corpo tempo e envelhecimento

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CORPO, TEMPO E ENVELHECIMENTO DELIA CATULLO GOLDFARB Este texto, produto da dissertação de mestrado Defendida no programa de Psicologia Clínica da PUC-SP em 1997, sob orientação do Prof. Dr. Renato Mezán, foi publicado pela Editora do Psicólogo em 1998. SUMÁRIO Apresentação............................................................................ 1 Introdução: O SUJEITO DO ENVELHECIMENTO......... 8 Capítulo I: A QUESTÃO DO CORPO...............................17 1-As fontes na filosofia.................................... 19 2 -O corpo na psicanálise.................................. 22 3 -O velho......esse outro.................................... 33 Capítulo II: O TRABALHO DO TEMPO............................ 41 1- Tempo e psicanálise...................................... 43 2- O tempo e a questão clínica.......................... 53 3- Envelhecimento e projeto identificatório..... 56 4- História ou repetição, reminiscência ou depressão......................... 58 5- Sobre a morte............................................... 61 6- A Fusão Pulsional........................................ 63 Capítulo III: ENVELHECER.....CERTAMENTE................. 68 1- Algumas vias para o envelhecimento........... 69 2- O Velho Freud.............................................. 79 Conclusão.................................................................................... 85 Bibliografia................................................................................. 91

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  • CORPO, TEMPO E ENVELHECIMENTO

    DELIA CATULLO GOLDFARB

    Este texto, produto da dissertao de mestrado Defendida no programa de Psicologia Clnica da PUC-SP em 1997,

    sob orientao do Prof. Dr. Renato Mezn, foi publicado pela Editora do Psiclogo em 1998.

    SUMRIO

    Apresentao............................................................................ 1

    Introduo: O SUJEITO DO ENVELHECIMENTO......... 8

    Captulo I: A QUESTO DO CORPO...............................17

    1-As fontes na filosofia.................................... 19

    2 -O corpo na psicanlise.................................. 22

    3 -O velho......esse outro.................................... 33

    Captulo II: O TRABALHO DO TEMPO............................ 41

    1- Tempo e psicanlise...................................... 43

    2- O tempo e a questo clnica.......................... 53

    3- Envelhecimento e projeto identificatrio..... 56

    4- Histria ou repetio,

    reminiscncia ou depresso......................... 58

    5- Sobre a morte............................................... 61

    6- A Fuso Pulsional........................................ 63

    Captulo III: ENVELHECER.....CERTAMENTE................. 68

    1- Algumas vias para o envelhecimento........... 69

    2- O Velho Freud.............................................. 79

    Concluso.................................................................................... 85

    Bibliografia................................................................................. 91

  • A P R E S E N T A O

    _______________________________________________________________

    Eros o mais belo, e apresso-me a dizer por qual motivo:

    antes de mais nada, caro Fedro, por ser o mais jovem dos deuses

    e dessa qualidade ele prprio se encarrega de ministrar-nos uma

    prova evidente: a de que fugindo, evita ser alcanado pela

    velhice, que inegavelmente em si mesma rpida, como se

    depreende do fato de vir a ns mais depressa do que deveria.

    Eros, de conformidade com sua prpria natureza, sente

    verdadeiro dio velhice e no suporta sua vizinhana, nem

    mesmo a grande distncia.

    Discurso de Agato

    O Banquete

    PLATO

    1

  • As limitaes corporais e a conscincia da temporalidade so problemticas

    fundamentais no processo de envelhecimento, aparecendo de forma reiterada no

    discurso dos idosos, embora possam adquirir diferentes nuanas e intensidades

    dependendo da sua situao social e da sua prpria estrutura psquica. Corpo e tempo se

    entrecruzam no devir do envelhecimento, e das formas desse entrecruzamento nascero

    as mltiplas velhices. Mas no podemos deixar de considerar que esta articulao ocorre

    em um determinado contexto social e poltico que a influencia e determina nosso

    particular modo de abordagem.

    Queremos ento salientar que ao falar de velhice percebemos que aquilo que

    supnhamos saber no suficiente para defini-la, e mais ainda, verifica-mos que esse

    saber precrio produto de uma viso parcial engendrada na prtica de cada profissional

    e de preconceitos fortemente enraizados no cultural. Ento, de que realmente falamos

    quando falamos de velhice? E quando falamos do velho? Do velho reivindicativo que

    briga com todo mundo e por tudo, ou do velho passivo que aceita seu destino sem

    reclamar? Do velho engajado, ativo e divertido, ou do outro deprimido e solitrio?

    Daquele que vive em famlia ou do que foi depositado em um asilo? Da velha elegante

    que passeia nos bairros nobres, ou da faxineira que ainda ajuda a criar os netos? Do

    velho que trabalha a nosso lado ou daquele que renunciou a lutar? Dos que

    renunciaram sexualidade ou dos que reivindicam seu direito ao prazer ? Dos que vemos

    na fila do banco ou no banco da praa? Da velha bruxa? Do velho sbio? Do doente?

    Dos poderosos ou dos marginalizados?

    Falamos de todos eles, j que so personagens conhecidos na nossa

    cultura; falamos de um velho em particular e da velhice como categoria. Mas

    fundamentalmente, atravs de todos eles falamos do velho que temos dentro de cada um

    de ns, do velho de nossa famlia, daquele que entrou muito cedo na nossa histria e que

    direciona nosso olhar para todos os outros. Falando de todas as velhices (dos outros)

    sempre falamos de uma velhice (a nossa) e dos muitos velhos que poderemos chegar a

    ser. Da velhice que desejamos e da que tememos. Mas se cada sujeito tem sua velhice

    singular, as velhices so incontveis.

    2

  • No seria verdadeiro acreditar que s o crescimento populacional e o

    aumento das expectativas de vida provocaram o colapso social que levou decadncia

    dos sistemas previdencirios de todo o mundo nas ltimas dcadas. A m distribuio

    dos recursos financeiros e tecnolgicos submetem uma grande parte da sociedade a

    nveis de extrema pobreza, que afeta especialmente os setores menos participantes do

    processo produtivo, como o caso das crianas e dos idosos.

    A populao idosa cresce dia a dia e est cada vez mais pobre. Em meio a

    esta realidade e como resposta a uma demanda social (e no s por motivaes

    subjetivas, individuais) uma prtica clnica e elaboraes tericas comeam a aparecer no

    universo da psicanlise. Temos conhecimento de numerosos trabalhos importantes na

    Frana e na Argentina, onde muitos psicanalistas trabalham h anos sobre estas questes.

    Acreditamos que isto se deva, entre outros fatores, ao fato de nesses pases haver uma

    importante tradio de atividade sindical altamente politizada. Os aposentados

    argentinos, sindicalizados em sua esmagadora maioria, beneficiaram-se durante dcadas

    das assim chamadas obras sociais dos sindicatos que foram absorvendo ao longo dos

    anos numerosos profissionais, especialmente das reas da sade e do servio social.

    Foram assim desenvolvidos muitos projetos e pesquisas de ressonncia internacional,

    embora muito deles tenham fracassado na atual conjuntura poltico-econmica.

    Quando se deseja abordar a questo do envelhecimento do ponto de vista da

    psicanlise, uma das maiores dificuldades a ser enfrentada a falta de bibliografia

    especfica sobre o tema. Seria falso dizer que o mesmo nunca interessou aos

    psicanalistas, como testemunham os trabalhos de Abraham (1920), Ferenczi (1921),

    Erikson (1970)e Eliot Jaques (1963, citado por Krassoievitch, 1993) entre outros, mas

    esta rea teve pouco desenvolvimento entre os seguidores de Freud. Poderamos pensar

    que esta atitude talvez se deva ao fato do prprio Sigmund Freud ao menos em trs

    ocasies, ter-se mostrado contrrio aplicao do mtodo psicanaltico em pacientes de

    idades avanadas. Ele diz: A aplicabilidade da teoria psicanaltica apresenta as

    seguintes limitaes: exige uma determinada maturidade intelectual dos doentes, sendo

    portanto intil nas crianas e nos adultos dbeis ou incultos. Quando se trata de pessoas

    de muita idade, a durao do tratamento, correlativo quantidade de material

    acumulado,

    3

  • resultar excessivo, e talvez seu fim seja coincidente com o comeo de um perodo da

    vida em que j no se atribui grande importncia sade nervosa (Freud 1898,T I, pg

    155)

    Quando tinha aproximadamente 47 anos escreve o seguinte: Em uma

    idade prxima aos 50 anos criam-se condies desfavorveis psicanlise. A

    acumulao de material psquico dificulta o trabalho, o tempo necessrio para a

    recuperao torna-se longo demais e as possibilidades dos processos psquicos acharem

    novos caminhos comeam a se paralisar (Freud 1904, T II, pg 396). Um ano mais

    tarde, ainda acrescentaria a idade dos doentes desempenha tambm um papel

    importante na sua seleo para um tratamento analtico, pois, em primeiro lugar, as

    pessoas prximas aos 50 anos frequentemente carecem da plasticidade dos processos

    anmicos necessria para se empreender uma psicoterapia. Os velhos no so educveis.

    E em segundo lugar, a acumulao de material psquico prolongaria excessivamente a

    psicoterapia (Freud 1904, T II, pg. 400):

    Para compreender o fato de pessoas prximas aos 50 anos serem

    consideradas velhas, devemos considerar que, nos albores do sculo XX, alm da

    expectativa de vida no ultrapassar os 50 ou 55 anos, a sociedade tradicional da pr-

    guerra reservava para estas pessoas o papel social de velhos. E a psicanlise tinha ainda

    muito caminho a percorrer.

