfsica do poder, org. e tr. por Roberto Machado, RJ, Graal, 1979.__.A verdade e as formas jurdicas, RJ, DIE,PUC, 1979.

    Deleuze, Gilles,LAnti Oedipe, Paris, Minuit, 1972. (H tr.: O anti-dipo, tr.br. deGeorges Lamazire, RJ, Imago, 1976).

    Deleuze, G., Francis Bacon Logique de la sensation I e II, Paris, d. de laDiffrence (1981), 2 ed. aumentada : 1984.

    __.Le Pli. Leibniz et le baroque, Paris, Minuit, 1988. (H tr.: A dobra.Leibniz e obarroco, tr. br. de Luiz B.L.Orlandi, Campinas, Papirus, Campinas, Papirus, 1991 para a 1 ed. e2000 para a 2 ed.).

    __Foucault, Paris, Minuit, 1986. (H tr. Foucault, tr. port. de Jos CarlosRodrigues, Lisboa, Vega, 1987; h tr. br. de Claudia SantAna Martins, SP, Brasiliense, 1988).

    __Dsir et plaisir, Magazine littraire(Foucault aujourdhui), no 325, out. de1994, pp. 59-65. (Desejo e prazer, tr. br. de Luiz B.L.Orlandi, Cadernos de subjetividade, nespecial, junho de 1996, So Paulo, PUC-SP, pp. 15-25).

    Deleuze, Gilles e Guattari, Flix. Mille plateaux, Paris, Minuit, 1980.(Especialmente Plat no.6. (H tr. br. em cinco volumes pela Ed.34).

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    Guattari, Linsconscient machinique - essais de schizo-analyse, Paris, Recherches,1979.

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