contra-antropologia, contra o estado: uma entrevista com eduardo viveiros de castro

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REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 146 CONTRA-ANTROPOLOGIA, CONTRA O ESTADO: UMA ENTREVISTA COM EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO COUNTER-ANTROPOLOGY AGAINST THE STATE: AN INTERVIEW WITH EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO Entrevista realizada por Paulo Bull * Autor de conceitos como perspectivismo, afinidade potencial e equivocação controlada, entre outros, Eduardo Viveiros de Castro contribui à teoria antropológica há mais de 30 anos. O professor do Museu Nacional-UFRJ, já lecionou na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) e nas universidades de Chicago e Cambridge. Nesta inédita entrevista que se seguirá, concedida a um aluno de graduação em Ciências Sociais do IFCS-UFRJ, Viveiros de Castro faz uma análise de seus principais conceitos, além de compartilhar suas inspirações teóricas e pessoais e seu ponto de vista de sua obra como um todo – perpassando desde sua formação em Etnologia, nos tempos de pesquisa de campo com os Araweté, até sua aproximação com a Filosofia, tendo em vista a publicação dos livros Methaphysics Caniballes (2009) e Ensaios sobre o fim do mundo (2014), este último publicado em coautoria com a filósofa Débora Danowski. * * * Revista Habitus: Boa tarde, Eduardo Viveiros de Castro. Gostaríamos primeiramente de agradecê-lo por aceitar o convite dessa entrevista. Para abrir a entrevista, gostaria, por gentileza, que o senhor nos dissesse como se deu seu interesse pela Antropologia, ainda como estudante de Ciências Sociais na PUC. Eduardo Viveiros de Castro: Já contei tudo isso em diversas entrevistas. Mas para quem nunca as leu, e tiver algum interesse nessa desinteressante biografia de um acadêmico da classe média carioca... Enfim. Fui fazer Ciências Sociais um pouco por acaso, mas não completamente por acaso. Me formei no ensino médio em 1968, quando o mundo estava pegando fogo, e o Brasil também. 68 é o ano da morte de Edson Luiz, da Marcha dos Cem Mil, o momento do AI- 5. Quando entrei para a PUC, as universidades públicas estavam destruídas por causa das

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CONTRA-ANTROPOLOGIA, CONTRA O ESTADO:UMA ENTREVISTA COM EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

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  • REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 146

    CONTRA-ANTROPOLOGIA, CONTRA O ESTADO:

    UMA ENTREVISTA COM EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

    COUNTER-ANTROPOLOGY AGAINST THE STATE:

    AN INTERVIEW WITH EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

    Entrevista realizada por Paulo Bull *

    Autor de conceitos como perspectivismo, afinidade potencial e equivocao controlada, entre

    outros, Eduardo Viveiros de Castro contribui teoria antropolgica h mais de 30 anos. O

    professor do Museu Nacional-UFRJ, j lecionou na cole des Hautes tudes en Sciences

    Sociales (Paris) e nas universidades de Chicago e Cambridge.

    Nesta indita entrevista que se seguir, concedida a um aluno de graduao em Cincias

    Sociais do IFCS-UFRJ, Viveiros de Castro faz uma anlise de seus principais conceitos, alm

    de compartilhar suas inspiraes tericas e pessoais e seu ponto de vista de sua obra como um

    todo perpassando desde sua formao em Etnologia, nos tempos de pesquisa de campo com

    os Arawet, at sua aproximao com a Filosofia, tendo em vista a publicao dos livros

    Methaphysics Caniballes (2009) e Ensaios sobre o fim do mundo (2014), este ltimo publicado

    em coautoria com a filsofa Dbora Danowski.

    * * *

    Revista Habitus: Boa tarde, Eduardo Viveiros de Castro. Gostaramos primeiramente de

    agradec-lo por aceitar o convite dessa entrevista. Para abrir a entrevista, gostaria, por

    gentileza, que o senhor nos dissesse como se deu seu interesse pela Antropologia, ainda como

    estudante de Cincias Sociais na PUC.

    Eduardo Viveiros de Castro: J contei tudo isso em diversas entrevistas. Mas para quem

    nunca as leu, e tiver algum interesse nessa desinteressante biografia de um acadmico da classe

    mdia carioca... Enfim. Fui fazer Cincias Sociais um pouco por acaso, mas no completamente

    por acaso. Me formei no ensino mdio em 1968, quando o mundo estava pegando fogo, e o

    Brasil tambm. 68 o ano da morte de Edson Luiz, da Marcha dos Cem Mil, o momento do AI-

    5. Quando entrei para a PUC, as universidades pblicas estavam destrudas por causa das

  • ENTREVISTA | EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO: CONTRA ANTROPOLOGIA...

    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 147

    cassaes, das perseguies polticas, e ento a universidade pblica estava, nas reas do

    Pensamento social, Sociologia, Economia, etc., completamente arrasada.

    A PUC era a Universidade que estava, naquela poca, abrigando professores que tinham

    sido cassados pela ditadura ou que tinham problemas em se empregar na universidade pblica

    porque tinham algum tipo de atividade poltica clandestina na poca. Na verdade eu entrei na

    PUC no vestibular de Jornalismo, mas j no primeiro ano, chamado ciclo bsico (que naquela

    poca, no sei se ainda existe isso, era o ano em que todo mundo da mesma grande rea de

    conhecimento fazia as mesmas matrias) eu me interessei pelos cursos de Cincia Poltica e

    Sociologia e ento fui fazer Cincias Sociais. Mas a sociologia que se fazia na poca era a

    sociologia de Fernando Henrique Cardoso, da teoria da dependncia, da troca desigual, do

    colonialismo, das formas de transio para o capitalismo (ou para o socialismo), da questo

    bizantina de decidir se o Brasil era parcialmente feudal ou j integralmente capitalista, se o

    campesinato tinha possibilidades revolucionrias etc. Tudo isso estava muito ligado a uma

    teoria da Revoluo. A esquerda brasileira discutia qual seria o melhor modo de se fazer a

    revoluo, e a militncia clandestina armada era uma das respostas disponveis (ou vrias,

    conforme se queira distinguir as correntes) sobre como se deveria fazer a revoluo. A outra

    resposta era a do Partido, que era contra a luta armada. Todas as respostas, enfim, envolviam

    pressupostos que me deixavam frio embora eu tenha mudado um pouco de pensamento,

    talvez, nos ltimos anos. Uma questo que me incomodava muito, em particular, que todas as

    teorias da revoluo falavam sobre o que ns (ou seja, quem tomar o poder) vamos fazer com o

    Brasil quando tomarmos o poder. Parecia-me uma discusso interna s elites intelectuais, um

    debate entre fraes da classe mdia universitria com maior ou menor relao com os

    movimentos populares, mas sempre em posio de sobrevo vanguardista em relao a eles.

    Esse incmodo se dava porque eu j estava comeando (desde 67 e 68) a me interessar

    por outras formas de pensar a vida poltica, que no fosse por via do Estado ou dos partidos

    polticos. Enfim, havia um estalinismo atmosfrico, repressivo e paranico, um tipo de

    militncia profundamente puritana, paternalista e racista inclusive, em relao populao,

    classe operria e sobretudo aos povos tradicionais ndios, ribeirinhos, seringueiros e, por

    ltimo mas no por menos importante, em relao ao Lumpenproletariat, a vasta populao

    de marginais urbanos. Tudo isso me incomodava, ento eu no conseguia me inserir nesse

    ambiente, embora eu tivesse amigos na esquerda clandestina. Eu simplesmente no conseguia

    me sintonizar existencialmente com essa atmosfera.

    A chamada sociologia do Brasil, que predominava na PUC de minha poca, me

    entediava. Foi assim que comecei a fazer cursos de sociologia da literatura. Na verdade, j no

    ensino mdio eu tinha um interesse por literatura e pela arte. Eu era amigo de vrias pessoas do

    ambiente underground do Rio, isto , o meio do experimentalismo artstico e o mundo

    bomio em que ele estava imerso. Quando fui fazer um curso eletivo de sociologia da literatura,

    encontrei o modo de conciliar meu interesse pela Cincias sociais, pelo pensamento social, pela

    filosofia social e Poltica, com meu interesse pela arte experimental e sua subcultura.