    Corrobora esta idia o fato de, em 1937, Freud reconhecer a existncia de

    rigidez, resistncia mudana e esgotamento da plasticidade (fenmenos que

    impossibilitam a psicanlise) em pessoas muito jovens, o que demonstra que nessa poca

    Freud j pensava que estes fenmenos se relacionam mais com o quadro clnico do que

    com a idade do sujeito

    Dentre os seguidores de Freud que mencionvamos h pouco, foi Karl

    Abraham quem mais contribuiu a uma melhor compreenso desta questo. Desde 1907

    atuou como colaborador de Freud e foi Presidente da Sociedade Psicanaltica de Berlim e

    da Sociedade Psicanaltica Internacional. Seu trabalho se caracterizava por um agudo

    rigor terico baseado em uma rica experincia clnica. Em 1920 escreve: Podemos

    esperar que no comeo da involuo, uma pessoa se sinta menos inclinada a privar-se

    de uma neurose que tenha sofrido durante quase toda sua vida. E prossegue: Durante

    4

  • minha prtica psicanaltica tratei pessoas de mais de quarenta e at de cinqenta anos

    de idade. No comeo hesitara em tom-los em tratamento, mas vrias vezes os prprios

    pacientes insistiam, j que tinham sido tratados por outros mtodos sem resultado

    algum......Para minha surpresa, um nmero considervel deles reagiu favoravelmente

    ante o tratamento. Conto essas curas dentre alguns de meus casos mais bem sucedidos

    No mesmo texto ainda acrescenta: O prognstico mais favorvel se a

    neurose apareceu com toda sua gravidade bem aps a puberdade e se o paciente

    conseguiu desfrutar de alguns anos de atividade sexual prxima normal e de um

    perodo de atividade social til. Os casos desfavorveis so aqueles em que ocorreu na

    infncia uma neurose obsessiva etc, e como nos casos j mencionados, aqueles que no

    conseguiram uma atividade prxima do normal; e afirma: So da mesma forma estes

    os casos em que a psicanlise fracassa tambm com pacientes mais jovens (citado por

    Krassoievitch, 1993, pg 69).

    Entre os casos que Abraham descreve esto um paciente obsessivo de 53

    anos, outro de 50 que sofria de depresso melanclica, uma mulher de 41 anos com

    agorafobia. Como j mencionamos, estes sujeitos, adultos jovens para os padres atuais,

    nas primeiras dcadas deste sculo j se encontravam na chamada idade involutiva.

    Observamos tambm, no sem uma certa surpresa, que estes

    autores usavam o conceito de involuo sem sequer questionar sua atribuio ao

    processo de envelhecimento, quando muitos deles, e at seu prprio mestre,

    continuavam evoluindo intelectualmente, legando ao mundo magnficas obras,

    produzidas de forma criativa e original, apesar da idade avanada. Certamente, a idade

    necessria para ser reconhecido (ou acusado) como velho mudou, o preconceito no.

    No ano de 1961 so publicados os comentrios de Hanna Segal a respeito

    de um caso clnico de um homem de 74 anos. Na apresentao a autora esclarece:

    Acredito que seja interessante apresentar este caso, j que frequentemente devemos

    decidir se iniciamos ou no a anlise de um paciente determinado e se sua idade

    avanada no constitui um obstculo para o tratamento. Acho que seria de interesse

    informar sobre o tratamento de um homem de 74 anos concludo com sucesso e at

    5

  • onde eu possa julgar, com excelentes resultados clnicos. Nas suas concluses a autora

    acrescenta: No posso dizer que a cura analtica tenha sido completada e se meu

    paciente fosse adolescente ainda precisaria de muitos anos de anlise para ter a

    garantia de um desenvolvimento futuro saudvel e frutfero. Mas s vezes a anlise

    produz pequenas mudanas que significam grandes diferenas. No caso de meu paciente

    acho que a pequena mudana foi uma virada de mecanismos depressivos, o que lhe

    permitiu enfrentar a perda da vida de uma forma mais depressiva e menos persecutria,

    e como conseqncia, sentir que podia apreciar e gozar a vida que ainda lhe restava

    (Segal, 1961)

    Apesar das recentes aberturas neste campo de aplicao

    da psicanlise, observamos algumas resistncias sua aceitao. Acreditamos que tal

    fenmeno seja consequncia de preconceitos que vo desde a crena de que qualquer

    interveno intil, j que os velhos no seriam modificveis e esto perto do fim, at o

    medo de que os pacientes idosos morram durante o tratamento, o que sem dvida

    mobiliza a prpria onipotncia; mas bastante plausvel que ele se deva bem mais

    negao do prprio processo pessoal de envelhecimento do que a diferenas imanentes

    s diversas teorias . Um fato inegvel: o profissional que, desde qualquer rea do

    conhecimento se dispe a ouvir um idoso, s conta com a negao como estratgia para

    evitar o confronto com seu prprio destino. Ele sabe que se tiver sorte, e no morrer

    jovem, chegar l . E este chegar l na nossa sociedade moderna, no nada alentador.

    Trabalharemos ento com uma certa representao social do velho e da

    velhice que, como construo coletiva, est enraizada no nosso tempo histrico,

    determinando atitudes e orientando estratgias. Nosso ponto de partida ser uma idia

    predominantemente presente na nossa sociedade segundo a qual se atribui a sujeitos de

    diferentes idades cronolgicas um estado de decrepitude e inutilidade, sem esquecer que

    as prprias vtimas, frequentemente, assumem este lugar e incentivam estas atitudes.

    Porm, veremos tambm como a auto-imagem dos idosos e as funes sociais que

    exercem, muitas vezes no correspondem ao que a sociedade inevitavelmente lhes

    outorga em temos de atributos negativos. Veremos como a imagem do corpo e a

    representao do tempo constituem dois possveis eixos da anlise para se compreender

    6

  • a construo da subjetividade na velhice e os movimentos que podem ajudar, seja o

    sujeito idoso , seja quem com ele trabalha, a quebrar e reinventar esta representao

    social negativa.

    Enfim, este trabalho pretende dar uma contribuio compreenso das

    questes do envelhecimento desde o ponto de vista da psicanlise, e isso na convico de

    que no pode esgotar toda a abrangncia do tema, cuja riqueza torna qualquer

    aproximao limitada e restritiva. S um movimento no sentido da transdisciplinariedade

    poder evitar que este objeto de estudo se perca nas limitaes que uma abordagem

    parcial poderia-lhe infligir, permitindo que ele mostre a dimenso que lhe cabe no atual

    universo do conhecimento .

    7

  • INTRODUO

    O SUJEITO DO ENVELHECIMENTO

    _____________________________________________________________________________

    .................................................... Sinto que o tempo sobre mim abate

    sua mo pesada. Rugas, dentes, calva... Uma aceitao maior de tudo, e o medo de novas descobertas. Escreverei sonetos de madureza? Darei aos outros a iluso de calma? Serei sempre louco? sempre mentiroso? Acreditarei em mitos? Zombarei do mundo? H muito tempo suspeitei o velho em mim. Ainda criana j me atormentava.

    Hoje estou s. Nenhum menino salta de minha vida, para restaur-la. Mas se pudesse recomear o dia! Usar de novo minha adorao. Meu grito, minha fome...Vejo tudo impossvel e ntido, no espao. .............................................. Que confuso de coisas no crepsculo! Que riqueza! sem prstimos, verdade. Bom seria capt-las e comp-las num todo sbio, posto que sensvel: uma ordem, uma luz, uma alegria baixando sobre o peito despojado. E j no era o furor dos vinte anos nem a renncia s coisas que elegeu, mas a penetrao no lenho dcil, um mergulho na piscina, sem esforo, um achado sem dor, uma fuso tal, uma inteligncia do universo. Comprada em sal, em rugas, em cabelo.

    CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

    Versos Boca da Noite

    8

  • O aumento da populao idosa em um meio social marcado pelo

    progresso tecnolgico provoca uma considervel e constante mudana de valores, com a

    transcendncia simblica da existncia deixando lugar ao efmero da imagem, e com

    uma clara transformao no campo da famlia e, consequentemente, nos processos de

    filiao.

    Na literatura especfica sobre o tema, uma das primeiras questes a

    chamar a ateno do leitor o uso frequente de eufemismos para nomear a velhice e tudo

    o que a ela se refere; falida tentativa de suavizar o peso que a palavra velho causa na

    nossa sociedade. Parece-me que a velhice, como alguma coisa da ordem do diablico,

    no pode ser nomeada sem provocar medo e rejeio.

    Neste sculo assistimos ao quase desaparecimento do substantivo velho, s

    permanecendo no uso corrente sua funo adjetiva, quando falamos de coisas antigas ou

    usadas. O substantivo velho deu lugar a um senhor de terceira idade ou uma senhora

    de idade avanada, e a muitas outras tentativas de nomeao de alguma coisa que no

    mais nominvel no discurso do homem da modernidade. Ora, se no tem um nome, pode

    t-los todos, e ento a velhice vira uma espcie de buraco negro, onde qualquer

    interpretao pode entrar, qualquer representao ser possvel e onde permanecemos

    ignorantes sobre o que realmente contm. Queremos dizer com isto que o fato de ser

    jovem ou velho, aparentemente to simples para a conscincia individual, passa a tornar-

    se incerto quando percebemos que as noes de juventude e velhice sofrem srias

    transformaes ao longo de nossa existncia. Quando temos 5 anos o velho tem 30,

    quando atingimos os 40, o velho no pode ter menos de 70. E quando estamos nos

    80.........o velho sempre o outro, como dizia Simone de Beauvoir (1970), que inclua a

    velhice na categoria dos irrealizveis sartreanos. Irrealizvel porque no podemos

    reconhecer a velhice em ns mesmos, s podemos v-la nos outros, embora eles tenham a

    nossa idade.

    A dificuldade principal para categorizar a velhice consiste em que ela no

    unicamente um estado, mas um constante e sempre inacabado processo de

    subjetivao. Assim podemos dizer que na maior parte do tempo no existe um ser

    velho, mas um ser envelhecendo . Jack Messy (1993, pg 33) diz: Se o

    9

  • envelhecimento o tempo da idade que avana, a velhice o da idade avanada,

    entenda-se, em direo morte

    Como teorizar acerca de um conceito indefinvel como tal? Embora todos

    saibamos reconhecer um velho, muito difcil defini-lo; com qual parmetro o faramos?

    Poderamos usar um referencial biolgico que desse conta da aparncia ou das patologias

    tidas como clssicas para este perodo da vida, como cabelos brancos, rugas, osteoporose,

    artrose, hipertenso, perda de memria, cardiopatias etc; mas se de um lado estes sinais

    se manifestam muitas vezes bem antes de que uma pessoa possa ser definida como velha

    ou em processo de envelhecimento, de outro a cincia atual est colaborando para

    superar a maioria deles, e ento eles nada definem .

    Poderamos talvez arriscar uma definio mais psicolgica, tomando

    parmetros como enrijecimento do pensamento, certo grau de regresso, tendncia a um

    certo tipo de reminiscncia ou depresso. Mas nada disto fala de todas as velhices,

    assemelhando-se mais a um apanhado de negatividades que a uma descrio

    correspondente a uma categoria universal. Tampouco podemos defini-la desde um ponto

    de vista social; a aposentadoria, por exemplo, no faz de um sujeito um velho, como o

    direito ao voto no faz de um adolescente um adulto. Vemos assim que, apesar de

    existirem sinais mais ou menos universais, para cada cultura, sobre o que seja a velhice,

    nem individualmente nem em conjunto elas do conta de uma definio categorizante.

