contos de terror

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Arthur Mchen* Contos de Terror Contos de Terror Arthur Machen Tradução, formatação, pesquisa e revisão: RTS – Romance com Tema Sobrenatural (Orkut) Contos de Terror 1

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  • Arthur Mchen* Contos de Terror

    Contos de Terror

    Arthur Machen

    Traduo, formatao, pesquisae reviso:

    RTS Romance com Tema Sobrenatural (Orkut)

    Contos de Terror1

  • Arthur Mchen* Contos de Terror

    A Luz Interior

    Uma tarde de outono, quando as fealdades de Londres estavam veladas por uma leve neblina azulada, e suas vistas e suas largas ruas pareciam esplndidas, o senhor Charles Salisbury passeava pela Rupert Street, aproximando-se pouco a pouco de seu restaurante favorito. Olhava para baixo estudando o pavimento, e assim foi que chocou-se, ao passar pela estreita porta, com um homem que subia do fundo da rua.Rogo-lhe que me desculpe; no olhava onde ia. Poxa, Dyson!Sim, com efeito. Como est , Salisbury?Muito bem. Mas onde esteve, Dyson? No acredito t-lo visto nos ltimos cinco anos.No, atrevo-me a dizer que no._ Lembra-se que me encontrava em maus lenis quando voc veio minha casa de Charlotte Street?Perfeitamente. Lembro que me contou que devia cinco semanas de aluguel, e que se desprendeu de seu relgio por uma insignificante soma.Meu querido Salisbury, sua memria admirvel. Sim, estava mau.. Mas o curioso que pouco depois de que voc me viu, aumentaram meus apuros. Minha situao financeira foi descrita por um amigo como sem igual. No aprovo os vulgarismos, voc sabe, mas essa era minha condio. Que tal se entrarmos? Poderia haver outras pessoas igualmente interessadas em comer. uma debilidade humana, Salisbury.Com efeito, vamos. Enquanto passeava me perguntava se estaria livre a mesa do canto. Como voc sabe tem respaldos de veludo.Conheo o lugar, est vazio._ Sim, como lhe dizia, cheguei a estar mais apurado ainda.O que fez ento? - perguntou Salisbury, tirando o chapu e acomodando-se beira do assento, enquanto olhava o menu com vivo interesse.Que o que fiz? Pois me sentei e refleti. Tinha recebido uma excelente educao clssica e sentia uma categrica averso por qualquer classe de negcio: esse foi o capital com o que me enfrentei ao mundo. Sabe, ouvi gente qualificar as azeitonas de desagradveis. Que lamentvel prosasmo! Freqentemente pensei, Salisbury, que poderia escrever poesia sincera sob a influncia das azeitonas e do vinho tinto. Peamos Chianti; pode que no seja muito bom, mas a garrafa simplesmente encantadora.Est muito bem aqui. Tambm podemos pedir uma garrafa grande.De acordo. Ento refleti sobre minha ausncia de perspectivas e determinei me embarcar na literatura.Realmente estranho. Parece voc encontrar-se em circunstncias bastante confortveis, embora...

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    Embora! Que stira sobre to nobre profisso! Temo, Salisbury, que no tem voc uma boa opinio a respeito da dignidade de um artista. V-me sentado frente ao escritrio - ou ao menos pode ver se se incomoda em chamar- com pena e tinta, e a pura nada ante mim, e se voltar para as poucas horas com toda probabilidade encontrar uma obra de criao.Sim, completamente de acordo. Tenho idia de que a literatura no remunerativa.Est voc equivocado; suas recompensas so imensas. Posso mencionar, de passagem, que pouco depois de ver voc obtive um pequeno ingresso. Um tio morreu e resultou inesperadamente generoso.Ah! Compreendo. Deve ter sido oportuno.Foi agradvel, inegavelmente agradvel. Sempre o considerei como uma dotao para minhas investigaes. Dizia a voc que eu era um homem de letras; possivelmente seria mais correto me descrever a mim mesmo como um homem de cincia.Meu querido Dyson, verdadeiramente voc mudou muito nos ltimos anos. Pensava, sabe, que era uma espcie de cidado ocioso, o tipo de homem que pode encontrar-se na calada norte de Picadilly de maio a julho.Assim . Ainda ento me estava formando, embora inconscientemente. Como voc sabe, meu pobre pai no teve os meios para me enviar universidade. Em minha ignorncia estava acostumado me queixar por no ter completado minha educao. Loucuras de juventude, Salisbury; Piccadilly era minha universidade. Ali comecei a estudar a grande cincia que ainda me ocupa.A que cincia se refere? cincia da grande cidade; a fisiologia de Londres; literal e metafisicamente o tema maior que pode conceber a mente humana. Que admirvel assado de carne! Indubitavelmente o definitivo final do faiso. s vezes me sinto ainda absolutamente afligido quando penso na imensido e complexidade de Londres... Paris pode chegar a entender-se a fundo mediante uma razovel dose de estudo; mas Londres sempre um mistrio. Em Paris se pode dizer: Aqui vivem as atrizes, aqui os bomios e os rats; mas em Londres diferente. Pode-se apontar com bastante exatido uma rua como morada das lavadeiras; mas no segundo piso pude haver um homem estudando os orgens dos caldeus, e no desvo, um artista esquecido agoniza lentamente.Vejo que voc, Dyson, imutvel - disse Salisbury sorvendo lentamente seu Chianti-. Penso que lhe engana sua imaginao muito fervente; o mistrio de Londres unicamente existe em sua imaginao. me parece um lugar bastante aborrecido. Estranha vez se oua falar em Londres de algum verdadeiro crime artstico, enquanto que, conforme acredito, Paris abunda neste tipo de coisas.

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    Me sirva mais vinho. Obrigado. Est voc equivocado, meu querido companheiro, realmente equivocado. Londres no tem nada do que envergonhar-se no caminho do crime. Se fracassarmos, por falta do Homeros, no do Agamenones. Como voc sabe: Carent quia poeta sacro.Lembrana a entrevista. Mas no acredito poder lhe seguir de tudo.Bem, em linguagem plana, no temos em Londres bons escritores especializados neste gnero de coisas. Nossos cronistas mais comuns so torpes sabujos; cada histria que contam a estragam ao cont-la. Sua idia do terror e do que suscita terror infelizmente deficiente. Nada os contente salvo o sangue, o vulgar sangue vermelho, e quando a encontram carregam as tintas, considerando que produziram um artigo eficaz. uma pobre concepo. E, por alguma curiosa fatalidade, so sempre os assassinos mais comuns e brutais os que atraem principalmente a ateno e conseguem as mais das vezes que se escreva deles. Por exemplo, ouviu voc falar talvez do caso Harlesden?No, no. No recordo nada dele. obvio que no. E, entretanto, a histria muito curiosa. Contarei enquanto tomamos caf.

    Harlesden, como voc sabe, ou mas bem espero que no, realmente um bairro nos subrbios de Londres; curiosamente algo diferente de subrbios venerveis e primorosos como Norwood ou Hampstead, to diferente como cada um deles o do outro. Hampstead, quero dizer, onde a gente procuraria o cume de uma grande casa com trs acres de terreno e vrios pavilhes, embora recentemente h um substrato artstico; enquanto que Norwood o lar das prsperas famlias de classe mdia que escolheram a casa porque estava prxima a palcio, e seis meses depois se fartaram do palcio. Entretanto, Harlesden um lugar sem carter. ainda muito novo para ter carter.

    H fileiras de casas vermelhas e fileiras de casas brancas com brilhantes persianas verdes, e portais descascados e pequenos ptios traseiros que chamam jardins, e umas poucas lojas dbeis, e logo todo se desvanece, precisamente quando um se crie a ponto de captar a fisionomia do lugar.

    Que diabos significa isso? Suponho que as coisas no se desabaro ante nossos olhos!

    Bom, no, no isso exatamente. Mas como entidade, Harlesden desaparece. Suas ruas se convertem em silenciosas ruelas, e suas chamativas casas em olmos, e os jardins traseiros em verdes pradarias. Imediatamente se passa da cidade ao campo; no h transio como em uma pequena populao rural, nem suaves graduaes de grama e rvores frutferas, com uma densidade paulatinamente menor de casas, a no ser um afastamento repentino. Acredito que a maior parte da gente que ali vive cabe na City. Uma ou duas vezes vi um nibus repleto

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    dirigindo-se para l. mas como quero que seja, no posso conceber uma solido maior em um deserto a meia-noite que a que ali existe ao meio-dia.

    Parece uma cidade morta; as ruas refulgem em sua desolao, e ao passar descobre um repentinamente que tambm elas so parte de Londres. Faz um ou dois anos vivia ali um mdico. Tinha instalado sua placa metlica e seu abajur vermelho no mesmo limite de uma dessas ruas reluzentes, e a costas da casa os campos se estendiam ao longe para o norte.

    Desconheo a causa pela que se estabeleceu em um lugar to afastado; possivelmente o doutor Black, como lhe chamaremos, fora um homem precavido e olhasse ao futuro. Suas amizades, conforme se soube logo, tinham-lhe perdido de vista durante muitos anos, e inclusive no sabiam que fora mdico e muito menos onde vivia. Entretanto, estabeleceu-se em Harlesden com os restos de uma clientela e uma esposa extraordinariamente bela. Ao pouco de chegar ao Harlesden a gente estava acostumada lhes ver passeando juntos nas tardes veraniegas, e, por isso se podia observar, pareciam um casal muito carinhoso. Estes passeios continuaram durante o outono e logo cessaram, mas, naturalmente, segundo os dias se obscureciam e o tempo refrescava, podia esperar-se que as ruelas prximas a Harlesden perderiam muitos de seus atrativos. Terminado o vero, ningum voltou a ver a senhora Black; o doutor estava acostumado a responder s perguntas de seus pacientes que ela se encontrava um pouco indisposta e que, sem dvida, estaria melhor na primavera. Mas a primavera chegou, e o vero, e a senhora Black no apareceu, e finalmente a gente comeou a murmurar e a falar entre eles, e se disseram todo tipo de coisas curiosas hora do ch, que como voc possivelmente saber o nico entretenimento conhecido nesses subrbios.

    O doutor Black comeou a surpreender olhadas muito estranhas a ele dirigidas, e a clientela, que era numerosa, diminuiu visivelmente. Em soma, quando os vizinhos cochichavam sobre o tema, sussurravam que a senhora Black estava morta e que o doutor se desfeito dela. Mas este no era o caso; a senhora Black foi vista com vida em junho. Foi uma tarde de domingo, um desses poucos dias deliciosos que oferece o clima ingls, e a metade dos londrinos se habanextraviado pelos campos, em todas direes, para aspirar o perfume do florido maio e comprovar se tinham florescido j as rosas silvestres nos sebes. Aquela manh tinha sado cedo e tinha dado um comprido passeio, e de um modo ou outro quando ia retorno a casa encontrei no mesmo Harlesden de que estivemos falando. Para ser exato, tomei uma jarra de cerveja no General Gordon, o mais florescente estabelecimento da vizinhana, e enquanto perambulava sem objetivo vi uma brecha extraordinariamente tentador em um cercado de arbustos e decidi explorar o prado.

