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O CORPO COMO LUGAR DE UMA ESCRITA “O corpo conquista o território invisível da alma. Daí o ato. Você não tem nada com aquilo. Está saturado de imagens, elas o sustentam e o substituem, você sonha.” 1 Julia Kristeva Ao pensar o tema do corpo, lembrei das produções da Body art, movimento artístico iniciado nos anos 60. O corpo passou a ocupar o lugar do que antes era o da tela em branco, das esculturas. O artista realiza intervenções, performances com seu próprio corpo, utilizando inclusive vestígios humanos, como matéria para sua obra. Vou relatar alguns exemplos de obras de artistas que ilustram o tema: Marina Abramovic diz: Na performance realizada em 1975, denominada Thomas Lips: “Ela toma um litro de mel e vinho, quebra a taça com a mão e corta, com uma lâmina, o desenho de uma estrela na barriga. Depois, ela se autoflagela com um chicote e deita sobre placas de gelo sob um aquecedor que faz sangrar os ferimentos.” 2 Gina Pane, em 1974 realiza no espaço de uma galeria a seguinte performance denominada Psyché: " Ajoelhada no chão, a cabeça sobre o espelho, a artista nele reproduz seus traços, como uma espécie de maquiagem inscrita no vidro; depois, corta os supercílios com uma gilete, de modo que o sangue real acaba por realçar a imagem especular, fazendo-a reverberar.” 3 Marc Quinn, nos anos 90, realizou uma escultura de si intitulada “Self”: “É um auto-retrato, uma 1

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“O corpo conquista o território invisível da alma. Daí o ato. Você não tem nada com aquilo. Está saturado de imagens, elas o sustentam e o substituem, você sonha.”

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O CORPO COMO LUGAR DE UMA ESCRITA

