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CONTEXTO INTERNACIONAL é uma publicação quadrimestral do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Seu propósito é promover e divulgar o debate sobre política internacional. Reitor: Pe. Jesus Hortal Sánchez, S. J. Decano do Centro de Ciências Sociais: Luiz Roberto de Azevedo Cunha Instituto de Relações Internacionais Diretor: João Pontes Nogueira

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Page 1: Contexto Internacional 31 nº - SciELO 2_s… · Luiz Roberto de Azevedo Cunha Instituto de Relações Internacionais Diretor: João Pontes Nogueira Contexto Internacional (PUC) Vol

CONTEXTO INTERNACIONAL

é uma publicação quadrimestral do Instituto de

Relações Internacionais da Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro. Seu

propósito é promover e divulgar o debate sobre

política internacional.

Reitor: Pe. Jesus Hortal Sánchez, S. J.

Decano do Centro de Ciências Sociais:

Luiz Roberto de Azevedo Cunha

Instituto de Relações Internacionais

Diretor: João Pontes Nogueira

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

2 – Mai/Ago 2009

1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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Comitê Editorial

João Pontes Nogueira (IRI/PUC-Rio)

José María Gómez (IRI/PUC-Rio)

Mônica Herz (IRI/PUC-Rio)

Nizar Messari (IRI/PUC-Rio)

Conselho Consultivo

Adrián Bonilla (FLACSO, Equador)

Andrea Ribeiro Hoffmann (LSE, Reino Unido)

Andrew Hurrell (University of Oxford, Reino Unido)

Antonio Jorge Ramalho Rocha (UnB, Brasil)

Arlene Tickner (Universidad de Los Andes, Colômbia)

Carolina Moulin de Aguiar (University of McMaster, Canadá)

Celso Lafer (USP, Brasil)

Clóvis Brigagão (UCAM, Brasil)

Eduardo Viola (UnB, Brasil)

Eugênio Pacelli Lazzarotti Costa (PUC-Minas, Brasil)

Flávia de Campos Mello (PUC-SP, Brasil)

Gelson Fonseca Júnior (MRE, Brasil)

Gustavo Sénéchal de Goffredo (PUC-Rio, Brasil)

Hélio Jaguaribe (IEPES, Brasil)

Henrique Altemani de Oliveira (PUC-SP, Brasil)

Janina Onuki (PUC-SP, Brasil)

João Clemente Baena Soares (Comissão Jurídica Interamericana, Brasil)

José Luis da Costa Fiori (UFRJ e UERJ, Brasil)

Juan Gabriel Tokatlian (Universidad de San Andrés, Argentina)

Kai Michael Kenkel (IRI/PUC-Rio, Brasil)

Leticia Pinheiro (IRI/PUC-Rio, Brasil)

Lilian Cristina Burlamaqui Duarte (MRE, Brasil)

Luis Fernandes (IRI/PUC-Rio, Brasil)

Marco Antonio Pamplona (PUC-Rio, Brasil)

Maria Regina Soares de Lima (Iuperj, Brasil)

Norma Breda Santos (UnB, Brasil)

Paulo Esteves (IRI/PUC-Rio, Brasil)

Paulo Vizentini (UFRGS, Brasil)

Pedro Cláudio Cunca B. B. Cunha (IRI/PUC-Rio, Brasil)

Rafael Duarte Villa (USP, Brasil)

Robert B. J. Walker (Keele University, Reino Unido e University of Victoria, Canadá)

Samuel Pinheiro Guimarães (MRE, Brasil)

Shiguenoli Miyamoto (Unicamp, Brasil)

Sonia de Camargo (IRI/PUC-Rio, Brasil)

Tullo Vigevani (Unesp, Brasil)

William Smith (University of Miami, Estados Unidos)

Editora: Mônica Herz

Secretaria: Luciana Mello de Mendonça Varanda

Copidesque: Duda Costa

Projeto Gráfico: Valderez Coêlho da Paz

Editoração Eletrônica: Textos & Formas Ltda.

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Artigos

Participação do Setor Privado na Governança Ambiental Global: Evolução,

Contribuições e Obstáculos 215

Jose Célio Silveira Andrade

Meio Ambiente e Comércio Internacional: Relação Sustentável ou Opostos

Inconciliáveis? Argumentos Ambientalistas e pró-Comércio do Debate 251

Fábio Albergaria de Queiroz

Nation-building e Segurança Internacional: Um Debate em Construção 285

Aureo de Toledo Gomes

Política, Emancipação e Humanitarismo: Uma Leitura Crítica da Escola Inglesa

sobre a Questão da Intervenção Humanitária 319

Marcelo Mello Valença

A Pós-Graduação em Relações Internacionais no Brasil 353

Norma Breda dos Santos e Fúlvio Eduardo Fonseca

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

2 – Mai/Ago 2009

1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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Contexto Internacional tem como objetivo a promoção e divulgação do debateacadêmico no campo das relações internacionais, reunindo trabalhos inéditos de au-tores brasileiros e estrangeiros. A política editorial de Contexto Internacional esta-belece que os trabalhos devem ser de interesse acadêmico e representar uma refle-xão inovadora na área de relações internacionais. Artigos que abordam temas de po-lítica internacional e que contribuem para a compreensão da pluralidade de perspec-tivas presentes no meio acadêmico são publicados.

Todos os artigos terão sua publicação condicionada a pareceres dos membros doComitê Editorial ou do Conselho Consultivo. Eventuais sugestões de modificaçõesserão previamente acordadas com o autor.

Os artigos publicados pela revista são de exclusiva responsabilidade de seus autores.Podem ser reproduzidos, desde que citada a fonte.

Contexto Internacional (ISSN 0102-8529 Impresso e ISSN 1982-0240 Online),vol. 31, n

o2, maio/agosto de 2009, pp. 209-384. Circulação efetiva deste fascículo

realizada em novembro de 2009.

Tiragem bruta: 100 exemplares e, em média, 200 páginas por fascículo.Circulação prevista para abril, agosto e dezembro.

The articles in this journal are abstracted/indexed in:� Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades – CLASE (UNAM, México),

<http://www.dgbiblio.unam.mx/clase.html>.� Sistema Regional de Información en Línea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe,

España e Portugal – LATINDEX (UNAM, México), <http://www.latindex. unam.mx/>.� DataÍndice (Iuperj, Brasil), <http://dataindice.iuperj.br/>.� International Political Science Abstracts – IPSA (IPSA, França), <http://www.ipsa.ca/ en/publications/

abstracts.asp>.� Revista Interamericana de Bibliografía – RIB (OEA, Estados Unidos), <http://www.educoas.

org/portal/bdigital/es/rib.aspx?culture=es&navid=201>.� Sociological Abstracts (CSA, Estados Unidos), <http://www.csa.com/factsheets/socio

abs-set-c.php>.� Scientific Eletronic Library Online (SciELO, Brasil), <http://www.scielo.br/cint/>.

Redação, administração e assinaturas: IRI/PUC-Rio — Núcleo de Pesquisa e Publicações

Rua Marquês de São Vicente, 225 — Vila dos Diretórios, Casa 20 — Gávea — 22451-900

Rio de Janeiro — RJ — Brasil — Telefax: (21) 3527-1559 / 3527-1560

[email protected] — http://www.puc-rio.br/iri ou

http://publique.rdc.puc-rio.br/contextointernacional

REVISTA FINANCIADA COM RECURSOS DE

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1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

Contexto internacional. Vol. 1, no1, jan./jun. 1985- . — Rio de

Janeiro : PUC, Instituto de Relações Internacionais.

v. ; 23 cm

Quadrimestral

1. Relações internacionais. I. Pontifícia Universidade Católica do

Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais

ISSN 0102-8529 CDD: 327

Ficha Catalográfica

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Autores

Aureo de Toledo Gomes Doutorando em

Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade

Federal de Uberlândia (UFU).

Fábio Albergaria de Queiroz Doutorando

em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Universi-

dade de Brasília (Irel/UnB) e coordenador do curso de Relações Internacionais do

Centro Universitário do Distrito Federal (UDF).

Fúlvio Eduardo Fonseca Doutor em Rela-

ções Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de

Brasília (Irel/UnB), analista de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da

União (CGU) e professor colaborador do Irel/UnB.

Jose Célio Silveira Andrade Doutor em

Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor do Núcleo

de Pós-Graduação em Administração (NPGA) da UFBA e pesquisador do Labora-

tório de Análise Política Mundial (LABMUNDO) do NPGA/UFBA.

Marcelo Mello Valença Doutorando em Re-

lações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

(PUC-Rio) e professor de Relações Internacionais da mesma universidade.

Norma Breda dos Santos Doutora em Re-

lações Internacionais pelo Institut Universitaire de Hautes Etudes Internationales,

em Genebra (Suíça), professora do Instituto de Relações Internacionais da Univer-

sidade de Brasília (Irel/UnB) e editora da revista Cena Internacional.

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

2 – Mai/Ago 2009

1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

2 – Mai/Ago 2009

1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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Introdução

Este artigo tem como tema a Governança Ambiental Global (GAG),

entendida como um conjunto coerente de organizações, instrumen-

tos de política internacional – tratados, instituições, agências –, me-

canismos de financiamento, regras, procedimentos e normas que re-

gulam o processo de proteção mundial do meio ambiente (NAJAM

et al., 2006). A precursora do debate sobre GAG foi a Conferência

Mundial sobre o Ambiente Humano, em Estocolmo, em junho de

215

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

2 – Mai/Ago 2009

1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

* Artigo recebido em junho de 2008 e aprovado para publicação em setembro de 2008.

** Doutor em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professor do Núcleo de

Pós-Graduação em Administração (NPGA) da UFBA e pesquisador do Laboratório de Análise Política

Mundial (LABMUNDO) do NPGA/UFBA. E-mails: [email protected] ou celio.andrade@superig.

com.br.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 31, no 2, maio/agosto 2009, p. 215-250.

Participação do

Setor Privado

na Governança

Ambiental Global:

Evolução,

Contribuições e

Obstáculos*

Jose Célio Silveira Andrade**

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1972. Durante essa Conferência, deu-se o primeiro reconhecimento,

no âmbito das relações interestatais, da necessidade de um esforço

coletivo da comunidade internacional em busca de soluções para os

problemas ambientais globais. Assim, a conferência de Estocolmo

dá início a mais de três décadas de discussões, negociações e

ratificações de uma série de acordos ambientais internacionais e cria

o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA).

A Segunda Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento (Rio-92), realizada vinte anos mais tarde, estabe-

lece as Convenções da Biodiversidade, Mudanças Climáticas e De-

sertificação e cria a Comissão de Desenvolvimento Sustentável

(CDS). Existem hoje aproximadamente quinhentos acordos multila-

terais sobre o meio ambiente. Cerca de quarenta instituições são

membros do Grupo de Gestão Ambiental da Organização das Na-

ções Unidas (ONU), tendo, portanto, mandato em matéria de meio

ambiente. Muitas reuniões são realizadas anualmente para avaliar a

implementação dos acordos e convenções. Uma significativa quanti-

dade de recursos humanos é empregada para produzir relatórios de

avaliação nos níveis tanto global quanto nacionais. Esse crescimento

do sistema de GAG, em pouco mais de trinta anos, responde a um au-

mento da complexidade dos problemas ambientais tanto quanto à es-

cala como ao escopo. A natureza dos problemas ambientais globais

está mudando muito rapidamente: tornam-se cada vez mais amplos,

ignorando as fronteiras entre os Estados e as disciplinas. Requerem,

portanto, uma ação coletiva mundial. Assim, a ação da comunidade

internacional em favor da proteção do meio ambiente inscreve-se em

um quadro organizacional e político-institucional cada vez mais

complexo.

Entretanto, apesar de todo esse crescimento do sistema de GAG, nos

últimos trinta anos, o estado de conservação do meio ambiente global

não tem melhorado na mesma proporção. Pelo contrário. Estudos re-

alizados pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas

Jose Célio Silveira Andrade

216 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 32, no 2, maio/agosto 2009

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

2 – Mai/Ago 2009

1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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mostram que o aquecimento global continua aumentando. O nível de

CO2 na atmosfera global, que era de 300 ppm em 1990, atingiu atual-

mente a marca de 380 ppm. O relatório intitulado Living beyond our

means (MILLENNIUM ECOSYSTEM ASSESSMENT, 2005)

mostra o declínio da qualidade ambiental de 60% dos ecossistemas

mundiais examinados, representando riscos reais para o planeta Ter-

ra. Desde 1980, 35% dos manguezais e 20% dos recifes de corais do

planeta têm sido destruídos. Uma década depois da assinatura da

Convenção Mundial da Biodiversidade, a taxa de extinção de espéci-

es é aproximadamente mil vezes mais alta do que seria a taxa natural

sem a influência antrópica. Estimativas sugerem que ainda são des-

matados cerca de 150 mil km2

de florestas a cada ano no planeta (LE

PRESTRE, 2005).

Atribui-se essa situação paradoxal principalmente à ineficácia do sis-

tema de GAG. Construído coup par coup, os diagnósticos realizados

mostram que o sistema de GAG sofre de falta de coerência, coopera-

ção, coordenação e implementação. A dispersão e a fragmentação da

GAG, aliadas à falta de vontade política para uma ação coletiva glo-

bal efetiva, colocam em xeque o conjunto de esforços da comunidade

internacional em favor do meio ambiente (IVANOVA et al., 2007).

Assim, para que o estado do meio ambiente mundial saia do estágio

crítico em que se encontra, faz-se necessária não somente uma me-

lhor cooperação e coordenação das ações entre todos os atores inter-

nacionais (Estados, setor privado, organizações intergovernamentais

(OIGs), organizações não governamentais (ONGs), cientistas, mí-

dias etc.), como também uma maior participação dos atores não

estatais na GAG.

Existe, portanto, um desafio para a criação, por um sistema de GAG

fortemente state-centric, ou seja, centrado em torno dos atores esta-

tais, de novos espaços político-institucionais que permitam uma par-

ticipação mais efetiva dos atores não estatais no processo de concep-

ção de regimes internacionais ambientais. Isto é, em um conjunto de

Participação do Setor Privado na Governança

Ambiental Global: Evolução, Contribuições...

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Contexto Internacional (PUC)

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princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão,

concernente à proteção do meio ambiente global, no qual há uma

convergência das expectativas dos múltiplos atores envolvidos na

ecopolítica mundial (KRASNER, 1983). Esse desafio está funda-

mentado no pressuposto de que a inclusão e participação ativa e legí-

tima dos atores não estatais no processo de regulação internacional

do meio ambiente é essencial para a melhoria da efetividade dos

acordos multilaterais ambientais e, portanto, da GAG.

Apesar do pouco espaço político-institucional reservado pelo siste-

ma da GAG a uma participação mais efetiva do setor privado, esse

ator vem exercendo um papel muito importante na implementação

dos mecanismos pertinentes aos acordos multilaterais sobre o meio

ambiente (por exemplo, na execução de projetos de Mecanismos de

Desenvolvimento Limpo (MDLs) no âmbito do Protocolo de Quio-

to) e participado de maneira crescente nos fóruns internacionais de

negociação para a construção dos diferentes regimes ambientais in-

ternacionais (como, por exemplo, para a proteção da camada de ozô-

nio). Assim, a partir dos anos 1990, tem havido também uma cres-

cente participação dos atores corporativos em pelo menos mais dois

processos de GAG: desenvolvimento de regimes privados (Interna-

tional Organization for Standardization (ISO 14000), Atuação Res-

ponsável etc.) e híbridos (parcerias público-privadas) de governança

ambiental (Pacto Global, Chicago Climate Exchange (CCX) etc.).

Entretanto, apesar do crescente reconhecimento sobre a importância

do papel dos atores não estatais na ecopolítica mundial, poucos estu-

dos colocam o setor privado no centro das pesquisas sobre GAG

(LEVY; NEWELL, 2005). Visando contribuir para o fortalecimento

do campo de pesquisas sobre o papel das empresas na ecopolítica

mundial, este artigo tem como objetivo analisar a evolução da partici-

pação do setor privado na GAG, identificando as contribuições dadas

e os principais obstáculos enfrentados por esse ator.1

Para atingir tal

objetivo, este estudo, baseado na revisão da literatura realizada no

Jose Célio Silveira Andrade

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1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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âmbito de um estágio pós-doutoral,2

privilegiou a estratégia de pes-

quisa qualitativa baseada em análise de conteúdo da literatura acadê-

mica, working papers, diagnósticos e relatórios institucionais.

Assim, nas três primeiras seções deste artigo, analisa-se a participa-

ção dos atores corporativos na formação e implementação de regimes

ambientais internacionais, no desenvolvimento de regimes híbridos

público-privados de governança ambiental e na concepção de regi-

mes privados de governança ambiental. Nas quarta e quinta seções,

apresentam-se, respectivamente, as contribuições do setor privado

para uma GAG mais eficaz e os principais obstáculos a uma partici-

pação mais ativa e direta desse ator. Nas considerações finais, defen-

de-se que um modelo descentralizado e híbrido em formato de rede

pode contribuir para a superação do paradigma state-centric domi-

nante na GAG.

Atores Corporativos no

Desenvolvimento de

Regimes Ambientais

Internacionais

O setor privado é considerado um importante ator da GAG, já que

seus interesses são diretamente afetados pela regulação ambiental.

Historicamente vistos como opositores às políticas ambientais naci-

onais e globais, os atores corporativos, até a Conferência de Estocol-

mo em 1972, utilizavam a sua influência política junto aos atores es-

tatais para vetar ou enfraquecer os regimes ambientais, por meio de

ações de lobbying e representações junto aos governos e às organiza-

ções internacionais (PORTER; BROWN, 1996).

No entanto, a partir da Rio-92, verifica-se uma participação mais di-

reta e crescente do setor privado nas conferências globais visando de-

fender seus interesses diretamente nas arenas internacionais. Cabe

registrar, aqui, o papel que duas instituições empresariais desempe-

Participação do Setor Privado na Governança

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nharam na Rio-92, incentivadas por Maurice Strong, organizador da

Conferência e ex-líder empresarial: o Business Council for Sustainable

Development (BSCD), criado em 1990, e a Câmara de Comércio

Internacional (CCI).

A partir de uma interpretação do desenvolvimento sustentável como

aquele que reconcilia os interesses econômicos e ambientais, o

BCSD e a CCI criaram o Conselho Mundial da Indústria para o Meio

Ambiente (CMIMA). Atuando como lobista junto às delegações go-

vernamentais presentes na Rio-92, o CMIMA tinha como objetivo

promover a ideia de parcerias entre setor privado, ambientalistas e

comunidade internacional na busca de soluções ambientais por meio

de um modelo de GAG orientado para o mercado e baseado na

autorregulação.

Com base nesses princípios, essas duas instituições elaboraram um

código de conduta empresarial: a Carta de Princípios Empresariais

para o Desenvolvimento Sustentável da CCI (ICC Business Charter

for Sustainable Development), abrindo caminho para o rápido cres-

cimento, nos anos 1990, dos regimes privados de GAG. A governan-

ça ambiental privada iniciou-se no final da década de 1980, por meio

do Programa Atuação Responsável, liderado pelas associações da

indústria química dos Estados Unidos e Canadá (CLAPP, 2005).

Posteriormente, em 1995, o BCSD e o CMIMA fundiram-se para

formar o Conselho Mundial das Empresas para um Desenvolvimen-

to Sustentável (em inglês, World Business Council for Sustainable

Development (WBCSD)), um dos atores empresariais mais atuantes

na GAG. Em 1999, com o objetivo de estruturar a participação do se-

tor privado nas confêrencias mundias da ONU sobre meio ambiente e

desenvolvimento sustentável, o WBSCD e a CCI lançaram uma nova

iniciativa conjunta intitulada Business Action for Sustainable

Development (BASD).

Jose Célio Silveira Andrade

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Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

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Assim, apesar de algumas vezes os interesses dos atores corporativos

de maneira geral ou de um determinado setor industrial não serem

claros ou monolíticos, a partir dos anos 1990 percebe-se uma mudan-

ça de comportamento estratégico desses atores com relação à GAG.

Algumas empresas substituem uma postura reativa/defensiva por

uma postura mais ofensiva, pró-ativa e inovadora, visando contribuir

para a busca de soluções ambientais duráveis, como, por exemplo, a

DuPont e a Imperial Chemicals Industries (ICI) ao desenvolverem

substitutos para produtos degradadores da camada de ozônio (cloro-

fluorcarbonos (CFCs)).

De acordo com Le Prestre (2005), o comportamento do mundo in-

dustrial com as questões ambientais mudou a partir dos anos 1990,

por conta da(o): a) emergência da indústria “verde”, que percebe na

adoção de regulamentações internacionais uma oportunidade de

crescimento; b) apoio de certas empresas e governos à ação de deter-

minadas ONGs ambientalistas; c) progressiva conscientização das

empresas sobre a necessidade de levar em conta os problemas ambi-

entais, visto serem eles suscetíveis de afetar a legitimidade e compe-

titividade empresariais; d) percepção por parte do setor empresarial

de que uma GAG forte, eficiente e eficaz é central para os interesses

do mundo dos negócios, pois provê um arcabouço institucional está-

vel e favorável à sustentabilidade, fator de competitividade e legiti-

midade empresarial; e) incentivos, por parte de governos e OIGs,

para que o setor privado desempenhe um papel mais ativo e institu-

cionalizado nas questões ambientais globais.

Foi então que, a partir da década de 1990, Kofi Annan, então secretá-

rio-geral da ONU, começou ativamente a sua cruzada por uma maior

cooperação institucional com o setor privado, como parte essencial

do processo de reforma da GAG. Os atores corporativos passaram a

ser vistos não apenas como um problema a ser regulado, mas como

parte da solução, sendo convidados, portanto, a observar e contribuir

com os debates sobre a criação de regimes ambientais internacionais

Participação do Setor Privado na Governança

Ambiental Global: Evolução, Contribuições...

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Contexto Internacional (PUC)

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nas conferências globais. O status de observador permitiu, então, a

presença dos atores corporativos durante os processos de negocia-

ções internacionais, a intervenção desses atores no início das sessões

de negociação e a distribuição de materiais fora do plenário

(IVANOVA et al., 2007).

As associações empresariais, tais como o WBCSD e a CCI, contri-

buíram bastante, a partir da década de 1990, para aumentar a visibili-

dade e a influência do mundo dos negócios nos fóruns ambientais in-

ternacionais. Chamadas de Business or Industry NGO (BINGOs) pe-

las instituições da ONU, essas associações exercem um papel impor-

tante nas negociações multilaterais ambientais por uma série de ra-

zões. A primeira está relacionada com o acesso das empresas à arena

internacional. As BINGOs funcionam como o canal oficial de acesso

das corporações às negociações multilaterais, já que o sistema de go-

vernança da ONU permite somente a presença de quatro categorias:

delegações nacionais, imprensa, OIGs e observadores filiados a

ONGs.

Assim, para ter presença física na arena internacional de negocia-

ções, uma empresa deve ser membro de uma BINGO devidamente

registrada nas Secretarias das Convenções da ONU. Por exemplo,

muitas grandes empresas multinacionais, como Shell, BP, Exxon

Mobil, Chevron Texaco etc., têm participado como observadores nas

negociações multilaterais ambientais por meio de várias BINGOs,

pois elas tendem a escolher aquela sobre a qual exercem um maior

poder de influência e um papel dominante.

Além do acesso, as BINGOs provêm também vários serviços logísti-

cos aos seus membros durante as negociações, tais como troca de in-

formações para formação de redes de contatos, espaços de reunião

para criação e negociação de position papers, realização de eventos

paralelos, colocação de estandes para difusão de informações, news-

letters etc. Uma segunda função muito importante das BINGOs é a

Jose Célio Silveira Andrade

222 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 32, no 2, maio/agosto 2009

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

2 – Mai/Ago 2009

1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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negociação de consenso entre seus membros visando apresentar uma

voz uniforme quando participam das negociações multilaterais e au-

mentar, portanto, o seu poder de influência na ecopolítica mundial.

Um terceiro papel das BINGOs na arena ambiental internacional é

servir como canal oficial e legítimo para colocar seus membros den-

tro do processo político. Para tal, utilizam várias estratégias de comu-

nicação e transferência de informação visando influenciar a direção

das negociações multilaterais: lobbying, preparação de relatórios e

position papers, cooperação e participação como convidado nas

delegações nacionais etc. (PULVER, 2005).

Assim, tradicionalmente percebido como um ator ausente na cena

ambiental internacional, a partir dos anos 1990, parte do setor priva-

do passa a adotar uma postura mais ativa, visando tornar-se um ator

político da ecopolítica mundial. Está cada vez mais aparente, atual-

mente, que algumas empresas, tais como Dupont, Shell, BP etc., po-

dem ser consideradas como atores políticos-chave da GAG, forjando

os processos de regulação ambiental global de maneira direta e indi-

reta. Individualmente ou por intermédio de associações empresa-

riais, trabalham nos níveis local, nacional, regional e internacional

por meio de mecanismos de integração vertical, tais como participan-

do de redes transnacionais, para influenciarem o processo de forma-

ção de políticas ambientais (CLAPP; DAUVERGNE, 2005).

Entretanto, convém salientar que, em algumas circunstâncias, a in-

fluência dos atores corporativos na arena ambiental internacional

mostra-se limitada. Segundo Porter e Brown (1996), uma das dificul-

dades encontradas pelo setor privado ao atuar nas arenas ambientais

internacionais é justamente conseguir ser percebido pelos outros ato-

res como defensor de interesses coletivos/globais e não apenas de

seus próprios interesses individuais/particulares. Esses autores des-

tacam o esforço que vem sendo dispendido pelos atores empresariais

para representarem interesses econômicos e sociais mais amplos e

não apenas interesses particulares de determinado setor industrial.

Participação do Setor Privado na Governança

Ambiental Global: Evolução, Contribuições...

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Vol. 31 no

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Assim, à medida que ganham experiência, os atores corporativos

vêm desenvolvendo estratégias políticas cada vez mais sofisticadas

para defenderem os seus interesses nos fóruns ambientais internacio-

nais, para além das convencionais atividades de lobbying, doações fi-

nanceiras a campanhas políticas e/ou ameaças de relocação pelo uso

do poder estrutural3

que exercem na economia global.

Para Levy e Newell (2005), na negociação de muitos regimes ambi-

entais internacionais, é crescente a participação formal de atores cor-

porativos nos advisory panels e nos processos de autoria e revisão de

relatórios científicos como knowledge-broker, provendo conheci-

mentos tecnológicos e econômicos na forma de artigos técnicos.

Esses autores apontam também o aumento do envolvimento das em-

presas na GAG como inovadores tecnológicos, buscando soluções

para problemas ambientais específicos, como, por exemplo, a Du-

pont e a ICI, no desenvolvimento de produtos substitutos ao CFC.

Assim, normalmente, no conjunto de estratégias utilizadas pelos ato-

res corporativos para assegurar tanto competitividade no mercado

quanto legitimidade social, estão incluídas a inovação tecnológica, a

construção de coalizões e redes transnacionais, a participação em de-

bates públicos sobre questões ambientais etc.

Evidentemente, a legitimidade das atividades políticas desempenha-

das pelos atores corporativos na GAG é uma questão complexa e

controvertida. Existe toda uma literatura crítica sobre o papel do

mundo dos negócios como ator ativo na busca de soluções para os

problemas ambientais e não como objeto de regulação estatal. De

acordo com Levy e Newell (2005, p. 10), para a maioria dos autores

pertencentes à corrente crítica de GAG, permitir o envolvimento do

setor privado na construção de respostas estratégicas para os desafios

ambientais é o mesmo que colocar “a raposa para tomar conta das ga-

linhas”.4

Jose Célio Silveira Andrade

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Assim, o debate em torno do processo de transição do papel do setor

privado na GAG de rule-taker para rule-maker,5

iniciado nos anos

1990, prossegue até a década atual. Tradicionalmente vistos somente

como poluidores e lobistas contra regulações ambientais, a partir da

década de 1990, o setor privado passa a ser incentivado pelo sistema

das Nações Unidas a contribuir como um ator-chave para uma GAG

mais forte, eficiente e eficaz. Em 2001, o Programa das Nações Uni-

das para o Meio Ambiente (PNUMA) inicia uma reflexão internacio-

nal sobre a nova arquitetura institucional para regular a relação entre

as nações e todos os atores não estatais engajados na GAG, visando

facilitar a cooperação internacional e implementar uma política mais

eficaz de proteção ambiental.

Em 2002, na Conferência de Johannesburgo sobre o Desenvolvi-

mento Sustentável, o setor privado, por meio da coalizão empresari-

al, BASD, teve um importante papel ao promover o uso de iniciativas

voluntárias de Responsabilidade Socioambiental Corporativa

(RSAC) como uma alternativa ao modo tradicional de regulação es-

tatal do tipo comando e controle, argumentando que a indústria deve

ser percebida como um “ator-solução a mobilizar” e não somente

como um “ator-problema a regular” (CLAPP; DAUVERGNE,

2005).

Johannesburgo 2002 marcou, portanto, o debate sobre a necessidade

do envolvimento ativo dos atores corporativos para uma GAG forte,

eficiente e eficaz, consolidando um novo tipo de governança: parce-

rias público-privadas para transformar princípios globais em proje-

tos locais. Um dos mais representativos exemplos de regime híbrido

(público-privado), desenvolvido em parceria com o sistema da ONU

e reafirmado na conferência de Johannesburgo, foi o Pacto Global,

instrumento de autorregulação voluntária de RSAC, lançado oficial-

mente em 2000 pelo então secretário-geral da ONU, Kofi Annan

(MORGERA, 2006).

Participação do Setor Privado na Governança

Ambiental Global: Evolução, Contribuições...

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Atores Corporativos na

Criação de Regimes

Híbridos de Governança

Ambiental

A literatura tem dado cada vez mais atenção à análise do papel dos

atores corporativos nas parcerias público-privadas como um novo

tipo de regime de GAG. A racionalidade das parcerias público-priva-

das está fundamentada no pressuposto de que a solução de problemas

ambientais globais requer a ação coletiva e os recursos de competên-

cia de todos os segmentos da sociedade: setor privado (tecnologia, in-

vestimento, habilidades gerenciais e organizacionais), governo (in-

vestimento em infraestrutura e em serviços públicos não atrativos

para a atuação sozinha de empresas), ONGs e OIGs (conhecimento e

envolvimento nos níveis local e global, pressão por transparência e

fonte de legitimidade).

Entretanto, Ivanova et al. (2007), defensores dos regimes híbridos de

governança ambiental como uma das estratégias para o aumento da

eficácia da GAG, ao analisarem 311 projetos de parceria público-pri-

vadas, registrados no UN Fund for International Partnership

(UNFIP) entre 1994 e 2005, totalizando um investimento de US$ 594

milhões, concluíram que esse tipo de instrumento de governança am-

biental ainda apresenta vários desafios a serem superados. Entre os

desafios listados por esses autores, convém destacar, por exemplo: i)

a baixa representatividade do setor privado: somente 20% dos proje-

tos tem o envolvimento de empresas e somente 2% é liderado por ato-

res corporativos; ii) a alta representatividade do setor público estatal

e não estatal: 33% dos projetos é liderado pelos governos dos países

da Organisation for Economic Co-operation and Development

(OECD), 35% por ONGs internacionais ocidentais e 26% por OIGs;

iii) a baixa transparência e eficácia das parcerias: somente 59 das 311

parcerias submeteram relatórios de prestação de contas e somente

1% destes relataram ter alcançado resultados previstos.

Jose Célio Silveira Andrade

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Já uma parte mais crítica da literatura percebe as parcerias públi-

co-privadas como o início de um amplo processo de privatização do

sistema da ONU, no qual os atores privados assumem parte do traba-

lho do sistema de GAG e em troca se beneficia da boa imagem dessa

instituição internacional. A principal preocupação é com o conflito

entre interesses públicos e privados que poderá ocorrer com o au-

mento da dependência do sistema de GAG com relação aos atores

corporativos, como também com o grau de independência das OIGs

para regular esses atores (LEVY; NEWELL, 2005).

O desenvolvimento do Pacto Global entre a ONU e o setor privado

ilustra esse tipo de preocupação. Essa parceria público-privada en-

globa princípios relacionados com questões socioambientais, de di-

reitos do trabalho e anticorrupção, já existentes no conjunto de con-

venções da ONU, que as empresas signatárias são incentivadas a in-

corporarem nos seus sistemas de gestão ambiental. Esse tipo de regi-

me de GAG de caráter voluntário, considerado mais eficaz, por estar

baseado no aprendizado coletivo das melhores práticas empresariais,

tem como propósito principal incentivar as empresas a tornarem-se

atores socioambientais mais responsáveis e parceiros da ONU no

alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (em inglês,

Millennium Development Goals (MDGs)).

Segundo dados do site oficial da ONU, 3.864 empresas participavam

do Pacto Global em fevereiro de 2008. Cerca de 50% são grandes em-

presas (mais do que 250 empregados em tempo integral), sendo que

aproximadamente 8% dessas grandes companhias fazem parte do

ranking das quinhentas maiores corporações globais do Financial Ti-

mes. Dentre as empresas brasileiras signatárias do Pacto Global,

pode-se citar, por exemplo, a Petrobras, a Vale, a Braskem S/A, a

Aracruz Celulose S/A etc. (UN, 2008).

Entretanto, em Johannesburgo 2002, apesar do número ainda relati-

vamente pequeno de corporações participantes, o Pacto Global foi

Participação do Setor Privado na Governança

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utilizado frequentemente pelos atores corporativos como argumento

contrário à adoção de qualquer outro instrumento regulatório sobre

RSAC de caráter compulsório. Assim, o Pacto Global tem sido bas-

tante criticado por algumas ONGs pela sua inadequabilidade para

promover mudanças significativas no comportamento socioambien-

tal de atores empresariais mais resistentes, em razão da abordagem

utilizada para lidar com o setor privado: de uma relação de “confron-

tação” pautada em instrumentos compulsórios de regulação estatal

do tipo comando-controle para um novo tipo de relacionamento ba-

seado na cooperação e fundamentado em instrumentos voluntários

de autorregulação ambiental. Elas acusam algumas empresas multi-

nacionais de estarem usando o Pacto Global para praticarem gre-

en-wash6

e blue-wash7

e se legitimarem perante o sistema da ONU

sem, contudo, demonstrarem de maneira transparente e efetiva o

cumprimento dos princípios pactuados (CLAPP, 2005; MORGERA,

2006).

Logo, visando melhor a sua legitimidade e transparência diante dos

stakeholders,8

um número crescente de corporações tem utilizado

como estratégia de RSAC a publicação de relatórios de sustentabili-

dade. Até 2003, mais de 10 mil corporações já tinham publicado rela-

tórios de sustentabilidade empresarial, incluindo 45% das 250 maio-

res empresas multinacionais (NAJAM et al., 2006). Para o desenvol-

vimento de um conjunto de princípios-guia, internacionalmente re-

conhecidos, de publicação de relatórios de sustentabilidade, uma co-

alizão de ONGs, empresas e OIGs criou mais uma iniciativa híbrida

de GAG, o Global Reporting Initiative (GRI). Por exemplo, em maio

de 2008, a Petrobras ganhou o prêmio do GRI como um dos melhores

relatórios de sustentabilidade do mundo. Entre as empresas brasilei-

ras finalistas, pode-se citar a CEMIG, a Natura Comésticos, Usinas

Siderúrgicas de Minas Gerais, Banco Real ABN etc. (GRI, 2008).

Outro exemplo de parceria do tipo público-privado dá-se no âmbito

da implementação dos mecanismos do Protocolo de Quioto. O setor

Jose Célio Silveira Andrade

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privado tem feito parcerias com alguns atores públicos não estatais

e/ou atores governamentais para criação de sistemas de comércio de

emissões de Gases de Efeito Estufa (GEEs).9

Levy e Newell (2005)

citam, por exemplo, a parceria entre a ONG Climate Action e Alcan,

BP, Dupont, Entergy, Ontario Power Generation, Pechiney, Shell e

Suncor, visando a redução de cerca de 80 milhões de toneladas de

CO2 e a implementação, até 2010, de um sistema de comércio de

emissões de GEEs. Outro exemplo de parceria entre os setores priva-

do e público visando atuar no mercado de carbono se refere à criação,

em 2003, da CCX por algumas empresas norte-americanas, tais

como American Electric Power, Du Pont, Ford, International Paper,

Manitoba Hydro, Stora Enso North America, entre outras, e alguns

governos municipais, como o governo da cidade de Chicago.

