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GUIA DE NEGOCIAÇÕES PONTES BRIDGES NETWORK Um Guia para as Negociações da 11ª Conferência Ministerial da OMC NÚMERO ESPECIAL BUENOS AIRES - DEZEMBRO 2017 Um guia do ICTSD para a Ministerial de Buenos Aires PESCA AGRICULTURA COMÉRCIO ELETRÔNICO DESENVOLVIMENTO GÊNERO FACILITAÇÃO DE INVESTIMENTOS SUBSÍDIOS AOS COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS SERVIÇOS

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GUIA DE NEGOCIAÇÕES PO N T E SB R I D G E S N E T W O R K

Um Guia para as Negociações da 11ª Conferência Ministerial da OMC

NÚMERO ESPECIAL BUENOS AIRES - DEZEMBRO 2017

Um guia do ICTSD para a Ministerial de Buenos Aires

PESCA

AGRICULTURA

COMÉRCIO ELETRÔNICO

DESENVOLVIMENTO

GÊNERO

FACILITAÇÃO DE INVESTIMENTOS

SUBSÍDIOS AOS COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS

SERVIÇOS

GUIA DAS NEGOCIAÇÕES PONTES | NÚMERO ESPECIAL BUENOS AIRES - DEZEMBRO 2017 2

ECONOMIA GLOBAL

3 Em um contexto frágil, ministros ponderam o futuro do comércio e sua contribuição para a sustentabilidade

PESCA

7 Regras da OMC sobre subsídios à pesca: avanços e perspectivas

AGRICULTURA

12 Agricultura: tempo de colher resultados ou de plantar sementes para o futuro?

COMÉRCIO ELETRÔNICO

16 O debate sobre o futuro do comércio eletrônico e do comércio digital em Buenos Aires

DESENVOLVIMENTO

22 Como revigorar negociações sobre o apoio ao papel de países em desenvolvimento no comércio global?

GÊNERO

28 Grupo de membros da OMC: hora de focar em gênero como um tema crítico de inclusão

FACILITAÇÃO DE INVESTIMENTOS

31 A emergência de um renovado debate sobre comércio global e investimento

SUBSÍDIOS AOS COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS

36 Reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis: uma tarefa para a OMC?

SERVIÇOS

40 Regulação doméstica de serviços: a busca por condições equitativas

GUIA DA S NEGOCIAÇÕES PONT ESNÚMERO ESPECIAL BUENOS AIRES - DEZEMBRO 2017

PONTES Informações e análises sobre comércio e desenvolvimento sustentável em língua portuguesa.

ICTSDInternational Centre for Trade and Sustainable DevelopmentGenebra, Suíça

EDITOR EXECUTIVORicardo Meléndez-Ortiz

EDITOR CHEFE Andrew Crosby

COORDENAÇÃO Fabrice Lehmann

EQUIPE EDITORIALManuela Trindade VianaBruno Varella Miranda Rodrigo Fagundes Cezar

CONTRIBUIÇÕES PARA ESTE NÚMERO Sofia Alicia Balino, Christophe Bellmann, Emily Bloom, Kiranne Guddoy, Sonja Hawkins,Jonathan Hepburn, Tristan Irschlinger, IngridJegou, Rashmi Jose, Fabrice Lehmann, HeatherLincecum, Maria Ptashkina, Felipe Sandoval,Ada Siqueira, and Alice Tipping.

DESIGN GRÁFICOFlarvet

LAYOUTOleg Smerdov

Se deseja contatar a equipe editorial do Pontes, escreva para: [email protected]

O PONTES recebe com satisfação seus comentários e propostas de artigo. O guia editorial pode ser solicitado junto à nossa equipe.

GUIA DAS NEGOCIAÇÕES PONTES | NÚMERO ESPECIAL BUENOS AIRES - DEZEMBRO 2017 3

ECONOMIA GLOBAL

Em um contexto frágil, ministros ponderam o futuro do comércio e sua contribuição para a

sustentabilidade

M inistros do comércio, negociadores e representantes da sociedade civil e do setor privado dirigem-se a Buenos Aires (Argentina) para a 11ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC). Essa é a primeira vez que a reunião

de mais alto nível do sistema multilateral de comércio é realizada na América do Sul.

A Ministerial de Buenos Aires ocorre em um contexto marcado por mudanças no comércio global, no 70º aniversário do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, sigla em inglês). No entanto, a agenda de negociações para a Ministerial é relativamente limitada: entre as áreas de possível acordo (com níveis variáveis de ambição) estão agricultura, comércio eletrônico, pesca e pequenas e médias empresas. Há também perspectivas de ramificações plurilaterais em matérias importantes, como gênero e subsídios aos combustíveis fósseis.

Tais iniciativas exigirão esforços consideráveis para que resultados concretos sejam alcançados. Apesar da grande movimentação em Genebra e da enxurrada de propostas nos últimos meses, permanece incerta a capacidade dos negociadores de cruzar a linha de chegada, ou mesmo de traçar um caminho para o futuro trabalho da Organização. Esse quadro de incerteza está tanto ligado a dificuldades políticas como a divergências de ordem procedimental, como ilustram os debates sobre o papel do Órgão de Apelação.

Contrastando com tais expectativas, há demandas crescentes para que a OMC acompanhe um mundo em rápida transformação e para que seus membros se comprometam efetivamente com a construção de um sistema de regras atualizado, que possa cumprir os objetivos do desenvolvimento sustentável, reconhecidos no preâmbulo de seu documento fundacional – o Acordo de Marraquexe.

A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas e o Acordo de Paris sobre Mudança do Clima podem compor, junto com a OMC, uma estrutura robusta capaz de operar nessa direção de forma alinhada. Para vários observadores, a Ministerial é uma oportunidade para que o arcabouço institucional da OMC seja mobilizado na direção do provimento de diversos bens públicos globais. Os observadores alertam que o fracasso em prover tais bens universais poderia pôr à prova a resiliência de longo prazo do sistema.

Além disso, a Ministerial de Buenos Aires coincide com o início da Presidência argentina no G20. Desse modo, o contexto atual representa uma oportunidade de avançar na liderança de assuntos comerciais e criar sinergias entre a OMC e o G20.

Um ambiente global volátilAlém de incerto, o quadro político e econômico da Ministerial de Buenos Aires pode ser definido como volátil. A preocupação com os impactos domésticos da globalização e o ritmo irregular de recuperação desde a crise financeira de 2007-08 foram canalizados, nos últimos meses, em diferentes formas de nacionalismo político e econômico nos Estados Unidos e em diversos países da Europa.

Enquanto isso, o centro de gravidade da economia mundial continua sua transição inexorável na direção de regiões emergentes, em especial na Ásia – e, mais ainda, na China.

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Tais dinâmicas romperam com padrões de liderança da ordem econômica internacional do pós-guerra, levando a fricções e à instabilidade do sistema. Os debates sobre o que constitui um comércio livre, justo e recíproco, assim como a força de abordagens comerciais baseadas em uma lógica de soma zero, são algumas de suas manifestações mais visíveis.

Enquanto os esforços de integração na OMC se veem frustrados, o movimento de integração via iniciativas regionais continua acelerado. Tal processo inclui o desenvolvimento de novas rotas comerciais por meio da Iniciativa Belt and Road da China, da negociação na Ásia-Pacífico da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, sigla em inglês), da Área de Livre Comércio Continental (CFTA, sigla em inglês) na África, de um recente acordo entre os signatários da Parceria Transpacífica (TPP, sigla em inglês) sem os Estados Unidos, da já planejada expansão da Aliança do Pacífico para novos membros associados e do Acordo de Livre Comércio (CETA, sigla em inglês) entre União Europeia (UE) e Canadá.

Por sua vez, o engajamento dos Estados Unidos tem sido focado na renegociação do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, sigla em inglês) com Canadá e México. A esse quadro, soma-se o recurso a uma forte retórica de relações bilaterais de comércio com a China e outros países asiáticos, além de diversas investigações em matéria de defesa comercial e propriedade intelectual contra parceiros comerciais dos Estados Unidos.

Os efeitos dessas dinâmicas sobre a estrutura da OMC ainda não estão claros. Recentemente, alguns líderes estatais argumentaram que os acordos regionais poderiam prejudicar as regras do sistema econômico atual. No entanto, se as negociações da OMC continuarem estagnadas, os países continuarão recorrendo a outros fóruns para avançar na criação de regras comerciais, conforme apontam algumas análises. É verdade que tais iniciativas poderiam servir de base para testar novas ideias e, possivelmente, incorporá-las ao sistema da OMC, mas também poderiam resultar no esvaziamento das negociações no âmbito do sistema multilateral de comércio.

De Nairobi a Buenos AiresNa Argentina, os ministros devem enfrentar outro desafio: o êxito da última Conferência Ministerial, realizada em Nairobi (Quênia). Será preciso encontrar meios de contornar o fato de que as negociações em Genebra se mostraram inconclusivas no período de dois anos que separa as duas reuniões de alto nível.

Realizada em dezembro de 2015, a 10ª Conferência Ministerial da OMC foi anunciada como um momento decisivo na trajetória da Organização e como um divisor de águas, por se tratar da primeira Ministerial da OMC realizada na África subsaariana. As expectativas eram altas, sob o eco do êxito obtido na Conferência de Bali (Indonésia), em 2013 – ocasião em que os ministros adotaram o Acordo de Facilitação do Comércio (TFA, sigla em inglês), o primeiro acordo global desde que a OMC substituiu o sistema GATT, em 1995.

Em Nairobi, os ministros aprovaram um pacote que incluía um acordo para eliminar subsídios à exportação agrícola e um conjunto de decisões com foco em desenvolvimento. Um grupo de membros da OMC também assinou uma versão atualizada do Acordo de Tecnologia da Informação (ITA-II), ampliando sua cobertura de produtos.

A despeito dessas conquistas, uma antiga divergência quanto à Rodada Doha veio à tona na declaração final de Nairobi. Nas negociações, o debate caminhou na direção de duas posições principais: de um lado, endossar a Agenda Doha, como em eventos passados; de outro, deixar essa estrutura de lado, na esperança de superar velhos bloqueios nas tratativas. Incapazes de alcançar um consenso, finalmente optaram por registrar suas divergências na declaração da Ministerial. Não obstante, o documento ressaltou uma base comum entre os negociadores: “reconhecer a forte estrutura legal desta Organização”.

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Dois anos depois, muitos temem que essa mesma “forte estrutura legal” venha a sucumbir, sob o peso de “casos complexos” e da falta de advogados para lidar com eles. Afinal, o sistema de solução de controvérsias da OMC tem sido objeto de intensas discussões quanto ao número adequado de juízes de apelação para dar conta dos casos.

Há alguns meses, os Estados Unidos movimentaram-se unilateralmente para bloquear o início de novos processos de seleção para duas vagas no Órgão de Apelação, alegando supostos excessos na referida instância. Washington também questionou a base legal por trás da antiga prática de manter em suas posições juízes de apelação cujos mandatos já haviam expirado, mas que ainda se encontravam trabalhando em casos específicos. A ação deixou o Órgão de Apelação com apenas 5 de seus 7 juízes, número que cairá para 4 em dezembro, e para 3 – seu número mínimo – até setembro de 2018.

Analistas de comércio internacional apontam que as preocupações dos Estados Unidos com o Órgão de Apelação da OMC existem há anos, não sendo uma marca distintiva da abordagem da nova administração ao comércio internacional. Ainda assim, a falta de clareza sobre o que poderia aplacar as preocupações de Washington e as repetidas declarações de “ceticismo” quanto à possibilidade de alcançar resultados na Ministerial de Buenos Aires por parte da administração de Donald Trump têm gerado temor em alguns grupos de que a OMC esteja entrando em uma de suas fases mais desafiadoras até agora.

Qual a contribuição do comércio para o desenvolvimento sustentável?Enquanto isso, desafios políticos urgentes persistem – com implicações reais para a vida e o sustento de pessoas ao redor do mundo. Há apenas dois anos, os membros das Nações Unidas endossaram uma nova agenda para o desenvolvimento sustentável, com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas associadas, desenhados para gerar impulso político e ações concretas para acabar com a pobreza, a fome e a desigualdade no mundo até 2030, garantindo, ao mesmo tempo, a sustentabilidade ambiental.