    Como definir ento um objeto de estudo, se falamos de algo que parece

    no existir seno como construo sempre mutante, como interpretao individual e

    cultural sobre o percurso da prpria existncia e sobre a existncia dos outros ? Como

    falar de um objeto cuja representao aparece silenciada quando nos remete

    impossibilidade da representao da prpria morte?

    De que sujeito falamos, quando como psicanalistas falamos do velho? O

    sujeito velho que fala na clnica e na vida nos fala de tempo o tempo todo. Fala-nos de

    uma conscincia de finitude, fala de morte e de um corpo imaginrio que se nega a

    envelhecer e que no se reconhece no espelho. Fala de temporalidade.

    Faz-se ento necessrio um recorte, considerando que as

    conceitualizaes atuais sobre o envelhecimento se fundam, como bem diz Joel Birman

    ...num campo de valores, implicando uma tica, uma poltica e uma esttica da

    10

  • existncia...(Birman 1995, pg 30). Formas de ser no mundo reguladas por escolhas e

    satisfaes que orientam estratgias que podem ser de incluso ou excluso do idoso do

    campo social, fundantes da singular subjetivao do ser velho. Consequentemente,

    alm do sujeito da psicanlise, estaro sempre presentes, ao falarmos de velhice, o sujeito

    da antropologia, da filosofia, e o sujeito social.

    Nas sociedades tradicionais a figura do velho representava a sabedoria, a

    pacincia, e transmitia os valores da ancestralidade: era ele quem detinha a memria

    coletiva; quem, atravs da evocao e da transmisso oral, construa uma narrativa com a

    qual se incorporava (fazia-se corpo) cada indivduo na histria do grupo, outorgando-

    lhe uma filiao bem mais abrangente do que conhecemos atualmente, quase restrita ao

    campo do familiar. O velho, ento, era um elemento na vida do jovem que colaborava

    para sua ancoragem no registro do simblico, e este era o lugar simblico para a velhice.

    Com as sucessivas transformaes que se operam no mbito social a partir

    do sc. XVIII e que culminam com a revoluo industrial, h uma grande mudana de

    valores: o grupo que vive e trabalha junto deixa de ser fundante de tradies (e

    subjetividades) e o indivduo isolado na famlia nuclear, livre das ataduras da religio e

    da tradio, passa a ter um valor quase que exclusivamente pelo que produz. Assim, os

    valores tradicionais vo se perdendo em favor de uma sociedade individualista onde o

    velho, por no ser reprodutor de vida nem produtor de riqueza, nada vale; o valor social

    da velhice passa ento a ser associado inutilidade e decrepitude.

    Chegados neste ponto, podemos sem dvida dizer que em nosso tema

    encontram-se fundamentalmente implicados aspectos de ordem histrica, social, e

    finalmente poltica. Mas, como eles podem se articular com um referencial terico como

    o da psicanlise? Para uma possvel resposta a esta questo sugerimos a leitura de

    outro artigo do mesmo autor, que nos oferece uma interessante reflexo a este respeito.

    Ele sustenta que o fato das autoridades lidarem com a coisa pblica como se fosse a

    coisa privada, e a no delimitao simblica dessas fronteiras provoca uma certeza da

    impunidade sobre a qual se constitui uma crise de valores. Assim imperativo referir-

    se a um registro tico onde ....... o que se evoca a idia e o valor de

    cidadania..... a categoria de cidadania tem a tica como sendo seu Outro, de

    11

  • forma que pensar nas condies de possibilidade da cidadania implica em enunciar os

    fundamentos ticos da poltica e da sociabilidade (Birman, Boletim 60 pg 6)

    Ao se falar de cidadania e de poltica evoca-se a idia de sujeito do

    direito, conceito este prprio modernidade, e que por sua vez remete idia do

    indivduo como valor social; mas estes conceitos que se originaram na Grcia antiga

    chegaram ao sc. XVIII deformados pelas vicissitudes do poder. Perderam parte de sua

    magnitude original e hoje referem-se primordialmente a uma idia de valor individual,

    onde cada cidado vale pelas prprias realizaes, no sendo determinado nem

    responsvel pelo fato comunitrio. o indivduo que orgulhosamente se faz s.

    Ento, como consequncia deste processo, perdem-se os referenciais nicos e seguros de

    ordenamento social tal como eram sustentados pela sociedade tradicional, fato que

    inaugura a existncia de um indivduo - outrora sustentado pelas rgidas normas sociais

    e as obrigaes do cl, e psiquicamente identificado com os campos da razo, da

    conscincia e da vontade- que se encontra agora dividido pelas dvidas inerentes aos

    novos sistemas de valores e pelas angstias das livres escolhas prprias do liberalismo.

    Um sujeito que parece existir na firme convico de nada dever a nenhum outro.

    O resgate da verdadeira cidadania o resgate da possibilidade de existir

    para o Outro. A garantia de ser olhado como algum que s se garante como ser social

    na medida que possa exercer seus direitos. Com base neste sujeito do direito que surge

    o sujeito da psicanlise, que no mais que o sujeito do desejo, ou seja uma construo

    histrica ancorada nos fundamentos da modernidade. A psicanlise nasce

    paradoxalmente como produto desta modernidade para ser sua grande questionadora.

    O sujeito da psicanlise vem dar uma resposta s angstias de um

    individuo como j dissemos dividido, descentrado , dominado por um inconsciente que

    fala por ele. Este sujeito do desejo funda-se na alteridade, antecipa-se no desejo parental

    que o determina como sujeitado ao desejo do outro.

    Aqui retomamos o ponto de confluncia de vrias reas do conhecimento:

    questo da tica, a questo do outro em nossa constituio como sujeitos, em nossa

    atuao como cidados, em nossa prtica poltica que determinar os limites entre o

    pblico e o privado, o individual e o comunitrio, e o que poder formar parte de nosso

    12

  • universo ou ficar defensivamente excludo do mesmo, j que de alguma forma ameaa o

    individualismo e a realizao narcsica mais primarizada.

    Na nossa cultura no nascemos para sermos iguais, nascemos expulsos da

    comunidade que nos engendra porque somos concebidos para sermos diferentes,

    maravilhosos, nicos, para sermos melhores que os nossos antepassados recentes e

    destinados a realizar tudo que lhes foi impossvel. Mas um sujeito continua a se

    constituir por dois caminhos: por um lado, tenta coincidir com as expectativas que os

    outros, especialmente os pais, tem a seu respeito, ser a imagem que pode satisfaz-los;

    por outro identifica-se com os valores da cultura, do social. Caso exista uma crise nesse

    aspecto, a tendncia ser de correr atrs de imagens que assegurem uma certa identidade,

    e no de valores que ofeream identificaes mais ou menos permanentes. (Calligaris,

    Boletim 86)

    Se os valores da tradio j no oferecem nenhuma segurana, se o

    patrimnio moral herdado carece de todo valor, como operar esta identificao

    simblica? O que fazer com tudo aquilo que faz parte de um universo simblico? A

    resposta parece bvia: ocorre um processo de descategorizao, de excluso.

    Cabe ento perguntarmos sobre a particular subjetivao do ser velho

    em um momento histrico onde a velhice perdeu as atribuies prprias da sociedade

    tradicional, e onde parece ser mais uma inveno social, uma categoria na qual

    possvel depositar tudo o que remete inutilidade, dor, finitude e morte e que

    assim expulsa em direo s bordas, marginalizada.

    A maioria das culturas conhecidas na atualidade contam com uma

    considervel bagagem de condutas negativas em relao s pessoas idosas, muitas delas

    operadas de forma inconsciente, e muitas outras francamente explicitadas. Em 1973,

    Butler estudou este fenmeno sob o nome de ageism, e mais tarde, na Argentina ,

    Leopoldo Salvarezza chamou-o de viejismo. Este conceito define ...um conjunto de

    preconceitos, esteretipos e discriminaes que se aplicam aos velhos simplesmente em

    funo de sua idade..... Este um preconceito comparvel a outros que se aplicam s

    diversas minorias conhecidas, e inclui a chamada gerontofobia que se refere a uma

    conduta, felizmente menos frequente, caracterizada pelo medo ou dio irracional aos

    velhos. (Salvarezzza, 1993, pg 23)

    13

  • Retomando o que at aqui foi analisado percebemos que na modernidade o

    velho no existe sob signos positivos de incluso, no considerado produtor de bens

    nem um consumidor importante; s muito recentemente esta imgem comeou a mudar e

    assistimos ao surgimento de um mercado exclusivo para idosos que no se restringe a

    medicamentos e servios de sade. Perdendo seu valor social, perde seu valor simblico

    positivo. Passa assim a ocupar um lugar marginalizado da existncia humana, transforma-

    se numa espcie de sujeito em suspenso , sujeito sem projetos. Sem futuro, ser ento

    sujeitado pelo passado, que na forma de uma reminiscncia repetitiva, produzir um

    discurso que perder significao social se ningum o escutar. assim lanado a uma

    vida sem sentido, sem futuro, numa violenta marginalizao do circuito do desejo. Ento

    precisa ser isolado, escondido, para que os mais jovens no tenham que ver neles seu

    prprio futuro de carncia de recursos, de sade, de fora e poder. Assim, passa a

    simbolizar de maneira muito clara a impotncia e a castrao, onde os jovens depositam

    os aspectos mais denegridos e rejeitados de seu prprio Eu.

    O velho, ento, impotente e incapaz de superar criticamente o modelo

    vigente que prioriza o jovem, belo, forte e poderoso, a ele se submete tentando apagar as

    diferenas, passar para o interior do crculo de poder, fazendo tudo por se incluir, muitas

    vezes de forma manaca e caricata, ou caindo no isolamento, na renncia ao desejo.

    O sujeito produto de um encontro, de uma articulao entre interioridade e

    exterioridade, e esta no apenas fundante de subjetividade, mas tambm constitui o

    campo onde se encontram os objetos de sua satisfao. A violncia exercida atravs do

    discurso de exaltao da juventude e da produtividade prope um modelo desvalorizado

    com o qual o velho se identifica, anulando sua condio desejante e seus direitos de

    cidadania. Ento, a falta de um reconhecimento social para a velhice, a falta de um lugar

    simblico, o fato de no mais ser fonte de prazer, resulta numa desnarcisao do sujeito.

