contra campo final

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1 Rearticulando a tradiªo: rÆpido panorama do audiovisual brasileiro nos anos 90 Angela Prysthon RESUMO Este artigo tem como propsito relatar as caractersticas mais marcantes da produªo audiovisual da dØcada de 90 no Brasil, concentrando-se mais na influŒncia da cultura mØdia no cinema e vendo alguns desses reflexos na televisªo e no teatro. A intenªo Ø identificar uma cultura que simultaneamente articula aspectos tradicionais e modernos, que negocia com conceitos cosmopolitas ps-modernos e noıes de um nacionalismo autoextico. Palavras-chave: Ps-moderno, identidade, cultura brasileira, midcult, produªo audiovisual ABSTRACT This essay intends to identify the most prominent characteristics of the Brazilian audiovisual production in the nineties, focusing on the influence of a middlebrow culture in the mainstream cinema, television ans theatre. Our purpose is to analyse this production through the light of a cultural movement that articulates simultaneously traditional and modern aspects, that negotiates cosmopolitan postmodern concepts and a autoexotic nationalism. Keywords Postmodern, identity, Cultural Studies, Midcult, audiovisual production Uma naªo, por exemplo, a esta altura Ø pouco definida pelos limites territoriais ou por sua histria poltica. Sobrevive melhor como uma comunidade hermenŒutica de consumidores, cujos hÆbitos tradicionais fazem com que se relacione de modo peculiar com os objetos e a informaªo circulante nas redes internacionais. NØstor Garca Canclini, Consumidores e cidadªos No Brasil, depois de uma dØcada na qual de certa forma nªo parecia interessar muito demonstrar ser brasileiro e a busca da identidade nacional reverberava numa espØcie de vazio, os anos 90 representam menos uma drÆstica mudana e mais um gradual amadurecimento do cosmopolitismo ps-moderno e uma retomada dos preceitos culturais elaborados pelo modernismo. Sªo muitos os fatores que contribuem para esta retomada. Mesmo influŒncias que poderiam ser consideradas marginais, imperceptveis. Primeiro, as prprias tendŒncias mundiais (paradoxalmente sadas dos centros metropolitanos) rumo a uma

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artigo sobre cinema brasileiro dos anos 90.

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    Rearticulando a tradio: rpido panorama do audiovisual brasileiro nos anos 90

    Angela Prysthon

    RESUMO Este artigo tem como propsito relatar as caractersticas mais marcantes da produo audiovisual da dcada de 90 no Brasil, concentrando-se mais na influncia da cultura mdia no cinema e vendo alguns desses reflexos na televiso e no teatro. A inteno identificar uma cultura que simultaneamente articula aspectos tradicionais e modernos, que negocia com conceitos cosmopolitas ps-modernos e noes de um nacionalismo autoextico. Palavras-chave: Ps-moderno, identidade, cultura brasileira, midcult, produo audiovisual ABSTRACT This essay intends to identify the most prominent characteristics of the Brazilian audiovisual production in the nineties, focusing on the influence of a middlebrow culture in the mainstream cinema, television ans theatre. Our purpose is to analyse this production through the light of a cultural movement that articulates simultaneously traditional and modern aspects, that negotiates cosmopolitan postmodern concepts and a autoexotic nationalism. Keywords Postmodern, identity, Cultural Studies, Midcult, audiovisual production

    Uma nao, por exemplo, a esta altura pouco definida pelos limites territoriais ou por sua histria poltica. Sobrevive melhor como uma comunidade hermenutica de consumidores, cujos hbitos tradicionais fazem com que se relacione de modo peculiar com os objetos e a informao circulante nas redes internacionais. Nstor Garca Canclini, Consumidores e cidados

    No Brasil, depois de uma dcada na qual de certa forma no parecia interessar muito demonstrar ser brasileiro e a busca da identidade nacional reverberava numa espcie de vazio, os anos 90 representam menos uma drstica mudana e mais um gradual amadurecimento do cosmopolitismo ps-moderno e uma retomada dos preceitos culturais elaborados pelo modernismo. So muitos os fatores que contribuem para esta retomada. Mesmo influncias que poderiam ser consideradas marginais, imperceptveis. Primeiro, as prprias tendncias mundiais (paradoxalmente sadas dos centros metropolitanos) rumo a uma