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    Depois do infernal cascalho pulverizado pelas caladas suburbanas a suave erva muito agradvel de pisar, e logo depois de caminhar um bom momento pensei que eu gostaria de me sentar em um banco e me fumar um cigarro. Enquanto tirava a cigarreira olhei em direo s casas e conforme olhava senti que me cortava a respirao e que meus dente comeavam a tocar castanholas, e a bengala que levava em uma mo se partiu em duas do aperto que dei. Foi como se uma corrente eltrica me descesse pela espinha e, entretanto, durante algum tempo que me pareceu comprido, mas que deve ter sido muito curto, contive-me me perguntando que diabos ocorria. Ento compreendi o que tinha feito estremecer meu corao e tinha gelado meus ossos de angstia. Ao olhar em direo ltima casa da ma frente a mim, na curta frao de um segundo tinha visto um rosto em uma das janelas superiores da casa. Era um rosto de mulher, e, entretanto, no era humano. Voc e eu, Salisbury, ouvimos falar em nossa poca, quando nos sentvamos nos bancos da igreja ao sbrio estilo ingls, de uma concupiscncia que no pode saciar-se e de um fogo inextinguvel, mas nenhum nem outro temos a menor ideia do que essas palavras querem dizer. Espero que voc nunca a tenha, pois eu, ao ver essa cara na janela, com o cu azul sobre mim e o quente vento me acariciando em rajadas, compreendi que tinha penetrado em outro mundo: tinha cuidadoso pela janela de uma casa ordinria e flamejante, e tinha visto o inferno aberto ante mim. Quando me recuperei da primeira impresso, pensei uma ou duas vezes que me tinha desacordado; meu rosto jorrava suor frio e minha respirao estalava em soluos, como se me afogasse.

    Afinal me arrumei para me levantar e cruzei a rua: ali vi o nome Dr. Black na rolha da porta principal. O destino ou minha sorte quis que a porta se abrisse e um homem baixasse as escadas quando eu passava. No tive nenhuma dvida de que era o mesmo doutor. Era de um tipo bastante corrente em Londres: alto e magro, plido de cara e com um opaco bigode negro. Quando nos cruzamos sobre o pavimento me dirigiu um olhar, e embora foi simplesmente a olhada casual que um pedestre dedica a outro, mentalmente cheguei concluso de que era um tipo de trato perigoso. Como voc pode imaginar, segui meu caminho bastante perplexo e tambm horrorizado pelo que tinha visto. Depois visitei de novo o General Gordon, e fiz proviso da maioria das intrigas que circulavam pelo lugar em relao com os Black. No mencionei que tinha visto na janela um rosto de mulher; mas me inteirei de que a senhora Black tinha sido muito admirada por sua formosa cabeleira dourada, e o rosto que me tinha impressionado com to desconhecido terror estava rodeado por bafo de flutuantes cabelos loiros, como uma aurola de glria ao redor do rosto de um stiro. Todo o assunto me incomodava de maneira indescritvel, e quando voltava para casa fiz todo o possvel por me convencer de que a impresso recebida tinha sido uma iluso, mas de

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    nada serve. Sabia muito bem que tinha visto o que tentei lhe descrever; moralmente estava seguro de ter visto a senhora Black.

    Alm disso estavam as intrigas do lugar, a suspeita de jogo sujo, que sabia que era falsa, e minha prpria convico de que existia alguma malcia fatal ou qualquer outra anomalia nessa casa de cor vermelha grit da esquina do Devon Road. Como construir uma teoria razovel com estes dois elementos? Em resumo, encontrava-me imerso em um mundo de mistrio; tratei de decifr-lo e enchi meus momentos de cio atando os cabos soltos da especulao, mas no avancei nem um s passo para a soluo verdadeira, e quando chegou o vero o assunto parecia mais nebuloso e confuso, e projetava um vago temor, como um antigo pesadelo. Supus que breve se teria desvanecido no fundo de meu crebro -no deveria esquec-lo, pois semelhante coisa nunca pode esquecer-se-; mas uma manh quando lia o peridico me chamou a ateno um titular de umas duas dzias de artigos de letra pequena. As palavras que tinha visto eram simplesmente: O caso Harlesden, e sabia o que ia ler. A senhora Black tinha morrido. Black tinha chamado a outro mdico para certificar a causa da morte, mas algo ou algum despertou as suspeitas do estranho doutor e houve uma investigao judicial com autpsia. O resultado, confessarei-o, assombrou-me grandemente: foi o triunfo do inesperado. Os dois mdicos que praticaram a autpsia se viram obrigados a confessar que no puderam descobrir o menor rastro de qualquer tipo de engano; seus ensaios e reativos mais deliciosos no conseguiram detectar presena de veneno, nem mesmo na mais infinitesimal quantidade. A morte tinha sido produzida, descobriram, por uma espcie de enfermidade cerebral, em certo modo confusa e cientificamente interessante. A malha do crebro e as molculas de matria cinza tinham experiente uma extraordinria srie de mudanas; e o mais jovem dos dois mdicos, que tinha certa reputao, acredito, como especialista em enfermidades mentais, fez algumas observaes ao dar seu testemunho que ao momento me impressionaram profundamente, embora ento no compreendi seu significado por completo.

    Ao comear meu exame -disse- estava assombrado de encontrar aparncias de uma ndole completamente nova para mim, no obstante meu em certo modo ampla experincia. De momento no tenho necessidade de especificar estas aparncias; bastar-me manifestando que enquanto executava minha tarefa logo que podia acreditar que o crebro que tinha diante fora de um ser humano.

    Esta declarao causou certa surpresa, como voc pode imaginar, e o juiz perguntou ao mdico se queria dizer que o crebro se parecia com o de um animal.

    No -respondeu ele-, eu no diria tanto. observei algumas aparncias que pareciam apontar nessa direo; mas outras ainda mais

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    surpreendentes, indicavam uma estrutura nervosa de uma ndole completamente diferente a do homem ou o mais nfimo dos animais.

    A declarao causou estranheza, mas o jurado, naturalmente, apresentou um veredicto de morte por causas naturais, e o caso se acabou para o pblico. No obstante, depois de ter lido a declarao do doutor, resolvi que eu gostaria de saber bastante mais, e me pus a trabalhar no que prometia ser uma interessante investigao. Realmente tive muitos problemas, mas at certo ponto tive xito. Embora ento, meu querido companheiro, no tinha nem idia do porqu. deu-se conta de que estivemos aqui quase quatro horas? Peamos a conta e vamos.

    Os dois homens saram em silncio e permaneceram um momento no frio ambiente vendo acontecer frente a eles o apressado trfico do Conventry Street, acompanhado dos retumbantes timbres dos cabriols e os gritos dos vendedores de peridicos: em intenso murmrio longnquo de Londres agitando uma e outra vez por debaixo desses rudos mais estrepitosos.

    um caso estranho, no certo? -disse Dyson finalmente-. O que opina voc?

    Meu querido colega, no escutei o final, portanto me reservarei a opinio. Quando me contar o resto?

    Venha para ver-me alguma tarde; digamos na quinta-feira prxima. Aqui tem minha direo. boa noite; desejo descender at o Strand.

    Dyson chamou um cabriol que passava, e Salisbury girou para o norte em direo a sua casa.

    O senhor Salisbury, como pode haver-se deduzido das escassas observaes que tinha sido capaz de fazer no transcurso da tarde, era um jovem cavalheiro de intelecto singularmente slido, recatado e retrado ante os mistrios e o inslito, e com uma averso temperamental pela paradoxo. Durante o almoo no restaurante se viu obrigado a escutar quase em completo silncio uma estranha malha de inverossimilhanas trespassadas com a ingenuidade de um curioseador nato de intrigas e mistrios, e se sentia cansado ao cruzar Shaftesbury Avenue e mergulhar-se nas vsceras do Soho, pois sua moradia se encontrava nas proximidades do lado norte de Oxford Street.

    Enquanto caminhava, especulava sobre o provvel destino do Dyson, dependendo da literatura, sem o amparo de algum parente considerado, e no pde menos de concluir que estava to sutilmente imbudo de uma imaginao excessivamente brilhante que, com toda probabilidade, seria recompensado com um par de tabuletas para anncios ou uma pancarta de bloco. Absorto neste fio de pensamento, e admirando a perversa destreza capaz de transmutar o rosto de uma mulher doentia e um caso de enfermidade mental nos toscos elementos de um romance, Salisbury se extraviou entre as ruas fracamente iluminadas, sem advertir o

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    impetuoso vento que golpeava com fora pelas esquinas e elevava em redemoinhos o lixo disperso sobre o pavimento, enquanto negros nubarrones se acumulavam sobre a amarelada lua. Nem sequer a queda em seu rosto de uma ou duas gotas isoladas de chuva lhe tirou de suas meditaes, e s comeou a considerar a convenincia de procurar algum refgio quando a tormenta estalou de repente em plena rua. Impelida pelo vento, a chuva descarregou com a violncia de uma trovejada, salpicando ao cair sobre as pedras e assobiando pelo ar, e logo uma verdadeira corrente de gua corria pelos arroios e se acumulava em atoleiros sobre os obstrudos desges. Os escassos viandantes extraviados, que mais que passear pela rua vadiavam, puseram-se a correr como coelhos assustados para algum invisvel refgio, e embora Salisbury assobiou ruidosa e repetidamente em busca de um cabriol, no apareceu nenhum.

    Olhou a seu redor, para descobrir o longe que podia estar de Oxford Street, mas vagando indiferentemente se apartou de seu caminho e se encontrou em uma zona desconhecida com toda a aparncia de estar desprovida inclusive de hotis onde pudesse um proteger-se pela modesta soma de dois centavos. As luzes escasseavam e estavam muito espaadas, e luziam, depois dos sujos cristais, pelo plido fluxo de azeite; a esta vacilante luz pde vislumbrar Salisbury os sombrios e imensos casares de que se compunha a rua. Alpasar junto a eles, apressado e encolhido sob a avalanche de chuva, reparou nos inumerveis atiradores das portas, cujas inscries, gravadas em chapas de bronze, pareciam desvanecer-se de velhas, e aqui e l um beiral ricamente esculpido me sobressaa da porta, enegrecido pela imundcie de cinqenta anos.