O CORPO COMO LUGAR DE UMA ESCRITA

O corpo conquista o territrio invisvel da alma. Da o ato. Voc no tem nada com aquilo. Est saturado de imagens, elas o sustentam e o substituem, voc sonha.1 Julia Kristeva Ao pensar o tema do corpo, lembrei das produes da Body art, movimento artstico iniciado nos anos 60. O corpo passou a ocupar o lugar do que antes era o da tela em branco, das esculturas. O artista realiza intervenes, performances com seu prprio corpo, utilizando inclusive vestgios humanos, como matria para sua obra. Vou relatar alguns exemplos de obras de artistas que ilustram o tema: Marina Abramovic diz: Na performance realizada em 1975, denominada Thomas Lips: Ela toma um litro de mel e vinho, quebra a taa com a mo e corta, com uma lmina, o desenho de uma estrela na barriga. Depois, ela se autoflagela com um chicote e deita sobre placas de gelo sob um aquecedor que faz sangrar os ferimentos.2 Gina Pane, em 1974 realiza no espao de uma galeria a seguinte performance denominada Psych: " Ajoelhada no cho, a cabea sobre o espelho, a artista nele reproduz seus traos, como uma espcie de maquiagem inscrita no vidro; depois, corta os superclios com uma gilete, de modo que o sangue real acaba por realar a imagem especular, fazendo-a reverberar.3 Marc Quinn, nos anos 90, realizou uma escultura de si intitulada Self: um auto-retrato, uma cabea em cuja composio o artista injetou cinco litros de seu prprio sangue, instalada dentro de uma redoma, uma cmara refrigerada a 6C. Desligado o sistema de refrigerao, a escultura se dissolve, o sangue se liquefaz.4 Orlan, tambm nos anos 90, faz uma reflexo sobre a beleza, analisa certos cones da histria da arte e decide implant-los em seu prprio corpo: a testa de Monalisa, o queixo de Vnus, os olhos de Psyche, o nariz de Diana, a boca de Europa. Num segundo momento, interroga radicalmente tais padres cannicos da beleza, passando a desfigur-los para refigurar seu prprio rosto.5 Schwarzkogler, nos anos 60,transformou o nu artstico em exerccio de auto-mutilao: atingindo a sexualidade em seu mago, em uma de suas performances o artista fragmenta gradualmente o prprio pnis com uma navalha, como se quisesse se livrar de uma presena incmoda ou perturbadora, entregando-se a um processo de destruio que o levou morte aos 29 anos.6 O artista, ao realizar sua obra, nos convoca reflexo; ele, muitas vezes, captura verdades que nos escapam, revelando como a linguagem e o gozo esto se articulando. A arte contempornea, ao ter como foco o campo do tico, distanciando-se do esttico, nos ajuda na compreenso da subjetividade do nosso tempo, nos efeitos do discurso social sobre ns. Deslocando o lugar da imagem, apagam-se os limites entre a fantasia e a realidade; h um estranhamento, o unheimlich, gerador de angstia. O que nos parecia estranho , na verdade, familiar nossa vida psquica. Diante da ausncia de sentido, nos vemos como estrangeiros, desalojados do nosso lugar. Penso que hoje estamos, como psicanalistas, com inmeras interrogaes diante das mudanas que esto acontecendo na subjetividade, levando necessidade de repensarmos os conceitos e o modo de interveno na clnica. Partimos de um ponto: o que se modificou nas leis da linguagem, na relao do sujeito do desejo inconsciente, que era marcado pelo recalque? Melman7 coloca que h um desinvestimento do inconsciente, ele est perdendo a capacidade de fazer discurso. O objeto, acrescenta ele, est no campo da realidade, privilegia-se o gozo do objeto em detrimento do gozo flico. As conseqncias na subjetividade so inmeras, s pensarmos no modo como cada um dos gozos se organiza. O gozo flico nos possibilita somente gozar com o semblante do falo, j o gozo objetal nos permite pegar o prprio objeto real. O pnis como objeto real passa a ser um objeto parcial como os outros o so, o objeto oral, o anal, o escpico. Fica abolida, em relao ao gozo, a diferena dos sexos, favorecendo a bissexualidade. No tem mais importncia qual o sexo anatmico, ou talvez at imaginrio dos parceiros diz Melman. Quando na clnica comecei a escutar o relato de analisantes que arranhavam-se repetidamente, fazendo feridas e de outros, que se cortavam com objetos como faca, estilete, gilete at sair sangue, perguntei-me sobre o que estaria acontecendo com os jovens que os levava a marcarem-se no real do prprio corpo? Conversando com colegas, estes tambm relatavam casos semelhantes. Na mdia, comearam a aparecer reportagens sobre o tema, assim como em alguns filmes sobre a adolescncia: Garota Interrompida; Gerao Prozac; Aos 13. No Orkut, h inmeras comunidades com relatos de jovens que praticam o cutting, expresso utilizada para referir-se a essa prtica. Percebia que o corpo j vinha sendo utilizado como lugar de uma escrita, como, no caso da tatuagem, no uso de piercing, mas penso que h diferenas entre a tatuagem e o cortar-se do ponto de vista do psiquismo. Quando uma pessoa faz uma tatuagem, ela escolhe um desenho, um smbolo, uma palavra que de algum modo a representa, a singulariza, alm do fato de ser uma outra pessoa a lhe fazer a tatuagem. Desde o primeiro momento, h um endereamento a um Outro, algo dado a ver, uma marca que pode, em algumas situaes, adquirir um estatuto de significante, j que no h uma inscrio simblica do corpo. Ao ser olhada pelo espelho do Outro, sua prpria imagem lhe devolvida e, assim, constituda. A