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    valorizao do ex-cntrico, do perifrico, do marginal (Bhabha, 1998). Todo os novos paradigmas filosficos e sociolgicos trazidos tona pelas teorias ps-coloniais, embora de maneira muito lateral e especfica, abalam hegemonias, ou dizendo melhor, redefinem o prprio conceito de hegemonia. Segundo, porque esses novos paradigmas (que podemos associar ao termo ps-modernidade) vo, entre outras coisas, demarcando uma poltica das diferenas que se apresenta no apenas como uma alternativa vanguarda (conceito em destroos), como tambm como possibilidade de configurao de uma teoria menos hierarquizada, mais aberta para a o estudo da contemporaneidade: os Estudos Culturais e, mais precisamente, os Estudos Culturais perifricos (Prysthon, 2001). A cultura brasileira nos anos 90 vai mostrando uma forte inclinao para o passado, vai se definindo como matria reciclada no apenas na teoria, mas na sua materialidade cotidiana. Muitas vezes essa rearticulao da tradio pode ser o sinal de uma nostalgia, o sintoma de uma saudade cultural: a afirmao de uma identidade nacional. Como tambm pode ser a explicitao de um dilogo dessa tradio com a modernidade, pode ser a subverso da idia de identidade nacional tendo em vista um cosmopolitismo ex-cntrico. O passado, a tradio, a Histria passam a ser material fundamental de todas as esferas da cultura brasileira talvez um pouco em oposio aos anos 80, quando o ps-moderno era predominantemente territrio da palavra impressa, aqui nos anos 90 h uma maior penetrao desse segundo ps-modernismo em todas as reas , especialmente da cultura popular: msica popular, cinema, televiso, teatro e mesmo literatura so invadidos por uma vontade de revisitar o que constitui a(s) diferena(s) da cultura brasileira. Todas essas transformaes sugerem um outro ps-modernismo, em oposio quele dos anos 80. Um ps-modernismo marcado por esses princpios de recuperao, de reciclagem, de retomada da tradio, da histria e do j-visto em oposio ao gosto pelo estrangeiro, pelo cosmopolitismo tradicional, pelo importado do ps-modernismo brasileiro da dcada anterior. Ou seja, recorre-se mais uma vez herana do cosmopolitismo dialtico dos modernistas, s proposies antropofgicas andradianas (Oswald), ao Brasil profundo de Mrio de Andrade, que j haviam sido reutilizados um pouco antes pelos tropicalistas dos anos 60 e 70.

    A retomada da tradio brasileira como parte de um cosmopolitismo ex-cntrico (Prysthon, 1999) e, mais especificamente, a redefinio da identidade cultural nordestina que emerge do mangue beat (movimento musical que surgiu em Pernambuco no incio da dcada de 90, no qual ritmos tradicionais e folclricos nordestinos eram mesclados ao rock e ao hip hop), por exemplo, vo ser encontradas igualmente em outras reas. O cinema brasileiro, por exemplo, v ressurgir como uma tendncia muito em voga o cinema do cangao, nordestern ou rido movie, no jargo dos anos 90. Entre os festivais de cinema de Gramado, Braslia, de 1996, e Recife, de 1997, so lanados trs filmes sobre cangaceiros: Corisco e Dad de Rosemberg Cariry, O baile perfumado de Lrio Ferreira e Paulo Caldas, e O cangaceiro, refilmagem do clssico de Lima Barreto de 1953, por Anbal Massaini Neto. A reviso do cangao (grupos de bandidos no serto nordestino, realizando emboscadas, assassinatos, roubos, desde o final do sculo XIX at as trs ou quatro primeiras dcadas deste sculo) implica necessariamente em uma reviso da imagem do nordeste.

    Se Corisco e Dad e O cangaceiro no alteram muito essa imagem (a seca, a brutalidade, a violncia nordestina), O baile perfumado enfoca o grupo de Lampio (o mais

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    conhecido e lendrio dos bandidos) sob uma tica inusitada: a da chegada da modernidade e do cosmopolitismo ao serto. O filme conta a histria do imigrante libans Benjamin Abraho, comerciante que filmou o bando de Lampio e da fascinao dos cangaceiros pela modernidade (representada pela cmara de Abrao) e pelo cosmopolitismo (perfume francs, usque escocs, enfim, os bailes perfumados).