    Isto , numa falta de investimento do ambiente em direo a esse sujeito, e vice versa, o

    que impede a elaborao da perda e provoca um crescente empobrecimento da vida

    afetiva. Frequentemente, a resposta a este processo a depresso ou a demncia como

    defesa do ltimo baluarte narcsico.

    Se o limite da vida humana a morte, a velhice a fase da existncia que

    est mais prxima deste horizonte. Por esta razo, os velhos so suportes ideais para a

    14

  • maior parte das significaes negativas que a eles se referem. Podemos observar como

    muitas das aes supostamente destinadas a cuidar dos velhos, no so mais que

    subterfgios para mant-los isolados, assim como muitos discursos elogiosos no so

    mais que disfarces para encobrir o que de ameaador e angustiante a velhice encerra em

    nosso imaginrio social.

    Na velhice, perodo de perdas de objetos significativos e de lugares de

    reconhecimento simblico, falha frequentemente a funo reguladora do Ideal do Eu:

    ento, no confronto entre o Eu Ideal e a realidade corporal, presentifica-se a

    incompletude, que como uma avalancha arrasta todas as imagens narcsicas que foram

    constituintes do Eu. Abrem-se assim buracos por onde se filtram as fantasias

    inconscientes de castrao e aniquilamento ligadas a um Eu fortemente desvalorizado.

    Perde-se a beleza fsica padronizada pelos modelos atuais, a sade plena, o

    trabalho, os colegas de tantos anos, os amigos, a famlia, o bem estar econmico, e

    fundamentalmente, a extenso infinita do futuro, e embora a qualidade de vida seja

    preservada, no pode ser evitado o sentimento de finitude que inexoravelmente se instala.

    A conscincia da prpria deteriorao pe fim onipotncia. Despojado da

    beleza e da sade da juventude, de sua capacidade de produtor de bens e de reprodutor de

    vida, o corpo, em declnio, acaba com a fantasia de imutabilidade e imortalidade.

    Ser velho pode muitas vezes significar a perda da iluso da prpria

    potncia, aceitar o domnio inelutvel da pulso de morte e apesar disso, continuar

    lutando. Luta difcil, porque o luto que deve ser elaborado o da prpria vida, um luto

    que age por antecipao, luto por um objeto ainda conservado, porm condenado: e a

    ameaa de aniquilao pela morte no um sentimento ao qual algum se adapte. O Eu,

    antes de qualquer outra coisa, exige continuidade.

    A morte este pano de fundo sempre fugidio, irrepresentvel, que

    constitui a violncia prpria do ser temporal, ser para a morte. O sujeito se configura nas

    trs dimenses do tempo: ante os obstculos do presente, evoca o passado em busca do

    sentido necessrio e joga para o futuro as possibilidades de reparao; porm, se o futuro

    no mais existe, o sujeito se afunda em um futuro de no-ser que o arranca

    violentamente do campo do desejo.

    15

  • Atualmente observamos que, com a diminuio da taxa de natalidade e o

    aumento das expectativas de vida, as famlias ficam cada vez menores e seus membros

    cada vez mais velhos; estes fatos, somados exaltao das liberdades individuais, faz

    com que exista uma maior visibilidade social da velhice, que colabora para um

    reinvestimento nesta faixa etria , no sentido de outorgar-lhe um novo reconhecimento

    simblico.

    Em alguns pases existe em nossos dias um grande investimento social na

    velhice, que garante alm de um merecido bem-estar, o exerccio de uma elementar

    cidadania. Lamentavelmente no este hoje o caso de Amrica Latina, onde qualquer

    iniciativa depende quase que exclusivamente da esfera privada e beneficia pequenos

    grupos privilegiados com a sorte de ter acesso a servios diferenciados.

    A mdia , com seu enorme poder de reagir e gerar mudanas, colabora para

    este novo reconhecimento. Verificamos a presena cada vez mais macia de campanhas

    publicitrias dirigidas a pessoas com mais de 60 anos, programas tursticos e de lazer,

    planos de sade especiais, cursos universitrios exclusivos, escolas de ginstica, danas

    e mil formas imaginveis de agrupamentos para esta faixa etria. Porm, preciso

    pensar muito seriamente sobre o ponto de vista tico que oriente este reconhecimento, e

    que determinar se as aes em relao aos velhos sero de incluso, excluso ou

    indiferena; pois segundo as palavras de Foucault : ...as ticas no s refletem

    diferenas no modo de subjetivao, mas participam da constituio de subjetividades;

    em outras palavras, podemos ver as ticas como dispositivos ensinantes de subjetivao,

    elas efetivamente sujeitam os indivduos, ou seja, ensinam, orientam, modelam e exigem

    a converso dos homens em sujeitos morais historicamente determinados (citado por

    Figueiredo, 1995, pg 43)

    16

  • CAPTULO I

    A QUESTO DO CORPO ________________________________________________________________________ Eu no tinha este rosto de hoje,

    assim calmo, assim triste, assim magro,

    nem estes olhos to vazios,

    nem o lbio amargo.

    Eu no tinha estas mos sem fora,

    To paradas, e frias e mortas;

    eu no tinha este corao

    que nem se mostra.

    Eu no dei por conta desta mudana

    to simples, to certa, to fcil

    __ Em que espelho ficou perdida

    a minha face?

    CECILIA MEIRELLES Retrato

    17

  • Estou aprisionado num velho corpo BERTRAND RUSSELL

    desse corpo priso, ao qual se refere Russell, que queremos falar, desse

    corpo que ferramenta, mediador organizado entre a psique e o mundo, atravs do qual o

    sujeito reconhecido e com o qual se identifica. Corpo, como genialmente descreve

    Ceclia Meirelles, capaz de tais mudanas que at pode chegar a ser sentido como

    estranho, a se separar do sujeito ou de aprision-lo por no acompanhar seus desejos.

    Mas antes de entrar na especificidade que liga a questo do corpo com o envelhecimento,

    vejamos algumas das interpretaes que diferentes reas do conhecimento do a este

    conceito.

    Atravs da histria da civilizao, diferentes discursos cientficos, poticos

    ou religiosos tentaram dar conta da questo do corpo, do mistrio de seu funcionamento,

    tom-lo como seu objeto. Cada um com suas prprias concluses, criando controvrsias,

    provocando indagaes, falando enfim, de corpos diferentes. Ento, do ponto de vista

    conceitual, no h um corpo nico, comum a todas as reas do conhecimento ou das

    artes, mas sim diferentes discursos que tentam capturar esta problemtica

    Especialmente para o paradigma religioso-cristo, predominante at a

    modernidade, o corpo habita a representao fantasmtica da ressurreio, barro

    modelado por Deus, ato pelo qual sempre se enlaar a um desejo divino, corpo

    submetido e no desejante, cujo interior, invisvel e misterioso, guarda os segredos da

    criao divina. Este corpo unificado em uma imagem do visvel, de interior

    desconhecido e inexplicvel, preservava o enigma de seu funcionamento. J para a

    cincia, no existe nada da ordem do desejo como causa do funcionamento somtico,

    nem como explicao para seu destino de dor, prazer e morte.

    O olhar da cincia concebe o corpo humano como uma somatria de

    rgos e funes e confronta o sujeito com um interior feito de pedaos sobre o qual ele

    nada sabe. Assim, um sujeito leigo no pode habitar a causalidade divina da doena

    que aflige seu corpo e seu esprito. Para o paradigma cientfico tudo deve ser explicado

    pelos eruditos que detm o saber. Os destinos do corpo se situam fora do desejo. O

    sujeito profano no pode mais apelar a suas construes fantasmticas para explicar o

    prprio corpo, devendo dar crdito a um saber que diz sobre ele mas que lhe estranho,

    contrariando frequentemente a certeza da prpria experincia sensorial. A cultura

    18

  • outorgar os meios para que cada um se aproprie de diferentes formas desse saber, para

    a construo cultural de um modelo do corpo, que embora diferente do discurso cientfico

    dele derivado. A eleio dos enunciados depender de quanto estes sejam aptos para

    dar conta de um corpo investido pela psique. Mas, qual a proposta da psicanlise para a

    questo do corpo? Com que conceitos herdados de outras reas trabalhou Freud este tema

    alm, claro est, da influncia biologizante exercida por sua formao mdica? Como foi

    a evoluo desta problemtica?

    1- AS FONTES NA FILOSOFIA

    Em relao questo do corpo, as fontes na filosofia, assim como na

    religio na cincia ou na mitologia, so remotas. Escolhemos ento dois filsofos

    contemporneos a Freud, representantes do pensamento de sua poca e que tiveram

    notada influncia sobre sua produo terica.

    Para Nietzsche, que tentava eliminar o dualismo alma-corpo, o

    pensamento no est desligado do corpo, e isso a tal ponto que as idias constituiriam

    sintomas de sade ou doena, vitalidade ou morbidez. Assim, o corpo seria um revelador

    das foras que o dominam ou lutam para domin-lo, e a alma designaria simplesmente

    algo no corpo. Designando-a, outorga-lhe existncia e assim sua tentativa fracassa, ao

    menos no sentido de poder se omitir do uso de um conceito que se refere a esse algo

    que fica fora da ordem do natural.

    O corpo chamado de Grande Razo, e o esprito que nele habita, a

    Pequena Razo, seu brinquedo e instrumento. Esta Grande Razo que no diz EU, seno

    que faz EU, nos remete ao conceito de identificao tal como foi elaborado por Lacan no

    estdio do espelho, conceito ao qual voltaremos mais tarde.

    Na nova dualidade, corpo natural- corpo da psicanlise, inaugurada por

    Freud, e seguida por Lacan, parece haver uma ruptura com os conceitos de Nietzsche,

    declaradamente contrrio aceitao de qualquer dualidade; porm no deixa de ser

    interessante notar que ele no desiste de falar de alma ou de esprito, especialmente em

    seus escritos pstumos, talvez afetado pela conscincia de finitude que s a

    proximidade da morte pode outorgar. Ele diz tambm que a pulso matria e

    demiurgo de toda concreo do mundo orgnico e cultural. Ora, sendo demiurgo,

    ligao entre o humano e o divino, e s podem se ligar duas coisas que esto separadas,

    19

  • mesmo que por uma simples diferena, duas coisas que no sejam uma s. Novamente

    Nietzsche parece aqui estar se referindo a um conceito limtrofe.