    A tormenta parecia agravar-se com fria crescente; Salisbury estava completamente molhado e tinha estragado seu chapu novo, e com todo Oxford Street parecia to longnqua como sempre; com profundo alvio o empapado homem alcanou a ver uma sombria arcada que parecia brindar amparo da chuva, se no do vento. Salisbury tomou posio na esquina mais seca e olhou em torno dele; encontrava-se em uma espcie de passagem artificial sob parte de uma casa e atrs dele se estendia uma estreita calada que conduzia entre brancas paredes a regies desconhecidas. Tinha permanecido ali algum tempo, esforando-se inutilmente por desembaraar-se em parte de sua suprflua umidade, e alerta ao passo de algum cabriol, quando lhe chamou a ateno um rudo estrepitoso procedente da passagem deixada atrs, e que aumentava ao aproximar-se. Em um par de minutos pde distinguir a voz rouca e grit de uma mulher, ameaando e repudiando, cujos acentos ressonavam nas muito mesmos pedras enquanto, de quando em quando, um homem grunhia e protestava. Entretanto, contra toda aparncia isenta de romance, ao Salisbury agradavam as brigas guias de ruas e acabava de iniciar-se nas mais divertidas fases da embriaguez; por conseguinte,

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    apaziguou-se e se disps a escutar e observar com o aspecto de um abonado pera. No obstante, para seu chateio, a tempestade pareceu apaziguar-se repentinamente, e pde ouvir no mais que os impaciente passos da mulher e o lento vaivm do homem aproximando-se dele.

    Ocultando-se na sombra da parede pde ver como se aproximavam os dois; o homem estava evidentemente bbado, e tinha seus mais e seus menos para evitar se chocar com as paredes, s que se agarrava a um e outro lado como uma barco golpeada pelo vento. A mulher olhava frente, com lgrimas em seus resplandecentes olhos, que voltaram a brilhar quando aquelas desapareceram, e finalmente estalou em uma fileira de insultos dirigidos contra seu companheiro.

    Vil uva sem semente, ruim, desprezvel canalha -seguiu ela dizendo, depois de uma incoerente avalanche de maldies-. Pensa que vou seguir toda a vida trabalhando para voc como uma pulseira enquanto voc persegue essa garota de Green Street e bebe cada peni que tem? Equivoca-te, Sam. Seriamente no o suporto mais. Maldito ladro, estou cansada de voc e de seu patro, assim que j pode fazer seus prprios recados, e s espero que lhe metam em apuros.

    A mulher abriu seu regao e, tirando algo parecido com um papel, enrugou-o e o atirou. Caiu aos ps de Salisbury. Logo se foi e desapareceu na escurido, enquanto o homem se cambaleava na rua, resmungando vagamente contra si mesmo com voz aturdida. Salisbury lhe seguiu, lhe vendo fazer esses sobre o pavimento, deter-se de vez em quando e inclinar-se indeciso, para logo tomar sbitamente um novo rumo.

    O cu tinha esclarecido, e brancas nuvens encarneiradas cruzavam fugazes frente lua, alta no firmamento. A luz ia e vinha intermitentemente, segundo as nuvens passavam, limpando e voltando a cobrir o cu.

    Quando os brancos raios iluminaram a passagem, Salisbury divisou a bolinha de papel enrugado que a mulher tinha atirado. Extraamente, curioso por saber o que podia conter, recolheu-a e a meteu no bolso, ficando de novo em caminho.

    Salisbury era um homem de costumes. Quando chegou em casa, empapado at os ossos, lhe pendurando a roupa, e com o chapu impregnado de um lvido rocio, seu nico pensamento foi a respeito de sua sade, da que se ocupava solcito. portanto, depois de trocar-se de roupa e embutir-se em um quente batn, procedeu a preparar um sudorfico a base de genebra e gua, esta aquecida em um desses abajures de lcool, que mitigam as austeridades da vida de um moderno ermito.

    Quando se teve administrado a preparao, e teve acalmado sua excitao com uma pipa de tabaco, Salisbury pde ir-se cama em um alegre estado de ociosidade, sem pensar em sua aventura na sombria arcada, nem nas ominosas fantasias com que Dyson tinha temperado sua

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    comida. O mesmo ocorreu a manh seguinte durante o caf da manh, pois Salisbury insistiu em no pensar em nada at terminar de comer. Mas quando retiraram a taa e o prato, e acendeu sua pipa maanera, recordou a bolinha de papel e comeou a revolver nos bolsos de seu molhado casaco. No recordava em que bolso a tinha posto e, ao colocar a primeiro mo em um e logo no outro, experimentou uma estranha sensao de temor a que no estivesse ali, embora certamente no poderia ter explicado a importncia que atribua ao que com toda probabilidade no era mais que um refugo. Entretanto, suspirou com alvio quando seus dedos tocaram a enrugada superfcie em seu bolso interior, tirando-a devagar e colocando-a sobre o pequeno escritrio ao lado de sua poltrona, com mesmo cuidado que se se tratasse de uma estranha jia. Salisbury se sentou a fumar, e olhou fixamente seu achado durante uns quantos minutos, com a estranha tentao de jog-lo no fogo, e evitar-se com isso tanto a especulao a respeito de seu possvel contedo como a razo pela que a ofendida mulher tinha arrojado uma parte de papel com tanta veemncia. Como pode supor-se, o ltimo sentimento foi o que se imps, e, finalmente, no sem um pouco de repugnncia, agarrou o papel e o desenrugou, colocando-o frente a ele.

    Era um simples pedao de papel sujo, claramente arrancado de um bloco de papel barato, e no centro tinha umas escritas poucas linhas com letra curiosamente apertada. Salisbury inclinou a cabea e por um momento cravou a vista no papel com ansiedade, suspirando profundamente; logo voltou para sua cadeira com o olhar perdido, at que finalmente em uma mudana repentina estalou em gargalhadas, to prolongadas, sonoras e tumultuosas que o menino da caseira despertou no piso de abaixo e imitou sua hilaridade com espantosos alaridos. Mas ele seguiu rendo e agarrou o papel para ler pela segunda vez o que parecia to insensato disparate.

    Q. tem que ir a Paris a ver seus amigos, comeava. Atravessar Handel S. Uma vez ao redor da grama, duas vezes ao redor da amada, e trs vezes ao redor do arce.

    Salisbury agarrou o papel e o enrugou como fizesse a zangada mulher; logo apontou em direo ao fogo. Entretanto, no o jogou nele, mas sim o atirou descuidadamente no interior do escritrio e voltou a rir. O completo desatino de todo o assunto o ofendia, e estava envergonhado de sua prpria especulao ofegante, como o que se queima as sobrancelhas com os altissonantes comunicados dos ecos de sociedade do peridico e s encontra anncios e trivialidades. dirigiu-se janela e contemplou a lnguida vida matinal de seu bairro; criada-las com desalinhados vestidos estampados esfregando os degraus de entrada na casa, o peixeiro e o aougueiro em suas rondas, e os comerciantes de p junto s portas de suas pequenas lojas, abatidos pela falta de negcio e de emoo. ao longe uma bruma azulada proporcionava uma certa

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    grandeza a toda a vista, mas nesta conjunto era deprimente e s tinha interessado a um estudioso da vida londrino, que sempre encontra algo delicioso e seleto em cada uma de suas facetas. Salisbury se afastou aborrecido e se hospedou na poltrona, estofo em um tom verde brilhante e adornado com tachones dourados, que constitua o orgulho e a atrao de seus aposentos.

    Voltou para sua ocupao matinal: a leitura atenta de uma novela que tratava de esporte e amor de tal forma que sugeria a colaborao de uma moo de quadra e um internato de senhoritas. Entretanto, em circunstncias normais Salisbury teria seguido interessando-se pela histria at a hora do almoo, mas essa manh se agitava em sua cadeira, agarrava o livro e o voltava a deixar, e finalmente jurava e amaldioava de simples irritao. Em realidade, a rima do papel achado na arcada lhe tinha metido na cabea, e fizesse o que fizesse no podia menos de resmungar uma e outra vez: Uma vez ao redor da grama, duas vezes ao redor da amada, e trs vezes ao redor do arce.

    Se converteu em verdadeira tortura, como o ridculo estribilho de uma cano de music-hall, eternamente citada, cantada a todas as horas do dia e da noite, e apreciada pelos golfillos guias de ruas como um infalvel recurso cada seis meses. Salisbury saiu rua e tratou de esquecer a seu inimigo entre os empurres da multido e o rugido e o estrondo do trfico, mas imediatamente se encontrou a si mesmo afastando-se silenciosamente e perambulando por paragens desertos, devanndose os miolos em vo tratando de achar algum sentido a frases que no o tinham. A chegada da quinta-feira foi um grande alvio, pois recordou que tinha uma entrevista com o Dyson. Os fteis sonhos do que se fazia chamar homem de letras pareciam divertidos em comparao com esta incessante repetio, esta perplexidade da que no parecia poder escapar. Dyson estava domiciliado em uma das ruas mais tranqilas que levam do Strand ao rio e, ao passar Salisbury pela estreita escada que conduzia morada de seu amigo, viu que o tio tinha sido seriamente benfico. O estou acostumado a resplandecia e ondulava com tudas as cores do Oriente; era, como Dyson observou pomposamente, um ocaso de sonho, e suas cortinas extraamente elaboradas, nas que brilhavam fios dourados aqui e l, impediam de ver o crepsculo das ruas londrinos, com seus faris acesos. Nas prateleiras de um armrio de carvalho havia copos e pratos de velha cermica francesa, e gravados em branco e negro, dos que no podem encontrar-se no Haymarket ou Bond Street, destacavam esplendorosamente sobre papel japons. Salisbury se sentou no banco que havia junto ao lar e aspirou e mesclou a fumaas de incenso e de tabaco, maravilhado e atnito acima de tudo este esplendor do reps verde e as oleografas, o espelho de marco dourado e o brilho de seu prprio apartamento.

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    Alegra-me que tenha vindo -disse Dyson-. confortvel este pequeno aposento, no certo? No parece encontrar-se voc muito bem, Salisbury. No lhe ocorre nada, verdade?

    No; mas estive bastante vexado estes ltimos dias. A verdade que tive uma espcie de estranha aventura, suponho que assim poderia cham-la, a noite que nos encontramos, e me preocupou o bastante. E o mais irritante que se trata do disparate mais simples: entretanto, logo o contarei tudo. Ia voc a me referir o resto dessa estranha histria que comeou no restaurante.

    Sim. Mas me d medo, Salisbury, voc incorrigvel. voc escravo do que chama evidncias.

    Sabe voc muito bem que no fundo acredita que a singularidade deste caso criao minha unicamente, e que em realidade todo to natural como manifesta a polcia. Mas primeiro beberemos algo e voc pode alm de acender sua pipa.

