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CORPOREIDADES DOS FEMININOS NO TEATRO DE REVISTA NA DÉCADA DE
1950
ANTONIO RICARDO CALORI DE LION*
Este trabalho apresenta um recorte da pesquisa de doutorado em andamento em que se
discute sobre as relações de gênero no teatro de revista entre 1953 e 1961. Destarte, almeja-se
debater por uma reflexão sobre as relações de gênero representadas pelas/os artistas da
Companhia Walter Pinto as performances de gênero reguladas diante de padrões existentes e
reafirmados para o período. As fontes privilegiadas são três imagens que podem ter servido
para a divulgação dos espetáculos.
Teoricamente, a pesquisa é guiada pela teoria de gênero formulada por Judith Butler
(2014), bem como a concepção de "corporeidade" do autor português António Pinto Ribeiro
(1997). Estas importantes bases interseccionadas possibilitam a análise das fontes nas
representações criadas dos corpos generificados e a desnaturalização pela ótica da regulação
dos gêneros enquanto masculino e feminino sendo inato aos corpos nascidos com pênis e
vagina, respectivamente. Diante disso, as principais questões que são consideradas para a
reflexão destes desdobramentos provém de uma sujeita chave desta pesquisa chamada Ivaná.
Esta persona foi construída na Companhia Walter Pinto em 1953 para o espetáculo "É
fogo na jaca" incorporada pelo ator Ivan Monteiro Damião, se configurando como uma prática
transformista (doravante "montação").1 Até aquele momento, as práticas de montação, ou seja,
aquelas práticas artísticas em que um/a ator/atriz "se monta" constituindo uma nova forma para
performar uma persona in drag (como chamado atualmente), eram associadas ao deboche e a
paródia artística. Ivaná assume um posto único ao ser comparada às vedetes, chamando atenção
da audiência que via seu nome no alto dos cartazes e marquises. Este ponto de reflexão, então,
contrasta as práticas de regulação de gênero sobre os corpos das/os demais artistas da Cia., mas
* Graduado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso – Câmpus de Rondonópolis (UFMT/CUR).
Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – Câmpus de Assis
(FCL/UNESP). Atualmente cursa o doutorado em História na mesma instituição sob orientação da Prof.ª Dr.ª Zélia
Lopes da Silva. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, para a pesquisa em desenvolvimento "Um corpo
queer: gênero e transformismo no teatro de revista dos anos 1950". E-mail: [email protected]. 1 "A mudança de função de um objeto/acessório/indumentária e sua mutação em atributo artístico (conversão
semiótica) representa o processo de montação. Muitas vezes, esse processo passa por dentro do sistema de gêneros
e sexualidades, pois, afinal, tudo entra no redemoinho das identificações." (NASCIMENTO, 2020, p. 232)
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também consegue configurar um novo parâmetro de performance teatral face ao corporificado
pelo ator, Ivan Damião, conduzido (ao que é refletido, conseguintemente) pelo próprio produtor
e dono da Cia., Walter Pinto.
No ato de criar uma nova atração para os espetáculos também nasce outra forma de atuar
"em travesti" como era chamada a prática artística da montação, naquele período, que em nada
havia de significação à identidade de gênero feminina brasileira contemporânea. Constata-se
que paulatinamente surgiram novas figuras transformistas na cena revisteira atuante em peças
de revista e em boates no Rio de Janeiro entre o fim da década de 1950 e o início da seguinte,
fugindo da estética da paródia para o escárnio e o risível, senão exclusivamente pelo texto
representado.
O corpo invade a cena
O que pode nos dizer as imagens de cena dos espetáculos realizados pela Companhia
Walter Pinto? Uma questão muito ampla, certamente, porém guardadas as suas proporções,
podem ser postas a perguntas mais específicas visando problematizações seguidas por olhares
que tentam discutir as corporeidades criadas sobre essas artistas em cena.2 O ponto de partida,
contudo, se dá pela criação de imagens de sujeitas em diversas situações que criam
determinados códigos de gênero, como será vislumbrado a seguir.