A criação pelo Banco Mundial e pelo Banco Japonês para Coopera-

ção Internacional (em inglês, Japan Bank For International Coopera-

tion (JBIC)) do Prototype Carbon Fund (PCF) visando incentivar a

redução da emissão de GEEs por meio da implementação de projetos

de MDL e de Implementação Conjunta é outro exemplo de parceria

público-privada no âmbito do Protocolo de Quioto. Em junho de

2002, esse fundo contava com a participação de oito empresas japo-

nesas e nove empresas europeias distribuídas entre os setores de

energia (BP, Electrabel, Fortum, Gaz de France e Statoil), eletricida-

de (Chubu, Chugoku Eletric Power, Kyushu Eletric Power Com-

pany, RWE, Shikoku Eletric Power Co., Tohoku Eletric Power Co. e

Tokyo Eletric Power Co.), finanças (Deutsche Bank e Rabobank),

petróleo (Norsk Hydro), comércio (Mitsubishi e Mitsui), cinco go-

vernos nacionais (Canadá, Finlândia, Noruega, Suécia e Holanda),

além de representantes de 31 países-hospedeiros de projetos de

redução de emissão de GEEs (DUNN, 2005).

Convém salientar, entretanto, que algumas ONGs, baseadas no he-

misfério Sul, criticam fortemente esse tipo de mecanismo de gover-

nança, fundamentado no comércio de emissões, sob o argumento de

Participação do Setor Privado na Governança

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que se trata de uma maneira de os países industrializados do Norte es-

caparem da responsabilidade de reduzirem suas emissões de GEEs

dentro das suas fronteiras nacionais. Para alguns representantes des-

sas ONGs, por exemplo, o MDL é moralmente errado, pois tenta

transferir a responsabilidade da solução do problema para aqueles

que não criaram o problema (SOUTHSOUTHNORTH, 2004). Para

eles, a principal questão em jogo é a eficiência econômica ao invés do

conceito de desenvolvimento sustentável, pois é mais barato realizar

projetos de redução de emissões de GEEs nos países pobres do que

nos países industrializados. Logo, é necessário que os países do Sul

desenvolvam capacidade político-institucional para fazer com que os

projetos de MDL sejam mais sócio e ambientalmente orientados.10

Atores Corporativos na

Concepção de Regimes

Privados de Governança

Ambiental

Segundo a literatura, um dos principais papéis de rule-maker desem-

penhados pelos atores corporativos na GAG é o desenvolvimento de

regimes privados de governança ambiental. Os regimes privados de

GAG são mecanismos institucionais internacionais que visam a au-

torregulação voluntária da RSAC, nos quais a autoridade estatal não

está presente (forma pura) ou não é a autoridade política predomi-

nante (forma híbrida). Eles surgiram com grande força, no final do

século XX, em um contexto marcado pela globalização econômica,

pelo processo de reforma do Estado e pelo crescimento da influência

de atores não estatais na ecopolítica internacional, como um contra-

ponto ao modelo tradicional state-centric de GAG (FALKNER,

2003).

Para a literatura mais crítica, a emergência de regimes privados, prin-

cipalmente a partir da Rio-92, tem fortalecido o princípio liberal de

autorregulação, sinalizando a convergência das forças hegemônicas

Jose Célio Silveira Andrade

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globais em torno de um modelo de GAG mais orientado para os me-

canismos de mercado e menos baseado nos instrumentos convencio-

nais de regulação state-centric do tipo comando e controle (BRUNO,

2002).

Levy e Newell (2005), por exemplo, argumentam que um bom indi-

cador dessa tendência foi a inclusão no regime de mudanças climáti-

cas de mecanismos de implementação mais flexíveis, baseados no

mercado, envolvendo o sistema de comércio de emissões de GEEs.

Esses autores descrevem como a indústria de seguros vem desenvol-

vendo seu próprio conjunto de mecanismos de governança privada

para fazer frente aos riscos potenciais causados pelo fenômeno das

mudanças climáticas. Eles demonstram que a estratégia dominante

entre as seguradoras tem sido o desenvolvimento de novos instru-

mentos de mercado para aumentar a sua capacidade de suportar as

grandes perdas financeiras que podem ser causadas por desastres cli-

máticos de larga escala. Segundo Dunn (2005), estimativas feitas

pela indústria alemã de seguros mostram que o fenômeno das mu-

danças climáticas pode custar cerca de US$ 300 bilhões/ano até

2050, em virtude das perdas causadas pelo clima e dos impactos

causados na indústria e agricultura.

Falkner (2003), entretanto, deixa claro que, apesar de os regimes pri-

vados de governança transferirem algumas funções tradicionais de

governança ambiental do Estado para o setor privado e contribuírem

para uma maior representatividade e legitimidade dos atores corpo-

rativos na GAG, isto não significa necessariamente um declínio do

poder e autoridade regulatória estatal. Para esse autor, é a relação en-

tre Estado, setor privado e sociedade civil que está sendo redefinida

de uma maneira cada vez mais complexa e interdependente, criando

modelos híbridos de governança. Ele argumenta que a forma pura de

governança privada (“governança sem governo”) apresenta relevân-

cias conceitual e empírica limitadas, preferindo definir os regimes

privados como formas híbridas de GAG, nas quais as fronteiras entre

Participação do Setor Privado na Governança

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as esferas pública e privada são cada vez menos nítidas. Assim, mes-

mo que os Estados ou OIGs não sejam os atores protagonistas e res-

ponsáveis pela criação dos regimes privados de governança ambien-

tal, eles vêm contribuindo bastante para o seu fortalecimento e

legitimidade ao reconhecerem oficialmente e/ou incorporá-los no

sistema de regulação ambiental internacional.

Essas formas híbridas de regimes privados, tais como regimes de cer-

tificação (International Environmental Management Standards (ISO

14000), Forest Stewardship Council (FSC), Marine Stewardship

Council (MSC)), códigos de conduta (Princípios Coalition for Envi-

ronmentally Responsible Economies CERES-Valdez, Carta de Prin-

cípios Empresariais para o Desenvolvimento Sustentável da CCI,

Atuação Responsável), entre outros, são frequentemente desenvolvi-

dos em parcerias com ONGs e legitimados pelos Estados e OIGs, re-

presentando um componente cada vez mais importante da arquitetu-

ra da GAG. Eles indicam a habilidade dos atores não estatais, organi-

zados na forma de redes transnacionais, de criarem seus próprios re-

gimes e de influenciarem a estrutura da GAG. A inclusão desses ins-

trumentos de regulação civil (soft civil-society-based regulation) na

GAG visa preencher as lacunas de governança deixadas pelos gover-

nos referentes à regulação dos impactos ambientais causados pelas

atividades empresariais. Um importante exemplo de forma híbrida

de regime privado de GAG que emergiu ao largo do modelo conven-

cional de regulação ambiental state-centric foi o FSC. Lançado em

1993 pelo World Wide Fund for Nature (WWF) e Greenpeace em

parceria com atores corporativos ligados à cadeia produtiva da silvi-

cultura, como resposta à falta de ação efetiva da comunidade estatal

internacional para a proteção das florestas, o FSC estabelece critérios

de manejo sustentável de florestas e certifica empresas que cumprem

esses padrões (CLAPP, 2005).

Convém salientar, porém, que as ONGs desempenham um importan-

te papel na formação e crescimento dos regimes privados de GAG,

Jose Célio Silveira Andrade

232 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 32, no 2, maio/agosto 2009

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seja como agente de pressão e estímulo, como parceiro e/ou como

agente de monitoramento do cumprimento dos regimes privados por

parte das empresas. Para Falkner (2003), o engajamento das ONGs

nos regimes privados de GAG é uma forma alternativa de ativismo

ambiental global potencialmente mais efetiva do que fazer lobbying

junto aos Estados para o estabelecimento de regulações ambientais

internacionais de caráter mandatório. Ao investigar alianças hori-

zontais entre corporações e ONGs para a construção de regimes pri-

vados de GAG, esse autor argumenta que é um erro conceber a eco-

política mundial somente como um jogo de atores corporativos ver-

sus ONGs. Ele mostra que, por meio dessas parcerias, as ONGs po-

dem oferecer aos atores corporativos alguns graus de legitimidade,

rede de contatos e algum conhecimento científico. Os atores corpora-

tivos, em contrapartida, podem oferecer às ONGs recursos financei-

ros, acesso às OIGs e a oportunidade de influenciar diretamente as

práticas industriais que impactam o meio ambiente.

Isto posto, pode-se entender os regimes privados de GAG como a ex-

pressão de uma necessidade percebida pelos atores corporativos de

usufruir dos benefícios de um regime, em termos de estabilidade de

regras, normas e procedimentos de tomada de decisão, sem a necessi-

dade do poder estatal para monitorar e fiscalizar a sua aplicação. Na

maioria dos casos, isso é feito por meio de relatórios, auditorias e ins-

peções realizados por outras autoridades privadas. As sanções cor-

respondem normalmente à perda da certificação de um determinado

produto/processo, perda de legitimação pública e consequentemente

implicações financeiras associadas à erosão da marca/imagem da or-

ganização. Argumenta-se que os regimes privados de GAG refletem

não somente o desejo das corporações pela autorregulação, mas tam-

bém a necessidade de responderem às pressões de stakeholders.

Assim, a busca de legitimidade perante os stakeholders e a redução

dos custos de transação nas operações comerciais transnacionais são

os principais determinantes para o desenvolvimento de regimes pri-

Participação do Setor Privado na Governança

Ambiental Global: Evolução, Contribuições...

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Contexto Internacional (PUC)

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vados de GAG pelos atores corporativos, principalmente por empre-

sas multinacionais, tais como o desenvolvimento do código de con-

duta ambiental Princípios CERES-Valdez, após o desastre no Alas-

ca, em 1989, com o navio petroleiro Exxon-Valdez pertencente à

multinacional norte-americana Exxon.

A literatura apresenta, porém, alguns problemas relativos aos proces-

sos de participação e de distribuição de custos e benefícios dos regi-

mes privados de GAG. Embora alguns dos regimes privados de go-

vernança tenham sido desenvolvidos em processos relativamente

abertos, como o caso dos Princípios CERES-Valdez, que foi primei-

ramente sugerido por algumas ONGs ambientalistas, outros, contu-

do, tais como a Carta de Princípios Empresariais para o Desenvolvi-

mento Sustentável da CCI, o Programa Atuação Responsável e a sé-

rie ISO 14000, foram desenvolvidos de maneira mais fechada e com

forte influência e domínio de representantes industriais, mesmo que

em tese fosse permitida a participação de atores não industriais.

Clapp e Dauvergne (2005) mostram, por exemplo, como o processo

decisório da série ISO 14000 é dominado por empresas multinacio-

nais, mais bem representadas nas arenas de negociação, em detri-

mento de numerosas, porém menos mobilizadas, pequenas e médias

empresas. De maneira similar, empresas com sede no hemisfério

Norte são mais bem representadas do que suas contrapartes sediadas

no Sul. Alguns setores industriais são mais organizados politicamen-

te e mais bem representados do que outros na ISO 14000, como, por

exemplo, os setores químico e de energia. Assim, esses autores suge-

rem que um dos determinantes para a criação de regimes privados de

governança, tais como a série de normas ISO 14000, seja a criação de

barreiras à entrada de pequenas e médias empresas nos mercados

rentáveis. Como resultante, a ISO 14000 atuaria muito mais como

barreira não tarifária à competição do que como um instrumento de

melhoria contínua da gestão ambiental empresarial.

Jose Célio Silveira Andrade

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Contribuição dos Atores

Corporativos para uma GAG

mais Efetiva

Conforme mostrado nos itens anteriores, as corporações não geram

somente problemas ambientais na forma de poluição para serem re-

gulados. Elas também exercem os papéis de investidores, inovado-

res, experts em tecnologias, produtores de bens e serviços, desenvol-

vedores de regimes privados e parcerias público-privadas de gover-

nança ambiental. As empresas são, portanto, atores-chave da arquite-

tura institucional da GAG e não podem ser percebidas apenas como

rule-takers que respondem de maneira reativa às demandas das regu-

lações ambientais internacionais. Elas estão cada vez mais sendo in-

centivadas a atuarem como atores políticos globais e parceiros do sis-

tema de GAG no papel de rule-makers, e frequentemente de rule-en-

forcers, e não somente como um mero objeto de regulação ambiental

estatal do tipo comando e controle.

Logo, argumenta-se que a cooperação ativa dos atores corporativos

como rule-makers é chave para a efetividade da GAG, pois, segundo

Najam et al. (2006), esta poderá contribuir para:

i) diminuir o déficit de implementação da GAG. O sistema de GAG

encontra-se em um estado contínuo de negociação e pouco voltado

para a implementação dos acordos globais existentes. Assim, o setor

privado poderá contribuir para aumentar o grau de implementação

dos acordos globais no nível local, ajudando a melhorar a integração

vertical da GAG;

ii) abrir o processo decisório da GAG à participação de outros seto-

res. Um número crescente de decisões relativas à GAG vem sendo to-

mado em outras arenas de negociação, em que os atores corporativos

têm exercido um papel importante de rule-makers, tais como comér-

cio, investimento, finanças e desenvolvimento internacional. Assim,

para o sistema de GAG, como um todo, ser mais efetivo, é necessária

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Ambiental Global: Evolução, Contribuições...

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uma maior integração e coerência entre as decisões socioambientais

e as políticas econômicas, principalmente nas áreas do comércio

internacional e investimento;

iii) diminuir o predomínio do paradigma state-centric na GAG. O

atual sistema de GAG ainda não permite uma participação mais ativa

e direta dos atores corporativos em todas as fases do processo de de-

senvolvimento de políticas públicas ambientais globais. Paralela-

mente, esses atores vêm exercendo um papel cada vez mais impor-

tante, como rule-makers, na criação de regimes privados/híbridos de

governança ambiental, e como knowledge-broker, na formação de

regimes públicos de governança ambiental, contribuindo, assim,

para aumentar o conhecimento técnico e econômico no âmbito do

sistema de GAG;

iv) aumentar a legitimidade do sistema de GAG como resultante de

uma maior participação de atores não estatais.

Isto posto, defende-se que os atores corporativos poderão ajudar a

melhorar a efetividade da GAG, por pelo menos três razões princi-

pais. Primeiro, porque os atores empresariais controlam recursos-

chave – financeiro, tecnológico e organizacional – para a efetividade

dos regimes ambientais internacionais. Segundo, porque, ao partici-

parem de todas as fases de negociação dos tratados e acordos am-

bientais internacionais que os afetam diretamente, os atores corpora-

tivos ficariam mais implicados durante o período de cumprimento.

Como bem ressalta Levy e Newell (2005, p. 4), “não há regime ambi-

ental internacional que possa ser bem-sucedido politicamente sem o

apoio dos maiores players corporativos”. Assim, uma participação

mais ativa dos atores empresariais no processo de GAG poderá levar

a uma regulação mais efetiva, com alta taxa de cumprimento e baixo

déficit de implementação. E terceiro, porque a participação do setor

privado é central para a implementação e o funcionamento dos meca-

nismos-chave dos protocolos ambientais globais. Por exemplo, as

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236 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 32, no 2, maio/agosto 2009

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corporações são atores centrais para a governança do mercado de

carbono, além de terem exercido um papel-chave na criação do MDL

no âmbito do Protocolo de Quioto. Na realidade, o funcionamento

eficaz do MDL depende fortemente do engajamento do setor pri-

vado.

Convém salientar, porém, que não há consenso na literatura sobre o

real benefício de uma maior participação do setor privado na GAG.

Questiona-se principalmente a legitimidade da participação do setor

privado como rule-maker. Para a literatura mais crítica, uma maior e

mais direta participação do setor privado no processo decisório da

GAG é problemática, já que os atores corporativos, além de não te-

rem sido legitimados por meio de eleição e não representarem o inte-

resse público, possuem um grande poder de barganha. Assim, o au-

mento da participação do setor corporativo na GAG poderá contribu-

ir para a criação de regimes mais favoráveis ao atingimento de objeti-

vos econômicos do que propriamente socioambientais (CLAPP;

DAUVERGNE, 2005; BÄCKSTRAND, 2006).

Obstáculos à Participação

dos Atores Corporativos

como rule-maker na GAG

Apesar da crescente influência do setor privado no processo de for-

mação de regimes ambientais globais, nota-se que algumas empresas

e setores industriais são mais engajados que outros e que a maioria

das empresas ainda permanece ausente dos fóruns ambientais inter-

nacionais, preferindo adotar um corportamento defensivo/passivo de

rule-taker. Destaca-se principalmente a participação de grandes em-

presas multinacionais e a ausência de pequenas e médias empresas,

politicamente menos organizadas e consequentemente sub-repre-

sentadas nos fóruns ambientais globais (IVANOVA et al., 2007).

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Por exemplo, conforme relatado por Dunn (2005), três grandes em-

presas assumiram uma posição de liderança durante o processo de re-

gulação global do fenômeno das mudanças climáticas: Du Pont, BP e

Shell. Ao perceberem as mudanças climáticas como uma grande

oportunidade para novos negócios mais sustentáveis, essas empresas

adotaram uma postura proativa de rule-maker, assumindo um papel

de líder do mundo corporativo nas negociações multilaterais e contri-

buindo para a criação e implementação das regras do jogo. Entretan-

to, a maioria dos atores corporativos ainda percebem o processo de

regulação das mudanças climáticas como muito complexo e ameaça-

dor à competitividade empresarial e continuam a adotar uma estraté-

gia reativa/passiva.

Assim, o engajamento proativo da totalidade do mundo dos negócios

na criação de futuros regimes ambientais globais ainda é uma ques-

tão em aberto. Isto se deve, justamente, ao comportamento dominan-

te rule-taker de grande parte dos atores corporativos ainda ausentes

da arena ambiental global e, principalmente, aos obstáculos existen-

tes à atuação como rule-maker por parte das empresas que já partici-

pam dos processos de negociação multilaterais.

Esses obstáculos podem ser tanto externos quanto inerentes aos pró-

prios atores corporativos. Para a ICC (2007), um dos principais obs-

táculos externos que impede uma maior participação do mundo dos

negócios na formação e implementação de regimes ambientais glo-

bais é o alto grau de fragmentação e duplicação institucional do siste-

ma multilateral de GAG da ONU. Mais de vinte OIGs desempenham

algum tipo de papel com relação à regulação hídrica, por exemplo.

Um outro importante obstáculo externo que pode ser destacado é a

falta de espaço político-institucional no sistema da ONU para uma

participação dos atores corporativos como rule-makers e não somen-

te como observadores. Esse obstáculo é apontado por alguns autores

como um dos principais limites a uma participação mais ativa do

mundo empresarial na GAG (NAJAM et al., 2006; LEVY;

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NEWELL, 2005). Eles argumentam que, apesar de o setor privado

desempenhar um papel muito importante na implementação dos me-

canismos pertinentes aos acordos multilaterais sobre o meio ambien-

te, os atores corporativos ainda atuam de maneira bastante limitada

nos fóruns internacionais de negociação para a construção dos dife-

rentes regimes ambientais internacionais.

Assim, não obstante o importante papel que desempenha na imple-

mentação dos mecanismos de governança ambiental, a arquitetura

político-institucional do sistema de GAG impõe obstáculos à partici-

pação do setor privado nos fóruns de negociação como rule-maker.

Logo, o acesso e a intervenção direta do setor privado no seio dos

principais fóruns de negociação para a construção de regimes inter-

nacionais ambientais ainda são muito marginais.

Quanto aos obstáculos inerentes aos próprios atores corporativos,

Bled (2007) destaca os conflitos intra e intersetoriais e a falta de con-

senso em relação à resposta estratégica mais adequada para influen-

ciar o processo de formação de regimes ambientais globais. Segundo

essa autora, esses limites enfraquecem a capacidade do setor privado

de ter uma voz uniforme quando participa da ecopolítica mundial.

Convém salientar que o setor privado não é monolítico. Em outras

palavras, nem todos os atores corporativos estão engajados na políti-

ca ambiental internacional, nem todos compartilham os mesmos

interesses e nem todos igualmente contribuem de maneira positiva

para o sucesso da ecopolítica mundial.

Os conflitos intra e intersetoriais empresariais aparecem porque os

marcos regulatórios ambientais internacionais apresentam diferen-

tes impactos, com relação tanto às empresas de maneira individual,

quanto aos setores industriais. Por exemplo, apesar do Protocolo de

Montreal ter sido alvo de oposição sistemática de grandes empresas

químicas líderes do mercado mundial e de empresas nacionais usuá-

rias de CFCs, foi apoiado pela Dupont e ICI, empresas detentoras da

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patente para fabricação de substitutos para os CFCs, fato citado fre-

quentemente como uma das maiores razões para o seu sucesso do

regime de proteção da camada de ozônio (PORTER; BROWN,

1996).

No caso do processo para a criação do regime internacional das mu-

danças climáticas, pode-se citar o conflito de interesses inter e intra-

setorias existente no interior da Global Climate Coalition (GCC).

Fundada em 1989, a GCC era considerada um dos principais grupos

de pressão empresarial, juntamente com a CCI e a International Pe-

troleum Industry Environmental Conservation Association

(IPIECA), durante o início das negociações multilaterais no âmbito

da convenção do clima.

Embora a GCC incluísse, no início dos anos 1990, uma grande quan-

tidade de setores empresariais interessados no processo de negocia-

ção para regulação das mudanças climáticas, alguns setores industri-

ais, como os setores de petróleo e energia, fortemente contrários a

qualquer imposição legal visando controlar as emissões de GEEs,

monopolizavam a visão da indústria com relação a essa questão. Os

atores corporativos contrários à regulação das emissões de GEEs ar-

gumentam que isso implicaria em elevados custos para as indústrias

de carvão, petróleo, automóveis e outros segmentos intensivos em

energia, como químico, papel, cimento, alumínio, aço etc. (DUNN,

2005).

Entre 1991 e 1996, quatro empresas de petróleo norte-americanas,

Exxon, Mobil, Chevron e Texaco, que ocupavam posição de lideran-

ça na GCC, usavam essa BINGO para fazer lobbying contra o proces-

so de regulação do clima global. Entretanto, mesmo no interior dos

setores contrários, os conflitos de interesses persistiam, fazendo com

que, entre 1997 e 2000, algumas empresas com posicionamentos

mais favoráveis à adoção de respostas estratégicas mais proativas,

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tais como BP, Shell, Du Pont, Ford, Daimler-Chrysler e GM, abando-

nassem a GCC.

Essas empresas dissidentes acabaram aderindo a coalizões empresa-

riais mais positivamente engajadas nas negociações multilaterais do

clima, tais como o WBCSD, fundado em 1995, ou criaram novas

BINGOs alternativas à GCC.

Por exemplo, a BP e a Shell, após mudarem de posição em relação à

regulação do clima global e saírem da GCC, frustadas pelo contro-

le/liderança exercido por empresas norte-americanas (Exxon-Mobil

e Chevron-Texaco), fundaram, em 1998, uma nova BINGO: o Pew

Center on Global Climate Change’s Business Environmental Lea-

dership Council. Assim, a perda sucessiva de membros fez com que a

GCC, que representava mais de 40% da economia dos Estados Uni-

dos, se retirasse, em 2002, da arena ambiental global (FALKNER,

2007).

Entretanto, para Pulver (2005), o conflito de interesses existente den-

tro do mundo corporativo, em geral, e no seio de determinados seto-

res industriais, em particular, não é uma explicação suficiente para a

limitada capacidade do setor privado de apresentar uma voz unifor-

me quando participa da ecopolítica mundial. Segundo essa autora, as

empresas preferem não atuar diretamente como atores políticos nas

negociações multilaterais, preferindo deixar esse papel para as asso-

ciações empresariais e industriais (BINGOs).

Assim, uma das funções das BINGOs é criar um distanciamento en-

tre suas empresas-membros e o processo político de negociação, per-

mitindo a participação dos seus associados na ecopolítica mundial,

sem contudo aparecerem diretamente como atores políticos. Entre-

vistas realizadas por Suzana Pulver com representantes de empresas

petrolíferas revelam que estas preferem adotar uma “identidade apo-

lítica”, evitando intervir e influenciar diretamente o processo políti-

co, sob o pretexto de que sua presença durante as negociações multi-

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laterais é como “observadores” passivos e não como “participantes”

ativos. As empresas entrevistadas dizem adotar esse mesmo distanci-

amento fictício entre o “mundo empresarial” e o “mundo da política”

no nível nacional, ao denominarem seu papel como de advisors e não

como de political decision-makers, papel destinado aos governos.

As empresas-membros esperam, portanto, que suas BINGOs atuem

como anti-politics machines, causando pelo menos dois grandes

obstáculos para a projeção de uma única voz do setor privado nas ne-

gociações multilaterais ambientais. Primeiro, a função antipolítica

das BINGOs exacerba a tensão entre diferentes estilos de fazer políti-

ca. Segundo, ela torna mais difícil para as BINGOs acomodar os con-

flitos existentes entre seus membros.

Ao investigar o papel desempenhado pelas BINGOs nas negociações

multilaterais para a criação do regime global de mudanças climáti-

cas, Pulver (2005) mostra que o insucesso da GCC, associação em-

presarial baseada nos EUA, deveu-se a:

i) sua tentativa de exportar para a arena ambiental internacional um

modelo político norte-americano, alienando do processo os seus

membros europeus. As empresas norte-americanas e europeias dis-

cordavam não somente quanto às respostas mais apropriadas aos de-

safios impostos pelas mudanças climáticas, mas também quanto ao

comportamento político mais adequado da GCC na arena ambiental

internacional. BP e Shell rejeitavam frequentemente as agressivas es-

tratégias de lobbying realizadas pela GCC e a imagem negativa que

isso gerava, preferindo adotar uma ação política mais baseada no diá-

logo e menos no confronto. Assim, o conflito entre os estilos nor-

te-americano e europeu de fazer lobbying foi central para o insucesso

da GCC na arena ambiental internacional;

ii) sua dificuldade de acomodar os conflitos internos existentes em

virtude da competição exacerbada entre seus membros pelo seu con-

trole. As empresas-membros da GCC competiam ferozmente pelo

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seu controle e frequentemente expressavam suas opiniões indivi-

duais em nome da associação. Isto tornou difícil a obtenção de con-

senso interno, levou à criação de novos grupos empresariais, que pas-

saram a competir entre si, e culminou com a retirada dessa BINGO da

arena ambiental internacional.

Uma possível explicação sobre a estratégia dos atores corporativos

de projetarem uma imagem não política na arena ambiental interna-

cional está relacionada ao acesso privilegiado desses atores aos go-

vernos. Isto é, como algumas empresas têm acesso garantido aos go-

vernos nacionais pela sua importância estratégica e econômica, elas

preferem exercer seu poder de influência fora do espaço público.

Pode-se inferir, portanto, que há uma relação inversa entre acesso aos

governos e visibilidade da influência política.

Logo, a relação próxima com os atores governamentais faz com que

os atores corporativos não sintam uma real necessidade de intervirem

e influenciarem diretamente no processo de negociações multilate-

rais ambientais, preferindo projetar uma imagem não política na are-

na ambiental internacional, valendo-se do status oficial de “observa-

dores”.

Clapp e Dauvergne (2005) chamam atenção para o fato de que, ape-

sar de as empresas fazerem poucas intervenções públicas nas arenas

internacionais de negociação ambiental, elas são muito ativas tanto

nos corredores quanto “escondidas” nas delegações nacionais, fa-

zendo lobbying e tentando influenciar o posicionamento dos Esta-

dos. Convém salientar, entretanto, que nem sempre há uma completa

convergência entre os interesses do mundo dos negócios e dos atores

governamentais, fazendo com que os atores corporativos precisem se

expor publicamente e coordenar melhor as suas ações políticas na

arena ambiental internacional, visando dar maior visibilidade ao seu

posicionamento político, sob pena de ficarem alijados do processo de

negociação multilateral.

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Considerações Finais

Ao considerar o setor privado como ator político global exercendo

múltiplos papéis, conforme apresentado anteriormente, este artigo

defende que o processo político de negociação e criação de regimes

ambientais internacionais, baseado no modelo state-centric de bar-

ganha interestatal, necessita ser revisto e que os espaços político-ins-

titucionais de participação dos atores corporativos no atual sistema

de GAG precisam ser redesenhados para adequar-se à realidade.

Assim, para que a GAG atenda aos desafios da evolução da ecopolíti-

ca internacional e responda com eficácia às demandas futuras de pro-

blemas ambientais globais cada vez mais complexos, é necessário

encorajar uma evolução do papel dos atores não estatais de rule-taker

para rule-maker. Argumenta-se, portanto, que a inclusão e participa-

ção ativa e legítima dos atores corporativos no processo de regulação

internacional do meio ambiente são essenciais para a melhoria da

efetividade dos acordos multilaterais ambientais, conforme discuti-

do na quarta seção.

Entretanto, esse ponto crítico parece não ter ressonância na visão do-

minante dos atores estatais incentivadores da reforma do sistema de

GAG visando aumentar a sua efetividade. Esses atores, como, por

exemplo, a França, continuam defendendo modelos centralizados e

pautados no tradicional paradigma state-centric de regimes, como a

criação de uma Organização das Nações Unidas para o Meio Am-

biente (ONUMA).

Faz-se necessário, portanto, o debate sobre a transição do papel do

setor privado de rule-taker para rule-maker e sobre o redesenho dos

espaços político-institucionais de participação desses atores no pro-

cesso de concepção e implementação de regimes internacionais am-

bientais no centro da discussão sobre a reforma do sistema de GAG.

Defende-se que um modelo de GAG descentralizado em formato de

rede e pautado na concepção de que todos os diferentes atores da eco-

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política mundial, estatais e não estatais, possam interagir, barganhar

e formar alianças é mais eficaz para conceber e responder à agenda

ambiental global do que um modelo centralizado baseado no para-

digma state-centric.

Convém salientar, porém, que os atores privados não podem e não de-

vem substituir os governos. Os instrumentos de autorregulação vo-

luntária e os mecanismos de regulação privada baseados no mercado

mostram-se limitados na ausência da regulação estatal. Nesse con-

texto, a efetividade do sistema de GAG é alcançada não pela diminui-

ção do poder regulatório dos Estados, mas pelo seu fortalecimento e

complementaridade com os modos de regulação privada. Ou seja, a

efetividade da GAG depende do equilíbrio entre regulação pública

do tipo mandatória e regulação privada voluntária.

Isto posto, torna-se necessário discutir que espaço político-instituci-

onal para uma participação do setor privado como rule-maker reser-

varia um modelo de governança descentralizado em forma de redes.

Defende-se que o setor privado deva beneficiar-se de mecanismos de

participação direta nas negociações multilaterais ambientais, porém

não se trata de um novo mecanismo consultivo (Business Consultati-

ve Mechanism), como já foi proposto, em 1994, pela Nova Zelândia,

nem da permissão que empresas privadas individuais possam regis-

trar diretamente como observadores, prerrogativa já existente nas

negociações multilaterais da Convenção da Biodiversidade.

Mais do que a criação de um canal adicional, oficial e legítimo de co-

municação direta entre os atores empresariais individuais e o proces-

so político, permitindo que as empresas possam contribuir direta-

mente no processo de negociações multilaterais ambientais sem a ne-

cessidade de serem filiadas a uma determinada BINGO, defende-se

aqui uma reforma da arquitetura político-institucional do sistema de

GAG baseada em um modelo descentralizado de governança em for-

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ma de redes híbridas público-privadas, encorajando a participação

rule-maker do setor privado como ator político global.

Trata-se, portanto, de encorajar uma mudança de status do setor pri-

vado no processo de formação de regimes ambientais internacionais:

de observador indireto por meio das BINGOs para participante direto

do processo político. Essa mudança contribuiria para enfraquecer a

função antipolítica atualmente exercida pelas BINGOs e colocar o

setor privado fora da sua “zona de conforto”. Isto é, o setor privado

não teria mais como usar o seu atual status de observador no processo

de negociação multilateral ambiental para projetar uma imagem de

“ator apolítico”, não expondo publicamente o seu posicionamento

político e não se responsabilizando pelas decisões tomadas, deixan-

do-as somente a cargo dos atores estatais.

Porém, algumas questões fundamentais ainda permanecem em aber-

to, encorajando novas pesquisas e debates sobre o papel dos atores

corporativos na GAG. Quais os incentivos necessários para que os

atores corporativos se apoderem dos novos espaços político-institu-

cionais de participação rule-maker que seriam a eles reservados por

um modelo descentralizado de GAG? Qual a legitimidade e repre-

sentatividade de uma expansão do papel do setor privado de rule-ta-

ker para rule-maker na GAG, considerando-se que os atores corpora-

tivos são não eleitos e numerosos?

Notas

1. Ao longo de todo o artigo, empregam-se os termos “setor privado”, “atores

corporativos”, “atores empresariais”, “empresas” e “corporações” como sinô-

minos.

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2. O autor agradece a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior (CAPES) pela concessão da bolsa para realização de pós-doutorado na

Universidade Laval, em Quebec, Canadá.

3. Capacidade de corporações multinacionais influenciarem a formação e a

implementação de políticas públicas, utilizando-se de sua posição dominante

na economia global (FALKNER, 2007, p. 23).

4. Para maior aprofundamento sobre essa questão, ver também Bäckstrand

(2006).

5. O papel de rule-taker corresponde ao ator que se contenta em seguir, algu-

mas vezes, mesmo contra a sua vontade, as regras do jogo estabelecidas por ou-

tros atores. Já o rule-maker é aquele que participa diretamente e ativamente do

processo de construção das regras do jogo.

6. Estratégia na qual uma empresa tenta convencer consumidores e demais

partes interessadas de que é ambientalmente responsável, porém o propósito é

mais de melhorar a sua imagem do que realizar ações concretas para reduzir os

seus impactos ambientais (CLAPP; DAUVERGNE, 2005, p. 115).

7. Estratégia utilizada pelas empresas para serem percebidas como parte inte-

grante da comunidade humanitária mundial, por meio de parcerias voluntárias

com o sistema da ONU, sem, contudo, esforçar-se para serem mais transparen-

tes (BRUNO, 2002, p. 18).

8. Um indivíduo ou grupo social que tem interesse nas decisões e atividades

de uma organização (BÄCKSTRAND, 2006, p. 291).

9. Grupo formado pelo Dióxido de Carbono (CO2), Metano (CH

4), Óxido Ni-

troso (N2O), Perfluorcarbonos (PFCs), Hidrofluorcarbonos (HFCs) e Hexaflu-

oreto de Enxofre (SF6).

10. Para maior aprofundamento sobre essa questão, ver também Bruno

(2002).

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Jose Célio Silveira Andrade

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Resumo

Participação do Setor Privado na

Governança Ambiental Global:

Evolução, Contribuições e

Obstáculos

Este artigo tem por objetivo analisar a evolução da participação do setor pri-

vado na Governança Ambiental Global (GAG), identificando as contribui-

ções dadas e os principais obstáculos enfrentados por esse ator. Para atingir

Participação do Setor Privado na Governança

Ambiental Global: Evolução, Contribuições...

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este objetivo, privilegiou-se a estratégia de pesquisa qualitativa baseada em

análise de conteúdo da literatura acadêmica,working papers, diagnósticos e

relatórios institucionais. Constatou-se que a participação do mundo dos ne-

gócios na GAG se dá pelo processo de formação e implementação de regi-

mes ambientais internacionais e pelo desenvolvimento de regimes híbridos

e privados de governança ambiental. Defende-se que o setor privado pode

contribuir para a efetividade da GAG. Entretanto, existem vários obstácu-

los a serem superados visando uma participação mais ativa e direta desse

ator na ecopolítica mundial.

Palavras-chave: Governança Ambiental Global – Setor Privado – Regi-

mes Ambientais Internacionais – Ecopolítica Mundial

Abstract

The Participation of the Private

Sector in the Global

Environmental Governance:

Evolution, Contributions and

Obstacles

This article intends to study the evolution of the participation of the private

sector in the Global Environmental Governance (GEG), identifying the

contributions and the main obstacles faced by this actor. To achieve this

goal, emphasis was done on qualitative research strategy based on analysis

of academic literature, working papers, diagnostics and institutional

reports. It shows that the participation of business in the GEG occurs

through the process of formation and implementation of international

environmental regimes and the development of hybrid and private

environmental governance schemes. In conclusion, this article defends that

the private sector can contribute to the effectiveness of GEG, however,

there are several obstacles to a stronger participation of this actor in the

world ecopolitics.

Keywords: Global Environmental Governance – Private Sector –

International Environmental Regimes – World Ecopolitics

Jose Célio Silveira Andrade

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Vol. 31 no

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Introdução

Durante a Guerra Fria, “um prolongamento da Segunda Guerra

Mundial travado em diferentes níveis, de formas distintas, em múlti-

plos lugares por um tempo muito longo” (GADDIS, 2006, p. ix), os

assuntos da agenda internacional encontravam-se dispostos em cate-

gorias definidas. As tradicionais questões ligadas à segurança inter-

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1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

* Artigo recebido em setembro de 2008 e aprovado para publicação em janeiro de 2009.

** Doutorando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de

Brasília (Irel/UnB) e coordenador do curso de Relações Internacionais do Centro Universitário do

Distrito Federal (UDF). E-mail: [email protected].

