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1 A inconstância da superfície: notas da expressão visual entre os Gavião Pyhcopcatiji (Timbira Orientais\MA) 1 Maycon Melo Universidade Federal do Maranhão Resumo A produção de expressões visuais entre povos Timbira é algo notório desde quando Nimuendaju esteve com eles, porém até hoje sabemos pouco além da identificação e catalogação dos objetos e pinturas. Este texto se dedica a lançar conjecturas sobre a capacidade de imagens alterar superfícies (pele) e formas (corpo) entre os Gavião Pyhcopcatiji (TI Governador). O material de etnografias entre os Ramkokamekra (MA), os Krahõ (TO) e os Gavião, o escrito e o fotográfico, permitiu pensar nas relações que as imagens mediam com alteridades extra-humanas durante ritos de reclusão e na morte. Entre povos da Amazônia as imagens produzidas na relação com alteridades extra- humanas tem se revelado uma maneira de antropólogos(as) se aproximarem do pensamento estético e cosmológico ameríndio. As relações que as imagens acionam entre alteridades diferentes nos ritos de reclusão e na morte ligam pessoas e mundos, tornam visível àquilo que só é visível nestas circunstancias de alteração de superfícies e formas. Palavras-chave: Gavião Pyhcopcatiji, cosmologia, imagem. 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.”

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Page 1: MA) - 29ª Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) · artigo A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras (Da Matta; Seeger; Viveiros de Castro,1987),

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A inconstância da superfície: notas da expressão visual entre os Gavião

Pyhcopcatiji (Timbira Orientais\MA)1

Maycon Melo – Universidade Federal do Maranhão

Resumo

A produção de expressões visuais entre povos Timbira é algo

notório desde quando Nimuendaju esteve com eles, porém até

hoje sabemos pouco além da identificação e catalogação dos

objetos e pinturas. Este texto se dedica a lançar conjecturas

sobre a capacidade de imagens alterar superfícies (pele) e

formas (corpo) entre os Gavião Pyhcopcatiji (TI Governador). O

material de etnografias entre os Ramkokamekra (MA), os Krahõ

(TO) e os Gavião, o escrito e o fotográfico, permitiu pensar nas

relações que as imagens mediam com alteridades extra-humanas

durante ritos de reclusão e na morte. Entre povos da Amazônia

as imagens produzidas na relação com alteridades extra-

humanas tem se revelado uma maneira de antropólogos(as) se

aproximarem do pensamento estético e cosmológico ameríndio.

As relações que as imagens acionam entre alteridades diferentes

nos ritos de reclusão e na morte ligam pessoas e mundos, tornam

visível àquilo que só é visível nestas circunstancias de alteração

de superfícies e formas.

Palavras-chave: Gavião Pyhcopcatiji, cosmologia, imagem.

1 “Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN.”

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Introdução

Em 2012 o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) por meio do Programa Cultural

Viva Timbira publicou Timbira, nossas coisas e saberes, livro que divulga e torna

acessível a pesquisadores indígenas e não-indígenas um inventário do “patrimônio

cultural timbira” disponível nos museus brasileiros. O inventário traz objetos, imagens e

sons identificados e catalogados por equipes do CTI e por índios Timbira, apresenta

também o Acervo Cultural Timbira que reúne mais de 500 horas de gravação, 20 mil

fotos, livros e documentos. Segundo Nimuendaju (1944) a nação Timbira integra povos

com mais de duzentos anos de contato e que ocupavam tradicionalmente uma grande

extensão de terras que se estendia dos cerrados do norte ao antigo Goiás e sul do

Maranhão. Entre os Timbira se inclui os Gavião Pyhcopcatiji , os

Ramkokamekra\Canela, os Apaniekrá\Canela, os Krikati, os Krenhe e os

Krepumkateyê no estado do Maranhão, os Krahô em Tocantins e os Gavião Parkatejê

no Pará, compondo o que o Nimuendaju chamou de Timbira orientais, e os Apinajé em

Tocantins, compondo os Timbira ocidental.

A relevância e grandiosidade do Acervo Cultural Timbira, digo não só pelo o

quê contém, mas pela forma como foi construído, integrando interesses e

conhecimentos dos índios envolvidos, tornou visível para mim que há quase cem anos

viajantes, antropólogos e indigenistas se interessam por imagens dos povos Timbira.

No entanto, o mais inquietante foi ver o interesse que agora os próprios índios lançam

sobre suas imagens, registrando, catalogando e principalmente, se reapropriando de

imagens\cantos\conhecimentos produzidos sobre si mesmo e que estavam adormecidos

nas salas dos museus, ou em quartos de coleções particulares. Depois de ler as

etnografias de povos Timbira e de iniciar o trabalho de campo com os Gavião

Pyhcopcatiji (TI Governador\MA), fui percebendo que a importância que os índios

atribuem a estas imagens não está apenas naquilo que elas representam no Acervo

Cultural Timbira ou nos museus do país. A importância e o fascínio que a produção

dessas imagens cria parece estar muito mais naquilo que elas fazem na superfície de

corpos e objetos quando estão em relação de produção de outros corpos, objetos e da

própria sociedade.

As festas e rituais para os povos Timbira, os amji kin (festas, rituais) “podem ser

compreendido como um ato de recriação de momentos primordiais” (Soares, 2010:104).