    Dyson se chegou at a despensa de carvalho e tirou do fundo uma garrafa redonda e dois vasitos, pitorescamente dourados.

    Benedictine -disse-. Tomar um pouco no?Salisbury assentiu, e os dois homens se sentaram, bebendo e fumando reflexivamente durante alguns minutos antes de que Dyson comeasse a falar.

    Vejamos -disse finalmente-, estvamos na pesquisa judicial, verdade?

    _ No, j terminamos com isso. Ah!, j recordo. Estava-lhe contando que, em geral, tinha tido xito em minha investigao, pesquisa, ou como quero cham-la, sobre o caso. No foi a onde o deixei?

    Sim, assim foi. para ser preciso, acredito que a ltima palavra que mencionou sobre o assunto foi embora.

    Exato. Da outra noite estive todo o tempo pensando e cheguei concluso de que embora seja seriamente considervel. Falando sem rodeios, tenho que confessar que o que descobri, ou acreditei descobrir, no significa em realidade nada. Estou to longe da medula do assunto como sempre. Entretanto, posso igualmente lhe contar o que sei. Como recordar lhe disse que estava muito impressionado com algumas observaes de um de quo mdicos testemunhou no julgamento. assim, decidi que meu primeiro passo devia consistir em tratar de lhe tirar esse doutor algo mais definido e inteligvel. De um modo ou outro me arrumei isso para ser apresentado ao homem: citou-me para ir ver lhe. Resultou ser um tipo simptico e afvel, bastante jovem e de maneira nenhuma como os tpicos mdicos, e comeou o bate-papo me oferecendo usque e charutos. No acreditei que valesse a pena andar com rodeios, assim comecei lhe dizendo que parte de sua declarao na investigao do caso Harlesden me tinha impressionado por sua peculiaridade, e lhe mostrei o

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  • Arthur Mchen* Contos de Terror

    recorte impresso com as linhas em questo sublinhadas. Jogou s uma olhada parte de papel e me olhou com estranheza.

    Assim que lhe impressionou por sua peculiaridade, n! -disse-. Bem, deve voc recordar que o caso Harlesden foi muito peculiar. De fato, acredito que felizmente posso dizer que no referente a alguns rasgos especficos foi nico, verdadeiramente nico.

    Completamente de acordo -repliquei eu-, e por isso pelo que me interessa e quero saber mais dele. E pensei que se algum podia me dar alguma informao esse seria voc. O que opina voc?

    Era um tipo de pergunta bastante categrica, e meu doutor pareceu bastante desconcertado.

    Bem -disse-. Como imagino que o motivo de sua pergunta deve ser simples curiosidade, acredito que posso lhe contar minha opinio um pouco livremente.Assim senhor -?senhor Dyson?- se quiser voc saber minha teoria, a vai: acredito que o doutor Black matou a sua mulher.

    Mas o veredicto -respondi yose extraiu de sua prpria declarao.Certo; o veredicto se ditou de acordo com a declarao de meu

    colega e com a minha e, dadas as circunstncias, acredito que o jurado atuou com muita sensatez. De fato, no vejo o que outra coisa podiam ter feito. Mas eu aferro a minha opinio, entenda-o, e digo tambm isto: no me surpreenderia que Black fizesse o que eu acredito firmemente que fez. Penso que estava justificado.

    Justificado? Como isso?-perguntei. Estava assombrado, como voc pode imaginar, pela resposta obtida. O doutor girou brandamente sua cadeira e por um instante me olhou resolutamente antes de responder.

    Suponho que no voc um homem de cincia. Pois nesse caso no serviria de nada que eu lhe desse mais detalhes. Sempre me hei oposto firmemente a qualquer tipo de relao entre a fisiologia e a psicologia.

    Acredito que ambas apostam pelo sofrimento. Ningum reconhece mais decididamente que eu a impraticvel sima, o insondvel abismo que separa ao mundo consciente de tudo que rodeia matria. Sabemos que cada mudana de consciencia est acostumado a vir acompanhado de uma nova disposio das molculas da substncia cinza; e isso tudo.

    Qual o vnculo entre eles, ou por que coincidem, no sabemos, e a maioria dos peritos acredita que nunca poderemos sab-lo. Contudo, direi-lhe que enquanto fazia meu trabalho, com o escalpelo na mo, tive a convico de que, a despeito de todas as teorias, o que jazia frente a mim no era o crebro de uma mulher morta, nem no o crebro de um ser humano. obvio vi o rosto; mas estava muito tranqilo, desprovido de expresso. Deveu ter sido, sem dvida, um rosto formoso, mas devo dizer

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  • Arthur Mchen* Contos de Terror

    honestamente que no teria cuidadoso esse rosto quando ainda tinha vida nem por um milhar de guineas, nem sequer por duas vezes essa soma.

    Meu prezado senhor -pinjente-, surpreende-me voc em extremo. Diz voc que no era o crebro de um ser humano. O que era ento?

    O crebro de um demnio -replicou-, e no me cabe a menor duvida de que Black encontrou alguma forma de acabar com ele. Seja o que fosse a senhora Black, no estava em condies de permanecer neste mundo. Algo mais?No? boa noite.

    Era uma estranha opinio proveniente de um homem de cincia, no?

    Quando me disse que no teria cuidadoso essa cara enquanto vivia por um milhar de guineas, ou dois milhares de guineas, pensei no rosto que eu tinha visto, mas no disse nada. Voltei para o Harlesden e fui de loja em loja, fazendo pequenas compras e tratando de averiguar se ficava alguma propriedade dos Black, mas havia pouco que contar. Um dos lojistas aos que me dirigi afirmou ter conhecido bem a difunta; estava acostumado a comprar todos os mantimentos que necessitava em seu pequeno lar, pois nunca tiveram serventes, embora sim uma criada ocasionalmente, a qual no tinha visto a senhora Black desde meses antes de que morrera. Segundo o lojista, a senhora Black era uma dama agradvel, sempre amvel e considerada, e to afeioada com seu marido e ele dela, segundo todos opinavam. E entretanto, deixando a um lado a opinio do doutor, eu sabia o que tinha visto. portanto, depois de pensar nisso e atar cabos, pareceu-me que a nica pessoa que provavelmente poderia me ajudar era o mesmo Black, e decidi lhe encontrar. obvio no lhe podia encontrar no Harlesden; tinha abandonado o bairro, j o disse, imediatamente depois do funeral. Tudo o que continha a casa tinha sido vendido, e um bom dia Black tomou o trem com um ba e se foi, ningum sabe onde. Fortuitamente voltei a ouvir falar dele, e por pura casualidade lhe encontrei finalmente. Um dia passeava pelo Gray.s Inn Road, sem nenhum destino em particular, olhando a meu redor, como estava acostumado a, e sustentando forte meu chapu, pois era um dia borrascoso a comeos de maro e o vento fazia que se balanassem e tremessem as taas das rvores da estalagem. Tinha subido do final do Holborn e quase tinha tomado Theobald.s Road quando reparei em um homem que caminhava frente a mim, apoiado em um fortificao, e aparentemente muito dbil. Havia algo em seu olhar que incitou minha curiosidade, no sei por que, e comecei a caminhar mais rpido com a idia de lhe alcanar, quando de repente seu chapu voou e, saltando sobre o pavimento, chegou a meus ps. Resgatei, obvio, o chapu e lhe joguei uma olhada enquanto me dirigia para seu proprietrio. Era toda uma biografia: levava em seu interior o nome de um fabricante do Piccadilly, mas acredito que nem um

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    mendigo o teria recolhido do arroio. Ento levantei o olhar e vi o doutor Black do Harlesden me esperando. Coisa estranha, no? Mas que mudana!, Salisbury. Quando contemplei ao doutor Black baixando as escadas de sua casa do Harlesden era um homem erguido, que caminhava com firmeza sobre seus bem formados membros; um homem, diramos, na flor da vida. E agora esta miservel criatura se inclinava ante mim, curvado e dbil, murchas as bochechas e o cabelo prematuramente encanecido, os membros trementes e capengantes, e o sofrimento nos olhos. Deu-me as obrigado por recolher seu chapu dizendo:

    Acreditei que nunca poderia alcan-lo, no posso correr muito agora. Que dia mais rude!, verdade senhor?

    E dito isto se despediu; mas pouco a pouco procurei lhe colocar em conversao e caminhamos juntos neste direo. Acredito que o homem se teria alegrado de livrar-se de mim, mas me propus no lhe abandonar, e finalmente se deteve frente a uma miservel casa em uma miservel rua. Na verdade, acredito que era um dos bairros mais pobres que jamais vi: casas que deviam ter sido bastante srdidas e horrveis de novas, que tinham acumulado porcaria com os anos, e agora pareciam desmoronar-se e ameaavam caindo.

    L encima vivo eu -disse Black, assinalando ao telhado-, no no fronte, a no ser detrs. Aqui estou muito tranqilo. No lhe pedirei que subida agora, mas talvez algum outro dia...

    Agarrei-lhe a palavra e lhe disse que me alegraria muito ir ver lhe. Lanou-me um estranho olhar, como se se perguntasse por que demnios eu ou qualquer outro se preocupavam dele, e lhe deixei medindo com sua chavinha na fechadura. Suponho que me dir voc que fiz muito bem quando lhe contar que em umas poucas semanas me converti em amigo ntimo do Black. Nunca esquecerei a primeira vez que fui a sua habitao; espero no voltar nunca para ver uma misria to abjeta e imunda. Um espantoso papel, no que tinha desaparecido fazia tempo qualquer desenho ou rastros dele, pendurava das paredes em embolorados pendes, dominado e posedo pela imundcie da desgraada rua. S era possvel manter-se em posio erguida ao fundo da habitao, e a viso da miservel cama e o aroma de corrupo que o impregnava todo me fez sentir enjos e me ps doente. Ali lhe encontrei mascando um pedao de po; parecia surpreso ao comprovar que tinha completo minha promessa, mas me ofereceu sua cadeira e se sentou na cama enquanto falamos. Estava acostumado a ir ver lhe freqentemente e tivemos largas conversaes, mas nunca mencionou Harlesden ou a sua mulher. Imagino que ele me acreditava ignorante do assunto, ou pensava que se tinha ouvido falar dele, nunca relacionaria ao respeitvel doutor Black do Harlesden com o pobre morador de uma gua-furtada no mais afastado de Londres. Era um homem estranho, e quando nos sentvamos a fumar, freqentemente me perguntava se estaria louco ou cordato, pois acredito

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    que os mais insensatos sonhos do Paracelso e dos rosacruces pareceriam feitos correntes em comparao com as teorias que lhe ouvi expor sinceramente naquele imundo chiqueiro. Em uma ocasio me aventurei a lhe insinuar algo pelo estilo. Sugeri que algo do que havia dito estava em terminante contradio com a cincia e a experincia.