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 31, no 2, maio/agosto 2009, p. 251-283.

Meio Ambiente e

Comércio

Internacional:

Relação Sustentável

ou Opostos

Inconciliáveis?

Argumentos

Ambientalistas e

pró-Comércio do

Debate*

Fábio Albergaria de Queiroz**

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nacional – soberania, poder bélico, estratégia militar – eram denomi-

nadas como sendo de alta política (high politics).

A agenda internacional gravitava em torno das políticas de segurança

e defesa que eram formuladas considerando-se as tensões e conflitos

originados do jogo de poder caracterizado pela disputa por áreas de

influência entre duas ideologias distintas, assentadas sobre duas ali-

anças estratégicas igualmente opostas: a Organização do Tratado do

Atlântico Norte (OTAN) e o Pacto de Varsóvia. Os demais assuntos,

como economia e meio ambiente, bem como as iniciativas e instânci-

as que os representavam, integravam o grupo das questões de baixa

política (low politics), indicando que ocupavam papel secundário na

agenda internacional.

O término da Guerra Fria foi evento central no século passado e re-

sultou em “importantes mudanças na maneira de se ver e conduzir a

política internacional” (SATO, 2000, p. 139). Em razão da dinâmica

dos acontecimentos posteriores ao seu fim e aos atores que hoje com-

põem as relações internacionais, esta agenda se modificou profunda-

mente.

Assuntos como livre-comércio, direitos humanos e meio ambiente,

antes secundários, são considerados, no cenário global, tão impor-

tantes quanto as tradicionais questões de segurança (BUZAN et al.,

1998). Assim, no contexto pós-Guerra Fria, os destinos dos atores

que dão forma às relações internacionais se entrelaçam em um com-

plexo cenário propício a conexões variadas.

A globalização é, certamente, um dos pontos centrais no debate acer-

ca das tendências que se apresentam para este cenário (FRIEDMAN,

1999, 2005). Dos assuntos que a caracterizam ou dela resultam, a

questão ambiental é, indubitavelmente, um dos mais importantes. A

variável ambiental emergiu como tema das relações internacionais,

ainda de forma embrionária, na década de 1970, intensificou-se ao

longo dos anos 1980, alcançou seu ápice nos anos 1990 e, atualmen-

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te, vem se destacando como um dos temas que melhor exemplificam

esta complexa interdependência global (KEOHANE; NYE, 2000).

Como o leitor poderá constatar ao longo destas páginas, o meio ambi-

ente destaca-se como um dos principais focos de atenção nas rela-

ções internacionais contemporâneas, uma vez que suas inter-rela-

ções com outras áreas das atividades humanas podem resultar em

consequências globais que demandam para sua solução, ou ao menos

mitigação, cada vez mais negociações e ações multilaterais envol-

vendo a comunidade internacional em um contexto de alta complexi-

dade.

Neste sentido, não é difícil notar que o tema meio ambiente se encon-

tra intimamente ligado a questões importantes como as relações Nor-

te-Sul, as relações entre países industrializados, o sistema internacio-

nal de produção e exploração dos recursos, a segurança dos Estados e

a liberdade de comércio.

A intensificação do intercâmbio comercial, outro tema de grande ex-

pressão na agenda mundial, é uma das grandes forças que movem a

economia globalizada. Contudo, foram os acontecimentos pós-Se-

gunda Guerra Mundial que desencadearam uma série de fatores que

transformaram profundamente as suas estruturas. Os países passa-

ram a buscar, por intermédio de negociações mais amplas, a gradati-

va liberalização do comércio mundial por meio da eliminação de to-

dos os tipos de barreiras comerciais e protecionistas. Nascia, assim,

uma nova ordem econômica mundial que tinha como um de seus ob-

jetivos principais estabelecer um sistema multilateral de comércio

aberto, equitativo e não discriminatório.1

A intensificação do fluxo das transações comerciais trouxe consigo

preocupações quanto às suas externalidades. Nesse sentido, pode-se

citar a superexploração dos recursos naturais, a perda de biodiversi-

dade e a emissão de resíduos poluentes. Aparece, então, com clareza

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a indagação: meio ambiente e comércio internacional são opostos in-

conciliáveis?

Portanto, caro leitor, embora a integração destes assuntos na agenda

internacional como questões de alta política seja fato relativamente

recente, suas implicações apresentam-se como um complexo e fasci-

nante campo de estudos na área das Relações Internacionais.

A literatura sobre o assunto nos permite constatar que muito se tem

falado a respeito, mas as respostas quanto aos principais pontos de

discussão dos efeitos do livre-comércio sobre o meio ambiente ainda

são muito ambíguas e não apontam para conclusões definitivas. Ten-

do como cenário este quadro de incertezas, o artigo buscará verificar

se existe uma relação causal direta entre o aumento do livre-comércio

e uma maior degradação do meio ambiente.

Para cumprir este objetivo, serão aqui analisados alguns dos argu-

mentos citados pelos ambientalistas que, em linhas gerais, questio-

nam o papel desempenhado pelo livre-comércio na promoção do de-

senvolvimento sustentável. Em contrapartida, também serão aborda-

dos alguns dos argumentos suscitados em prol do livre-comércio

para justificar a posição defendida pelos seus adeptos, isto é, de que

uma maior abertura comercial e a preservação do meio ambiente não

são eventos incompatíveis, sendo, portanto, perfeitamente possível

construir uma relação mutuamente benéfica.

Cabe salientar que as denominações “ambientalistas” e “pró-comér-

cio” servem unicamente aos propósitos deste artigo, não tendo, as-

sim, nenhuma fundamentação científica para a sua utilização. Elas

são utilizadas meramente como um instrumento facilitador para

agregar, em uma denominação comum, os vários atores que, de algu-

ma forma, fazem parte dos debates sobre a relação entre as variáveis

ambientais e comerciais – ou como partidários do meio ambiente ou

como adeptos do livre-comércio.

Fábio Albergaria de Queiroz

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1 – Antecedentes Históricos

do Debate

Na medida em que as políticas ambientais e comerciais iam se conso-

lidando como assuntos prioritários na agenda internacional, a in-

ter-relação entre elas transformou-se em alvo de crescente interesse e

controvérsia. Embora esta interação temática tenha se tornado mais

evidente ao longo da década de 1990, o debate dessa questão emergiu

já em 1972, na primeira conferência das Nações Unidas sobre Meio

Ambiente e Desenvolvimento, em Estocolmo, ainda que de forma in-

cipiente.

Na esteira da Conferência de Estocolmo, crescia o apelo pela cons-

trução de um modelo de desenvolvimento que levasse em considera-

ção, além dos fatores econômicos, aqueles de caráter social e ambi-

ental, mesmo considerando-se a pouca intimidade política e intelec-

tual em lidar com a relação entre estes temas. Com uma maior expo-

sição do conceito de desenvolvimento sustentável2

na Segunda Con-

ferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimen-

to (Rio-92), aprofundou-se o debate acerca dos impactos do comér-

cio sobre o meio ambiente. Estudos sobre os vínculos entre comér-

cio, meio ambiente, crescimento econômico e desenvolvimento sus-

tentável buscavam evidências que clarificassem com maior precisão

quais os impactos desta relação (BARBOZA, 2001, p. 36-37).

Portanto, tendo como referência esta breve exposição, percebe-se

que a vertente ambientalista, em linhas gerais, questiona o papel de-

sempenhado pelo livre-comércio na promoção do bem-estar coletivo

e na preservação do meio ambiente. Caubet (2001. p. 1), por exem-

plo, afirma que “o mundo, por ser financeiramente total e economica-

mente global, é ecologicamente letal e subordina as questões éticas,

políticas e socioambientais ao imperativo absoluto das exigências

comerciais”. Seria esta, então, uma tendência concreta das relações

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comerciais internacionais: excluir os fatores socioambientais das

considerações que devem estruturar o intercâmbio comercial?

No âmago dos debates em torno desta questão, outra corrente, aqui

denominada pró-comércio, delineou-se em oposição aos argumentos

suscitados pelos ambientalistas. Esta nova perspectiva “reconhece a

legitimidade das preocupações ambientais, mas advoga que o cresci-

mento econômico e o bem-estar humano não devem ser sacrificados

por preocupações excessivas, embora muitas vezes legítimas, com o

meio ambiente” (BARBOZA, 2001, p. 38).

Após oito Rodadas de Negociações no âmbito do General Agree-

ment on Tariffs and Trade (GATT) com vistas à remoção das barrei-

ras ao comércio internacional, muitas restrições tarifárias, entre 1947

e 1994 e, posteriormente, com a Organização Mundial do Comércio

(OMC), reduziram-se consideravelmente, mas outros obstáculos à

prática do livre-comércio, de caráter não tarifário, surgiram ou evi-

denciaram-se com maior clareza (OMC, 2002; OLIVEIRA, 2004;

CARBAUGH, 2005).

Entre as novas barreiras que se impunham ao livre-comércio, esta-

vam aquelas de caráter técnico, como, por exemplo, as regulamenta-

ções sanitárias e fitossanitárias e as normas de qualidade aplicadas a

produtos e serviços ambientais, como, por exemplo, a exigência do

rótulo ambiental (THORSTENSEN, 2002; GUÉRON, 2003).

Para Wathen (apud CAUBET, 2001, p. 3), o sistema GATT/OMC

tem visto, historicamente, a proteção ao meio ambiente apenas em

termos de barreiras ao comércio, e seu propósito tem sido o de alinhar

as normas de direito ambiental dos países-membros com os princípi-

os de comércio internacional arquitetados por este sistema. Portanto,

não é de se estranhar que os padrões ambientais sejam taxados como

“barreiras técnicas ao comércio”.

Fábio Albergaria de Queiroz

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Diante desta situação, os partidários do livre-comércio argumenta-

vam serem as políticas ambientais uma das variáveis que apresenta-

vam implicações potenciais sobre o comércio. Tal afirmação se sus-

tenta, segundo esta corrente, na existência de diferentes níveis de exi-

gências e regulamentações utilizados pelos países sob a alegação de

proteção ao meio ambiente, que, muitas vezes, não passam de instru-

mentos comerciais protecionistas com vistas a resguardar os seus

mercados internos da concorrência internacional.

Convém observar que os debates sobre este assunto não conduzem a

respostas concludentes, o que evidencia o seu caráter ambíguo. O

que se vê é que, muitas vezes, os argumentos sustentados tanto pela

corrente ambientalista como pela corrente pró-comércio têm por

base valores e pontos de vista que até partem de um ponto comum,

mas conduzem a rumos diferentes de acordo com as convicções das

partes envolvidas.

Ao analisar-se a perspectiva histórica deste debate, percebe-se que,

em um cenário marcado pela crescente liberalização comercial, a

grande questão que se coloca é se tal processo apresenta efeitos posi-

tivos ou negativos sobre o meio ambiente. Concluída esta breve intro-

dução, segue-se então a exposição de dois dos argumentos que emba-

sam a teoria ambientalista de que o livre-comércio não traz benefíci-

os para o meio ambiente.

2 – Os Argumentos

Ambientalistas

2.1 – Realocação industrial para

os pollution havens

Argumento frequentemente citado pelos ambientalistas como resul-

tante do processo de liberalização comercial diz respeito à migração

de empresas altamente poluidoras e/ou que fazem uso intensivo de

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recursos naturais para os países cujas legislações e exigências ambi-

entais sejam mais brandas.

Tais empresas, em sua grande maioria sediadas nos EUA e na União

Europeia, pressionadas por padrões ambientais internos rigorosos e

no intuito de fugir de custos produtivos mais elevados em virtude da

aplicação de normas técnicas ambientais, migram para os pollution

havens (refúgios da poluição), terminologia utilizada em referência

àqueles países onde as normas ambientais são menos rigorosas ou até

mesmo inexistentes.

Essas empresas enviam sua produção, obtida a custos bem menores,

para ser comercializada nos países-sede, livre das exigências e nor-

mas ambientais aplicáveis caso o processo produtivo fosse realizado

no âmbito doméstico. Como resultado final, os ganhos obtidos por

essas empresas se configuram na geração de poluição e na utilização

predatória dos recursos naturais dos pollution havens.

Exemplo desta prática nociva ao meio ambiente é o caso de empresas

madeireiras europeias que, acobertadas por leis ambientais pouco

exigentes e pela conivência dos governos locais, exploram as flores-

tas sul-americanas e asiáticas. Ao final de suas atividades, elas saem

do país deixando grandes passivos ambientais (PROCÓPIO, 2005).

A corrente ambientalista fundamenta sua postura contra a migração

industrial para os países menos desenvolvidos tendo por base o prin-

cípio 14 da Declaração do Rio, que diz que “os Estados devem coo-

perar de forma efetiva para desestimular ou prevenir a realocação e

transferência, para outros Estados, de atividades e substâncias que

causem degradação ambiental grave ou que sejam prejudiciais à saú-

de humana” (ONU, 1992).

Diante de tais fatos, os ambientalistas destacam dois efeitos princi-

pais resultantes do processo de realocação industrial para os refúgios

de poluição. O primeiro deles seria o desestímulo aos governos locais

Fábio Albergaria de Queiroz

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em adotarem normas ambientais mais rígidas, atitude justificada

pelo temor de que as grandes empresas internacionais não se transfi-

ram para locais que apresentem legislação ambiental exigente.

Mesmo sabendo dos prováveis impactos para o meio ambiente, pre-

valece a atraente percepção de que, com a instalação do parque in-

dustrial dessas grandes companhias, haverá aumento no nível interno

de emprego, ainda que com salários bem abaixo dos padrões interna-

cionais. Em segundo lugar, há entre os ambientalistas o temor de que,

para atrair empresas de outros países, haja uma diminuição nos ní-

veis de proteção ambiental existentes.

Em estudo sobre a atuação das empresas transnacionais (ETN) com

relação ao meio ambiente, Guedes (2003, p. 37-38) sugere que as

ETNs são os principais responsáveis pela geração e disseminação de

conhecimento gerencial e tecnológico relacionado às questões ambi-

entais. Contudo, os resultados empíricos da pesquisa demonstraram

que importantes práticas regularmente executadas por empresas

como Glaxo, Zeneca e DuPont em seus países de origem não estão

presentes em subsidiárias localizadas em países em desenvolvimen-

to, como o Brasil.

Com base no que foi dito, conclui-se a exposição deste argumento,

reiterando-se que, segundo posicionamento ambientalista, o proces-

so de realocação industrial é um jogo em que o meio ambiente sai

como o grande perdedor em benefício do livre-comércio.

2.2 – Perda de biodiversidade

Uma das grandes preocupações dos ambientalistas quanto aos efei-

tos do processo de liberalização comercial sobre o meio ambiente diz

respeito a um tema de grande sensibilidade: o da perda de biodiversi-

dade. A vertente ambientalista sustenta que as políticas de liberaliza-

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ção comercial conduzem à superexploração dos recursos naturais e,

consequentemente, à deterioração do meio ambiente.

Nesse sentido, López (apud LOW, 1992) concluiu, por intermédio de

um estudo baseado em um modelo formal de crescimento econômico

resultante de políticas de liberalização comercial, que os ganhos ob-

tidos em termos econômicos, tendo por base a expansão dos fatores

de produção, tendem a estar associados a elevados níveis de degrada-

ção ambiental.

Os temores acerca da perda de biodiversidade se acentuam nos casos

dos países em desenvolvimento cujas bases produtiva e exportadora,

em sua maioria, sustentam-se em atividades extrativistas ou intensi-

vas em uso de recursos naturais. Em tal contexto, a corrente ambien-

talista enxerga o comércio internacional, fruto das políticas liberais,

como potencializador de determinados processos de degradação am-

biental nestes países, causados, principalmente, pela promoção da

expansão de monoculturas que propiciam vantagens comparativas a

essas economias no mercado internacional (QUEIROZ, 2003).

É o caso, por exemplo, da ocupação econômica do cerrado brasileiro

– a maior biodiversidade savânica do planeta – como uma das princi-

pais alternativas para a expansão da fronteira agrícola nacional. Até o

fim da década de 1970, a produção de soja no Brasil praticamente se

restringiu às regiões Sul e Sudeste (São Paulo e Minas Gerais), tradi-

cionais produtoras de grãos.

Uma conjunção de fatores, domésticos e internacionais, contribuiu

para que a fronteira agrícola avançasse rumo às regiões Centro-oeste

e Nordeste, resultando na incorporação de imensas áreas de cerrado,

o que culminou em um extraordinário crescimento da produção de

grãos, especialmente soja. Concentrada nas mãos do chamado ABC

do agronegócio sojeiro – Archer Daniels Midland Company, Bung

Corporation e Cargill –, cerca de 70% da produção nacional tem

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como principal destino o mercado consumidor externo

(PROCÓPIO, 2007, p. 35).

Nesse sentido, teme-se que a ampliação do sistema logístico de esco-

amento de produção, por meio da abertura de novas estradas, ferrovi-

as e hidrovias, possibilitada pela implantação dos corredores de ex-

portação, possa estimular a ocupação territorial desordenada, amea-

çar as poucas áreas de cerrado ainda preservadas e, consequentemen-

te, a riqueza biológica desta região, em grande parte endêmica, e o

funcionamento do ecossistema (QUEIROZ, 2003).

Afinal, como sustentam muitos ambientalistas, uma das medidas ne-

cessárias para a conservação da biodiversidade está em garantir que

soluções economicamente viáveis sejam desenvolvidas com o obje-

tivo de reduzir o consumo predatório dos recursos ainda disponíveis,

deter a poluição e conservar os habitats naturais.

Além do setor produtivo, os ambientalistas também apontam que o

comércio internacional de espécies selvagens, animais e vegetais,

bem como dos produtos derivados de sua exploração, gera, anual-

mente, grandes lucros sem que haja, em contrapartida, preocupação

em face da iminente ameaça de perda de importantes parcelas da di-

versidade biológica mundial (PROCÓPIO, 2005).

Como exemplo dos impactos gerados pelas atividades extrativistas

voltadas à exportação, pode-se citar o caso da exploração clandestina

do mogno amazônico, a variedade mais nobre e mais valorizada da

região, hoje gravemente ameaçada de extinção (GUÉRON;

GARRIDO, 2004; PROCÓPIO, 2006).

Entre 1971 e 2001, o Brasil exportou em torno de 4 milhões de me-

tros cúbicos de mogno serrado, tendo 75% deste montante como des-

tino final os EUA e a Inglaterra (GROGAN et al., 2001). Em 2001, o

metro cúbico do mogno serrado de qualidade superior estava estima-

do a um preço médio de US$ 1,2 mil (FOB).3

É por ser considerada

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uma fonte inestimável de lucro que se tem observado, principalmente

nas últimas duas décadas, a exploração intensiva do mogno em sua

zona natural de ocorrência, o chamado “cinturão do mogno”.4

Segundo Ferreira (2002), controlar a exploração desenfreada desta

madeira nobre tem sido uma tentativa do governo brasileiro desde

1996, quando se proibiu a aprovação de novos planos de manejo para

a espécie depois que avaliações técnicas concluíram que os planos

eram inadequados ou fraudulentos.

Crítico deste quadro, Procópio (2007, p. 31) alerta que os esforços

foram inócuos, em razão principalmente da conivência das institui-

ções criadas para garantir a preservação do meio ambiente. Segundo

o autor, entre 1999 e 2005, o abate de árvores amazônicas cresceu

mais de 1.000% para atender à demanda do parque moveleiro asiáti-

co, principalmente dos chamados Tigres Asiáticos, que se tornaram

grandes fornecedores de produtos madeireiros acabados para a

União Europeia, Estados Unidos, Japão e Austrália.

Somente nos municípios paraenses de Uruará, Anapu e Medicilân-

dia, houve em menos de um ano a impressionante extração de 220

mil m3

de madeira. Além disso, cita Procópio, das cerca de 3 mil em-

presas distribuídas em quase uma centena de pólos madeireiros, ape-

nas 10% delas buscam beneficiar e agregar valor ao lenho.

Esse cenário colocou o Brasil na posição de maior pólo exportador,

desbancando a Indonésia, que caiu para segundo lugar. O mais assus-

tador é que, do montante total do comércio madeireiro brasileiro, me-

nos de 1% é certificado.

A União Europeia, após consultar a secretaria da Convenção sobre o

Comércio Internacional das Espécies da Fauna e Flora Selvagens

Ameaçadas de Extinção (em inglês, Convection on International Tra-

de in Endangered Species of Wild Fauna and Flora (CITES)), reco-

mendou aos países-membros não aceitarem carregamentos de mog-

Fábio Albergaria de Queiroz

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no provenientes das florestas brasileiras. Seguindo esta recomenda-

ção, Bélgica, Holanda e Alemanha tomaram a decisão de apreender a

madeira em seus portos.

Contudo, esta medida ainda encontra muitas limitações. Ativistas

ambientalistas denunciaram, por exemplo, a utilização de cerca de 6

mil m2

de jatobá amazônico contrabandeado nas obras de ampliação

do Museu Nacional Reina Sofía, em Madri, o mais importante museu

de arte contemporânea da Espanha. A madeira – que agora adorna pi-

sos, divisórias, forros e prateleiras do museu – foi extraída na região

de Altamira, no Pará, por madeireiras envolvidas em ilegalidades e

desmatamento.

Em relatório entregue às autoridades e empresas espanholas, faz-se

dura crítica à fragilidade dos documentos oficiais apresentados por

empresas de países produtores, como o Brasil, além de se recomen-

dar a adoção de normas mais rígidas para evitar a entrada de madeira

ilegal na Europa (GREENPEACE, 2005). Este é mais um dos exem-

plos citados para se comprovar, segundo os ambientalistas, as poten-

ciais distorções e impactos negativos que as políticas comerciais po-

dem ocasionar à biodiversidade.

Mais de uma década após o estabelecimento da Convenção sobre Di-

versidade Biológica (CDB), um dos documentos mais importantes

resultante da Rio-92, muitos ambientalistas têm afirmado que o obje-

tivo expresso em seu artigo 1o, de se promover a conservação da di-

versidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a

repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização

dos recursos genéticos, não passou de uma mera manifestação de

intenções, pouco ou nada efetiva.

O que se observa é que as assimetrias se acentuaram. De um lado, há

o Norte desenvolvido, ávido por recursos naturais que, em nome do

desenvolvimento de suas economias, puseram em risco sua biodiver-

sidade. Do outro lado, está o Sul, menos desenvolvido, porém rico

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em biodiversidade que, no entanto, encontra-se cada vez mais amea-

çada dadas as reivindicações desenvolvimentistas destes países

(PROCÓPIO, 2005).

3 – A Base dos Argumentos

pró-Comércio

A análise a ser desenvolvida não se deterá unicamente em contra-

por-se aos argumentos defendidos pelos ambientalistas, mas também

a expor as justificativas que embasam a percepção pró-comércio de

que uma maior abertura comercial e a preservação do meio ambiente

não são eventos incompatíveis, e que é perfeitamente possível desen-

volver-se uma parceria mutuamente benéfica entre ambos. Em linhas

gerais, esta assertiva está fundamentada na percepção de que a pre-

servação do meio ambiente se encontra vinculada ao crescimento

econômico, que, por sua vez, depende da expansão do livre-co-

mércio.

3.1 – O livre-comércio como

instrumento do desenvolvimento

sustentável e o temor do

protecionismo verde

Para Hufbauer e Jeffrey (1992) e Gonçalves (2002), é fato que a ex-

pansão do comércio internacional tem sido um dos principais promo-

tores do desenvolvimento em praticamente todos os países, gerando,

entre muitos de seus benefícios, empregos, redução nos custos pro-

dutivos, aumento da produção e consumo e, consequentemente, au-

mento do bem-estar econômico.

Este argumento pressupõe que o aumento das exportações promove

o crescimento econômico, que, por sua vez, disponibiliza os recursos

financeiros necessários aos investimentos públicos e privados para a

preservação ambiental. Conclui-se assim, de acordo com os adeptos

Fábio Albergaria de Queiroz

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do livre-comércio, que crescimento econômico e proteção ambiental

são compatíveis.

Os adeptos do livre-comércio defendem que o aumento do intercâm-

bio comercial não é a origem dos problemas ambientais. No entanto,

eles reconhecem que, em casos específicos, como em países cuja

base industrial não esteja consolidada e, portanto, não se encontre

preparada para enfrentar as novas situações impostas pela abertura

comercial, pode ocorrer um aumento no nível de degradação ambi-

ental em determinados setores.5

Mesmo reconhecendo as possibilidades de impactos ao meio ambi-

ente decorrentes do processo de liberalização comercial, os argu-

mentos pró-comércio sugerem que os problemas ambientais surgem

de situações intrínsecas à realidade de cada país e de um conjunto de

variáveis que não podem ser modificadas pela simples regulação dos

fluxos comerciais.

Segundo Panayotou (1993, p. 33),

grande parte do manejo inadequado e uso inefi-

ciente dos recursos naturais e do meio ambien-

te resulta do mau funcionamento, distorção ou

ausência de mercados livres, que, em condi-

ções de bom funcionamento, normalmente, ge-

ram efeitos benéficos para o meio ambiente.

Em estudo realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio

Ambiente (em inglês, United Nations Environment Programme

(UNEP)) objetivando avaliar o impacto do aumento do comércio em

setores específicos de seis países em desenvolvimento, chegou-se à

conclusão de que os potenciais efeitos negativos do comércio sobre o

meio ambiente poderiam ser minimizados, ou até mesmo evitados,

ao incorporar considerações ambientais – que complementassem ao

invés de inibir a abertura comercial – no planejamento das políticas

de desenvolvimento (UNEP, 1999 apud BARBOZA, 2001, p. 93).

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Baseando-se nas afirmações supracitadas, argumenta-se que as res-

trições comerciais voltadas ao cumprimento de objetivos ambientais

são muitas vezes contraproducentes e, na grande maioria dos casos,

ineficazes. Para Corrêa (1998), tal percepção se fundamenta na críti-

ca feita pela corrente pró-comércio de que tais sanções se centram

apenas nos interesses do país que as aplica, desconsiderando, muitas

vezes, as prioridades ambientais do(s) país(es) afetado(s), compro-

metendo, desta forma, a solução adequada dos problemas ambien-

tais.

4 – Os Argumentos

pró-Comércio

Tendo como ponto referencial este cenário marcado por inflamados

debates entre ambientalistas e ativistas da liberalização comercial,

prossegue-se agora à análise de três dos argumentos pró-comércio

que têm por objetivo responder às críticas ambientalistas de que a

prática do livre-comércio não traz benefícios ao meio ambiente. Em

seguida, será feita a exposição de algumas breves conclusões obtidas

por meio da análise dos estudos empíricos utilizados por ambienta-

listas e partidários do livre-comércio nas justificativas de seus argu-

mentos.

4.1 – Geração de tecnologia limpa

A geração de tecnologia limpa ou ambientalmente correta é citada

tanto por ambientalistas como pelos defensores do livre-comércio

como um fator de fundamental importância para a construção de um

modelo de desenvolvimento econômico sustentável. Em Estocolmo,

já se afirmava que ciência e tecnologia são indispensáveis na busca

de soluções que possibilitem descobrir, evitar e combater os riscos

que ameaçam o meio ambiente e o bem comum da humanidade (prin-

cípio 18 da Declaração de Estocolmo (ONU, 1972)).

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Esta percepção decorre do reconhecimento geral de que a utilização

de tecnologias sustentáveis possibilita, entre muitos de seus benefíci-

os, uma expansão produtiva menos agressiva ao meio ambiente; ga-

nhos de escala em virtude de uma alocação mais eficiente dos recur-

sos naturais; redução no uso de energia no processo produtivo; meno-

res índices de desperdício etc.

O argumento defendido pela vertente liberal sustenta que a abertura

comercial propicia a adoção, difusão e transferência de tecnologias

limpas. Muitos países e corporações industriais, em face da concor-

rência internacional, tendem a empregar tecnologias e métodos avan-

çados no processo produtivo que resultem em melhor qualidade, me-

nor preço e, sobretudo, redução no uso ineficiente dos recursos natu-

rais com vistas a cumprir as exigências do mercado consumidor, cada

vez mais ciente da importância de se preservar o meio ambiente.

Com um faturamento anual de cerca de 172 bilhões de dólares, a Ge-

neral Electric é um exemplo notório de sucesso. Em uma reunião

com seus executivos em 2004, o presidente mundial da GE, Jeffrey

Immelt, determinou que todas as áreas da empresa se engajassem na

criação de produtos ambientalmente corretos. Adotando o sugestivo

lema “Green is Green”, aludindo haver uma relação causal direta en-

tre produtos sustentáveis e lucro certo, Immelt prevê que a linha ver-

de da GE, batizada de Ecomagination, gere uma receita estimada em

torno de 25 bilhões de dólares em 2010, o dobro do faturamento

atual.

Em um estudo realizado pelo Banco Mundial, examinou-se a veloci-

dade com que sessenta países adotavam tecnologias menos poluentes

para a produção de papel. Concluiu-se que a nova tecnologia entrava

nos países abertos ao comércio e ao investimento estrangeiro bem

mais rapidamente que nos países fechados a eles (KOTLER, 1997, p.

240).

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Outro trabalho que serve como base para sustentar esta premissa

pró-comércio foi realizado por Wheeler e Mody (1992), que, a partir

de estudos de caso, concluíram que, nos países abertos ao comércio,

ocorria a adoção de métodos produtivos mais sustentáveis, sobretudo

por meio da importação dos padrões vigentes em países mais desen-

volvidos. Ao analisar o caso da indústria chilena de celulose, eles ob-

servaram que a exposição do setor à competição externa acelerou o

investimento em tecnologias limpas para atender às exigências ambi-

entais dos mercados consumidores internacionais.

Ele também observou que, em contrapartida, nos países onde preva-

leciam fortes políticas protecionistas, havia uma maior suscetibilida-

de para o desenvolvimento de indústrias altamente poluidoras.

Nesse mesmo sentido, Hettigee et al. (1992), depois de analisarem

muitos casos, chegaram à conclusão semelhante, de que as indústrias

sujas se desenvolviam mais rapidamente em economias protecionis-

tas, como as da América Latina, do que em economias abertas ao co-

mércio.

Um caso emblemático, usualmente citado como exemplo de geração

de tecnologia limpa em decorrência do livre-comércio, é o da flori-

cultura holandesa, mundialmente reconhecida por sua excelência e

competitividade. Neste caso, o cultivo intensivo estava gerando con-

taminação do solo e dos lençóis freáticos por causa do uso excessivo

de pesticidas, herbicidas e fertilizantes.

Para atender aos padrões ambientais comunitários e domésticos, os

holandeses desenvolveram um sistema de produção em modernas es-

tufas onde as flores crescem sobre pedras e lã de pedra, não em terra,

o que reduz o risco de pragas e o uso de agrotóxicos, que, quando uti-

lizados, são eliminados na água que circula e é reutilizada. Esse siste-

ma propiciou uma drástica redução dos impactos ambientais, maior

qualidade na produção, diminuição nos custos de manuseio e um lu-

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cro crescente nas exportações de flores ornamentais (KOTLER,

1997, p. 240).

Quanto ao Brasil, o setor de mineração, importante agente no proces-

so de inserção internacional do país, é, segundo Ferreira e Paulino

(2007, p. 13), referência em termos de investimentos ambientais.

Grandes empresas com ativa participação no mercado externo, como

a Vale, a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM)

e a San Marco, apresentam os melhores desempenhos ambientais no

setor, evidenciando a relevância da exposição ao comércio internaci-

onal como variável capaz de impulsionar a adoção de métodos pro-

dutivos ambientalmente sustentáveis.

Com base em exemplos como estes, os defensores do livre-comércio

concluem que, quanto maior for o nível de abertura ao comércio in-

ternacional, maior será o índice de adoção de tecnologias sustentá-

veis, uma vez que elas, além de propiciarem um impacto ambiental

muito menor, permitem que se produza, no médio prazo, com menor

custo e maior qualidade, lucro e competitividade global.

4.2 – Realocação industrial para

os pollution havens

Contrapondo-se ao argumento ambientalista de que o processo de li-

beralização comercial estimula a transferência de atividades indus-

triais nocivas ao meio ambiente para os pollution havens, os defenso-

res do livre-comércio, contrariamente, sustentam que a abertura co-

mercial e os investimentos externos ajudam a reduzir ou, até mesmo,

evitar a criação dos refúgios de poluição. Além disso, a variável “cus-

tos ambientais” não é apontada pelos adeptos da liberalização como

um fator decisivo na escolha da localização de empresas bem admi-

nistradas e competitivas.

Argumenta-se que a preocupação com custos associados a exigênci-

as ambientais é apenas uma das inúmeras variáveis que podem influ-

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enciar na escolha do local de instalação de uma empresa ou subsidiá-

ria em determinado país. Além disso, existem vários outros aspectos,

muito mais importantes e relevantes no momento da decisão, tais

como níveis salariais e disponibilidade de mão-de-obra a custos me-

nores, demanda de mercado, distribuição internacional de recursos

naturais, dimensão do mercado consumidor interno, estratégias na-

cionais de industrialização, infraestrutura etc.

Percebe-se, dado o que já foi discutido, que o debate entre ambienta-

listas e defensores do livre-comércio quanto à realocação de indús-

trias contaminadoras tem sido o tema de vários estudos. Um deles,

empreendido por Low (1992), concluiu que a existência de indústrias

poluidoras nos países em desenvolvimento não pode ser vinculada,

em nenhum alto grau, como resultado de diferenças nos níveis de re-

gulamentação ambiental.

Um outro estudo, realizado pela OCDE (1999), afirma que as inúme-

ras experiências observadas em todo o mundo têm demonstrado que

a abertura ao comércio e aos investimentos estrangeiros geralmente

se traduz em uma maior pressão por padrões ambientalmente mais rí-

gidos. Além do mais, cresce a percepção de que uma empresa pode

perder sua competitividade nos mercados doméstico e internacional

por não atentar para as questões relacionadas ao meio ambiente.

Por fim, estudos sobre o aumento dos padrões de regulação ambiental

como resultado da abertura comercial, realizados na China (WANG;

WHEELER, 1996) e na Indonésia (PARGAL; WHEELER, 1996),

chegaram à conclusão de que os refúgios de poluição, quando existem,

são transitórios, pois, como as evidências demonstraram, sua incidên-

cia diminui na medida em que há aumento do desenvolvimento econô-

mico nos países – fruto, em boa parte, das políticas de livre-comércio.

Assim, dado tudo o que foi exposto, os defensores do livre-comércio

concluem que o processo de liberalização comercial, ao invés de esti-

mular a realocação industrial para os refúgios de poluição, conforme

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argumentado pelos ambientalistas, age em sentido contrário, ajudan-

do a reduzir ou até mesmo, em muitos casos, evitar tal processo.

4.3 – A OMC e o desenvolvimento

sustentável

Muitas críticas ambientalistas argumentam que a OMC tem sido

omissa ao não dar a devida atenção aos problemas ambientais que

surgem como consequência da abertura comercial. Contudo, há ar-

gumentações em defesa do livre-comércio que atestam o importante

papel desempenhado por essa organização na construção de relações

comerciais internacionais sustentáveis.

Primeiramente, a OMC nunca foi e nunca teve a pretensão de ser uma

agência ambiental internacional. Assim, o ideal seria a criação de um

foro internacional especializado, competente para lidar com os as-

pectos relacionados com o comércio e o meio ambiente, ao invés de

se imputar à OMC todo o ônus decorrente de possíveis impactos am-

bientais que venham a ser causados por medidas comerciais.

É possível observar, sobretudo a partir da década de 1990, a inserção

do conceito de sustentabilidade em uma escala global. De forma ge-

ral, as grandes organizações internacionais, blocos econômicos e cír-

culos de debate atuantes nos mais variados campos temáticos passa-

ram a incorporar o conceito de desenvolvimento sustentável em suas

pautas de trabalho.

A OMC não foi exceção. Em seu acordo constitutivo, a preocupação

com a proteção e conservação ambiental está explícita em muitos de

seus artigos. Tendo como base o que foi citado, os seus defensores

afirmam estar claro que identificar a relação entre medidas comer-

ciais e medidas ambientais no intuito de se promover o desenvolvi-

mento sustentável é um dos objetivos da organização (OMC, 2002).

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Foi assim que, na Reunião do Comitê de Negociações Comerciais,

realizada em Marrakesh, aprovou-se a criação do Comitê de Comér-

cio e Meio Ambiente, além da Ata Final que incorporava todos os re-

sultados comerciais multilaterais obtidos durante o longo processo

de negociação que marcou a Rodada Uruguai.6

Os termos de referência deste Comitê foram estabelecidos na Deci-

são Ministerial sobre Comércio e Meio Ambiente de Marrakesh, que

estabeleceu como sua função examinar as relações de causa e efeito

entre os dispositivos da OMC e medidas comerciais com o meio am-

biente, bem como dos acordos multilaterais ambientais (Multilateral

Environment Agreements (MEAs)) com o comércio internacional.