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Como ocorrem com outros povos ameríndios (Viveiros de Castro, 1986), os rituais

agem como um ato comunicativo estabelecido entre seres do universo, para que eles

possam se reproduzir e manter o equilíbrio do cosmos. Parte dessa relação nos amji kin

é impressa através de grafismos em corpos e objetos.

As contribuições da antropologia que versam sobre o tema das expressões

visuais e estética entre povos indígenas indicam que, através da forma impressa

tradicionalmente em desenhos geométricos, o grafismo indígena se materializa em um

modo de experiência coletiva destes povos que se manifesta visualmente, sobretudo,

através da pintura corporal e dos objetos (Velthen,2003, Lagrou, 2007).

Especificamente entre os Timbira, em Os Timbira Orientais, Nimuendajú (1944)

apresenta uma lista do que chama trajes e enfeites, incluindo objetos de palha, algodão,

madeira, pinturas corporais e plumária. Crocker (1990) quando apresenta o ciclo de

rituais entre os Ramkokamekra também menciona o uso do grafismo em objetos e

pinturas fundamentais em tais ritos. No entanto, apenas recentemente com Rolande

(2013) podemos conhecer mais sobre os estilos, padrões e a presença das imagens nos

rituais de iniciação e nos ritos funerários Ramkokamekra\Canela.

É com essa preocupação que o termo “arte” aqui, que abre o título do artigo, se

volta ao plano das “artisticidades” entre povos ameríndios (Menezes Bastos, 2007). A

artisticidade ajuda a compreender de forma global a importância relacional de domínios

como a corporalidade, organização social, ritual, arte e xamanismo para a constituição

de socialidades no mundo ameríndio. As descrições e análises das pesquisas que tratam

das artes amazônicas, quando atentam para essa dimensão ontológica, “apontam-nas

como experiências que efetivam processos de transformação, metamorfose, manutenção

e renovação cosmológica[...] as artes muito mais do que produtos, são meios de

administrar relações entre humanos e não-humanos” (Barcelos, Neto, 2008:34).

Um sugestivo rendimento heurístico que estas abordagens indicam é a

possibilidade de expandir a temática das imagens, das formas e suas relações com

sistemas de cognição, a envolvendo a noção de pessoa e corpo enquanto algo construído

por um sistema de relações sociais2.

2 Na Melanésia, desde Leenhard (1947) a pessoa não é pensada como um ser indivisível, a discussão em

torno da pessoa kanaque é feita a partir da idéia de que a pessoa só existe em meio às relações,

constituindo-se na e pelas relações. Para chegar a esse ponto, Leenhardt segue as representações

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A relevância da noção de corpo entre os ameríndios é muito conhecida pelo

artigo A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras (Da Matta; Seeger;

Viveiros de Castro,1987), que explorou a perspectiva do corpo como instrumento e

atividade que articula tanto significações sociais quanto cosmológicas, ou seja, como

uma matriz de símbolos, um objeto de pensamento e não apenas um suporte de

identidades e papéis sociais. Ainda sobre a noção de corpo, Damatta (1976) acrescenta a

noção que entre os Apinajé a fabricação da pessoa é vista como um processo de

“consubstancialização”, onde pessoas são produzidas por partilhar substâncias com

outras pessoas, como comidas, cheiros, fluidos corporais e até pensamentos. Mitos de

diferentes povos ameríndios confirmam esse fluxo nos corpos entre mundos e seres

diferentes, uma vez que muitos objetos e conhecimentos usados por humanos tem

origem em relações com alteridade extra-humana (Barcelos Neto, 2011). Parte dessa

relação é impressa em estilos e temas gráficos e nesse aspecto a antropologia da arte

tem criado novas possibilidades de pesquisa.

As abordagens de Alfred Gell (1998), inspiradora de pesquisas sobre grafismo

indígena na Amazonia, tomar as imagens enquanto forma de ação, não como linguagem

ou sistema de comunicação, mas como sistema de ação com intenção de mudar o

mundo ao invés de codificá-lo em proposições simbólicas. A abordagem de Gell está

centrada no papel prático da mediação dos objetos de arte no processo social. Talvez

desde Levi-Strauss (1947) em A serpente de corpo repleto de peixes já pudéssemos

supor que o mito não é legenda de desenho e nem desenho ilustração de mito. As

recentes pesquisas sobre grafismo indígena indicam que sistemas de pensamento podem

ser sintetizados e expressos num tipo de “modelo reduzido” visível em imagens e em

empíricas, estéticas e míticas que o melanésio tem de seu corpo. Temos a noção de pessoa que só existe

enquanto lugar de encontro de diferentes tipos de relações, o corpo só existe como suporte desse fluxo,

como suporte dessa substância. Especialistas na Melanésia como Strathern (1988), iniciados pela

discussão de Mauss e Leenhardt, vão afirmar que o pensamento melanésio age a partir de justaposições,

um movimento permanente entre unidades e multiplicidades onde nada é fixo. A posição das pessoas

nesse modelo, umas com respeito as outras, exige que cada uma perceba essa relação ao mesmo tempo

de seu ponto de vista e do ponto de vista do outro. Uma abordagem muito sugestiva as questões

sociocosmológicas entre os ameríndios.