O comércio tem potenciais pontos em comum com muitos destes objetivos, inclusive enquanto meio para alcançá-los. De fato, a Agenda 2030 e a Agenda de Ação de Adis Abeba sobre financiamento para o desenvolvimento reconhecem explicitamente o papel do comércio para alcançar os ODS. Ainda assim, conquanto negociadores do comércio citem o ODS 14.6 como um importante motivador para as negociações multilaterais sobre subsídios à pesca, onde se encaixam os demais ODS? A mesma questão poderia ser feita acerca das contribuições nacionalmente determinadas (NDCs, sigla em inglês), assumidas no âmbito do Acordo de Paris, considerando que componentes comerciais aparecem em quase metade das NDCs atuais.

Parte desse impulso dos ODS pode motivar iniciativas específicas que subgrupos da OMC devem anunciar em Buenos Aires: diferentes grupos de países membros devem emitir declarações sobre comércio e empoderamento econômico feminino, assim como sobre o papel do comércio na reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis. Ambas iniciativas poderiam servir para avançar objetivos específicos, como o ODS 5, sobre igualdade de gênero, o ODS 7, sobre energia limpa e acessível, e o ODS 13, sobre ação climática. Como sempre, o ponto chave será como passar das declarações políticas à implementação concreta com benefícios tangíveis.

Qual será o legado da Ministerial?Sejam quais forem os resultados de Buenos Aires, os membros da OMC deverão considerar se o sistema atual é capaz de lidar com a velocidade das transformações mundiais, a constante evolução na condução dos negócios e as aspirações à prosperidade e sustentabilidade futuras dos cidadãos.

Ainda há dúvidas quanto ao histórico de implementação dos resultados de Ministeriais recentes pelos membros da OMC. Além disso, não está claro se a comunidade global será receptiva aos resultados das negociações em vista do acirrado debate internacional sobre globalização, tecnologia e os méritos dos acordos de comércio internacional.

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Por sua vez, os membros da OMC devem urgentemente refletir sobre como podem se adaptar a esses desafios – e se conseguirão fazê-lo – e, assim, continuar a servir tanto seus eleitorados quanto o bem público coletivo nos próximos anos.

Equipe de reportagem ICTSD

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PESCA

Regras da OMC sobre subsídios à pesca: avanços e perspectivas

N ovas regras para lidar com os efeitos ambientais negativos dos subsídios à indústria da pesca são um dos resultados mais prováveis da 11ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Buenos Aires. Surgidas originalmente

na declaração de Doha de 2001, essas negociações permaneceram quase esquecidas por vários anos antes de ganhar novo ímpeto com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável proposta pela Organização das Nações Unidas (ONU). Propostas recentes priorizam disciplinas “baseadas em efeitos”, com foco nos subsídios à pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (IUU, sigla em inglês) e nos subsídios para a exploração de estoques de peixes em situação de sobrepesca. Ademais, focam nas prioridades gerais do mandato original de negociações: subsídios que contribuem para o excesso de capacidade e a sobrepesca. Disciplinas sobre subsídios para embarcações e operadores engajados em atividade IUU, compromissos para aumentar a transparência dos subsídios à pesca e um programa de trabalho para o futuro parecem ser os elementos mais prováveis de um resultado na Ministerial de Buenos Aires. Do mandato de Doha à atualidadeSubsídios à pesca têm ocupado a agenda global há muitos anos. A pesca global já sofre com a sobrepesca: segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, sigla em inglês), cerca de 60% dos estoques de peixe avaliados estão totalmente esgotados e 30% estão sobre-explorados. A frota global também se caracteriza pelo grave excesso de capitalização. Como o esgotamento dos recursos foi acompanhado de um aumento do poder de pesca, a produtividade da pesca global diminuiu, em média, seis vezes entre 1970 e 2005, de acordo com uma pesquisa de 2009 publicada pelo Banco Mundial.

Há fortes evidências, fornecidas tanto por modelos econômicos quanto por estudos de caso, que subsídios à pesca podem criar incentivos para uma excessiva capitalização da indústria e para níveis insustentáveis de esforços de pesca. Estimativas recentes apontam que os subsídios à indústria da pesca atingem a cifra anual de US$ 35 bilhões, dos quais cerca de US$ 20 bilhões foram concedidos de maneiras que tendem a aumentar a capacidade de pesca. Embora a gestão da indústria pesqueira pudesse fazer algo para limitar tais efeitos, raramente existem obrigações para isso. Na verdade, essas políticas não raramente são enfraquecidas pela pressão política exercida por frotas super capitalizadas.

Em 2001, os membros da OMC definiram um mandato de negociações sobre o assunto como parte da Rodada Doha. Mais tarde, o mandato original seria aperfeiçoado, direcionando a proibição de certos subsídios que contribuem para o excesso de capacidade e a sobrepesca. Ademais, o novo mandato abrange a busca por maior transparência e a inclusão de tratamento especial e diferenciado adequado e eficaz para países em desenvolvimento e países menos avançados (PMA). As negociações enfrentaram desafios técnicos, sobretudo para criar disciplinas sobre subsídios que lidem com a sustentabilidade de estoques de peixe. Desafios políticos também apareceram, tendo em vista a importância econômica do setor tanto para os países desenvolvidos quanto para os países em desenvolvimento.

Considerado um marco nas negociações, um texto da Presidência publicado em 2007 incluiu uma lista de subsídios a proibir, uma nova regra para subsídios à pesca questionáveis, exceções gerais e um sofisticado sistema de tratamento especial e diferenciado – incluindo maiores exceções para pesca de pequena escala perto da costa e exceções mais restritas

Os membros da OMC vêm trabalhando para estabelecer disciplinas para os subsídios à pesca predatória. Impulsionados pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, buscam concluir esses esforços até 2020.

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para a pesca em larga escala. Um relatório da Presidência de 2011 identificou algumas áreas de maior convergência, como a ideia de proibir subsídios à pesca IUU.

Após um hiato de vários anos, as negociações foram retomadas com a adoção da meta 14.6 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), pertencente à Agenda 2030 da ONU, em 2015. A meta 14.6 definiu o prazo final até 2020 para a proibição de subsídios que contribuam para a sobrepesca e o excesso de capacidade, e para eliminar subsídios à pesca IUU. Membros da OMC também parecem ter sido inspirados pela inclusão de regras vinculantes para subsídios à pesca na Parceria Transpacífica (TPP, sigla em inglês) – desde então renomeada como Acordo Amplo e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CPTPP, sigla em inglês).

Uma ampla gama de propostas foi apresentada ao longo de 2016. Entre os principais proponentes estão a Nova Zelândia, Islândia e Paquistão, a União Europeia (UE), o Grupo da África, Caribe e Pacífico (ACP), Argentina, Colômbia, Costa Rica, Panamá, Peru e Uruguai; o grupo dos PMA; Noruega; China; e os Estados Unidos. Propostas apresentadas na primeira metade do ano foram agrupadas em uma matriz em julho. Posteriormente, os proponentes organizaram uma compilação vertical em setembro – texto que vem orientando as negociações para a Ministerial de Buenos Aires. Desde então, vários membros fizeram propostas de acréscimo de propostas formais e sugestões de mudanças no texto. Também se discutem as questões que podem estar suficientemente “maduras” para serem incluídas em um resultado na Ministerial de Buenos Aires, e quais seriam candidatas à inclusão em um programa de trabalho para o ciclo que precederá a 12ª Conferência Ministerial da OMC em 2019.

O cenário às vésperas da Ministerial de Buenos AiresTodas as propostas sobre a mesa incluem proibições de subsídios com base em seus “efeitos” – sobretudo subsídios ligados à pesca IUU e subsídios à pesca de estoques que já se encontram em um nível de sobrepesca. Acredita-se que um acordo sobre essas duas proibições será possível, devido à compreensão geral de que subsídios nessas situações, e sobretudo para a pesca IUU, são especialmente nocivos. Ademais, contribui para a possibilidade de um acordo o fato de que, pelo menos em princípio, as disciplinas consensuadas seriam aplicadas igualmente a todos os membros da OMC. Essa abordagem evitaria ou minimizaria o debate sobre exceções na forma de tratamento especial e diferenciado para países em desenvolvimento, algo que poderia dificultar a aceitação de um acordo por parte de vários países desenvolvidos. Entretanto, este não é um consenso firme; de fato, propostas que incluem exceções a tais proibições existem.

Muitas das propostas também incluem proibições a subsídios com base no tipo de custo que motivam seu estabelecimento – custos de capital, como a construção de embarcações, ou custos operacionais, como combustível. Por exemplo, a maioria das propostas de disciplinas sobre esses subsídios apresentadas pelos grupos ACP e PMA inclui o tratamento especial e diferenciado na forma de amplas exceções para os casos da pesca de pequena escala e da pesca dentro das próprias Zonas Econômicas Exclusivas (ZEE) de países-membros da OMC em desenvolvimento.

Pontos chave nas negociaçõesSubsídios à pesca ilegal, não declarada e não regulamentadaDe todos os temas em discussão, a ideia de uma disciplina sobre subsídios à pesca IUU é um dos candidatos mais prováveis a algum tipo de acordo na Ministerial de Buenos Aires. A pesca ilegal e não declarada é um problema disseminado na indústria pesqueira global; algumas estimativas sugerem que as perdas causadas por essa prática ultrapassam os US$ 23 bilhões por ano. O problema é mencionado explicitamente no ODS 14.6 e tem um apelo político óbvio. O tema central nas negociações diz respeito à forma como a pesca IUU seria identificada em diferentes jurisdições, acionando a disciplina do subsídio. Outro tema delicado trazido recentemente para as negociações – e com profundas implicações políticas – se relaciona com o desenho institucional das disciplinas da OMC sobre o tema. O objetivo: evitar disputas de jurisdição entre distintas regiões marítimas.

2001 – Os membros da OMC estabelecem um mandato para negociar disciplinas sobre subsídios à pesca predatória no âmbito da Rodada Doha.

2005 – Os ministros presentes na Conferência Ministerial de Hong Kong elaboram o mandato, que inclui a proibição de certas formas de subsídios à pesca que incentivam o excesso de capacidade e a sobrepesca.

2007 – Divulgação de um texto elaborado pelo presidente. O documento contém uma lista de possíveis proibições ao uso de subsídios, um sistema de tratamento especial e diferenciado e outras disposições.

2011 – Um relatório atualizado do presidente é emitido. Mais tarde, os membros confirmam que as conversações da Rodada Doha estão estancadas.

2015 – Em Nairobi, os negociadores tentam obter avanços nas conversações sobre subsídios à pesca. Entretanto, o tema não é incluído no conjunto final de medidas. Os membros divulgam uma declaração na qual se comprometem a continuar trabalhando em negociações para a definição de regras.

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Identificando atividades que acionariam a proibição do subsídio: listas RFMOA maioria das propostas sobre subsídios para a pesca IUU sugere que as listas de embarcações atualmente publicadas pelas Organizações Regionais de Gestão da Pesca (RFMO, sigla em inglês) poderiam ser utilizadas para acionar a proibição: quando uma embarcação ou operador for listado, os subsídios a essa embarcação ou operador seriam eliminados.

Entretanto, os membros propuseram diferentes abordagens para o uso das listas publicadas pelas RFMO. Nova Zelândia, Noruega e o grupo dos PMA, entre outros, propõem uma abordagem mais automática: nela, a proibição aos subsídios seria aplicada assim que uma embarcação fosse listada por qualquer RFMO. A ideia preocupa outros membros da OMC – em particular devido à questões ligadas ao processo de listagem de uma embarcação pelas RFMO. Por isso, existem propostas que defendem maior controle sobre o “gatilho” que ativaria a proibição ao subsídio. Por exemplo, uma proposta de um grupo de países da América Latina permitiria a um membro da OMC reconhecer listas de embarcações RFMO para fins de proibição de um subsídio. A China propôs um controle ainda maior, requerendo que o membro provedor do subsídio verifique a suposta atividade IUU da embarcação antes que uma proibição seja aplicada.