Desta forma, os partidários do sistema multilateral de comércio sus-

tentam que de maneira alguma a OMC se absteve de atentar para a

preservação ambiental ou contribuir para a consolidação de um mo-

delo de desenvolvimento sustentável. Prova disso são os contínuos

esforços empreendidos por esta organização no intuito de eliminar as

distorções comerciais que venham causar danos ao meio ambiente.

Cita-se aqui, como exemplo destes esforços, o combate ao protecio-

nismo agrícola. Esta prática se dá por meio da concessão de subsídios

que geram uma série de distorções comerciais com implicações dire-

tas sobre o meio ambiente que podem tornar-se catastróficas a médio

e longo prazo. Ao outorgarem-se incentivos artificiais dessa nature-

za, penalizam-se os produtos competitivos dos mercados externos,

intensifica-se a agricultura doméstica por meio da incorporação de

terras marginais e do uso exagerado de fertilizantes, herbicidas e pes-

ticidas, provocando, como resultado final, a redução da produtivida-

de da terra, entre outras consequências.7

Além disso, o protecionismo agrícola praticado pelos países desen-

volvidos tem comprometido a promoção da multifuncionalidade da

agricultura nos países em desenvolvimento (LAFER, 2001, p. 6-7).8

Como consequência, há a depreciação dos preços das commodities

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agrícolas no mercado internacional, o aumento da pobreza rural, o

êxodo para as cidades e a exploração predatória de recursos nos paí-

ses que não têm condição de subsidiar sua produção agrícola.

O desfecho de recente contencioso na OMC envolvendo Brasil e

União Europeia em relação à importação de pneus reformados, por

parte do Brasil, reforça o argumento de que a organização tem de-

sempenhado importante papel na promoção e defesa do meio ambi-

ente. No caso em questão, no dia 12 de junho de 2007, em parecer de

241 páginas, a OMC posicionou-se favoravelmente à proibição do

Brasil de importar pneus reformados procedentes da União Europeia

com base em teses ambientais e de saúde pública.

Nas argumentações brasileiras, afirmava-se que esses pneus têm vida

útil menor que os novos, o que contribui para a geração e acúmulo de

resíduos nocivos ao meio ambiente. Além disso, esses pneus favore-

cem a proliferação de doenças transmitidas por mosquitos, como a

dengue, e pela queima do material. De acordo com estimativas do go-

verno brasileiro, o consumo interno de pneus (novos e reformados)

gera cerca de 40 milhões de carcaças por ano, sendo menos da meta-

de reutilizada e a maior parte despejada em “lixões” e aterros

sanitários.9

Lembremos, contudo, que a OMC tem como princípio basilar a defe-

sa do comércio aberto, equitativo e não discriminatório. Neste senti-

do, a organização determinou que o Brasil só fechasse seu mercado

aos pneus reformados europeus se fosse capaz de impedir que a in-

dústria doméstica reformadora de pneus importasse carcaças para

usar como matéria-prima, o que vem acontecendo em virtude de li-

minares concedidas pela justiça brasileira, liminares estas que, no en-

tendimento da OMC, constituem uma discriminação e restrição ao

comércio, já que beneficiam os reformadores nacionais em prejuízo

dos estrangeiros.10

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Embora a imprensa nacional e estrangeira tenha apresentado percep-

ções antagônicas quanto a vencedores e vencidos neste episódio

(CUNHA, 2007), o importante é notar, como observou João Paulo

Capobianco, secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente,

que a decisão da OMC, fundamentada em questões ambientais e de

saúde pública, aumenta a credibilidade da organização (BRASIL...,

2007).

Com base no que foi exposto, o fato inconteste é que a institucionali-

zação da questão ambiental na OMC reflete a imperatividade, no

contexto da globalização, de se compreender melhor a cada vez mais

complexa e dinâmica interatividade entre as políticas comerciais e

fatores capazes de impactar a competição internacional e alterar o

modo de operação dos mercados, como é o caso do meio ambiente.

5 – Considerações Finais:

para que Conclusões

Apontam as Evidências

Empíricas?

Reconhecidamente, as evidências empíricas constituem um instru-

mento muito importante para a compreensão das relações entre li-

vre-comércio e meio ambiente. No entanto, deve-se levar em conta

que existem certas limitações metodológicas que impedem que infe-

rências conclusivas sejam elaboradas a partir da verificação empírica

dos argumentos citados. Em primeiro lugar, o estudo do tema “li-

vre-comércio e meio ambiente” envolve um grande número de variá-

veis, endógenas e exógenas, sendo algumas de difícil mensuração e

consenso, como o estabelecimento de uma rigorosa valoração econô-

mica para os recursos naturais (BARBOZA, 2001; MOTA, 2001).

Outra importante observação mostra que os estudos empíricos, em

geral, descrevem um cenário peculiar a um determinado país, setor

da atividade econômica ou ecossistema, onde o objeto de análise se

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encontra sujeito a interferências diversas que podem mudar, comple-

tamente, as suas características.

A explicação para isso reside no fato de haver muitas variáveis capa-

zes de influenciar profundamente os efeitos ambientais produzidos

por um mesmo fenômeno, no caso a abertura comercial, em países ou

setores que apresentem características semelhantes. São exemplos

destas variáveis intervenientes: topografia, nível educacional da po-

pulação, distribuição de renda, situação política interna, estabilidade

econômica, diversidade do parque industrial, composição das pautas

de exportações, recursos naturais disponíveis etc.

Desta forma, observa-se que a existência de tais peculiaridades, in-

trínsecas à realidade de cada país, permite que se compreenda o por-

quê de, muitas vezes, estudos desenvolvidos de maneira semelhante

e tendo o mesmo objeto de análise conduzirem a resultados diferen-

tes que, se utilizados como ferramenta metodológica para o estudo de

situações análogas, podem resultar em menor eficiência ou, até mes-

mo, em total ineficácia.

Tais condições não permitem, assim, que as conclusões obtidas por

meio das evidências empíricas observadas em determinado caso pos-

sam ser automaticamente extensíveis a outras situações, mesmo que

existam semelhanças. Conclui-se, portanto, que as observações em-

píricas não fornecem respostas categóricas sobre os efeitos ambien-

tais da liberalização comercial, pois seus impactos não são unifor-

mes.

O que elas têm demonstrado é que a abertura comercial atua como

potencializador de variáveis como aumento nos níveis de consumo e

produção, geração de novas tecnologias, realocação industrial, entre

outras mais que podem afetar, positiva ou negativamente, em maior

ou menor grau, o meio ambiente. É o chamado efeito composição, ou

setorial, cujas implicações se encontram diretamente ligadas a mu-

danças nos padrões de especialização produtiva dos países.

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Outro ponto relevante é que não apenas a geografia, mas também a

temporalidade tem afetado comportamentos de atores governamen-

tais e do setor privado que lidam com o tema, o que demonstra a vola-

tilidade e o grau de subjetividade que caracterizam esta complexa in-

ter-relação.

Portanto, embora neste artigo não tenha sido explorada com a mere-

cida atenção, esta é uma variável que, mesmo fortemente condicio-

nada por aspectos de ordem conjuntural, retrato de um sistema de

grande dinamismo, deve ser levada em consideração nos estudos so-

bre meio ambiente e comércio.

Ademais, apesar de não haver uma técnica que se aplique a todos os

casos satisfatoriamente, a metodologia utilizada, baseada na revisão

de parte da literatura sobre o tema, permitiu-nos identificar duas

abordagens principais.

A primeira, ou tradicional, pressupõe haver conflitos inevitáveis,

ainda que em graus diferenciados, entre o meio ambiente e ganhos

econômicos advindos de uma maior abertura ao livre-comércio.

Já a segunda abordagem, dita revisionista, é mais recente e enfatiza

os efeitos sinérgicos entre maiores exigências ambientais e ganhos

em competitividade. Também conhecida como “Hipótese de Porter”,

ela teoriza, em linhas gerais, que o nível de rigor das regulamenta-

ções ambientais influencia em grande medida os padrões de comér-

cio e investimento estrangeiro direto.

Novamente, cumpre lembrar que os constrangimentos de ordem me-

todológica mencionados, derivados da complexidade do tema, impe-

dem que sejam obtidas evidências robustas o suficiente a ponto de

permitir inferir a existência, como regra geral, de uma relação causal

direta entre aumento do comércio internacional e maior degradação

do meio ambiente.

Fábio Albergaria de Queiroz

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Portanto, os efeitos da abertura comercial sobre o meio ambiente são

variáveis e dependem do caráter das políticas ambientais e comer-

ciais vigentes em cada caso e das variáveis intervenientes considera-

das em cada análise.

Por isso, com base nas contribuições e limitações deste artigo, con-

cluo sugerindo, como proposta metodológica que dê maior concretu-

de a este road map temático, a utilização de ferramentas que conside-

rem: a) o estado atual e prováveis tendências (temporalidade); b) os

fatores causais de impactos recíprocos; c) estimativas de externalida-

des ambientais com e sem liberalização comercial; e d) avaliação dos

impactos concretos derivados da realocação de recursos em decor-

rência de uma maior abertura comercial, e da liberalização comercial

sobre aspectos como diversidade genética e estrutura social.

Notas

1. As teorias econômicas clássicas do século XVIII já buscavam como meta

prioritária o livre-comércio. A novidade pós-Segunda Guerra foi a retomada da

busca ao livre-comércio por meio de negociações multilaterais que, na figura do

General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), foram sendo gradativamente

normatizadas e ampliadas em rodadas de negociações periódicas.

2. Em 1983, foi criada, sob os auspícios da ONU, a Comissão Mundial sobre

Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), também conhecida como Co-

missão Brundtland por ter sido presidida pela então primeira-ministra da Noru-

ega, Gro Harlem Brundtland. Os resultados de seus trabalhos foram apresenta-

dos no relatório intitulado Nosso futuro comum, publicado em 1988, em que se

definiu desenvolvimento sustentável como “aquele que atende às necessidades

do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem

às suas próprias necessidades” (CMMAD, 1988, p. 46).

3. A cláusula FOB (Free on Board) determina que cabe ao exportador colocar

a mercadoria comercializada a bordo do navio, providenciar os transportes e se-

guros internos do ponto de venda até dentro do navio e arcar com as despesas

portuárias no porto de origem. Já o importador deverá arcar com as despesas

portuárias incidentes no porto de destino, bem como com o frete e os seguros de-

vidos desde o porto de embarque até o destino.

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4. No Brasil, o cinturão do mogno cobre uma vasta área de 1,5 milhão de km2

que abrange o sul do Pará, o noroeste do Tocantins e Mato Grosso, o sudeste do

Amazonas e grande parte dos estados de Rondônia e do Acre.

5. Segundo estudo realizado por Sanderson (1993), o processo de abertura co-

mercial pode resultar em maior exploração dos recursos naturais, não como

simples resposta aos problemas comerciais, mas sim como um complexo pro-

duto dos ajustes internos necessários.

6. Trade and Environment Decision of 14 April 1994. GATT Doc.

MTN.TNC/W/141.

7. O acordo da OMC sobre subsídios e medidas compensatórias, em seu artigo

8o, dispõe sobre a concessão de subsídios vinculados à implementação de políti-

cas ambientais com o objetivo de promover a adaptação da infraestrutura indus-

trial existente em conformidade com as exigências impostas por normas e regu-

lamentos sobre o assunto. Note-se que o Comitê responsável exige que qualquer

programa de concessão de subsídios lhe seja informado antecipadamente para

que, então, submeta tal proposta a uma comissão de especialistas da OMC res-

ponsável por analisar a compatibilidade do programa com as condições e crité-

rios previstos nos dispositivos do acordo. As regras para a concessão de subsídi-

os são listadas na alínea “c” do artigo citado. São elas a obrigatoriedade de que o

subsídio: seja excepcional e não recorrente; limite-se a 20% do custo de adapta-

ção; não cubra custos de reposição e operação do investimento; seja diretamente

proporcional à redução prevista de danos ao meio ambiente e de poluição; e es-

teja disponível para todos os empreendimentos que necessitem adotar novos

equipamentos e/ou métodos de produção.

8. O conceito de multifuncionalidade diz respeito ao conjunto de funções não

econômicas da agricultura, como, por exemplo, a preservação de comunidades

rurais como valor cultural, a contenção da migração campo-cidade, a preserva-

ção da paisagem rural como valor estético etc.

9. Somente no ano de 2005 chegaram ao Brasil 10,5 milhões de pneus refor-

mados provenientes da União Europeia. Em 2006, esse montante chegou à cifra

de 7,6 milhões de unidades (BRASIL..., 2007).

10. O painel da OMC reconheceu que há uma discriminação justificada no

caso do Mercosul. Apesar de vetar a importação de pneus reformados proveni-

entes da União Europeia, o painel permitiu ao Brasil continuar recebendo esse

mesmo material de seus parceiros do Mercosul por entender que essa exceção

não constitui uma discriminação arbitrária ou injustificável contra produtos

provenientes de outros países, tampouco uma restrição disfarçada ao comércio

internacional.

Fábio Albergaria de Queiroz

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Resumo

Meio Ambiente e Comércio

Internacional: Relação Sustentável

ou Opostos Inconciliáveis?

Argumentos Ambientalistas e

pró-Comércio do Debate

As complexas relações entre o processo de liberalização comercial e o meio

ambiente destacam-se, hoje, como um dos assuntos prioritários na agenda

internacional. Muito se tem discutido a esse respeito, porém poucas são as

respostas concludentes acerca dos impactos ambientais gerados pela cres-

cente prática do livre-comércio. Na busca de maiores esclarecimentos so-

bre o assunto, este artigo procurou identificar a existência de uma relação

direta entre o aumento dos fluxos comerciais decorrente do processo de li-

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beralização econômica e maiores níveis de degradação ambiental. As análi-

ses empreendidas ao longo da pesquisa levaram à conclusão de que os efei-

tos ambientais do livre-comércio são muito ambíguos, não sendo possível

afirmar, como regra geral, haver tal relação. Constatou-se que uma análise

mais precisa sobre o assunto depende do estudo pontual de cada caso.

Palavras-chave: Meio Ambiente – Comércio Internacional – Regula-

mentação Ambiental – Desenvolvimento Sustentável

Abstract

Environment and International

Trade: Sustainable Relationship or

Irreconcilable Opposites?

Environmental and pro-Commerce

Arguments of the Debate

The complex relationship between the process of trade liberalization and

the environment is, nowadays, one of the most important issues found at the

international affairs agenda. Much has been discussed, but few conclusive

answers on the so-called environmental impact by free trade have been

drawn. This paper has beseeched establishing a direct relationship between

the increase of both the commercial activity as a result of economic

liberalization and the environmental degradation levels. This research has

led to the core conclusion that environmental effects of trade liberalization

are ambiguous, having shown the impossibility of asserting, as a general

rule, the existence of a direct relation between free trade and environmental

degradation. We have also concluded that an accurate analysis on the issue

will depend on the individual study of each case due to its complexity and

subjectivity.

Keywords: Environment – Free Trade – Environmental Law –

Sustainable Development

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Antecedentes

Antes de adentrarmos propriamente no tema, é importante fazer-

mos uma advertência. Em ciências sociais, existe uma discussão ex-

tremamente importante sobre a formação dos Estados nacionais e

sua concomitante expansão para o resto do globo, na qual se desta-

cam autores do porte de Charles Tilly (1996), Anthony Giddens

(2001), Nobert Elias (1993) e Benedict Anderson (2008). A literatu-

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1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

* Artigo recebido em junho de 2008 e aprovado para publicação em fevereiro de 2009. Este artigo é

baseado na Dissertação de Mestrado do autor, intitulada Do colapso à reconstrução: Estados fali-

dos, operações de nation-building e o caso do Afeganistão no pós-Guerra Fria. Agradeço os perti-

nentes comentários do parecerista anônimo da Contexto Internacional. Os deméritos, contudo, são

de minha única e exclusiva responsabilidade.

** Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universi-

dade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: [email protected].

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 31, no 2, maio/agosto 2009, p. 285-318.

Nation-building e

Segurança

Internacional: Um

Debate em

Construção*

Aureo de Toledo Gomes**

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ra utiliza o termo nation-building, que em uma tradução livre para

nosso idioma seria algo como “construção de nações”, para uma li-

nha investigativa que privilegia diferentes processos de construção

estatal,1

salientado aspectos como a relação entre Estado e socieda-

de, a importância das guerras para a formação dos países, assim

como a influência do capitalismo na expansão da entidade política

conhecida como Estado pelo mundo. A grafia é a mesma; porém, a

substância da expressão nation-building que procuraremos investi-

gar neste artigo é distinta. Aqui, o foco está estritamente relacionado

com problemas de segurança internacional e como atores externos

podem atuar em países cujas fragilidades estatais2

ocasionam amea-

ças que ultrapassam fronteiras.

Não obstante, para que possamos melhor compreender nation-buil-

ding e diferenciá-la de outras intervenções, é mister que tenhamos

em mente os processos que culminaram no surgimento das chamadas

operações de paz, principalmente aquelas desenvolvidas pela Orga-

nização das Nações Unidas (ONU). Dos flagelos de uma Europa des-

truída pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918), as questões que

assombravam não apenas os pesquisadores, mas também os interes-

sados em política internacional, eram, entre outras, entender as ori-

gens da guerra e evitar a eclosão de um novo certame de grandes pro-

porções.3

A fundação da Liga das Nações e a origem do conceito de

segurança coletiva, a noção de que todos os membros da sociedade

internacional devem se engajar em uma ação conjunta para prevenir e

repelir agressores (BELLAMY et al., 2004), evidenciavam que, em

assuntos de guerra e paz, todos os Estados tinham uma função a

cumprir.

Ainda que o fracasso da Liga das Nações e a concomitante eclosão de

um novo conflito mundial (1939-1945) tenham colocado em xeque a

capacidade de organizar a ação coletiva em âmbito internacional,

uma vez mais a sociedade internacional procurou criar mecanismos

institucionais que dirimissem as possibilidades de guerras. Das cin-

Aureo de Toledo Gomes

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zas de uma Europa novamente destruída, eis que surge a ONU, cuja

missão, formalmente assumida em seu preâmbulo, seria a de preser-

var as gerações vindouras do flagelo da guerra.

Ao entrar em vigor em 24 de outubro de 1945, a Carta das Nações

Unidas salientava que, em assuntos relativos a guerra e paz, os Esta-

dos-membros proporcionariam à emergente instituição três meca-

nismos para a consecução de seus objetivos. Segundo Barnett e Fin-

nemore (2004), o primeiro mecanismo seria a disponibilidade das

forças armadas dos países para a manutenção da paz internacional. O

segundo mecanismo seria a capacidade da ONU em empreender me-

didas militares urgentes, além de instruir os membros a designarem

contingentes aéreos para ações internacionais conjuntas que tives-

sem a capacidade de impor as determinações da instituição. Por fim,

temos a instauração do Military Staff Committe, cuja missão seria as-

sessorar o Conselho de Segurança em assuntos militares, incluindo a

direção estratégica das forças armadas à disposição do Secretariado.

Todavia, ao mesmo tempo em que a ONU era vista por muitos como a

panaceia para todos os males relativos à paz e à segurança internacio-

nal, apresentando grandes avanços institucionais vis-à-vis à Liga das

Nações, herdara de sua antecessora uma característica que iria mar-

car sua história. Conforme Kennedy (2006, p. xiv):4

Como a organização mundial foi criada por

Estados-membros, que se comportam como

acionistas de uma corporação, ela pode funcio-

nar efetivamente somente quando recebe o su-

porte dos governos nacionais, principalmente

das grandes potências. As nações podem igno-

rar o organismo internacional, como fez a

URSS na década de 1950 e os EUA em 2003,

mas isso sempre acarreta um custo. De outro

lado, a organização não pode perseguir seus

objetivos se um dos Grandes Poderes – um dos

cinco países com direito de veto – se opuserem.

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Um Debate em Construção

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Esta tensão entre soberania e internacionalis-

mo é inerente, persistente e inevitável.

A tensão acima descrita seria intensificada pela conformação de uma

nova distribuição de poder no sistema internacional. Ainda que os ca-

pítulos VI e VII da Carta da ONU propusessem quais os meios para a

manutenção da paz e segurança internacional,5

de 1945 a 1990 o veto

foi usado 238 vezes (BELLAMY et al., 2004) pelos membros perma-

nentes do Conselho de Segurança, evidenciando as dificuldades da

organização, resultado da divisão do mundo em esferas de influência

e do antagonismo entre os Estados Unidos da América (EUA) e a

União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Embora os

prognósticos para o funcionamento da ONU não fossem dos melho-

res, três acontecimentos marcantes ocorridos durante a Guerra Fria

dariam ensejo para o desenvolvimento do que se convencionaria cha-

mar como operações de paz.

No início da década de 1950, temos a eclosão da Guerra da Coreia.

Em lados opostos, estão EUA e Inglaterra, apoiando a Coreia do Sul;

enquanto, no extremo oposto, encontramos China e URSS, aliados à

Coreia do Norte.6

Depois de diversas tentativas de derrubar o gover-

no do sul, a Coreia do Norte decidiu atacar Seul, tomando a capital do

país. A ONU condenou a ação e, em 15 de julho de 1950, autorizou

uma intervenção norte-americana na península. Para muitos, a ação

da ONU indicava a capacidade da organização em incitar a ação cole-

tiva entre os Estados-membros e evidenciava um papel relevante para

o organismo nas questões de segurança internacional. Todavia, um

importante fator deve ser acrescentado à equação: após a Revolução

Chinesa de 1949 e o não-reconhecimento da ONU do governo de

Mao Zedong, a URSS decidiu boicotar o Conselho de Segurança, o

que culminou na autorização para a operação na Coreia. Ainda as-

sim, Bellamy et al. (2004) argumentam que esta iniciativa já demons-

trava a capacidade da ONU em organizar as operações de paz.

Aureo de Toledo Gomes

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O segundo momento é a Crise de Suez, em 1956. A nacionalização

do Canal de Suez pelo governo egípcio de Gamal Abdul Nasser re-

sultou na formação de uma aliança entre França, Inglaterra e Israel, a

qual derrotou o Egito, além da ocupação da Península do Sinai por

Israel. Os acontecimentos acima descritos colocaram vários dilemas

para a comunidade internacional. Ambas as superpotências eram

contrárias à invasão: enquanto a URSS enxergava uma tentativa de-

sesperada e anacrônica dos ex-poderes coloniais de manterem algum

status no Terceiro Mundo, os EUA execraram seus três aliados por

terem perpetrado tal ato ilegítimo sem seu conhecimento. Com o

Conselho de Segurança travado, ainda que dessa vez as duas super-

potências estivessem de acordo, as discussões sobre o tema foram

para a Assembleia Geral, e o Secretariado ficou responsável por

achar alguma saída para o entrave. Segundo Barnett e Finnemore

(2004, p. 126):

As conversas prévias à invenção do peacekee-

ping ocorreram entre o secretário-geral Dag

Hammarskjöld e o embaixador canadense Les-

ter Pearson. Hammarskjöld estava propenso à

ideia de um maior papel para a ONU. Foi per-

suadido quando percebeu que a crise proporci-

onava uma oportunidade ímpar para a ONU

mostrar sua relevância aos Estados-membros

em um assunto crítico, e que os países apoia-

vam a ideia. Após consultas com os países en-

volvidos, Hammarskjöld anunciou a criação de

uma força neutra que substituiria a Inglaterra e

a França e se colocaria entre Egito e Israel.

Assim sendo, foram possíveis a aprovação e o envio da United Nati-

ons Emergency Force para a fronteira entre Egito e Israel. Todavia, o

mandato salientava que a missão não deveria se envolver na política

doméstica do Egito, além de não poder recorrer a meios militares, a

não ser em casos de legítima defesa.

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Um Debate em Construção

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Por fim, o último evento marcante foi a operação da ONU no Congo,

em 1960. Em 30 de junho de 1960, após diversas demandas pela in-

dependência, o governo belga aquiesceu e outorgou à sua outrora co-

lônia a condição de Estado soberano. Entretanto, poucos dias antes

da independência, soldados congoleses amotinaram-se, além de ata-

carem civis brancos e pilharem as cidades. Mesmo após a indepen-

dência, o motim continuou, levando o novo país a um estado de caos,

ameaçando o governo eleito comandado pelo primeiro-ministro Pa-

trick Lumumba e pelo presidente Joseph Kasavubu. Em agosto de

1960, as recentes instituições sociais, políticas e econômicas do país

estavam paralisadas. A província de Katanga, rica na extração de pe-

dras preciosas e minerais, sob a liderança de Moise Tshombe, decla-

rou independência do restante do país, ameaçando toda a cadeia de

exportações congolesa. Bruxelas, em um ato unilateral, aprovou o

envio de tropas para sua ex-colônia em uma tentativa de proteger os

belgas que ainda se encontravam no país. De acordo com Dobbins et

al. (2005, p. 7):

Em resposta, o primeiro-ministro Lumumba

requisitou que a ONU enviasse tropas para res-

taurar a paz e expulsar os agressores belgas. O

secretário-geral Hammarskjöld apoiou a requi-

sição e garantiu uma resolução do Conselho de

Segurança autorizando o envio de tropas, a

United Nations Operation in the Congo, para

restaurar a lei e a ordem e promover estabilida-

de econômica e política. A Bélgica concordou

em retirar suas tropas, mas somente se elas fos-

sem substituídas pelas da ONU.

Os acontecimentos supracitados proporcionaram à ONU a oportuni-

dade de realizar o que se convencionou designar como operações de

paz.7

Em seus primórdios, as operações de paz, cerceadas pelas idi-

ossincrasias de um sistema bipolar, tinham como princípios normati-

vos a tríade consentimento, neutralidade e imparcialidade: as tropas

deveriam ser enviadas com o consentimento das partes envolvidas;

Aureo de Toledo Gomes

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deveriam ser imparciais e não beneficiar nenhum dos lados em ques-

tão; e, por fim, deveriam estar levemente armadas e só poderiam utili-

zar meios coercitivos em casos de legítima defesa. Segundo palavras

do então secretário-geral Dag Hammarskjöld (apud BARNETT;

FINNEMORE, 2004, p. 127):

As operações de paz devem ser separadas e dis-

tintas das atividades exercidas pelas autorida-

des nacionais e precisam limitar sua atuação

para os aspectos externos da situação política

em questão ou a ONU corre o risco de se envol-

ver em diferenças com as autoridades locais ou

com o público ou mesmo com conflitos inter-

nos cuja repercussão seria extremamente pre-

judicial para a efetividade da operação.

Entre 1945 e 1987, a ONU conseguiu implementar, segundo o côm-

puto de Bellamy et al. (2004), catorze operações de paz,8

nas quais as

tropas raramente eram enviadas no decorrer do conflito e cujos man-

datos, na sua maioria, autorizavam o monitoramento de um existente

acordo de paz, ajudando os Estados a cumprirem seus compromissos

políticos, ou mesmo a manutenção de um cessar-fogo entre as partes.

Este tipo de atuação e a importância dada à tríade desenvolvida pelo

Secretariado neste período se devem, sobretudo, à conjuntura especí-

fica do período da Guerra Fria, na qual se procurava preservar o sta-

tus quo, e não alterá-lo.

Todavia, a debacle da URSS e a emergência de uma nova distribuição

de poder no sistema internacional iriam influenciar o futuro das ope-

rações de paz. Com o desaparecimento das fronteiras delineadas em

Yalta e Postdam e com a supressão do bloco comunista, a segurança

internacional, outrora extremamente influenciada pela geografia cri-

ada durante os anos de bipolaridade, passou por uma importante

inflexão. Conforme esmiuçado por Villa e Reis (2006, p. 20):

O único consenso que parece existir é que a

questão da segurança internacional dificilmen-

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Um Debate em Construção

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te pode ser apresentada nos mesmos termos da

Guerra Fria, e necessita incorporar novas di-

mensões. Essas dimensões enfatizam duas

componentes: mudanças na natureza das rela-

ções de poder (incorporação de novos atores e

processos capazes de desestabilizar o sistema

internacional por meios outros que não os mei-

os político-militares convencionais) e o impac-

to da distribuição de poder na configuração do

sistema internacional, especialmente na rela-

ção entre balança de poder e segurança interna-

cional.

Juntamente com a redefinição do conceito de segurança internacio-

nal e a emergência dos chamados Novos Temas, nota-se um impor-

tante fenômeno em andamento: um declínio no número de conflitos

interestatais e um considerável aumento nos embates intraestatais.

Esta nova conjuntura foi bastante distinta dos anos de Guerra Fria,

cuja principal característica eram os certames entre Estados sobera-

nos com características similares (exércitos organizados, por exem-

plo). Os conflitos simétricos, conforme terminologia de Miall et al.

(2005), principalmente após o final da Guerra Fria, deram lugar aos

conflitos assimétricos, entre atores com capacidades diferentes, se-

jam eles um Estado e uma facção rebelde, nos quais a população civil

é uma das partes mais afetadas. Tais mudanças, pari passu ao cres-

cente reconhecimento da importância dos direitos humanos na políti-

ca internacional, principalmente após a assinatura da Carta das Na-

ções Unidas (1945) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos

(1948), culminaram em elaborações como a de Michael Walzer

(2003, p. xvi), segundo o qual não é exagero dizer que “o maior peri-

go enfrentado pela maior parte das pessoas no mundo atual provém

de seus próprios Estados; e que o principal dilema da política interna-

cional é saber se as pessoas em perigo devem ser resgatadas por for-

ças militares de fora”. Em favor dos direitos humanos, a sociedade

Aureo de Toledo Gomes

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internacional deve intervir nos conflitos em que abusos generaliza-

dos à vida das pessoas estiverem em andamento.9

Esta nova conjuntura internacional afetou enormemente as opera-

ções de paz. Segundo Bellamy et al. (2004), no período compreendi-

do entre 1988 e 1993, tem-se primeiramente uma transformação

quantitativa, ou seja, a ONU passa a empreender mais operações do

que nos quarenta anos anteriores.10

Em segundo lugar, ocorre uma

transformação qualitativa, visto que a ONU começa a empreender

operações mais complexas do que apenas monitorar cessar-fogos,

agregando a tais empreitadas ajuda humanitária e econômica, entre

outras variáveis. Finalmente, ocorre uma transformação normativa, a

partir do momento em que grande parte dos Estados passa a apoiar a

promoção de normas e valores nas missões, principalmente preceitos

como o da paz democrática, liberalização comercial e o respeito aos

direitos humanos. Ainda segundo Bellamy et al. (2004), estas trans-

formações também foram iniciadas porque (1) o Conselho de Segu-

rança se tornara mais proativo após a dissolução da URSS e (2) mui-

tos Estados ficaram cada vez mais interessados em participar das

missões, porquanto estas proporcionavam visibilidade internacional,

o chamado efeito CNN.

Nation-building: O que É e

para que Serve?

Ainda que a proteção dos direitos humanos e o envio das missões fos-

sem seletivos, dependentes dos interesses geopolíticos das principais

potências11

(ALVES, 2003; KOERNER, 2002), o que procuramos

salientar com a seção anterior foi a ideia de que as operações de paz

adquiriram um caráter mais abrangente – e por que não invasivo –, re-

sultando em operações mais complexas que, se anteriormente objeti-

vavam monitorar um cessar-fogo entre Estados, agora tencionavam

criar a paz dentro de Estados. Desta forma, fica claro que os objetivos

e os tipos das missões se transformaram profundamente, com uma

Nation-building e Segurança Internacional:

Um Debate em Construção

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ampliação das ambições normativas da sociedade internacional, que,

a partir de agora, passa a pregar quais devem ser os melhores regimes

políticos e econômicos para países saídos de conflitos. Conforme o

ex-secretário-geral da ONU Boutros-Boutros Ghali (1992), as ope-

rações poderiam ser agora divididas da seguinte forma:

1. Preventive diplomacy: é a ação levada a cabo para impedir a

erupção de conflitos entre as partes, além de evitar que os mes-

mos se espalhem para os países vizinhos.12

2. Peacemaking: é a tentativa de se resolver um conflito em anda-

mento, trazendo as partes envolvidas para a negociação, fazen-

do uso de meios pacíficos, principalmente os descritos no Ca-

pítulo VI da Carta da ONU.

3. Peacekeeping: é o envio de tropas da ONU com o consenti-

mento das partes envolvidas para se findar um conflito em an-

damento.

4. Post-conflict peacebuilding: é a ação desenvolvida com o ob-

jetivo de identificar e apoiar estruturas que irão fortalecer e so-

lidificar a paz para evitar um retorno aos conflitos. Segundo

Ghali (1992), enquanto preventive diplomacy são as tentativas

de se evitar a eclosão de uma crise, post-conflict peacebuilding

são as ações empreendidas para se evitar recorrências.

Em 2000, no painel cujo objetivo era rever o funcionamento das ope-

rações, Lakhdar Brahimi (2000) propõe a seguinte tipologia:

1. Peacemaking: lida com conflitos em andamento, procurando

criar uma trégua por meio da diplomacia e mediação.

2. Peacekeeping: é a missão tradicional da ONU, envolvendo

meios militares para o monitoramento de cessar-fogos, mas

que no decorrer de sua história incorporou outros elementos,

militares ou não, para criar paz após os conflitos civis.

3. Peacebuilding: são as estratégias implementadas para constru-

ir uma paz que fosse mais do que a mera ausência do conflito

armado. Envolve desde reintegração de ex-combatentes, pas-

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sando pelo treinamento de uma polícia local e chegando até a

construção de estruturas democráticas de governo.

Com todo este arcabouço institucional previamente construído, eis

que surgem as nossas principais questões: o que são as chamadas

operações de nation-building? E para que servem? A combinação

entre Estados falidos e grupos terroristas, cuja associação entre a Al

Qaeda e o governo do Talibã no Afeganistão seria o caso paradigmá-

tico para demonstrar os problemas oriundos do ocaso estatal, levou

muitos analistas e policymakers a afirmarem que a melhor solução

para esta situação seriam as chamadas operações de nation-buil-

ding13

(DOBBINS et al., 2003; FUKUYAMA, 2005; BUSH, 2002).

No entanto, o que seriam estas reconstruções de Estado? Seriam elas

diferentes das operações de post-conflict peacebuilding, propostas

por Ghali em 1992, e das operações de peacebuilding, vaticinadas

por Brahimi em 2000?

Antes de tudo, é importante frisar uma diferença fundamental refe-

rente às justificativas para as missões. Durante a década de 1990, o

discurso que procurava justificar as operações de paz esteve muito

calcado na ideia de intervenções humanitárias, que deveriam ser le-

vadas adiante em países em que estivessem ocorrendo violações em

massa dos direitos humanos. No entanto, no que tange a nation-buil-

ding, principalmente após o 11 de setembro de 2001, a justificativa

esteve mais relacionada aos problemas oriundos do fracasso estatal.

Mutatis mutandi, o ocaso do Estado faria com que alguns países dei-

xassem de controlar os fluxos de refugiados, o tráfico ilícito de dro-

gas e armas, além de poderem se tornar santuários para grupos terro-

ristas, criando uma conjuntura que poderia levá-los a se transforma-

rem em possíveis alvos para reconstrução.

Conquanto o diagnóstico do problema seja similar entre os analistas,

encontrar uma definição unânime e coesa sobre nation-building é

uma tarefa árdua em razão das distintas caracterizações que pululam

Nation-building e Segurança Internacional:

Um Debate em Construção

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nas publicações sobre o tema. Em 2003, no lançamento de Ameri-

ca’s role in nation-building: from Germany to Iraq, compêndio

sobre as operações de nation-building dos EUA, a definição utilizada

por James Dobbins (DOBBINS et al., 2003, p. 1) era a seguinte:

“nation-building é o uso da força armada após o fim de um conflito

para auxiliar uma transição duradoura para a democracia”. Todavia,

na publicação de 2007, intitulada The beginner’s guide to nation-

building, a equipe da Rand Corporation14

apresenta a seguinte defi-

nição: “Nation-building envolve o uso da força armada como parte

de um esforço para promover reformas políticas e econômicas, com o

objetivo de transformar sociedades saídas de conflitos em sociedades

em paz consigo mesmas e com seus vizinhos” (DOBBINS, 2007, p.

xvii).15

O problema acima evidenciado não é exclusividade das publicações

da Rand Corporation. Na coletânea de artigos editada por Francis Fu-

kuyama intitulada Nation-building: beyond Afghanistan and Iraq

(2007a), notamos que os diversos autores envolvidos na discussão

(inclusive o já citado James Dobbins) não comungam de uma única

caracterização do termo. Fukuyama (2007b, p. 4-5) argumenta que:

Nation-building envolve dois diferentes tipos

de atividades, reconstrução e desenvolvimen-

to. Reconstrução refere-se à restauração das

sociedades destruídas pelos conflitos. Desen-

volvimento, por sua vez, refere-se à criação de

novas instituições e a promoção de crescimen-

to econômico sustentável, eventos que trans-

formam a sociedade em algo que até então ela

não tinha sido.