    (...) o filme no propriamente uma renovao do gnero cangao, mas uma reflexo sobre a modernizao do Nordeste e sobre o papel da imagem (fotogrfica, cinematogrfica, simblica) nesse processo. (...) As peripcias de Abraho so um eixo privilegiado para expor as contradies do Nordeste (rural x urbano, serto x litoral, tradio x modernidade) num momento de rpida transio (dcada de 30). (Couto, 1998)

    O cangao faz parte de uma tendncia maior do cinema brasileiro dos anos 90, que a explorao de narrativas histricas. Assim como na literatura um pouco antes, o material historiogrfico serve como pea fundamental do discurso cultural ps-moderno brasileiro. Um dos filmes brasileiros de maior bilheteria na dcada, Carlota Joaquina (1994), da atriz e diretora Carla Camurati, mescla histria do Brasil Imprio com o pastiche do formato de um filme B de ao americano. Para contar a histria de Carlota Joaquina, me de Dom Pedro I, Camurati lana mo de recursos no-lineares: os dilogos so em ingls, espanhol, portugus e portunhol; o figurino deliberadamente caricatural, assim como a interpretao dos atores. A combinao utilizada por Camurati (carnavalizao, anarquia, subverso e histria) vai ser associada ao Tropicalismo do Cinema Novo dos anos 70 por Marcelo Coelho (1995) e considerada por cineastas brasileiros veteranos como Arnaldo Jabor como uma das alternativas para emergir da crise do cinema brasileiro:

    Eu acho que importante a gente falar que essa "crise do cinema brasileiro", junto com a tal da "internacionalizao da linguagem", pode nos levar a um certo ecumenismo. Um ecumenismo que mascara uma no-seletividade. Eu sou uma pessoa limitada, ento eu tenho preferncias, distines... Neste sentido, acho que, se a gente tem que fazer alguma coisa importante no cinema brasileiro, temos que fazer uma imagem original de ns mesmos. "Carlota Joaquina" uma imagem brasileira profundamente original.(apud Couto & Simantob, 1995)

    Outros filmes dessa corrente histrica ressaltando a convencionalidade da maioria desses filmes em contraposio a Carlota Joaquina incluem Lamarca (1994) e O que isso, companheiro? (1997), ambos sobre as guerrilhas na poca da ditadura, o ltimo baseado no livro de Fernando Gabeira e indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro; A Guerra de Canudos (1997), de Srgio Rezende, sobre o episdio descrito por Euclides da Cunha; For All (1998), de Luiz Carlos Lacerda e Buza Ferraz, sobre as reviravoltas ocorridas na vida da cidade de Natal (RN) com a construo de uma base militar norte-americana em 1943; Anahy de las Misiones (1997), de Srgio Silva, transferindo para a Revoluo Farroupilha (1835-45) a lenda de uma mulher dos pampas que vendia despojos de soldados mortos na Guerra Cisplatina. O consagrado diretor egresso do Cinema Novo, Nelson Pereira dos Santos, prepara um filme sobre o poeta Castro Alves: Guerra e liberdade Castro Alves em So