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objetos 3. A partir dessa abordagem uma série de pesquisas tem pensado as qualidades

dos estilos visuais como variações da expressão mítica (Gow, 2001, Velthon, 2003).

Este artigo traz observações iniciais sobre parentesco e organização social dos

Gavião Pyhcopcatiji, focalizando a ideia de que iconografias acionadas nos ritos de

reclusão e na morte são uma forma de compreender as relações estabelecidas com

outros seres, nos aproximando do pensamento cosmológico e político Gavião

Pyhcopcatiji. Na primeira parte do texto faço uma breve apresentação de aspectos da

organização social e parentesco Gavião Pyhcopcatiji. A segunda parte descreve como

imagens acionam relações entre os índios e seres não-humanos em rituais de reclusão

dos Ramkokamekra\Canela. E por fim, a partir de noções iniciais da escatologia Gavião

Pyhcopcatiji, descrevo como imagens acionam um tipo de trabalho sobre superfícies,

alterando formas em uma dinâmica transformacional assim como os mecarõõ (espíritos-

plural de alma) fazem com os corpos4.

2 Os Gavião Pyhcopcatiji

Os Gavião Pyhcopcatiji estão entre os povos da família linguística Jê

Setentrional, junto com os outros Timbira se reconhecem uns aos outros através de

afinidades culturais e linguísticas, possuíam os cabelos cortados da mesma maneira,

botoques auriculares, aldeias com casas dispostas em circulo com pátio e caminhos

radiais e praticam corridas de tora (Nimuendaju, 1944, Azanha, 1984).

O histórico de ocupação das terras Gavião Pyhcopcatiji possui dois períodos

segundo Barata (1981). O primeiro teve início nos fins do século XVIII e início do XIX,

quando o território habitado pelos Timbira é invadido por duas frentes de expansão: a

frente pastoril, originária da Bahia e Pernambuco e a frente agrícola que vinha do Pará.

A frente pastoril, a mais danosa aos povos Timbira, foi se internalizando pelos sertões

em busca de novos pastos, o que criou uma verdadeira guerra por terras (Melatti, 1967).

Quando os conflitos armados iniciaram os índios resistiram bravamente durante as

3 A idéia de modelo reduzido “não é, portanto, uma simples projeção. Um homólogo passivo do objeto:

constitui uma verdadeira experiência sobre o objeto” (Levi-Strauss, 2008:39).

4 É preciso deixar claro que trago apenas impressões iniciais do trabalho de campo iniciado em 2014 entre

os Gavião Pyhcopcatiji da Aldeia Governador. A possibilidade de avançar em certas questões se deve em

grande medida ao auxilio prestado por Jonas Polino Sansão, Pynheh, que me disponibilizou o material das

pesquisas que desenvolve com seu próprio povo, um amigo com quem mantenho intenso diálogo e

gratidão.

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“guerras de pacificação”. No entanto, enfraquecidos, os índios Gavião Pyhcopcatiji

foram em fim pacificados e por volta de 1858 negociavam em busca de paz

(Nimuendaju, 1944). O segundo período de ocupação inicia-se em meados de 1950,

durante o governo de Juscelino Kubitschek, diante da perspectiva de abertura da

Rodovia Belém-Brasília. Como a estrada ajudava o escoamento da produção vieram

primeiro nordestinos atrás de condições de trabalho, depois os grandes fazendeiros do

sul da Bahia, Minas Gerais e São Paulo, os chamados “sulistas” que promoveram uma

súbita valorização das terras. Os “sulistas” penetraram na região em busca de terras

consideradas de melhor qualidade, o que resultou num processo de expropriação de

pequenos lavradores instalados desde o primeiro período de ocupação naquelas terras.

Criou-se um novo movimento de interiorização, novos centros urbanos surgiram e os

“sulistas” formam obrigados a “comprar” terras localizadas em área indígena. Foi

somente em 1960 que missionários da New Tribes se instalaram entre os Gavião

Pyhcopcatiji e em 1970 a FUNAI se fez presente instalando o PI Governador. (Barata,

1981).

Na Aldeia Governador, a disposição das casas segue a forma circular encontrada

entre os Timbira com pátio central, caminhos radiais e uma área circular em torno das

casas5. Inicialmente identifiquei nas casas dos Gavião Pyhcopcatiji, assim como Lave

(1967) entre os Krikati, duas unidades domésticas relacionadas na produção e

distribuição de alimentos e bens, o que compõe grupos que se relacionam fora do

círculo central do pátio. São as “famílias elementares”, pai, esposa e filhos e o “grupo

doméstico”, duas ou mais famílias elementares que partilham da mesma casa com

origem comum6.

5 Para os Krahõ o pátio recebe o nome de ke, os caminhos que ligam o pátio as casas de prikara e o

caminho circular que passa adiante das casas de krikapé (Melatti, 1978:34). Os Ramkokamekra chamam

o centro da aldeia, o pátio, de càà, os caminhos radiais de cáà ma pry e o circulo formado pelas casas

constitui a “periferia” (Ladeira, 1982:20). Segundo a autora o espaço da aldeia permite aos Timbira

conhecer o universo classificando seres e coisas a partir dela. A forma da aldeia inscreve as relações

sociais no espaço, delimita o relacionamento entre pessoas e seres.