Minxin Pei et al. (2007), assim como Minxin Pei e Sarah Kasper

(2003), argumentam que, para distinguirmos nation-building de in-

tervenções militares, devemos ter em mente três critérios. Primeira-

mente, o objetivo primordial de qualquer operação de nation-buil-

ding é a mudança de regime ou a sustentação do regime que estaria à

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beira do colapso. Em segundo lugar, destaca-se o grande número de

tropas utilizadas nas operações de nation-building, principalmente

naquelas desempenhadas pelos EUA. Por fim, a utilização de com-

ponentes militares e civis na administração política dos países em

questão seria, quiçá, o maior diferencial da nation-building. Logo, a

criação de um regime democrático não é condição sine qua non para

a caracterização de uma operação de nation-building, e a lista de ope-

rações realizadas pelos EUA e apresentadas por Pei et al. (2007) é di-

ferente daquela utilizada pela Rand Corporation, envolvendo inter-

venções desde 1900. Por sua vez, o Banco Mundial utiliza a expres-

são State-building e a caracteriza como sendo a reconstrução de um

governo central capaz de manter (1) um sistema de segurança em

todo o país, (2) uma administração pública efetiva e (3) um orçamen-

to sustentável para os investimentos necessários do país (BANCO

MUNDIAL, 2005).

Além dos supracitados, outra leva de autores procura analisar as cha-

madas operações de nation-building. Amitai Etzioni (2004), ao reali-

zar uma revisão bibliográfica sobre o tema, salienta que a expressão

nation-building geralmente é usada para descrever três tarefas dife-

rentes, porém relacionadas: unificação de grupos étnicos, democrati-

zação e reconstrução econômica. Ainda segundo seu raciocínio

(ETZIONI, 2004, p. 2):

Em sua acepção original, nation-building era

frequentemente identificado com a unificação

de grupos étnicos dentro de um Estado, o que é

mais bem entendido como “construção da co-

munidade”. [...] Nation-building significa tan-

to a formação e o estabelecimento de um novo

Estado enquanto unidade política quanto o pro-

cesso de criação de graus viáveis de unidade,

adaptação, êxito e um senso de identidade naci-

onal entre a população. Outra visão, contudo,

identifica nation-building como melhoras em

governança: criar meios efetivos de governan-

Nation-building e Segurança Internacional:

Um Debate em Construção

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ça, implementar o Estado de direito, combater

a corrupção, instalar a democracia e garantir a

liberdade de expressão. [...] Uma terceira vi-

são, por sua vez, salienta a importância da re-

construção econômica. É sugerido que, quanto

mais economicamente desenvolvido, um Esta-

do pode funcionar melhor.

Essa conexão entre nation-building e reconstrução econômica não é

apontada apenas por Etzioni, visto que o próprio Fukuyama (2007b)

em sua definição já frisara tal fato. Não obstante, segundo análise de

Ekbladh (2007), durante a Guerra Fria, nation-building16

esteve in-

trinsecamente ligado aos métodos e estratégias para se atingir desen-

volvimento econômico e social. Segundo o autor, após a Segunda

Guerra Mundial, estas operações eram vistas como atividades coleti-

vas, ou seja, todos os países deveriam participar, e as noções de de-

senvolvimento e modernização propagadas pelos EUA tinham gran-

de aceitação no globo.17

Assim, a partir das décadas de 1940, 1950 e

1960, impulsionado pela iniciativa norte-americana, Ekbladh (2007)

afirma que ocorreu o surgimento de órgãos distintos cuja missão se-

ria prover desenvolvimento econômico. A criação do Programa de

Assistência Técnica da ONU, que seria o antecessor do Programa das

Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), e mesmo a US

Agency for International Development (USAID) são exemplos desta

conexão. Ademais, o processo de descolonização africana e asiática

culminara no surgimento de novos Estados no sistema internacional,

tornando-os alvos de disputas entre as superpotências, além de

destinatários das políticas de ajuda externa.

Se desenvolvimento econômico era a panaceia para todos os males,

ao final da Guerra Fria modifica-se o foco. Com o crescente aumento

dos conflitos intraestatais durante a década de 1990 e a concomitante

evolução das operações de paz, nation-building, segundo Hippel

(1999), que até então significava a construção de governos estáveis,

que podiam ou não ser democráticos, passou a carregar em seu bojo a

Aureo de Toledo Gomes

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Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

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ideia de construção de Estados democráticos e estáveis. A estratégia

de democratização, no entanto, existia desde a Guerra Fria. Segundo

Hippel (1999, p. 95-96):

Durante a Guerra Fria, democratização signifi-

cava mais um meio para combater o avanço co-

munista do que uma real implementação de re-

formas democráticas. Somente com o final da

Guerra Fria esta exportação democrática ga-

nhou mais vigor, com o objetivo último de ga-

rantir a paz e a segurança internacional. A pro-

moção da democracia é baseada no pressupos-

to de que democracias não vão à guerra umas

com as outras e que o aumento no número de

democracias no mundo, além de encorajar, sig-

nificaria um mundo mais seguro e pacífico.

Hamre e Sullivan (2002), desfavoráveis ao termo nation-building,

utilizam o termo reconstrução pós-conflito (post-conflict recons-

truction), definindo-o como o provimento e o fortalecimento não

apenas do bem-estar econômico e social, dos meios de governança e

do Estado de direito, mas também outros elementos como justiça e

reconciliação, além, é claro, da segurança do país. Por fim, Tschirgi

(2004) afirma que nation-building envolve operações multidimensi-

onais de paz, incluindo tarefas civis, tais como segurança do territó-

rio, construção dos aparatos militares, assim como dos policiais, e

garantia da entrega da ajuda humanitária, além de prover auxílio ad-

ministrativo para a construção dos novos ministérios do Estado, para

a transição democrática e para o crescimento econômico do país.

Das definições acima, ainda que cada uma apresente suas especifici-

dades e problemas, podemos identificar uma linha comum entre as

mesmas. Todas elas salientam a construção de instituições políticas

democráticas, além de frisarem a importância que o desenvolvimen-

to econômico apresenta para a estabilização dos países. De fato, ou-

tros estudos em ciência política já apontavam esta vinculação. Prze-

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Um Debate em Construção

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worski et al. (1997), por exemplo, destacam que, para a implantação

de um regime democrático, é necessário que um país apresente deter-

minado grau de riqueza,18

crescimento com inflação moderada, desi-

gualdade decrescente, um clima internacional favorável e institui-

ções parlamentares. Ainda que mantenha a vinculação entre demo-

cracia e desenvolvimento econômico, o erro crasso das operações de

nation-building é sua demasiada ênfase na promoção democrática,

sem possibilitar os meios necessários para uma mudança efetiva de

regime.

É este um dos pontos em que estas operações se diferenciam das

post-conflict peacebuilding propostas por Boutros-Boutros Ghali e

das missões de peacebuilding delineadas por Lakhdar Brahimi.19

É

fato que tanto Ghali quanto Brahimi sublinharam em seus documen-

tos a importância da democracia nas operações de paz; no entanto,

ambos salientam que as estratégias para uma paz duradoura vão além

da realização de eleições. A reintegração dos ex-combatentes, o for-

talecimento do Estado de direito via, por exemplo, a reestruturação

da polícia local e reformas dos sistemas penal e judiciário, o fortale-

cimento do respeito aos direitos humanos por meio do monitoramen-

to, a educação e a investigação de abusos passados são apenas

algumas das estratégias sugeridas. Conforme palavras de Brahimi

(2000, p. 7):

Eleições livres e transparentes devem ser vistas

como partes de um esforço maior para fortale-

cer as instituições governamentais. As eleições

poderão ser mais bem realizadas em um ambi-

ente em que a população que se recupera do

conflito aceite a urna em detrimento das armas

como um mecanismo apropriado por meio do

qual suas visões sobre o governo possam ser re-

presentadas. As eleições precisam do apoio de

um processo maior de democratização e de

construção de uma sociedade civil que inclua

governança civil efetiva e uma cultura de res-

Aureo de Toledo Gomes

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peito aos direitos humanos, para se evitar que

uma eleição apenas ratifique uma tirania da

maioria ou que o resultado seja derrubado pela

força depois da saída das tropas.

Em outras palavras, realização de eleições não é sinônimo de um

Estado reconstruído. Roland Paris (2004) argumenta que mesmo as

operações de peacebuilding da década de 1990 eram guiadas por

uma estratégia de liberalização. No âmbito político, liberalização

significa democratização, ou seja, a promoção de eleições periódi-

cas, limites constitucionais ao exercício do poder e respeito às liber-

dades básicas. No âmbito econômico, liberalização está relacionada

às reformas pró-mercado, incluindo medidas direcionadas à diminu-

ição da intromissão do Estado na economia, paralelamente ao apoio

ao aumento do papel dos investidores privados. No entanto, segundo

o autor, tal estratégia parece ter impulsionado a tendência para uma

nova leva de violência nos países. Segundo Paris (2004, p. 6):

Transições dos conflitos civis para democraci-

as de mercado são cheias de contratempos: pro-

mover democratização e reformas pró-merca-

do tem o potencial para estimular maiores ní-

veis de competição em um momento em que os

Estados ainda não estão equipados para conter

tais tensões dentro de limites pacíficos. Os pea-

cebuilders da década de 1990 subestimaram os

efeitos desestabilizadores do processo de libe-

ralização nas frágeis circunstâncias de países

saídos de guerras civis.

A crítica de Paris é direcionada para as operações de peacebuilding

em países caracterizados por guerras civis e empreendidas no perío-

do compreendido entre 1989 e 1999.20

Contudo, sua constatação é

extremamente válida para as operações de nation-building, que,

muitas vezes, pressionam para a realização de eleições de forma pre-

matura. Schumpeter (1984) já havia definido democracia como a es-

colha de lideranças pela competição por votos; incutir esta competi-

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ção em um ambiente em que os ressentimentos de guerra ainda não

foram totalmente superados e as práticas democráticas ainda não es-

tão arraigadas é um experimento que, sem os meios necessários para

controlar as tensões, pode redundar em um ressurgimento dos confli-

tos armados. Não estamos querendo questionar a qualidade da demo-

cracia como forma de governo, assim como não o fazem os autores

acima citados; o que questionamos é o timing para a realização dos

pleitos. Em uma resenha publicada em 2003, Dobbins afirmara que o

tempo mínimo para a democratização de um país, entendido como a

construção de todo o arcabouço eleitoral e a realização dos pleitos, é

de sete anos; no mesmo ano, na obra America’s Role in nation-

building, e nas subsequentes, o tempo mínimo diminui para cinco

anos.

Estes apontamentos, de certa forma, já antecipam a resposta para a

segunda pergunta que abre esta seção, ou seja, para que serviriam as

operações de nation-building. Tendo-se em mente as reformulações

nos conceitos de segurança internacional e de paz oriundos das novas

realidades do sistema internacional, nation-building seria uma das

ferramentas utilizadas para se alcançar a paz em países destruídos

por guerras civis e/ou Estados Falidos. Ademais, no contexto pós-11

de setembro de 2001, nation-building, mudança de regime (regime

change) e estabilização e reconstrução foram utilizados como a me-

lhor maneira para se lidar com as novas ameaças à paz e à segurança,

e a maior parte dos arautos destas empreitadas acreditam que mudan-

ças tão substanciais como estas podem ser lideradas por agentes

externos.

Neste ponto, nation-building distancia-se dos diversos tipos de ope-

rações de paz formulados tanto por Ghali quanto por Brahimi, pois,

além de destacarem a importância da assistência de outros países,

ambos frisam que a paz e a segurança não podem ser impostas de

fora; devem ser criadas e sustentadas internamente, por meio de es-

tratégias flexíveis e pacientes em consonância com as realidades do-

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mésticas. Conforme muito bem apontado por Tschirgi (2004, p.

17-18):

A agenda de estabilização pós-11 de setembro

é baseada nos mesmos termos da agenda de

peacebuilding da década de 1990, com um en-

foque holístico, de abordagens integradas para

evitar o fracasso e o colapso estatal. Todavia, os

propagadores desta agenda de estabilização

são os interesses de segurança nacional dos

atores externos, regionais ou internacionais,

dominantes. As intervenções de peacebuilding

da década de 1990, que foram motivadas por

impulsos humanitários, parecem ter preparado

o terreno para intervenções externas em Esta-

dos soberanos, ainda que as motivações fossem

distintas das de hoje.

Nas caracterizações propostas principalmente pelos estudos da Rand

Corporation, a transição para a democracia, representada pela reali-

zação de eleições, seria o zênite das missões. No entanto, surge aqui

mais uma incógnita que merece uma melhor problematização: quais

os métodos utilizados para a realização das operações? O que é prio-

rizado na execução de uma missão? As características internas e as

demandas do país-alvo da operação são levadas em consideração no

processo de nation-building? Paris (2004) argumenta que as opera-

ções de peacebuilding são guiadas por uma estratégia de liberaliza-

ção que pouco leva em consideração as singularidades dos Esta-

dos-alvo. Acreditamos que as operações de nation-building também

possuem este traço. Todavia, quais são os meios utilizados para se

alcançar esta liberalização?

Fukuyama (2007c) argumenta que as atuais operações de nation-

building poderiam ser divididas em quatro outros tipos de operações:

peacekeeping; peace enforcement;21

post-conflict reconstruction; e

desenvolvimento político-econômico de longo prazo. Se a definição

do autor salienta a importância da reconstrução e desenvolvimento,

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os principais esforços deveriam ser direcionados para três grandes

áreas. Garantir a segurança seria condição sine qua non para uma

bem-sucedida operação de nation-building. Dessa forma, treinar

uma nascente polícia civil, desarmar, desmobilizar e reintegrar os

ex-combatentes e acabar com possíveis resquícios de milícias con-

trárias à operação seriam os passos primordiais. Restaurar a autorida-

de política seria a segunda grande tarefa a ser realizada, e aqui preva-

lece a construção de instituições políticas democráticas. Segundo

Fukuyama (2007c, p. 237):

No mundo contemporâneo, a legitimidade vem

primariamente, ainda que não exclusivamente,

de eleições democráticas. A realização de elei-

ções, portanto, é crítica para estabelecer uma

nova e legítima ordem, mas as questões de

quando, como e em que medida se deve realizar

eleições dependem das circunstâncias específi-

cas de cada situação pós-conflito.

Além disso, o desenvolvimento econômico, pelo menos em um pri-

meiro momento, continuaria a depender da assistência externa. A

execução de projetos humanitários, assim como a reconstrução da in-

fraestrutura do país, inclui uma quantidade variável de participantes,

desde agências multilaterais (como a ONU, o Banco Mundial e o

Fundo Monetário Internacional (FMI)), passando por agências go-

vernamentais (a USAID, por exemplo), chegando até as organiza-

ções não governamentais que, muitas vezes, não se comunicam entre

si, ocasionando grandes problemas. Um dos principais deles, segun-

do Fukuyama (2007c), advém do fato de que os doadores externos,

ao entrarem com maiores capacidades financeiras, atraem os melho-

res recursos humanos para a execução de seus projetos, deixando

poucos trabalhadores qualificados para trabalharem no governo.

Os objetivos propostos por Fukuyama de certa forma contemplam as

tarefas que Dobbins et al. (2007, p. xxiii) apontam como inerentes às

operações de nation-building. Segundo os autores, “o objetivo pri-

Aureo de Toledo Gomes

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mário de qualquer nation-building é transformar sociedades violen-

tas em pacíficas, não transformar pobres em prósperas ou autoritárias

em democráticas”.22

Para tanto, os autores organizaram uma hierar-

quia de tarefas abaixo listadas:

1. Segurança: peacekeeping, implementação do Estado de direi-

to e reforma do setor de segurança.

2. Ajuda humanitária: retorno dos refugiados e prevenção de epi-

demias, fome generalizada e falta de abrigos.

3. Governança: retomada dos serviços públicos e da administra-

ção pública.

4. Estabilização econômica: implementação de uma nova moeda

e organização de um marco regulatório para que os comércios

local e internacional possam ser restaurados.

5. Democratização: criação de partidos políticos, imprensa livre,

sociedade civil e realização de eleições.

6. Desenvolvimento: fomentar o crescimento econômico, redu-

zir a pobreza e restaurar a infraestrutura do país.23

Mas e os recursos financeiros e militares para a consecução de tama-

nha gama de tarefas? Segundo Dobbins et al. (2007), as despesas das

operações são divididas – ou deveriam ser – entre os países que con-

tribuem com tropas, os doadores internacionais e a comunidade in-

ternacional como um todo de acordo com as várias formas de se divi-

dir os ônus. Os custos das operações lideradas pela ONU são dividi-

dos entre os países-membros, ainda que o Estado que comande a mis-

são arque com os principais custos. Para medida de comparação,

Dobbins et al. (2005, p. xxxvi) afirmam que:

O custo de uma operação de nation-building da

ONU tende a parecer bem modesto vis-à-vis às

operações dos EUA, que são mais complexas e

difíceis. No momento, os EUA estão gastando

algo em torno de 4,5 bilhões de dólares por mês

para financiar sua operação no Iraque. Este

mesmo montante é o que é utilizado pela ONU

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para manter todas as suas dezessete operações

de peacekeeping durante um ano.

Ademais, Dobbins et al. (2005) argumentam que, segundo um estudo

do Banco Mundial encabeçado pelos economistas Paul Collier e

Anke Hoeffler (2004), as intervenções militares no pós-conflito seri-

am o meio com a melhor relação custo-efetividade para a estabiliza-

ção dos países.24

Embora os autores da pesquisa cheguem realmente

a esta conclusão, a forma como a descobrem é complexa e não é com-

pletamente apresentada no estudo da Rand Corporation. Como a in-

tervenção militar se torna o meio com melhor relação custo-efetivi-

dade é o que fica de fora dos estudos de Dobbins et al. (2005, 2007) e

precisa ser destacado. Consoante o raciocínio de Collier e Hoeffler

(2004), em uma situação pós-conflito, o risco de um retorno ao con-

flito armado é tipicamente alto, ainda que gradualmente decline caso

a paz consiga perdurar. Ajudas econômicas tendem a diminuir o ris-

co, mas algumas delas demoram certo tempo para fazer efeito. Dessa

forma, segundo Collier e Hoeffler (2004, p. 20):

A maioria dos governos em situações de pós-

conflito parece concluir que um aumento nos

gastos militares é um pré-requisito para a paz.

Durante as guerras civis, o montante dos gastos

militares é o dobro daqueles realizados durante

os períodos de paz e, durante a primeira década

após o conflito, declina modestamente. Os gas-

tos militares pós-conflito são muito próximos

daqueles feitos durante os anos de guerra civil.

Em razão dos altos riscos de um novo conflito,

parece lógico que seja necessário um aumento

dos gastos militares para se manter a paz.

Logo, gastos militares altos podem ser lidos pelos contendores do

governo central como uma denúncia do acordo de paz. Dessa forma,

sumarizando o argumento dos autores, as intervenções militares teri-

am como efeito precípuo o declínio dos gastos militares por parte do

governo do país, evitando este dilema de segurança interno.

Aureo de Toledo Gomes

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Por fim, em se tratando de nation-building, como mensurar sucesso e

fracasso? Pei e Kasper (2003) argumentam que o sucesso das opera-

ções depende de três variáveis. Primeiramente, devemos levar em

consideração as características internas do país, uma vez que nati-

on-building é uma engenharia política em grande escala. Assim sen-

do, o quão homogêneo um país é e se será utilizada a burocracia anti-

ga ou novos órgãos governamentais serão construídos são fatores im-

portantes na análise. Em segundo lugar, os autores argumentam que

um alinhamento entre os interesses dos países interventores com os

da elite do país-alvo possibilita uma maior chance de sucesso, uma

vez que o comprometimento de ambas as partes será maior. Por fim,

os recursos econômicos devem ser suficientes para levar adiante toda

a empreitada. Por outro viés, Dobbins et al. (2003, 2005) argumen-

tam que nation-building pode ser entendido em termos de inputs –

grosso modo, força militar, recursos financeiros e tempo para a exe-

cução da tarefa – e outputs – entre os quais se destacam números de

baixas, mudanças nos números de refugiados e pessoas dispersas

internamente, crescimento da renda per capita e democratização.

Assim sendo:

Sucesso em nation-building depende da sabe-

doria com que tais recursos serão usados e da

suscetibilidade da sociedade em questão em

apoiar as mudanças em andamento. Todavia,

sucesso é também em alguma medida depen-

dente da quantidade da presença militar e poli-

cial internacional e da assistência econômica,

assim como do tempo em que tais recursos são

aplicados (DOBBINS et al., 2005, p. xxi).25

Considerações Finais

No decorrer das páginas anteriores, procuramos mostrar o que são as

operações de nation-building. Para tanto, optamos por um viés com-

parativo, procurando colocá-las lado a lado com as operações de paz,

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destacando os diferentes tipos de missões existentes, suas singulari-

dades e seus objetivos. Notamos, portanto, que os principais analistas

justificam nation-building com base em um diagnóstico similar, qual

seja, o fato de que os problemas oriundos do ocaso estatal geram efei-

tos nefastos para a sociedade internacional, cujo melhor exemplo foi

o ataque aos EUA em 11 de setembro de 2001. Esta justificativa se

distancia daquela utilizada para as operações de paz tradicionais ori-

ginadas durante a Guerra Fria e aquelas oriundas da década de 1990:

enquanto as primeiras estavam mais preocupadas em evitar a eclosão

de uma guerra de grandes proporções, as últimas agregaram a este

objetivo o imperativo de se evitar violações em massa de direitos hu-

manos e de se intervir em conflitos domésticos quando estes atingis-

sem grandes proporções. São diferenças originadas por câmbios sis-

têmicos e por uma valorização de questões normativas, mas que

ajudam a apresentar os traços particulares das operações de nation-

building.

Se, por um lado, é possível encontrar diagnósticos similares para o

problema, por outro, tem-se uma definição unânime sobre como na-

tion-building não é algo fácil de ser encontrado. Os diversos autores

abordados neste artigo apresentam visões distintas de tarefas a serem

aprendidas e mesmo de casos que podem ser considerados genuina-

mente operações de nation-building. A principal consequência é

uma gama variada de metas a serem cumpridas e ênfases variadas so-

bre determinados aspectos das missões, levando alguns a destacar

mais a importância do desenvolvimento econômico, enquanto outros

preferem salientar a importância de eleições diretas para os princi-

pais cargos dos países sobre reconstrução. É um debate importante,

que deve estar sempre sobre escrutínio, uma vez que, na atual con-

juntura, é difícil pensar em grandes sucessos. Se atentarmos para as

atuais operações no Iraque e no Afeganistão, notaremos que ambas

ainda pecam quando os quesitos são estabilidade e desenvolvimento

econômico, ainda que ambos os países já tenham sufragado novas

Aureo de Toledo Gomes

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lideranças. Nestes dois países, ainda há muito a ser feito, e a ajuda

internacional é imprescindível.

Outro ponto a ser salientado é uma possível relação entre as opera-

ções de paz e nation-building com a formação dos Estados. Confor-

me destacado no início deste artigo, uma importante vertente dentro

da ciência política procura investigar o processo de formação estatal

e quais variáveis culminaram no surgimento desta forma de organi-

zação política. Não é o foco da recente discussão sobre nation-buil-

ding averiguar como os Estados nos países em reconstrução se erigi-

ram ou mesmo compará-los com a experiência europeia.26

É uma li-

teratura mais pragmática e menos analítica, que pretende encontrar

soluções para os problemas oriundos de países que sofrem com os

efeitos do fracasso estatal. Os trabalhos desenvolvidos pela Rand

Corporation encontram-se nesta linha, procurando arrolar algo como

lições aprendidas nos casos de nation-building realizados pela ONU

e pelos EUA. Um dos efeitos, contudo, é que as intervenções, realiza-

das em nome da exportação democrática e do desenvolvimento de

uma economia de mercado, muitas vezes deixam de lado a dinâmica

interna dos países. Mais uma vez, o caso do Afeganistão é paradig-

mático: na reconstrução liderada pelos EUA, os principais postos do

governo, além dos governos das províncias, foram inicialmente ocu-

pados pelos Tajiks e Uzbeks, principais grupos étnicos de oposição

aos Pashtun, etnia majoritária do país e principal fonte dos recursos

humanos do Talibã. Segundo salientado por Starr (2007), todos os

ministros, governadores e membros do staff administrativo eram Ta-

jiks oriundos do Vale do Panjshir, reduto da Aliança do Norte. Dessa

forma, a aceitação do novo governo foi uma das tarefas mais difíceis

da operação, porquanto boa parte da população se encontrava sub-re-

presentada na nova divisão dos poderes.

Assim sendo, por ser um tema bastante controverso, acreditamos que

nation-building deve continuar sob escrutínio não apenas da acade-

mia, como também de toda a comunidade internacional. Pois, nos

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Um Debate em Construção

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termos atuais e tendo-se em mente o desenrolar das operações no

Afeganistão e no Iraque, este tipo de intervenção está longe de se

apresentar como a ferramenta ideal para a estabilização de Estados.

Notas

1. Um artigo que, de certa forma, sintetiza os diferentes processos de constru-

ção estatal é o de Smith (1992), publicado no Brasil com o título de “Criação do

Estado e construção da nação”, e que em inglês se intitula “State-making and

nation-building”.

2. Para uma boa revisão bibliográfica sobre Estados Falidos, sugere-se Mon-

teiro (2006).

3. A ânsia por respostas a estas questões é anterior aos resultados da Primeira

Guerra Mundial, mas certamente ganhou grande relevância após o conflito.

Entre os diversos autores que buscaram explicações, podemos destacar Aron

(2002), Waltz (2004) e Bobbio (2003).

4. Esta e as demais citações de originais em língua estrangeira foram livre-

mente traduzidas para este artigo.

5. O capítulo VI, em seu artigo 33 (1), afirma que os meios pacíficos para a re-

solução de conflitos incluiriam negociação, mediação, conciliação, arbitragem,

resoluções jurídicas, entre outros. O capítulo VII, por sua vez, trata dos meios

coercitivos para a manutenção da paz e segurança. Seus artigos 41 e 42 provêm

sobre os meios militares e não militares (sanções econômicas, por exemplo) à

escolha do Conselho de Segurança.

6. A Coreia é dividida pelo Paralelo 38, linha imaginária que se encontra a 38o

graus da linha do Equador. Em 1948, o paralelo foi formalmente estabelecido

como fronteira entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte. No entanto, a divisão

entre as Coreias é datada do final da Segunda Guerra Mundial, resultante de um

acordo entre Washington e Moscou.

7. Como mostraremos mais adiante, as operações de paz da ONU apresentam

subdivisões importantes. Assim sendo, doravante optamos por deixar as grafias

no original em inglês, uma vez que ainda não temos correlatos consagrados no

português.

Aureo de Toledo Gomes

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8. As missões do período foram as seguintes: (1) UN Special Commission on

the Balkans (1947-51), para investigar interferências externas na guerra civil

grega; (2) UN Truce Supervision Organisation (1948-hoje), missão para moni-

torar os termos do armistício no Oriente Médio; (3) UN Military Observer

Group in India and Pakistan (1949-hoje), missão enviada para monitorar o ces-

sar-fogo entre Índia e Paquistão; (4) UN Force in Korea (1950-53), enviada para

findar o conflito coreano; (5) UN Emergency Force I (1956-57), para solucionar

a crise de Suez; (6) UN Observation Group in Lebanon (1958), para monitorar o

movimento de armas e tropas no Líbano; (7) UN Operation in the Congo

(1960-64), cuja missão era restaurar a ordem no país; (8) UN Temporary Execu-

tive Authority (1962-63), objetivando administrar a Nova Guiné antes da trans-

ferência de soberania para a Indonésia; (9) UN Yemen Observation Mission

(1963-64), para monitorar o movimento de tropas da Arábia Saudita para o Ye-

men; (10) UN Force in Cyprus (1964-hoje), manutenção da ordem antes da in-

vasão turca de 1974 e patrulhamento da fronteira após tal fato; (11) UN

India-Pakistan Observer Mission (1965-66), objetivando monitorar o ces-

sar-fogo entre as partes; (12) UN Emergency Force II (1974-79), atuando como

tampão entre Israel e Egito no Sinai; (13) UN Disengagement Observer Force

(1974-hoje), monitorando a separação das forças israelenses e sírias nas Coli-

nas de Gola; e (14) UN Interim Force in Lebanon (1978-hoje), atuando como

tampão entre Israel e Líbano.

9. Para maiores detalhes sobre o debate envolvendo o papel dos direitos hu-

manos nas relações internacionais, ver Reis (2006). Sobre intervenções huma-

nitárias, ver Walzer (2003) e Holzgrefe e Keohane (2003). E para uma revisão

bibliográfica sobre o tema, ver Marques (2007).

10. Durante estes seis anos, foram criadas vinte novas operações de paz, sem

contar as que ainda estavam em andamento.

11. Bellamy et al. (2004) argumentam que, após o ocaso na Somália, quando

dezoito soldados norte-americanos foram mortos, o apoio das potências para as

missões caiu bastante, culminando na inação em Ruanda em 1994. Somente

mais ao final da década temos um novo suporte para as operações de paz, desta-

cando-se as missões em Kosovo (1998) e no Timor Leste (1999).

12. Aqui, as ações são empreendidas antes de o conflito surgir e se caracteri-

zam, na maioria das vezes, em tentativas de se trazer os contendores para a mesa

de negociações.

13. Antes de avançarmos, cabe fazer uma distinção importante, muito bem

apontada por Fukuyama (2007b). Muitas vezes, os termos nation-building e

State-building são usados como se fossem sinônimos. Não obstante, nation-

building, conforme sua utilização na Europa, estaria mais relacionado com a

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ideia de construção da nação, envolvendo a criação de símbolos e valores. State-

building, por sua vez, seria a construção das instituições políticas ou mesmo

aquelas designadas para promover desenvolvimento econômico. Os trabalhos

desenvolvidos pela Rand Corporation (DOBBINS et al., 2003; DOBBINS et

al., 2005; DOBBINS et al., 2007), no entanto, utilizam nation-building como se

tivesse a mesma significação que State-building e, em virtude da popularidade

alcançada pelos estudos (Fukuyama, em 2005, publicou livro intitulado Cons-

trução de Estados: governo e organização mundial no século XXI e, na pu-

blicação de 2007, utiliza a expressão nation-building), o termo ficou consagra-

do. Doravante, quando nos referirmos a nation-building, estaremos utilizando a

ideia desenvolvida pela Rand Corporation.

14. A Rand Corporation é um think tank criado em 1946 cujo principal cliente

é a Força Aérea dos EUA. Ayerbe (2006) afirma que, pelo seu Conselho Diretor,

passaram importantes funcionários da atual administração republicana, em es-

pecial Condoleezza Rice, atual secretária de Estado, e Donald Rumsfeld, ex-se-

cretário de Defesa. Para mais detalhes sobre o papel dos think tanks na política

externa dos EUA, ver Teixeira (2007).

15. O porquê da mudança na definição nem James Dobbins nem algum de

seus colaboradores nos explica. Todavia, podemos tentar levantar algumas hi-

póteses. Nos estudos elaborados até 2003, uma das justificativas para as opera-

ções de nation-building era a de que os EUA já haviam realizado tal empreitada,

exemplificados pelos casos da Alemanha e do Japão no pós-Segunda Guerra

Mundial. O sucesso em reconstruir estes países demonstrava, segundo Dobbins

(2003), que a democracia era passível de ser implantada alhures por potências

externas, que sociedades podiam ser encorajadas a se transformarem e que

grandes transformações podiam durar. Contudo, de 2003 até 2007, os reveses

no Iraque e no Afeganistão deixaram claro que a transferência democrática não

era tarefa tão fácil, além de ser extremamente questionável, o que pode ter influ-

enciado na definição utilizada pelos autores.

16. Durante a Guerra Fria, a acepção de nation-building esteve intimamente

relacionada ao processo de descolonização, culminando em um conceito relaci-

onado com a construção de uma nação.

17. Neste período, ganhou destaque a chamada Teoria da Modernização. Em

linhas gerais, esta corrente procurava salientar a relação causal existente entre

desenvolvimento econômico e o surgimento de regimes democráticos. Mutatis

mutandis, o estágio final da modernização seria o advento da democracia e, as-

sim sendo, seria possível e desejável que os países subdesenvolvidos seguissem

o exemplo dos países desenvolvidos.

Aureo de Toledo Gomes

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18. Os autores afirmam que “uma democracia deve durar em média 8,5 anos

num país cuja renda per capita esteja abaixo dos US$ 1.000 por ano, 16 anos

num país em que a renda per capita esteja entre US$ 1.000 e US$ 2.000, 33 anos

com renda estando entre US$ 2.000 e US$ 4.000, e 100 anos entre US$ 4.000 e

US$ 6.000” (PRZEWORSKI et al., 1997, p. 116).

19. Conforme argumentam Bellamy et al. (2004), e evidenciando a falta de

consenso sobre o tema, State-building, entendido aqui como a criação das estru-

turas governamentais, seria uma das quatro tarefas incluídas sob o conceito de

peacebuilding. As demais seriam o estabelecimento do Estado de direito, a de-

mocratização e a reconstrução econômica.

20. As operações analisadas por Paris (2004) são: Namíbia (1989-1990), Ni-

carágua (1989-1992), Angola (1991-1997), Camboja (1991-1993), El Salvador

(1991-1995), Moçambique (1992-1994), Libéria (1993-1997), Ruanda

(1993-1996), Bósnia (1995-hoje), Croácia (1995-1998) e Guatemala (1997).

21. A definição de Fukuyama (2007c) para peacekeeping e peace enforce-

ment é similar às apresentadas até o momento neste trabalho. Para ilustrar a di-

ferença, o autor afirma que, enquanto os peacekeepers podem se apresentar

como neutros, os peace enforcers não podem, visto que devem defender um dos

lados. É uma definição controversa, pois o autor deixa de lado a questão do grau

de violência utilizado em cada tipo de intervenção, o que é de suma importân-

cia, presente desde a primeira diferenciação proposta por Ghali (1992).

22. Há que se destacar que, nesta publicação, a ênfase na democratização já

não é tão grande quanto nas publicações anteriores.

23. Hamre e Sullivan (2002) também apresentam pilares semelhantes para

uma reconstrução de Estado. Segundo os autores, os quatro pilares das opera-

ções são: provimento de segurança; justiça e reconciliação (reforma do setor pe-

nal e criminal, polícia civil, entre outros); bem-estar econômico e social (restau-

ração de políticas públicas, tais como saúde e educação); e, por fim, governança

e participação (criação de instituições políticas representativas).

24. Além da intervenção militar, Collier e Hoeffler (2004) analisam também a

ajuda externa anterior ao conflito, a transparência no gerenciamento da renda

oriunda dos recursos naturais, o rastreamento dos recursos naturais e a ajuda ex-

terna pós-conflito como formas de se prevenir a erupção de novos embates.

25. Ao que tudo indica, os estudos da Rand Corporation passaram por um pro-

cesso de reavaliação. No estudo prévio, sobre as operações dos EUA

(DOBBINS et al., 2003), o sucesso em uma missão era definido como a habili-

dade para promover uma transferência duradoura de instituições democráticas.

Com definição deveras controversa, é bastante provável que, para o volume se-

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guinte, sobre as operações da ONU, os autores tomaram mais cuidado para

definir sucesso e fracasso.

26. Gomes (2008) tenta realizar esta comparação, ao contrapor a experiência

afegã com a formação dos Estados na Europa.

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Resumo

Nation-building e Segurança

Internacional: Um Debate em

Construção

Este artigo almeja analisar as operações de nation-building, que, desde os

atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, são consideradas uma das

maneiras para se lidar com as novas ameaças de segurança internacional,

principalmente os ditos Estados Falidos. Assim sendo, revisaremos a bibli-

ografia sobre o tema, procurando identificar as origens destas operações,

assim como as definições utilizadas pelos principais autores e os problemas

que elas possam apresentar.

Palavras-chave: Nation-building – Operações de Paz – Segurança Inter-

nacional – Estados Falidos – Conflito

Abstract

Nation-building and International

Security: A Debate under

Construction

This article aims to analyze nation-building operations, which have been

considered, since September 11th, 2001 terrorist attacks, one of the ways to

cope with the new threats to international security, mainly the so-called

Failed States. Therefore, we will review the bibliography published, trying

to identity not only the origins of such operations but also the definitions

used by the main authors and the problems that they might present.