Identificando atividades que acionariam a proibição do subsídio: listas nacionais e determinaçõesUma segunda abordagem proposta é aplicar a proibição de subsídios ao conjunto de embarcações identificado pelos governos nacionais como engajados na pesca IUU. A identificação poderia ser feita pelo Estado de bandeira, pelos governos que oferecem o subsídio, ou potencialmente por países costeiros. Nova Zelândia, UE e outros membros propuseram que a identificação pudesse assumir a forma de listas nacionais de embarcações IUU. Vários membros latino-americanos e o grupo dos PMA também propuseram que a identificação poderia ser mais ampla, na forma de determinações nacionais de embarcações ou operadores que já participaram da pesca IUU sob determinada legislação nacional. Alguns membros sugeriram que a proibição poderia ser aplicável, sob certas condições, a embarcações identificadas por países costeiros pela pesca IUU em suas águas – ideia que levantou preocupações sobre a habilidade de um membro de acionar as obrigações de subsídios de outro membro. Uma proposta da Noruega busca encontrar um meio termo: nela, o membro que oferece o subsídio precisaria conferir se os beneficiários do auxílio operaram recentemente na ZEE de outro membro sem permissão.

Proibição de subsídios para estoques em situação de sobrepescaVárias propostas incluem uma proibição de subsídios à pesca de estoques que já estão em situação de sobrepesca. De acordo com a FAO, cerca de 31% dos estoques de peixe avaliados ao redor do mundo estão em estado de sobrepesca.

As propostas mais ambiciosas – incluindo as da Nova Zelândia e do grupo dos PMA – aplicariam a proibição dos subsídios a todos os estoques avaliados em situação de sobrepesca. Outros membros defendem uma disciplina mais restrita, seja focando em subsídios que produzem efeitos negativos nesses estoques, seja limitando a regra a embarcações que objetivam explorar os estoques em situação de sobrepesca. A UE propõe que a regra não se aplique aos estoques de peixes localizados dentro do mar territorial.

As propostas da Nova Zelândia e do grupo de países da América Latina sugerem uma definição objetiva para determinar quando um estoque se encontra em estado de sobrepesca. Outros membros se baseariam nas decisões de autoridades regionais ou nacionais – embora a medida gere preocupações sobre sua confiabilidade ou sobre o alcance do poder de revisão de uma decisão pela OMC.

Outra questão diz respeito à ampliação da regra para estoques ainda não avaliados. Duas propostas, apresentadas pela Nova Zelândia e pela UE, sugerem que a proibição de subsídios também deve ser aplicada quando o estado de um estoque é desconhecido ou quando as informações científicas são insuficientes. A ideia preocupa alguns membros, principalmente aqueles com informações limitadas sobre os estoques.

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Subsídios que contribuem para o excesso de capacidade e sobrepescaVários membros querem proibir subsídios que aumentam a capacidade de frotas pesqueiras. As propostas abarcam tanto termos gerais – ou seja, subsídios que contribuem para o excesso de capacidade – quanto a identificação de tipos específicos de subsídios. A proposta da UE foca nos subsídios que aumentam a capacidade, com o argumento de que esse excesso é a principal causa da sobrepesca e do esgotamento dos estoques. No entanto, muitos países em desenvolvimento se mostram preocupados, já que a regra limitaria sua habilidade de incentivar o crescimento de frotas pesqueiras domésticas. Afinal, a regra limitria a capacidade de oferecimento de subsídios para a construção de embarcações ou a aquisição de motores mais potentes.

Por exemplo, propostas apresentadas pelos grupos ACP e PMA, por vários países da América Latina, e pela UE e Indonésia incluem uma série de exceções a essa proibição para países em desenvolvimento. Exceções se aplicariam aos PMA; à pesca de pequena escala; e à empresas de pesca operando no interior de uma ZEE ou respeitando uma cota estabelecida por uma RFMO. No caso das propostas da UE e da Indonésia, algumas exceções estariam sujeitas à existência de um sistema de gestão das reservas – algo necessário para evitar que os subsídios não contribuam para a sobrepesca, uma preocupação chave.

Os membros da OMC vêm tentando lidar com o problema dos subsídios que contribuem para a sobrepesca de distintas maneiras. Frequentemente, essa discussão foi combinada com o debate sobre as regras aplicáveis aos subsídios com efeitos sobre os estoques em situação de sobrepesca. A Indonésia e o grupo dos PMA sugeriram proibições específicas relacionadas com os custos de operação – dada a avaliação de que contribuem para o esforço de pesca e, portanto, podem resultar em sobrepesca. Uma porcentagem importante dos subsídios globais para custos operacionais, os subsídios para a aquisição de combustível têm motivado árduas discussões. Juntamente com os outros membros, o México argumenta que as disciplinas de subsídios à pesca poderiam cobrir subsídios horizontais para a aquisição de combustível – ou seja, subsídios que abrangem toda a economia do país – que beneficiam a indústria pesqueira; outros membros argumentam que as disciplinas devem incluir o requisito de especificidade do atual Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias. A UE propôs isentar inteiramente esquemas de não-tributação de combustíveis do escopo de um novo acordo sobre subsídios à pesca.

Tratamento especial e diferenciadoO debate sobre a inclusão e o alcance do tratamento especial e diferenciado em um acordo final provavelmente dependerá do escopo da proibição final. Há um aspecto técnico e político importante nessas discussões: os Estados Unidos, em particular, relutam quanto à existência de regras flexíveis aplicadas aos países em desenvolvimento de maior porte. Até recentemente, os elementos com base nos efeitos das propostas apresentadas incluíram pouco ou nenhum tratamento especial e diferenciado – e, em sua maioria, sob a forma de um período de implementação ampliado para essas disciplinas. Em contraste, um tratamento especial e diferenciado muito mais amplo está em discussão no contexto das disciplinas para subsídios que aumentam a capacidade do esforço de pesca – muitas vezes isentando completamente os PMA dessas proibições – e aplicando as proibições primariamente à pesca fora de ZEE de países em desenvolvimento e para a pesca de grande escala. Entretanto, outros membros argumentam que tal abordagem excluiria grande parte da atividade pesqueira das disciplinas.

A Ministerial de Buenos Aires e o futuroO ano de 2017 tem sido marcado por um importante impulso para um acordo sobre disciplinas relativas aos subsídios à pesca. Os esforços se concentram na obtenção de um resultado alinhado com a meta do ODS 14.6. Embora a grande expectativa política em níveis administrativos mais altos ofereça um incentivo adicional para as negociações, a complexidade técnica e legal do debate é considerável. Por isso, os elementos das propostas que poderiam ser combinados para um resultado positivo na Ministerial de Buenos Aires não estão claros. Tudo dependerá da flexibilidade dos membros da OMC com maior peso econômico.

GUIA DAS NEGOCIAÇÕES PONTES | NÚMERO ESPECIAL BUENOS AIRES - DEZEMBRO 2017 11

Estados Unidos e China se envolveram formalmente nas negociações sobre subsídios à pesca há pouco tempo. Os governos estadunidense e chinês apresentaram propostas sobre transparência e IUU, respectivamente – temas sem uma denominador comum óbvio. Resta saber se os demais membros com estratégias defensivas disporão de flexibilidade suficiente para dotar disciplinas suficientemente significativas para satisfazer os membros mais ambiciosos. O que parece provável é que qualquer acordo obtido em Buenos Aires precisará ser complementado por um programa de trabalho capaz de lidar com questões remanescentes e encaminhar um acordo para a Conferência Ministerial da OMC de 2019 – um ano antes do prazo final estipulado pelo ODS 14.6.

GUIA DAS NEGOCIAÇÕES PONTES | NÚMERO ESPECIAL BUENOS AIRES - DEZEMBRO 2017 12

AGRICULTURA

Agricultura: tempo de colher resultados ou de plantar sementes para o futuro?

A pesar dos pequenos avanços, a agricultura tem sido um tema central nas discussões na Organização Mundial do Comércio (OMC) desde que os membros endossaram pela primeira vez regras globais sobre o comércio agrícola há 23 anos. A redução

dos subsídios agrícolas distorcivos ao comércio e o acesso a mercado foram elementos chave nas negociações da Rodada Doha, lançada em 2001. Questões relativas ao comércio agrícola fizeram parte de “pacotes” mais amplos, resultantes das últimas Conferências Ministeriais – levando muitos a acreditar que Buenos Aires deve continuar a construir esse legado.

Enquanto a maioria dos membros é a favor de um resultado positivo em questões comerciais agrícolas em Buenos Aires, alguns relutam em concordar com novas regras no atual estágio. Por exemplo, o governo dos Estados Unidos revelou recentemente seu “ceticismo” quanto aos resultados que podem ser alcançados na Argentina. Desacordos persistem entre os membros tanto no nível político quanto no nível técnico. Preocupações antigas, como as medidas de apoio interno à agricultura e os estoques públicos para fins de segurança alimentar, ressurgiram repetidamente nos preparativos para a Conferência deste ano.

Contínuas discussões focadas em um sistema de comércio agrícola “justo e orientado para o mercado” fazem parte do atual Acordo sobre Agricultura da OMC. Além disso, os Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) endossaram vários compromissos no âmbito dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que incluem uma meta pertencente ao SDG 17, destinada a “promo[ver] um sistema comercial universal, baseado em regras, aberto, não discriminatório, multilateral e igualitário, sob a Organização Mundial de Comércio, inclusive por meio do encerramento das negociações da Agenda de Desenvolvimento de Doha”.

O SDG 17 também estimula iniciativas que lidem com as restrições e distorções comerciais na agricultura, como um meio de alcançar o objetivo de eliminar a fome e a desnutrição até 2030 – objetivo estabelecido pelo SDG 2. Desse ponto de vista, um resultado positivo na OMC sobre subsídios agrícolas e outros temas não resolvidos é um requisito necessário, mas insuficiente, para o progresso de objetivos globais.

O êxito dos resultados negociados na OMC no apoio de tais ODS também dependerá de sua implementação, conforme Ministeriais recentes demonstram. De fato, o SDG 2 inclui a eliminação dos subsídios à exportação agrícola e “medidas de exportação com efeito equivalente”. Da mesma forma, os ministros do Comércio reunidos em Nairobi há dois anos concordaram em eliminar esse tipo de ajuda estatal. No entanto, o progresso na implementação dessa medida tem sido lento, pois apenas a União Europeia (UE) e a Austrália submeteram agendas revisadas para a OMC refletindo essa mudança.

O que está em discussão?Muitos países têm argumentado que a Ministerial deveria congelar e reduzir as medidas internas de apoio à agricultura distorcivas ao comércio – um dos principais temas pendentes de Doha, cuja necessidade de discussão é compartilhada por todos os membros. Ao mesmo tempo, um grupo de países em desenvolvimento renovou os esforços por uma “solução permanente” para as dificuldades que dizem enfrentar sob as regras atuais da OMC para comprar alimentos a preços subsidiados como parte de seus programas públicos de estocagem para fins de segurança alimentar. Outra questão crítica para os países mais pobres do mundo, os subsídios ao algodão também estão na agenda.

Os membros da OMC têm discutido opções para a reforma dos programas de ajuda interna à agricultura, dos sistemas de estoques públicos de alimentos e de outras questões agrícolas. A discussão poderá inspirar um resultado positivo em Buenos Aires ou um programa de trabalho para o futuro.

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Por fim, há outra proposta em discussão para melhorar a transparência nas restrições às exportações agrícolas e a isenção de sua aplicação sobre a ajuda alimentar humanitária.

Entretanto, caso soluções satisfatórias parciais ou totais não sejam encontradas em Buenos Aires, esses temas poderiam ser abordados em um programa de trabalho desenvolvido após a Ministerial – juntamente com outras áreas não agrícolas. Funcionários envolvidos nas conversações dizem que o programa de trabalho também poderia incluir negociações sobre acesso a mercado agrícola; um “mecanismo especial de salvaguarda” para proteger os países em desenvolvimento e os produtores dos países menos avançados (PMA) de aumentos súbitos dos volumes de importação ou a redução dos preços; e questões sobre “concorrência das exportações” não resolvidas na última Conferência Ministerial celebrada em Nairobi (Quênia) em 2015, como as relativas às empresas públicas dedicadas ao comércio de produtos agrícolas.

Ajuda internaOs membros apresentaram diversas propostas com o objetivo de limitar o apoio interno distorcivo ao comércio agrícola ao longo dos últimos meses. Enquanto algumas propostas tratam de corrigir desequilíbrios nas regras da OMC, outras buscam estabelecer uma base futura mais justa para o comércio. Diferenças consideráveis entre os países dificultam um consenso na área.