  • ENTREVISTA | EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO: CONTRA ANTROPOLOGIA...

    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 148

    O curso de Sociologia da Literatura foi ministrado por um professor que havia sido

    cassado na universidade pblica, Luiz Costa Lima - um pernambucano (maranhense-

    pernambucano, na verdade) que tinha em seu currculo uma histria de colaborao formativa

    com Paulo Freire, e que trabalhava no Departamento de Cincias Sociais da PUC. Ele estava

    acabando sua tese de doutorado sobre as relaes entre o estruturalismo e a teoria literria; seu

    curso consistia em uma leitura minuciosa das Mitolgicas, de Lvi-Strauss, e envolvia a leitura

    das obras anteriores do autor guisa de preparao. Aquela era a poca em que o estruturalismo

    de Lvi-Strauss influenciava diversas outras reas, notadamente o marxismo (Althusser), a

    psicanlise (Lacan), a filosofia (Lyotard, Deleuze) e a teoria literria (Barthes, Genette).

    Ao ler as Mitolgicas, fiquei fascinado com Lvi-Strauss, com os mitos indgenas, mas

    sobretudo fiquei fascinado porque eu no sabia no sentido forte de saber, como algo mais

    do que ter notcia que existiam ndios no Brasil. Eu estava no terceiro ano de Cincias

    Sociais e a Sociologia que se ensinava na universidade simplesmente ignorava a existncia de

    ndios no Brasil. A tal da burguesia nacional, a classe operria e o enigmtico campesinato

    definiam a estrutura social brasileira e o horizonte da Revoluo. ndio, literalmente, no

    existia. O que se sabia de ndio era pelas matrias folclricas (fotos de ndios pelados, aventuras

    na selva etc.) das revistas ilustradas como O Cruzeiro e a Manchete, e por eventuais matrias no

    Caderno B do Jornal do Brasil, matrias de contedo cultural e no poltico. O ndio no era

    um personagem poltico. Os ndios eram fsseis vivos, seres arcaicos, exticos, bizarros,

    estranhos, belos e/ou repugnantes como animais selvagens. Ao ler a obra Lvi-Strauss, comecei

    a descobrir que aqueles caras estavam vivos, que aquelas pessoas que estavam contando aqueles

    mitos eram gente que vivia no Brasil, na Amaznia, na Amrica do Sul, e que eles tinham algo na

    cabea. Algo que me interessou imediatamente muito mais que o tenentismo, a revoluo de 30

    ou a questo das formas de transio para capitalismo

    Entrei na Antropologia, ento, por Lvi-Strauss: pela anlise lvi-straussiana dos mitos.

    Quando terminei o curso de cincias sociais eu estava pensando em fazer um mestrado em

    Letras, mas Costa Lima me alertou que os mestrados em Letras no Rio eram muito fracos... O

    melhor a ser feito, segundo ele, era ingressar na ps-graduao em Antropologia no Museu

    Nacional, que tinha um programa, segundo ele, muito bom. O PPGAS tinha sido criado em

    1968; estvamos em 1972 ou 73. Foi assim que conheci o Museu Nacional aonde nunca tinha

    posto os ps... Acho que de So Cristvo s conhecia a Mangueira, por motivos, digamos assim,

    comerciais.

    Naquele tempo eu fazia com o Costa Lima uma espcie de iniciao cientfica. No

    existia isso na poca, mas eu era um assistente dele. Foi assim que acabei lendo os quatro

    volumes das Mitolgicas (seus cursos regulares no passaram dos dois primeiros volumes),

    entre outras coisas. Colaborei, por exemplo, em uma anlise da novela Buriti, de Guimares

    Rosa, que Costa Lima publicou. Na casa dele reunia-se um grupo de estudos sobre Lvi-Strauss,

    que contava com uns 3 ou 4 alunos, colegas meus, alm de outros amigos de Costa Lima (como

    o poeta Sebastio Ucha Leite e o padre-filsofo Paulo Meneses). Foi assim que comecei a me

    interessar pelos mitos, e consequentemente pelos ndios que contavam os mitos.

  • ENTREVISTA | EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO: CONTRA ANTROPOLOGIA...

    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 149

    Entretanto, quando cheguei no Museu, estava um pouco perdido. No estava mais to

    interessado nos ndios no ano em que entrei no Museu, embora houvesse me interessado pela

    Antropologia por causa dos ndios, anos antes. Eu estava pensando, na verdade, em fazer

    trabalho de campo com um grupo que conhecia pessoalmente, ou seja, o meu prprio crculo

    social: o pessoal do experimentalismo existencial o povo da arte, do cinema, da poesia

    marginal, do rock, das drogas, da revoluo sexual. Eu queria fazer uma tese sobre o uso das

    drogas por minha gerao, e a relao ao mesmo tempo prxima e radicalmente divergente

    entre este milieu e a militncia poltica da gerao imediatamente anterior (e/ou dos membros

    um pouco mais velhos da minha gerao). Eu estava interessado em entender a minha prpria

    opo existencial, aquela por uma forma de vida que poderamos chamar de a outra esquerda

    (uma outra esquerda possvel), uma esquerda para a qual a poltica no passava pela disputa

    do poder de Estado, mas pela desero normativa por uma prtica contracultural que

    considervamos como mais radical, mais englobante, que uma oposio poltica, mesmo

    armada. Tudo isso envolvia uma dimenso tico-esttica forte, uma discusso poltica

    formulada em termos culturais. Essa discusso poltico-cultural passava por uma discusso de

    poltica poltica, porque boa parte do pessoal da militncia armada clandestina era

    completamente contra tudo aquilo que fazamos e de que gostvamos; eles era muito mais

    tradicionalistas do ponto de vista existencial (esttico, tico, pessoal, sexual etc.). Eram a favor

    do chamado nacional-popular, da cultura popular, entenda-se o samba, o folclore, a arte

    com mensagem etc.; e consideravam o pessoal da guitarra e das drogas um pessoal alienado,

    pequeno-burgus, colonizado pelo imperialismo ianque. Mas na verdade s tinha pequeno-

    burgus nessa histria, dos dois lados.

    Esse nosso pessoal alienado das drogas tinha um outro tipo de contato com o

    chamado povo, contato esse que no passava pela identificao com a classe operria modelo.

    Passava, sim, por uma certa frequentao do povo da favela, daqueles moradores (poucos,

    claro) das favelas ligados ao comrcio de drogas, vida louca ou seja, a marginlia. Isso

    implicava ir conhecendo a vida nos morros, e as formas de sociabilidade caractersticas dali, que

    extravasavam o rpido contato mercantil com os vapores (os vendedores de droga,

    especialmente maconha). Havia assim uma certa experincia do povo que passava por uma

    certa aliana entre a rua e o morro, a arte de vanguarda e a cultura popular carioca, alianca cujo

    smbolo era, para ns, Hlio Oiticica, figura que funcionou como farol e mentor de meu grupo

    de amigos com pretenses intelectuais e artsticas.

    Mas no romantizemos, naturalmente... Isso dito, de certa maneira, tal aliana se v

    hoje reaparecendo com as manifestaes de rua nas quais juntam a juventude massacrada das

    comunidades e a juventude de classe mdia mais aguerrida, para enfrentar a mquina policial,

    cada vez mais militarizada, mais fascista e mais descaradamente assassina. H um certo

    ressurgimento de uma aliana prtica-ideolgica entre uma juventude pobre e uma muito

    menos pobre, em torno de uma repulsa comum aos aparelhos repressivos de Estado.

    Vim ao Museu Nacional, ento, em 1975, pensando em estudar a cultura do consumo de

    drogas, a cultura psicodlica e as novas formas de sociabilidade a ela associadas.

  • ENTREVISTA | EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO: CONTRA ANTROPOLOGIA...

    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 150

    Revista Habitus: Voc chegou a fazer etnografia sobre essas novas formas de sociabilidade?