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    Paulo e uma verso televisiva de Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre para serem veiculados entre 1999 e 2000. No novo cinema dos anos 90, a histria pode entrar de maneira mais transversal, como nO Quatrilho (1995) de Fbio Barreto, o filho mais novo de Lus Carlos Barreto, irmo de Bruno Barreto, diretor de Dona Flor e seus dois maridos (1976), com um enredo inspirado por acontecimentos reais de duas famlias do Sul do Brasil no fim do sculo XIX, filme que tambm teve grande sucesso de bilheteria, maior ainda depois da indicao para Oscar de melhor filme estrangeiro em 1996. Possivelmente tentando traduzir a inclinao pela mincia, pelo cotidiano, pelo pequeno, proposta por uma nova Histria ps-moderna, O Quatrilho no chega exatamente a rearticular a tradio atravs do dilogo entre passado e presente esse dilogo, alis, est quase ausente no filme , e sim explorar at a saturao uma frmula de mercado, com sua esttica prxima das novelas da Globo (estrelas globais, atuao natural, iluminao chapada), com o slogan do bem-feito. Fbio Barreto continua nessa direo comercial e apostando cada vez mais no mercado internacional com o seu segundo longa, Bella Donna (1998). Baseado no romance Riacho Doce, de Jos Lins do Rego, Bella Donna utiliza a mescla de atores de novelas da Globo (Eduardo Moscovis) com atores hollywoodianos (Natasha Henstridge, Andrew McCarthy) mesmo que no muito conhecidos ou em baixa para chamar simultaneamente o pblico nacional e o internacional. Outro filme a utilizar lateralmente a histria seria Louco por cinema (1995), de Andr Luiz Oliveira, onde o protagonista, interno em um hospcio, quer completar o filme que havia interrompido h 20 anos, contactando toda a equipe de filmagem. Marcelo Coelho relaciona Louco por cinema com uma nostalgia das utopias da contracultura, com uma retomada obsessiva do passado na cultura brasileira dos anos 90:

    Aqueles remanescentes da gerao das drogas, do sexo livre e do flower power se reencontram, comeam a lembrar do filme; assitem a um trecho dele, que davam por perdido. (...) Misturam-se, desse modo, no filme, a alegria de reviver, ou relembrar, utopias j fora de moda as dos anos 70 e o impulso para esquec-las, para romper com uma nostalgia paralisante.(...) Louco por Cinema representa bem esse clima de revival, essas retomadas e oscilaes, esse misto de procura e negao do passado, que, sem dvida, e uma vez mais, estamos vivendo agora.(Coelho, 1995)

    Reemergem tambm as adaptaes literrias de poca, como Amor e Cia (1998), de Helvcio Ratton, que fazendo uma releitura brasileira de Ea de Queirs, transps o lugar da ao de Lisboa para as Minas Gerais oitocentistas. Tambm no territrio dos filmes de poca, a verso cinematogrfica do Triste fim de Policarpo Quaresma (1998), pelo cineasta Paulo Thiago, aprofunda ainda mais na rearticulao histrica e traz tona questionamentos sobre a tradio e a identidade nacionais. Quaresma, um pequeno funcionrio pblico do exrcito, defende com uma postura nacionalista um tanto quanto bizarra e inadequada, a adoo do idioma tupi-guarani como lngua oficial do Brasil. O diretor de Policarpo Quaresma justifica a escolha do romance atravs do anti-herosmo do seu protagonista e a suposta tradio de anti-heris na cultura brasileira:

    O personagem Policarpo Quaresma especialmente interessante por ser um anti-heri da nacionalidade. (...) Ele tem algo de Macunama

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    e de heri romntico. Os dois personagens, Macunama e Policarpo relacionam-se no imaginrio brasileiro. So duas espcies de mitos no-hericos, por desconstrurem a imagem sagrada e tradicional do heri, o que tem muito a ver com o homem brasileiro.(Thiago apud Barros, 1998:92-93)