A Companhia foi exitosa na cidade do Rio de Janeiro, mas também em suas
apresentações em excursão por algumas cidades do Brasil. O teatro de revista é antes de mais
nada um teatro que criava imagens deslumbrantes. Todo teatro é visual, a questão da linguagem
revisteira estava em como saturava seus quadros com imagens em que sexualizava suas girls,
vedetes e bailarinas; bem como seus boys e bailarinos. Mas era no feminino que estava o grande
apelo, já nos anos 1950.
Com belas e glamourosas girls exibindo as pernas sem as antigas meias grossas das
nossas coristas, a troupe francesa [Ba-ta-clan] influenciaria a tal ponto o teatro ligeiro
2 "Estamos, portanto, confrontados irremediavelmente com uma inconceptualização do corpo que só permite
escrever sobre o que resta do seu comportamento. É sobre o comportamento corporal, sobre o que fica inscrito no
espaço e no tempo de representação como vestígios fantasmagóricos que é legítimo tentar uma escrita crítica."
(RIBEIRO, 1997, p. 20).
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brasileiro que, imediatamente, o que era chamado nu artístico, aqui se instalou. E, ao
despirem-se as meninas, muitos corpos decepcionaram seus fãs. As muito gordinhas
perderam a graciosidade diante das esbeltas francesas. Mudaram-se os conceitos
estéticos. Mudou-se também o conceito estrutural da revista. O texto e a música
passaram, então, a emoldurar o real foco de interesse: a mulher.
Os figurinos receberam um maior cuidado, assim como a iluminação e os cenários.
(VENEZIANO, 1991, p. 43)
A criação da cenografia dos espetáculos de Walter Pinto era marcada por cenários
pintados e na ousadia em suspender elementos de cena como mesas, cadeiras, lustres e as
famosas escadarias (VENEZIANO, 1991). Todo este conjunto criou uma iconografia teatral
para as peças de revista ganhando status de "Broadway Brasileira", no extinto Teatro Recreio,
na região da Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. Pinto negava a influência estadunidense,
dizendo que suas inspirações eram francesas (PINTO, 1975).
A apropriação de elementos das companhias teatrais de espetáculos musicados franceses
tomou significado próprio com a mão de Walter Pinto, Mário Meira Guimarães e Luis Iglesias
entre outros colaboradores nas produções e montagens das féeries no palco do Recreio. O
marcante, também, era a forma disciplinada em que o produtor colocava suas performers. Até
mesmo Ivaná, performance transformista de Ivan
Monteiro Damião, passou pelas mãos do
empresário. Todavia, não é conhecido até o
momento a voz do performer para chancelar a
afirmativa de que toda a montação foi feita sob o
olhar astuto de Walter Pinto. Em sua entrevista ao
SNT, em 1975, ele diz que trouxe ao país "o
travesti" Ivaná e em sua companhia teatral
transformou ele de corista (que era sua função em
Paris) em grande atração do espetáculo "É fogo na
jaca" (PINTO, 1975).
As pistas levam a crer que todo o time
envolto na produção teatral ajudou a construir a
persona Ivaná (LION, 2015). E o próprio performer
auxiliou nesta montação, já que conhecia muito do
Figura 1 - Ivaná em estúdio [1953]
FONTE: Acervo Walter Pinto – Funarte/Centro
de Documentação e Pesquisa. Foto: Luis
Mafra.
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showbiz, moda e cantava ao vivo (SERRA, 1953). O que fica evidente, pelas imagens e também
pelos vestígios presentes nas didascálias de uma das cópias de "É fogo na jaca" (disponível no
Cedoc/Funarte) que as marcações de texto e cena eram bem frisados pelo produtor, assim como
as fotos de promoção, de qual seria ou não enviada para publicações.