    EVC: Eu no cheguei, de fato, justamente porque eu vivia nesse ambiente. Comecei a fazer algo

    semi-estruturado, mas isso no durou nem um ano. A partir de 1975 eu comecei a estudar

    antropologia pra valer, como aluno do mestrado do PPGAS (que tinha apenas mestrado, naquela

    poca; o doutorado s comeou em 1977, fui o segundo doutor a defender tese no PPGAS, em

    1984). Antes, eu s lera Lvi-Strauss, e muitas outras coisas que, do ponto de vista do que se

    ensinava no Museu, pouco tinham a ver com antropologia: semitica, teoria literria, filosofia,

    lingustica.... No entendia nada de antropologia social, a no ser aquela feita por Lvi-Strauss,

    de quem eu tinha lido praticamente tudo. E ento comecei a ler os autores que antroplogos

    lem: Malinowski, Boas, Sapir, Radcliffe-Brown, Bateson, Fortes, Firth, Evans-Pritchard,

    Sahlins etc. Foi quando , e porque, comecei a estudar Antropologia para valer que eu sa do

    grupo que eu frequentava. No tinha tempo de ficar o tempo todo na rua, ou nas festas, no Baixo

    Leblon, chapado de Mandrix (aposto que vocs nem sabem o que isso...) ou ligado de p.

    Comecei a passar de 8 a 12 horas por dia lendo e estudando.

    Ento conheci Roberto DaMatta, quem foi meu professor no primeiro ano. Eu era

    orientando do Gilberto Velho, visto que tinha um projeto na rea de antropologia urbana, mas

    comecei a me interessar pela teoria do parentesco e a antropologia clssica que o DaMatta

    ensinava em seus cursos. Havia um aspecto meio formal, matemtico, e eu gostava desse tipo de

    coisa, com a qual j tinha tido contato por via dAs estruturas elementares de Lvi-Strauss, que

    lera na faculdade. Surgiu-me, ento, uma oportunidade de eu visitar o Xingu: uma linguista do

    Museu, Charlotte Emmerich, convidou meia dzia de alunos para ir com ela passar 15 dias de

    frias no Xingu. Como eu estava de saco cheio de meu trabalho em antropologia urbana, aceitei

    o convite.

    Quando cheguei ao Xingu, eu tinha uma viso do Brasil totalmente livresca, muito

    abstrata. No tinha ideia de como era o interior do Brasil, o cerrado, a Amaznia. Eu era um

    carioca bacana da praia, Zona sul, classe mdia alta, que via o mundo a partir disso. Quando

    cheguei no Xingu, fiquei absolutamente maravilhado. O ambiente do Xingu, os ndios, a luz, os

    rios, a paisagem, tudo. Era uma coisa espetacular. Os ndios do Xingu so especialmente

    espetaculares, do ponto de vista visual. Fiquei fascinado por aqueles ndios de vitrine, que ao

    vivo eram muito mais interessantes do que na vitrine isto , nas reportagens dO Cruzeiro e da

    Manchete e decidi: isto que eu quero estudar.

    Roberto DaMatta era o etnlogo do Museu na poca, e decidi ento que iria trabalhar

    com ele. Entrei em 1974 aqui como aluno de mestrado, e todos os outros etnlogos tinham ido

    para Braslia. Roberto Cardoso de Oliveira, Julio Cesar Melatti, Roque de Barros Laraia, todos

    estavam em Braslia. Minha dissertao de mestrado foi defendida aqui em 77, foi a 37 tese de

    mestrado defendida no Programa e apenas a segunda que tratava de ndio. As outras teses eram

    sobre campesinato, operariado, ou sobre questes urbanas.

  • ENTREVISTA | EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO: CONTRA ANTROPOLOGIA...

    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 151

    Tendo feito a dissertao sobre os Yawalapiti, no voltei para o Xingu quando acabei o

    mestrado porque precisava de emprego, e o Museu estava comeando o doutorado no havia

    doutorado em antropologia social no Brasil nesta poca. Em 1977 comeou abrir o doutorado,

    mas nessa poca eu no sabia se queria ficar no Brasil ou ir estudar antropologia social de

    verdade na Gr-Bretanha. Consegui uma bolsa para Oxford, para fazer o doutorado com Peter

    Rivire, mas acabei decidindo ficar e prestar um concurso para professor no Museu Nacional

    garantir um emprego me pareceu mais importante do que passar 5 anos fora e voltar sem saber

    se conseguiria trabalho. Acabei passando no concurso para professor-assistente e tambm para

    o doutorado recm-inaugurado. Meu orientador de doutorado veio a ser Anthony Seeger, que

    acabara de chegar no Brasil. Ele vinha de Chicago, aluno do Terry Turner, era do mesmo grupo a

    que o DaMatta pertencia, o pessoal que trabalhava sob a orientao de David Maybury-Lewis,

    sobre os J do Brasil Central. Tony era membro jnior (orientando de um membro, na verdade)

    do projeto Harvard Central Brazil, junto com o DaMatta, com o Melatti, e outros. Para esse

    grupo, ndio significa os povos indgenas do Brasil Central.

    Foi bom trabalhar com Etnologia. Eu tinha um projeto de ir para os Tukano, no Rio

    Negro, mas, no me lembro por que, no deu certo. Depois fui ao Acre, para os Kulina, trabalhar

    em um projeto da Funai de demarcao. No deu certo. Depois fui para os Yanomami, em 1979,

    com minha ento companheira Iara Ferraz, tambm antroploga. Gostaria muito de ter feito

    meu campo l, mas a aldeia mais prxima na regio onde eu escolhera trabalhar, na Serra de

    Surucucus, ficava a nove horas de caminhada do posto indgena e da pista de aviao, subindo e

    descendo morros ngremes no meio da mata fechada. At a tudo bem. S que os Yanomami no

    carregavam nada pra voc, ou seja, ns carregvamos toda nossa comida, rede, apetrechos,

    panelas etc. nas costas, na mochila, uns 25 quilos.... Quando chegvamos na aldeia, os caras

    comiam nossa comida toda em uma semana, porque a regio no era muito rica em caa, era

    ecologicamente complicada, e eles estavam cercados por outros grupos hostis, de vez em quando

    caa uma flecha no meio da aldeia.... A cada 10 dias ns tnhamos que fazer o mesmo trajeto de 9

    horas. Chegvamos no posto exaustos, descansvamos dois dias, enchamos as mochilas e

    passvamos mais dois dias para voltar e nos recuperar da caminhada. E assim por diante. No

    duramos trs meses....

    Fiquei procurando outros grupos para ir, e ento surgiram os Arawet, que haviam sido

    contatados em 1976. Ficamos um ano e meio pra conseguir a autorizao, e acabei entrando em

    81. Fiz meu campo entre 1981 e 83. Quando cheguei nos Arawet, eu j tinha conhecido trs ou

    quatro grupos indgenas, e j era professor aqui. Os Arawet so um grupo de lngua tupi-

    guarani. Os grupos Tupi estavam em baixa do ponto de vista etnolgico, porque, quando haviam

    sido estudados na dcada de 40 por Herbert Baldus, Charles Wagley e Eduardo Galvo, eram

    grupos considerados aculturados, ou em vias de perder a cultura. Seu interesse principal era,

    justamente, permitirem um estudo dos processos de aculturao.

    Mas com a abertura da Transamaznica e com a invaso da Amaznia oriental,

    incousive o vale do Xingu, estimulada pela ditadura militar, comearam a aparecer os grupos

    Tupis que a gente conhece hoje: Guaj, Arawet, Parakan, Asurin, que ento eram isolados.

  • ENTREVISTA | EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO: CONTRA ANTROPOLOGIA...

    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 152

    Ento voc tinha de repente a possibilidade de comear a estudar grupos Tupi que estavam em

    um estado de isolamento. Eu estava lendo a pouca bibliografia disponvel e percebi que ali tinha

    alguma coisa muito diferente da paisagem etnolgica mais familiar para mim. Era uma

    etnografia que levantava problemas fora do universo conceitual privilegiado por meus

    professores, a saber, o mundo dos J do Brasil Central. Os problemas levantados pela etnologia

    j eram essencialmente problemas de organizao social, a relao entre espao e morfologia

    social, o significado sociolgico e tipolgico de suas complexas terminologias de parentesco etc..