Divisões surgiram particularmente entre a postura dos países em desenvolvimento de maior porte, como China e Índia, e os membros que há muito tempo utilizam subsídios que distorcem o comércio agrícola – por exemplo, Estados Unidos e União Europeia (UE). Embora a China e a Índia tenha pedido a eliminação das medidas de apoio pertencentes à “caixa amarela”, seus governos também são favoráveis à manutenção das flexibilidades atuais para que os países em desenvolvimento ofereçam um apoio de minimis – algo que, segundo o governo estadunidense, distorceria os mercados. Enquanto isso, os países do G10 – caracterizados pelo considerável protecionismo no setor agrícola – argumentam que a postura exigida pelos governos chinês e indiano é pouco realista. Entre os membros do G10 estão Japão, Noruega e Suíça. Finalmente, os membros do grupo de Estados da África, Caribe e Pacífico (ACP) respaldaram em grande medida a posição dos países em desenvolvimento de maior porte.

Uma proposta apresentada em junho por UE, Brasil e outros três países exportadores de produtos agrícolas tentou avançar em um enfoque diferente. O documento pedia o estabelecimento de novos limites máximos para o apoio total distorcivo ao comércio, que representariam uma fração da produção agrícola. Ademais, buscava incentivar a apresentação de dados mais atuais e precisos à OMC. Os países em desenvolvimento poderiam oferecer um maior nível de apoio que os países desenvolvidos, ou estabelecer seus novos limites máximos posteriormente. Por sua vez, inexistiriam restrições ao apoio proporcionado pelos PMA. Fundamentalmente, a proposta buscou vincular as novas regras sobre subsídios agrícolas com a questão da aquisição subsidiada de alimentos pelos programas de estoques públicos com fins de segurança alimentar dos países em desenvolvimento – um movimento que China, Índia e outros países pertencentes à coalizão de negociação G33, de países com grandes populações de pequenos agricultores, consideraram inaceitável.

Outro grupo de países também enfrentou dificuldades com o enfoque do Brasil e da UE, ainda que por motivos distintos. Austrália, Nova Zelândia e alguns outros países exportadores de produtos agrícolas pediram limites máximos determinados como um valor monetário fixo, ao invés dos limites que subiriam em resposta a maiores valores de produção agrícola. O grupo apresentou uma proposta em outubro que oferece uma série de abordagens para o estabelecimento de um limite máximo. As opções cobrem os principais países, economias com uma utilização significativa de subsídios – caso do G10 – e os países em desenvolvimento de menor porte. Os PMA não teriam compromissos segundo a proposta.

2001 – Os membros da OMC iniciam as conversações da Rodada Doha, com amplas negociações em acesso a mercado, subsídios à exportação e ajuda interna.

2003 – A Conferência Ministerial de Cancún termina em um impasse.

2004 – Os membros da OMC adotam o “pacote” de julho de 2004, que estabelece os marcos para avanços nas conversações da Rodada Doha.

2005 – Na Conferência Ministerial de Hong Kong, os membros aprovam o prazo limite de 2013 para a eliminação dos subsídios à exportação agrícola.

2006-2007 – Textos preliminares são distribuídos, com propostas de fórmulas de redução tarifária e redução de subsídios.

2008 – As conversas resultam no rascunho “Rev.4”, que inclui modalidades sobre agricultura. Os participantes de uma reunião “Mini Ministerial” se aproximam de um acordo, sem chegar a concretizá-lo.

2011 – Relatórios atualizados dos presidentes são publicados. Ademais, os membros reconhecem que a Rodada Doha se encontra em um impasse durante a Ministerial de Genebra.

2013 – A Conferência Ministerial de Bali respalda um conjunto de medidas que inclui temas agrícolas de possível solução. As medidas incluem uma solução temporária para o estabelecimento de estoques públicos com fins de segurança alimentar; serviços gerais; subsídios à exportação e a administração de contingentes tarifários.

2015 – A Conferência Ministerial de Nairobi confirma um acordo para eliminar os subsídios à exportação de produtos agrícolas e estabelece disciplinas sobre medidas de exportação com um efeito equivalente.

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O governo do México afirma que a proposta imporia uma pesada carga sobre os países em desenvolvimento, que possuem limites máximos para a ajuda com efeito distorcivo ao comércio. Por isso, os negociadores mexicanos apresentaram uma abordagem alternativa, baseada na redução dos direitos vigentes.

Mais recentemente, a Argentina apresentou uma proposta em seu papel de anfitriã da Conferência Ministerial – e não refletindo sua posição nacional. O objetivo: consolidar os pontos de “convergência”. O texto se inspira em elementos de propostas apresentadas por outros países e inclui limites à ajuda geral distorciva ao comércio, assim como aos subsídios pertencentes à “caixa amarela”.

Estoques públicosEntre as ideias apresentadas, algumas discutem o tema da constituição de estoques públicos com fins de segurança alimentar. Os países em desenvolvimento de maior porte levantaram a questão pela primeira vez antes da Conferência Ministerial de Bali em 2013, quando a rápida inflação nos preços dos alimentos ameaçava levá-los a infringir as normas vigentes da OMC sobre os níveis de subsídios agrícolas.

Os ministros chegaram a um acordo temporário, segundo o qual outros países concordavam em não iniciar controvérsias sobre o tema na OMC. Em troca, os países em desenvolvimento forneceriam informação mais detalhada sobre a operação desses esquemas de apoio e outras condições. Os países posteriormente decidiram que o acordo se aplicaria até que uma solução permanente fosse encontrada. Embora China, Índia e outros países do G33 sejam favoráveis a uma isenção para essas medidas de auxílio, países exportadores de produtos agrícolas como Paraguai e Rússia preferem um resultado baseado no acordo de Bali.

Os membros também debateram a possível ampliação do escopo da atual “solução provisória” na cobertura de produtos ou nos requisitos relacionados ao seu uso ao planejar uma solução final – sem um resultado claro para a agenda da Ministerial.

Embora os membros tenham chegado a um acordo na Ministerial de Bali para elaborar uma solução permanente para a Conferência Ministerial de 2017, a decisão se transformou

Figura 1. Notificações de apoio doméstico relativas aos direitos atuais

Fonte: cálculos do ICTSD com base em notificações da OMC.

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desde então em um prazo não vinculante. A atual “solução provisória”, ou cláusula da paz, seguirá vigente até que haja um consenso sobre uma versão permanente.

Algodão, restrições à exportaçãoHá mais de uma década, os membros decidiram que abordariam a questão do algodão de uma forma “ambiciosa, rápida e específica”. Na prática, os esforços para avançar nessas conversações comerciais têm enfrentado problemas. Mais recentemente, alguns compromissos foram aprovados em Nairobi, buscando melhorar o acesso a mercado para os PMA. Da mesma forma, algumas disposições sobre concorrência das exportações foram aprovadas.

O grupo C4 de produtores de algodão da África Ocidental apresentou uma proposta sobre algodão em outubro, patrocinada pelos membros do grupo – Benin, Burkina Faso, Chade e Mali. O novo documento defende a limitação do nível geral de apoio ao algodão distorcivo ao comércio, assim como medidas em relação às políticas de auxílio pertencentes à “caixa verde” – que devem causar uma distorção mínima ao comércio segundo as normas atuais da OMC.

Os países comprometidos com o estabelecimento de um teto para a ajuda pertencente à “caixa amarela” da OMC estariam sujeitos a uma redução do auxílio distorcivo global ao algodão que oscilaria entre 70% e 90% – dependendo do nível dos subsídios em um dado período histórico. A proposta não requer novos compromissos de países em desenvolvimento como China e Índia; por isso, países desenvolvidos como os Estados Unidos não a viram como um bom ponto de partida para novas conversações.

De forma separada, as propostas sobre restrições às exportações de produtos agrícolas se concentram principalmente em passos limitados para a melhoria das normas existentes. Em geral, os membros receberam favoravelmente um documento de Cingapura que propõe uma maior transparência nesse âmbito. O documento propõe ainda uma isenção à ajuda alimentar humanitária adquirida pelo Programa Mundial de Alimentos (WPF, sigla em inglês).

Para além de Buenos AiresA poucos dias do começo da 11ª Conferência Ministerial, o nível de apoio final que os membros da OMC dariam a um acordo ainda não está claro. Dada essa situação, assim como o fato de que algumas questões relacionadas ao comércio agrícola apareceram pouco nas conversações recentes em Genebra, é provável que os temas com possibilidade de serem incluídos em um programa de trabalho orientado a informar negociações futuras desempenharão um papel fundamental nas negociações de Buenos Aires. A estrutura e a abordagem desse diálogo dependerão das discussões na capital argentina.

Assim como os planos de construção de um programa de trabalho para o período posterior à Ministerial de Bali – iniciativa que não prosperou –, esforços recentes para consensuar a elaboração de novos programas de trabalho produziram resultados mistos. Em consequência, o desenho de um novo programa de trabalho e a vontade política para sua implementação serão elementos cruciais para um êxito.

Juntamente com outros quatro países exportadores agrícolas, a Argentina propôs um diálogo sobre acesso a mercado. Enquanto isso, Canadá, Chile e Suíça pediram aos membros que negociem melhores disciplinas sobre concorrência das exportações. Sem um acordo sobre os mandatos de negociação, um novo consenso sobre o trabalho a ser feito poderia ajudar os membros a avançar em objetivos compartilhados, como os estabelecidos nos ODS.

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COMÉRCIO ELETRÔNICO

O debate sobre o futuro do comércio eletrônico e do comércio digital em Buenos Aires

E specialistas e delegações em Genebra demonstram um interesse crescente no potencial do comércio digital e eletrônico de apoiar o desenvolvimento econômico. Afinal, as transformações recentes na economia permitem a participação de

pequenas empresas de países menos avançados (PMA) no comércio global e sua inclusão em cadeias globais de valor (CGV). No entanto, tais oportunidades vêm acompanhadas de uma preocupação: caso os marcos que regulam o setor não garantam de forma adequada uma distribuição equitativa dos benefícios e a superação das barreiras ao crescimento inclusivo, o “fosso digital” entre os países com melhor e pior desempenho na economia digital se transformará em um abismo digital.

Estimativas publicadas pela eMarketer, organização especializada em notícias e pesquisas sobre tendências digitais, revelam que as vendas de páginas web de comércio eletrônico atingiram US$ 22 trilhões em 2016, com projeções de que chegariam a US$ 27 bilhões em 2020. Muitos especialistas argumentam que o desenvolvimento de novas regras no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) é importante não apenas para assegurar a adaptação ao ritmo de evolução da economia global, mas também para garantir que o comércio digital seja inclusivo. Caso contrário, poderemos testemunhar a consolidação de um mosaico de acordos preferenciais envolvendo grupos limitados de países.

A digitalização e a economia globalA digitalização e as rápidas mudanças tecnológicas transformaram a economia mundial durante as duas últimas décadas, atraindo novos atores ao mercado e criando novas oportunidades. O ambiente institucional que regulamenta o comércio global pode ser utilizado para influenciar a essência e os resultados derivados da digitalização – incluindo a materialização de resultados positivos em matéria de desenvolvimento sustentável.

Os efeitos da digitalização no comércio mundialA Internet têm permitido o surgimento de novos modelos comerciais e afetado as indústrias tradicionais, obrigando as empresas a buscar uma adaptação para manter sua competitividade. A rápida evolução das telecomunicações impulsionou ainda mais esse processo, facilitando o comércio eletrônico a partir de qualquer dispositivo inteligente e permitindo que as empresas se beneficiem economicamente do oferecimento de novos tipos de serviços. Os avanços tecnológicos também facilitaram a participação de pequenas e médias empresas no comércio internacional, economizando tempo e reduzindo os custos de produção e comercialização.

No entanto, a impressão é a de que, não raramente, os países desenvolvidos e alguns países em desenvolvimento estão melhor preparados para tirar proveito do comércio eletrônico. Enquanto isso, muitos PMA enfrentam persistentes assimetrias institucionais, de conhecimento, capacitação e regulação – além de limitações em sua infraestrutura física que afetam a conectividade. Dependendo da forma como sejam desenhadas, as políticas na área do comércio eletrônico poderão resolver problemas ou piorar as disparidades entre países ou dentro deles.

O alcance dos marcos comerciais para regular e moldar a economia digitalOs defensores de discussões mais detalhadas sobre comércio eletrônico – ou de negociações sobre novas regras – no âmbito da OMC argumentam que o ritmo acelerado das mudanças tecnológicas requerirá uma agenda de comércio digital atenta às necessidades das pequenas e médias empresas. Essa agenda deverá conter políticas apropriadas e uma discussão sobre a mitigação de atritos regulatórios por meio da

Vários membros da OMC vêm buscando atualizar o programa de trabalho de 1998 sobre comércio eletrônico. Ademais, querem avaliar a possibilidade de estabelecimento de novas regras sobre o tema.