6 Lave (idem:37) esteve em aldeias dos Gavião Pukoye durante seu trabalho com os Krikati e mesmo

reconhecendo que a nominação entre os povos Timbira depende da relação estabelecida entre eles, como

afirma Azanha (1984), diz serem Krikati e Pukoye iguais na organização social. No entanto, Newton

(1971) durante sua pesquisa sobre a produção material dos Krikati afirma que os dois são distantes

socialmente um do outro para manter uma significativa diversidade cultural entre si. É importante frisar

que o que trago neste artigo são notas iniciais de um trabalho de campo com os Gavião Pyhcopcatiji da

Aldeia Governador (TI Governador) que precisam ser melhor investigados.

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Assim como outros povos Timbira (Laderia, 1982), os Gavião Pyhcopcatiji

parecem recorrer a um sistema de residência pós-matrimonial uxorilocal, os homens

quando se casam vão residir na casa da esposa e atos de nominação parecem manter

forte o vínculo com a casa de origem do homem, onde estão os sobrinhos que levam seu

nome. Entre os Timbira, “os grupos se diferenciam a partir do parentesco e da

nominação, do recebimento dos nomes próprios de cada individuo que o situam perante

a sociedade” (idem:21). O Ato da nominação, onde os meninos recebem o nome do

irmão da mãe e meninas o nome da irmã do pai, torna o nomeado herdeiro de tudo o que

o nome representa; criam-se formas de relação a partir da relação de parentesco e da

nominação.

Através da pesquisa de Sansão (2011), entre os Gavião Pyhcopcatiji é possível

identificar o mesmo sistema de pares de metades e subgrupos encontrados com outros

povos Timbira7. Através do nome pessoal os indivíduos, homens e mulheres no caso

dos Gavião, são situados em metades sazonais nas quais mantem relações cerimoniais.

Um determinado conjunto de nomes situa o nomeado em uma das metades da aldeia,

Capii e Cajcýr. A metade Capii se posiciona em direção ao nascente, está associada ao

fogo, a estação seca, a cor vermelha e realiza pinturas corporais em linhas verticais. A

metade Cajcýr se posiciona em direção ao poente, está associada à água, a estação

7 Entre os Ramkokamekra\Canela um determinado conjunto de nomes situa o nomeado em uma das

metades da aldeia, Khoikateye e Haracateye A metade Khoikateye se posiciona em direção ao nascer do

sol e a metade Haracateye em direção ao por do sol. Através do nome recebido o nomeado também é

situado em uma das metades cerimoniais, Cààmãakra (filhos do pátio\leste\fogo\seca\vermelho\pintura

em linhas verticais) e Atycmâakra (filhos do fundo da casa\oeste\lua\chuva\preto\pintura em linhas

horizontais). Entre os Ramkokamekra um determinado conjunto de nomes situa o nomeado em uma das

metades da aldeia, Khoikateye e Haracateye A metade Khoikateye se posiciona em direção ao nascer do

sol e a metade Haracateye em direção ao por do sol. Através do nome recebido o nomeado também é

situado em uma das metades cerimoniais, Cààmãakra (filhos do pátio\leste\fogo\seca\vermelho\pintura

em linhas verticais) e Atycmâakra (filhos do fundo da casa\oeste\lua\chuva\preto\pintura em linhas

horizontais) (Nimuendaju, 1944, Crocker, 1990, Almeida, 2009). Para os Krahõ as metades Wakmeye ou

Kekateye (ke=na direção do pátio\ leste\ seca \sol\pinturas em linhas verticais) e Katamye ou Atikma

(ati=atrás da casa\oeste\chuva\lua\pinturas em linhas horizontais) correspondem as chamadas metades

cerimoniais Atycmâakra e Cààmãakra dos Ramkokamekra. Cada individuo pertence a metade de acordo

com o nome que recebeu. Quando o indivíduo é incluído em uma das classes de idade é novamente

situado entre as metades que também se subdividem: Khoikateye (leste - Kaprikham

“garça”\Yõkrãikham “pássaro”\Kapranpókhan “tartaruga”\Prótikham “jenipapo”) e Harakateye (oeste –

Rópókham “suçuarana”\Kupakham “cipó”\Põhikham “milho”) (Melatti, 1978). Algumas dessas metades

tem relação com o sistema de parentesco uma vez que situam o individuo a partir do nome pessoal, mas

nenhum desses pares entre os Krahõ regulam matrimônios ou influenciam o sistema político.

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chuvosa, a cor preta e realiza pinturas corporais em linhas horizontais. Através dessas

metades, de forma que ainda desconheço, os indivíduos são incluídos em outros

subgrupos que atuam em ocasiões cerimoniais: Capii (Coh’cry “tapuã” - Quitre

“periquito” - Pýtre “tamanduá” - Croore “raposa”) e Cajcýr (Myy “ema” - Cangy

“cobra” - Xip „morcego” - Côncaa “águia”).