    Dentro desse panorama geral do cinema brasileiro, importante sublinhar a trajetria do cineasta Walter Salles Jr. como emblema da passagem (gradual, certamente) do ps-modernismo brasileiro dos anos 80 para o dos anos 90, como ilustrao da substituio de um cosmopolitismo tradicional pela idia mesmo que implcita de cosmopolitismo perifrico. Salles lana A grande arte, seu primeiro longa-metragem, em 1990, com o qual consegue um relativo sucesso, fundamentalmente em escala nacional. Baseado no j citado romance homnimo de Rubem Fonseca, o filme a eptome de todo o iderio fundamentado nos anos 80, a saber, a esttica ps-moderna e um sotaque estilstico forosamente internacionalizado. Com os papis principais divididos entre atores estrangeiros no muito conhecidos, diga-se de passagem, como por exemplo o norte-americano Peter Coyote, o protagonista e um dos bandidos, o francs Tcheky Karyo e brasileiros, em locaes relativamente exticas (parte do filme passa-se na Bolvia), manejando uma linguagem cinematogrfica esteticista e ligeiramente yuppie, Salles empreende uma traduo que se, em termos de narrativa, no estritamente fiel ao livro que a originou, concretiza em imagens o ps-modernismo de Rubem Fonseca: uma verso requentada, pouco original e artificialmente cosmopolita do paradigma ps-moderno norte-americano. O seu segundo longa-metragem de fico, Terra estrangeira (1995), co-dirigido por Daniela Thomas, atenua esse yuppismo deslocado: embora a maior parte da narrativa localize-se em Portugal, o filme traz tona um comentrio sobre a identidade brasileira, provocado, forosamente, por uma situao de exlio. Terra estrangeira segue a trajetria de Paco, um descendente de imigrantes bascos, que aps certos eventos de maro de 1990 a morte de sua me e o confisco de poupanas pelo presidente Fernando Collor de Mello deixa o Brasil em busca de melhor sorte (como outros oitocentos mil brasileiros na mesma poca). Chega a Portugal e envolve-se com outra brasileira no exlio, Alex. A histria em si no realmente o mais fundamental no filme, e sim o tom melanclico dado discusso sobre identidade. Os dois personagens centrais lidam basicamente com uma profunda inquietao existencial, mas, em contraposio Grande Arte, j esto mais delineadas nessa obra preocupaes que transcendem uma classe mdia aspiracional: o racismo, a posio de colonizador de Portugal (que, alis, um pouco deturpada no caso das relaes com o Brasil, talvez para segurar certas liberdades tomadas pelo roteiro), a necessidade do exlio, a imigrao. Essas preocupaes, contudo, so tratadas com um olhar estetizante, so apresentadas como acessrios para um exerccio de estilo, para uma incurso pelo amor s imagens em si. Terra estrangeira foi fotografado em preto e branco para acentuar uma certa nostalgia evocando em alguns momentos o filme Limite de Mrio Peixoto ; a trilha sonora busca o equilbrio entre essas evocaes do passado (com a incluso da cano dos anos 70, Vapor Barato, de Jards Macal, por Gal Costa) e a opo por uma contemporaneidade alternativa (um dos personagens msico e toca free jazz); mesmo a escolha dos atores marcada por essa via dupla, o j conhecido e referenciado e o novo, o indito (o protagonista masculino, Paco, vivido pelo estreante Fernando Alves Pinto, e Alex interpretada pela ganhadora do

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    prmio de melhor atriz em Cannes de 1986 e uma das jovens atrizes mais respeitadas no Brasil, Fernanda Torres). , porm, com Central do Brasil (1998) que Walter Salles Jr. vai problematizar mais profundamente as questes relativas identidade, ao Brasil e mesmo aos seus temas recorrentes (exlio, viagens, solido):

    Redescobrindo a esttica do real, a narrativa sem ornamentos, a fala despojada e o exlio dentro do prprio pas, Walter Salles Jr. reencontra nesse filme o vigor que marca seu curta Socorro Nobre, documentrio que inspirou Central. Filmes sobre exilados imaginrios e reais (a presidiria, o artista Krajcberg de Socorro Nobre , a Dora que escreve cartas para analfabetos, o menino em busca do pai), que no meio do inferno vislumbram um paraso frgil e fugaz. (Bentes, 1998: 89)