    A literatura tupi colocava questes de outra ordem, principalmente relativas ao xamanismo, ao

    profetismo, guerra e ao canibalismo.

    Quando fui para os Arawet, fiz uma pesquisa a partir da minha formao etnolgica

    bsica, que era, do ponto de vista etnogrfico, essencialmente centro-brasileira, e, do ponto de

    vista terico, estruturalista. Mas o povo que vim a estudar no tinha l muito compromisso,

    digamos assim, com essa minha formao... Era um povo onde o xamanismo ocupava um papel

    ritual central, e onde o tema do canibalismo (cosmolgico ou divino, no sociolgico ou

    humano) era onipresente. Naturalmente, liguei tudo isso com a literatura quinhentista sobre os

    Tupinamb, parentes dos Arawet. Quando estes ltimos comearam a me falar dos Ma, as

    divindades celestes canibais, intu imediatamente que aquilo era uma transformao, no sentido

    estruturalista, do ritual antropofgico dos tupinamb da costa brasileira.

    Pouco a pouco foi-se-me desenhando uma imagem das sociedades Tupi-guarani, na

    verdade de muitas sociedades amaznicas uma imagem terica da Sociedade Amaznica

    que era um pouco como o inverso do mundo indgena centro-brasileiro. Os dualismos e as

    inverses dialticas do estruturalismo clssico, a dualidade entre natureza e cultura, a oposio

    complementar entre a metade A e a metade B, nada disso rendia muito. Ento eu tive que

    utilizar uma linguagem analtica prpria. Nessa poca havia toda uma discusso sobre os

    modelos africanos na Amrica do Sul, isto , se havia linhagens, grupos corporados de

    parentesco e assim por diante. Nesse momento tambm, mas ainda antes dos Arawet, escrevi

    um artigo junto com Tony Seeger e o DaMatta, em 1979, chamado "A construo da pessoa nas

    sociedades indgenas brasileiras". Ele se tornou, digo sem modstia (mas sou s 1/3 autor,

    afinal), um dos artigos mais influentes da etnologia brasileira no sculo XX. Era mais um esboo

    de um projeto, um manifesto terico, do que um artigo. Basicamente dizamos que aqui nas

    terras baixas da Amrica do Sul a imagem da sociedade primitiva como uma federao de

    grupos poltico-econmicos de parentesco (os tais grupos corporados ou as pessoas morais

    da antropologia social britnica) no se aplicava, e tampouco a concepo segmentar da

    sociedade. Ento ns nos samos com a ideia de que o conceito estratgico aqui era o conceito de

    pessoa, era a fabricao da pessoa, em particular do corpo, o investimento sobre a corporalidade

    como dimenso simblica crucial. Ns nos apoivamos, para fazer essa argumentao, nas

    prprias Mitolgicas, em particular na ideia de que as sociologias indgenas esto ancoradas no

    que Lvi-Strauss chamou de lgica das qualidades sensveis, e que eu prefiro ver como uma

    sofisticada ontologia do sensvel,

  • ENTREVISTA | EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO: CONTRA ANTROPOLOGIA...

    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 153

    Revista Habitus: O texto de 1979 tambm foi influenciado pelo congresso de americanistas

    de 1976, realizado em Paris, e sobretudo pela exposio da Joanna Overing.

    EVC: Sem dvida. Nosso texto de 1979, mas trs anos antes Joanna Overing escrevera um

    position paper a uma sesso do Congresso de Americanistas de Paris sobre tempo e espao

    sociais nas terras baixas da Amrica do Sul, no qual ela coloca questes sobre a linguagem

    analtica utilizada para pensar as sociedades amerndias, em especial as amaznicas. Mas na

    verdade ela no ia muito alm da constatao da inadequao da linguagem disponvel. Nosso

    artigo de 1979 foi uma espcie de resposta a essa constatao, propondo que a construo da

    pessoa seria a via adequada. Fui ao campo entre os Arawet com essas questes na cabea. A

    sesso do Congresso de Americanistas j sinalizava que a antropologia lvi-straussiana indicava

    uma alternativa para a linguagem juralista, normativa, da antropologia clssica, britnica, de

    base africanista. Lvi-Strauss estava apontando para outras codificaes das relaes sociais.

    Em nosso texto, tentamos preencher a lacuna: qual afinal a linguagem adequada? Aquela

    fluidez to frequentemente apontada no caso das morfologias sociais amaznicas, aquela

    aparente falta de ossatura institucional a que isso corresponde, na verdade? Nossa proposta

    foi: temos que olhar para a pessoa e no para o grupo. Voc tem olhar para a maneira como as

    cosmoprticas amerndias constituem o humano, e no o social no o social, pelo menos, no

    sentido da Sociedade enquanto super-Grupo, como no paradigma durkheimiano. No o grupo

    social, mas o ser humano que o problema. O perspectivismo amerndio, de alguma forma, iria

    retomar, 20 anos depois, a problemtica levantada por Seeger, DaMatta e eu.

    Revista Habitus: No ano de 1998, em Cambridge, o senhor apresentou a antroplogos do

    mundo todo o conceito de perspectivismo amerndio, em 4 sees de leitura. Como comentado

    por Strathern em sua introduo ao livro O Efeito Etnogrfico, voc ao falar do

    perspectivismo encantou o pblico ouvinte. Quais foram as inspiraes do perspectivismo, e

    como ele se encaixa na teoria antropolgica?

    EVC: O perspectivismo foi uma ideia que surgiu no contexto de um dilogo que tm trs pontas.

    Foi na discusso com Tania Stolze Lima, e a partir do material e das reflex_es dela sobre os

    Yudj (Juruna), que a noo de perspectivismo foi surgindo. At ento, ela falava mais em

    relativismo que em perspectivismo. Comeamos a conversa e pouco a pouco a noo de

    perspectivismo foi se constituindo. Tania estava interessada em aprofundar a questo no

    contexto de uma compreenso dos Yudj, enquanto eu, sempre com minha tendncias

    abstrativas (tipicamente masculinistas, diro outros, ou melhor, outras), j me apressava em

    generalizar.

    O perspectivismo, na verdade, j tinha me aparecido na tese sobre os Arawet. O que

    aconteceu pra mim foi um encontro entre minha teoria sobre o canibalismo Tupi e o que a Tania

    estava desenvolvendo a partir de sua magnfica etnografia dos Yudj, sobre a relao entre

    humanos e porcos, entre humanos e no-humanos, no xamanismo e na caa, e quais as

    implicaes mais amplas disso. Ento foi convergncia dessas duas linhas de reflexo. A noo

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    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 154

    de perspectivismo surgiu para mim com os cantos de guerra dos Arawet, aqueles que um

    homem canta depois de matar um inimigo. O matador recebe canes que lhe so sopradas ao

    ouvido pelo esprito do inimigo. O que me interessou ali foi o jogo ditico de perspectivas

    encenado nestes cantos, em que o cantador (o matador), quando dizia "eu", estava na verdade

    falando como o inimigo, isto , o sujeito que ele tinha matado, e quando ele dizia "meu inimigo,

    meu inimigo, meu inimigo", estava se referindo a ele prprio, o matador porque na verdade

    quem estava cantando era o outro. Ento "meu inimigo" era eu. O matador falava de si mesmo

    do ponto de vista do inimigo, literalmente.

    Tive a ideia de que tal inverso de perspectivas era o segredo do canibalismo ritual

    tupinamb. Liguei esse canto arawet ao clebre dilogo tupinamb entre o matador e o

    prisioneiro, que precedia a execuo cerimonial do cativo, descrito ou glosado pelos cronistas do

    sculo XVI. Parecia haver nestes dilogos uma estranha ressonncia de perspectivas, porque o

    matador dizia para o inimigo: "Voc foi o homem que matou meus parentes?" e o cara dizia

    "Fui", e o matador dizia: "Ento voc vai morrer" e o prisioneiro falava "No, voc quem vai.

    Voc j morreu, voc est morto. Meus parentes logo viro me vingar". Anchieta, ao descrever

    esta cena, comentava: mais parecia que o que estava para morrer era o que estava para matar.