Keywords: Nation-building – Peace Operations – International Security

– Failed States – Conflict

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Introdução

Este trabalho discutirá as possibilidades da realização e da legitima-

ção de intervenções humanitárias a partir da lógica da Escola Ingle-

sa, evidenciando a necessidade de estabelecer um diálogo com os

Estudos da Paz e os teóricos que trabalham diretamente com inter-

venções humanitárias para a superação das limitações daquela abor-

dagem. A Escola Inglesa tem foco voltado para a controvérsia sobre

a natureza solidarista ou pluralista da sociedade internacional e, de-

corrente disso, da tensão entre ordem e justiça. Cada uma dessas po-

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1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

* Artigo recebido em novembro de 2008 e aprovado para publicação em março de 2009.

** Doutorando em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

(PUC-Rio) e professor de Relações Internacionais da mesma universidade. E-mail: marcelovalenca@

me.com.

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 31, no 2, maio/agosto 2009, p. 319-351.

Política, Emancipação

e Humanitarismo:

Uma Leitura Crítica

da Escola Inglesa

sobre a Questão da

Intervenção

Humanitária*

Marcelo Mello Valença**

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sições fornece subsídios para alimentar ou esvaziar a discussão so-

bre intervenção humanitária com base na defesa da soberania ou da

preservação dos direitos humanos dentro dos Estados. No entanto,

seja qual for a posição assumida, o tratamento dado à sociedade

internacional é contingente e não problematizado pela Escola Ingle-

sa.

Com base nisso, e apesar da preocupação recente com o tema das in-

tervenções humanitárias (WHEELER, 2000; JACKSON, 2000;

WELSH, 2004; WEISS, 2007), as possibilidades para a sua legitima-

ção são por demais restritas perante as preocupações ontológicas da

teoria, como a existência de uma sociedade internacional estadocên-

trica, o pluralismo metodológico e a preservação de instituições in-

ternacionais como a soberania e o direito internacional. Tais elemen-

tos constrangem o debate sobre intervenção humanitária ao impossi-

bilitar o consenso sobre a existência de valores compartilhados pela

sociedade internacional e as formas como aconteceriam a formação e

estabilização dessa sociedade, seja pela preservação da ordem, seja

da justiça.

Como forma de superar estas limitações e complementar o debate

teórico sobre intervenções humanitárias, trazemos os argumentos

defendidos por John Williams (2006) e Alex Bellamy (2003, 2004),

bem como o arcabouço teórico proporcionado pelos Estudos da Paz.

Williams vai fornecer o fundamento teórico crítico para a compreen-

são das fronteiras – elemento tomado como ontologicamente ligado

ao Estado – como um fenômeno concebido a partir de práticas sociais

que atribuem caráter ético a elas. Buscaremos evidenciá-las como

zonas políticas de troca, onde a diferença é preservada e cuidada de

modo a garantir a ordem internacional. Com Bellamy, ampliaremos o

conceito de intervenção, permitindo entendê-la de diferentes manei-

ras e não apenas da forma concebida pela Escola Inglesa. Os Estudos

da Paz permitirão o elo com a discussão promovida pelos teóricos

que trabalham especificamente com a questão humanitária, mostran-

Marcelo Mello Valença

320 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 32, no 2, maio/agosto 2009

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do os objetivos que seriam atingidos ao se ampliar o conceito. Estas

abordagens, a nosso ver complementares, permitirão compreender

as emergências complexas1

sob a ótica do humanitarismo como um

valor que ligaria as comunidades políticas com base no reconheci-

mento do Outro como humano e, portanto, digno de ser protegido.

Este conceito não é problematizado pela Escola Inglesa, mas central

na questão das intervenções humanitárias.

As limitações enfrentadas pela Escola Inglesa no tema das interven-

ções decorrem principalmente de dois aspectos. O primeiro seria os

seus próprios pressupostos. Ao se pensar as relações internacionais

como fundadas em Estados soberanos, as intervenções assumiriam o

formato de ações coercitivas empreendidas por agentes não envolvi-

dos com as causas que motivaram a intervenção para restaurar a or-

dem dentro de um Estado, evitando a instabilidade da ordem interna-

cional. O dilema em intervir está na legitimação da intervenção, pois

a soberania assume papel central, uma consequência ontológica do

debate entre pluralistas e solidaristas, que ignoram os propósitos que

cercam as intervenções (BELLAMY, 2003, p. 330-331) e se concen-

tram apenas no papel da soberania na manutenção da ordem e no res-

peito à justiça em detrimento de programas de desenvolvimento em

longo prazo (BELLAMY; WILLIAMS, 2004, p. 7).2

A conceituação

de emergência complexa seria decorrente do debate entre pluralistas

e solidaristas e suas posições sobre o compartilhamento de valores no

plano internacional.

A segunda limitação decorreria da proximidade da teoria proposta

por esta corrente ao processo decisório político. A Escola Inglesa

tem grande participação na delimitação das agendas políticas inter-

nacionais em virtude de seu próprio escopo, que permite análises his-

tóricas, sociológicas e normativas (BELLAMY, 2005a, p. 7-8). Ade-

mais, o conceito de sociedade internacional, ainda que não haja con-

senso sobre sua origem, aproxima a Escola Inglesa dos processos de-

cisórios políticos ao proclamar laços de cooperação e respeito entre

Política, Emancipação e Humanitarismo: Uma

Leitura Crítica da Escola Inglesa...

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os Estados (DUNNE, 2005). Essa afinidade contribui para a indefini-

ção dos formatos de resposta às emergências complexas, bem como

do conceito de humanitarismo, por colocá-los na esfera do interesse

dos Estados, evitando que um padrão coerente de atuação seja

estabelecido.

O debate entre solidaristas e pluralistas também afeta o debate sobre

intervenção humanitária, moldando a sua teoria e prática. A contro-

vérsia entre estes dois grupos se baseia, essencialmente, em três

questões que guiarão este trabalho: (i) até que ponto pode-se conside-

rar a existência da condição de emergência complexa; (ii) havendo

esta emergência complexa, qual seria o limite para intervir; e

(iii) como os Estados deveriam se comportar durante a intervenção

(BELLAMY, 2003, p. 325).

John Williams (2006) aparece como contraponto à Escola Inglesa

porque sua argumentação busca um posicionamento verdadeiramen-

te pluralista,3

mas sem compreender como dada a soberania, promo-

vendo a problematização do papel da fronteira na política internacio-

nal para além da mera materialidade, permitindo observar a dinâmica

política. As fronteiras e a soberania são consideradas por ele como

práticas sociais que permitem entender a dinâmica política interna-

cional, fato ignorado pela Escola Inglesa.

Ademais, resgatando as ideias de Hannah Arendt sobre diversidade e

tolerância, Williams transcende os limites da Escola Inglesa, rejei-

tando o solidarismo homogeneizante e o pluralismo determinista ca-

racterísticos desta abordagem. Isso facilita a sua busca pela valoriza-

ção e aceitação da diferença entre os atores internacionais, não se res-

tringindo às comunidades estatais dos pluralistas, nem tampouco

considerando que a tolerância à diferença implicaria a aceitação ab-

soluta de valores universais solidaristas. Com isso, podemos fugir do

estadocentrismo característico da Escola Inglesa sem, contudo, des-

merecer o papel ético desempenhado pelas fronteiras, avançando

Marcelo Mello Valença

322 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 32, no 2, maio/agosto 2009

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Vol. 31 no

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para além da Escola Inglesa ao diferenciar os papéis da soberania e

das fronteiras e buscando novas formas de socialização no plano in-

ternacional (DUNNE, 2005, p. 69). Diante deste posicionamento, a

fronteira passa a ser vista como lócus político de troca, servindo

como espaço de contato entre as diferenças e não apenas de margina-

lização (WALKER, 2005). Isso permitiria o fim de sua replicação,

passando a ser compreendida como um conjunto de práticas sociais

ligadas ao poder e à ética, vitais para a manutenção da sociedade in-

ternacional (WILLIAMS, 2006, p. 42). O papel da soberania como

norma constitutiva da sociedade internacional não é abandonado,

mas as fronteiras passam a ser entendidas de maneira independente

deste princípio, demarcando valores distintos e possibilitando que

estes estejam sujeitos a mudança.

Tal perspectiva nos permitiria enxergar de maneira otimista as fron-

teiras como espaço ético de delimitação e proteção da diferença. Pro-

jetos totalizantes que pusessem em risco a diversidade e o pluralismo

seriam tratados como fatos intoleráveis, caracterizando as emergên-

cias complexas. Conseguiríamos assim fortalecer o diálogo entre a

Escola Inglesa e o campo da intervenção humanitária.

As dificuldades enfrentadas pela Escola Inglesa em lidar com a ques-

tão da intervenção humanitária tornam-se ainda mais sérias diante do

conceito restrito que a intervenção assume, pois esta se caracterizaria

como atos de natureza coercitiva (PUGH, 1998; BELLAMY, 2003).

Logo, a contribuição de Bellamy torna-se importante por nos permi-

tir entender as intervenções humanitárias em sua integralidade, fu-

gindo do estadocentrismo e, consequentemente, do seu caráter mili-

tarizado, permitindo que tracemos critérios objetivos para a sua legi-

timação. Neste ponto, os conceitos de abuso e emancipação trabalha-

dos pelos Estudos da Paz e por teóricos críticos não só ajudariam no

estabelecimento destes critérios, mas também permitiriam que en-

tendêssemos o que constitui o intolerável, oferecendo formas de

identificá-lo.

Política, Emancipação e Humanitarismo: Uma

Leitura Crítica da Escola Inglesa...

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Contexto Internacional (PUC)

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Entendemos que o abuso aconteceria quando da invocação de argu-

mentos não amparados por uma preocupação moral, mas por interes-

ses de curto prazo, para justificar ações de caráter supostamente hu-

manitário (BELLAMY, 2004, p. 132; 2006, p. 147). Já a emancipa-

ção deve ser entendida como o oferecimento de condições que auxili-

em o indivíduo a se libertar das limitações que os impede de atingir

seu pleno potencial, em um conceito similar ao de violência estrutu-

ral (BELLAMY, 2003).4

Tais conceitos retomariam o diálogo da in-

tervenção humanitária proposto por Williams, especialmente ao re-

lacioná-los com a ideia de isolamento e de política como espaço de

tolerância e diálogo com a diferença, possibilitando a liberdade de

querer e a libertação do medo,5

outros aspectos que se mostram

presentes no conceito de emancipação.

Acreditamos que o diálogo entre estas teorias possibilita a compre-

ensão dos dilemas éticos e políticos impostos pelas intervenções hu-

manitárias, oferecendo procedimentos coerentes e pragmáticos para

lidar com as emergências complexas. A ação coercitiva não deve ser

vista como única solução para a sua resolução: diante do intolerável,

as emergências complexas devem ser tratadas a partir de diferentes

tipos de ação, de acordo com uma análise pragmática das necessida-

des que cada situação demandaria. Estas respostas devem envolver

não apenas esforços militares, mas também outros tipos de interven-

ção, não coercitivas, limitando o aparecimento da violência estrutu-

ral na sociedade.

Pluralistas versus

Solidaristas: A Escola

Inglesa e a Intervenção

Nesta seção, abordaremos brevemente a questão entre pluralismo e

solidarismo que move os estudos da Escola Inglesa. Esta controvér-

sia sobre como entender a sociedade internacional, se pluralista ou

solidarista (BULL, 2002; ALMEIDA, 2003; WILLIAMS, 2006),

Marcelo Mello Valença

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acaba por repercutir em outro importante binômio deste marco teóri-

co, que é a tensão existente entre ordem e justiça. A possibilidade de

intervir estaria relacionada ao produto desta discussão, e os pressu-

postos que cercariam a questão humanitária estariam diretamente li-

gados à visão que se tem da natureza da sociedade internacional. É a

partir deste debate que iniciaremos nosso argumento.

O próprio tratamento dado pela Escola Inglesa às relações entre os

Estados pressupõe a existência de vínculos compartilhados pelos

Estados e pelos indivíduos que os formam: é a diferença entre o inter-

nacional e o mundial de que Bull (2002) trata em sua obra. O primei-

ro refere-se à relação entre Estados, enquanto o segundo se refere ao

relacionamento entre os indivíduos, independentemente do Estado

ao qual pertençam, promovendo conflitos entre os direitos e deveres

em cada um desses níveis. Como lidar com os desafios impostos por

estes relacionamentos, conjugando o respeito aos diferentes níveis

com a manutenção da sociedade internacional?

Há duas respostas a esta pergunta. A primeira ressalta o aspecto plu-

ralista da sociedade internacional, em que os Estados são entes sobe-

ranos e os seus pares não teriam o direito, nem a legitimidade, de in-

tervir em seus assuntos domésticos. A segunda resposta, propensa ao

solidarismo, coloca em evidência os indivíduos. Apesar da existên-

cia da autoridade central dentro do Estado, a sociedade internacional

deveria agir de forma a aliviar as ameaças que recairiam sobre os

indivíduos, mesmo que violando aquela autoridade.

Para os pluralistas, a diversidade no plano internacional é garantida

pelos Estados: as fronteiras preservariam a diferença, delimitando

territorialmente o lócus de autoridade do ator internacional: “a socie-

dade internacional possibilita a difusão do poder aos povos por meio

da pluralidade de Estados, permitindo a cada nação e a cada Estado

desenvolver seu próprio modo de vida” (BELLAMY, 2003, p. 323).6

Isto faria com que a preservação da ordem na sociedade internacional

Política, Emancipação e Humanitarismo: Uma

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fosse mais importante que os indivíduos dentro dos Estados, refletin-

do na importância dos princípios da não-intervenção e da soberania.

A alegação da existência de valores universais esbarraria no relativis-

mo cultural, e a ética decorrente deste pretenso universalismo pro-

moveria a desordem internacional: a pluralidade é um fator necessá-

rio para o surgimento e a estabilidade da ordem, mas é utilizada de

forma instrumental por instituições internacionais como o direito

internacional e a diplomacia (O’HAGAN, 2005, p. 215-216).

Para garantir a continuidade dos Estados e o bom funcionamento da

ordem internacional, a ordem mundial é submetida àquela: “a sobe-

rania estatal e a não-intervenção são normas poderosas que combi-

nam o interesse estatal, princípios morais e leis formais”

(BELLAMY, 2003, p. 323). Assim, a intervenção não constituiria

um meio legítimo de proteção dos indivíduos: esta é pertinente ape-

nas ao Estado ao qual pertencem, e a interferência externa nos

assuntos domésticos é mínima.

Já para os solidaristas, os princípios da não-intervenção e da sobera-

nia estariam submetidos aos direitos humanos: haveria um consenso

entre os Estados para que os padrões morais de cada um deles conver-

gissem em direção ao respeito aos indivíduos. O desenvolvimento de

mecanismos de controle dos Estados e de como tratam seus nacio-

nais seria uma das evidências da proteção universal aos direitos hu-

manos. Uma prova disso é o conjunto de normas que fundamentaria o

direito internacional e a legitimação do uso da força quando para ga-

rantir o enforcement da lei, ajudando a manter os valores éticos uni-

versais: “as autoridades estatais são responsáveis pela garantia da se-

gurança e das vidas de seus cidadãos” (ICISS, 2001, p. 13). Assim,

violações maciças de direitos humanos justificariam a ruptura do

princípio da não-intervenção. Estas diferenças entre as posições soli-

darista e pluralista se refletem, também, no debate entre ordem e

justiça. A tensão gerada por esse debate molda o entendimento da

intervenção humanitária.

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Para os pluralistas, sejam eles mais conservadores, como Martin

Wight (2002) e Robert Jackson (2000), ou mais tolerantes, como

Hedley Bull (2002),7

a ordem internacional predominaria, pois sua

estabilidade é condição para a justiça e igualdade entre os Estados,

exceto em casos em que o consenso entre as grandes potências deter-

minasse o contrário. Por serem os Estados os principais atores no pla-

no internacional, o respeito à diversidade é estimulado, garantindo a

pluralidade cultural: o único valor compartilhado entre os Estados é a

manutenção da sociedade internacional. A soberania torna-se o prin-

cipal atributo dos Estados, impondo o ideal da não-intervenção nas

relações internacionais: a solidariedade residual decorrente deste va-

lor mínimo compartilhado teria a função normativa de garantir a

coexistência e sobrevivência dos Estados.

Assim, as questões domésticas seriam tratadas pela autoridade sobe-

rana por meio de seus próprios critérios de justiça, e o seu respeito ga-

rantiria a estabilidade da ordem internacional (KEENE, 2002), con-

sistindo na e abrangendo a relação entre Estados (BULL, 2002, p.

13-26). Com o bom desenvolvimento desta relação, seria possível

garantir a manutenção da independência dos Estados, da paz e da

própria sociedade internacional. Para Bull (2002, p. 26-29), preser-

var a ordem internacional garantiria a ordem mundial, resguardando,

em último caso, os indivíduos: haveria uma relação direta entre

preservar o internacional e garantir o doméstico.

Neste contexto, os ideais de justiça são entendidos como comutati-

vos, justificando os princípios da soberania e da não-intervenção

(BULL, 2002, p. 97). Tal ideia de justiça pressupõe a reciprocidade

na interação entre atores: ao considerar um Estado como soberano e

respeitar sua autoridade, este teria garantido o seu reconhecimento

por seus pares, recebendo, assim, o “direito” de sobreviver. A justiça

comutativa seria complementada pelo ideal de justiça internacional,

ou seja, regras morais que determinam quais são os deveres e direitos

de cada cidadão em seus Estados. Estas regulariam o comportamento

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aceito dentro do Estado de forma a garantir a ordem doméstica, inde-

pendentemente de como esses valores repercutiriam em outras socie-

dades. Mesmo diante de violações dos direitos humanos, a interven-

ção não seria legítima, ainda que possível:

[...] a estabilidade da sociedade internacional,

especialmente em relação à unidade das gran-

des potências, é mais importante […] que os di-

reitos das minorias e a preservação de elemen-

tos humanitários na Iugoslávia ou em qualquer

outro país [...]. A guerra é uma ameaça aos di-

reitos humanos. A guerra entre as grandes po-

tências é a maior ameaça humanitária de todas

(JACKSON, 2000, p. 291).

As grandes potências, com base nos seus interesses vitais e na preser-

vação do equilíbrio de poder, podem escolher entre intervir em ou-

tros Estados ou até mesmo não fazê-lo, caso constatem que “a não-in-

tervenção pode ser uma política tão positiva quanto a intervenção”

(WIGHT, 2002, p. 202). A não-intervenção é, inclusive, preferível

por garantir a ordem pelo equilíbrio de poder internacional. A inter-

venção é percebida como um instrumento coercitivo aplicado por

meio da guerra, geralmente contra Estados mais fracos, para garantir

a ordem: o uso da força deve-se à importância assumida pelo poder

nas relações internacionais (BULL, 2002, p. 236). O humanitarismo

não pode ser definido por não haver valores compartilhados univer-

salmente, impedindo a caracterização de eventos como emergências

complexas: mesmo que a ordem doméstica esteja comprometida, a

intervenção não será realizada, pois a soberania estatal deve prevale-

cer (JACKSON, 2000, p. 372-373). A ideia de mudança no plano

internacional é restrita pela necessidade de manter a ordem.

A postura pluralista, portanto, considera a intervenção como excep-

cional, voltada exclusivamente para a manutenção da ordem interna-

cional desde que alternativas políticas se mostrem inadequadas para

preservar a ordem. A intervenção implica um perigoso precedente,

Marcelo Mello Valença

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pois não só violaria a soberania e a justiça comutativa, como também

comprometeria a ordem internacional.

Por considerar a ordem mundial como fundamental, apesar da neces-

sidade de garantir a ordem internacional, o pluralismo de Bull pode

ser considerado um meio termo entre o pluralismo conservador e os

solidaristas. Bull rompe as fronteiras que separam os Estados e apro-

xima os indivíduos em um cenário onde, desde que haja o consenso

entre os grandes poderes como condição para a justiça predominar

sobre a ordem, a intervenção pode ser justificável.

Do lado solidarista, há a predominância da justiça sobre a ordem. A

justiça, ao invés de ser um mero jogo de troca, consiste em tratar os

iguais igualmente e os desiguais desigualmente, assumindo um cará-

ter distributivo. A justiça mundial, de caráter humanístico, ganha es-

paço, fugindo do simplismo da justiça comutativa e permitindo com-

preender diferentes estágios de desenvolvimento e respeito aos valo-

res internacionais. A intervenção é possível e também necessária

para proteger os indivíduos contra arbitrariedades praticadas pelos

Estados. A ordem mundial, isto é, a estabilidade na relação entre os

indivíduos de diferentes Estados, deve ser considerada como primor-

dial.

Os solidaristas entendem que a sociedade internacional compartilha

valores básicos inerentes aos indivíduos e não apenas o direito de so-

brevivência dos Estados. Estes, inclusive, devem responder pela pro-

teção aos seus indivíduos: “a soberania dos Estados não pode ser usa-

da como anteparo para violações grosseiras de direitos humanos”

(ANNAN, 2001). Graças a isso, as discussões sobre intervenção hu-

manitária privilegiariam o valor humanístico como potencial ele-

mento de mudança na sociedade internacional, que se adequaria ao

relacionamento gerado pela ordem mundial:

[s]olidaristas […] defendem que há um con-

senso na sociedade internacional sobre o que

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constitui um caso de emergência humanitária

suprema e o que é um ato legítimo de interven-

ção. [...] [C]asos extremos de sofrimento hu-

mano constituem uma exceção legítima ao

princípio da não-intervenção (BELLAMY,

2003, p. 324-325).

A sociedade internacional é entendida a partir da agência humana e

do conceito de soberania responsável: os direitos humanos são uma

realidade que os Estados não podem ignorar. A intervenção seria

possível quando capaz de eliminar a ameaça e restaurar a proteção

aos direitos humanos, seja pelo uso da força ou não (WHEELER,

2000, p. 4-37), promovendo uma exceção legítima ao princípio da

não-intervenção (BELLAMY, 2004, p. 138): a ideia de que o direito

de sobrevivência mútuo dos Estados seria o único valor compartilha-

do na sociedade internacional ruiria, uma vez que os Estados não têm

agido fundamentados exclusivamente em seus interesses vitais ao

aprovar intervenções nas últimas duas décadas baseadas em um ideal

de humanitarismo (WHEELER, 2000, p. 297-299). Este seria respal-

dado pelos valores da sociedade internacional.

Apesar do contraste entre solidaristas e pluralistas em relação à pos-

sibilidade de intervir ou não, ambos acabam por reduzir a importân-

cia da soberania na delimitação de fronteiras, as quais são considera-

das elementos materiais contingentes aos interesses do Estado, seja

na manutenção da ordem, seja da paz. Para a Escola Inglesa, o ideal

ético na sociedade internacional decorreria da forma como a diversi-

dade é tratada: no caso pluralista, a diversidade seria tolerável até

ameaçar a estabilidade da sociedade internacional, enquanto os soli-

daristas defendem a diferença localizada em um processo de assimi-

lação de valores universais que uniria os povos em torno destes. A éti-

ca das fronteiras ignora a possibilidade de pensá-las como elementos

para a preservação e a tolerância da diferença na ordem internacio-

nal, gerando aspectos normativos que restringem o debate entre or-

dem e justiça, fazendo com que até aspectos humanistas sejam frus-

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trados pela homogeneização logocêntrica baseada em doutrinas polí-

ticas ou ideológicas8

sobre as razões do Estado para intervir. As pos-

sibilidades de ação internacional são mais amplas, porém restritas ao

consenso estatal ocidental, representado pelo Conselho de Seguran-

ça da Organização das Nações Unidas (BELLAMY, 2005b, p. 34).

Diante do exposto, colocamos os desafios apresentados às interven-

ções humanitárias. Quanto à existência das emergências complexas,

vemos que esta somente é possível para os solidaristas, caracterizan-

do-se quando os valores da sociedade internacional fossem ameaça-

dos por meio da violação da justiça humana pelos Estados. Mas

como identificar quando estas violações levariam a uma emergência

complexa de fato?

Não há indicações neste sentido e a prática política mostra que nem

toda violação motivou a intervenção. Esta situação nos leva a pensar

nos limites e condições para intervir. As intervenções são tratadas

como atos coercitivos, envolvendo a presença do Estado e de seu apa-

rato institucional, buscando o respeito aos direitos humanos por meio

de ações garantidas pela força e conforme seus interesses vitais, ba-

seados em uma lógica racionalista, por mais que pensemos em

valores comuns que mobilizariam os Estados.

É para superar essa limitação que problematizamos o papel das fron-

teiras (WILLIAMS, 2006). A forma como estas são tratadas pela

Escola Inglesa reforça a contingência de seus papéis: elas teriam va-

lor ético apenas porque serviriam para um objetivo maior, isto é, pre-

servar a ordem ou a justiça. O papel da ética é desligado da política,

ficando à mercê da soberania, como um subproduto da demarcação

de espaços de autoridade exclusiva (WILLIAMS, 2006). No entanto,

a partir de um espaço que proporciona o relacionamento político,

pode-se trabalhar as fronteiras como práticas sociais dinâmicas que

preservam e valorizam a diferença por meio de seu papel ético, disso-

ciando-as da soberania e fugindo do estadocentrismo determinista:

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“aceitar esta imagem de fronteiras territoriais constituindo práticas

sociais como sendo produto da agência humana e da escolha é

[ignorar] que a partir da agência é que atingimos a ética”

(WILLIAMS, 2006, p. 18).

Este respeito à diferença possibilitaria, inclusive, superar as limita-

ções e contradições das posturas solidarista e pluralista perante a

questão humanitária: a primeira, ao buscar simultaneamente aceitar a

tolerância e a civilização na ordem internacional, acaba por gerar

contradições internas que levariam à valorização de um desses ele-

mentos apenas, promovendo padrões homogeneizantes (KEENE,

2002). Por outro lado, os pluralistas se posicionariam diante da dife-

rença como um ponto que deve ser preservado a qualquer custo, mes-

mo em detrimento da justiça, obrigando o entendimento da tolerân-

cia e da diferença como um novo valor a ser compartilhado. Diante

desses elementos, Williams vai propor a tolerância da diferença até

os limites do “intolerável”, ou seja, quando ocorre o isolamento e a

política não é mais possível, mas sem indicar que critérios estipulari-

am o momento em que essa situação de intolerância se daria. A dife-

rença na ordem internacional seria algo positivo, permitindo o debate

sobre os limites das intervenções humanitárias com base no ideal de

emergência complexa, oferecendo indicações sobre o que constitui-

ria o intolerável.

A Ética das Fronteiras:

Em Busca do Mínimo

Valor Ético

Vimos que o debate entre pluralistas e solidaristas na Escola Inglesa

subteoriza o papel ético das fronteiras na sociedade internacional, li-

mitando as possibilidades de intervenção humanitária diante da ten-

são entre ordem e justiça que decorreria da análise não problematiza-

da dos elementos políticos da sociedade internacional. Tanto plura-

listas quanto solidaristas oferecem argumentos que embasam sua po-

Marcelo Mello Valença

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sição, mas nenhum deles questiona o papel das fronteiras: é impensá-

vel lançar desafios a elas, já que se chocariam com a concepção de

política e de mundo da Escola Inglesa. Para os pluralistas, as frontei-

ras importam desde que mantenham a ordem internacional; caso este

papel possa ser preenchido por outros arranjos institucionais, as fron-

teiras perderiam importância. No caso dos solidaristas, as fronteiras

são encaradas como barreiras para a realização da justiça

(WILLIAMS, 2006, p. 21-22). Em suma, o que importaria à Escola

Inglesa seriam os limites assumidos pela soberania e que efeitos ela

produz nas intervenções (WILLIAMS, 2006, p. 60).

Acreditamos que a intervenção humanitária é mais bem compreendi-

da a partir da leitura crítica das fronteiras, sem que estas sejam vistas

apenas como elementos estáticos submetidos à ordem ou à justiça.

As fronteiras devem ser encaradas de diferentes maneiras, conforme

as práticas sociais que as constituem e reproduzem (WILLIAMS,

2006, p. 28), possibilitando a construção de ideais dinâmicos de tole-

rância. A intervenção humanitária desafia o consenso sobre como as

fronteiras devem ser enxergadas, e a Escola Inglesa falha ao respon-

der a esses desafios por não proporcionar elementos suficientes para

a sua compreensão.

Entendemos que, por serem inerentes à própria condição humana, as

fronteiras territoriais são essenciais na preservação da diversidade da

política internacional e devem ser vistas como necessárias e moral-

mente defensáveis para a preservação da liberdade e da diferença en-

tre os indivíduos por meio da explicitação de seus mecanismos éticos

(WILLIAMS, 2006, p. 38). Ao contrário da Escola Inglesa, que toma

a fronteira como um atributo da soberania, entendemos que sua im-

portância está em atuar como prática social que garantiria o pluralis-

mo, não só possibilitando a diferença na comunidade internacional,

mas tendo participação fundamental na formação das identidades

políticas (WILLIAMS, 2006, p. 99). A interação entre os atores

aconteceria a partir da estipulação de um mínimo ético baseado em

Política, Emancipação e Humanitarismo: Uma

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Contexto Internacional (PUC)

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valores socialmente compartilhados, mas sem restringir esse valor ao

direito de sobrevivência. Tampouco esse mínimo ético consiste na

aceitação autorreferenciada da diferença defendida pelos solidaris-

tas.

Ao analisarmos o papel que a fronteira assume socialmente, toma-

mos a agência internacional como humana, rompendo com o para-

digma da Escola Inglesa (WILLIAMS, 2006, p. 63). A ética não

pode ser dissociada da política, logo as fronteiras não podem ser to-

madas como pré-dadas e ligadas à soberania. As formas de ação cole-

tiva que se reproduzem no plano internacional decorrem desta consi-

deração dos indivíduos como principais atores, mas sem desprezar o

papel que os Estados possuem na garantia da estabilidade da ordem

(DUNNE, 2005, p. 68). Assim, a sociedade internacional seria com-

posta também por atores não estatais, fugindo dos modelos tradicio-

nalmente considerados centrados apenas em Estados.

Ao problematizarmos as fronteiras, percebemos a soberania como

resposta que preenche momentaneamente demandas históricas: a so-

ciedade internacional gerou formas diferentes de soberania para lidar

com diferentes modelos de ordem internacional (KEENE, 2002).9

De outro lado, as fronteiras são parte da ontologia das comunidades

políticas que as ajuda a determinar sua própria identidade por meio

de relações políticas que acontecem no espaço representado pelas

fronteiras (WILLIAMS, 2006, p. 17). Estes espaços proporcionam a

troca e o diálogo entre diferenças. Assim, o ato de estabelecer fron-

teiras assume conotação otimista, o que nem sempre é partilhado por

outras perspectivas teóricas.

Walker (2005) defende que as fronteiras possuem a função de pro-

mover um duplo processo de exclusão que não apenas constituiria a

identidade do Outro como oposição ao Eu, mas também produziria e

ocultaria os processos de exclusão do que está para além das frontei-

ras e inclusão do que está dentro delas. Contudo, as práticas sociais

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que formam as fronteiras permitem que, ao confrontar-se com a dife-

rença, o Eu busque padrões de entendimento por meio dos quais en-

tenderia a relação com o Outro a partir da análise do seu próprio inte-

rior, percebendo dentro de si elementos que o aproximariam do Ou-

tro. Isto permitiria que o Outro não fosse reduzido a um alguém se-

melhante ao Eu, nem tampouco fosse inferiorizado. O entendimento

holístico da diferença deve ser estimulado para que o diálogo seja es-

tabelecido. Assim, com a cooperação e a sobreposição do Eu e do

Outro formando um espaço ético de entendimento, a competição tí-

pica da modernidade que impõe o caráter homogeneizante a esta re-

lação é evitada. A separação das diferenças no formato territorial

assumido pelo Estado deve ser entendida como parte da ética global

de tolerância e não a formação de padrões de exclusão (WILLIAMS,

2006, p. 13-14).

A delimitação de fronteiras como prática social é inerente à manuten-

ção do sistema internacional moderno e, consequentemente, da pró-

pria sociedade internacional. As fronteiras não apenas seriam ele-

mentos inevitáveis, mas também constituiriam o espaço onde a reali-

zação da política é possível, sendo, portanto, sujeitas à mudança e

atuando como lócus de constituição da identidade e do sentimento de

inclusão em determinada comunidade política, permitindo o diálogo

com a diferença por meio da interação social.

Esta interação não implica a homogeneização da cultura, nem a ne-

cessidade artificial de criar diferenças. As fronteiras possibilitariam

a distinção territorial das comunidades políticas, com o exercício da

diferença dentro e entre elas em um processo de aceitação e tolerân-

cia que impediria o isolamento dos indivíduos e das comunidades.

Uma vez que ocorre o isolamento, a política deixa de existir, com as

fronteiras passando a delimitar apenas a separação das comunidades,

sem permitir que estas tangenciassem. Com isso, o diálogo entre as

diferenças deixa de acontecer, levando a um projeto totalizante que

ameaça o pluralismo e a diversidade internacionais.

Política, Emancipação e Humanitarismo: Uma

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Tal cenário caracterizaria a ocorrência do intolerável, que exigiria a

ação da sociedade internacional para restaurar a ordem internacional.

Neste sentido, entendemos que o intolerável para Williams (2006)

representa a caracterização da emergência complexa, pois constitui-

ria uma situação em que o espírito de tolerância proporcionado pelas

fronteiras seria encerrado, limitando a capacidade dos indivíduos e

das comunidades de exercerem sua diversidade, seja por meio da vio-

lência direta, seja pela repressão ao seu direito de ter direitos. Segun-

do o pensamento arendtiano, todos seriam diferentes desde que as

condições para a manifestação da diferença sejam possíveis a partir

de um espaço político comum de tolerância, que estimule a participa-

ção de indivíduos: as comunidades políticas. A pluralidade mos-

tra-se necessária como um atributo da comunidade, mas não baseada

em padrões excludentes ou marginalizantes: o status de humano não

pode ser negado ao Outro (WILLIAMS, 2006, p. 98). Mas uma

reflexão deve ser promovida: como e em quais bases pensar essa

negação de status de humano?

Williams não consegue responder a essa pergunta. Suas indagações

sobre o que consistiria o intolerável não são conclusivas, limitan-

do-se a apontar que o intolerável decorre de projetos totalizantes, ne-

cessitando apoio em outros campos.

A intervenção humanitária para evitar a violência decorrente desses

projetos totalizantes permitiria o pleno exercício no campo político

do potencial dos indivíduos, restaurando o cenário de garantia às di-

versidades humana e política, em um processo de construção da tole-

rância genuína (WILLIAMS, 2006, p. 96). Por conseguinte, uma vez

que a política não se realiza, surge uma disparidade entre o potencial

de realização do indivíduo e sua realização de fato. A existência deste

gap se caracterizaria como a ocorrência da violência estrutural

(OSTERGAARD, 1990), preocupação que os Estudos da Paz tentam

evitar. Assim, a partir da interpretação dos objetivos dos Estudos da

Paz e da extrapolação do argumento de Williams, podemos entender

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o intolerável, como o acontecimento de eventos que impedem a

emancipação dos indivíduos e provocam o gap entre o real e o poten-

cial. Conforme o que expusemos anteriormente, a ocorrência da vio-

lência estrutural representaria este intolerável, construindo o concei-

to de emergências complexas de modo mais objetivo do que a ideia

de “violação dos valores compartilhados pela sociedade internacio-

nal”.

A intervenção humanitária seria, assim, parte do instrumental políti-

co transnacional que garantiria a não-violência como forma de me-

lhoria das condições de vida nas comunidades políticas, possibilitan-

do a diversidade. Isto já diferenciaria as possibilidades de interven-

ção daquelas legitimadas pelos solidaristas, por separar processos vi-

olentos – genocídios, limpezas étnicas e massacres – de uma violên-

cia menos evidente, que afetaria o direito dos indivíduos de terem di-

reitos, preparando espaço para a aceitação do conceito de humanita-

rismo dos teóricos de intervenção humanitária.

Com isso, e a partir da análise do papel ético desempenhado pelas

fronteiras, o isolamento representaria o intolerável porque negaria à

comunidade política ou a uma parcela dela o direito de emancipação,

caracterizando a emergência complexa. Para contorná-la, é necessá-

ria a participação da sociedade internacional por meio de uma ideia

de intervenção que não se limite ao uso da força, mas que garanta a

emancipação e evite o abuso, escapando de limitações estadocêntri-

cas.

Seguimos na tentativa de fortalecer o diálogo entre a Escola Inglesa e

o campo da intervenção humanitária. O ideal ético que buscamos não

decorre da consideração da soberania como absoluta ou de valores li-

berais autorreferenciados transpostos do plano doméstico para a so-

ciedade internacional: pensar desta maneira apenas reforçaria o cará-

ter de contingência do debate entre pluralistas e solidaristas e da ten-

são entre ordem e justiça decorrente deste debate. A ética passa a as-

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sumir um valor próprio, deixando de ser vista como o termo fraco em

oposição à política. Isto é possível ao percebermos as fronteiras

como espaços intermediários que permitem a realização da política:

a interação e o diálogo entre diferenças deixam de explicar a fronteira

como separação material, tornando-a objeto de reflexão e atribuindo

papel ético em um plano do real e não mais no do ideacional. E é neste

ponto, de busca dos valores reais e não abstratos, que dialogaremos

com o campo das intervenções humanitárias e os Estudos da Paz.