Na Figura 1, por exemplo, Ivaná posa para a câmera em um figurino que lembra o usado
no espetáculo "É fogo na jaca" (que pode ser visto na Figura 2). Nesta primeira imagem pode
ser lido em caneta azul no centro da imagem, escrito na vertical "prova" e no canto inferior
direito "não". Essas marcações levam a pensar que a foto foi descartada para ser veiculada no
material publicitário de promoção da peça. As imagens do dossiê fotográfico de Ivaná que está
no acervo da Funarte são de autoria do Estúdio Mafra. Muitas fotografias estão assinadas em
um dos cantos inferiores das fotos, outras possuem carimbos no verso. Já várias outras não as
possuem e foram identificadas como autoria do fotógrafo na pesquisa de Filomena Chiaradia
(2011) em entrevista ao filho do fotógrafo – o qual exerce a mesma profissão.
Essa ausência de assinatura, de acordo com depoimento de Fernando Mafra, pode ter
ocorrido por distração e pressa em entregar as ampliações ao cliente, pois poderia estar
assinando as fotografias e ser interrompido por qualquer motivo, não retomando a
tarefa; outra possibilidade é ter sido um tipo de seleção: muitas vezes a assinatura
significava a aprovação do fotógrafo para aquela imagem; de várias fotografias sobre
um tema, algumas eram assinadas e outras não – talvez as assinadas fossem as
escolhidas como as melhores daquele lote temático. (CHIARADIA, 2011, p. 144)
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Como observado na Figura 1 há informações ns rasuras da imagem que justamente
fazem menção a escolhas. As palvras "prova" e
"não" indicam, assim, a não escolha da imagem
para o lote temático que, neste caso, dizem
respeito a peça "É fogo na jaca" (1953). A
afirmação sobre o período é feita com base na
análise da montação de Ivaná: a peruca, a
maquiagem e o design do figurino seguem o
padrão dos usados em outras fotografias que
fazem parte (e estão devidamente identificadas)
com aquele espetáculo, como pode ser visto na
Figura 2.
Pelo material constante no acervo da
Funarte acredita-se que muitas imagens foram
feitas pelo mesmo estúdio e fotógrafo, chamado
Luis Mafra (1922-1984), no Rio de Janeiro. Há a
inscrição deste estúdio em algumas imagens que
fazem parte do mesmo período.
Luis Mafra iniciou sua carreira na fotografia aprendendo técnicas de laboratório,
trabalhou em três estúdios diferentes na Cinelândia, Centro do Rio, até conseguir
comprar sua própria câmera e se sentir seguro para arriscar carreira-solo. A julgar pelo
depoimento de Walter Pinto, o empresário o conheceu por intermédio do estúdio de
Ávila [fotógrafo-retratista do período, no Rio de Janeiro] que, tudo indica, o chamou
para trabalhar. (CHIARADIA, 2011, p. 142)
A construção esética de Ivaná frente as girls, bailarinas e vedetes era mais voltada para
figurinos que cobriam todo o seu corpo, perucas altas, colares e brincos brilhantes e maquiagem
sóbria, ou seja, sem muita marcação colorida e carnavalesca. Essas noções aqui expressas são
de sua aparição em 1953, na primeira peça realizada. O figurino é notadamente marcado na
cintura, muito fina, com um longo digno de estrelas de cinema. A questão de se tratar de um
ator em montação transformista pode denotar que – a princípio – a invenção do corpo feminino
de Ivaná se daria com muito pano, espuma e peruca para se esconder a figura masculina de seu
Figura 2 - Ivaná em cenário [1953]
FONTE: Acervo Walter Pinto – Funarte/Centro
de Documentação e Pesquisa. Foto: Luis
Mafra.
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performer (coisa que curiosamente foi desfeita em novas montações de Ivaná no fim da década
de 1950 e início da próxima)3.
Neyde Veneziano chama de "sistema vedete" a hierarquia criada por Walter Pinto com
as performers existentes no elenco das companhias de teatro de revista, no Brasil. Essa
hierarquia se dava pelo estrelato das atrizes/performers dentro do espetáculo, sendo que elas
por si eram uma das atrações à parte do espetáculo, em seu todo. Essas showgirls tinham sua
imagem construída pelos diretores, autores, cenógrafos, fotógrafos e firmadas pelas mídias
(principalmente das revistas semanais). Walter Pinto era um disciplinarizador das performances
de seu corpo artístico. O treinamento era feito rigorosamente com preparadores de canto, dança,
ensaiadores. "Todos trabalhavam sob rígida disciplina" (VENEZIANO, 2011, p. 66).