    Para este autor, a pulso uma energia que transita entre a Grande e a

    Pequena razo, originando-se no corpo. Podemos descobrir nesta idia algumas

    coincidncias com os postulados freudianos sobre a pulso como conceito limtrofe e a

    noo de apoio. As pulses enunciam urgncias, exigncias, comandos, representaes; a

    exigncia pode at mesmo ser enunciada naquilo que contraria radicalmente sua

    meta , (transformao no contrrio como destino possvel); toda pulso habitada por

    uma natureza artstica, instituidora de formas realizando seu objeto com bela

    aparncia (a sublimao como destino). (Giacoia, 1995)

    Nietzsche no faz uma diferenciao clara entre Instinkt e Trieb, porm

    nos fala de uma Fora (Triebkrafte) sem fundo, misteriosa, com carga energtica

    impalpvel, invisvel, plurvoca. Devemos compreender esta fora como quantidades de

    energia dinmica, cuja essncia seria seu prprio efetivar-se, produzir efeitos sobre os

    outros quantas, instituir uma verdadeira relao de poder. ento uma intensidade que

    se constitui em seu efetivar-se. Toda pulso uma nsia de domnio e cada uma tm

    sua prpria perspectiva e rea de influncia. (pulso parcial). Assim compreendida, esta

    fora pode-se resumir a uma nica forma fundamental de vontade: a Vontade de

    Potncia. Assim sendo, a dinmica pulsional s pode ser entendida como uma verdadeira

    guerra onde h composio, ajustamentos, alianas entre potncias rivais; o que implica

    necessariamente na existncia de resistncias. A Vontade de Potncia s pode existir no

    confronto.

    A Fora no para Nietzsche vontade de vida, como para Schopenhauer,

    porque aquilo que j existe no pode querer existir, e o que no existe tampouco; a vida

    s pode querer mais vida, ou seja Vontade de Poder ou Potncia.

    Se como faz Nietzsche, a Vontade de Potncia for identificada com a

    prpria vida, esta ser ento uma vontade orgnica, prpria no somente do homem,

    seno de todo ser vivo; vemos aqui uma clara diferena com Freud, para quem essencial

    a diferenciao entre instinto como comportamento biologicamente determinado, sempre

    igual, e com objeto especfico e pulso como conceito limtrofe, lbil, que suporta

    diferentes destinos e objetos, originadas num corpo sim, porm erogeneizado,

    20

  • atravessado pelo desejo parental, corpo que j muito pouco tem a ver com a biologia. Em

    Nietzsche o movimento , ora de unio, ora de diferenciao. Em seu afinco por negar os

    dualismos, no pode aceitar as especificidades no naturais da Triebkrafte, que ele

    mesmo define como impalpvel e misteriosa. Coerente com seu esforo, atribui

    conscincia uma origem biolgica, como ltimo e mais tardio efeito da evoluo

    orgnica; assim entendida, a conscincia seria o rgo responsvel pela sobrevivncia, j

    que surgiria pela relao do indivduo com o mundo exterior, e obteria atravs da

    linguagem um meio de comunicabilidade. Neste processo haveria sempre presente um

    carter falsificador pois no todo pensamento que se torna linguagem, que vira

    consciente, mas s alguns podem atingir esta forma. Haveria ento um resto indizvel,

    que constituiria o inconsciente, embora Nietzsche no use esta denominao, no

    conseguindo portanto um lugar terico para o no- representvel.

    Schopenhauer, predecessor de Nietzsche, aborda uma problemtica

    semelhante inspirado em Kant. Para este h uma diferena entre a coisa-em-si

    (noumenon) que existe em si mesma, e o mundo que aparece; este universo dos

    fenmenos o objetivo do conhecimento cientfico e se rege pelas formas a priori da

    sensibilidade (espao e tempo), o mundo do representvel que inclui o sujeito. A coisa-

    em-si, pelo contrrio tudo aquilo que fica fora da representao por no ser acessvel

    atravs do conhecimento cientfico. Esta coisa-em-si, raiz metafsica de toda realidade,

    a Vontade que Schopenhauer coloca como eixo de seu pensamento; e justamente a crtica

    que faz a Kant refere-se ao fato dele ter conferido Razo o papel mais importante em

    seu sistema. (Cacciola, 1991)

    A Vontade uma, com diversos modos de manifestaes que norteiam e

    geram o mundo das representaes, como acontece com a vontade de conhecimento.

    Embora o conhecer seja da ordem do sujeito da representao, e o querer

    corresponda ao sujeito da vontade, para conhecer o sujeito tem que querer. Temos ento

    uma Vontade cega, puro mpeto, irracional, essncia humana, que direciona as escolhas

    dos atos dos homens, e uma vontade racional, poderosa, intelectual, que se submete

    primeira, definida como o impensado, o desconhecido, o inconsciente, (embora

    Schopenhauer, tampouco use este conceito), e que tem absoluta primazia em seu sistema.

    O Eu aquele elo temporal entre estas duas manifestaes, o sujeito do querer e o sujeito

    21

  • do conhecer. Colocado desta forma, o dualismo no se coloca entre instinto e pulso,

    mas entre a vontade entendida como pulso e o intelecto.

    Tanto a Vontade em Schopenhauer, quanto a Fora em Nietzsche,

    manifestam-se no corpo, e s em suas manifestaes corporais que podemos

    limitadamente conhec-las. No possvel conhecermos a Vontade, mas apenas a

    manifestao de sua atividade; s temos acesso a ela mediatizada atravs de suas

    representaes. Sua sede so os rgos genitais, ou seja, sua mais importante

    manifestao a sexualidade, e seu objetivo a perpetuao da espcie. O querer viver,

    um querer viver como espcie. Vemos ento a bvia relao entre o conceito de

    Vontade em Schopenhauer e os postulados freudianos sobre a pulso, assim como a

    influncia que este filsofo exerceu sobre Nietzsche , e seu papel de precursor ao atribuir

    sexualidade um status constitutivo da vida do indivduo, alm de sua funo como

    atividade procriadora: com Schopenhauer surge o homem como ser sexual. Pulso de

    vida e de morte no s se anunciam em Schopenhauer como formam parte de seu

    sistema, e daro a Freud base suficiente para continuar sua elaborao e recolocao no

    sistema da Psicanlise que, claro, no deve ser confundida com uma simples

    transposio.

    Nosso interesse em seguir estas elaboraes foi o de balizar nosso

    trabalho para melhor compreender o estatuto do corpo na psicanlise, especialmente no

    que se refere ao conceito de pulso, ao que iremos frequentemnete nos referir no

    decorrer deste texto. Mas vejamos quais foram, no pensamento freudiano, as

    consequncias desta influncia exercida pelos filsofos de sua poca.

    2- O CORPO NA PSICANLISE

    A questo do corpo na psicanlise parece exigir um retorno ao caminho

    traado por Freud desde o Projeto (1895) e consolidado com o longo desenvolvimento da

    teoria das pulses. No texto de 1923 O Eu e o Id, ele reafirma a dimenso corprea do

    Eu com as seguintes palavras: Na gnese do Eu e em sua diferenciao do Id, parece ter

    atuado ainda outro fator diferente da influncia do sistema P (perceptivo) . O prprio

    corpo e especialmente a superfcie do mesmo, um lugar do qual podem partir

    simultaneamente percepes, externas e internas. Ele objeto da viso como outro

    22

  • corpo qualquer, porm produz ao tato duas sensaes, uma das quais pode-se equiparar

    a uma percepo interna. A psicofisiologia se ocupou j suficientemente da forma em

    que o prprio corpo se destaca do mundo das percepes. Tambm a dor parece

    desempenhar um papel importante nesta questo, e a forma em que adquirimos um novo

    conhecimento de nossos rgos quando padecemos uma dolorosa doena constitui

    qui o prottipo daquela pela qual chegamos representao de nosso prprio corpo.

    O Eu um ser corpreo, e no s um ser superficial, ele tambm a projeo de uma

    superfcie. (Freud, 1923, T.II, pag 15)

    na conscincia, camada mais superficial do aparelho psquico, que

    reside o sistema perceptivo, que absorve tanto os estmulos provenientes do mundo

    exterior quanto os emergentes do interior do organismo. Sendo a conscincia a receptora

    dos estmulos externos, como exigncias de motilidade, dela que partem a maioria das

    aes necessariamente organizadas que visam modificar o mundo exterior: Conscincia

    e acesso motilidade pertencem ao eu, que assim se define de sada como a parte do

    psiquismo voltada para o exterior e dotada por isto mesmo de uma coerncia prpria .

    (Mezan, 1982. pag 270)

    No ps-freudismo, em certa medida se esqueceu esta dimenso corprea do

    sujeito, restando psicanlise um campo restrito pura interioridade do mundo do

    pensamento. Mas o conceito de corpo, longe de ser alheio psicanlise, uma das mais

    fundamentais questes, j que se articula com a formao da instncia que conhecemos

    como Eu.

    Cabe aqui tecer alguns comentrios sobre as teorizaes do Dr. Garcia

    Roza. Ele nos fala de um corpo natural, dotado de uma organizao e de um modo

    dearticulao com o mundo independente da linguagem; e de um corpo ergeno,

    submetido linguagem e ordenado por ela. O corpo natural campo de pesquisa da

    biologia, e no da psicanlise. Esta dualidade no interessa psicanlise, embora o corpo

    ergeno seja objeto de seu estudo. Porm existe uma outra dualidade, que sim do

    domnio da psicanlise, constituda pelo que ordenado, quer dizer submetido

    linguagem, representado e que inclui tanto a linguagem como a representao do corpo,

    e por aquilo que exterior ordem, que catico: as pulses em estado bruto, o corpo

    real situado alm da representao, o corpo pulsional. Corpo de uma pulso que no

    23

  • fora natural, porm tem potncia corporal, representando as exigncias que o corpo

    faz mente, e que no so de origem biolgica. No sendo nem energia fsica nem

    psquica, energia pulsional

    Temos ento um corpo simblico atravessado pela linguagem, o corpo

    da representao, com representao no psiquismo, onde a pulso est representada, sem

    entretanto aparecer em forma direta. Ora, se algo se encontra representado em algum

    lugar, em outro lugar tem que existir o original; esse outro registro, no representvel, o

    corpo pulsional, o corpo da pulso em estado bruto . Da articulao destes dois registros,

    surge o terceiro que chamamos corpo imaginrio j que de uma imagem que se trata.