Intervenção Humanitária e

Estudos da Paz:

Complementações para a

Escola Inglesa

A Escola Inglesa privilegia a forma como a intervenção é realizada

em detrimento de seu conteúdo: a intervenção consistiria em uma

ação promovida por Estados de maneira coercitiva, visando restaurar

as condições que retornariam a ordem ou a justiça à sua normalidade,

acusando, em maior ou menor escala, o uso da força para a conclusão

do empreendimento (BELLAMY, 2003, p. 329). Para superar esse

impasse, propusemos entender como as fronteiras desempenham um

papel ético e não contingente.

Williams problematiza o entendimento das fronteiras territoriais, en-

xergando-as não como elementos dependentes da soberania, mas

como práticas sociais dinâmicas capazes de desempenhar o papel éti-

co na relação entre comunidades políticas. As fronteiras permitiriam

que a diversidade internacional acontecesse, garantindo a tolerância

à diferença como um valor a ser preservado para o bem da ordem in-

ternacional, tendo papel fundamental na constituição da identidade

das comunidades políticas e garantindo a ação coletiva e a agência

humana como determinantes para a concepção do mínimo ético que

guiaria as relações internacionais. O espaço constituído pelas fron-

teiras permitiria o diálogo com a diferença, apontando que esta troca

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é positiva para o desenvolvimento da sociedade internacional. Isso

permitiria a construção de um conceito positivo de ética, pautado na

diversidade e na rejeição de projetos totalizantes que impeçam a

emancipação dos indivíduos e das comunidades políticas às quais

eles pertencem.

Ao se preocupar com a formação de um espaço político em que a di-

ferença pode coexistir e ajudar a alcançar a emancipação, o conceito

de intervenção se ampliaria, demandando respostas para problemas

que não podem ser solucionados por meio do uso da força: a interven-

ção deve ser capaz de solucionar também os problemas causados

pela violência estrutural, que impedem a realização da total capaci-

dade dos indivíduos. O conceito de emergência complexa mostra-se,

por conseguinte, ampliado de modo a abarcar as condições de

ameaça – física ou estrutural – que impulsionaria a capacidade

humana de agir.

Já os solidaristas afirmam que a violação das condições de justiça hu-

mana caracterizaria a emergência complexa, enquanto pluralistas

não admitiriam a sua existência. Williams complementa essas res-

postas apontando que se deve pensar em termos de ameaças à plurali-

dade política. Estas ameaças aconteceriam por meio de projetos tota-

lizantes que homogeneizariam a diversidade, criando uma cultura

compartilhada artificial; logo, a justiça humana pretendida pelos so-

lidaristas seria falsa, quiçá perigosa para a estabilidade internacional.

No entanto, mesmo a discussão sobre ética e os limites da tolerância

propostos por Williams não conseguem explicar por si só o que

exatamente consistiria uma emergência complexa.

De forma a suprimir esse vazio explicativo, buscamos em Alex Bel-

lamy (2003) os argumentos para intervenções mais complexas que

garantam a emancipação. Estas intervenções objetivariam não ape-

nas acabar com a violência física praticada, mas também eliminar as

condições que geram a violência estrutural. Em consonância com os

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postulados dos Estudos da Paz, qualquer forma de sofrimento huma-

no constituiria um sinal de que a capacidade humana não é atingida,

caracterizando a emergência complexa.10

As intervenções armadas –

formato de intervenção vislumbrado pela Escola Inglesa – abordari-

am apenas a parcela mais visível destas emergências, ignorando ou-

tros eventos que prejudicariam a emancipação.

A legitimidade que a Escola Inglesa busca para as intervenções hu-

manitárias é respaldada pelo consenso dos Estados – ou por uma par-

cela deles, as grandes potências (BULL, 2002), em consenso ou, na

pior das hipóteses, sem a oposição de quaisquer delas – com base em

preceitos normativos representados pela Carta das Nações Unidas,

na figura do Conselho de Segurança. Contudo, ao se pensar a agência

humana como fonte para a ética política, como sugerido por Willi-

ams e Dunne, a legitimidade da sociedade internacional deixa de ser

necessária: a autorização daqueles que sofrem a violência seria sufi-

ciente para iniciar a intervenção, visto que é o seu direito de ter direi-

tos que está ameaçado e sua emancipação é tolhida: limitar a legiti-

mação ao nível estatal é dar condições para o agente produtor da vio-

lência continuar impedindo a realização da política, prolongando o

isolamento. A ameaça seria real, logo ignorar o pleito destes indiví-

duos constituiria o abuso, alegações falsamente morais para justificar

uma tomada de decisão.

Assim, o campo das intervenções humanitárias passaria a ser orienta-

do pelo humanitarismo, baseado no pragmatismo e não mais no com-

partilhamento de valores abstratos pela sociedade de Estados tal

como desejam os solidaristas da Escola Inglesa. O humanitarismo

consiste em quatro princípios fundamentais que dialogam com o

campo das intervenções humanitárias e dos Estudos da Paz. Estes se-

riam os da: (i) humanidade, que consiste em prevenir o sofrimento

humano onde quer que este se encontre; (ii) imparcialidade, mostran-

do que não existem condições de poder, nacionalidade, etnia ou reli-

gião para que o auxílio seja prestado; (iii) neutralidade, não tomando

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partido para qualquer um dos lados durante a ação; e (iv) universali-

dade, que mostra que o humanitarismo é universalmente aplicável e

todos os indivíduos têm direito a ele (RAMSBOTHAM;

WOODHOUSE apud PUGH, 1998, p. 339-340).

A natureza da sociedade seria pluralista, pela própria impossibilida-

de de valores universalmente aceitos pelas diferentes comunidades

políticas que a compõem (WILLIAMS, 2006). O pluralismo seria

possível graças às relações políticas entre os indivíduos no espaço

constituído pelas fronteiras estatais, em um processo em que as iden-

tidades são construídas e a diferença é aceita, como parte da valoriza-

ção dos sujeitos, proporcionando a emancipação. A ruptura deste

processo constituiria o cerne das emergências complexas, criando

critérios para apontar a sua ocorrência e estimulando medidas para

reprimir sua repetição diante do ideal do humanitarismo. A Escola

Inglesa tem dificuldades em trabalhar com este conceito porque a in-

tervenção seria um evento excepcional na sociedade internacional,

dirigido espacial e temporalmente para restaurar a natureza normati-

va da sociedade internacional (BELLAMY, 2003, p. 338). Todavia, o

ideal de intervenção decorrente do diálogo entre os teóricos deste

campo e os Estudos da Paz sugeriria uma postura mais intervencio-

nista da comunidade internacional.

Esta impressão decorre da leitura de intervenção com base nos pre-

ceitos da Escola Inglesa. Como ressaltamos em diversos momentos,

as intervenções assumem diferentes formatos conforme os objetivos

que elas buscam atingir. Destarte, a “postura mais intervencionista”

deve ser entendida como uma postura mais ativa da sociedade inter-

nacional em identificar os riscos de ocorrência do isolamento e da vi-

olência estrutural, eliminando-os antes que assumam proporções que

ameacem definitivamente a emancipação.

Neste sentido, Bellamy (2003), baseando-se na ideia de que o conhe-

cimento é obtido por meio de representações da realidade, defende a

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necessidade de a intervenção ser avaliada conforme correspondesse

ou não a uma estrutura de “regime da verdade”, que delimitaria as

fronteiras do conhecimento e dos sistemas de validação e de legiti-

mação. Isto levaria a intervenção a assumir um caráter pragmático,

surgindo diferentes critérios de legitimação e de verificação do su-

cesso de uma ação. Esta abordagem privilegiaria especialmente a

problemática das identidades envolvidas no conflito, garantindo a

manutenção da diversidade, tal como defende Williams. O questio-

namento do papel das fronteiras na proteção da diversidade permiti-

ria um novo espaço para a realização da política que possibilitará não

apenas a tolerância e a interação entre comunidades políticas distin-

tas com base em valores humanísticos, mas a própria problematiza-

ção do humanitarismo e da emergência complexa. O humanitarismo

assumiria dimensões verdadeiramente morais, deixando de ser um

instrumento de discursos políticos. Cria-se um valor ético que trans-

cende o mero direito de sobrevivência para englobar a compreensão

de processos totalizantes que ameaçariam a diversidade política,

comprometendo os esforços de emancipação.

A atuação constante da comunidade internacional evidenciaria a rea-

lização da política nas áreas de contato entre as comunidades, de-

monstrando o papel ativo e dinâmico das fronteiras, que não se res-

tringiriam a ser um elemento material de constituição da soberania.

Não só o espaço de tolerância estaria configurado, permitindo o diá-

logo entre o Eu e o Outro nos mesmos termos de humanidade que

existiria dentro da própria comunidade, mas também os limites para

que esta tolerância aconteça, mobilizando ações que viabilizem a

constituição plena do Eu e do Outro.

Considerações Finais

Buscamos expor neste trabalho como as limitações da Escola Inglesa

em tratar os elementos que constituem a sociedade internacional im-

pedem uma visão compreensiva das intervenções humanitárias. Por

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se ater ao debate entre solidaristas e pluralistas, com repercussões na

forma como a ordem e a justiça são concebidas, a Escola Inglesa dei-

xa de problematizar o papel dinâmico que as fronteiras desempe-

nham na formação das comunidades políticas, atuando separada-

mente da soberania. Assim, as possibilidades da intervenção huma-

nitária acabam reduzidas ao entendimento da sociedade internacio-

nal de Estados. A fronteira, elemento não problematizado pela Esco-

la Inglesa, assumiria um importante papel ao estabelecer um espaço

de diálogo entre as diferentes comunidades políticas existentes no

plano internacional por proporcionar elementos dinâmicos de reali-

zação da política.

A leitura arendtiana de Williams mostra que as fronteiras funcionam

como um espaço intermediário onde a tolerância à diversidade acon-

teceria, permitindo a compreensão do Outro como ser humano e não

como um elemento excluído ou renegado (WALKER, 2005). A di-

versidade, vista de maneira otimista, promoveria a estabilização da

ordem internacional, mas não da maneira artificial que a Escola

Inglesa defende: Williams baseia-se na construção de identidades e

do sentimento de pertencimento a uma comunidade, criando sujeitos

separados pelas fronteiras que interagem, dialogam e mutuamente se

constituem, fugindo da lógica excludente pós-moderna e pós-positi-

vista.

A negação da diferença levaria à condição de isolamento, evidenci-

ando situações em que a emergência complexa ocorreria, ameaçando

a estabilidade da ordem internacional. Fica claro que o pluralismo de

Williams, ao contrário daquele da Escola Inglesa, concebe sim a

ocorrência de emergências complexas. Isto acontece porque os ide-

ais de emergência complexa e de humanitarismo são controversos na

Escola Inglesa, com os pluralistas negando a sua existência e os soli-

daristas defendendo a sua ocorrência quando da violação maciça de

direitos humanos por meio da violência física e política.

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Contudo, Williams dá indicações de que o humanitarismo surgiria

quando da presença do intolerável, mas sem apontar critérios para

defini-lo. Surge daí nossa necessidade de buscar nos Estudos da Paz

um suporte para tal definição, de forma a operacionalizá-la, escapan-

do do uso abusivo do termo para justificar posturas políticas autointe-

ressadas. A emergência complexa aconteceria, então, quando hou-

vesse uma situação de isolamento, impedindo que a diversidade fos-

se mantida. A intervenção internacional seria legitimada para garan-

tir que o espaço de diálogo fosse restabelecido, evitando o abuso que

distorcesse os elementos morais e éticos que norteariam as práticas

sociais entre as comunidades políticas.

Para tanto, expande-se o conceito de intervenção. Deixando de con-

sistir em ação coercitiva tal como entendida pela Escola Inglesa, a in-

tervenção passa a assumir diferentes formatos, de forma a entender e

aliviar o sofrimento humano por meio da eliminação de qualquer for-

ma de violência, direta ou estrutural. Com base nos preceitos do hu-

manitarismo, as intervenções humanitárias se voltariam para a ga-

rantia da emancipação, superando o gap entre a capacidade potencial

e o que é realmente atingido pelos indivíduos, não mais buscando

apenas a restauração da ordem internacional ou evitando a violação

de valores compartilhados. A agência humana passa a ter grande re-

levância, delimitando formas pragmáticas de atuar com base na

leitura da realidade e não mais em pressupostos abstratos.

Com isso, retornamos aos questionamentos que guiaram nossa expo-

sição e que foram apresentados na introdução deste trabalho. Diante

da pergunta de até que ponto existiria a condição de emergência com-

plexa, nossa explanação indica que esta existiria sempre que a reali-

zação da política fosse impedida por meio do isolamento dos indiví-

duos, impedindo a sua emancipação. Este entendimento extrapolaria

os limites da Escola Inglesa ao permitir compreender as emergências

complexas para além da violação material e direta dos direitos dos in-

divíduos, incluindo a violência estrutural, fator menos perceptível e

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menos abordado pela comunidade internacional. A promoção ativa

do desenvolvimento social e econômico passaria a entrar na agenda

política, motivando ações mais concretas da comunidade internacio-

nal. Os limites para intervir seriam percebidos a partir da análise

pragmática da situação considerada como potencial emergência

complexa, implicando um tratamento mais “humano” no plano inter-

nacional e percebendo na interação entre os indivíduos e suas comu-

nidades políticas as dificuldades enfrentadas pelas partes de forma a

evitar o isolamento e, por consequência, os projetos totalizantes que

oprimam o indivíduo.

Finalmente, resta falar da forma como os Estados deveriam se com-

portar durante a intervenção. Acreditamos que a questão deveria ser

reformulada para indagar como os Estados deveriam se comportar

diante da possibilidade de intervenção. A intervenção deve deixar de

ser vista como algo excepcional e coercitivo, pois, ao contrário, ela

implica a participação ativa da comunidade internacional no diálogo

entre seus diversos componentes, permitindo a dinâmica na política

e, com isso, o tratamento do Outro com humanidade. A diferença não

pode servir como pretexto de exclusão, mas como forma de se perce-

ber a própria identidade e, por meio do reconhecimento do Outro

como possuindo status de humano, buscar a redenção do Eu, prolon-

gando o entendimento entre as diferentes comunidades e eliminando

o risco de isolamento, de forma a proporcionar a estabilidade e o bom

funcionamento da ordem internacional.

Notas

1. Optamos por utilizar a expressão emergência complexa como sinônimo

para as expressões “emergência humanitária suprema” (WHEELER, 2000, p.

34) e “extrema emergência” (WALZER, 2003, p. 426). Por emergência comple-

xa, entendemos as situações sociopolíticas decorrentes da violência cometida

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contra indivíduos ou grupos (EVANS; NEWNHAM, 1998, p. 88), afetando o

sentimento humanitário e fundamentando a postura intervencionista.

2. Bellamy (2003) critica Robert Jackson por diferenciar intervenção de per-

suasão. A primeira afetaria a soberania dos Estados, enquanto a última se dirigi-

ria à sua autonomia. Segundo Jackson (2000), como nenhum Estado possui

completa autonomia, seu comportamento poderia ser afetado voluntariamente

por meio de vias diplomáticas ou econômicas, mas a intervenção não seria pos-

sível por violar sua soberania. A argumentação de Jackson poderia servir para

ocultar o abuso, ao dissociar política, economia e sociedade.

3. Ressaltamos que a posição “verdadeiramente pluralista” de Williams em

comparação aos autores da Escola Inglesa é mencionada pelo próprio. Segundo

ele, para os pluralistas da Escola Inglesa, não apenas o direito de coexistência na

sociedade internacional é visto como o único valor compartilhado, mas também

a necessidade da diferença como forma de os Estados se autodefinirem se torna

um valor comum aos atores internacionais (WILLIAMS, 2006, p. 77). Assim, o

autor trata a Escola Inglesa como se solidarista fosse, de modo a justificar estes

valores compartilhados “implicitamente”.

4. Nas palavras de Ken Booth (2001, p. 539), o conceito de emancipação esta-

ria ligado a posturas que possibilitassem libertar as pessoas “dos constrangi-

mentos que as impedem de escolher livremente o que fazer, dos quais guerra,

pobreza, opressão e má-educação são alguns”. Esta conceituação, identificada

mais frequentemente com o conceito de segurança humana, também nos ajuda a

fugir da análise de referencial no Estado e passar a focar mais nos indivíduos.

5. No original em inglês, “freedom from want and freedom from fear”

(FIERKE, 2007, p. 145).

6. Todas as citações em inglês foram traduzidas pelo autor deste trabalho.

7. O legado de Hedley Bull é marcado por dois momentos distintos. Em A so-

ciedade anárquica, Bull apresenta-se como um pluralista, defendendo a diver-

sidade da sociedade internacional. Posteriormente, em trabalhos como Justice

in International Relations, Bull mostrar-se-ia partidário do solidarismo. Em

ambos os momentos, contudo, Bull reconhece que solidarismo e pluralismo es-

tão presentes a todo instante na política mundial, em diferentes escalas, mas

mantendo o predomínio do pluralismo (ALMEIDA, 2003, p. 149), caracteri-

zando a abordagem racionalista.

8. Entre os autores que seriam representativos desta postura, Wheeler (2000),

um dos expoentes da ala solidarista da Escola Inglesa, trabalha seu argumento

relacionando as condições da intervenção com as possibilidades oferecidas pela

guerra justa.

Marcelo Mello Valença

346 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 32, no 2, maio/agosto 2009

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

2 – Mai/Ago 2009

1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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9. Keene trabalha com a limitação do conceito de sociedade internacional ao

questionar a sua equivalência ao conjunto de valores compartilhado pelos Esta-

dos europeus em um processo artificial de tolerância. Ao mesmo tempo em que

se buscaria uma ordem internacional única, rompia-se com a diferença a partir

da relação entre civilização e barbárie. Esta seria domada a partir do uso da for-

ça, método encontrado para lidar com a diferença não tolerada. Este posiciona-

mento acaba por ignorar ordens internacionais formadas às margens da Europa,

por não partilharem do sentimento de civilização que os Estados europeus

buscavam àquele tempo.

10. Raimo Väyrynen (1999) apresenta uma tipologia para evidenciar as dife-

rentes formas de emergências complexas que ocorreram durante a década de

1990, ajudando o nosso argumento a ampliar esta concepção para além da ques-

tão da violência direta de caráter político. Em suas palavras, “a guerra é opera-

cionalizada pelo número de baixas, a saúde pela mortalidade infantil e abaixo

dos cinco anos de idade, a fome pelo percentual de crianças subnutridas abaixo

dos cinco anos, e o deslocamento pelo número total de refugiados e deslocados

internos” (VÄYRYNEN, 1999, p. 191, grifo no original).

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1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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Resumo

Política, Emancipação e

Humanitarismo: Uma Leitura

Crítica da Escola Inglesa sobre a

Questão da Intervenção

Humanitária

O artigo analisa as possibilidades de realização de intervenções humanitá-

rias a partir da lógica desenvolvida pela Escola Inglesa das Relações Inter-

nacionais. Apesar da ênfase dada ao tema de intervenções humanitárias por

muitos de seus adeptos atualmente, buscamos evidenciar a necessidade do

diálogo da Escola Inglesa com os Estudos da Paz e com outras teorias que

trabalham especificamente com intervenções para superar as suas limita-

ções, ontológicas e epistemológicas. Isto acontece principalmente pela im-

possibilidade do consenso sobre a existência de valores compartilhados

pela sociedade internacional, tornando problemática a legitimação destas

ações. Sugerimos que tais limitações sejam superadas a partir de um novo

entendimento do que seriam “fronteiras”. Enxergando as fronteiras como

zonas políticas de troca onde a diferença é preservada para garantir a ordem

internacional, podemos vê-las como espaço ético de delimitação e proteção

da diferença, não apenas de exclusão. Neste sentido, e resgatando o ideal de

diversidade e tolerância de Hannah Arendt, partimos em busca da valoriza-

ção e aceitação da diferença no plano internacional, não nos restringindo às

comunidades estatais dos pluralistas, nem à aceitação absoluta de valores

universais solidaristas. Com isso, podemos ampliar coerentemente o con-

ceito de intervenção.

Palavras-chave: Escola Inglesa – Intervenção Humanitária – Fronteiras

– Estudos da Paz

Marcelo Mello Valença

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Vol. 31 no

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Abstract

Politics, Emancipation, and

Humanitarianism: A Critical

Reading of the English School

over the Issues of the

Humanitarian Intervention

This article discusses the possibilities of humanitarian intervention from

the theoretical standpoint of the English School. Despite its recently

emphasis on humanitarian intervention, the article shows the possibility of

establishing a dialogue with Peace Studies and other theoretical approaches

that discuss intervention in order to overcome the limitations of the English

School – both ontological and epistemological – in this area due to the

controversy over the existence or not of shared values by the international

society. The article suggests that the limitations presented by the English

School should be approached with a new understanding of the concept of

“borders”. By understanding borders as political zones where difference is

preserved to guarantee international order, one may see borders as an

ethical space of protection of difference, not only as a space of exclusion. In

that fashion, and by using Hannah Arendt’s ideals of diversity and

tolerance, the article defends the acceptance of difference in international

politics and the widening of the concept of intervention in the terms

presented leading to a more politically conscious idea of humanitarian

intervention.

Keywords: English School – Humanitarian Intervention – Borders –

Peace Studies

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1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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Introdução

A institucionalização da área de Relações Internacionais (RI) como

disciplina acadêmica data do final da Primeira Guerra Mundial. Em

1919, David Davies, empresário e parlamentar, doou fundos para

que fosse criada, na Universidade de Gales, Aberystwyth, a cadeira

Woodrow Wilson de Política Internacional. Davies

353

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

2 – Mai/Ago 2009

1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

* Artigo recebido em julho e aprovado em dezembro de 2008. Agradecemos a Clemilson Batista e a Edil-

ma Macedo pelo auxílio na coleta e interpretação de dados.

** Doutora em Relações Internacionais pelo Institut Universitaire de Hautes Etudes Internationales, em

Genebra (Suíça), professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília

(Irel/UnB) e editora da revista Cena Internacional. Email: [email protected].

*** Doutor em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de

Brasília (Irel/UnB), analista de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União (CGU) e professor

colaborador do Irel/UnB. E-mail: [email protected].

CONTEXTO INTERNACIONAL Rio de Janeiro, vol. 31, no 2, maio/agosto 2009, p. 353-380.

A Pós-Graduação

em Relações

Internacionais no

Brasil*

Norma Breda dos Santos** e Fúlvio Eduardo

Fonseca***

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propunha que se estudasse direito, ética, eco-

nomia, outras civilizações e organizações in-

ternacionais, [e] o que ficou registrado na me-

mória coletiva foi a ideia de que o estudo da po-

lítica internacional, catapultado para a vida

acadêmica pela Grande Guerra, deve incluir o

estudo da guerra como seu objetivo supremo

(BOOTH, 1996, p. 328).1

Assim, a preocupação de compreender os fatores que engendram a

guerra e o que fazer para preveni-la aparece como constitutiva da dis-

ciplina. É verdade que essa tão repetida referência a Aberystwyth na

institucionalização do estudo de RI acaba sendo mais mitificadora do

que explicativa; no entanto, tem justamente a seu favor o fato de dei-

xar manifesto um dos mitos fundadores da disciplina, cujo apareci-

mento é certamente mais complexo, e suas interconexões com vários

campos de conhecimento, mas particularmente com a Economia, o

Direito Internacional, a Ciência Política (CP) e a História.

No Brasil, a institucionalização da área de RI seguiu o padrão nor-

te-americano, preponderante internacionalmente, em que CP e RI

são áreas acadêmicas de um mesmo departamento (LIMA, 2001).2

Ainda que, em sua origem, a disciplina acadêmica de RI tenha muito

a dever à Grã-Bretanha e que a produção intelectual britânica tenha

considerável impacto internacional, notadamente com a Escola In-

glesa,3

o mainstream da disciplina é norte-americano. Ou seja, é nos

Estados Unidos que a disciplina se expande e onde se estabelece o

paradigma hegemônico.

Os cursos autônomos de RI começaram a surgir há pouco mais de

trinta anos. O primeiro deles em 1974, na Universidade de Brasília

(UnB). A “explosão” dos cursos de RI se dá a partir de 1995

(MYIAMOTO, 2003, p. 113). Em 2003, já havia em torno de sessen-

ta cursos no país. Atualmente, existem 89 cursos autorizados pelo

Ministério da Educação.4

Em apenas cinco anos, cresceu 30%.

Norma Breda dos Santos e Fúlvio Eduardo

Fonseca

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A outra faceta dessa realidade, que também mostra uma sensível pro-

gressão, é o crescimento no número de programas de pós-graduação

(PG) em RI no Brasil, que quadruplicou, passando de dois progra-

mas, na década de 1980, para oito, em 2008. Vê-se, no entanto, que o

crescimento da PG em RI, embora expressivo, é muito mais modesto

do que o dos cursos em nível de graduação. Qual seria a proporção

adequada entre o número de cursos de graduação e o de PG?

A criação da Associação Brasileira de Relações Internacionais

(ABRI), em 2005, é também manifestação do visível crescimento de

RI no país. A ABRI realizou o seu primeiro encontro nacional em ju-

lho de 2007. Nele, estiveram presentes muitos alunos de graduação,

assim como pesquisadores de todos os programas de PG em RI de

todo o Brasil.

Este trabalho analisa a PG em RI no Brasil e está dividido em duas

partes principais. A primeira trata da evolução, do crescimento e das

políticas de indução para a criação e a consolidação da PG em RI. A

segunda aborda principalmente questões relativas à avaliação desses

programas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ní-

vel Superior (Capes). O trabalho chama a atenção para o ritmo de

crescimento da PG em RI, que tem entre as suas missões a formação

dos docentes para a graduação. O número de programas de PG exis-

tentes no país mostra-se insuficiente para formar os docentes para le-

cionar em nível de graduação, assim como para a formação de douto-

res na área, já que só existem dois cursos de doutorado no país. Da

mesma maneira, é necessário repensar a distribuição de recursos pe-

las agências de fomento a fim de responder adequadamente às de-

mandas da pesquisa na área.

Embora se tenha feito um esforço para traçar com algum rigor e crité-

rio a dinâmica da área, este trabalho não deixa de ter um caráter ex-

ploratório, e visa, sobretudo, o estabelecimento de uma reflexão que

deverá ser aprofundada.

A Pós-Graduação em Relações Internacionais

no Brasil

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RI: O Crescimento e a Maior

Visibilidade da Área

Quando observamos a história da PG em RI no Brasil, o traço que

logo chama a atenção é o de um crescimento significativo no número

de programas nos últimos cinco anos. Em primeiro lugar, esse cresci-

mento tem a ver indubitavelmente com o que tem sido conhecido

como globalização,5

que tem promovido um importante aumento do

grau de complexidade dos instrumentos analíticos das ciências soci-

ais e humanas, que procuram dar conta de sua multidimensionalida-

de. Todas as áreas de conhecimento são evidentemente objeto do im-

pacto da globalização, mas a disciplina de RI, cuja institucionaliza-

ção acadêmica esteve historicamente centrada no estudo das relações

entre Estados-nação e na preocupação de evitar a guerra entre eles, é

certamente um campo privilegiado de reflexão sobre as transforma-

ções contemporâneas, que indicam uma crescente superação da cen-

tralização do poder estatal e da consequente erosão de sua soberania,

assim como a atenção aos múltiplos atores não estatais.

O crescimento do número de programas de PG em RI no Brasil tem a

ver ainda com pelo menos três fatores: (i) o espetacular aumento do

número de cursos de graduação em RI, (ii) o contexto geral de cresci-

mento da PG no país e (iii) o processo de indução de formação de

recursos humanos.

O Gráfico 1 a seguir mostra claramente duas características do gran-

de crescimento do número de cursos de graduação em RI: sua distri-

buição geográfica em termos regionais e capital interior dos Estados.

A região Sudeste concentra mais da metade de todos os cursos de gra-

duação, de cujo total, por sua vez, mais da metade estão localizados

em capitais (34 cursos no interior e 55 nas capitais). Essas caracterís-

ticas não são particulares à área de RI. No Brasil, a marcante assime-

tria na distribuição regional e entre as capitais e o interior dos Estados

Norma Breda dos Santos e Fúlvio Eduardo

Fonseca

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nos cursos de graduação é comum a praticamente todas as áreas de

conhecimento.

O grande crescimento da PG no Brasil é também um fenômeno bas-

tante claro. Em 1996, existiam em torno de mil programas de PG. Em

menos de dez anos, este número dobrou: em 2004, já existiam quase

2 mil programas. Em 2008, este número chegou a 2.581.6

A política de indução ao desenvolvimento da PG especificamente em

RI se deu pelo lançamento de dois programas. Em 2000, a Capes pu-

blicou o edital do Programa San Tiago Dantas de Apoio ao Ensino de

Relações Internacionais (STD). O Ministério da Ciência e Tecnolo-

gia e o Ministério das Relações Exteriores (MRE ou Itamaraty) lan-

çaram em 2006 o Programa Renato Archer de Apoio à Pesquisa em

Relações Internacionais (RA).

A Pós-Graduação em Relações Internacionais

no Brasil

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0

10

20

30

40

50

S

SE

CO

NE

N

Gráfico 1

Graduação em RI por Região

SE: 50

S: 20

CO: 10

N: 3

NE: 6

Total: 89

Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Disponível em:

<http://www.educacaosuperior.inep.gov.br/funcional/lista_cursos.asp>. Acesso em: 27 nov. 2008.

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O STD foi executado de 2002 até o final de 2007.7

Ao edital, pude-

ram concorrer instituições públicas de ensino superior, admitindo-se

a parceria com instituições privadas, na qualidade de associadas.

Graças ao STD, foram criados três programas de PG em RI:8

(i) o

programa Tricampi envolvendo a Universidade Estadual Paulista

(Unesp), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Ponti-

fícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); (ii) o programa

da Universidade Federal Fluminense (UFF); e (iii) o da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O programa da UnB tam-

bém foi contemplado pelo STD, com o objetivo de promover a sua

“consolidação”. Os programas puderam custear vários itens, como a

compra de computadores e de livros, missões técnicas, vinda de

professor visitante e bolsas de estudo para mestrado e doutorado.

O RA visa a formação de redes de pesquisa em temas considerados

prioritários na política externa brasileira: paz e segurança internacio-

nal; estudos sobre pólos de poder; América do Sul; desenvolvimento,

ciência e inovação tecnológica; normatividade e governança interna-

Norma Breda dos Santos e Fúlvio Eduardo

Fonseca

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1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

Gráfico 2

Fonte: Capes. Disponível em: <www.capes.gov.br/sobre-a-capes/historia-e-missao>. Acesso em: 27

nov. 2008.

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cional. Diferentemente do STD, o RA tem como alvo os pesquisado-

res da área de RI, e não diretamente os programas de pós-graduação.

Está sendo executado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento

Científico e Tecnológico (CNPq). De dezessete propostas, cinco fo-

ram selecionadas9

e receberão recursos oriundos do Fundo Setorial

de Infra-Estrutura e do Fundo Setorial Verde Amarelo, a serem

repassados em quatro parcelas anuais em 2006, 2007, 2008 e 2009.

A implementação do RA demonstra que o CNPq, como a Capes, tem

reconhecido RI como campo de conhecimento específico. Além dis-

so, no projeto da nova Tabela das Áreas do Conhecimento, proposto

pela Comissão Especial de Estudos, constituída pelo CNPq, Capes e

a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), as RI estão inscritas

de forma independente da Ciência Política (CP).

Na década de 1970, quando a PG foi estabelecida no Brasil, um rela-

tório do CNPq sobre a área de CP registrava que

[a] área de política internacional é quase intei-

ramente descuidada, com 2 projetos. [...] O

abandono em que se encontra a área de relações

internacionais encontra outro tipo de explica-

ção. Primeiro, [...] o interesse por esta área ten-

de a ser maior em países que desempenham um

papel muito ativo no sistema internacional, que

não tem sido, historicamente, o caso brasileiro.

Segundo, a própria excelência do corpo diplo-

mático brasileiro, formado através do curso do

Itamarati [sic], fez com que o estudo de ques-

tões internacionais fosse desenvolvido entre

nós em estreita proximidade com o serviço di-

plomático e afastado da universidade. Esta ten-

dência irá certamente se alterando, na medida

em que a participação do Brasil no cenário in-

ternacional aumente, e a relevância interna do

sistema internacional passe a ser objeto de

atenção mais geral (CNPq, 1977, p. 12-13,

grifos nossos).

A Pós-Graduação em Relações Internacionais

no Brasil

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Ou seja, o padrão de inserção internacional do Brasil na década de

1970 e o que buscava a política externa brasileira se refletiam na mais

do que modesta relevância que se conferia ao estudo do sistema inter-

nacional e da atuação internacional do Brasil. O país buscava autono-

mia e distanciamento com relação às injunções da política internaci-

onal “ditada” pelas grandes potências. Adicionalmente, o estudo de

RI era tido como praticamente desnecessário, já que, historicamente,

a política externa brasileira era conduzida com competência pelo

Itamaraty. No entanto, esse mesmo relatório de 1977 previa mudan-

ças, que se dariam ao longo do tempo.

Na verdade, como aponta Gelson Fonseca Jr. (1981, p. i), já na déca-

da de 1970,

[...] temas diplomáticos brasileiros transforma-

ram-se em temas de estudos acadêmicos; fo-

ram “absorvidos” pela academia. [...] Numa

comparação entre a produção intelectual sobre

política externa nos anos 50 e 60 com a dos

anos 70, o que ressalta é o profissionalismo, a

scholarship destes últimos”.

De fato, como se viu, ao longo das décadas, não é difícil constatar o

crescente interesse acadêmico pela área de RI. Nos anos 1970, surge

uma geração de pesquisadores acadêmicos especialmente interessa-

dos pela política externa brasileira em RI. Entre eles, Maria Regina

Soares de Lima, Celso Furtado, Alexandre Barros, Otavio Ianni e

Carlos Estêvão Martins, Moniz Bandeira, Roberto Gambini e Ger-

son Moura (CNPq, 1977, p. 12-13). Os estudos sobre política externa

ainda se sobressaem nos programas de PG em RI atualmente existen-

tes. Vários deles contemplam os “Estudos de Política Externa” como

Linha de Pesquisa (LP), a exemplo do programa da Pontifícia Uni-

versidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da UnB. Na UnB,

existem duas LPs dedicadas à política externa: “Estudos de Política

Externa” e “História da Política Exterior do Brasil”. O programa

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Tricampi tem uma Área de Concentração (AC) sobre “Política

Externa”.

Em sentido inverso, constata-se certa “academização” dos estudos

realizados pelos diplomatas brasileiros. Primeiramente, esta acade-

mização resulta do interesse pessoal de alguns diplomatas pela pes-

quisa ou está ligada à própria formação do(a)s diplomatas e à sua as-

censão profissional. Para serem candidato(a)s a embaixador(a), o(a)s

diplomatas devem seguir o Curso de Altos Estudos (CAE), no final

do qual apresentam uma tese relativa a tema de interesse da diploma-

cia brasileira. Várias dessas teses foram e estão sendo publicadas.

Em segundo lugar, o que diz respeito mais diretamente à PG, desde

2004, os aprovados no concurso de admissão para a carreira diplomá-

tica são automaticamente inscritos no mestrado profissionalizante

em Diplomacia do Instituto Rio Branco (IRBr). O Instituto oferece o

único mestrado profissionalizante avaliado pelo Comitê de Ciência

Política e Relações Internacionais (CCPRI), da Capes. É o mestrado

que tem o número mais alto de alunos ingressos a cada ano. Em 2006,

registrava cinquenta alunos, número que deve dobrar nos próximos

anos, enquanto os demais programas selecionam, para o mestrado,

em torno de vinte candidatos a cada ano.10

A participação do IRBr no

CCPRI, combinada a outras iniciativas como o RA, provavelmente

resultará no incremento da interlocução entre o Itamaraty e a acade-

mia.