[...] o teatro de revista era a nossa maior diversão e a vedete, a principal atração. Pouco
a pouco, os ingredientes da composição vedete se alojavam no País. Boas cantoras,
com requebrados e gingado, a fim de valorizar nossa música e ritmos, maior
comunicação com a platéia devido ao formato passarela, corpos que valorizassem fi-
gurinos bem cuidados, decotes generosos e, ainda, pernas bem torneadas à mostra
eram exigências para qualquer candidata ao posto privilegiado. (VENEZIANO, 2011,
p. 65)
O padrão de beleza imposto a estas artistas em cada tempo em que o teatro de revista
passava, no século XX, mostra aspectos importantes das relações de gênero destes períodos. Já
é sabido que o pós-guerra entre as décadas de 1940 e 1960 impôs profundas mudanças para as
mulheres cisgêneras. As conquistas feministas da "segunda onda" iniciada com o pensamento
de Simone de Beauvoir transformou profundamente as percepções sobre o papel das mulheres
e suas relações com o mundo, questionamentos sobre os limites do patriarcado, do pensamento
e prática machistas e a desigualdade social provocada por diferenças entre as classes sociais e
raça.
3 No filme "Mulheres, cheguei" (1959/1960) e na revista "O diabo que a carregue... lá pra casa" (1961) a
transformista se apresenta com trajes que se assemelham a collants. Walter Pinto comenta em entrevista que na
peça supracitada ele a colocou em strip-tease (PINTO, 1975).
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Neste aspecto, as vedetes, enquanto artistas eram moralmente julgadas por um público
conservador, associadas à prostituição. Em verdade, há séculos o trabalho em palcos e nas artes
para mulheres era moralizado
pela associação sexual liberal
em detrimento de papéis bem
definidos do que seria a mulher
"do lar".4 Contudo, serviam de
influenciadoras de
comportamentos para a
juventude destes tempos em se
tratando de beleza e moda. Não
à toa a linguagem revisteira tinha
raízes nas comédias de
costumes, o apelo ao popular, ao
comezinho e as tendências
faziam o público se servir de estilos variados em circulação na capital ou reciclado dos palcos
europeus (COLLAÇO, 2010).
A Figura 3 traz algumas integrantes do elenco da companhia de Walter Pinto posando
em uma das escadarias feitas com praticáveis usados nos cenários de "É fogo na jaca", em 1953.
No verso da fotografia original não constam muitas informações. A imagem é de autoria de
Luis Mafra "[...] que deixa mais uma vez registrado seu preciosismo na composição da pose"
(CHIARADIA, 2011, p. 222). A promoção dos espetáculos da Companhia era muito grande,
sempre tendo um farto registro de seus bastidores e em fotos de cena. Entretanto, o que se quer
fazer perceber num exercício – ainda que preliminar – são as representações contidas nestas
imagens, cuidadosamente pensadas:
Mafra ficou conhecido como o “fotógrafo das vedetes”, pois sua especialidade era o
retrato – das vedetes e das coristas, sozinhas ou em grupo, todas meticulosamente
4 Dercy Gonçalves em entrevistas sobre sua trajetória sempre falava sobre ser "fichada" como "puta" por
simplesmente ser artista de teatro (cf. GONÇALVES, 1993). João Silvério Trevisan (2018) também retrata sobre
a presença de atores interpretando personagens femininos nos palcos do país devido a proibições e preconceito
com mulheres por atuarem.
Figura 3 – corpo de baile – quadro "A lenda da vitória régia" da peça "É fogo na jaca" (1953). Ao centro, em nú artístico está a francesa
Regina Nascer
FONTE: Acervo Walter Pinto – Funarte/Centro de Documentação e
Pesquisa. Foto: Luis Mafra.