    Neste corpo criado como um efeito de superfcie que se constituiro os sintomas

    como expresso de um sentido, sentido que este corpo ergeno sempre manifesta

    como articulao do pulsional (real) com a linguagem (simblico). E esclarece : No

    estou tentando afirmar o corpo da psicanlise como anttese do biolgico, mas

    simplesmente afirm-lo como diferena (Garcia Roza, 1990, pag 63) Para este autor,

    toda a confuso em relao questo do corpo na psicanlise reside no fato de se pensar

    em termos de gnese e no de estrutura. Estruturalmente no h uma instncia anterior

    nem primordial. No existe um corpo biolgico sobre o qual a palavra vem impor uma

    ordem, existe um corpo que vem a se encontrar com um destino j desejado.

    Quando Freud, em 1895, escreve o Projeto de uma psicologia para

    neurlogos, est preocupado com a dualidade corpo-alma e com a necessidade de

    outorgar a sua teoria a cientificidade que ento lhe era negada. Mas ainda no mesmo

    artigo reconhecer, com as seguintes palavras, o fracasso do enfoque

    biologizante: .......A comprovao da diferente importncia que tm as diversas partes

    do crebro, e suas particulares relaes com determinadas partes do corpo e com as

    atividades psquicas leva-nos um passo mais adiante, embora no possamos dizer que

    esse passo seja grande. Todos os esforos realizados para deduzir desses fatos uma

    localizao dos processos psquicos, ou seja, todas as tentativas de entender as idias

    como armazenadas nas clulas nervosas e as excitaes como seguindo o curso das

    fibras nervosas fracassaram por completo (Freud, 1895, T III, pag 883) Dever

    empreender ainda a tentativa de transpor estas conceitualizaes para o plano do

    psquico em A interpretao dos sonhos de 1900 para, j em 1905, nos Trs ensaios

    24

  • para uma Teoria Sexual, postular o conceito de pulso com sua fonte no processo

    somtico de excitao, seu objeto varivel, a finalidade da satisfao, e as zonas

    ergenas como o apoio necessrio de onde emanam as pulses sexuais .

    Em 1910, em As Perturbaes Psicognicas da Viso Freud diferencia

    as pulses sexuais e as pulses de conservao tambm chamadas de pulses do Eu,

    incompatveis entre si, dado que seus objetivos so opostos. Este verdadeiro conflito

    entre suas foras engendraria um Eu capaz de se defender das representaes intolerveis

    atravs da represso. Teramos ento, pulses do Eu, ligadas conscincia e regidas pelo

    Princpio de Realidade que aparece como imposto a partir do exterior do sujeito e pulses

    sexuais ligadas a uma atividade fantasmtica e regida pelo Princpio do Prazer. Neste

    ponto vemos claramente colocado um dualismo, ou melhor, um confronto ente cultura e

    sexualidade.

    O passo seguinte de Freud ser a elaborao do conceito de Narcisismo

    em Introduo ao Narcisismo de 1914. Aqui a teoria das pulses se complica, porque o

    Eu tambm sexualizado, parecendo ento no haver mais espao para as pulses no

    sexuais, o que representaria o fim do dualismo pulsional. Faz-se necessrio prosseguir

    at o texto de 1915 A pulso e suas Vicissitudes onde o autor recapitula seu trajeto

    conceitual e define a pulso dizendo: Se consideramos a vida anmica do ponto de vista

    do biolgico, a pulso mostra-se como um conceito limtrofe entre o anmico e o

    somtico, como um representante psquico dos estmulos provenientes do interior do

    corpo que chegam alma e como uma magnitude da exigncia de trabalho imposta

    ao anmico em conseqncia de sua ligao com o somtico (Freud, 1915, T I, pag

    1037) Ou seja, um impulso que tem sua fonte no corpo porm no biolgico,

    representado no psiquismo, porm no psquico, tem como nica finalidade a

    satisfao, que pode ser proporcionada atravs dos mais variados objetos. Isto vale para

    todas as pulses sem se distinguir entre sexuais e de auto-conservao. Porm, antes de se

    referir aos quatro destinos possveis para as pulses (transformao no contrrio-

    orientao contra a prpria pessoa- represso- sublimao) esclarece: Como avanamos

    mais no conhecimento das pulses sexuais, limitaremos a elas nossa investigao dos

    destinos pelos quais passam as pulses no curso de seu desenvolvimento e da vida

    (Freud, 1915, T I, pg. 1039)

    25

  • Ainda no mesmo artigo Freud estabelece o carter conservador e

    ambivalente da pulso e reconhece a presena, nas tendncias erticas, de componentes

    agressivos e destrutivos.Enquanto as pulses sexuais passam por um complicado

    desenvolvimento, aparecem fases preliminares do amor como fins sexuais...a primeira

    destas fases a incorporao e a ingesto, modalidade do amor que resulta compatvel

    com a supresso do objeto e que pode ento ser qualificada de ambivalncia. E

    continua: Na fase superior de organizao pre-genital sdico-anal, surge a aspirao

    ao objeto na forma de pulso de domnio, impulso para o qual indiferente o dano

    infringido ou a destruio do objeto. ( Freud, 1915, T I, pg. 1044)

    Estas elaboraes e outras (1) que datam do comeo da primeira

    Grande Guerra, so sem dvida o ponto de partida para que Freud, em 1920, vivendo

    seus lutos pessoais e os lutos pela humanidade produza a grande virada de 1920 em

    Alm do Principio do Prazer onde conceitualiza a Pulso de Vida e a Pulso de Morte.

    Neste percurso dos textos sobre a Pulso podemos verificar como Freud vai tomando

    distncia de uma formulao biologizante do psiquismo e outorgando questo do corpo

    (erogeneizado) um estatuto fundamental no edifcio terico da psicanlise. Por

    consider-lo tematicamente mais adequado, deixaremos este tema para ser discutido no

    prximo captulo (ponto 5) detendo-nos agora nas teorizaes de alguns seguidores de

    Freud que, pela originalidade de pensamento e rigor conceitual, muito tm contribudo

    ao enriquecimento desta questo.

    Para Piera Aulagnier (1991, cap 2) o corpo faz-se visvel, manifesta-se

    atravs de inmeros sinais, corpo manifesto falando de um corpo latente que permanece

    oculto . Entre todos os signos possveis do corpo visvel, toma especialmente dois:

    emoo e sofrimento somtico, que considera os mensageiros por excelncia do

    psiquismo para suas manifestaes no plano somtico. Emoo diferente de afeto,

    emoo uma vivncia da qual o eu tem conscincia: sabe o que aquilo que a

    provocou e guarda relao com algo sensorial; algo visto, ouvido, tocado, que modifica

    o estado somtico de quem a experimenta e estimula uma identificao com quem a

    compartilha. ________________________________________________________________________ 1- a este respeito recomendo a leitura dos textos de S. Freud: Consideraciones de actualidad sobre la Guerra e la Muerte (1915) e Lo Perecedero ( 1916)

    26

  • O sofrimento, causado por exemplo por uma doena, vem informar que

    algo que acreditvamos invulnervel pode ser afetado, que algo que permanecia oculto

    pode aparecer, provocando tambm uma reao em quem o testemunha; dizemos ento

    que dor e emoo so relacionais, pois realizam uma conexo entre o corpo sensorial e

    um corpo relacional. Mensageiros, porque alm de falar das prprias manifestaes

    somticas, possibilitam diferentes leituras das reaes dos outros.

    Quando um acontecimento ligado dor ou emoo irrompe em uma

    histria singular, a construo que o sujeito far dessa ocorrncia depender no s da

    conexo particular entre seu corpo e sua psique, mas tambm da resposta que sua dor ou

    emoo gerem no outro. Emoo e dor, (2) vo formando sucessivas representaes do

    corpo , que se articularo com as motivaes inconscientes , e juntas estas decidiro sobre

    a eleio da causa qual o sujeito vai atribuir o sentido histrico dos acontecimentos de

    sua vida. A identidade de um sujeito ser ento esta historia que ele mesmo escreve, na

    qual fala de seu corpo. A histria do sujeito a histria das marcas relacionais de dor e

    emoo em seu corpo; esta sua identidade, e a histria que ele escreve atribuindo

    sentidos a estas marcas uma histria que jamais se completa. Tal identidade corporal

    que parece sempre definitiva, deve permanecer sempre em aberto, ser uma verso sempre

    inacabada, para que o sujeito possa aceitar as mudanas que o tempo impe, sem perder

    o sentido de permanncia.

    A certeza de habitar um nico corpo, sempre o mesmo, quaisquer que

    sejam suas modificaes, a garantia de uma identidade e de uma permanncia na

    relao com o outro. Para consegu-lo, o sujeito dever dar o mesmo sentido relacional a

    uma srie de experincias, embora tenham acontecido em tempos diferentes, ou seja,

    devero ter tambm um sentido temporal.

    Seguindo o pensamento de Piera Aulagnier vemos que o reconhecimento

    de um outro separado de si, de um espao fora do eu acompanhado de um saber

    sobre a autonomia desse outro; sua possibilidade de estar presente ou ausente, de infligir

    ________________________________________________________________________ 2- Piera Aulagnier esclarece que no toma o prazer como mensageiro porque: enquanto o sofrimento apela ao poder de quem supostamente capaz de modificar a realidade somtica e o meio que envolve o sofredor, o prazer (como depois o gozo) vai acompanhado da mensagem contrria: O que poderia vir a se modificar no corpo ou no exterior vivido como ameaa. (Aulagnier, cap2, pg 131)

    27

  • prazer ou dor, ou seja, a capacidade do outro de ser sempre mutvel submete o eu a uma

    situao de ser, ele tambm, sempre auto-modificvel, j que se forja na relao com o

    objeto investido. Porm, para sustentar a diferena, necessrio que o eu se auto-

    represente como o plo estvel dessa relao de investimento. A continuidade desta

    relao depender da possibilidade de negociao do eu entre as demandas do prprio id

    e as do outro. Por isso Piera Aulagnier no vacilar em dizer que: O eu o redator de

    um compromisso identificatrio; o contedo de uma parte de suas clusulas no dever

    mudar; enquanto de outras dever ser sempre modificvel e assim garantir o devir desta

    instncia (Aulagnier, 1991, cap 5, pag 224)

    O corpo mediador entre a psique e o mundo, ou entre duas psiques,

    constri-se nessa relao e constri suas causalidades; se o eco do prprio corpo no

    mundo no encontra respostas adequadas, se o outro for surdo e cego dor (ou no tiver

    a resposta esperada) ir se operar uma desconexo relativa com toda a histria do

    sujeito. S a ttulo de comentrio podemos dizer que a compreenso deste ponto ajuda na

    explicao de certos fenmenos freqentes na velhice, como o fato de muitos idosos se

    demenciarem ao sofrer hospitalizaes rigorosas ou doenas prolongadas. Os modernos

    Centros de Terapia Intensiva e sua alta tecnologia isolam o paciente em prol da

    preservao de um corpo biolgico sem se considerar as suas necessidades emocionais,

    especialmente as de contato com os outros significativos e com um meio social e

    cultural. Visitas mais frequentes e prolongadas, uma msica adequada, a presena de

    objetos estimados e uma reao mais emocionada por parte da equipe tcnica evitam

    um corte radical com o entorno habitual e a consequente retrao da libido.