Figura 01: Metades cerimoniais e grupos do pátio Gavião Phycopcatiji (Aldeia

Governador\TI Governador)

Estes subgrupos são acionados na realização do que parece ser um ciclo ritual

dos Gavião Pyhcopcatiji (Sansão, 2011), que assim como o ciclo de festivais dos

Ramkokamekra\Canela, quando acontece “se realiza da „mesma‟ forma, duram um dia

ou várias semanas e tem em alguns deles meninos ou meninas de prestígio social

associados aos grupos festivos (Crocker, 1990). As festas e rituais identificados por

Sansão (2011) entre os Gavião Pyhcopcatiji são: Ehjcrere, festa relacionada a reclusão

de adolescentes do sexo masculino e feminino e que depende do nome pessoal. Ruurut,

festa relacionada a reclusão de jovens do sexo masculino e feminino que depende do

CA

JCY

R

C

AP

II

E W

Quitre

Coh’cry

Pytre

Croore

Myy

Cangy

Xip

Côncaa

(Tapuá)

(Periquito)

(Tamandua)

(Raposa)

(Ema)

(Cobra)

(Morcego)

(Águia)

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nome pessoal. Cyjxut, festa realizada na época do plantio do milho para garantir uma

boa produção. Cohcuj, festa onde grupos fazem papel de crianças, onde choram, gritam,

pulam e pedem. Pôhyh’pry, festa onde acontece o jogo de peteca, feita com palha de

milho e por fim, Wyty Crecre, festa com mascaras do tamanho de um homem e que

dependem do nome para determinar a realização8.

A breve apresentação de aspectos da estrutura social dos Gavião Pyhcopcatiji

procura se articular com questões especificas da experiência visual destes povos. A

parte seguinte do texto descreve como imagens acionam relações em rituais de reclusão

e em questões relacionadas com a morte. Em um primeiro momento temos o ritual de

reclusão Khêêtúwayê, dos Ramkokamekra\Canela, num segundo a instabilidade entre

superfícies e formas na concepção dos Gavião Pyhcopcatiji sobre o carõõ .

3 Notas da experiência visual entre povos Timbira.

3.1 Fixar formas .

A dissertação de Nelma Rolandes (2012) sobre a ornamentação corporal dos

Ramkokamekra\Canela em ritos de reclusão e na morte, nos diz como as expressões

visuais acionadas nestes contextos instituem lugares sociais na organização política da

aldeia e constroem corpos.9

Nela e em outras etnografias podemos observar como os ritos entre os

Ramkokamekra\Canela fortalecem e constituem corpos, especificamente masculinos. O

trecho do mito a seguir narra o aprendizado do ritual Khêêtúwayê com os mekarõ (alma

de defunto no plural “espíritos”).

O grande gavião Hak-ti já tinha devorado tantos habitantes da aldeia

que os sobreviventes resolveram fugir. Um menino que se tinha

retardado na roça, nada sabendo da resolução que os outros tinham

tomado ficou atrás só. Quando ele, já tarde, resolveu voltar para casa e

chegou na aldeia abandonada ele notou que no pátio um grande

8 Na descrição de Melatti (1978) dos ritos Krahõ, sejam os ritos do ciclo anual, quanto os ritos de

iniciação, encontramos vários semelhanças com as descrições de Sansão (2011) que merecem serem

pensadas mais detalhadamente.

9 Em sua etnografia as expressões visuais ganharam a centralidade da abordagem antropológica e

vinculam-se com a formação de corpos, criando diálogo entre a produção de imagens e a noção de pessoa

abordada em outras pesquisas com os Ramkokamekra (Oliveira, 2008, Almeida, 2009, Panet, 2010) O

trabalho de Rolande (2012) traz um levantamento de padrões e motivos gráficos identificados entre os

Ramkokamekra, um material que deve fomentar ainda muitas questões.

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número de vultos pintados de vermelho estavam cantando e dançando.

Sem mais nem menos o menino quis aproximar-se, quando foi detido

pela sombra de seu finado tio que o aconselhou de rodear a aldeia por

fora. Mas as almas de defuntos no pátio já o haviam descoberto:

“Olhem, aí vem um menino!” gritou uma. “Ele é meu!” gritou uma

segunda. “Não, ele é meu!” uma terceira. Então o menino fugiu. Fora

da aldeia porém ele subiu a uma árvore alta, de onde ele podia dar

uma vista d‟olho para o pátio. Viu então como das casas foi trazida

alguma coisa para as almas. Estas se ajoelharam, colocaram ambas as

mãos em concha abaixo da boca, recebendo nesta posição a comida

invisível. Depois recomeçaram a dança e cantiga: “Hamuyé-hé

hamuyé-ahó! Hamuyé-hé hamuyé-ahó!” e outras cantigas que o

menino não conseguiu reter. Quando ele finalmente alcançou outra

vez a gente dele ele ensinou-lhes a cantiga das almas de defuntos

(Nimuendaju, 1944:128-129).

No Khêêtúwayê os iniciados são submetidos a um processo de reclusão coletiva.

Todos os dias são chamados ao pátio para cantarem um conjunto de canções, que são

orientadas por cantadores, mas ensinadas pelos mekarõ. Segundo Carneiro da Cunha

(1978) para os Krahõ os mekarõ seria a palavra usada para o plural de karõ, substância

vital que habita o corpo de todos os seres sobre a terra, embora os abandone

temporariamente em sonhos, doenças e definitivamente na morte. A morte por sua vez

não seria uma passagem abrupta de estado entre vivos e mortos, mas um processo que

pode ser reversível até que o karõ se instale na aldeia dos mekarõ, espaço complementar

e o posto a aldeia dos vivos. Se a substância vital dos seres é algo fluido, que se move

entre corpos diferentes no universo, o corpo apenas empresta uma forma mais estável

para o karõ.