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arranjadas pelo fotógrafo, que procurava sempre aperfeiçoar suas composições: “As
fotos de Mafra são sempre rigorosas composições. Tanto para fotografar uma vedete,
como grupo de figurantes, ele se mostrava extremamente severo no enquadramento e
na pose que exigia de suas fotografadas”, enfatiza Antonio José Mendes em
reportagem na revista Veja sobre a mesma exposição do MAM. (CHIARADIA, 2011,
p. 143)
Ora, isso indica muito mais do que apenas dizer que essas forças masculinas no trabalho
de moldar as artistas foi bem-sucedido no quesito preparação, lançamento de novas estrelas
para as peças, e vitrines dos espetáculos. Em verdade, leva a pensar no caráter normativo que
estes homens cisgêneros e empresários de sucesso no ramo do entretenimento, faziam com as
imagens dos corpos dessas pessoas. Não quer dizer que isso soa em tom de denúncia como algo
ruim, mas sim um apontamento de que as visões tanto de Walter Pinto quanto do fotógrafo são
importantes para este seguimento artístico e também da indústria cultural daquele período na
projeção de representações generificadas para os espectadores do período fazendo, assim, com
que pudesse ter impacto na percepção de pessoas no campo social e em suas relações de gênero,
uma vez que as "vitrines" do comportamento e moda para grande parte de segmentos sociais
eram as peças de revista.
Com isso, pode ser levado em consideração dois pontos: 1) a questão da percepção
social por Walter Pinto, nos costumes, na moda, nas relações, tanto no Brasil quanto no exterior
(dada sua predileção à França) no âmbito feminino, mas também no masculino (sendo sua visão
mais de produtor do que propriamente do sujeito "homem") fazendo suas escolhas para a
disciplinarização das performances e identidades de seu elenco; 2) a criação, a partir disso, de
novas representações de feminilidades e masculinidades com suas apostas espetaculares. Isso é
dialógico, certamente, pois temos de "[...] nos lembrar que tudo o que acontece na arte
(modificações estéticas, novidades, modismos) é resultado de mudança social qualitativa"
(VENEZIANO, 2011, p. 69). É claro que não há uma invenção partindo do nada para o tudo ou
ao lugar algum, a questão posta são os filtros criados por ele, e como foram criados, para que
seu elenco – e principalmente suas estrelas – fossem apresentados da forma como foram.
Os padrões de beleza, de moda, de performances de gênero requeridas eram bem
delimitadas quanto ao que já está posto na sociedade há milênios em comum acordo com o
patriarcado. Até mesmo na criação da imagem de Ivaná é assim. Os vestígios deixados da sua
montação são fragmentos que não dão conta do todo de sua performance, são indícios que levam
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a pensar sobre a valorização de uma dada estética feminina, qual seja a europeia glamurizada
com vestidos longos e pele alva, cintura fina e cabelo alto. E o contraste com o que era chamado
de "genuinamente brasileiro" é um tanto quanto curioso.
Elas [vedetes] viveram em outro tempo. Não havia photoshop, nem silicone, nem
cirurgias plásticas, mas todas davam um jeito: quem tinha pouco busto, colocava
enchimento: quem não tinha glúteos brasileiros, colocava atrás pequenas saias com
babados: as baixinhas usavam plataformas. (VENEZIANO, 2011, p. 70)
Neste sentido, o reforço de um padrão de gênero para o corpo feminino é tipificado pela
acentuação do que é dado como "de mulher" e o que não é. Quer dizer, a paródia estabelecida
por Ivaná existir sobre um corpo de um performer homem cisgênero faz pensar mais do que a
binaridade posta sobre os corpos humanos, mas a fatia que cabe ao relacionamento circunscrito
ao gênero como uma linguagem codificada sobre o corpo, seja com vagina ou pênis. Os padrões
ainda em vigor que são postos a prova – e se reverberam nas redes sociais quando são
confrontados com seu próprio espelho-limite – podem ter uma relação muito estreita com
aqueles códigos dos anos 1950.