    Tambm para Franoise Dolto (1986) o corpo ferramenta, mediador

    organizado entre o sujeito e o mundo, mas ela ir diferenciar esquema corporal de

    imagem inconsciente do corpo. O esquema corporal uma realidade de fato, mais ou

    menos comum a todos os indivduos de uma cultura, poca e regio determinadas.

    Estrutura-se mediante o aprendizado e a experincia, e consciente, pr-consciente e

    inconsciente. A imagem do corpo, pelo contrrio, prpria a cada sujeito e est ligada a

    sua historia. relacional, depende especialmente da histria libidinal , se presenta como

    sntese das experincias relacionais do sujeito desejante e pode ser considerada como sua

    encarnao simblica. eminentemente inconsciente; memria da vivncia relacional

    28

  • sempre dinmica pois estrutura-se atravs da relao entre sujeitos e nela que se

    inscrevem as experincias relacionais (valorizantes ou no, narcisisantes ou no), que no

    so da mera ordem da necessidade mas fundamentalmente do desejo. Quando uma

    criana pede um doce, isto se articula com o prazer do contato da boca com o peito;

    porm, desprendido do nutricional (mera necessidade), o doce age como prova de amor e

    reconhecimento como sujeito desejante. Nesse caso, o doce pode ser substitudo, ele j

    no importa. Como as necessidades devem ser satisfeitas de imediato para preservar a

    vida, essa satisfao ou essa falta, ligadas ao esquema corporal, no produzem uma carga

    narcsica como acontece com as manifestaes do desejo ligadas imagem corporal.

    A fonte das pulses, seu lugar, o esquema corporal, mas onde elas se

    representam na imagem inconsciente do corpo.Tem que haver um corpo que represente

    as pulses, e no importa quo lesionado este esteja. Um sujeito pode no ter pernas e ter

    simbolizado o andar, graas relao afetiva com seus pais, que devem ser capazes de

    suportar a prpria frustrao e projetar sobre a criana uma imagem saudvel do corpo

    simbolizada em palavras. Assim, uma imagem inconsciente do corpo integrado e potente

    pode conviver com um esquema corporal deficitrio, o contrrio sendo tambm

    possvel..

    Como a realidade de fato do esquema corporal depende de nosso contato

    carnal com o mundo fsico, ento as experincias de realidade dependero do tipo de

    contato do organismo com este mundo, e a qualidade deste contato depender da

    integridade do organismo, de suas leses permanentes ou transitrias, das suas sensaes

    possveis. Como vemos, h aqui uma semelhana do pensamento de F. Dolto com o

    da P. Aulagnier: ambas ligam as primeiras sensaes corporais , os primeiros contatos

    com o mundo fsico, s experincias de realidade e ao processo identificatrio.

    Contrariando Lacan para quem a experincia do espelho inaugural e

    primeira, Dolto afirma que a imagem especular no mais que uma estimulao

    sensvelentre tantas outras no processo da produo da imagem inconsciente do corpo .

    Para esta psicanalista o corpo da criana que sofre o impacto do espelho no um corpo

    fragmentado, disperso; um corpo coeso e contnuo, dotado de um esquema corporal

    fruto de seu contato com a realidade fsica e de uma imagem inconsciente do corpo,

    produto da vida relacional, do contato afetivo, das experincias amorosas, ambos sempre

    29

  • em evoluo, sempre mutantes. O confronto de experincia do espelho ser ento entre

    duas imagens: por um lado a imagem inconsciente do corpo, e por outro, a imagem

    especular, que contribui para modelar e individualizar a primeira. O que para Lacan o

    comeo jubilatrio, para Dolto uma experincia de castrao, que provoca na criana a

    constatao dolorosa da diferena que a separa da imagem inconsciente. Imagem

    tambm alienante (como para Lacan), porm em outro sentido. Pensamos que o

    sentido da experincia especular vai depender da experincia prvia de contato com a

    realidade, que determinar o modo singular do impacto afetivo com o espelho. A imagem

    especular pode tanto abolir quanto integrar a imagem inconsciente do corpo

    Outro fator fundamental nesta experincia a presena do outro, do

    adulto presente nesse espao para nomear o que acontece, e para compartilhar este

    campo concreto do espelho; a presena do adulto que marcar a diferena entre a

    criana e o outro, que lhe ensinar a distinguir as diferentes qualidades da relao com

    um outro e com a prpria imagem. Esta experincia de nada valer se o sujeito enfrenta a

    falta de um espelho de seu ser no outro.

    Quando um beb nasce, ele tem um corpo, mas ainda no tem um Eu nem

    um Outro. Ento, como j dizamos, o adulto fala, nomeia, diferencia, deseja. Assim, o

    recm-nascido investido de tal maneira que nele so projetadas todas as idias de

    perfeio e principalmente todos os sonhos aos quais os pais tiveram que renunciar;

    assim, sua majestade o beb representar a reproduo do narcisismo dos pais. Neste

    campo de mtua potenciao, o narcisismo do beb nasce e o dos pais renasce.

    O Eu do beb no existe ento desde o comeo da vida como instncia

    do aparelho psquico, ele deve se constituir. A constituio do Eu e a consequente

    possibilidade de sua separao dos objetos o novo ato psquico que permitir o

    surgimento do Narcisismo Secundrio e a procura de satisfao nos objetos externos e

    separados dele. Mas tambm este um processo doloroso. Quando a criana, em suas

    limitaes, v-se confrontada com os ideais impostos pelos desejos parentais, quando a

    me falha porque olha para outros objetos que no ela, quando deve esperar pela

    satisfao, percebe que j no mais sua majestade o beb, profunda ferida no

    narcisismo primrio marcado pela segurana do amor incondicional e imediato. A partir

    30

  • deste momento, todo o esforo residir em se fazer amar pelos outros tentando reproduzir

    a situao de onipotncia originria, sem jamais consegu-lo.

    O Eu Ideal do rei da casa cede espao para outra imagem idealizada, um

    Ideal do Eu, desta vez baseado nos imperativos sociais e culturais, transmitidos pelos

    pais. A libido assim regida ir se dirigir a muitos outros objetos, sempre falhos e

    incompletos, e que sero amados e abandonados, resgatando de cada um deles algum

    trao idealizado e incorporado a este difcil caminho de se constituir em um sujeito

    psquico. Ideal do Eu, eterno mediador da esperana de alguma vez, nem que seja

    apenas por um instante, voltar l.

    A partir de Lacan sabemos que, quando uma criana entre os 12 e 18

    meses de vida se olha no espelho e finalmente se reconhece, invadida por uma sensao

    de jbilo e pensa: Esse sou eu. Mas devido imaturidade neurolgica haver uma

    discordncia entre esta imagem virtual, total, que o espelho lhe oferece, e seu corpo

    sentido como descoordenado, impotente. A criana se reconhece em uma espcie de

    invlucro que lhe traz a iluso de totalidade. Ir se identificar em relao a um outro a

    quem anunciar sua descoberta, diferenciar a imagem de seu prprio corpo da imagem

    do corpo do outro. Por isso dizemos que o eu imaginrio um eu corporal, j que se trata

    da conscincia do prprio corpo operada por uma imagem.

    Esta imagem no espelho fascina-a, porm tambm aliena-a, engana-a, j

    que no corresponde a seu corpo sentido como fragmentado. E justamente a esse eu

    corporal , imagem idealizada de si mesma, a esse eu ideal que a criana ficar presa, e

    embora nunca se una a ela, estar sempre a persegu-la.

    Lacan diz exatamente o seguinte: suficiente compreender o estdio

    do espelho como uma identificao no sentido pleno que a anlise d a esse termo: a

    saber, a transformao produzida no sujeito quando ele assume uma imagem cuja

    predestinao a esse efeito de fase est suficientemente indicada pelo uso, na teoria do

    termo imago. A assuno jubilatria de sua imagem especular pelo ser ainda

    mergulhado na sua impotncia motora e na dependncia da nutrio que o pequeno

    homem, nesse estdio infans, parecer-nos- portanto manifestar, numa situao

    exemplar, a matriz simblica onde o eu se precipita em forma primordial, antes que se

    31

  • objetive na dialtica da identificao ao outro e que a linguagem lhe restitua no

    universal sua funo de sujeito (Lacan, Boletin 26, pag 16)

    Quando trabalhamos com esta noo do estdio do espelho devemos levar

    em considerao que esta foi uma das primeiras formulaes de Lacan, anterior questo

    do simblico, sendo uma noo elaborada visando entender melhor a questo do

    narcisismo em Freud. Quando ele fala do infans mergulhado na impotncia motora ou na

    imaturidade neurolgica, ainda no contava com outros conceitos fundamentais em sua

    teoria. Desde a perspectiva das elaboraes posteriores vemos que no se trata de um

    corpo que vai madurando no sentido biolgico; o corpo no algo que surge por

    maturao neurolgica, no este o corpo do qual a psicanlise quer falar. A idia

    fundamental de Lacan que o corpo algo que deve ser constitudo, construdo, e que

    esta construo no da ordem do organismo biolgico. O organismo biolgico no est

    disperso nem fragmentado, muito pelo contrrio, tem uma coerncia funcional que o

    mantm vivo. S podemos falar de corpo fragmentado, reino das pulses parciais do

    auto-erotismo, a partir da existncia de um corpo unificado pela libido narcisista.