imagem especular, para se formar, depende da conjuno do corpo real, o orgnico, da imagem do Outro e da imagem que o Outro lhe devolve, organizando o corpo prprio, o eu, abrindo a possibilidade de o sujeito vir a se representar. A tatuagem, segundo Costa8 recorta uma espcie de olhar no prprio corpo: o que se tatua o olhar do Outro no corpo. Lacan, ao referir-se ao corpo simblico, usa a expresso corpo dos significantes. As falas que constituiro uma criana antes mesmo da sua concepo, referentes sua identidade, ao sexo, ao nome prprio, ao lugar na genealogia, ao meio social, vm somar-se s falas veiculadas pelos desejos dos seus pais, constituindo assim a alienao simblica do sujeito. Alguns significantes se inscrevero na memria psquica, outros sero gravados no corpo. Como sabemos, um corpo erogeneizado um corpo marcado pelo desejo. A estruturao psquica parte da leitura feita pela me do corpo do seu filho. Atravs de sua voz, do olhar, dos significantes do seu discurso, o corpo real do seu beb vai sendo inscrito. A me, ao interpretar suas manifestaes, constri hipteses, antecipando, desse modo, uma imagem necessria a sua estruturao. No momento em que a me reconhece a instncia flica, que ela deixa vazio o lugar do grande Outro, a criana pode aceder a um lugar de sujeito. ao reprimir o gozo do corpo ora recortado, marcado, que a inscrio simblica opera. Para que ele venha a ter um corpo que o represente ele, precisa fazer desse um corpo prprio. As bordas, os orifcios corporais, ora constitudos, seguem sendo refeitos ao longo da vida, como o so na adolescncia. O corpo, nessa fase, se presentifica, no s pelas inmeras transformaes pelas quais ele passa, mas tambm pelo fato de o adolescente ser convocado a assumir um novo lugar, uma posio sexuada, reorganizando as identificaes. Ele tinha, at esse momento, uma representao que o sustentava, agora precisar refazer as bordas, os orifcios corporais para que lhe possibilitem estabelecer uma nova relao ao outro. O que poderia ento estar contribuindo, seja no discurso familiar, seja no discurso social, que leva um jovem a cortar seu prprio corpo? Por que a inscrio simblica desse corpo no se opera? O que ele est endereando ao passar ao ato? Na busca de responder a essas interrogaes, pensei no lugar e na fora que a imagem tem hoje no social, na exposio constante do corpo na mdia, na presentificao excessiva desse corpo, que no deveria estar ali, mas ser recalcado. Somado a isso, h a exigncia de um corpo perfeito, tendo como referencial o das modelos. um corpo e uma beleza que poucas jovens possuem, levando-as a fazer dietas, plsticas, na tentativa de se aproximarem dessa imagem proposta. Somado a isso, para voc estar na moda, as roupas que voc deve vestir so as propostas pelos estilistas, de preferncia as das grifes, que funcionam como um signo de pertencimento a um grupo, como se fosse uma identidade. V-se aqui a excluso do sujeito; o vestir, que poderia ser um modo de se representar, perde em parte essa condio de funcionar como uma marca que lhe seria prpria. Pensei tambm na tatuagem; ser que, no momento em que ela passou a adquirir o status de moda, no perdeu em grande parte a funo que antes ocupava, de tentativa de uma inscrio que o singularizasse? Ao pensar acerca do discurso social, lembrei de uma outra forma de escrita dos adolescentes, a grafitagem, as pichaes dos prdios, dos muros das cidades. Eles em geral desenham algo figurativo, escrevem palavras que dizem alguma coisa do seu pensar, mesmo que no assinem sua produo. Gradativamente, na tentativa de dar voz a esses jovens, foram oferecidos lugares especficos na cidade, para produzirem o que foi reconhecido como uma manifestao artstica. Aqui se perdeu algo do que era antes uma produo realizada no anonimato. Eles o faziam em momentos nos quais no havia espectadores. Neste ano, jovens brasileiros tiveram sua obra exposta na fachada da Tate de Londres; eles foram convidados a pint-la. Houve, na verdade, um novo deslocamento da funo que antes ocupava o grafitar, que era o de marcar um lugar, um territrio. Para esses jovens, que foram reconhecidos, talvez signifique uma possibilidade de insero no social, mas para o que era proposto, no seria um espao de escrita perdido? Atualmente, o que vem sendo pichado nos muros so traos, uma espcie de nova escrita no passvel de ser lida, como se fosse um hierglifo. No seria essa uma resposta ao modo como o social a leu, apagando um modo singular de representao do adolescente? Uma ltima questo me auxiliou a pensar acerca do corpo como lugar de uma escrita: a virtualidade. Uma criana comea a ser vista atravs de uma tela antes mesmo do seu nascimento. Ao nascer, seu parto filmado, sua imagem estar sendo imediatamente enviada atravs do celular, do computador para o mundo. Penso nos possveis efeitos para uma me, ao se presentificar uma imagem antes que lhe seja possvel a inscrio de um lugar para esse filho. No estaria se perdendo um espao de maior proximidade da me com seu beb, um tempo de indiferenciao necessrio a sua estruturao, desalojando-a do seu lugar? A criana seguir sendo observada precocemente pelas cmaras instaladas nas residncias, nas escolinhas, como se no fosse mais possvel avaliar a adequao dos lugares e das pessoas que iro se ocupar da criana; ela no pode deixar de ser vista. Na adolescncia, e