As reminicêscnias do corpo feminino nestas imagens mesmo que terrivelmente parcial
por seu aspecto bidimensional e filtrado pelos quereres do fotógrafo, das orientações das poses
das artistas e também das escolhas de onde se prostrarem são reveladoras, ante a um
emaranhado generificado destas corporeidades no limite entre designação artística e os
desígnios cenográficos. Por se tratar de uma arte de costumes, a cena revisteira se mostrou em
duas faces: a de por "em revista" acontecimentos políticossociais e criar uma representação de
seu tempo; e também (re)criar com o público e para o público novas imagens de si mesmos e
para si mesmos.
Esta ambiguidade representacional pode ser interpretada por uma questão simples de
que o "produto" peça teatral é criado para ser vendido para um público, aqui em caso falando
carnavalescamente à brasileira de suas camadas populares. Seria uma ilusão tomar as imagens
geradas de espetáculos de revista como espelho da sociedade da época até porque ela mesma
criava novas realidades pelo deboche, pela linguagem cômica e musicada vendida em burlesco
com artistas em trajes minuciosamente pensados para causar comoção em quem assistia.
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A exploração do corpo feminino na linguagem carnavalesca não é nenhum tema em
novidade, também representa constantes debates sobre o que é sexualizado pelo olhar produtor
machista e o que é a liberdade de expressão artística feminina. Ora, o padrão de beleza calcado
nestas artistas lançava novos signos para espectadoras/es que viam na cena revisteira um
importante marcador de modas e costumes. Silvio de Abreu ao rememorar sua adolescência,
nos anos 1950, diz:
Que corpos, que luxúria, que fantasia erótica maravilhosa foi para todos os homens
essas magníficas mulheres do teatro rebolado. Virgínia Lane, Mara Rúbia, Nélia
Paula, Iris Bruzzi, Carmem Verônica, Marly Marley, Luz Del Fuego, Elvira Pagã,
Sonia Mamede, Eloína... Era uma profusão de plumas, paetês e hormônios. Redondas,
generosas, esculturais, descendo as escadarias do cenário, envoltas no luxo, no brilho,
transpirando malicia, com suas pernas magníficas, seu gingado, seus gestos amplos,
poderosas. (ABREU, 2010, p. 11)
A questão principal aqui são as diferenças na composição que tipificava os copos das
artistas entre um feminino montado em corpo de performer cisgênero e as artistas mulheres
cisgêneras. Faz sentido dizer que as possibilidades existentes na leitura das imagens apontam
para a exposição do corpo feminino cisgênero de mulheres jovens brancas exibindo
sensualidade com figurinos curtos e que expunham muito seus corpos. As mulheres começaram
a ter mais liberdade sobre seu próprio corpo com os avanços sociais e as lutas feministas. Não
se pode negar as agências dessas mulheres, "[...] as atrizes, as vedetes e as girls, são pessoas de
carne e osso, ou seja, possuem corpo, e, conseqüentemente [sic], estão sujeitas a coerções e a
desejos de adequar-se aos novos tempos" (COLLAÇO, 2008, p. 233). As disputas de
representação nas relações de gênero se afunilariam tornando-se mais acentuada nas décadas
seguintes e, no teatro de revista, se escancarariam o corpo nu feminino, o protagonismo de
transformistas em espetáculos musicados e a presença da transgeneridade em shows de boates
e teatrinhos.
Referências
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Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. (Coleção Aplauso). Disponível em:
https://aplauso.imprensaoficial.com.br/edicoes/12.0.813.815/12.0.813.815.pdf. Acesso em: 15
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em:https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
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CHIARADIA, Filomena. Iconografia teatral: acervos fotográficos de Walter Pinto e Eugénio
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COLLAÇO, Vera Regina Martins. Vedetes, cômicas e empresárias- as mulheres em vários
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Imagens:
Figura 1 – referência: WP EP-PROD.TA/MD-FOT/IVANÁ/05 (FUNARTE/Centro de
Documentação e Pesquisa)
Figura 2 – referência: WP Esp. EP. FOT/1950_11/51-02 (FUNARTE/Centro de Documentação
e Pesquisa)
Figura 3 – referência: WP Esp. Ep. FOT/1950_11/38-01 (FUNARTE/Centro de Documentação
e Pesquisa)