    Central do Brasil concentra-se num Brasil mais real que o dos outros dois filmes, tanto do ponto de vista esttico como do social. Remontando temtica do Cinema Novo (os desvalidos, os subalternos), porm sem deixar de privilegiar os aspectos tcnicos do filme (imagem e som comparveis s grandes produes do cinema americano), Salles estaria atualizando o discurso do terceiro-mundismo (ou seja, uma maneira ps-moderna de falar da subalternidade, do perifrico) retirando dele o tom politicamente engajado, a esttica da fome e a tcnica propositadamente limitada. Nesse sentido, Central do Brasil revive outra tendncia forte do cinema brasileiro, que a tradio do anti-herosmo, da pequenez, da marginalidade. Dora, a mulher que explora analfabetos, mas se redime ao ajudar o pequeno Josu; o caminhoneiro solitrio; a gente do povo e sua religiosidade; os policiais corruptos; a cidade grande e seus vcios: toda uma galeria de personagens e subtemas que poderiam muito bem estar em desde O pagador de promessas, Vidas secas, Rio 40 graus at Bye Bye Brasil, O homem que virou suco ou Pixote. A distncia dos realizadores Cinema Novo em relao aos temas tratados nos filmes, tal como descrito por Paulo Emilio Salles Gomes1, repete-se em Central do Brasil: novamente estamos diante de uma obra claramente produzida pela elite sobre a pobreza. A grande diferena (e o que faz com que seja impossvel confundir esse filme com uma obra do Cinema Novo) que ele no est dirigido intelectualidade de classe mdia; est dirigido a um amplo mercado que ultrapassa as fronteiras regionais e mesmo nacionais. Convm marcar que a identidade nacional veiculada em Central do Brasil tem uma forte inclinao para o clich que indubitavelmente vai ser instrumento para a conquista dos mercados internacionais. Nessa busca de um Brasil mais brasileiro (dos analfabetos, do interior nordestino, das 1 Os quadros de realizao e, em boa parte, de absoro do Cinema Novo foram fornecidos pela juventude que tendeu a se dessolidarizar da sua origem ocupante em nome de um destino mais alto para o qual se sentia chamada. A aspirao dessa juventude foi a de ser ao mesmo tempo alavanca de deslocamento e um dos eixos em torno do qual passaria a girar nossa histria. Ela sentia-se representante dos interesses do ocupado e encarregada de funo mediadora no alcance do equilbrio social. Na realidade esposou pouco o corpo brasileiro, permaneceu substancialmente ela prpria, falando e agindo para si mesma. (...) A homogeneidade social entre os responsveis pelos filmes e o seu pblico nunca foi quebrada. (Sales Gomes, 1996, 102-103)

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    romarias, da seca, das viagens de nibus, dos caminhoneiros, etc), Salles se apia numa estrutura ligeiramente maniquesta e artificial de onde retirado qualquer conflito de classe. Como se as elites e as classes mdias no existissem no pas, como se por trs do analfabetismo alarmante do pas no estivesse uma srie de problemas econmicos e polticos derivados tambm desses conflitos de classes e interesses, Josu e Dora se deparam com viles muito especficos: como os traficantes de rgos ou a polcia violenta e corrupta que extermina os pequenos marginais da estao queima roupa. Apropriadamente, mais de um crtico de cinema viu nessa estratgia, a vontade de dialogar com o pblico internacional utilizando alguns elementos de fcil compreenso, de fcil identificao do pas.

    Elementos perifricos trama podem ser questionados como concesses percepo que estrangeiros tm do Brasil, ou seja, parecem ter sido trabalhados para o pblico de fora. H, por exemplo, uma execuo luz do dia de um ladro, ou uma alavanca de roteiro que vem na forma de traficantes de orgos infantis.(Mendona Filho, 1998)

    O mais relevante nessa constatao de um Brasil pra ingls ver talvez seja a prpria inevitabilidade desse procedimento. Se o artista pensa nas condies de sobrevivncia nos mercados globalizados, ele vai ter que necessariamente considerar o problema da identidade sob uma tica mais multifacetada, tocando o clich, apresentando a verso world culture do seu produto cultural o que no retira a possibilidade de se trabalhar criticamente os clichs, de se questionar mesmo de dentro a padronizao dessa world culture, algo que, desafortunadamente, no acontece em Central do Brasil. Superando os modismos ps-modernos altamente estilizados dos anos 80, o teatro tambm v o retorno de iniciativas mais originais no sentido da busca do nacional, de montagens mais brasileiras, mais prximas da tradio. O dramaturgo Ariano Suassuna, fundador do movimento armorial movimento cultural abarcando artes plsticas, literatura, teatro e msica que explora as razes ibricas da cultura popular nordestina e centra-se principalmente no imaginrio ligado ao sertanejo tem suas peas remontadas pelo diretor e artista plstico Romero de Andrade Lima (que encena geralmente obras relacionadas com o folclore nordestino) e publica em 1997 a adaptao em estilo literatura de cordel de Romeu e Julieta, tambm montada por Andrade Lima. A influncia do radical Suassuna (veemente crtico de qualquer influncia estrangeira, de qualquer mistura tropicalista ou mangue beat, com um discurso extremamente antimoderno e de certo modo tambm anticosmopolita) vai ser sentida em outros encenadores e artistas, como o ator, msico e diretor teatral Antnio Nbrega, fundador do teatro Brincante, em So Paulo. Criando um personagem na linha picaresca desenvolvida por Suassuna, o Tonheta, Nbrega tenta recuperar o popular no sentido muito prximo etnografia de Mrio de Andrade, como, alis, fica claro no espetculo musical Na pancada do ganz (1996), como explicitado pelo prprio Nbrega:

    Na pancada do ganz uma reunio de cantos tradicionais do povo brasileiro, canes minhas e de outros compositores pernambucanos. (...) Era o nome que ele daria ao conjunto dos registros musicais que fizera durante suas viagens ao Norte e Nordeste do Brasil, nos anos de 1927 e 1928. (...) Chico Antonio cantava e tirava versos na pancada do ganz. Disco e espetculo so dedicados memria de

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    Mrio de Andrade e Chico Antonio, cujo encontro revela e celebra um Brasil com o qual continuo sonhando.(Nbrega, 1996)

    A concepo armorial mais estrita da cultura brasileira ou, mais especificamente, da cultura nordestina implica na rejeio quase que absoluta do cosmopolitismo e da modernidade. A cultura popular no apenas a referncia mxima, como tambm permanece esttica, isolada nessa estratgia esttica de preservao. Entretanto, justamente por essa oposio to veemente, visvel na articulao contempornea do movimento uma configurao legitimamente ps-moderna: nessa busca pelo pr-moderno, a afirmao da identidade nacional atravs do autenticamente popular (preservado, puro) torna-se tambm afirmao do simulacro dessa autenticidade (j que impossvel). Quase em um outro extremo, tambm se v a volta ao epicentro da atividade teatral brasileira de Jos Celso Martinez Corra, o Z Celso, fundador do teatro Oficina nos anos 60 e mentor do Tropicalismo. Atravs da exasperao, da anarquia e de uma viso extremamente problematizada do Brasil e da modernidade, tambm representa um certo retorno tradio, embora mais ligado antropofagia oswaldiana e s utopias e ideologias dos anos 60. Z Celso pretende que o seu teatro tenha razes no s no popular, mas no espao de massas e no estabelecimento de mecanismos para manter-se no mercado cultural globalizado.

    Este repertrio aponta para o que aconteceu na Bahia, no Rio: o espetculo orgistico de multido e, ao mesmo tempo, acoplado televiso. No uma iluso. uma necessidade o teatro brasileiro encontrar um espao autnomo, dele, dentro da sociedade como ela , a sociedade de massa. (...) Ela, Sua Santidade, vem agora ao Brasil e foi beneficiada pela lei Rouanet. Est recebendo milhes em incentivo cultural. Os empresrios que investirem vo estar com Ela. Vo poder agitar os lenos com as suas marcas, e ter as suas almofadas. Eu tambm quero fazer esse teatro. Eu quero brincar com a ordem mundial.(Corra apud Frias Filho & S)

    Mesmo a televiso apropria-se desse impulso revisionista (tanto a reviso de tradies, como as mesmas sendo retrabalhadas para o mercado global) da identidade nacional, principalmente via literatura. A Rede Globo de Televiso lana sofisticadas adaptaes da literatura nacional em minissries ou nos episdios nicos de Caso Especial, como O Besouro e a rosa (1993), de Mrio de Andrade, dirigido por Guel Arraes, nos quais tcnica cinematogrfica, pantomima e linguagem circense vo inseridas no territrio mais limitado da televiso. Em 1998, Arraes dirige O auto da Compadecida, minissrie baseada na pea homnima de Ariano Suassuna (e que em 2000 vai ser lanada em pelcula com relativo sucesso nos cinemas do Brasil e do mundo), que talvez seja um dos pices da rearticulao da tradio na televiso brasileira: a linguagem popular, o cordel, os regionalismos equacionados junto a formas mais experimentais de direo, atuao e tcnica televisivas. Na dcada de 90, vrios exemplos da fico contempornea so traduzidos em linguagem televisiva: O sorriso do lagarto de Joo Ubaldo Ribeiro, Memorial de Maria Moura (1994) de Raquel de Queirs, Agosto (1993) de Rubem Fonseca, Hilda Furaco (1998) de Roberto Drummond, ou, seguindo um filo mais tradicional, Dona Flor e seus dois maridos (1998) de Jorge Amado. Mesmo as novelas so pontilhadas por referncias ao Realismo Mgico, ao folclore, s tradies populares regionais. A Rede Manchete, por exemplo, anuncia a novela