    No -respondeu ele-, com toda a experincia no, pois a minha tambm conta. Eu no comercializo com teorias no comprovadas; o que digo o provei por mim mesmo, e a um custo terrvel.

    Existe uma rea do conhecimento que voc sempre ignorar, e que quo sbios a contemplam desde longe rehyen como a peste enquanto podem, mas que eu visitei. Se voc soubesse, se pudesse sequer sonhar o que possvel fazer, o que um ou dois homens tm feito neste tranqilo nosso mundo, sua prpria alma se estremeceria e desfaleceria dentro de voc. O que lhe hei dito no mais que o mais simples envoltrio, a capa externa da verdadeira cincia; essa cincia que significa morte e que mais espantosa que a morte mesma para aqueles que a adquirem. No, quando os homens dizem que no mundo ocorrem coisas estranhas, sabem muito pouco do terror e o espanto que sempre as acompanha.

    Ao redor do homem flutuava uma espcie de fascinao que me atraa para ele, e senti bastante ter que abandonar Londres durante um ou dois meses: perderia-me seu singular conversa.

    Poucos dias depois de retornar cidade pensei ir ver lhe, mas quando pulsei duas vezes o timbre que estava acostumado a utilizar, no obtive resposta. Voltei a tocar de novo e j ia quando se abriu a porta e uma suja mulher me perguntou o que queria. Por seu aspecto supus que me tinha tomado por um policial de patrcio que procurava a algum de seus inquilinos, mas quando perguntei se estava o senhor Black, dirigiu-me um olhar bem distinto.

    Aqui no vive o senhor Black -disse-. Foi. Morreu faz seis semanas. Sempre acreditei que estava um pouco louco, ou que o tinha estado e se colocou em qualquer confuso. Estava acostumado a sair todas as manhs das dez uma, e uma segunda-feira pela manh lhe ouvimos chegar, meter-se em sua habitao e fechar a porta, e poucos minutos depois, quando nos sentvamos a almoar, ouvimos tal grito que pensei que se teria ido em seguida. Logo se ouviram pisadas e baixou enfurecido, amaldioando espantosamente e jurando que lhe tinham roubado algo que valia milhes. Depois caiu no corredor e cremos que tinha morrido. Subimos a sua habitao e lhe metemos na cama, e me sentei a esperar enquanto meu marido foi procurar a um mdico. A janela estava totalmente aberto e havia uma cajita de lata, aberta e vazia, que ele tinha deixado no cho, mas, obvio, ningum podia ter entrado pela janela, e quanto a ele um disparate que tivesse um pouco de valor, pois freqentemente se atrasava vrias semanas no pagamento do aluguel, e meu marido lhe ameaava muitas vezes lhe jogando rua, pois, como ele

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  • Arthur Mchen* Contos de Terror

    dizia, temos uma vida que proteger como o resto da gente e, verdadeiramente, isso certo; mas, de uma forma ou outra, eu no gostava de faz-lo, embora ele era um tipo estranho, e imagino que tivesse sido melhor. E logo chegou o doutor e lhe olhou, e disse que no podia fazer nada, e essa noite morreu estando eu sentada junto a sua cama; e posso lhe dizer que, entre umas coisas e outras, perdemos dinheiro com ele, pois a pouca roupa que tinha no valeu quase nada quando a levaram a vender.

    Dava mulher meio soberano pelas molstias e parti para casa pensando no doutor Black e no epitfio que ela tinha feito dele, me assombrando ante a estranha idia de que tivesse sido objeto de um roubo.

    Suponho que tinha muito pouco que temer a esse respeito o pobre tipo; mas imagino que estava realmente louco, e que morreu em um acesso sbito de sua mania. Sua patr disse que uma ou duas vezes que teve ocasio de entrar em sua habitao (para apressar ao pobre desgraado a pagar seu aluguel, o mais provvel) teve-a na porta perto de um minuto, e que quando entrou lhe viu guardar uma caixa de lata na esquina junto janela; suponho que estaria posedo com a idia de algum tesouro fabuloso, e se acreditaria um homem rico em meio de toda sua misria. Explicit, meu conto se acabou, e, como ver voc, embora conheci o Black, nada soube de sua mulher ou da histria de sua morte. Assim est o caso Harlesden, Salisbury, e acredito que me interessa ainda mais profundamente porque no parece existir nem a mais remota possibilidade de que eu ou qualquer outro saibamos algo mais sobre ele. O que pensa voc?

    Bom, Dyson, devo dizer que acredito que conseguiu voc rodear a todo o assunto de um mistrio de sua prpria criao. Voto pela soluo do doutor: Black assassinou a sua esposa, estando com toda probabilidade em um estado latente de loucura.

    O que? voc crie ento que a mulher era muito espantosa, muito terrvel para permitir lhe permanecer sobre a terra? Recordar que o doutor disse que se tratava do crebro de um diabo.

    Sim, sim, mas falava metaforicamente, obvio. Realmente uma questo simples se voc o considerar somente assim.

    Ah!, bom, pode que voc esteja no certo; mas ainda no estou seguro de que o est. Muito bem, melhor que no discutamos mais. um pouco mais do Benedictine? Isso; prove um pouco deste tabaco. Dizia voc que tinha estado preocupado por algo..., algo que aconteceu a noite que jantamos juntos.

    Sim, tinha estado inquieto, Dyson, muito inquieto. Eu... a verdade que um assunto to corriqueiro, to absurdo, que me envergonho de lhe incomodar com ele.

    No importa, absurdo ou no, diga-me .

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  • Arthur Mchen* Contos de Terror

    Com muitas vacilaes e muito rancor ntimo pelo disparatado do assunto, Salisbury contou sua histria, e repetiu a contra gosto a absurda informao e as ainda mais absurdas rimas do recorte de papel, esperando que Dyson estalasse em gargalhadas.

    No uma pena que me deixe preocupar com coisas como essas? -perguntou, depois de balbuciar as rimas uma vez, duas vezes, trs vezes.Dyson escutou gravemente at o final e meditou uns minutos em silncio.

    Sim -disse finalmente-, foi uma curiosa casualidade que se refugiasse voc na arcada justo quando passavam aqueles dois. Mas no sei se deveria qualificar de tolices ao que estava escrito no papel; obvio estranho, mas suponho que para algum tem sentido. Quer repeti-lo outra vez? Eu o anotarei. Possivelmente possamos encontrar algum tipo de chave, embora o considero pouco provvel.

    De novo os resistentes lbios do Salisbury balbuciaram lentamente os disparates que tanto aborrecia, enquanto Dyson tomava nota em uma folha de papel.

    Quer jogar uma olhada a isto?-disse, quando acabou de anotar-. Pode ser importante que cada palavra esteja em seu devido lugar. De acordo?

    Sim; uma cpia fiel. Mas no acredito que voc tire muito dela.Seguro que uma simples bobagem, um galimatas sem sentido. Agora devo partir, Dyson. No, no me diga mais; esse seu assunto bastante complicado. boa noite.

    Suponho que gostaria de ter minhas notcias se descobrir algo.No, nem pensar!; no quero voltar a ouvir falar do assunto. Pode

    voc considerar o descobrimento, se existir algum, como prprio.Muito bem. boa noite.Muitos horas depois de que Salisbury tivesse retornado junto a suas

    cadeiras de reps verde, Dyson continuava sentado em seu escritrio, uma verdadeira fantasia japonesa, fumando cachimbo detrs cachimbo e meditando sobre o relato de seu amigo. A estranha ndole da inscrio que tinha incomodado ao Salisbury era para ele uma atrao, e de vez em quando a agarrava e esquadrinhava atentamente o que tinha escrito, especialmente o pitoresco verso final. Decidiu que era um sinal, um smbolo, e no uma chave; e que a mulher que o tinha arrojado ao cho com toda probabilidade ignorava por completo seu significado; ela era somente o instrumento do Sam que tinha insultado e abandonado, e ele a sua vez era o instrumento de algum desconhecido; possivelmente do indivduo chamado Q, que tinha sido obrigado a visitar seus amigos franceses. Mas o que fazer com a frase atravessar Handel s?.

    Aqui estava a raiz e a origem do enigma, e nem todo o tabaco da Virginia parecia provvel que lhe proporcionasse alguma pista. A situao parecia quase desesperada, mas Dyson se considerava a si mesmo o

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  • Arthur Mchen* Contos de Terror

    Wellington dos mistrios e se foi cama na segurana de que mais logo ou mais tarde daria com a pista adequada.

    Os dias seguintes esteve enfrascado em seu trabalho literrio, que constitua um profundo mistrio incluso para o mais ntimo de seus amigos, o qual procurava infructuosamente no quiosque da ferrovia o resultado de tantas horas passadas ante o escritrio japons em companhia de tabaco forte e ch carregado. Nesta ocasio Dyson se confinou em sua habitao durante quatro dias, e com verdadeiro alvio deixou sua pluma e saiu rua em busca de descanso e ar fresco. Acabavam de acender as luzes de gs e a quinta edio dos peridicos da tarde era vozeada pelas ruas. Procurando tranqilidade, Dyson se desviou do clamoroso Strand e comeou a dirigir-se para o noroeste. Logo se encontrou em ruas aonde ressonavam seus passos e, cruzando uma nova e ampla via e torcendo logo para o oeste, Dyson descobriu que tinha penetrado no mais profundo do Soho. Aqui havia vida de novo: estranhas colheitas da Frana e da Itlia, a preos que pareciam desdenhosamente baixos, atraam aos transeuntes; aqui havia queijos enormes e saborosos, ali azeite de oliva, e l um bosque de rabelesianas salsichas; enquanto, em uma loja prxima parecia estar venda toda a imprensa de Paris. Em meio do meio-fio perambulava de um lado para outro uma estranha mescla de naes, raramente se aventuravam por ali os carros de quatro portas e os cabriols; e desde suas janelas os habitantes contemplavam agradados a cena.

    Dyson seguiu seu caminho lentamente, mesclando-se com a multido sobre a pavimentao, escutando a estranha Babel do francs, o alemo, o italiano e o ingls, e jogando uma olhada de vez em quando s cristaleiras das lojas com suas filas de garrafas alinhadas; quase tinha chegado ao final da rua quando lhe chamou a ateno uma pequena loja na esquina, que contrastava vivamente com suas vizinhas. Era a tpica loja de favela; uma loja completamente inglesa. Nela se vendiam tabaco e doces, trocas pipas de barro e de madeira de cerejeira; cadernos e paliteiros da penique alternavam preferentemente com canes burlescas; e folhetins por entregas com espantosas gravuras mostravam que o romance reclamava seu lugar junto s realidades da imprensa vespertina, cujos psteres ondeavam no portal.