    Ou seja, parecia que o matador era a vtima. Ento eu fiz uma espcie de teoria segundo a qual

    o canibalismo envolvia um processo de captura do ponto de vista do outro, uma atualizao

    dramtica da capacidade de se colocar no ponto dos outros para se ver a si mesmo enquanto

    inimigo. Minha tese termina com isso: o perspectivismo e o canibalismo Tupi so uma

    ocupao do ponto de vista inimigo e uma percepo de si mesmo enquanto outro.

    Quando isso se cruzou com os trabalhos da Tania Stolze sobre como os porcos veem os

    homens e como os homens veem os porcos, comecei a unir na minha cabea todos os exemplos

    que eu tinha na memria. Na minha pesquisa entre os Yawalapiti, por exemplo, lembrava que

    eles diziam: "os mortos, eles comem grilo, mas eles pensam que peixe; gente macaco de

    ona, e assim por diante. A comecei a passear pela literatura e achei uma imensa quantidade

    de informaes sobre o perspectivismo. Isso nas trs Amricas, mas sobretudo na Amaznia e

    no extremo norte da Amrica do Norte.

    Comeou a aparecer uma srie de dados que nunca ningum havia sistematizado, e que

    revelava uma anti- ou contra-antropologia,, envolvendo uma outra maneira pensar a relao

    entre natureza e cultura, o universal e o particular, o corpo e a alma. Isso parecia resolver uma

    srie de problemas clssicos da etnologia amerndia. Por que o corpo to importante na

    Amaznia? Porque o lugar onde que voc inscreve a perspectiva humana. A pertena a um

    grupo marcada por uma interveno sistemtica sobre o corpo: pinturas, tatuagens,

    escarificaes, perfuraes, depilaes, plumria etc. Por que os ndios acham que pra voc

    aprender a lngua deles voc tem primeiro que comer a comida do grupo? Ou porque acham que

    virar branco algo que acontece quando se comea a comer comida de branco, a se vestir

    como branco, a ter relaes sexuais com branco e no a pensar como branco? O

    perspectivismo se deve ao cruzamento da minha teoria intra-humana do canibalismo j que

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    na verdade o que estava em jogo ali eram pontos de vista humanos com a questo do ponto de

    vista dos animais. Vi ento que o perspectivismo era na verdade uma teoria geral da alteridade.

    A vem a outra ponta do tringulo, que Phillipe Descola. Nessa poca ele estava

    concentrado no que chamava de animismo, um tipo de economia cosmolgica na qual a relao

    entre humanos e no-humanos uma relao social. O animismo se oporia assim ao totemismo

    de Lvi-Strauss, na qual as sries humana e animal estavam apenas em correlao homolgica e

    no em relao analgica. S que a teoria de Descola no permitia explicar por que, se os

    animais eram humanos como ns (isto , sujeitos que se percebiam como humanos e parceiros

    de relaes sociais conosco, os humanos verdadeiros verdadeiros para ns, bem entendido),

    ns no os vamos como humanos, nem vice-versa.A questo a responder era: se eles so

    humanos para si mesmos, por que no so humanos para ns? E a resposta remetia ao artigo de

    1979 sobre a construo da pessoa porque o corpo faz a diferena. No a alma, no o

    esprito, no a socialidade, no a cultura, que distingue os diferentes habitantes do cosmos,

    as diferentes espcies naturais, ou as diferentes sociedades humanas, mas a corporalidade.

    Revista Habitus: O senhor poderia comentar um pouco sobre as outras influncias ao

    perpectivismo, como a reciprocidade de perspectivas apontada por Lvi-Strauss em A Oleira

    Ciumenta?

    EVC: Isso tudo s veio depois. Eu s descobri que, por exemplo, Lvi-Strauss falava de

    reciprocidade de perspectivas, depois de ter criado a noo de perspectivismo e, sobretudo,

    quando cheguei em Cambridge e ento resolvi ler a srio The Gender of the Gift de Marilyn

    Strathern. Percebi que a noo de perspectiva aparecia o tempo todo no livro dela. Ns

    estvamos trabalhando de maneira totalmente independente, mas, a rigor, na mesma direo.

    No livro de Marilyn, a perspectiva aparece no contexto de uma redefinio radical da noo de

    troca, pensada como consistindo essencialmente em uma troca de perspectivas antes que de

    bens ou objetos. Troca de relaes, de signos, de perspectivas trs palavras que se

    sinonimizavam, dentro dessa nova teoria da troca. The Gender of the Gift procura mostrar que a

    troca menos uma coisa de transferir materialmente um objeto entre dois parceiros, e mais o

    fato de que essa transferncia muda o modo como o objeto visto (significado) pelos

    parceiros. Isso estritamente semelhante ao que Lvi-Strauss vai chamar de troca de mulheres:

    diante da mesma mulher, eu vejo ela como irm, voc v como esposa. Troca, na verdade, essa

    capacidade: eu sou capaz de me colocar no seu lugar para poder saber que essa mulher vai ser

    irm pra mim e esposa pra voc ou vice-versa. Quando cheguei em Cambridge, em 1997,

    comecei a preparar minhas conferncias, e foi ento que comecei a estabelecer esse dilogo com

    a Marilyn, uma pessoa que se tornou muito importante, para mim, tanto em termos de amizade

    como de influncia intelectual.

    A troca de perspectivas stratherniana, a reciprocidade de perspectivas lvi-

    straussiana, e o perspectivismo amerndio definiram uma retomada conceitual da noo de

    troca, questo clssica da obra de Lvi-Strauss mas que foi perdendo terreno para a reao

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    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 156

    marxista (e guattaro-deleuziana) que favorecia o conceito de produo sobre o de troca, e que

    reduzia teoricamente a troca ao seu avatar mais pobre, a troca mercantil capitalista.

    Revista Habitus: Aps alguns anos a sua lecture em Cambridge, o perspectivismo adquiriu

    projeo internacional, influenciando etnlogos que trabalhavam em outras regies

    etnogrficas, como a Sibria e a Monglia. O conceito de perspectivismo permite abranger

    diversas regies etnogrficas, elsewhere Amaznia?

    EVC: O perspectivismo de fato ganhou uma projeo internacional, eu acho que em larga

    medida porque eu apresentei essas conferncias em Cambridge, que, junto com a Universidade

    de Chicago e o Laboratrio de Lvi-Strauss em Paris, um dos trs principais centros do

    pensamento antropolgico mundial. O fato deu ter dado essas conferncias l, e publicado o

    artigo em ingls, deu-lhe uma audincia que no teria adquirido se mantido o trabalho em

    portugus.. Ainda que, assim que ele saiu publicado em portugus, em 1996, o pessoal que lia

    nossa lngua, isto , os americanistas, sobretudo os franceses, ficaram de orelha em p e

    registraram a importncia das ideias ali levantadas. Importncia suficiente para muitos

    correrem para cair de pau em cima, inclusive.

    A possibilidade do tema do perspectivismo ser etnogrfica e teoricamente relevante para

    alm das fronteiras da Amrica indgena evidente. O caso da Sibria o mais bvio. Os

    materiais siberianos tm vrias semelhanas com os amaznicos, seja porque existe um fundo

    paleoltico que junta a Sibria com a Amrica, seja porque o perspectivismo mostra muitas

    afinidades com a prxis dos povos caadores: um caador precisa pensar como a presa para

    peg-la. Alm disso, o perspectivismo indgena passa pela boca tanto quanto pelos olhos: seu

    problema saber quem come quem. E como quem come v, e visto, por quem comido, e

    vice-versa. Eu vejo tal coisa como comida, essa coisa me v como comedor, e assim por diante.

    O perspectivismo faz parte dessa ontologia oral-canibal que pan-amaznica, talvez pan-

    indgena, talvez pan-humana: "quem come quem" (predador vs. presa), quem come como eu

    como (congnere), quem come com quem" (comensal, parente, aliado), quem d comida para

    quem (pais e filhos, donos e animais de estimao), Enfim, comer uma operao fsica e

    metafisica fundamental. Parente aquele que come comigo - a comensalidade. Toda a teoria do

    parentesco passa por isso: quem que me d de comer, a quem eu dou de comer, o que eu no

    posso comer porque um parente est doente etc..