    A criana do espelho no constri essa imagem do corpo a partir de

    sensaes internas de ordem biolgica mas a partir de dados que lhe chegam do exterior

    atravs de um processo psquico de identificao com um outro que est fora,

    identificao com uma imagem que do outro. Este processo se antecipa maturao

    neurolgica. Constri-se essa superfcie-corpo por identificao com uma imagem

    exterior antes de poder se contar com a maturidade biolgica, antes de se ter um

    domnio sobre o organismo e poder manej-lo de forma coordenada. A imagem do corpo

    anterior maturidade orgnica, por isso se diz que o corpo completo se constri por

    antecipao, mas isto graas a um processo psquico e no orgnico. Assim, quando a

    maturidade orgnica se produzir, s ter como caminho a seguir aquele j marcado por

    essa outra experincia que a antecedeu. S para citar um exemplo, podemos

    lembrar que a identidade sexual humana est estabelecida antes da maturidade

    sexual do sujeito. Esta idia nos ajuda tambm a entender melhor a diferena entre

    esquema corporal e imagem inconsciente do corpo elaboradas por Franoise Dolto,

    qual nos referimos em pginas anteriores.

    32

  • Este espelho, ento, no mais que o olhar da me, ou seja, certa imago

    pre-existente no desejo materno com relao a esse filho. O olhar da me que, ao v-lo,

    outorga-lhe determinados atributos com os quais a criana de identifica. Este corpo

    unificado e reconhecido na experincia do espelho ir sofrer depois duas grandes crises,

    dois momentos especiais em que ser sentido como estranho. O primeiro ser a

    adolescncia, em que o corpo cresce meio desproporcionado, e o sistema endcrino traz

    muitas novidades, mas onde fundamentalmente h a promessa de um futuro pleno de

    realizaes. Mas quando um idoso se olha no espelho, o que este lhe devolve uma

    imagem ligada a uma deteriorao, uma imagem com a qual ele no se identifica. No h

    jbilo nem alegria, h apenas estranheza e ele pensa : esse no sou eu. Novamente uma

    discrepncia entre a imagem inconsciente do corpo e a imagem que o espelho lhe

    devolve.

    3- O VELHO, ESSE OUTRO

    Como j apontamos em nossa introduo, a velhice para Simone de

    Beauvoir um dos irrealizveis sartreanos. Ela afirma que o sujeito no pode ter uma

    experincia plena do ser velho, esta sera uma experincia irrealizvel em si prpria, e a

    velhice, a decadncia e a finitude so mais aspectos percebidos pelos outros, do que pelo

    prprio sujeito que envelhece. o olhar do outro que aponta nosso envelhecimento.

    Assim, o velho ser sempre o outro e tratamos de representar o que somos atravs da

    viso que os outros tm de nos.

    Lembremos do episdio acontecido com Freud quando tinha

    aproximadamente 63 anos, com o qual exemplifica o sentimento do estranho inquietante.

    Ele nos conta : Posso contar uma aventura semelhante que ocorreu comigo. Estava eu

    sentado sozinho no meu compartimento do carro-leito quando, devido a um violento

    solavanco do trem, a porta que dava para o banheiro anexo se abriu e um homem de

    uma certa idade, de roupo e bon de viagem entrou na minha cabine. Imaginei que ao

    sair do banheiro que ficava entre os dois, ele tivesse se enganado de direo e tivesse

    entrado por engano no meu compartimento. Precipitei-me para inform-lo do equvoco,

    mas percebi, completamente perplexo, que o intruso nada mais era do que minha

    33

  • prpria imagem refletida no espelho da porta de comunicao. Recordo-me ainda que

    esta apario me desagradou profundamente ( Freud 1919, pag 57)

    O conto A Outra, de Mariana Frenk Westheim, escritora mexicana ,

    tambm ilustra muito bem o tema que aqui nos ocupa:

    Um dia a senhora NTS se viu no espelho e se assustou. A mulher do

    espelho no era ela. Era outra mulher. Por um instante pensou que fosse uma

    brincadeira do espelho, porm descartou esta idia e correu a se olhar no grande

    espelho da sala. Nada. A mesma senhora. Foi no banheiro, no corredor, nos pequenos

    espelhinhos que carregava na sua bolsa, e nada. Aquela mesma senhora desconhecida

    estava l.

    Decidiu sentar e fechar os olhos. Sentia vontade de fugir para um lugar

    bem longe onde no pudesse se encontrar com aquela pessoa. Porm era mais prudente

    ficar por perto, no deix-la sozinha. Observ-la.

    Parou para refletir: quem poderia ser essa senhora? Talvez a que morou

    antes de mim neste apartamento?. Talvez a que morar aqui quando eu sair? Ou quem

    sabe, a mulher que eu mesma seria se minha me se tivesse casado com seu primeiro

    namorado? Ou quem sabe, a mulher que eu mesma teria gostado de ser?

    Lancei uma rpida olhada no espelho e decidi que no. De jeito nenhum

    eu teria gostado de ser essa senhora. Depois de pensar muito tempo, a senhora NTS

    chegou concluso de que todos os espelhos da casa tinham enlouquecido, agiam como

    atacados por uma doena misteriosa.

    Tentei aceitar a situao, no me preocupar mais, e simplesmente parar

    de me olhar no espelho. A gente pode viver muito bem sem se olhar no espelho. Guardei

    os pequenos espelhos de bolsa para tempos melhores, e cobri com panos os maiores. Um

    belo dia, quando por fora do hbito estava me penteando frente ao espelho do armrio,

    o pano caiu, e ali estava a outra me olhando, aquela desconhecida. Desconhecida?

    parece-me que j no tanto assim. Contemplo-a durante longos minutos. Comeo a

    achar que tem um certo ar de famlia. Talvez esta dama compreenda minha situao e

    por pura bondade tente se adaptar a mim, a minha imagem que por tanto tempo habitou

    meus espelhos.

    34

  • Desde ento , olho-me ao espelho todos os dias, a toda hora. A outra,

    no tenho dvidas, se parece cada vez mais comigo. Ou eu com ela? (Frenk Wenstein,

    1995)

    O velho sempre o outro em que no nos reconhecemos. A imagem da

    velhice parece sempre estar fora, do outro lado, e embora saibamos que aquela a

    nossa imagem, nos produz uma impresso de inquietante estranheza, o apavorante ligado

    ao familiar. Apavorante porque a imagem do espelho no corresponde mais imagem da

    memria; a imagem do espelho antecipa ou confirma a velhice, enquanto a imagem da

    memria quer ser uma imagem idealizada que remeta familiaridade do Eu especular.

    Quando o sujeito que envelhece diz: esse no sou eu, evidentemente nos

    diz que o rosto no qual ele poderia se reconhecer tranquilamente no aquele. Como

    dissemos no pargrafo anterior, o reconhecimento de que falamos no se refere a uma

    ignorncia do sujeito como tal, pois tanto o adolescente quanto o sujeito que envelhece

    sabem perfeitamente que aquela imagem lhes pertence, mas experimentam ante ela uma

    certa estranheza, um susto, como se a imagem fosse de outro: h uma falta de

    reconhecimento como imagem, no como sujeito. No o rosto que lhes corresponde.

    Aquele ali, o velho do espelho outro, no a representao conhecida por ele como

    seu prprio rosto; a representao conhecida de sua face ficou perdida, e em alguns

    casos, como na demncia, para sempre.

    Dona Fanny uma bela senhora de 75 anos. De inteligncia vivaz, gosta

    de conversar e se mantm ocupada em atividades prazeirosas; conserva sua autonomia e

    independnia graas a seu trabalho e desenvolve um vnculo saudvel com seus filhos e

    netos .Ela est satisfeita com sua imagem, no acha nada de errado com seu corpo, cuida

    da sua sade e doaspeto esttico, mas a estranheza se presentifica quando olha as

    fotografias da juventude, al percebe a diferena, como ela diz: ento era linda, era

    linda quando era o caroo, o centro da famlia, quando tinha filhos pequenos para

    criar; agora ela se sente amada, cuidada, mas no sou mais necessria, .... ela acredita.

    O rosto procurado ante o espelho (ou nas fotografias) coincide com aquele das fases de

    maior satisfao narcsica, fases que de um ou outro modo remeteriam iluso de

    completude do Eu Ideal, de s-lo todo. Quando o ideal fracassa, revela-se desde o

    simples descontentamento com a prpria imagem at o pior dos horrores, como acontece

    35

  • com Dorian Gray quando enfrenta seu retrato envelhecido e decrpito, como reverso de

    um ideal para sempre perdido (Wilde, 1989). Podemos ento pensar que, enquanto a

    criana se rejubila ante o espelho antecipando sua unidade corporal, o sujeito que

    envelhece se deprime, antecipando a decrepitude da velhice e a finitude da morte. Mas

    um sujeito bem harmonizado nas suas instncias psquicas encontra sempre como se

    defender das surpresas do espelho. Muitas vezes parece bastar um pequeno truque. Dona

    Maria outra de nossas entrevistadas de mais de 70 anos resolve a questo muito

    graciosamente: no usa os culos de olhar de perto.

    Este momento singular de estranheza ante a prpria imagem, que

    chamamos espelho negativo, acontece na maioria dos casos antes da velhice se instalar,

    entre os 50 e 60 anos; um fenmeno que anuncia a velhice em termos de esttica, e que

    vem acompanhado de outros, relacionados com a funcionalidade do corpo e com o

    significado social que cada cultura outorga a esta fase da vida. A sensao que a

    transformao acontece de repente, como se um relgio que marcava sempre a mesma

    hora comeasse a funcionar bruscamente. Observamos que geralmente existe um fator

    desencadeante como uma doena, uma perda, ou at um fato proveniente do social,

    algo que venha de fora e localiza ao sujeito em um novo tempo. sempre o outro que

    repentinamente nos nomeia velhos.

    Dona Elzie de 76 anos uma pessoa muito ativa, e de vida social

    intensa. Quando fala do corpo ela diz: Estava pensando nessa questo do corpo que

    muda. Como eu j disse para voc, eu sempre me olhei. No sei se curiosidade ou o

    que , mas nunca tive vergonha de me olhar, muitas mulheres tm vergonha de se olhar

    ento, quando se olham levam um choque. Eu no, eu acompanhei meu corpo, eu

    percebi as mudanas quando tive filhos, quando envelheci............. Eu tento passar isso

    para minhas filhas, vocs devem estar sempre se olhando que para no tomar choque,

    para no se deprimir e para se cuidar, no tem que se deixar decair. Olhar-se sempre,

    criticamente, fazer com que o espelho seja um aliado e no um inimigo, driblar os efeitos

    do espelho enganoso e alienante, uma soluo, mas no a nica para Dona Elzie, que

    na sua entrevista prope: verdade isso de pessoas que no se reconhecem. Acho que

    deveria haver nos centros de sade onde funcionam grupos de terceira idade,

    profissionais que desenvolvessem um trabalho com as pessoas de 40 a 50 anos, para

    36

  • orientar sobre como elas vo envelhecer, de que