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    Ana Raio e Z Trovo (1991), centrada sobre a vida de artistas mambembes no interior do sul do pas, com o slogan o Brasil que o Brasil no conhece. A tradio e a identidade nacional vo ser quase diretamente temas constantes de Brasil Legal, programa semanal de variedades veiculada entre 1994-96, tambm da Rede Globo, onde so apresentados aspectos alternativos, pouco conhecidos e anti-hegemnicos da cultura brasileira. O que levou o seu produtor e editor, o antroplogo Hermano Vianna, a reconhecer as contradies inerentes em se trabalhar para a Rede Globo, mas simultaneamente acreditando nas possibilidades de descentralizao dentro de um sistema extremamente centralizado e centralizador:

    A Globo no a estrutura homognea que parece vista de fora. Ningum fica de olho nas minhas pautas. Se eu acho o que o boi-bumb de Parintins bacana, falo sobre ele no prximo programa. (...) A situao certamente confusa. Mas talvez por isso mesmo seja interessante jogar com ela. Ou prefervel no ver o Fred 04 falando no horrio nobre com 36 pontos de Ibope? Confesso que no tenho as respostas. De qualquer maneira: as tendncias centralizadoras vo sempre conviver com as descentralizadoras. Pelo menos acho que foi isso que aprendi com Deleuze e Guattari.(Vianna, 1997).

    Fazendo uma brevssima sntese da cultura audiovisual brasileira nas ltimas dcadas, teramos, ento, esse primeiro ps-moderno o dos anos 80 que assimila o discurso do ps-modernismo (principalmente norte-americano) e os aspectos mais superficiais da ps-modernidade (at por sua condio de pas perifrico, de modernizao lenta e incompleta) para contrapor-se ao nacionalismo retrgrado, ao autoexotismo folclorizante. Assim, o segundo ps-moderno brasileiro vai tentar refazer a equao modernista e rearticular a identidade nacional juntamente com a conscincia da globalizao cultural. H, porm, vrias diferenas em relao ao modernismo ou ao Cinema Novo, por exemplo. A primeira delas que j no necessrio o gesto de ruptura com uma esttica anterior (nem com nenhuma outra esttica). Tambm no se trata de uma vanguarda lanando idias originais: a idia de rearticulao da tradio e da identidade nacional com uma roupagem globalizada no s faz parte do establishment, como assegura o funcionamento do mercado cultural no Brasil de hoje. Podemos dizer, portanto, que a cultura brasileira (o audiovisual includo) parece colocar permanentemente em funcionamento uma espcie de dialtica do cosmopolitismo. Que talvez pretenda apresentar como sntese uma permanente oscilao entre a negao das diferenas (portanto, a afirmao e a prescrio do cnone ocidental) e sua articulao consciente para o redimensionamento desse cnone.

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    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BARROS, Andr Luiz.O irnico renascer de Policarpo, Bravo, maro de 1998, ano I, n6, pp.92-93. BENTES, Ivana. O serto romntico dos exilados, Bravo, maro de 1998, ano I, n6, p.89. BHABHA, Homi K.. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. CANCLINI, Nstor Garca. Consumidores e cidados. Conflitos multiculturais da globalizao. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. COELHO, Marcelo. Cinema brasileiro procura e nega o passado, Folha de So Paulo, 17 de maio de 1995.

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    Angela Prysthon professora do Programa de Ps-graduao em Comunicao da Universidade Federal de Pernambuco. Doutorou-se em Teoria Crtica e Estudos Hispnicos e Latino-Americanos pela Universidade de Nottingham, Inglaterra, em 1999, com a tese Peripheral Cosmopolitanisms: Aspects of Brazilian Postmodernist Culture 1980-1999. co-autora de Brazil and the Discovery of Amrica Narrative, History, Fiction (Edwin Mellen Press,1996), Identidade (s) (Editora da UFPE,1999) e Um projeto inacabado: identidades latino-americanas no ensaio do sculo 20 (Bagao, 2001).