    A sia setentrional mostrava vrios fenmenos que ressoavam com os materiais

    amerndios. O primeiro a registr-los foi Morten Pedersen, meu contemporneo em Cambridge,

    para a Monglia. Rane Willerslev, em seguida, viu grandes semelhanas em sua etnografia dos

    Yukaghir da Sibria. Entretanto, como a Sibria no a Amaznia, Willerslev no sou eu e

    sempre preciso d algo diferente do outro, quando mais no seja para ter algo a dizer, Rane

    comeou a me criticar. Outros o seguiram, frequentemente com muito menos inteligncia e

    honestidade intelectual do que ele. Crticas etnogrficas, crticas tericas, crticas supostamente

    polticas todo tipo de crticas. Algumas simplesmente (e pertinentemente) ajustam o modelo

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    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 157

    para outras situaes, onde h outras nfases tpicas, e outras formas de perspectivismo. H

    porm crticas que recusam in toto o conceito de perspectivismo, dizendo que ele no tem lgica.

    Outros, que estou criando uma filosofia genrica e apagando as diferenas internas aos

    mundos amerndios, fazendo algo horrvel, assim tipo o que fez Lvi-Strauss... Quem me dera...

    Pensei em responder a algumas dessas crticas mais ridculas, mas cheguei a concluso que

    burrice no tem cura, nem merece resposta. E enfim, como se diz, haters gonna hate.

    No preciso dizer, ou preciso?, que no acho que tudo seja perspectivismo na Amaznia,

    ou que este conceito designe uma propriedade substantiva, independente da linguagem analtica

    do observador; que ele defina, em suma, alguma essncia de alguma mentalidade amerndia. O

    perspectivismo no uma coisa que voc pode apontar com o dedo em um texto ou transcrio

    etnogrficos, e, muito menos, mostrar em um encefalograma; ele um conceito, que pode ser

    usado para organizar uma variedade de materiais e observaes e para tirar concluses a

    respeito deles. uma hiptese que permite a conexo de certos fenmenos registrveis.

    O perspectivismo certamente no esgota a vida social, mental, espiritual e existencial

    dos povos amerndios. Seria grotesco imaginar isso. Por outro lado, uma coisa para a qual vale a

    pena chamar ateno que o perspectivismo apareceu imediatamente, para mim, como sendo

    uma teoria duplamente poltica. Em primeiro lugar, ele define uma outra antropologia, uma

    contra-antropologia no sentido de ser a antropologia indgena, isto , a antropologia do ponto

    de vista dos ndios. Ela diz respeito exatamente ao mesmo campo de problemas de que trata a

    nossa antropologia: o que o humano? qual a diferena entre os humanos e os no-humanos? O

    perspectivismo assim ao mesmo tempo um objeto para a antropologia e uma outra

    antropologia, um interlocutor, um contra-sujeito. As implicaes epistemolgico-polticas dessa

    maneira de definir o perspectivismo so, penso eu, bvias. Em segundo lugar, ele me apareceu,

    desde o inicio embora eu s tenha formulado isso explicitamente anos mais tarde , como

    uma teoria diretamente poltica, a saber, como constituindo o correlato metafsico e

    cosmolgico da ideia clastreana da sociedade contra o Estado. Pois o que ele implica, em

    ltima anlise, que no h ponto de vista privilegiado. No h um ponto de vista

    transcendente, no existe nenhum lugar a partir do qual voc possa totalizar a realidade. A

    realidade o conjunto aberto de pontos de vista divergentes que coabitam e constituem o

    mundo. O perspectivismo o correspondente cosmolgico da poltica amerndia de resistncia

    separao de uma instncia transcendente e unificadora, em outras palavras, ao aparelho de

    captura do Estado.

    O perspectivismo uma contra-antropologia e uma antropologia contra o Estado. Ento

    no de se espantar que ele aparea em formaes socioculturais exteriores mquina

    metafsica ocidental. O que no quer dizer que ele esteja ausente de nossa tradio intelectual:

    na literatura (Proust, Henry James), em filsofos como Leibniz, Nietzsche ou Whitehead; enfim,

    o perspectivismo uma capacidade potencial do pensamento simblico encontrado em toda

    parte. A questo voc saber o que feito com essa capacidade em cada parte do vasto mundo

    humano, na histria e na geografia. H lugares em que isso tem um papel central, h lugares em

    que isso tem um papel marginal. Para ns ele tem mais a ver com a arte, ainda que se possa

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    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 158

    dizer, por exemplo, que a teoria da relatividade de Einstein uma variao, uma verso

    cientfica do tema mtico do perspectivismo, na medida em que ela formula matematicamente as

    condies de passagem de um referencial (um ponto de vista) para outro, assim como os ndios

    esto preocupados em como se converte o ponto de vista da ona no ponto de vista do sujeito

    que a encontra no mato e vice-versa, para evitar ser devorado por ela.

    Revista Habitus: Para alm do conceito de perspectivismo e de multinaturalismo, o senhor

    tambm formulou outros conceitos que adquiriram projeo considervel na teoria

    antropolgica, como o de equivocao e de afinidade potencial. O senhor enxerga algum fundo

    comum a esses trs conceitos?

    EVC: Sim. A equivocao um conceito epistemolgico que diz respeito a uma teoria da

    traduo, de como o antroplogo d sentido ao material que ele est descrevendo nos termos de

    seu prprio aparelho conceitual, o qual deve ser afetado, deslocado e contaminado pelo aparelho

    conceitual alheio. A afinidade potencial uma interpretao da socialidade amerndia a partir de

    um tema central da antropologia de Lvi-Strauss, o tema da alteridade ou diferena enquanto

    horizonte da socialidade uma alteridade dominantemente concebida, no caso do pensamento

    indgena, em termos de afinidade ou aliana matrimonial. As trs categorias, diferena,

    alteridade e afinidade, so, para mim, modalizaes de uma mesma ideia, que apontam uma

    teoria relacional da identidade, do eu, segundo a qual, no par opositivo eu/outro, outro o

    plo no-marcado. (Ua declarao minha que fez muito barulho No Brasil todo mundo

    ndio, exceto quem no uma aplicao poltica e historicamente substanciada dessa

    ideia). Em outras palavras, alteridade anterior identidade. Essa ideia est implcita na teoria

    lvi-straussiana da troca matrimonial e da interdio do incesto.

    Qualquer um que vai para a Amaznia indgena, logo v exemplos do que estou falando.

    Quando um ndio no sabe como chamar um estrangeiro, ele o chama de cunhado para no

    cham-lo de inimigo. Cunhado tende a ser usado como a palavra genrica para um outro, um

    no-parente com quem se quer ter relaes amigveis, ou pelo menos neutras, mas que

    permitam a troca, isto , a relao. Ns usamos "irmo" em vrios contextos em que os ndios

    usam "cunhado". "Liberdade, igualdade, fraternidade": nosso modelo da relao social a

    fraternidade, isto , a semelhana, O que a fraternidade como modelo de relao social? a

    ideia de que duas pessoas esto ligadas porque esto na mesma relao com um terceiro termo

    superior. Se eu te chamo de irmo, estou pressupondo que ns temos, em comum, uma

    relao com um terceiro termo transcendente: pai, ptria, religio, ideologia. A igualdade das

    relaes que ns temos com um terceiro termo nos torna relacionveis entre si. O irmo um

    duplo seu, igual a voc. A igualdade se declina na linguagem da fraternidade. Em

    contrapartida, se eu sou seu cunhado, ento ns temos uma relao diferente com um mesmo

    termo (irmo/marido). Em vez de ser pela semelhana, ns nos relacionamos pela diferena. O

    cunhado algum com quem eu troco, ou seja, ele o oposto de mim, e no a minha rplica.

    Ento essas duas maneiras de conceber a alteridade, como diferena ou repetio (para usar

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    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 159

    uma linguagem deleuziana), como instituio do outro ou como duplicao do mesmo, definem

    duas sociologias divergentes, duas metafsicas opostas. Ao chamar voc de cunhado eu crio a

    possibilidade que eu e voc troquemos coisas. Se eu chamo voc de irmo, no h nada que a

    gente possa fazer a no ser repetir o que o outro faz. A gente vira a imagem especular um do

    outro: voc faz assim e eu fao assim. No caso da troca ao contrrio.