    Dyson deu uma olhada no nome que figurava em cima da porta, e permaneceu tremente junto calada, pois uma angstia profunda, como a de algum que faz um descobrimento, tinha-lhe deixado momentaneamente imvel. O nome da loja era Travers. Dyson olhou de novo para cima, esta vez em direo da esquina da parede por cima da luz, e leu em letras brancas sobre fundo azul as palavras Handel Street, W.C., e a lenda se repetia em caracteres mais imprecisos justo debaixo: Deu um suspiro de satisfao, e sem mais entrou audazmente na loja e olhou fixamente em plena cara ao homem gordo que estava sentado

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  • Arthur Mchen* Contos de Terror

    depois do mostrador. O indivduo se levantou e lhe devolveu o olhar com curiosidade, e logo comeou com uma expresso estereotipada:

    O que posso fazer por voc, senhor?A Dyson divertia sua situao e a nascente perplexidade do rosto do

    lojista. Apoiou cuidadosamente sua bengala contra o mostrador, e inclinando-se sobre ele, disse lenta e impresionantemente:

    Uma vez ao redor da grama, duas vezes ao redor da amada, e trs vezes ao redor do arce.

    Dyson tinha calculado que suas palavras produziriam algum efeito e no ficou defraudado. O vendedor de miscelneas ficou com a boca aberta como um peixe e se apoiou no mostrador.

    Quando falou, depois de um breve intervalo, fez-o com voz rouca, trmula e vacilante.

    Importaria-lhe repeti-lo, senhor?No lhe entendi de tudo.Certamente no penso fazer nada pelo estilo, bom homem. Ouviu

    voc perfeitamente bem o que lhe disse.Vejo que tem voc um relgio em sua loja; um admirvel

    cronmetro, sem dvida. Bem, dou-lhe um minuto por seu prprio relgio.O homem olhou em torno com perplexa indeciso, e ao Dyson

    pareceu que j ia sendo hora de mostrar-se atrevido.Olhe ali, Travers, quase lhe terminou o tempo. Acredito que voc

    ouviu falar do Q. Recorde, sua vida est em minhas mos. Vamos!Dyson se sobressaltou pelo resultado de sua prpria audcia. O

    homem se contraiu e ficou paralisado pelo terror, o suor caa por seu rosto branco cinza, e levantou as mos.

    Senhor Davies, senhor Davies, no diga isso... pelo amor de Deus! No lhe reconheci ao princpio, creia-me. Meu deus, senhor Davies!, no querer me arruinar, verdade? Em seguida o trarei.

    melhor que no perca mais tempo.O homem escapulou patticamente de sua prpria loja e entrou em

    uma sala posterior. Dyson escutou seus trementes dedos dirigindo torpemente um molho de chaves e o chiar de uma caixa ao abrir-se. Em pouco retornou levando nas mos um pequeno pacote cuidadosamente envolto em papel marrom, e cheio de terror, o entregou ao Dyson.

    Alegra-me me desembaraar dele -disse-. No voltarei a aceitar encargos desta ndole.

    Dyson agarrou o pacote e sua bengala, e saiu da loja com uma inclinao de cabea, voltando-se para passar pela porta. Travers se havia remexido em seu assento, com o rosto ainda lvido pelo medo e uma mo sobre os olhos e, enquanto se ia rapidamente, Dyson especulou muito sobre o que poderiam ser esses estranhos acordes que to grosseiramente tinha pulsado. Chamou o primeiro cabriol que viu e retornou a casa; e assim que teve aceso seu abajur suspenso e deixado o

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  • Arthur Mchen* Contos de Terror

    pacote sobre a mesa, deteve-se uns instantes perguntando-se pela estranha coisa que logo iluminaria a luz do abajur. Fechou a porta, cortou as cordas, desdobrou o papel capa a capa, e finalmente deu com uma pequena caixa de madeira, singela mas slida. No tinha fechadura, e Dyson no teve mais que levantar a tampa: quando o fez exalou um prolongado suspiro e retrocedeu. O abajur parecia brilhar tenuemente como uma vela; entretanto, toda a habitao resplandecia de luz, e no de um s tom, a no ser com milhares de cores, como uma vidraa grafite; nas paredes da habitao e sobre os mveis familiares, o resplendor brilhava de novo e parecia voltar para sua origem, a pequena caixa de madeira. Pois nela, sobre um branco leito de l, descansava a mais esplndida jia, uma jia como jamais pde sonhar Dyson, em cujo interior brilhava o azul de longnquos cus, o verde do mar junto costa, o vermelho do rubi, e raios violeta escuro, e em meio de tudo parecia flamejar, como se um fornecedor de fogo ascendesse e descendesse e voltasse a subir entre brilhos, como nos pendentes estrelados. Dyson lanou um profundo suspiro, deixou-se cair em sua cadeira, e se tampou os olhos com as mos para pensar. A jia parecia uma opala, mas em sua larga experincia de cristaleiras de lojas no sabia de nenhuma opala que alcanasse uma quarta ou uma oitava parte desse tamanho. Olhou de novo pedra quase com temor, e a colocou brandamente sobre a mesa, sob o abajur, podendo contemplar o maravilhoso reflexo que brilhava e cintilava em seu centro; ento voltou para a caixa, curioso por saber se conteria outras maravilhas. Levantou o leito de l sobre o que se recostava a opala e encontrou debaixo no mais jias, a no ser um velho livro de bolso, desgastado e pudo pelo uso. Dyson o abriu pela primeira pgina e o deixou cair espantado. Tinha lido o nome de seu dono, esmeradamente escrito com tinta azul.

    Dr. Steven Black Oranmore, Devon Road, Harlesden.Passaram vrios minutos antes que Dyson se resignasse a abrir pela

    segunda vez o livro. Rememorou o espantoso cativeiro em sua gua-furtada; e sua estranha conversao, e tambm a lembrana do rosto que tinha visto na janela, e o que havia dito o especialista, apoderaram-se de sua mente e, enquanto seus dedos agarravam a coberta, estremeceu-se, temeroso do que podia ter escrito em seu interior. Quando finalmente o abriu e passou as pginas, encontrou as duas primeiras em branco, mas a terceira estava coberta por uma escritura clara e mida, e Dyson comeou a ler com a luz da opala brilhando em seus olhos.

    Desde que era jovem -comeava a anotao- dediquei todo meu cio, e boa parte do tempo que deveria ter empregado em outros estudos, investigao dos mais curiosos e ocultos ramos do saber. Nunca me hei sentido atrado pelos chamados usualmente prazeres da vida, e vivia solitrio em Londres, evitando a meus companheiros de estudos, e de uma vez evitado por eles por causa de meu

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    ensimismamiento e minha indiferena. Era enormemente feliz com tal de poder satisfazer meu desejo de conhecimentos de certa ndole peculiar, cuja mesma existncia constitui um profundo secreto para a maioria da humanidade, e freqentemente passei noites inteiras sentado na escurido de minha casa, pensando no estranho mundo a cujo bordo me tinha aparecido. Meus estudos profissionais, entretanto, e a necessidade de obter um ttulo, obrigaram-me por algum tempo a pospor minhas investigaes secretas, e pouco depois de me doutorar conheci o Agnes, que se converteu em minha esposa. Alugamos uma casa nova neste remoto subrbio, e comecei a habitual rotina de uma discreta prtica, e durante alguns meses vivi bastante feliz, participando da vida que me rodeava e pensando s em estranhas ocasies nessa cincia oculta que uma vez me tinha fascinado.

    Conhecia o suficiente a respeito dos caminhos que tinha comeado a transitar para saber que eram difceis e perigosos, que em sua perseverana implicavam com toda probabilidade a destruio da vida, e que conduziam a regies to terrveis que a mente humana retrocedia horrorizada com apenas pens-lo. Alm disso, a tranqilidade e a paz que tinha gozado desde que me casei, tinha-me afastado em grande parte de lugares onde sabia que no podia haver paz. Mas sbitamente -acredito seriamente que foi produto de uma s noite, enquanto jazia sobre a cama contemplando a escurido-, sbitamente, dizia, o velho desejo, o passado desejo, voltou, e o fez com uma fora que, em sua ausncia, intensificou-se dez vezes. Quando despontou o dia e apareci na janela, vendo com olhos extraviados a sada do sol pelo este, soube que meu destino estava marcado; que ao ter chegado to longe, agora devia ir ainda mais frente com passo firme. Voltei para a cama onde minha esposa dormia apaciblemente, e me deitei de novo, derramando amargas lgrimas, pois o sol se ps sobre nossa existncia feliz para abater-se como uma horrvel ameaa sobre ambos. No porei aqui por escrito com tudo detalhe o que seguiu; aparentemente fui a meu trabalho como antes e no disse nada a minha esposa.

    Mas logo ela notou que eu tinha trocado; passava meu tempo livre em uma habitao que tinha equipado como um laboratrio, e freqentemente me deslizava escada acima no cinza amanhecer, quando ainda brilhavam sobre Londres as luzes de inumerveis luzes; e cada noite me aproximava mais a essa grande sima que ia salvar, o abismo entre o mundo consciente e o mundo material. Realizei numerosos experimentos de ndole complicada, e passaram alguns meses antes de que me desse conta da direo em que apontavam; quando, por um momento, pude-os provar em mim mesmo, senti que meu rosto empalidecia e que meu corao emudecia dentro de mim. Mas faz j tempo que perdi a faculdade de me voltar atrs, a faculdade de me deter ante as portas que agora me abrem de par em par e no entrar; a retirada

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  • Arthur Mchen* Contos de Terror

    estava atalho, e eu unicamente podia seguir adiante. Minha posio era to absolutamente se desesperada como a de um prisioneiro em uma masmorra, cuja nica luz a da masmorra de acima; as portas estavam fechadas e a fuga era impossvel. Os experimentos deram, um aps o outro, o mesmo resultado, e eu sabia, e me acovardava assim que o pensamento cruzava minha mente, que para a tarefa que tinha que fazer necessitava mdios que nenhum laboratrio podia subministrar, que nenhuma escala podia medir. Nessa tarefa, da qual inclusive duvidava de escapar com vida, devia tomar parte a vida mesma. Terei que arrancar de algum ser humano essa essncia que os homens chamam alma, e em seu lugar (pois no esquema do mundo no h aposentos vacantes) pr algo que os lbios dificilmente podem pronunciar, que a mente no pode conceber sem um terror mais espantoso que o terror morte mesma. E quando soube isto, soube tambm sobre quem recairia este destino: escrutinei os olhos de minha esposa. Se nesse momento tivesse sado e, agarrando uma corda, tivesse-me enforcado, poderia me haver liberado, e ela tambm, mas de nenhuma outra maneira. Finalmente o contei tudo.