Se seguirmos a descrição do rito, além das cantigas, todos os dias os iniciados

são banhados para que o corpo cresça forte e, após cantarem no pátio, tem as cabeças

lavadas para limpar do corpo da presença dos mekarõ. Segundo Nimuendaju (1944:131)

isto os auxilia a separar dos seus corpos as almas dos mortos, aproximadas pelas

cantigas. O cuidado com o banho está relacionado com a noção de “corpo forte” entre

os Ramkokamekra\Canela (Oliveira, 2008), “corpo forte” construído a partir do

comprimento dos resguardos a fim de evitar seu enfraquecimento, doenças e a morte. É

em referência a este “corpo forte” que as cantigas aprendidas com os mekarõ durante o

Khêêtúwayê falam da resistência das pedras, da arara e do capim, sendo cantigas que só

podem ser cantadas no ritual (Rolande,2012).

Nessa fase inicial do rito podemos notar o não uso de expressões visuais no

corpo do recluso. Parece não se tratar apenas de ausência, mas de uma intencionalidade

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em manter os corpos protegidos no interior das casas cerimoniais. No ritual do Pepjê

essa prerrogativa parece ainda mais forte, é proibida aos iniciados a exposição à luz do

sol, a pele clara é sinal de resguardo e de purificação (Crocker, 2009). No Khêêtúwayê

durante o período de reclusão, quando estão aprendendo as cantigas ensinadas pelos

mekarõ, os iniciados estão diretamente expostos à ação destes últimos. Os khêêtúwayê

precisam aprender como aproximar e afastar os mekarõ, nem todos se tornaram

necessariamente pajé, mas todos devem saber como manter o “corpo forte”, e para isso

é preciso saber afastar e aproximar os mekarõ quando for necessário.

A relação estabelecida entre o corpo do recluso e os mekarõ parece encontrar

diálogo com a idéia de “familiarização”, desenvolvida por Fausto (2001). Se uma das

principais características das sociocosmologias ameríndias é a constante transformação

entre seres e mundos, o processo de “familiarização” produz um novo corpo por um

lento processo de se acostumar emocionalmente e corporalmente com a forma de um

“outro”, que é a marca da alteridade, nesse caso os mekarõ10

. No momento em que os

iniciados cantam estão sob os olhares dos cantadores que já passaram por esse mesmo

ritual, ou seja, que já aprenderam como aprender com os mekarõ a se tornarem bons

cantadores.

Nesse processo de aprender as cantigas com os mekarõ o corpo parece ter a pele

permeável a influências exteriores, que não seriam ingeridas apenas pelos orifícios, mas

por todo o corpo. O banho após as cantigas no pátio, assim como os resguardos que

tornam o “corpo forte”, indicam a preocupação dos Ramkokamekra\Canela em tentar

controlar as substâncias que percorrem o corpo dos iniciados na relação com os mekarõ.

Estas concepções indicam que a preocupação parece estar mais focalizada na superfície

do corpo do que em questões anatômicas ou fisiológicas. A emplumação, principal

marca visual dos Khêêtúwayê, indica como os Ramkokamekra\Canela tornam ainda

mais visível essa relação com os mekarõ através do corpo.

10

Crocker (1990) fala de emparelhamento em relação de complementariedade e de oposição, sendo que

em alguns momentos pode haver alteração entre as categorias. A observação de resguardos transformam o

caçador de relação de oposição a caça a relação de emparelhamento complementar com a mesma caça.

Optei pela abordagem de Fausto (2001) por seguir o conceito de predação, que possui valor heurístico

relacionado com a necessidade do elemento exterior, desconhecido e fundamental para reprodução das

sociedades ameríndias. (Viveiros de Castro, Carneiro da Cunha, 1985; Viveiros de Castro, 2002)

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O ser mítico Hak-ti (grande gavião) também faz parte do mito no qual o ritual de

reclusão Pepjê teria surgido. “Em tempos antigos havia um gavião gigante, Hak-ti, que

tinha seu ninho num paredão de pedras. De vez enquanto ele avoava sobre a aldeia dos

Ramkokamekra, agarrava um dos habitantes e, carregando ao ninho, os devorava”

(Nimuendaju, 1944: 139). Kekunã e Ahkrei, netos de Kohkot Jóhtomre, entraram em

reclusão para se tornarem fortes guerreiro, matarem Hak-ti e assim vingarem a morte de

sua mãe. Essa menção a outro segmento do mito onde vemos Hak-ti, nos ajuda a pensar

a posição de agente da ação que o ser mítico ocupava frente aos índios, já que pessoas

poderiam ser mortas e aldeias desaparecer se ele assim desejasse. É importante ressaltar

que aves de rapina, jaguar (onças) e serpentes são considerados predadores ontológicos

entre mitos de vários povos ameríndios.

A emplumação no Khêêtúwayê parece indicar um tipo de relação que incorpora

conhecimentos através de relações predatórias com Hak-ti, deslocando a posição de

sujeito e objeto da ação conforme o mito narra. Sobre o tema da predação na Amazônia

Viveiros de Castro e Carneiro da Cunha (1985) falam de um aumento de poder do

matador que incorpora, através de resguardos e restrições, a alma de sua vítima,

tornando-se eu, membro da comunidade, e outro, membro do exterior, o inimigo. As

pesquisas que se seguiram entre outros povos amazônicos indicam que a predação entre

ameríndios pertence ao mundo das trocas, é preciso afinizar e familiarizar para poder

incorporar, seja porque é preciso afastar o demasiado próximo, seja porque é preciso

determinar o indeterminado (Viveiros de Castro, 2002:166).