    A afinidade potencial, ento, tem a ver com uma teoria da diferena enquanto

    fundamento da relao, assim como o perspectivismo. Se voc imaginar que aquilo que eu

    (humano) chamo de sangue voc (ona) diz que cerveja, isso igual quele que diz "ela

    minha irm" e voc diz "ela minha esposa". , na verdade, quase a mesma coisa que est sendo

    dita, nestes dois exemplos: pois eu no posso beber sangue, assim como no posso dormir com a

    minha irm o cru e o cozido... A mesma relao pela diferena constitui tanto o

    perspectivismo quanto a afinidade potencial. J a equivocao controlada seria a conscincia

    terica de que se nosso modelo de relao a fraternidade, para os ndios a afinidade, e que

    quando nos dizemos irmo para um no-parente, e quando o ndio diz cunhado, ns

    estamos dizendo coisas opostas mas no mesmo sentido, ou, inversamente, coisas semelhantes

    mas com sentidos opostos. Porque nossos conceitos de relao social so diferentes.. O equvoco

    a impossibilidade de voc resolver essa situao, ou seja, se voc chamar um ndio de

    cunhado estar forando sua prpria lngua sociolgica, mas se cham-lo de irmo est

    violando a lngua sociolgica dele. Esse tipo de n o que eu chamo de equivocao.

    O meta-equvoco que persegue o conceito de traduo em seu uso antropolgico

    consiste em achar que traduzir uma outra lngua no falo das palavras, mas dos conceitos

    do outro voc achar um sinnimo na sua lngua. Ento ns achamos que a traduo

    fundada na existncia de sinnimos translingusticos (ou transculturais), ou seja, que h

    sempre uma mesma coisa que chamada por duas palavras em duas lnguas diferentes. Por

    exemplo, como eu digo cachorro em ingls? Dog. Ento dog e cachorro eu sei que so a mesma

    coisa, so sinnimos porque h um objeto no mundo que garante a conexo. Ou seja, dog e

    cachorros so como irmos conceituais. Eles tm a mesma relao com um terceiro termo, a

    realidade da espcie canina. A ideia de uma equivocao constitutiva (por isso, controlvel mas

    no solvel) o contrrio: trata-se de vigiar os homnimos enganosos. Vejamos o que isso

    significa no caso do perspectivismo. Lembremos de mito contado pelos ndios Machiguenga do

    Peru, por exemplo: o sujeito est com fome, sozinho no mato, perdido h dias, de repente topa

    com uma aldeia e se diz, aliviado: "finalmente, encontrei seres humanos que vo me dar alguma

    coisa para comer". Ele se defronta com uma aldeia bonita cheia de casas, cheia de uma gente

    bela e forte, toda pintada e emplumada, que lhe diz: "voc est morrendo de fome, venha aqui ,

    venha comer essa sopa de peixe que estamos preparando!". O ndio senta, faminta, e lhe

    apresentam uma cabaa cheia de carne humana crua, boiando em uma sopa de sangue. Ele

    protesta horrorizado: mas isso no peixe! E os aldees: "Como no? Claro que sopa de

    peixe, coma vontade". E ento o pobre do ndio diz para si mesmo: Bem, se isso peixe para

    essa gente, ento essa gente no humana..." ento que ele se d conta de que est na aldeia

    das onas. O que aconteceu ali, nesta histria? Uma homonmia. Duas espcies diferentes

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    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 160

    chamam pelo mesmo nome, peixe, coisas completamente diferentes. isto que chamo de

    equvoco, no sentido prprio da palavra: um equvoco o erro que consiste em chamar pelo

    mesmo nome coisas diferentes. A equivocao controlada voc ser capaz de perceber os falsos

    homnimos, isto , no se deixar enganar pelas semelhanas aparentes entre sua lngua

    cultural e a lngua dos povos que voc estuda. A palavra tuti, em tupi antigo, se traduz

    facilmente por tio materno em portugus. Mas o conceito de tio materno, para os Tupi,

    muito diferente do conceito ocidental, cristo, biolgico etc, de tio materno.

    Revista Habitus: Para mudar um pouco a direo da entrevista, gostaria que voc falasse

    um pouco de sua aproximao com a filosofia: em 2009, foi publicado o livro Mtaphysiques

    Cannibales, cujo objetivo era de apresentar seus artigos a um pblico francs ligado

    filosofia. E ainda em 2014, o senhor publicou, em coautoria da filsofa Dbora Danowski, o

    livro Ensaios sobre o fim do mundo.

    EVC: O Mtaphysiques cannibales pode ser considerado um livro de divulgao, j que rene

    artigos j publicados em portugus ou em ingls e os reescreve com um pblico de no-

    antroplogos em mente, especialmente um pblico com formao filosfica. O livro tem uma

    certa unidade, mas um pouco o resumo de tudo isso que ns viemos falando nesta entrevista,

    apenas apresentado a um pblico mais ligado a filosofia, ou menos familiarizado com a

    antropologia. um livro busca explicar quais so as potencialidades para a reflexo filosfica,

    quais as promessas especulativas de um pensamento radicalmente outro, um pensamento que

    no-ocidental, no-letrado, no-capturado pelo Estado. O livro se chama metafsicas no plural,

    entre outras coisas porque a coleo que ele inaugurou se chama MtaphysiqueS, com um S

    grande no fim, no plural portanto. e isso deve ter custado um pouquinho aos filsofos que

    conceberam a coleo, visto que para a filosofia, classicamente, s h uma metafsica, certa ou

    errada. MetafsicaS significa que h outros mundos, com outras metafsicas, e que essas outras

    metafsicas esto em posio potencial de dilogo ou confronto com a nossa. Ou at mais do que

    isso. Como argumenta Patrice Maniglier, um dos fundadores da coleo e a pessoa responsvel

    por meu livro ter entrado nela (t-la aberto, de fato), nossa metafsica s tem sentido se

    concebida como variao estrutural dentro desse conjunto de metafsicas possveis que a

    espcie humana vem elaborando ao longo da sua histria.

    O outro livro, que escrevi com a Dborah Danowski, filsofa (somos casados), um livro

    que j me coloca em outro lugar, embora tenha uma relao com meu trabalho anterior e com a

    problemtica da antropologia tal como a entendo, a saber, como centrada na emancipao

    conceitual dos povos indgenas, na descolonizao permanente do pensamento. A

    autodeterminao ontolgica dos povos, como eu chamei o objetivo, a meta visada pela

    antropologia. A ideia de que existem outras metafsicas preparava, no meu trabalho anterior, a

    ideia que comeamos a esboar nesse outro livro (H mundo por vir? Ensaio sobre os medos e

    os fins, publicado em 2014 pela Cultura e Barbrie e pelo Instituto Socioambiental), que trata da

    crise metafsica atual do ocidente, que est diretamente associada a uma crise fsica a

  • ENTREVISTA | EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO: CONTRA ANTROPOLOGIA...

    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 161

    catstrofe ambiental desencadeada pelas mudanas climticas e outras perturbaes

    biogeofsicas causadas pelo capitalismo industrial, o fato indiscutvel de que a civilizao

    ocidental e a modernidade esto levando o planeta para um novo equilbrio termodinmico

    hostil vida humana. Em outras palavras, ns estamos fritos, literalmente. As condies de vida

    no planeta sero drasticamente mudadas.

    Isso posto, a pergunta : o que os ndios tm a ver com isso? Primeiramente, eles no

    tm nada a ver com isso, pois pertencem a essa vasta parcela da populao que j se ferrou e vai

    se ferrar ainda mais por conta da expanso tcnica, econmica, poltica e espiritual da Europa

    iniciada h quinhentos anos. Neste sentido, eles tm tudo a ver com isso, j que simbolizam e

    representam um mundo que j acabou h quinhentos anos. Pois os ndios conseguiram

    sobreviver num universo tragicamente transformado por um invasor. Os ndios tm uma

    experincia de viver aps o fim do (seu) mundo, uma experincia que talvez venha a ser til para

    ns. possvel que venhamos a nos dar conta de que o presente dos ndios vai ser nosso futuro.