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redução dos custos de transação, menores custos logísticos e administrativos e uma maior transparência e coerência regulatória.

Da mesma maneira, os defensores das discussões afirmam que essas medidas deveriam vir acompanhadas da provisão de acesso confiável à Internet – segundo a meta 9.C dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS); programas de treinamento e capacitação; e ajuda para a criação de infraestrutura. A economia digital também pode permitir o acesso seguro à educação e à capacitação, por meio de plataformas eletrônicas e cursos online – conforme estabelecido pela meta 4.A dos ODS sobre a melhoria dos centros educativos ligados à questões de gênero, infância ou deficiência. Finalmente, a economia digital pode contribuir com a saúde e o bem-estar global (ODS 3), viabilizando o acesso aos serviços de atenção online que, por sua vez, podem incentivar a criação de empregos de qualidade.

O comércio eletrônico também pode facilitar uma maior participação das mulheres e pode ser utilizado para criar empresas em países com uma carência de redes profissionais e recursos – objetivo consistente com a meta 5.B dos ODS sobre um melhor aproveitamento das tecnologias da informação e comunicação (TIC) para o empoderamento feminino.

A história do comércio eletrônico nas negociações da OMCAlguns aspectos do comércio eletrônico já estão dentro do escopo das normas da OMC – incluindo as telecomunicações, os compromissos em serviços, as reformas aduaneiras e as considerações de propriedade intelectual. Acordos multilaterais e plurilaterais consagram e regulam cada um desses temas.

O Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS, sigla em inglês), o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS, sigla em inglês) e o Acordo de Tecnologia da Informação (ITA, mais tarde ampliado para ITA-II) contêm regras diretamente ligadas ao comércio eletrônico. Atualmente suspensas, as negociações para o estabelecimento do Acordo Plurilateral sobre o Comércio de Serviços (TiSA, sigla em inglês) também podem ser importantes caso sejam concluídas.

O programa de trabalho sobre comércio eletrônico da OMCPouco antes do fim do século XX, os ministros reunidos em Genebra na segunda Conferência Ministerial da OMC pediram o estabelecimento de um programa de trabalho sobre o comércio eletrônico. Esse programa de trabalho foi adotado pelo Conselho Geral em setembro de 1998, sendo conduzido em quatro dos órgãos permanentes da Organização: o Conselho para o Comércio de Bens, o Conselho para o Comércio de Serviços, o Conselho TRIPS, e o Comitê sobre Comércio e Desenvolvimento. Esses órgãos informariam então o Conselho Geral sobre seu progresso.

O programa de trabalho sobre comércio eletrônico se caracterizou pela proatividade na identificação de problemas e na descrição da agenda. No entanto, os analistas argumentam que sua implementação tem sido lenta, em parte devido à prolongada falta de consenso em áreas fundamentais – por exemplo, inexiste um consenso sobre a necessidade de clarificação das regras existentes ou de busca por um acordo totalmente separado. Durante anos, não ocorreram debates detalhados sobre o comércio eletrônico em reuniões de diversos órgãos da OMC.

Outras perguntas incluem: devem as atividades relacionadas ao comércio digital estar sujeitas ao Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT, sigla em inglês) ou ao GATS? Devem os produtos entregues eletronicamente ser tratados como bens, serviços, ou ambos? Finalmente, como lidar com a moratória de taxas aduaneiras para transmissões eletrônicas? Até o momento, a moratória tem sido renovada a cada dois anos. Frequentemente, tal renovação é precedida por um debate sobre torná-la permanente e ligada a um acordo específico. Em resumo, a falta de consenso em diversas questões tem dificultado avanços.

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Na 10ª Conferência Ministerial da OMC, celebrada em Nairobi em 2015, os ministros decidiram realizar revisões periódicas do programa de trabalho e informar a 11ª Conferência Ministerial sobre o resultado. Fora do processo dos órgãos formais designados, o grupo Amigos do Comércio Eletrônico para o Desenvolvimento (FED, sigla em inglês) está trabalhando para impulsionar a adoção de uma agenda política global de comércio eletrônico. O grupo, que inclui Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, México, Nigéria, Quênia, Paquistão, Sri Lanka e Uruguai, organizou reuniões informais na OMC sobre o tema.

Avanços nos acordos de livre comércioParalelamente, acordos de livre comércio atingiram progressos no desenvolvimento de novas disciplinas sobre o comércio digital. Atualmente, ao menos 6970 acordos regionais de comércio incluem um acordo sobre comércio eletrônico ou um ou mais artigos dedicados ao tema 1 . Entretanto, um recente artigo escrito por Mark Wu mostra que o escopo e a profundidade dessas disposições variam amplamente. Mais da metade dos membros da OMC assinaram ao menos um acordo regional de comércio com uma cláusula independente de comércio eletrônico – incluindo vários países em desenvolvimento, embora nenhum PMA participe do movimento.

Por exemplo, o Tratado de Livre Comércio entre Estados Unidos e Coreia do Sul (KORUS, sigla em inglês) cobre diversos temas relacionados ao comércio eletrônico – como a proibição de tarifas no comércio de produtos digitais; a proibição da discriminação entre produtos digitais “similares” nacionais e importados; o fomento do uso de assinaturas

Figura 1. Configuração do programa de trabalho sobre comércio eletrônico da OMC

Fonte: elaboração própria, com base na apresentação de Lee Tuthill no Seminário MIKTA sobre Comércio Eletrônico, realizado em Genebra em 5 de julho de 2016.

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digitais; a promoção da cooperação entre autoridades nacionais de proteção ao consumidor na prevenção de práticas enganosas no comércio eletrônico.

O Acordo de Associação Transpacífico (TPP, sigla em inglês) amplia a cobertura do KORUS, com a inclusão de compromissos sobre o livre fluxo transfronteiriço de dados – sujeito a exceções; a proibição dos requisitos para a transferência de tecnologia como condição para a realização de negócios; restrições à imposição de direitos aduaneiros sobre o tráfico pela Internet; e disposições para a proteção da encriptação. Desde a reabertura das conversas no âmbito do TPP após a saída dos Estados Unidos do Acordo, uma dezena de disposições relacionadas à propriedade intelectual e às telecomunicações foi suspensa – embora apenas algumas poucas estejam ligadas à cláusulas digitais. A grande maioria das disposições sobre propriedade intelectual suspensas regula questões como produtos biológicos, dados de testes de produtos farmacêuticos e patentes.

A intensificação das atividades da OMCO nível de compromisso e atividade dos membros da OMC quanto ao futuro do programa de trabalho sobre comércio eletrônico está mudando rapidamente, com dezenas de propostas apresentadas desde julho de 2016 – uma mudança notável dada a limitada atividade em anos anteriores. Às vésperas da Ministerial, as posições permanecem polarizadas. Os membros não chegaram a um acordo sobre a manutenção do status quo no programa de trabalho atual. A alternativa seria uma ampliação do escopo das discussões. Da mesma forma, inexiste consenso sobre a conveniência de uma abertura imediata das conversações. Ademais, os negociadores ainda não definiram se ampliarão ou revisarão a moratória dos direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas.

Basicamente, persiste o desacordo sobre a conveniência de abordar os chamados “novos temas”, que vão além da agenda da Rodada Doha. Outro ponto de discordância diz respeito à forma como tal abordagem se daria. Há dois anos, a questão dominou as conversações a nível ministerial em Nairobi. Alguns membros da OMC também citam a falta de um mandato para as negociações sobre comércio eletrônico e a necessidade de abordar primeiramente as questões abertas do programa de trabalho antes de permitir sua ampliação.

Figura 2. Número de acordos regionais de comércio com disposições de comércio eletrônico (por país)

Fonte: elaboração própria, baseado em Wu, Mark. Digital Trade-Related Provisions in Regional Trade Agreements: Existing Models and Lessons for the Multilateral System. ICTSD, 2017.

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Certos projetos recentes de decisão ministerial tomam um rumo distinto ao adotado pelo mandato anterior. O fato demonstra a existência de uma série de pontos de vista sobre a manutenção do programa de trabalho atual ou o estabelecimento de uma nova estrutura e objetivos para o debate – medida que poderia levar à discussão de novas regras e ideias.

O projeto de decisão ministerial apresentado pela Rússia em outubro propõe o estabelecimento de um Grupo de Trabalho sobre Comércio Eletrônico como o fórum para dar continuidade às conversações, para além dos órgãos da OMC atualmente lidando com o tema. Entre outras questões, o Grupo de Trabalho consideraria a participação dos países em desenvolvimento; a facilitação do comércio; os direitos de propriedade intelectual; e as normas – ou a falta de normas – na OMC. Do mesmo modo, uma proposta de Japão, Hong Kong e do Território Aduaneiro Distinto de Taiwan, Penghu, Kinmen e Matsu sugere um grupo de trabalho para avaliar se seria necessário esclarecer ou fortalecer as normas existentes na OMC; a partir daí, os membros decidiriam se vale a pena abrir novas negociações.

A China sugeriu em novembro que os esforços deveriam continuar com base no programa de trabalho contido no mandato atual, utilizando propostas dos membros para desenvolver e definir um plano de trabalho – com especial atenção aos países menos conectados. Bangladesh também defende a continuação dos esforços com base no programa de trabalho existente. O documento insta os países desenvolvidos e em desenvolvimento capazes de fazê-lo a proporcionar um acesso livre de tarifas e cotas (DFQF, sigla em inglês) às exportações dos PMA enviadas por plataformas de comércio eletrônico.

Em um documento próprio, Costa Rica se concentra em seis áreas de trabalho para uma possível Agenda de Comércio Eletrônico para o Desenvolvimento na OMC: infraestrutura de TIC e serviços; logística comercial; soluções de pagamento; marcos legais e regulatórios; capacitação em comércio eletrônico e assistência técnica; e acesso ao financiamento. Buscando obter um mandato ministerial, o documento estabelece um vínculo explícito entre as discussões sobre comércio eletrônico e os objetivos de desenvolvimento. Uma comunicação de Austrália, Canadá, Chile, Coreia do Sul, Noruega, Paraguai e União Europeia (UE) vai além, propondo o estabelecimento de um grupo de trabalho para preparar e levar a cabo negociações baseadas nas propostas dos membros.

Uma declaração em nome do Grupo Africano argumenta que, considerando que o programa de trabalho atual não foi suficientemente explorado, a criação de novas normas multilaterais sobre o comércio eletrônico seria prematura. O documento insta os membros da OMC a continuar o debate com base no programa de trabalho atual. Desde então, o grupo apresentou um projeto de decisão ministerial sobre o tema. Enquanto isso, Cingapura emitiu um projeto de decisão ministerial que manteria os debates no marco do programa de trabalho atual, junto com o pedido de revisões periódicas, por parte do Conselho Geral, do trabalho dos órgãos pertinentes da OMC, entre outras disposições.

A Ministerial de Buenos Aires e o futuroConforme assinalado anteriormente, os defensores de uma discussão das regras de comércio eletrônico na OMC argumentam que a falta de conversações poderia aprofundar as assimetrias no estabelecimento de regras. Ademais, uma enorme oportunidade seria perdida para que o comércio eletrônico ajude países e regiões a enfrentarem desafios como o desemprego, a pobreza e a limitada participação nos fluxos de comércio.

Entre o estabelecimento de oportunidades de inclusão e o potencial de contribuir para a agenda de desenvolvimento sustentável, os defensores de uma abordagem mais aprofundada para o comércio eletrônico no âmbito da OMC argumentam que um fracasso no estabelecimento de um debate poderia aprofundar ainda mais as desigualdades econômicas e o “fosso digital”.

Às vésperas da Ministerial de Buenos Aires, a gama de opções sobre comércio eletrônico é ampla. De fato, inexiste clareza sobre como os ministros tratarão o tema multilateralmente. No entanto, a abundância de propostas nos últimos meses é, por si

1998 – Os membros da OMC decidem estabelecer um programa de trabalho sobre comércio eletrônico. Ademais, mantêm a moratória de tarifas aduaneiras sobre transações eletrônicas – medida renovada em Conferências Ministeriais posteriores.

1998-2015 – A moratória é continuamente renovada nas Conferências Ministeriais, como parte do programa de trabalho, incluindo instruções para revisões periódicas. Em ritmos variados, segue o trabalho nos órgãos da OMC.

2015 – Em Nairobi, os membros da OMC decidem pela continuidade das revisões periódicas sobre o programa de trabalho. O ITA é ampliado.