Os primeiros programas autônomos de PG em RI do Brasil foram cri-

ados na década de 1980: o primeiro na UnB, em 1984, e o segundo na

PUC-Rio, em 1987. É importante mencionar, todavia, que tanto na

UnB quanto na PUC-Rio a pesquisa na área tem precedentes institu-

cionais importantes. Na UnB, já em 1976, havia sido criada no pro-

grama de PG em História uma AC em “História das Relações Inter-

nacionais”. Essa AC passou a integrar o Instituto de Relações Inter-

nacionais (IREL) da UnB quando este foi criado, em 2002.11

Na

PUC-Rio, foi criado em 1979 o Instituto de Relações Internacionais

A Pós-Graduação em Relações Internacionais

no Brasil

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(IRI) com o objetivo de desenvolver pesquisas e promover debates na

área de RI. O ensino tornou-se parte das atividades do IRI em 1983,

quando passou a constituir uma AC do mestrado em Ciências Jurídi-

cas.12

Outros precedentes importantes são o Centro de Estudos Afro-Asiá-

ticos (CEAA) e o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Ja-

neiro (Iuperj), da Universidade Candido Mendes (então Centro Uni-

versitário Candido Mendes). O CEAA foi criado em 1973, e a PG em

CP do Iuperj oferecia na década de 1970 três disciplinas de RI

(CNPq, 1977, p. 113-114).

Segundo um diagnóstico feito pela Capes em 2004, a maior parte dos

cursos da Área de Humanas está nas regiões Sudeste e Sul: são 72%

dos mestrados e 80% dos doutorados, enquanto na Região Norte os

percentuais chegam a 4% de mestrados e 2% de doutorados. Durante

vinte anos, os programas de PG em RI da UnB e da PUC-Rio eram os

únicos existentes no país. Atualmente, os oito programas de PG em

RI concentram-se na região Sul e Sudeste, confirmando o padrão

geral de assimetria regional.

Enfim, a PUC-Rio criou seu doutorado em 2001, e a UnB, em 2002,

os quais continuam a ser os únicos existentes em RI no Brasil. Esse

número é, sem dúvida, baixo, principalmente quando se considera,

de um lado, o expressivo crescimento no número de cursos de gradu-

ação em RI, acompanhado, ainda que modestamente, pela criação de

mestrados em RI; e de outro, comparativamente, que existem dez

programas de PG em CP que oferecem doutorado.13

A Avaliação e a Pesquisa

Viu-se que é na década de 1970 que, no Brasil, surge uma geração de

pesquisadores acadêmicos interessados em RI. Em 1977, quando o

CNPq dá início ao processo de avaliação das áreas de conhecimento,

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fica patente a pouca importância dada ao estudo do sistema internaci-

onal e da política externa brasileira. Os pesquisadores da área não

têm a visibilidade que ganhariam ao longo dos anos. Registra-se uma

remota noção do que seria o objeto de interesse de RI, área que não

mostra grande sofisticação. É verdade que o relatório do CNPq sobre

a evolução da área de CP reflete sobretudo a recepção do modelo be-

haviorista norte-americano, prevalecente naquele momento, cujos

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Tabela 1

Comitê de CP e RI – Programas por Ordem de Criação (1969-2008)

Instituição Programa Criação

1. Iuperj Ciência Política 1969

2. UFMG Ciência Política 1969

3. Unicamp Ciência Política 1974

4. UFRGS Ciência Política 1973

5. USP Ciência Política 1974

6. UFPE Ciência Política 1982

7. UnB Ciência Política 1984

8. UnB Relações Internacionais 1984

9. PUC-Rio Relações Internacionais 1987

10. UFF Ciência Política 1993

11. UFRJ Ciência Política 2001

12. IRBr Diplomacia 2002

13. Tricampi Relações Internacionais (Unesp/Unicamp/PUC-SP) 2003

14. UFRGS Relações Internacionais 2003

15. UFF Relações Internacionais 2003

16. PUC-Minas Relações Internacionais 2006

17. UEPB Relações Internacionais 2008

18. Unieuro Direitos Humanos, Cidadania e Violência 2008

19. UFSCar Ciência Política 2008

20. FUFPI Ciência Política 2008

21. UFPE Ciência Política 2008

22. UFPA Ciência Política 2008

Fonte: Capes. Disponível em: <http://conteudoweb.capes.gov.br/conteudoweb/CadernoAvaliacao-

Servlet?acao=filtraArquivo&ano=2007&codigo_ies=&area=39>. Acesso em: 27 nov. 2008.

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parâmetros de validação científica buscavam a aproximação da obje-

tividade das ciências exatas:

[o] principal foco de atenção [dos estudos de

política internacional] é a relação entre as gran-

des potências internacionais. Estudos sobre pa-

íses mais afastados dos grandes centros mundi-

ais de decisão tendem a ser feitos por “especia-

listas da área”, que passam naturalmente do es-

tudo do comportamento internacional dos paí-

ses de sua capacidade para o estudo do funcio-

namento de seus sistemas políticos e sociais.

Surge, assim, a área de estudos políticos com-

parados, que pouco a pouco se desprende da

área de política internacional para vincular-se

mais à de teoria política contemporânea. A pes-

quisa na área de política internacional tende a

ser, tradicionalmente, histórica e descritiva.

Mas também incorpora, em outra vertente, me-

todologias de tipo matemático e quantitativo,

principalmente as derivadas das teorias de jo-

gos, conflitos e coalizões (CNPq, 1977, p. 7).

Os programas de PG em RI sempre foram avaliados pelo Comitê de

Ciência Política (CCP) da Capes, que se tornou, em 2006, CCPRI. A

mudança na denominação e no funcionamento do Comitê correspon-

deu principalmente a mudanças ocorridas entre 2003 e 2005. Além

dos três programas resultantes da política de indução da Capes, pas-

saram a ser avaliados pelo Comitê nesse período o mestrado em Di-

plomacia do IRBr e o Mestrado em Integração Latino-Americana

(MILA), da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O mes-

trado do IRBr foi criado em 2002. O MILA foi criado em 1993. Em

2006, outros dois programas foram criados, compondo hoje o Comi-

tê: da Pontifícia Universidade de Minas Gerais (PUC-Minas) e do

Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos (Cebela, Rio de Ja-

neiro).14

Foram homologados em 2007 três novos programas de CP:

na Fundação Universidade Federal do Piauí (UFPI), na Universidade

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Federal do Pará (UFPA) e na Universidade Federal de São Carlos

(UFSCar). O programa do Centro Universitário Unieuro, que funcio-

nava desde 2004, passou a fazer parte do CCPRI em 2008.

O Sistema de Avaliação da PG foi implantado pela Capes em 1976.

Até 1985, não existia nenhum processo informatizado de coleta e

processamento das informações (BATISTA, 2006, p. 46). Continua-

mente novas polêmicas são criadas em torno da importância relativa

de cada critério da avaliação, mas, mesmo entre seus mais ferrenhos

críticos, existe grande consenso sobre a importância da avaliação. Os

critérios comuns aos programas são basicamente os seguintes: arti-

culação entre AC e LP; titulação dos professores; proporção entre o

número de docentes permanentes e o número de dissertações e teses

concluídas; produção bibliográfica dos professores; apresentações

de trabalhos em congressos, conferências ou seminários internacio-

nais; número de dissertações e teses concluídas; tempo médio de titu-

lação dos alunos; e produção bibliográfica dos alunos.

No biênio 1996-1997, a Capes redefiniu sua política com relação à

PG e alterou sua ordem de prioridades. Nesse sentido,

[...] o destaque aos cursos de excelência, com-

preendida como inserção internacional, e a or-

ganicidade entre linhas de pesquisa, projetos,

estrutura curricular, publicações, teses e disser-

tações não deixam dúvidas quanto à finalidade

esperada da pós-graduação: a de ser, priorita-

riamente, locus de produção de conhecimento

e de formação de pesquisadores. Da mesma

forma, a ênfase avaliativa sobre os produtos –

basicamente, a produção bibliográfica qualifi-

cada – indica a expectativa de ampla divulga-

ção dos resultados de pesquisa instalada

(HORTA; MORAES, 2005, p. 95, grifos

nossos).15

A Pós-Graduação em Relações Internacionais

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Ou seja, como regra geral, a pesquisa e as publicações científicas são

as atividades mais valorizadas na avaliação de todas as áreas. O ensi-

no, a extensão, a cooperação com setores empresariais e governa-

mentais, assim como a interação com a sociedade, têm tido menor

peso. A história do CCPRI começa com uma composição de cinco

programas de CP. Viu-se que, até 2005, o Comitê denominava-se

CCP e que, entre 1976 a 1984, não existia nenhum programa de RI no

país. Os programas de CP contemplavam marginalmente a área de

RI, então entendida como uma subárea de CP, e em programas de ou-

tras áreas alguns pesquisadores também se dedicavam a temas liga-

dos a RI, como hoje ainda acontece. A crescente importância da área

de RI refletiu-se na expansão do Comitê ao longo do tempo e

certamente é dos aspectos que mais marcaram a sua história.

Provavelmente, os momentos mais difíceis no funcionamento do

CCPRI aconteceram em 2004 e 2005. Em 2004, as notas de vários

programas, relativas ao triênio 2001-2002-2003, foram rebaixadas.

Em 2005, ajustes no funcionamento do Comitê foram objeto de dis-

cussão e preocupação de todos os programas.

Os programas de CP do Iuperj e da USP, que estavam na faixa de “ex-

celência” (programas com notas 6 e 7) e que, historicamente, tinham

grande peso no Comitê, por sua antiguidade, produção científica, nú-

mero de docentes e sua atuação institucional na própria Capes,16

tive-

ram nota 5. O programa de RI da UnB passou de 5 para 4. Os progra-

mas de CP da UFMG e da UFRGS, que tinham feito, particularmente

nos dois triênios anteriores, um importante esforço de adequação aos

critérios e recomendações dos Documentos de Área elaborados pelo

Comitê, não tiveram suas notas aumentadas, continuando com nota

4. E, mais precisamente, as Fichas de Avaliação de 2001 e 2002 indi-

cavam em geral que o desempenho dos programas era “Muito Bom”.

As notas do triênio, portanto, não eram consistentes com a avaliação

continuada realizada pelo próprio Comitê. Uma boa parte dos pro-

gramas considerava as notas injustas e argumentava que o Comitê

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não tinha critérios bem definidos. Dos dez programas, cinco entra-

ram com recurso para que a nota fosse revista, seja porque haviam

sido rebaixadas – Iuperj, USP e UnB –, seja porque suas notas não

haviam aumentado – UFMG e UFRGS.

Esse resultado intensificou as tensões que vinham sendo vividas pe-

los programas, que dizia respeito a especificidades do CCP, como a

relação entre o número de programas de CP e de RI e o conhecimento

e reconhecimento insuficiente da produção intelectual específica de

RI. No entanto, também tinha a ver com a insuficiência e pouca clare-

za do trabalho realizado pelo Comitê daquele triênio. Por exemplo, o

Qualis, que os Comitês de todas as áreas haviam elaborado pela pri-

meira vez justamente no triênio 2001-2002-2003, só foi divulgado

pelo CCP ao final do triênio, não cumprindo sua função de orientar a

desejada priorização da publicação dos docentes em periódicos mais

qualificados. Além disso, esse Qualis continha vários equívocos e es-

tava bastante incompleto. Enfim, as modificações gerais que a Capes

A Pós-Graduação em Relações Internacionais

no Brasil

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Tabela 2

Notas dos Programas mais Antigos do CCPRI por Triênio (1996-2006)

Programas 1998

2000

2001

2003

2004

2006

1. Iuperj Ciência Política 6 5 6

2. UFMG Ciência Política 6 4 5

3. Unicamp Ciência Política 4 4 5

4. UFRGS Ciência Política 4 4 5

5. USP Ciência Política 6 5 6

6. UFPE Ciência Política 4 4 5

7. UnB Ciência Política 4 4 4

8. UnB Relações

Internacionais

5 4 5

9. PUC-Rio Relações

Internacionais

5 5 5

10. UFF Ciência Política 3 5 3

Fonte: Capes. Disponível em: <http://www.capes.gov.br>. Acesso em: 27 nov. 2008.

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introduzira desde 1996-1997 na avaliação da PG também tiveram

papel importante nesse contexto.17

O impacto das notas do triênio 2001-2002-2003, que atingia a maior

parte dos programas avaliados pelo CCP, provocou uma transforma-

ção na dinâmica do relacionamento entre os programas, que volta-

ram a se reunir no Fórum de Coordenadores, criado dois anos antes.

Os coordenadores reuniram-se algumas vezes e acordaram posições

comuns, tornando mais próximo também, de forma geral, o relacio-

namento entre os programas.

Naquele momento, muito em função dessa situação – as incertezas

sobre o futuro imediato do funcionamento do Comitê –, os progra-

mas defendiam duas alternativas. A primeira, defendida por vários

docentes ligados à área de RI, era a de criar um Comitê independente

para RI. A segunda era a de que as duas áreas, CP e RI, continuassem

no mesmo Comitê, com a alteração na organização da avaliação apri-

morando os critérios e a transparência da avaliação, e uma eventual

mudança na própria designação do Comitê, que passaria a ser deno-

minado de “Ciência Política e Relações Internacionais”. Os que

defendiam essa segunda opção temiam pelo enfraquecimento do

Comitê, caso este fosse fragmentado.

Ao longo do segundo semestre de 2004 e do ano de 2005, algumas re-

uniões foram realizadas com o diretor de Avaliação da Capes. Dessas

reuniões, participaram os programas da UnB, PUC-Rio, IRBr e Tri-

campi, que já estavam sendo avaliados pelo CCPRI. Também partici-

param os coordenadores dos programas de PG em RI da UFRGS e da

UFF, então avaliados pelo Comitê Multidisciplinar. Nessas reuniões,

o diretor de Avaliação da Capes indicou sua preferência pela continu-

idade da composição do Comitê e pela busca da melhora em seu fun-

cionamento, assim como a preocupação de evitar os problemas do

triênio 2003-2004-2005, sem, no entanto, esclarecer quais seriam as

mudanças que tinha em mente.

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No triênio 2004-2005-2006, avanços positivos se deram na avaliação

dos programas. Um deles foi a nova denominação do Comitê, em

2006, para CCPRI. Nesse triênio o Qualis de CP e de RI foi revisado,

para corrigir problemas existentes e incluir periódicos de relevância.

As duas áreas passaram a ser representadas no Comitê de forma equi-

tativa. Os critérios principais que pautaram a definição dos conceitos

foram “a valorização da produção individual de livros e periódicos

internacionais e nacionais” e “a valorização do esforço de internacio-

nalização atualmente em curso nos programas” de CP e de RI. O Do-

cumento de Área define com clareza e especificamente os critérios

para cada nota.

O fomento à pesquisa pelo CNPq em RI tem avançado e recuado. De

um lado, vê-se progresso com relação ao reconhecimento de RI, que

foi contemplada com o RA. Observa-se também que na proposta

“Tabela de Áreas do Conhecimento”, que está em discussão desde

2005, RI aparece como uma “Área” da “Grande Área” de Ciências

Humanas. Nessa versão preliminar, “Ciências Humanas”, uma das

“Grandes Áreas”, inclui doze “Áreas”: 1. Filosofia, 2. Sociologia, 3.

Antropologia, 4. Arqueologia, 5. História, 6. História do Conheci-

mento, 7. Geografia, 8. Psicologia, 9. Educação, 10. Ciência Política,

11. Relações Internacionais, 12. Teologia.18

De outro lado, na atual “Grande Área” de Ciências Humanas, RI está

“embutida” em CP. Entretanto, o Comitê de Assessoramento do

CNPq19

é composto pela Antropologia, Arqueologia, CP, RI, Direito

e Sociologia, ou seja, são seis disciplinas em um só Comitê. De 2005

a 2008, um dos três representantes de CP era um pesquisador de RI.

Os atuais representantes são todos da CP: um da Universidade Fede-

ral da Bahia (UFBA), dois do Iuperj (um titular e um suplente) e um

da UnB. Caminhou-se, pois, em sentido inverso do esperado, não

contemplando RI na representação de CP. Desde julho de 2008, as

solicitações de bolsas de produtividade em pesquisa (bolsas PQ),

bolsas especiais no país e exterior, auxílio viagem e demais auxílios

A Pós-Graduação em Relações Internacionais

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do CNPq são julgados por três pesquisadores com clara inserção na

área de CP.

As tabelas e gráficos abaixo mostram a participação dos docentes de

RI e de CP no fomento do CNPq. A Tabela 3 mostra que o maior nú-

mero de pesquisadores se encontra na base da ordem e que, portanto,

o número de pesquisadores mais jovens, pesquisadores nível II, é

bem maior do que os pesquisadores nos demais níveis – I-D, I-C, I-B

e I-A. Como o número de pesquisadores I-A é relativamente próximo

entre RI e CP (5 para 8), enquanto em todos os demais níveis a dife-

rença é muito acentuada (3 para 11, 0 para 6, 1 para 6 e 15 para 36), é

possível afirmar que a substantiva expansão de RI – número de cur-

sos de graduação e, em menor medida, número de mestrado – não se

vê refletida na distribuição de bolsas de produtividade. Essa dispari-

dade fica ainda mais flagrante nos Gráficos 3 e 4. As colunas que re-

presentam o número de bolsistas PQ indicam que o número de con-

cessões se encontra particularmente defasado. Embora não se consi-

dere o número de solicitações de bolsas por pesquisadores de RI e CP,

parece plausível considerar que exista uma maior aproximação nes-

ses números.

Tabela 3

Pesquisadores de RI e CP com Bolsa PQ – 2008 – Por Nível

RI CP

I-A 5 8

I-B 3 11

I-C 0 6

I-D 1 6

II 15 36

Total 24 67

Fonte: CNPq. Disponível em: <http://plsql1.cnpq.br/divulg/RESULTADO_PQ_102003.curso>.

Acesso em: 27 nov. 2008.

Norma Breda dos Santos e Fúlvio Eduardo

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370 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 32, no 2, maio/agosto 2009

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A Tabela 4 e o Gráfico 4 confirmam a marcante concentração dos

pesquisadores, tanto de RI quanto de CP, na região Sudeste e, em me-

nor medida, na região Sul. Impressiona o fato de que não existe um

único pesquisador na região Norte. Com essas curvas tão assimétri-

A Pós-Graduação em Relações Internacionais

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0

5

10

15

20

25

30

35

40

IA IB IC ID II

CP

RI

Gráfico 3

Pesquisadores de RI e CP com Bolsa PQ – 2008 – Por Nível

Fonte: CNPq. Disponível em: <http://plsql1.cnpq.br/divulg/RESULTADO_PQ_102003.curso>. Aces-

so em: 27 nov. 2008.

0

10

20

30

40

50

S SE CO NE N

CP

RI

Gráfico 4

Pesquisadores de RI e CP com Bolsa PQ – 2008 – Por Região

Fonte: CNPq. Disponível em: <http://efomento.cnpq.br/efomento/distribuicaoGeografica/distribuicao-

Geografica.do?metodo=apresentar>. Acesso em: 27 nov. 2008.

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cas, é possível supor que tais proporções irão se reproduzir futura-

mente caso não se crie uma política de indução que modifique essa

tendência. Finalmente, a Tabela 5 e o Gráfico 5 mostram que os nú-

meros de CP continuam muito superiores aos de RI (praticamente o

dobro).

Tabela 4

Pesquisadores de RI e CP com Bolsa PQ – 2008 – Por Região

Bolsistas PQ

RI CP

S 3 11

SE 16 46

CO 3 5

NE 2 5

N 0 0

Fonte: CNPq. Disponível em: <http://efomento.cnpq.br/efomento/distribuicaoGeografica/distribui-

caoGeografica.do?metodo=apresentar>. Acesso em: 27 nov. 2008.

Tabela 5

Projetos de RI e CP apoiados pelo Edital Universal – 2002-2007

RI CP

2002 7 23

2004 7 11

2006 13 25

2007 18 40

Fonte: CNPq. Disponível em: <http://www.cnpq.br/resultados/index.htm>. Acesso em: 27 nov.

2008.

As bolsas de Produtividade em Pesquisa são, reconhecidamente, a

modalidade mais competitiva do CNPq, conferindo ao pesquisador

um diferencial de prestígio que o distingue na comunidade científica.

Os critérios de concessão são definidos pelos próprios comitês por

um período de três anos, ao fim dos quais podem ser modificados. No

caso do comitê que julga a demanda de Relações Internacionais e

Ciência Política, os critérios mínimos para análise da proposta são:

estar vinculado a programa de PG e/ou a grupo de pesquisa consoli-

Norma Breda dos Santos e Fúlvio Eduardo

Fonseca

372 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 32, no 2, maio/agosto 2009

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

2 – Mai/Ago 2009

1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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dado, constante do Diretório de Pesquisa do CNPq; ter produção aca-

dêmica qualificada e capacidade de formação de pesquisadores (es-

pecialmente nos últimos cinco anos); e apresentar projeto de pesqui-

sa que venha a ser executado ao longo do período de vigência da bol-

sa. Além desses, são requisitos mínimos para a classificação no nível

II: ter publicado pelo menos um artigo em periódico indexado pelo

Qualis, nacional/internacional A, e ter orientado pelo menos duas

dissertações de mestrado quando vinculado a programa de PG.20

A cada ano, a demanda por bolsas de Produtividade em Pesquisa tor-

na-se mais qualificada e, considerando que cotas adicionais não são

frequentes, é bastante comum o pesquisador ter o mérito de seu pro-

jeto reconhecido pelo Comitê, mas ser classificado em uma priorida-

de que não permite o atendimento de sua solicitação de bolsa.21

Ain-

da que os critérios elencados contemplem o conjunto de publica-

ções/orientações/projetos, o item de maior relevância tem sido a pro-

dutividade do proponente, materializada em artigos que apareçam

em periódicos prestigiados da área. Assim, no último julgamento de

A Pós-Graduação em Relações Internacionais

no Brasil

373

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

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5

10

15

20

25

30

35

40

45

2002 2004 2006 2007

CP

RI

Gráfico 5

Projetos Apoiados pelo Edital Universal – 2002-2007

Fonte: CNPq. Disponível em: <http://www.cnpq.br/resultados/index.htm>. Acesso em: 27 nov. 2008.

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Bolsas de Produtividade, ocorrido entre os dias 29 de outubro e 1o

de

novembro de 2007, seis bolsistas de CP/RI não solicitaram renova-

ção, sendo três de nível II, um de nível I-C e dois bolsistas de nível

I-A, o que totalizou oito bolsas nível II que puderam ser realocadas.

Ao tomar-se como parâmetro os quatro pesquisadores de RI que re-

ceberam quatro dessas oito bolsas, verifica-se que dois deles publica-

ram sete artigos em revistas acadêmicas e os outros dois, mais de uma

dezena, o que denota um nível de produção muito superior ao

mínimo exigido.22

Considerações Finais

A visão panorâmica que se buscou traçar no presente artigo contem-

plou basicamente facetas do crescimento do interesse geral e acadê-

mico pela área de RI. Viu-se que a avaliação dos programas de PG em

CP e RI da Capes se beneficiou no último triênio (2004-2005-2006)

de mudanças importantes que trouxeram maior legitimidade ao pró-

prio processo de avaliação. O antigo Comitê de Ciência Política apa-

rece agora como Comitê de Ciência Política e Relações Internacio-

nais. Apesar dos avanços apontados do ponto de vista da representa-

ção institucional no CNPq, a questão preocupante parece ser a recen-

te indicação de três representantes da área de CP, sem contemplar RI,

para o Comitê de Assessoramento de Ciências Sociais.

Observou-se, mais precisamente, o considerável crescimento do nú-

mero de cursos de graduação que, em cinco anos, cresceu 30%, en-

quanto o número de programas de pós-graduação em RI quadrupli-

cou em vinte anos. Se a formação de docentes para a graduação está

sendo em certa medida atendida pelo crescimento, mesmo que insu-

ficiente, do número de mestrados em RI, causa preocupação o peque-

no número de cursos de doutorado – apenas dois – na área. Com uma

perspectiva otimista, poderíamos supor que candidatos ao doutorado

em RI têm sido financiados para estudar no exterior a fim de respon-

der a essa demanda, ou seja, para formar os docentes e pesquisadores

Norma Breda dos Santos e Fúlvio Eduardo

Fonseca

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Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

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que formarão mestres em RI nos próximos anos. Tudo leva a crer que

estamos diante de uma situação que exige que as agências de fomen-

to, sobretudo a Capes e o CNPq, repensem a distribuição de recursos

a fim de responder adequadamente às necessidades evidenciadas.

Notas

1. Sobre a questão, ver International theory: positivism & beyond, livro pu-

blicado em 1996 para comemorar os 75 anos da criação do primeiro Departa-

mento de Política Internacional, na Universidade de Gales. A obra faz uma re-

flexão sobre o estado da arte na área de RI. A propósito do caráter mitificador da

explicação sobre a criação da disciplina, vale citar o comentário crítico de Ken

Booth (1996, p. 328), organizador do livro: “Mitos não são facilmente ignora-

dos e, no geral, eu acredito que eles tendem a compreender a condição humana

de maneira mais primitiva do que complexa. Esse tem sido o caso dos mitos fun-

dadores do nosso objeto de estudo. Eles ajudaram a disciplinar a disciplina”. As

citações de originais em língua estrangeira foram livremente traduzidas para

este artigo.

2. Sobre o desenvolvimento da área no Brasil, além de Lima (2001), ver: Fon-

seca Jr. (1981, 1989), Cheibub (1981), Lima e Cheibub (1983), Barros (1985),

Cervo (1992), Almeida (1993), Myiamoto (1999), Herz (2002), Breda dos San-

tos (2002, 2005), Lessa (2005).

3. Ver o interessante trabalho de Emerson Maione de Souza (2006) sobre os

novos debates teóricos e contribuições analíticas da Escola Inglesa.

4. O número atualizado de cursos pode ser encontrado em: <http://www.edu-

cacaosuperior.inep.gov.br/>. Acesso em: 28 jul. 2008. Myiamoto (2003) faz um

balanço crítico sobre o ensino de graduação em RI no Brasil.

5. Held et al. (1999) e Held e Mcgrew (2007) têm conseguido sintetizar em

boa medida os vários aspectos do debate sobre a globalização de interesse para

RI.

6. Os dados considerados no gráfico foram atualizados pela Capes em

12/02/2008. Ver: <http://conteudoweb.capes.gov.br/conteudoweb/ProjetoRe-

lacaoCursosServlet?acao=pesquisarGrandeArea>. Acesso em: 28 jul. 2008.

A Pós-Graduação em Relações Internacionais

no Brasil

375

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

2 – Mai/Ago 2009

1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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7. A previsão inicial do tempo de execução dos projetos envolvidos no STD

era de quatro anos. Em 2005, no entanto, a Capes deferiu a solicitação dos pro-

gramas envolvidos e prorrogou o STD por mais dois anos.

8. Sobre o programa STD, ver: <http://www.capes.gov.br/bolsas/especia-

is/san_tiago.html>. Acesso em: 28 jul. 2008.

9. Ver: <http://memoria.cnpq.br/noticias/2006/20060602.htm>. Acesso em:

28 jul. 2008. Os cinco projetos selecionados, bem como as instituições que os li-

deram, são os seguintes: “Parcerias estratégicas do Brasil: a construção do con-

ceito e as experiências em curso” (UnB); “Expansão, renovação e fragmentação

das agendas e atores de política externa” (PUC-Rio); “Rede de pesquisa sobre

paz e segurança internacional” (UFRGS); “A política externa brasileira e os de-

safios do desenvolvimento dos países menos avançados: o caso do Haiti”

(UFSM); e “Estados Unidos: impactos de suas políticas para a reconfiguração

do sistema internacional” (Unesp).

10. Desde 2006, o IRBr tem selecionado em torno de cem candidatos para a

carreira de diplomacia. Até então, eram selecionados por volta de 35. A partir de

2010, quando o número de diplomatas no MRE atingir o que prevê a Lei no

11.440, de 29 de dezembro de 2006, provavelmente o número de candidatos se-

lecionados ficará em torno de 35 novamente.

11. Para indicar a importância dessa experiência, basta mencionar que, de

1978 ao final de 2002, das 168 dissertações defendidas no programa de PG em

História, 53 estavam ligadas à área de concentração de História das Relações

Internacionais, ou seja, praticamente 1/3 do total, sendo que, no período, o pro-

grama quase sempre esteve organizado em três AC. Ver: <http://www.unb.

br/ih/novo_portal/portal_his/pos_graduacao/arquivos/relacao_de_

teses_e_dissertacoes.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2008.

12. Ver: <http://www.puc-rio.br/sobrepuc/depto/iri/apresenta.html>. Acesso

em: 28 jul. 2008.

13. Nas seguintes instituições: Iuperj, USP, UFMG, Unicamp, UFRGS, UnB,

UFPE e UFSCar.

14. O MILA e o mestrado do Cebela foram descredenciados pela Capes em

2007.

15. Os autores remetem o leitor a Kuenzer e Moraes (2006). No triênio

1998-1999-2000, o Conselho Técnico Científico (CTC), que basicamente ho-

mologava a avaliação realizada pelos comitês de área, passou a “avaliar a avali-

ação” dos comitês, alterando em vários casos as notas resultantes daquela avali-

ação. “Verificou-se, com nitidez, o que possivelmente já podia se antever em de-

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376 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 32, no 2, maio/agosto 2009

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Vol. 31 no

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cisões anteriores do CTC: os níveis 6 e 7 foram definidos exclusivamente a par-

tir de um único parâmetro, qual seja, o da produção científica internacional, e

basicamente em periódicos estrangeiros. [...] Aquele foi um momento particu-

lar de luta por hegemonia no interior do CTC – a de alcançar o mainstream epis-

temológico que asseguraria mais verbas e prestígio – e, nesse esforço, lançou-se

mão de forte desqualificação epistemológica das áreas de ciências humanas e

recorreu-se a ásperos enfrentamentos” (HORTA; MORAES, 2005, p. 96).

16. Os Comitês que avaliaram os programas nos triênios 1998-1999-2000 e

2001-2002-2003 foram presididos por docentes desses dois programas.

17. O Qualis, segundo a Capes, é “uma lista de veículos utilizados para a di-

vulgação da produção intelectual dos programas de pós-graduação stricto sensu

(mestrado e doutorado), classificados quanto ao âmbito de circulação (Local,

Nacional, Internacional) e à qualidade (A, B, C)”. Ver: <http://www.capes.gov.

br/avaliacao/webqualis.html>. Acesso em: 28 jul. 2008.

18. Ver: <http://www.memoria.cnpq.br/areas/cee/proposta.htm>. Acesso

em: 28 jul. 2008.

19. Instância formada por membros da comunidade científica de reconhecida

liderança e competência, responsável pelo julgamento do mérito das propostas

submetidas ao CNPq. A grande área de Ciências Humanas é constituída, no

CNPq, por duas coordenações técnicas – Ciências Humanas e Ciências Sociais

Aplicadas –, a primeira contando com cinco Comitês de Assessoramento e a se-

gunda, com quatro Comitês, nos quais estão inseridas CP e RI. Sua composição

pode ser consultada em: <http://www.cnpq.br/cas/membros.htmchs>. Acesso

em: 28 jul. 2008.

20. Os critérios de julgamento do Comitê de Assessoramento de Ciências So-

ciais (CA-CS) podem ser consultados em: <http://www.cnpq.br/cas/ca-cs.

htm#criterios>. Acesso em: 28 jul. 2008.

21. Uma lista adicional de bolsas PQ referentes ao julgamento de 2007 foi di-

vulgada em 09/07/2008, contemplando todas as áreas do conhecimento:

<http://www.cnpq.br/resultados/2008/pq_adicional.htm>. Acesso em: 28 jul.

2008.

22. A lista dos pesquisadores da área com bolsas em curso pode ser consultada

em: <http://plsql1.cnpq.br/divulg/RESULTADO_PQ_102003.curso>. Acesso

em: 28 jul. 2008.

A Pós-Graduação em Relações Internacionais

no Brasil

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Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

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Norma Breda dos Santos e Fúlvio Eduardo

Fonseca

378 CONTEXTO INTERNACIONAL – vol. 32, no 2, maio/agosto 2009

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Vol. 31 no

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no Brasil

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Contexto Internacional (PUC)

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Resumo

A Pós-graduação em Relações

Internacionais no Brasil

Este trabalho trata dos programas de pós-graduação em Relações Internaci-

onais no Brasil, cujo número tem crescido de forma expressiva, passando de

dois, na década de 1980, para oito, em 2008. Em sua primeira parte, são

abordados a evolução, o crescimento e as políticas de indução para a criação

e a consolidação dos programas na área. A segunda parte trata da avaliação

desses programas pela Capes e busca mapear, de forma aproximativa, a si-

tuação da área com relação ao fomento à pesquisa na Capes e no CNPq.

Palavras-chave: Pós-graduação – Relações Internacionais – Pesquisa –

Avaliação – Fomento

Abstract

Advanced Degrees in

International Relations in Brazil

This work is on advanced degrees in International Relations in Brazil,

which have grown four-fold from two in the 1980s to eight in 2008. The first

part of the paper discusses this increase in the total of degrees and public

policy incentives for the creation and consolidation of such programs. The

second part discusses the evaluation of these programs by Capes and maps

out the state of International Relations in Brazil given research incentives

from Capes and CNPq.

Keywords: Advanced Degrees – International Relations – Research –

Evaluation – Public-Policy Incentives

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Articles

The Participation of the Private Sector in the Global Environmental Governance:

Evolution, Contributions and Obstacles 215

Jose Célio Silveira Andrade

Environment and International Trade: Sustainable Relationship or Irreconcilable

Opposites? Environmental and pro-Commerce Arguments of the Debate 251

Fábio Albergaria de Queiroz

Nation-building and International Security: A Debate under Construction 285

Aureo de Toledo Gomes

Politics, Emancipation, and Humanitarianism: A Critical Reading of the English

School over the Issues of the Humanitarian Intervention 319

Marcelo Mello Valença

Advanced Degrees in International Relations in Brazil 353

Norma Breda dos Santos e Fúlvio Eduardo Fonseca

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

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1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

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Informações para Autores

1. A revista tem como objetivo a promoção e divulgação do debate acadêmico nocampo das relações internacionais.

2. Serão aceitos trabalhos inéditos em português, inglês ou espanhol.

3. A política editorial de Contexto Internacional estabelece que os trabalhos devemser de interesse acadêmico e representar uma reflexão inovadora na área de relaçõesinternacionais. Artigos que abordam temas de política internacional e que contri-buem para a compreensão da pluralidade de perspectivas presentes no meio acadê-mico são publicados.

4. Todos os artigos terão sua publicação condicionada a pareceres de especialistas.Todas as referências e citações que podem identificar os autores devem ser removi-das. Acadêmicos de diferentes países participarão deste processo.

5. Os trabalhos devem estar configurados com espaçamento duplo e salvos no pro-grama Word para Windows.

5.1 Os artigos devem ter aproximadamente 8.000 palavras e apresentar, em portu-guês e em inglês, os seguintes itens:

a) título; b) 4 palavras-chave; c) um resumo de cerca de 150 palavras; d) uma fraseem português contendo o objetivo do artigo.

5.2 Solicita-se que seja enviado, separadamente, um breve currículo do autor quecontenha a titulação, a função que exerce atualmente e as publicações recentes.

6. Para citações e referências bibliográficas, Contexto Internacional adota as regrasda Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): <http://www.abnt.org.br>.

7. As citações em língua estrangeira deverão ser traduzidas para a língua portugue-sa. As citações pequenas (até 3 linhas) devem ser inseridas no texto entre aspas du-plas e sem itálico.

As citações longas (mais de 3 linhas) devem ser destacadas com recuo de 4 cm damargem esquerda, com tipologia Arial ou Times New Roman 10, espaçamento sim-ples entre linhas e sem aspas. A referência, quando existir, deve ser incluída logoapós a citação e antes do sinal de pontuação.

8. As referências bibliográficas, quando necessárias, deverão aparecer no própriotexto, com a menção do último sobrenome do autor, acompanhada do ano da publi-cação e do número da página.

9. Toda correspondência deve ser enviada para:

Contexto Internacional / Núcleo de Pesquisa e Publicações

Instituto de Relações Internacionais (IRI/PUC-Rio)Rua Marquês de São Vicente, 225 – Vila dos Diretórios, Casa 20 – Gávea – Rio deJaneiro – RJ – 22451-900 – Brasil – [email protected]

Contexto Internacional (PUC)

Vol. 31 no

2 – Mai/Ago 2009

1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009

Page 176: Contexto Internacional 31 nº - SciELO 2_s… · Luiz Roberto de Azevedo Cunha Instituto de Relações Internacionais Diretor: João Pontes Nogueira Contexto Internacional (PUC) Vol

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1. The journal aims to promote the academic debate within the international relati-ons camp.

2. We accept unpublished original manuscripts in Portuguese, English or Spanish.

3. The journal considers manuscripts that have academic relevance, represent inno-vate approaches to the study of international relations and contribute to the unders-tanding of the plurality of perspectives debated in the academic world.

4. All manuscripts will be subjected to a review process. All references and citationsthat would identify the authors should be removed. Specialists from different coun-tries will be part of this process.

5. Manuscripts will be accepted in the following format: Word for Windows, Arialor Times New Roman types, size 12, double-spaced.

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1ª Revisão: 04.10.2009 – 2ª Revisão: 09.11.2009