Quando no final do Khêêtúwayê os iniciados aparecem no centro do pátio com o

corpo coberto de plumas, a imagem é menos representação da “força”, “coragem”

transmitida pelo gavião aos iniciados do que a própria materialidade de Hak-ti, que

através de uma elaboração estética torna visível aquilo que só é visto em sonhos ou pelo

pajé. A imagem “cópia” do gavião na emplumação dos corpos dos iniciados parece

conter, como as máscaras para os Wauja (Barcelos Neto, 2008), uma materialidade em

si mesmo que vivifica seres exclusivamente nestas situações. Segundo o autor a

natureza transformacional dos seres nas cosmologias ameríndias se baseia na noção de

“roupa”, pressupondo que tais seres podem se “vestir” com a roupa de outros seres,

animais, plantas e não-humanos, criando relações que só são permitidas devido a essa

condição instável da noção de “roupa”.

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Para os Ramkokamekra\Canela ao incorporar o conhecimento relacionado aos

cuidados necessários para afastar e aproximar os mekarõ, acionando a imagem de Hak-

ti através da emplumação, os Ramkokamekra\Canela indicam como devem ser as

relações com os outros seres para garantirem sua posição dentro da humanidade. A

imagem produzida com a emplumação alude a relações, liga mundos diferentes e ao

apontar a interdependência entre seres nos possibilita pensar em regimes de alteridade

importantes para compreender o pensamento estético e cosmológico entre povos

Timbira.

3.2 Superfícies alteradas.

O mito e a narrativa que apresento fazem parte do material produzido por Jonas

Sansão (2011), índio Gavião Pyhcopcatiji, graduado em Licenciatura Intercultural

Indígena pela Universidade Federal de Goiás e ativista do movimento indígena na

Amazônia.

Durante o tempo que estive com Jonas na aldeia Governador (TI Governador) e

em Carolina\MA, cidade sede da Wyty Cate Associação Timbira, conversamos sobre os

mecarõõ. Entre os Krahõ eles são vistos em sonhos, no meio do mato quando as pessoas

estão sozinhas e a noite, também por xamãs em sessões individuais, “o conhecimento

parece ser reservado para os curadores e aqueles em potencial” nos diz Carneiro da

Cunha (1978:114). O mito e a narrativa que indica aspectos da escatologia Gavião

Pyhcopcatiji me ajudam a pensar a criação de imagens em sua relação com os mecarõõ

a partir da morte ou de sua eminência. Apresento primeiro um trecho do mito de criação

da humanidade, nele Pyhtry (sol) e Pyht (lua), protagonizam uma série de eventos de

criação do mundo e das coisas que estão nele.

No começo não existia nada. Só havia o Sol e a Lua, que andavam na

Terra. O Sol era mais inteligente e inventava tudo; e a Lua

acompanhava. O Sol fazia a roça, mas não era ele quem trabalhava:

ele botava as ferramentas para trabalhar sozinhas. Um dia, a Lua

escutou o barulho das ferramentas trabalhando e foi até lá espiar.

Chegando lá, as ferramentas se deitaram, ficaram paradas no chão. A

Lua então ordenou que as ferramentas trabalhassem, mas, como elas

não obedeceram ao seu comando, a Lua pegou o machado e bateu na

madeira, porque ele não trabalhava mais. A partir de então, as

ferramentas passaram a não trabalhar mais por si sós; por isso, as

pessoas têm que fazer força com elas, hoje em dia [...] O Sol e a Lua

estavam chupando laranja. O Sol jogou o bagaço da laranja no riacho;

ele afundou e subiu de volta. Então o Sol explicou para a Lua que

quando morrêssemos, nós seríamos assim: afundando e depois

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voltando para fora. A Lua discordou: pegou uma pedra e jogou no

riacho, dizendo que, quando morrêssemos, nós simplesmente

afundaríamos. (Sansão, 2011:12)

A origem da morte enquanto evento irremediável foi observada também por

Carneiro da Cunha (1978:20) entre os Krahõ, “dois ritos funerários que, no mito, dão

conta do caráter diverso da morte: morte seguida de ressurreição e uma morte

irremediável”. Para os Krahõ a noção de karõ está relacionada a uma substância vital, a

um princípio que regula o surgimento de novas formas ao destino post mortem do

homem. Os mekarõ podem morrer varias vezes e se revestir na aparência de animais de

grande porte, de porte menor, pedra, cupim e por fim de toco de árvore (idem).

Entre os Gavião Pyhcopcatiji a noção de carõõ os aproxima dessa idéia de

substância vital. Segundo Jonas, todos os seres possuem carõõ, que ele me traduziu

como alma. O carõõ apenas habita o corpo, mas não parece existir carõõ sem corpo,

mesmo que o corpo (forma) não seja humano. “O corpo da gente é como se fosse uma

caixa do carõõ, o carõõ vem, entra e sai”, explicou Jonas. O carõõ sai do corpo por

motivos de doença, feitiço ou morte, ao sair fica vagando como se estivesse entre dois

universos, o dos vivos e dos mortos. Nesse ínterim, a alma e sua condição visual estão

passando por um processo, ainda não está com os mecarõõ, mas também não pode mais

estar com os vivos na aldeia. Jonas conta que desde menino viu almas. O trecho abaixo

foi retirado de meu diário de campo e narra um desses encontros.