    Ela se estremeceu e se lamentou, e solicitou a ajuda de sua me morta, e me pediu clemncia, e eu somente pude suspirar. No lhe ocultei nada; contei-lhe no que se converteria e o que se introduziria em lugar de sua vida; falei-lhe de toda a infmia e de todo o horror. Voc, que tem aberto a caixa e viu seu contedo, e que ler isto quando eu esteja morto -se seriamente permitir que esta relao subsista-, no sei se poder entender o que jaz oculto na opala. Pois uma noite minha esposa consentiu no que eu lhe pedi, com lgrimas lhe correndo pelo formoso rosto e o pescoo e o peito ruborizados pela sufocante vergonha, consentiu em sofrer isto por mim. Abri a janela de par em par e juntos contemplamos por ltima vez o cu e a sombria terra; era uma estupenda noite estrelada, e soprava uma agradvel brisa; beijei-a nos lbios e suas lgrimas me escorregaram pelas bochechas. Aquela noite ela baixou a meu laboratrio, e ali, com os portinhas fechados e trancados, com as cortinas densamente corridas, de maneira que at as mesmas estrelas ficassem fora do alcance da vista, enquanto o crisol vaiava e o abajur transbordava, fiz o que tinha que fazer, e conduzi fora ao que j no era uma mulher. Mas a opala ondulava e cintilava sobre a mesa com um brilho como jamais contemplaram olhos humanos, e os raios do fogo que ardia em seu interior deslumbravam e reluziam, e resplandeciam inclusive em meu corao. Minha esposa somente me pediu uma coisa: que a matasse quando finalmente acontecesse o que eu lhe tinha contado. cumpri esta promesa.No havia nada mais.

    Dyson deixou cair o pequeno livro e voltou a olhar de novo a opala com sua chamejante luz interior, e logo, com o corao embargado de

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    inexprimvel e irresistvel horror, agarrou a jia, jogou-a no cho, e a pisoteou com seus saltos.

    Enquanto se afastava, seu rosto empalideceu de terror e, por um momento, sentiu-se doente e tremente, e logo com um sobressalto cruzou a habitao e se apoiou contra a porta. Podia escutar um vaio ameaador, como um escapamento de vapor a elevada presso, e ao olhar, imvel, a jia, viu que de seu mesmo centro brotava lentamente um denso reguero de fumaa amarela, que subia em espirais em forma de serpente. Ento, da fumaa brotou uma tnue chama branca que ardeu vertiginosamente e desapareceu no ar; e ficou apenas uma espcie de cinza negra que se espalhava at o teto.

    O povo branco

    PRLOGO

    A bruxaria e a santidade -disse Ambrose- so as nicas realidades. Ambas so um xtase, uma renncia vida corrente.

    Cotgrave escutava com interesse. Um amigo o tinha levado a esta casa meio em runas situada em um subrbio ao norte da cidade e, atravs de um velho jardim, tinha-lhe conduzido at a habitao onde Ambrose o solitrio dormitava e sonhava junto a seus livros.

    Sim -prosseguiu-, a magia justifica a seus partidrios. Muitos deles, acredito, s comem mendrugos secos e no bebem mais que gua, e, no obstante, sentem um gozo imensamente mais intenso que o que possam experimentar os epicreos prticos.

    Refere-se voc aos Santos?Sim, e tambm aos pecadores. Acredito que est voc caindo no

    engano, to freqente, de reduzir o mundo espiritual ao extremamente bom; mas o extremamente perverso necessariamente forma parte dele. O homem meramente carnal, sensual, no tem maiores possibilidades de converter-se em um grande pecador que em um grande santo. A maioria de ns no somos mais que criaturas indiferentes e confusas; passamos pelo mundo sem nos dar conta do significado e o sentido oculto das coisas e, em conseqncia, nossa maldade ou nossa bondade so mas bem de segunda categoria, insignificantes.

    Voc cre, ento, que os grandes pecadores so uns ascetas como os grandes Santos?

    Os grandes, do tipo que sejam, desprezam as cpias, imperfeitas e preferem os modelos originais. No me cabe a menor duvida de que muitos dos mais excelsos Santos jamais fizeram uma boa ao (empregando esta palavra em seu sentido corrente). E, por outra parte, houve quem tem sondado no mais fundo do pecado e em toda sua vida jamais tm feito uma m ao.

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    Ambrose saiu um momento da habitao, e Cotgrave, encantado, voltou-se para seu amigo e lhe deu as obrigado por haver o apresentado.

    estupendo -disse-. Nunca vi anteriormente a um luntico desta espcie.

    Ambrose retornou com mais usque e serve aos dois homens com generosidade. Denegriu com ferocidade seita dos abstmios enquanto alcanava a gua do Seltz e, servindo um copo, ia reatar seu monlogo quando interveio Cotgrave.

    No posso suport-lo, sabe voc?-disse-; seus paradoxos so muito monstruosas. Um homem pode ser um grande pecador e, entretanto, no ter feito nunca nada pecaminoso! Vamos anda!

    Est voc completamente equivocado -disse Ambrose-, eu nunca digo paradoxos, oxal pudesse! Dizia simplesmente que um homem pode ter um paladar delicioso para o Romanee Conti e, entretanto, no ter cheirado nunca uma cerveja. Isso tudo, e mais que uma paradoxo uma perogrullada, no lhe parece? Minha observao lhe surpreendeu porque no compreendeu o que o pecado. OH!, sim, h uma espcie de relao entre o Pecado com maiscula e as aes chamadas usualmente pecaminosas: assassinato, roubo, adultrio, e demais. Pouco mais ou menos a mesma relao que existe entre o alfabeto e a boa literatura. Mas eu acredito que este conceito errneo, que quase universal, surge em grande medida de nossa forma de enfocar o assunto de um ponto de vista social. Pensamos que um homem que causa algum mal a ns e a seus prprios vizinhos deve ser muito mau. Assim de um ponto de vista social; mas no se d voc conta de que o Mal em sua essncia uma mania solitria, uma paixo da alma nica e individual? Realmente, o assassino meio no de maneira nenhuma, como assassino, um pecador no verdadeiro sentido da palavra. Simplesmente uma besta selvagem da que devemos nos desembaraar para pr nossos pescoos a salvo. Classificaria-o mas bem entre os tigres que entre os pecadores.

    Isso parece um pouco estranho.Eu acredito que no. O assassino no mata por suas qualidades

    positivas, mas sim pelas negativas; carece de algo que possuem os no assassinos. O mal, certamente, totalmente positivo, s que est do lado equivocado.Pode me acreditar, o pecado em seu sentido estrito muito estranho; provvel que tenha havido muitos menos pecadores que Santos. Sim, seu ponto de vista muito apropriado para a vida social e prtica; por natureza nos inclinamos a acreditar que uma pessoa que nos desagrada profundamente deve ser um grande pecador. muito desagradvel que roubem a um a carteira e, portanto, ao ladro o qualificamos de grande pecador. Na verdade, simplesmente um homem sem desenvolver. No pode ser um santo, obvio, mas sim pode ser uma pessoa imensamente melhor que outras muitas que nunca quebrantaram

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    um s mandamento. um chateio para ns, admito-o, e fazemos muito bem em encarcer-lo se o agarramos; mas entre esta ao molesta e anti-social e o mal..., ai!, a relao do mais tnue.

    Estava-se fazendo muito tarde. O homem que tinha levado ao Cotgrave provavelmente teria ouvido tudo isto antes, j que atendia com um amvel e judicioso sorriso; mas Cotgrave comeou a pensar que seu luntico estava resultando ser um sbio.

    Sabe, -disse- que me est interessando enormemente? voc acha, ento, que no compreendemos a autntica natureza do mal?

    No, no acredito que a compreendamos. A sobrevaloramos e a infravalorizamos de uma vez. Emprestamos ateno s muito numerosas infraes de nossos estatutos sociais -regras muito necessrias e apropriadas para que o homem possa viver em companhia- e nos assustamos pelo predomnio do pecado e o mal. Mas isto realmente absurdo. voc considere o roubo, por exemplo. Sente voc algum horror ao pensar no Robin Hood, nos merodeadores escoceses do sculo XVII, nos bandoleiros ou nos empresrios de hoje em dia?

    Logo, por outra parte, subestimamos o mal. Damos to enorme importncia ao pecado de intromisso em nossos bolsos (e em nossas algemas) que esquecemos completamente a atrocidade do autntico pecado.

    E o que o pecado? -disse Cotgrave.Acredito que terei que lhe responder com outra pergunta. O que

    sentiria voc, srio, se seu gato ou seu co comeassem a lhe falar e a discutir com voc com acento humano? Ficaria voc aniquilado pelo pavor. Estou seguro disso. E se as rosas de seu jardim lhe cantassem uma cano sobrenatural, voltaria-se voc louco. E suponha que os paraleleppedos da rua comeassem a inchar-se e a crescer ante seus olhos, e que o calhau que voc observou de noite tivesse jogado casulos de pedra pela manh.

    Bem, estes exemplos podem lhe dar alguma ideia a respeito do que realmente o pecado.

    Ouam -disse o terceiro homem, at ento aprazvel-, vocs dois parecem desfrutar com a conversao. Mas eu vou para casa. Perdi o ltimo bonde e terei que caminhar.

    Ambrose e Cotgrave pareceram inundar-se ainda mais profundamente em sua conversao quando o outro contertulio partiu na brumosa madrugada, plida luz dos faris.

    Assombra-me voc -disse Cotgrave-. Nunca pensei nisso. Se realmente for assim, tudo pode ficar patas acima. Ento, a essncia do pecado em realidade...

    Tomar ao assalto o cu, parece-me -disse Ambrose-. Em minha opinio se trata simplesmente de um intento de penetrar em outra esfera mais elevada, de um modo proibido. Da que possa compreender-se

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    facilmente o porqu de sua raridade. H poucos, em efeito, que desejem penetrar em outras esferas, j sejam mais elevadas ou mais baixas, por procedimentos permitidos ou proibidos. Os homens, em geral, esto muito contentes com a vida tal como a encontram. Por conseguinte, h poucos Santos e ainda menos pecadores (em sentido estrito), e so igualmente estranhos os homens de gnio, que s vezes participam de ambas as naturezas. Sim, em geral, talvez mais difcil ser um grande pecador que um grande santo.

    Quer voc dizer que h algo profundamente antinatural no pecado?

    Exatamente. A santidade requer um esforo to grande, ou quase to grande; mas se move dentro de uns limites que foram naturais alguma vez; um esforo por recuperar o xtase prvio Queda. Entretanto, o pecado um esforo por alcanar o xtase e a sabedoria que pertencem unicamente aos anjos, e ao fazer este esforo o homem se converte em um demnio. J disse a voc que o simples assassino no por isso um pecador; isto certo, mas o pecador s vezes assassino. Gilles do Rais um exemplo. Assim pode voc compreender que, embora o bem e o mal so antinaturais para o homem de hoje em dia, para o ser civilizado e social o mal antinatural em um sentido muito mais profundo que o bem. O santo procura recuperar um dom que perdeu; o pecador trata de obter algo que nunca foi dele.Em resumo, repete a Queda.