2016 – O comércio eletrônico retorna à agenda do Conselho TRIPS pela primeira vez em mais de uma década.

2017 – A coalizão MIKTA e o grupo FED celebram eventos informais discutindo o comércio eletrônico na OMC. A Revisão Global da Ajuda para o Comércio enfatiza a conectividade e a inclusão.

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só, un sinal do interesse crescente e do compromisso com o tema – algo há muito tempo não visto na OMC. Essa realidade sugere que aquilo que surgir das discussões na Argentina ajudará a determinar se os membros recorrerão ao sistema multilateral de comércio para o intercâmbio de ideias – inclusive informalmente ou por meio de negociações plurilaterais – ou se continuarão tais debates em acordos regionais de comércio ou outros fóruns.

1 Este número inclui acordos regionais de comércio em negociação.

Tabela 1. Posições sobre elementos da Decisão da Conferência Ministerial de Buenos Aires sobre comércio eletrônico

Job 137

Job 140 Rev.4

Job 149

Job 150

Job 152 Rev.1

Job 153

Job 155

Job 156 Rev.1

Questões substantivas

Manter o mandato do Programa de 1998 como atualmente interpretado

X X X

Expandir a matéria das deliberações X X X X* X

Examinar o caso para as negociações X

Mandato para negociações no momento X

Abandono do Programa de Trabalho de 1998Sugerida como uma possibilidade/risco em discussões,

mas não incluída em nenhuma proposta

Assuntos organizacionais

Conservar o Programa de 1998 como o arcabouço para o trabalho em andamento

X X X X X

Estabelecer um novo órgão (Working Group ou Working Party)

X X X

Moratória de tarifas sobre as transmissões eletrônicas

Estender a moratória da Ministerial de Buenos Aires até o fim de 2019

X X X X X

Considerar a possibilidade de estender a moratória em Buenos Aires

X X

Ligação para a extensão da moratória sobre a não violação no TRIPS

X

* Referência explícita feita à necessidade de acordo por todos os membros.

Chave para a tabela:Job 137: Rússia Job 140 Rev.4: Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, União Europeia, Israel, Coreia do Sul, México, Montenegro, Noruega, Paraguai, Peru, UcrâniaJob 149: CingapuraJob 150: ChinaJob 152 Rev.1: BangladeshJob 153: ÍndiaJob 155: O Grupo AfricanoJob 156 Rev.1: Costa Rica, Hong Kong, China, Japão, Suíça, e o Território Aduaneiro Separado de Taiwan, Penghu, Kinmen e Matsu.

Fonte: Low, Patrick. E-Commerce and the WTO: Goals and Expectations towards MC11 and Beyond. ICTSD, no prelo.

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DESENVOLVIMENTO

Como revigorar negociações sobre o apoio ao papel de países em desenvolvimento no comércio global?

H á 16 anos, os membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) deram início à Rodada Doha de negociações comerciais, também conhecida como Agenda de Desenvolvimento de Doha. Seu objetivo: reescrever as regras do comércio global

e criar melhores condições para países em desenvolvimento desempenharem um papel mais expressivo no comércio mundial. Embora os membros da OMC tenham divergido na Conferência Ministerial de Nairobi quanto a reafirmar ou não o mandato de Doha, o desenvolvimento permanece no centro do diálogo comercial e das dinâmicas de negociação multilaterais.

Apesar de virtualmente todos os tópicos relacionados às regras do comércio global terem implicações significativas para o desenvolvimento, os membros da OMC têm se voltado mais especificamente à garantia de que as regras multilaterais atendam melhor às prioridades e necessidades específicas de países em desenvolvimento. A adoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em finais de 2015 deu um maior ímpeto político a essas discussões, com os objetivos de erradicar a pobreza e eliminar a fome até 2030, entre várias outras metas com dimensões de comércio e desenvolvimento.

Em especial, o ODS 17.1 estabelece uma meta desafiadora se consideramos as recentes estatísticas comerciais (Figura 1): “dobrar a participação de países de menor desenvolvimento relativo nas exportações globais até 2020”. Por sua vez, a meta 17.10 requer especificamente a conclusão das negociações da Rodada Doha. Um outro exemplo diz respeito à meta relativa à conservação e ao uso sustentável dos oceanos, sob o ODS 14. Além de pedir a proibição de subsídios à pesca predatória, a meta também se refere ao papel do tratamento especial e diferenciado adequado aos países em desenvolvimento.

Ao longo dos anos, os membros da OMC concordaram em várias decisões voltadas a ajudar países menos avançados (PMA) a melhor se integrarem à economia global e a melhorar suas perspectivas por meio do comércio. Esse foco nos PMA facilitou o estabelecimento de acordos por consenso entre os membros, levando a importantes resultados, notadamente no contexto dos “pacotes” para os PMA aprovados em Bali e Nairobi.

Contudo, um dos maiores desafios dentro das negociações da OMC tem sido cumprir um mandato de 2001 para revisar provisões de tratamento especial e diferenciado a fim de torná-las mais eficazes. Essas provisões dão direitos especiais a países em desenvolvimento, incluindo preferências isentas do princípio da nação mais favorecida, menores níveis de compromissos, derrogação de várias provisões, períodos mais longos de implementação e ajuda técnica.

Rumo à 11ª Conferência Ministerial da OMC em Buenos Aires, as discussões sobre esse tópico continuam, apesar de um resultado negociado parecer improvável até o fechamento desta edição. A definição de quais membros se beneficiariam dessas provisões permanece um obstáculo central, uma vez que países desenvolvidos não estão dispostos a conceder às economias emergentes os mesmos direitos que concederiam a PMA.

Ainda assim, com o comércio de PMA apresentando uma tendência inconsistente desde 2014 (Figura 1) e com um avanço desigual da diversificação ao longo da última década (Figura 2), mais esforços sobre questões específicas aos PMA permanecem importantes – apesar de nenhuma nova proposta de negociação ter sido circulada sobre esses tópicos, à exceção de algodão, que tem sido tratado em uma proposta à parte por quatro PMA da África Ocidental 1 .

Os membros da OMC têm discutido 10 propostas sobre tratamento especial e diferenciado, como parte de um esforço mais amplo para facilitar uma maior integração dos países em desenvolvimento ao comércio global.

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Figura 1. Exportações e importações de bens e serviços dos países menos desenvolvidos (bilhões US$)

Figura 2. Composição das exportações e importações dos países menos desenvolvidos (por setor)

Nota: Os dados são relatados em preços atuais (ou “nominais”) para cada ano, ou seja, no valor da moeda para aquele ano em particular. Por exemplo, os dados dos preços atuais apresentados para 1990 são baseados nos preços de 1990, para 2000 são baseados nos preços de 2000. Portanto, as séries atuais são influenciadas pelo efeito da inflação de preços.Fonte: elaboração própria, utilizando o banco de dados de Indicadores de Desenvolvimento do Banco Mundial, disponível em: http://databank.worldbank.org/data/

Nota: os dados se baseiam nas categorias agregadas da Classificação Padrão de Comércio Internacional (SITC, sigla em inglês), Rev.4.Fonte: cálculos do autor

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O tratamento especial e diferenciado novamente em pautaO conceito de tratamento especial e diferenciado é um elemento central das negociações da OMC, tanto como um tópico em si quanto como parte de debates específicos sobre outros assuntos, como aqueles relativos ao controle dos subsídios à pesca. O conceito de tratamento especial e diferenciado reconhece que países em diferentes fases de desenvolvimento podem exigir flexibilidades sob várias formas para lidar com vulnerabilidades específicas e fomentar sua integração no sistema multilateral de comércio.

Em 2001, os ministros concordaram que todas as provisões de tratamento especial e diferenciado contidas em acordos da OMC deveriam ser revistas, a fim de fortalecê-las e torná-las mais precisas, eficazes e operacionais. Deste então, entretanto, um entendimento sobre a maioria dessas questões permanece elusivo. De um conjunto original de 88 propostas apresentadas por países em desenvolvimento e PMA para o Comitê sobre Comércio e Desenvolvimento (CTD, sigla em inglês) da OMC, apenas 5 especificamente voltadas aos PMA levaram a um acordo – incluindo uma decisão de 2005 sobre acesso a mercado livre de tarifas e de cotas (DFQF, sigla em inglês).

Outros temas foram incorporados em linhas de negociação específicas, mas permanecem em sua maior parte não resolvidos. Membros da OMC também criaram, na Conferência Ministerial de Bali, um Mecanismo de Monitoramento para o acompanhamento de provisões de tratamento especial e diferenciado baseado em contribuições por escrito de membros e outros órgãos da OMC. Até agora, entretanto, o número limitado de submissões por escrito tem atrasado discussões mais substanciais neste âmbito.

Durante os preparativos para Buenos Aires, as negociações concentraram-se em uma nova proposta do G90 (JOB/DEV/48-JOB/TNC/60) circulada em nome do grupo de países da África, Caribe e Pacífico (ACP) e do Grupo Africano. Embora ainda não tenha sido tornada pública, a proposta se apoia em tentativas prévias de estreitar o escopo das 88 propostas originais. Antes de Nairobi, o G90 já havia destacado 25 propostas em um único documento (JOB/TNC/51), o qual foi posteriormente revisado duas vezes para acomodar preocupações de outros membros.

Sem conseguir alcançar um consenso em Nairobi, a nova submissão prioriza 10 propostas – incluindo 8 que já foram discutidas – voltadas a questões como o Acordo sobre Medidas de Investimentos relacionadas ao Comércio (TRIMS, sigla em inglês), o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, sigla em inglês), barreiras não tarifárias, subsídios, e duas novas propostas sobre transferência de tecnologia e o processo de adesão de PMA.

No âmbito do TRIMS, a proposta prevê isenções de até 15 anos para países em desenvolvimento no caso de uma medida proposta atingir certos objetivos de desenvolvimento relacionados à industrialização, transformação socioeconômica, modernização econômica, produção ecologicamente correta ou diminuição da desigualdade digital.

Sobre o Artigo XVII do GATT, as propostas permitiriam aos países em desenvolvimento, sobretudo PMA ou países-membros em desenvolvimento enfrentando “restrições”, modificar temporariamente ou retirar concessões por meio de um processo acelerado e simplificado, sem obrigações de oferecer compensações ou permitir que partes afetadas suspendam concessões similares por um período de cinco anos. Assim como com a proposta TRIMS, essa flexibilidade só seria permitida para alcançar certos objetivos, como a proteção de indústrias nascentes, atualização industrial ou recuperação após desastres naturais.

No que diz respeito a medidas sanitárias e fitossanitárias (SPS, sigla em inglês) e barreiras técnicas ao comércio (TBT, sigla em inglês), a proposta busca operacionalizar ajuda técnica e provisões de tratamento especial e diferenciado, inclusive definindo o que constitui um “tempo razoável” para PMA e países em desenvolvimento tecerem comentários sobre novas medidas SPS/TBT ou permitindo um “período maior para conformidade”.

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2001 – Os membros da OMC iniciam a Rodada Doha, com o objetivo de revisar as regras multilaterais e facilitar a participação dos países em desenvolvimento no comércio mundial.

2002 – Os membros adotam diretrizes para o acesso dos PMA. Ademais, adotam o programa de trabalho da OMC sobre acesso a mercado, assistência técnica relacionada ao comércio e iniciativas de capacitação, entre outras disposições.

2005 – Na Ministerial de Hong Kong, os ministros decidem que os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento que “se declarem em condições de fazê-lo” oferecerão acesso a mercado DFQF para os produtos exportados pelos PMA.

2006 – Lançamento da Iniciativa de Ajuda para o Comércio.

2011 – A Conferência Ministerial da OMC respalda a isenção que permite aos membros otorgar tratamento especial aos serviços e provedores de serviços dos PMA.

2012 – O Conselho Geral aprova as diretrizes atualizadas de adesão à OMC para os PMA.

2013 – Os membros da OMC adotam o “pacote” de medidas para os PMA na Conferência Ministerial de Bali, que inclui acesso DFQF, algodão, regras de origem preferenciais e a isenção aplicada aos serviços produzidos pelos PMA.

O documento também propõe um sistema de ajustes compensatórios que permite aos países em desenvolvimento manterem sua participação no mercado e se ajustarem a novas medidas.