Certa vez eu tive um sonho e me dizia que alguém muito próximo de

mim iria morrer. Eu fiquei pensando muito naquilo. Em um dia,

enquanto voltava de Amarante do Maranhão, a noite com minha mãe,

nos voltávamos a pé, eu fiquei achando estranho ela comprar uma

garrafa de pinga. Ela me disse que agente beberia no caminho.

Próximo a entrada da aldeia, já na estrada que leva até as casas, eu

percebi que tinha alguém caminhando junto com a gente pelo mato.

Mas não era gente não. Ele tinha o caminho próprio dele pelo mato,

não ia pelo limpo, o caminho dele era pelo mato. Ele era igual um

homem, vestia calça, camisa comprida e do lado do rosto que andava

virado para o meu lado era tudo escuro, eu não via nada só uma

escuridão. A gente foi andando e eu olhando ele andando do nosso

lado. Na última porteira antes de entrar na aldeia minha mãe parou

para a gente beber. A alma também parou e sentou no chão junto com

a gente. Eu estava irritado com ela e perguntei: por que você não volta

para sua caixa, você vai ficar andando por ai, volta para sua caixa. A

alma queria beber e eu disse: então bebe. Quando a gente usa alguma

coisa que interessava a alma no tempo que ela estava na sua caixa ela

volta para usar com você. Quando eu falei para ele tomar a tampa da

garrafa se mexeu (Jonas Sansão, 2014).

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Giraldin (2012: 04) se referindo a morte entre os Timbira traz outra narrativa de

uma mulher Pyhcopcatiji:

Numa manha aconteceu a morte de um rapaz e todos foram orientados

a não chorarem. Por volta das quatorze horas, a mãe do rapaz teve um

desmaio e, alguns minutos depois, recobrou-se e começou a chorar

[...] seu karõ viajou e encontrou o karõ de seu filho, que já estava em

relacionamento com as “pessoas” dos mundos dos mortos.

Essa breve noção da escatologia Gavião nos permite pensar na dimensão

transformacional instaurada entre superfícies pela ação do carõõ, que num movimento

constante transformam a superfície de suas “caixas”, seja no mundo dos vivos ou no

mundo dos mortos. A produção de imagens mentais como as da narrativa de Jonas, ou

materialmente visíveis, como aquelas do ritual de reclusão dos Ramkokamekra\Canela,

indicam transformações em via dupla. O corpo humano se altera e a forma que os

mecarõõ assumem também. Parece ser a relação estabelecida através da produção de

imagens que permite estabilizar momentaneamente este processo de constante

transformação de um corpo em outro.

4 Considerações

A produção de imagens foi pensada neste artigo enquanto mais uma

possibilidade de se aproximar do pensamento estético e cosmológico entre povos

Timbira. A pretensão não é criar generalidades, antes indicar que suas formas de

expressão visual podem ser pensadas enquanto esforços em criar “modelos reduzidos”

do mundo cosmológico. Esforço já realizado por outras etnografias (Barcelos Neto,

2002, Velthen, 2003, Lagrou, 2007). Uma vez que meu trabalho com os Gavião

Pyhcopcatiji apenas inicia, o que fiz aqui são conjecturas. Até mesmo as comparações

com os Ramkokamekra\Canela e Krahõ merecem mais atenção. Apenas as exegeses

sobre os sentidos do rito, transcrições de mitos e cantos que acompanham estes nos

aproximará da experiência visual dos Gavião Pyhcopcatiji.

A cosmologia Gavião parece indicar uma certa instabilidade das formas (corpo)

e superfícies (pele\objeto), na qual o carõõ funciona como substância que produz e

destrói formas. Ao habitar um corpo, uma “caixa” segundo os Gavião, o carõõ lhe

submete a um processo de alteração da superfície baseado em um tipo de relação de

familiarização com este corpo outro. Digo, superfície, porque é basicamente sobre ela

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que os índios lançam esforções na tentativa de controlar o fluxo de substâncias e

imagens entre estes corpos, não na anatomia ou fisiologia dos mesmos. Familiarização

porque o corpo (forma) ao ser submetido a um processo de alteração da sua aparência

(superfície) o faz em uma relação onde a superfície lentamente se familiariza com a

forma nova. Ao estabelecer as alterações na superfície torna-se o carõõ mesmo a

própria coisa representada, torna viva a imagem mais do que a representa, pois a

submete a imagem produzida a um contexto de relações entre seres em constante

transformação.

A produção dessas imagens são formas de nos aproximar do pensamento

cosmológico e ontológico entre os povos Timbira. Essas imagens nos levam a refletir

não só pelo que significam, mas pela forma como agenciam relações, inter-relacionando

campos de ação e reflexão diferentes. Quando compreendemos as alterações através

destas formas expressivas, criamos outra maneira de refletir sobre dimensões da vida

social indígena que são manifestadas, principalmente, pela expressão não-verbal.

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