    Quando os europeus chegaram aqui, a populao das Amricas era mais numerosa que a

    populao da Europa. Em 100 anos essa populao perdeu 95% do seu efetivo. Isso pior que

    uma bomba atmica. Os ndios so sobreviventes de uma bomba atmica que caiu sobre eles em

    em 1492, e que em 100 anos exterminou quase toda a sua populao. Mas no toda. Os que

    sobraram esto aqui hoje, resistindo. Os ndios so exemplos da capacidade de resistncia

    humana em tempos difceis.

    Em segundo lugar, o seu modo de relacionar com o planeta, com a terra, com outras

    espcies, com os no humanos, com o mundo natural, um modo muito menos suicida do que o

    nosso. Portanto, ele pode nos servir no de modelo, porque no podemos viver como os

    ndios viviam h 500 anos mas pode servir de exemplo, de lembrana para o fato de que h

    vida fora do capitalismo, de que h outros modos de viver uma vida humana que no seja o

    modo pelo qual vivemos h 200, 300 anos. O modo de pensar dos ndios, independentemente

    da quantidade e qualidade das verdades objetivas: que ele faculta, permite ao homem um

    comrcio com a realidade menos arrogante, menos colonialista, menos destruidor, menos

    imperialista, menos devastador do que o nosso. Talvez esteja na hora de a gente ser capaz de

    traduzir as ideias indgenas para um vocabulrio inteligvel para ns, um vocabulrio que, e isso

    crucial, no infantilize nem banalize as palavras (os conceitos) indgenas. No poder ser a

    lngua metafsica original dos ndios, por que ns no somos ndios, no adianta ficar falando

    em espritos e donos das rvores e donos das guas por que isso no teria sentido para ns. Ns

    temos que encontrar o equivalente disso na nossa linguagem ocidental. Equivocao controlada.

    O equivalente da ideia de que a natureza est viva, de que o homem no uma espcie

    excepcional dentro do universo, so as grandes questes do nosso livro: a metafsica ocidental

    uma metafsica antropocntrica e antropogentica, e est obcecada pela misso de determinar o

    humano como um modo de ser excepcional, como um estado de exceo ontolgico. O ser

    humano est dentro e fora da natureza ao mesmo tempo. Est dentro por que um animal, tem

    um corpo (uma natureza), mas est fora por saber disso, ter um esprito (uma cultura, diramos

    hoje). como se a suposta capacidade de olhar o mundo de fora, de cima, que nos seria dada

  • ENTREVISTA | EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO: CONTRA ANTROPOLOGIA...

    REVISTA HABITUS | IFCS UFRJ | VOLUME 12 N. 2 2014 162

    pela cultura, a conscincia etc., nos tornasse menos pertencentes ao mundo do que os demais

    entes. Afinal, temos o simblico, a linguagem, o trabalho, a proibio do incesto enfim, a

    cultura. Temos somos alguma coisa diferente do que todos os outros entes do mundo. O

    homem o nico animal que, porque sabe que um animal, torna-se menos animal que os

    outros animais. preciso desmontar esse paralogismo ridculo

    A grande diferena do pensamento indgena para com o nosso que os ndios dizem que

    tudo gente, humano (ou melhor, que tudo pode ser gente, humano). Isso no tem nada a ver

    com o suposto narcisismo primitivo, que projetaria sobre o mundo a experincia que os

    humanos tm de si mesmos, e que assim transformaria o mundo em um espelho. Muito pelo

    contrrio. Note que se voc pensa que tudo humano, isso significa que voc no tem nada de

    to especial. Os ndios se pensam como humanos, gente, mas como uma gente entre outras

    gentes, so uma espcie de gente dentre as milhares de espcies de gente, todas humanas para si

    mesmas. Os ocidentais, ao contrrio, dizemos que ns somos os nicos humanos, que estamos

    sozinhos no universo, que somos os nicos seres conscientes, capazes de reflexo, e que ento

    nos cabe a dura e herica tarefa de transformar o mundo etc. justo essa convico absurdas de

    que ns somos no apenas especiais (toda espcie especial...), mas excepcionais, que est

    dando a merda que estamos vendo. fundamental que possamos reconstruir nossa metafsica

    de modo a aproxim-la um mnimo que seja das metafsicas indgenas, que afirmam que a

    humanidade no est em descontinuidade ontolgica com os demais existentes do universo.

    Nosso livro sobre isso: as diferentes formas de imaginar a relao entre o homem e o mundo, e

    o fim dessa relao (o fim do mundo), que podem ser encontradas no Ocidente e fora dele

    em particular na Amrica indgena.

    Revista Habitus: A Antropologia tem o papel de pensar tais diferentes formas de imaginar a

    relao entre o homem e o mundo? Voc enxerga esta preocupao mesmo em seus trabalhos

    antigos, e desde sua experincia com os Arawet?

    EVC: Tem. Em primeiro lugar, ela deve criticar seu prprio nome. A Antropologia tem que

    redefinir radicalmente o que o anthropos da antropologia, e qual o seu mandato como

    disciplina. O mandato da antropologia dissolver o homem, j dizia Lvi-Strauss. Dissolver o

    homem no afirmar que o homem no existe, mas que o homem enquanto estado de exceo

    ontolgico no existe, ele uma ilegitimidade csmica ambulante. preciso aprender a existir

    como se esse homem no existisse, pois o risco que corremos hoje de deixar de existir

    empiricamente e ponto. Ns estamos nos suicidando como espcie. Na medida em que ela

    mostra a existncia de outras formas de existir como ser humano, a antropologia permite

    perceber que o caminho que os ocidentais esto seguindo no nico possvel. E que portanto,

    h esperana; se no no futuro, h esperana no passado. O que j alguma coisa...

    Eu vejo minha opo pela antropologia, e minha experincia com os Arawet, como uma

    forma de escapar seguir uma linha de fuga. Em algum lugar, Lvi-Strauss comenta meio

    brincando que quem no est satisfeito consigo mesmo, vira psiclogo; quem no est satisfeito

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    com a sociedade em que vive, vira socilogo; e quem no est satisfeito nem consigo mesmo,

    nem com a sociedade em que vive, vira antroplogo. Fui fazer Antropologia justamente por que

    eu quis escapar, no sentido de escapar mentalmente, tanto de mim mesmo quanto da sociedade

    em que vivia. Fui fazer Antropologia porque a nica sociedade que ns podemos criticar a

    nossa, porque ns a conhecemos por dentro (isso tambm algo dito por Lvi-Strauss).. Quis

    ento me confrontar com sociedades que eu no pudesse criticar, que eu no fosse obrigado,

    compelido a criticar e a recusar, que eu teria que aceitar como elas eram, justamente por que

    elas no so minhas. Uma tentativa de poder testemunhar outras formas de vida e dizer: assim

    a vida humana, ou melhor, assim tambm pode ser a vida humana.

    Tem uma expresso que Deleuze e Guattari citam: um pouco de possvel, seno eu

    sufoco. A antropologia uma dessas tentativas de escapar da sufocao que consiste em se

    viver em um pas, uma poca, uma cultura, uma sociedade, uma classe social, uma cidade, uma

    famlia, enfim, que ao mesmo tempo te permitem ser o que voc e te impossibilitam todo o

    resto. A antropologia me d a sensao da possibilidade desse impossvel pra mim. A variao

    imaginria que me permite entender que aqui onde estou o resultado de uma pura

    contingncia objetiva, tornada necessidade apenas subjetiva. Mas o sujeito ele mesmo um

    acidente.

    NOTAS

    *Paulo Bull integrante do Comit Editorial da Revista Habitus.

    Alm dele, foram responsveis pela transcrio da entrevista, Camila Bevilaqua Afonso, Ceci

    Penido da Cunha, Isaura de Aguiar Maia e ria de Carvalho e Borges.

    [1] STRATHERN, Marilyn. 2014. O Efeito Etnogrfico. Ed. Cosac Naify. Rio de Janeiro. 572p.