Na questão dos subsídios, o G90 propõe que aqueles relacionados a diversos objetivos de desenvolvimento, como pesquisa e desenvolvimento, diversificação, desenvolvimento regional ou proteção ambiental, deveriam ser considerados como incontestáveis por um certo período. Isso foi originariamente previsto no Artigo 8 do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias da OMC, mas essa provisão expirou. Para gozar de tais flexibilizações, os beneficiários precisariam demonstrar que enfrentam certos desafios – por exemplo, falta de diversificação, queda no preço de commodities ou na produção industrial, ou desigualdade digital. Por fim, a proposta também prevê certas exceções à proibição de subsídios que dependem de requerimentos de conteúdo local.

Para a avaliação aduaneira, a proposta sugere a adoção de técnicas de avaliação diferentes para PMA enfrentando dificuldades na definição do valor de um bem importado, até que capacidade de implementação seja adquirida por meio de cooperação técnica.

Em matéria de acesso a mercado, as disciplinas propostas obrigariam países que concedem preferências comerciais a levar em conta as necessidades de países em desenvolvimento e PMA quando projetarem seus esquemas preferenciais, para garantir que as exportações dessas nações recebam preferências significativas.

Sobre a transferência de tecnologias, a proposta pede medidas para permitir um acesso eficaz à tecnologia em termos justos, não-discriminatórios e razoáveis. Aos países desenvolvidos, cabe estabelecer um “Inventário de Tecnologia de Propriedade Pública”, disponibilizando informações sobre tecnologias que recebem pelo menos metade de seu financiamento de órgãos públicos. O G90 também solicita apoio técnico para ajudar os PMA a melhorarem sua base tecnológica e capacidade de inovação.

Ainda sobre o processo de adesão de PMA, a proposta afirma que os membros devem implementar em sua totalidade os marcos para concessões de bens e serviços acordados na decisão do Conselho Geral de 2012, que atualizou as normas de acesso para os PMA. Também, pede para que o procedimento de rápida adesão recentemente utilizado com PMA seja regulamentado.

A proposta do G90 foi intensamente discutida na Sessão Especial do CTD. Em geral, os membros permanecem divididos. Austrália, Canadá, União Europeia (UE) e Japão levantaram questões quanto à lógica que rege as emendas propostas, aos desafios específicos enfrentados por países em desenvolvimento e à aplicação prática de tais propostas. Divergências importantes também surgiram sobre o problema da “diferenciação”, ou seja, se países em desenvolvimento de renda alta e baixa deveriam ser tratados da mesma forma sob essas provisões.

Continuando as discussões sobre temas relacionados a PMADesde o começo da Rodada de Doha, uma série de questões relativas aos PMA ganharam força, resultando nos “pacotes” adotados nas Conferências Ministeriais de Bali e Nairobi, em 2013 e 2015, respectivamente. Estes foram articulados em torno de questões centrais como um “waiver” que permite conceder preferências no comércio de serviços, acesso a mercado DFQF, regras de origem preferenciais e algodão. Apesar da ausência de negociações substanciais sobre questões específicas aos PMA nos preparativos para a MC11, avançar nessa agenda não requer necessariamente novas regras no nível multilateral; avanços podem ser obtidos por meio de melhorias na implementação das decisões que já existem.

Acesso a mercado DFQF Em 2005, os ministros da OMC reunidos em Hong Kong acordaram que “países-membros desenvolvidos devem (...) oferecer acesso duradouro a mercado livre de tarifas e de cotas para todos os produtos advindos de todos os PMA”. No entanto, outra provisão atenuou o

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escopo da decisão, afirmando que “membros enfrentando dificuldades (...) devem fornecer acesso ao mercado livre de tarifas e de cotas para pelo menos 97% dos produtos oriundos de PMA” enquanto trabalham para atingir a meta completa.

Atualmente, muitos países-membros desenvolvidos oferecem acesso a mercado DFQF total ou quase total para produtos de PMA, com algumas exceções setoriais relacionadas a seus respectivos mercados. Alguns países em desenvolvimento também notificaram à OMC seus planos de acesso a mercado DFQF para PMA. Recentemente, os membros da Organização concordaram em pedir que o Secretariado examine a implementação da decisão de acesso a mercado DFQF, a fim de informar sobre discussões futuras.

Regras preferenciais de origem para PMARegras de origem definem os critérios que determinam a fonte nacional de um produto. Como as exportações de PMA se beneficiam de acesso preferencial e DFQF ao mercado em vários países, a capacidade de assegurar a origem de um produto é crucial; daí a importância de ter regras de origem simples e preferenciais em vigor para os PMA.

Na Ministerial de Bali, em 2013, os membros da OMC deram um passo significativo ao adotarem o primeiro conjunto de normas multilaterais sobre esse tópico. Dois anos mais tarde, em Nairobi, adotaram outra decisão ministerial sobre regras de origem preferenciais para PMA, apoiando-se na decisão prévia e oferecendo orientações específicas.

Apesar de nenhuma nova proposta de negociação sobre regras de origem preferenciais ter sido enviada em preparação para Buenos Aires, um importante trabalho técnico estipulado pela decisão de Nairobi tem sido realizado desde sua adoção. Em particular, os membros da OMC entraram em acordo, em março de 2017, sobre um modelo comum para notificação de esquemas de regras de origem preferenciais para PMA, com vistas a melhorar a transparência e a equivalência entre requerimentos. Desde então, 15 membros da OMC submeteram notificações elaboradas sob o novo modelo, destacando como querem ajudar os PMA a se beneficiar de preferências por meio de regras de origem menos rigorosas.

Waiver de serviçosEsforços para operacionalizar de maneira comercialmente significativa a decisão de um waiver que concede tratamento preferencial a serviços e fornecedores de serviços oriundos de PMA estão em vigor desde 2011. A decisão ministerial de Nairobi sobre esse tema estendeu a duração do waiver até 31 de dezembro de 2030 e encorajou tanto membros desenvolvidos quanto membros em desenvolvimento “em posição de fazê-lo” a “redobrar esforços” para notificar preferências alinhadas com a demanda coletiva submetida em julho de 2014.

Até agora, 24 membros apresentaram notificações em relação ao tratamento preferencial que gostariam de conceder a serviços e fornecedores de serviços de PMA, e o grupo dos PMA reiterou a necessidade de ajuda adicional e de maiores discussões para fazer melhor uso destas notificações.

Previsões para o futuroA preocupação de alguns grupos de interesse com a possível falta de resultados claros nos tópicos de negociação específicos da agenda de desenvolvimento – como tratamento especial e diferenciado e questões relacionadas a PMA – não significa que Buenos Aires terá pouca importância do ponto de vista do desenvolvimento.

As discussões sobre tratamento especial e diferenciado podem vir a informar os esforços mais amplos para criar um programa de trabalho para a era pós-Buenos Aires, e a importância de lidar com as necessidades de países em desenvolvimento tem estimulado discussões em áreas que vão da proibição de subsídios à pesca à regulação doméstica de serviços.

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Conforme os ministros consideram a próxima fase da OMC, a importância das dimensões do desenvolvimento permanecerá uma preocupação central na Organização, sobretudo considerando que esta continua a ser a única instância em que praticamente todo o comércio global está contemplado e na qual países de todo o espectro de desenvolvimento têm uma voz na mesa de negociação.

A direção e o impulso oferecido pelos ODS também significam que os 164 membros da OMC precisam pensar na melhor forma de desenhar novas regras comerciais e de implementar aquelas já existentes, a fim de apoiar o esforço global para atingir esses objetivos de desenvolvimento sustentável.

1 Para mais informações, ver o artigo sobre agricultura neste número especial.

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GÊNERO

Grupo de membros da OMC: hora de focar em gênero como um tema crítico de inclusão

Em Buenos Aires, espera-se que uma coalizão de países desenvolvidos e em desenvolvimento prepare uma declaração que esboce linhas de ação para os próximos dois anos com vistas à incorporação de uma abordagem de gênero para as políticas

de comércio e desenvolvimento.

A declaração desse subgrupo da Organização Mundial do Comércio (OMC) será emitida fora do processo normal de negociação. No entanto, esse conjunto de compromissos voluntários pode servir para reforçar a importância do tema no âmbito da Organização, e as medidas acordadas podem ajudar a lidar com antigas deficiências de conhecimento na esfera comercial – pavimentando, assim, o caminho para ações mais concretas na direção de uma maior participação das mulheres no comércio.

Entre os membros que devem apoiar a declaração estão Argentina, Benim, Canadá, Costa Rica, Fiji, Finlândia, Islândia, Montenegro, Noruega, Paquistão, Paraguai, Quênia, Reino Unido, Serra Leoa, Suécia e a União Europeia (UE). Alguns desses membros já revelaram sua intenção de assinar o documento publicamente – inclusive por meio de uma campanha nas redes sociais, com a hashtag #mc11women.

Esses países têm trabalhado com o Grupo de Impacto do Comércio (TIG, sigla em inglês), que faz parte da coalizão Defensores Internacionais de Gênero, que tem coordenado os preparativos.

Utilizando uma abordagem de gêneroEntre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas criados em 2015, um deles (ODS 5) dedica-se à igualdade de gênero e ao empoderamento de mulheres e garotas. As metas desse Objetivo incluem a “participação plena e efetiva e oportunidades iguais de liderança em todos os níveis de tomada de decisões”, além de medidas que ofereçam às mulheres “direitos iguais a recursos econômicos” e uma gama de outras metas relacionadas a acesso universal à saúde, prevenção de violência contra a mulher e combate à discriminação.

Em todo o espectro do desenvolvimento sustentável, os processos de políticas públicas têm cada vez mais reconhecido que as mulheres enfrentam barreiras específicas de gênero, as quais têm dificultado seu avanço nas esferas econômica, social e política. Também tem sido crescentemente aceita a ideia de que enfrentar essas barreiras pode resultar em benefícios tangíveis para a economia nos níveis doméstico e global.

Nesse sentido, vários centros decisórios têm operado com a ideia de que trabalhar com uma perspectiva de gênero é fundamental para o processo de elaboração de políticas, desde a sua fase inicial. Assim, tem ganhado força a ideia de que ter mais mulheres envolvidas em diferentes níveis do processo decisório pode oferecer contribuições valiosas sobre os impactos das políticas públicas nas sociedades, além de, logicamente, enriquecer abordagens mais igualitárias.

Por exemplo, na 23ª Conferência das Partes (COP 23) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês) realizada neste ano na cidade alemã de Bonn, os negociadores assinaram um “plano de ação de gênero”, cujo objetivo é aumentar a débil representação feminina nas negociações climáticas. Com isso, avançou-se na direção de acordos climáticos internacionais “atentos a questões de gênero” e da incorporação de uma abordagem de gênero como elemento imprescindível e normal no

Vários membros da OMC têm discutido formas de construir um entendimento mais amplo sobre a relação entre comércio e gênero, estabelecendo políticas mais sensíveis às questões de gênero.

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processo de formulação de políticas públicas – movimento de fundamental importância, tendo em vista que os efeitos da mudança climática também apresentam uma dimensão de gênero.

Dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que as mulheres permanecem subrepresentadas nas posições mais altas do processo de formulação de políticas públicas em diversas áreas. Com efeito, apenas um terço desses cargos é ocupado por mulheres – e esse percentual é ainda menor nos legislativos domésticos.

Desenvolvendo um perfil públicoUm dos maiores obstáculos que esse tema precisou enfrentar é a visibilidade: falar de gênero como um tema em si, e não como um aspecto mais de outras áreas da política pública.

É possível identificar alguns sinais de mudança, principalmente à medida que mais mulheres passaram a ocupar posições de alto nível na formulação de políticas públicas e reivindicaram a necessidade de dar maior visibilidade à perspectiva de gênero.

Especialistas em comércio destacam que a recente incorporação de “gênero” em capítulos especialmente dedicados ao tema em acordos de livre comércio tem estimulado a conscientização e colocado em evidência a magnitude do trabalho que ainda é preciso fazer.

Na esfera do comércio internacional, é crescente a conscientização de que tornar o comércio sustentável significa também torná-lo inclusivo. Alguns países já tomaram medidas para negociar capítulos específicos sobre gênero, como mostram as tratativas de acordos de livre comércio envolvendo Chile e Uruguai e Chile e Canadá. Na OMC, em contraste, essa discussão só está começando: são recentes os movimentos do Secretariado para fazer desse um ponto focal dos trabalhos.

Enquanto isso, a crescente visibilidade do tema de gênero no discurso internacional sobre políticas comerciais tem colocado em evidência a necessidade de avançar na produção de conhecimento nessa matéria.