mesmo na infncia, os blogs e fotologs so criados e neles postadas imagens, experincias, que eram anteriormente registradas num dirio privado. A cada dia, segundo uma pesquisa realizada, so criados 120 mil blogs, at 2007 havia o registro da existncia de 70 milhes de blogs no mundo. O que hoje da ordem do privado? Como o jogo da presena e ausncia, to necessria estruturao psquica, poder ser exercido? Nada comunica menos de si do que um dado sujeito que, no final das contas, no esconde nada , coloca Lacan9. Sabemos a importncia do exerccio do jogo do fort/da para a constituio do simblico. Para um sujeito se constituir ele precisa se separar de um rgo para que funcione como smbolo da falta: O smbolo se manifesta em primeiro lugar como assassinato da coisa, e esta morte constitui no sujeito, a eternizao do seu desejo.10 Desde essa perspectiva, penso que algo na inscrio simblica do corpo, no recalque da lngua materna, fracassou, levando a um retorno do real do corpo. O sujeito passa a utilizar novas formas de escrita no seu corpo, numa tentativa de torn-lo um elemento de circulao, para que ele venha a ter condies de se representar e organizar sua relao ao Outro. O inconsciente o corpo, um corpo que necessita ser esburacado, os orifcios pulsionais, as bordas corporais precisam ser constitudas, para que o recalque se opere. Poderamos pensar que o adolescente, ao marcar o seu corpo, ao abrir um buraco no real do seu corpo, estaria buscando constituir uma borda, mas, na medida em que essa marca no simblica, ele vai voltar a repetir o ato. Fala de um adolescente: No consigo mais parar de me cortar, sei que s vezes estou me fazendo mal, mas o desejo mais forte do que eu. Marcar compulsivamente a pele uma escrita sem endereamento, uma marca que no se inscreve, que no cessa de no se inscrever. Ao no ser inscrito no simblico, o gozo sintomtico segue, interrompendo-se temporariamente quando, ao experimentar a dor fsica, h um alvio da angstia. Falas de adolescentes: Ador de um corte proporciona um breve esquecimento do sofrimento da alma; Adoro me cortar, a sensao de dor me causa um alvio to grande, que impossvel descrever apenas em palavras; Meus braos so um retalho... no quero realmente me matar... apenas aliviar as dores que no podem ser expressas em palavras. Marcar o corpo, como podemos verificar, vem no lugar de uma falha na representao. Penso que as mudanas nas leis da linguagem e na sua relao ao gozo, privilegiando o gozo objetal em detrimento do gozo flico, como situou Melman, traz dificuldades estruturao de um sujeito. Se um significante no tem mais a funo de representar um sujeito para um outro significante somos convocados a seguir o que o outro nos prope. Verifica-se hoje, a dificuldade que os adolescentes tm para se expressar e mesmo compreender um texto; algo falha na passagem do juzo de atribuio para o juzo de existncia, eles permanecem na ordem da sintaxe, no h deslizamento na cadeia significante. Um ltimo ponto a importncia que tem para o adolescente a inveno de uma marca que o singularize, o ter sua prpria assinatura. A presentificao excessiva do corpo no discurso social, o lugar que a imagem tem, a virtualidade, esto contribuindo para dificultar a busca de uma marca que o singularize. Soma-se a isso o fato de o nome prprio, que antes inscrevia um sujeito numa filiao, assegurando uma pertena, perdeu seu lugar. O nome prprio hoje se transformou numa marca que exclui o sujeito, como no caso das grifes. Ele passou a ser uma mercadoria. Essas mudanas aparecem tambm na escolha do prenome, os nomes escolhidos foram se modificando ao longo do tempo, de nomes de santos, de nomes de famlia, passam a ser escolhidos nomes de celebridades e, hoje, so nomes de mercadorias. No de estranhar que eles inventam nomes, novas identidades para si. Quais so as alternativas que um adolescente encontra para se representar quando seu corpo, ao invs de ser recalcado, se presentifica cada vez mais? Talvez o marcar o real do seu corpo seja uma tentativa de um exerccio pulsional, que lhe assegure uma forma de se representar, que o singulariza. No sinto dor nenhuma - diz uma jovem quando se corta -, porque a dor de dentro muito maior. Sinto alvio, e um tipo de alegria por saber que tenho algum poder sobre mim. Se um corpo no inscrito pelo significante, ele um corpo morto. A artista plstica Marina Abramovic, numa recente performance no Brasil, props uma nova interveno: Fazer cirurgia na alma. Izabel Joana Dal Pont

Psicanalista Referncias Bibliogrficas

1 KRISTEVA, Julia As novas doenas da alma Rocco, Rio de Janeiro, 2002, p.14 . 2 Artigo de MARTI, Silas Folha de So Paulo, 24/06/2008.3-6 FRAYZE-PEREIRA,Joo Pulso e simbolizao Arte contempornea e banalizao do mal: Corpo do artista, silncio do espectador In: Bartucci, Giovana (org) Psicanlise, Arte e estticas de subjetivao Imago, Rio de Janeiro, 2002.7 MELMAN, Charles Novas formas clnicas no incio do terceiro milnio, CMC, Porto Alegre, 2002.

8 COSTA, Ana A transicionalidade na adolescncia In: Adolescncia e experincias de borda Ed UFRGS , Porto Alegre, 2004.

9 LACAN, Jacques Lituraterra In: Outros Escritos, Zahar, Rio de Janeiro, 2003, p.25.10 LACAN, Jacques Funo e campo da palavra e da linguagem em psicanlise In: Escritos Zahar, Rio de Janeiro, 1998.

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