    Mas voc catlico? -disse Cotgrave.Sim; sou membro da perseguida Igreja Anglicana.Ento, o que me diz voc desses textos que parecem considerar

    como pecado todo aquilo que voc atribuiria a um simples e corriqueiro descuido?

    Sim; mas em algum lugar se inclui a palavra bruxo na mesma frase, no? Parece-me que isso nos d a chave. voc considere: pode imaginar-se por um momento que fora pecado uma falsa declarao que salvasse a vida a um inocente? No; muito bem, ento no o simples embusteiro o que excludo mediante essas palavras; so, sobre tudo, os bruxos, que utilizam a vida material, que utilizam as fraquezas inerentes vida material para obter seus perversos fins. E me permita lhe dizer isto: nossos sentidos superiores esto to embotados, estamos to empapados de materialismo, que, provavelmente, no conseguiramos reconhecer a verdadeira maldade se tropessemos com ela.

    Mas... no experimentaramos ante a s presena de um homem malvado um certo horror, um terror como o que voc sugeriu que experimentaramos se uma roseira nos cantasse?

    Faramos se tivssemos naturalidade: os meninos e as mulheres sentem esse horror do que voc fala, e inclusive os animais. Mas maioria de ns, os convencionalismos, a civilizao e a educao nos

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    deixaram cegos e surdos e obscureceram nossa prpria razo. No; s vezes podemos reconhecer o mal por seu aborrecimento do bem (no se precisa ser muito penetrante para adivinhar a influncia que ditou, em forma absolutamente inconsciente, a crtica a Keats na revista Blackwood), mas isto puramente acidental; e, por regra general, suspeito que os Lderes do Tfet passam completamente inadvertidos ou, possivelmente, so tomados, em certos casos, por homens bons, mas no mximo equivocados.

    Faz um momento empregou voc a palavra inconsciente ao referir-se aos crticos de Keats. sempre inconsciente a maldade?

    Sempre. Deve s-lo. Neste aspecto, como em tantos outros, comparvel santidade e genialidade; uma espcie de rapto ou xtase da alma; um esforo extraordinrio por ultrapassar os limites habituais. Assim, ao ultrapassar estes, ultrapassa tambm a compreenso, essa faculdade que disposta ateno a todo aquilo que lhe precede. No; um homem pode ser horrvel e ilimitadamente perverso sem que nunca chegue a suspeit-lo. Mas, como lhe digo, o mal em seu verdadeiro sentido estranho, e acredito que cada vez o mais.

    Estou tentando compreend-lo -disse Cotgrave-. Pelo que voc diz, deduzo que o verdadeiro mal difere genericamente do que estamos acostumados a chamar mau, no isso?

    Com efeito. Sem dvida existe uma analogia entre os dois; um parecido semelhante ao que nos autoriza legitimamente a utilizar expresses tais como ao p da montanha ou a pata da mesa. E, s vezes, obvio, os dois falam, por assim diz-lo, a mesma linguagem. O rude mineiro, ou o indisciplinado e rudimentar fera, esquentado por uma ou duas taas de mais, chega a casa e pega a sua irritante e pouco judiciosa esposa at mat-la. um assassino. Como Gilles do Rais. Mas se d voc conta do abismo que separa a ambos? A palavra, se me permitido falar assim, acidentalmente a mesma em ambos os casos, mas o significado completamente diferente. confundi-los constitui um caso flagrante de solecismo, ou mas bem, como supor que Juggernaut e os Argonautas tm algo que ver etimolgicamente entre si. E, sem dvida, existe a mesma leve semelhana ou analogia, entre os pecados sociais e os pecados autenticamente espirituais; e em alguns casos, talvez, os menores sirvam de lio que remeta aos majores, passando da quimera realidade. Se realmente for voc telogo, compreender a importncia de tudo isto.

    Sinto lhe dizer -observou Cotgrave- que dediquei muito pouco tempo teologia. Efetivamente, freqentemente me perguntei por que razes os telogos reclamaram para sua disciplina favorita o qualificativo de Cincia das Cincias; pois os nicos livros teolgicos que folheei me pareceram sempre que tratavam de tnues e bvias devoes, ou dos reis do Israel e Jud. E no quero saber nada desses reis.

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    Ambrose sorriu desdenhosamente.Devemos tratar de evitar uma discusso teolgica -disse-. Dou-me

    conta de que voc seria um adversrio implacvel. Mas, talvez, as entrevistas dos reis tenham tanto que ver com a teologia como as tachinhas dos sapatos do mineiro assassino com o mal.

    Ento, voltando para nosso assunto, voc crie que o pecado algo esotrico e oculto?

    Sim. um prodgio infernal, da mesma maneira que a santidade o celestial. de vez em quando, eleva-se at tal grau que no conseguimos imaginar sua existncia; como as notas dos tubos de um rgo, que so to graves que no podemos as ouvir. Em outros casos, pode nos levar a manicmio, ou a conseqncias ainda mais estranhas. Mas nunca deve voc confundi-lo com o mero delito social. Recorde que o Apstolo, falando do reverso da medalha, distingue entre aes caridosas e caridade. E o mesmo que algum pode dar todos seus bens aos pobres, e entretanto carecer de caridade, assim, no o esquea, pode um evitar todos os crmenes e ser, no obstante, um pecador.

    Sua psicologia me parece muito estranha -disse Cotgrave-; mas lhe confesso que me agrada, e suponho que de suas premissas pode deduzir-se razoavelmente a concluso de que o autntico pecador muito possivelmente pode dar a impresso a um observador imparcial de ser um personagem completamente inofensivo.

    Certamente; porque o autntico mal nada tem que ver com a vida ou as leis sociais, ou, se o tiver, s de forma secundria e acidental. uma paixo solitria da alma, ou uma paixo da alma solitria, como voc prefira. Se, por acaso, percebemo-la e captamos seu significado exato, ento, verdadeiramente, encher-nos de horror e de terror. Mas esta emoo muito distinta do medo e o asco com que consideramos o criminoso corrente, pois este ltimo sentimento est apoiado totalmente, ou em grande parte, na estima que sentimos por nossa prprio pele ou bolsa. Odiamos ao assassino porque odiamos ser assassinados, ou que assassinem aos que queremos. Assim, no reverso da medalha, veneramos aos Santos, mas no os queremos como a nossos amigos. voc pode convencer-se a si mesmo de que se teria divertido em companhia de So Paulo? Acredita que voc e eu nos teramos dado bem com Sir Galahad?

    At mesmo com os Santos, ocorre com os pecadores. Se se tropeasse voc com um homem perverso e reconhecesse sua maldade, sem dvida lhe encheria de horror e de temor, mas no haveria razo para que lhe casse antiptico. Pelo contrrio, de tudo possvel que se voc conseguisse tirar-se da cabea a noo de pecado, encontraria no pecador um companheiro estupendo, e em pouco tempo poderia raciocinar-se a si mesmo o sentido que tem seu horror. Entretanto, seria espantoso que as rosas e os lrios cantassem sbitamente no prximo

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    amanhecer; que os mveis comeassem a mover-se em procisso, como no conto do Maupassant.

    Alegra-me que volte a utilizar essa comparao -disse Cotgrave-, porque queria lhe perguntar que correspondncia tm entre os humanos essas proezas imaginrias dos objetos inanimados. Em uma palavra: o que o pecado? J sei que voc me deu uma definio abstrata, mas eu gostaria de um exemplo concreto.

    Reconheci-lhe que era muito estranho -disse Ambrose, que parecia querer evitar uma resposta cortante-. O materialismo da poca, que tanto tem feito por suprimir a santidade, fez ainda mais por suprimir o mal.Encontramos to agradvel a terra que pisamos, que no sentimos inclinao por ascender ou descender. como se o erudito que decidisse especializar-se no Tfet, tivesse que limitar-se a investigaes puramente arqueolgicas. Nenhum paleontologista pde mostrar nunca um pterodctilo vivo.

    Entretanto, voc se especializou, e acredito que suas investigaes chegam at nossa poca moderna.

    J vejo que est voc realmente interessado. Bem, confesso que estive especulando um pouco, e se voc quiser, posso lhe mostrar um pouco relacionado com o curioso assunto que estivemos discutindo.

    Ambrose agarrou uma vela e se dirigiu a um rinco longnquo e escuro da habitao. Cotgrave lhe viu abrir um venervel escritrio que ali havia, e tirar de algum esconderijo secreto um pacote, com o que retornou janela junto qual tinham estado sentados.Ambrose desfez o envoltrio do pacote e tirou um livro verde.

    Cuidar dele? -disse-. No o deixe por a atirado. uma das peas mais seletas de minha coleo e sentiria muito perd-lo.Ambrose acariciou a descolorida encadernao.

    Conheci a garota que o escreveu -disse-. Quando o ler, ver voc como ilustra a conversao que tivemos esta noite. H tambm uma continuao, mas no falarei disso.

    Faz alguns meses apareceu um estranho artigo de uma revista -comeou de novo, com o aspecto de um homem que troca de tema-. Escreveu-o um mdico, o doutor Coryn acredito que era seu nome. Conta que uma dama, que estava olhando jogar a sua filhinha pequena junto janela do salo, viu de repente que a pesada guilhotina cedia e caa sobre os dedos da menina. A dama perdeu o conhecimento, acredito, mas, em qualquer caso, chamaram o mdico e, uma vez que teve enfaixado os aleijados dedos da menina, atendeu me. Esta gemia de dor, e se comprovou que trs dedos de sua mo, correspondentes aos que tinham sido machucados na mo da menina, estavam inchados e inflamados, e mais tarde, em expresso do mdico, apareceu neles uma crosta purulenta.

    Ambrose continuou manuseando delicadamente o tomo verde.

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  • Arthur Mchen* Contos de Terror

    Bem, aqui o tem -disse por fim, separando-se, ao parecer, com dificuldade de seu tesouro.

    Devolva-me isso logo que o tenha lido -disse, enquanto saam ao vestbulo, e logo ao jardim, embriagados pelo perfume das aucenas.

    Havia uma extensa franja vermelha para o leste quando Cotgrave deu a volta e se foi, divisando do elevado terreno em que se achava o espantoso espetculo de Londres dormindo. O livro verde

    A encadernao de estava danificada e descolorida, mas no tinha manchas, arranhes nem sinais de uso. O livro tinha o aspecto de ter sido comprado em uma visita a Londres, fazia uns setenta ou oitenta anos e, por alguma razo, esquecido e obrigado a permanecer fora do