Uma pesquisa da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, sigla em inglês) mostrou que a obtenção e análise de dados é uma das áreas mais desafiadoras para a criação de políticas atentas à dimensão de gênero. Por exemplo, as análises sobre os efeitos da liberalização do comércio ainda não foram capazes de incluir os impactos de políticas comerciais sob uma perspectiva de gênero. Como as mulheres são afetadas por políticas que beneficiam setores nos quais os homens respondem por um percentual significativo da força de trabalho? Como isso impacta a sociedade como um todo?

Assim, a declaração sobre gênero liderada por um grupo de membros da OMC está sendo mobilizada como um importante passo inicial para realçar, no âmbito da Organização, como o comércio afeta oportunidades econômicas oferecidas às mulheres. A iniciativa também busca lidar com o problema dos dados: a comunidade que cria as políticas comerciais ainda não tem as informações necessárias para lidar com os impactos do comércio diferenciados por gênero, os quais variam de acordo com o país estudado. Conceitualmente, a questão também é pouco compreendida e vai de encontro a atitudes culturais ou normas sociais discriminatórias. Isso pode dificultar a implementação de políticas atentas à dimensão de gênero – tanto no comércio quanto em outras áreas.

Na tentativa de entender melhor os efeitos das questões de gênero sobre o comércio e os fatores que explicam tais processos, a declaração dos membros da OMC inclui um compromisso para o intercâmbio de informações sobre suas respectivas experiências com políticas públicas que contenham uma dimensão de gênero. Ainda, o documento encoraja a discussão de métodos para coletar dados sobre diferentes impactos do comércio internacional, bem como o aprofundamento de uma base de conhecimento por meio de seminários dedicados ao tema nos próximos anos.

1979 – Assinatura da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que entra em vigor em 1980.

1995 – A Declaração de Beijing e a Plataforma de Ação são adotadas durante a quarta Conferência Mundial sobre a Mulher.

2000 – O grupo ACP e a UE concluem um acordo de associação e incluem uma referência ao respeito aos direitos das mulheres em seu preâmbulo.

2015 – Os membros da OMC adotam a Agenda 2030 e os ODS. O ODS 5 incopora a igualdade de gênero e o empoderamento de mulheres e garotas. A iniciativa SheTrades é lançada pelo ITC para conectar um número maior de mulheres ao mercado internacional.

2016 – Adoção do mandato de Maafikiano sobre questões de gênero na UNCTAD XIV, ampliando o mandato sobre comércio e gênero.

2016 – Chile e Uruguai assinam um acordo de livre comércio, que inclui um capítulo sobre gênero.

2017 – A UE e o ITC recebem o Fórum Internacional sobre a Mulher e o Comércio. Chile e Canadá negociam um capítulo sobre gênero em seu acordo bilateral. Um subgrupo de membros da OMC prepara uma declaração conjunta sobre comércio e empoderamento econômico das mulheres. Uma coalizão de membros da OMC também apresenta uma proposta de texto sobre como evitar a discriminação de gênero na regulação nacional dos serviços.

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A declaração também faz referência ao papel da Iniciativa de Ajuda para o Comércio da OMC e seu possível aproveitamento para apoiar esse esforço. Criada há mais de uma década, a Iniciativa busca ajudar países em desenvolvimento e países menos avançados enquanto desenvolvem os sistemas e a infraestrutura necessários para que se integrem melhor ao comércio internacional. De acordo com o Centro de Comércio Internacional (ITC, sigla em inglês), cerca de 40% das pequenas e médias empresas no mundo são de mulheres – um percentual que cai para quase metade quando olhamos apenas para países em desenvolvimento.

Uma versão rascunhada da declaração, acessada pela equipe do ICTSD, faz referência a um relatório de progressos na implementação dessas e outras metas até 2019.

Paralelamente à Conferência Ministerial, serão realizadas em Buenos Aires discussões sobre comércio e gênero em eventos organizados pelo setor empresarial, sociedade civil e think tanks. Por exemplo, em 12 de dezembro haverá um painel sobre comércio e gênero no Fórum de Negócios, organizado pelo governo argentino e pela Câmara de Comércio Internacional. Fontes afirmam que o evento pode estimular um maior engajamento na declaração. Atividades sobre comércio e gênero também farão parte do Simpósio sobre Comércio e Desenvolvimento Sustentável (TSDS, sigla em inglês), organizado pelo ICTSD, com destaque para o evento “Como fazer o comércio contribuir para a igualdade de gênero?”, que contará com a participação de vários ministros.

Até o fechamento desta edição, membros estavam consultando suas respectivas capitais sobre o apoio à declaração durante a Conferência Ministerial, e fontes indicaram um “bom nível de engajamento”.

Iniciativas comuns em Conferências Ministeriais da OMC, declarações como essa refletem compromissos voluntários que podem vir a pavimentar o caminho para negociações no futuro. Ademais, a declaração poderá ser assinada por outros membros antes da 12ª Conferência Ministerial da Organização, programada para o final de 2019. Ainda, a questão pode ser levantada no Conselho Geral da OMC nesse período de dois anos.

O combate à discriminação no comércio de serviçosAlém da declaração, alguns países estão pressionando para chegar a um resultado negociado sobre gênero no nível multilateral durante a reunião de alto nível em Buenos Aires.

Há alguns meses, o Canadá submeteu uma proposta sobre igualdade de gênero à apreciação do Grupo de Trabalho sobre Regulação Doméstica da OMC, que lida com possíveis disciplinas sobre qualificação e requisitos de licenciamento e temas relacionados ao comércio de serviços.

O documento exige que os membros não discriminem indivíduos com base no gênero, no contexto de requisitos e procedimentos de licenciamento e qualificação. A proposta conta com o apoio de 16 outros membros da OMC, incluindo Albânia, Argentina, Austrália, Cazaquistão, Chile, Colômbia, Islândia, Liechtenstein, Macedônia, Moldávia, Montenegro, Noruega, Panamá, Paquistão, UE e Uruguai.

Os debates sobre a proposta revelam diferentes abordagens: alguns membros questionam se há um mandato atual na OMC que se ocupe do tema de gênero; outros preferem discutir se a ênfase deve incidir sobre o combate à discriminação ou sobre o empoderamento econômico das mulheres.

Olhando para o futuroMesmo que as negociações sobre regulação doméstica não avancem muito em Buenos Aires e a declaração conjunta sobre empoderamento econômico feminino não seja vinculante, a incorporação do tema à agenda da Organização deve ser celebrada como um marco. Afinal, trata-se de um sinal de que os membros e o público em geral esperam cada vez mais que a OMC responda – e de que ela está em condições de fazê-lo – a essa e outras mudanças.

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FACILITAÇÃO DOS INVESTIMENTOS

A emergência de um renovado debate sobre comércio global e investimento

D iscussões sobre como facilitar o investimento fazem parte do debate global sobre política econômica há muito tempo, com interconexões envolvendo medidas de investimento relacionadas ao comércio, serviços e propriedade intelectual. Nos

últimos meses, grupos de membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) tentaram trazer a discussão para o sistema multilateral de comércio e aumentar sua visibilidade. Seu argumento é o de que, em um mundo marcado pelos complexos padrões de produção e pela consolidação de cadeias globais de valor (CGV), a regulação econômica é inadequada quando seus instrumentos políticos se desenvolvem de forma isolada.

Outros membros argumentam que a facilitação de investimentos é um “Tema de Cingapura” – em referência a uma série de tópicos cuja adição ao mandato de negociação da OMC sob a Rodada Doha foi considerada e que, em grande parte, foi arquivada. O grupo também afirma que discussões sobre a facilitação de investimentos no âmbito da OMC desviariam a atenção e recursos de décadas de negociação em temas críticos para os países em desenvolvimento e os países menos avançados (PMA).

As propostas para um acordo sobre facilitação de investimentos na OMC estão em um estágio inicial. Fundamentalmente, o que está em jogo é a maneira como os membros conceberão o relacionamento entre os regimes de comércio e de investimento durante e depois da Conferência Ministerial da OMC em Buenos Aires. Além disso, está em discussão o papel do investimento privado na promoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). A Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, sigla em inglês) estima que os países em desenvolvimento requerirão US$ 2,5 trilhões por ano para materializar os ODS, e que investidores privados precisarão prover metade desse valor.

O tema “investimento” no atual arcabouço da OMCO atual arcabouço da OMC já contém abordagens fragmentadas para as regras que regulam o investimento. Medidas relacionadas à relação entre comércio e investimento são encontradas em acordos como o Acordo sobre Medidas de Investimento relacionadas ao Comércio (TRIMS, sigla em inglês), o Acordo Geral sobre Comércio e Serviços (GATS, sigla em inglês), o Acordo de Compras Governamentais (GPA, sigla em inglês), e o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPS, sigla em inglês). Porém, as disposições encontradas em cada um desses tratados regulam apenas a utilização de restrições ao investimento com uma relação específica com o comércio ou em setores em que os membros têm compromissos.

Esses acordos relacionam explicitamente o acesso a mercado e benefícios de tratamento nacional à produção de bens e à provisão de serviços. Ao focar nos aspectos do investimento estrangeiro direto (IED) relacionados ao comércio, os membros limitaram o escopo das regras de investimento da OMC, retendo seu direito de regular o IED segundo as prioridades nacionais de desenvolvimento.

Realizada em 1996, a Conferência Ministerial de Cingapura seria marcada pelo consenso em torno do estabelecimento de grupos de trabalho sobre os seguintes temas: investimento, política de concorrência e transparência nas compras governamentais – temas que, juntamente com a facilitação do comércio, ficariam conhecidos como Temas de Cingapura. O grupo de trabalho sobre investimento focou no relacionamento econômico entre comércio e fluxos de investimento.

Discussões informais entre grupos de membros da OMC têm focado cada vez mais na relação entre o comércio e os regimes de investimento.

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Após anos de debate – e com exceção da facilitação do comércio –, os Temas de Cingapura foram excluídos do programa de trabalho da Agenda Doha em julho de 2004. Realizada em 2003, a Ministerial de Cancún foi a última grande tentativa de criar regras sobre investimentos na OMC até 2017.

A evolução das CGVs e o debate sobre facilitação de investimentosDesde o lançamento da Rodada Doha há 16 anos, várias mudanças ocorreram no cenário econômico global. As transformações incluem o rápido crescimento na escala e na profundidade dos acordos internacionais de investimento, dos acordos bilaterais de investimento (BIT, sigla em inglês), e dos acordos regionais de comércio. O período também se caracteriza pela consolidação de padrões de produção cada vez mais complexos, organizados por meio das CGVs.

O acelerado ritmo das mudanças no cenário comercial e de investimento pode demandar uma resposta igualmente rápida da comunidade internacional. Pesquisa conduzida por diversas organizações – entre as quais o Banco Mundial e a OMC – revelou que acordos comerciais e de investimento dotados de maior profundidade e escopo podem resultar em maiores fluxos de investimento por meio das CGVs, reduzindo custos e direcionando investimentos para o financiamento de obras de infraestrutura e transporte. Além disso, o investimento pode desempenhar um importante papel na materialização de objetivos de desenvolvimento. Números publicados pelo Banco Mundial mostram que, em 2016, mais de 40% do fluxo aproximado de US$ 1,75 trilhão de IED teve os países em desenvolvimento como destino, oferecendo uma fonte de financiamento que frequentemente ultrapassa a ajuda estrangeira.

No papel de presidente do G20, a China criou um novo Grupo de Trabalho sobre Comércio e Investimento (TIWG, sigla em inglês) e definiu princípios norteadores para políticas de investimento. Não vinculantes, os princípios foram endossados por todos os líderes do G20 na Cúpula de Hangzhou, em setembro de 2016. Embora a facilitação de investimentos tenha sido mencionada apenas brevemente na versão final – em referência a uma maior transparência e a um clima de negócios favorável –, sua inclusão geraria uma sensibilização crescente sobre a importância de políticas voltadas ao investimento claras e eficientes para apoiar os padrões atuais de produção.

Entretanto, os membros da OMC estão divididos sobre como abordar a facilitação de investimentos no futuro. Em parte, a divisão ocorre porque não se sabe se o tema deve ser considerado um “novo tema”. O início de negociações formais multilaterais alinhadas com a declaração ministerial de Nairobi dependeria de um consenso.

Enquanto discussões sobre investimentos na OMC tradicionalmente consideravam a regulação ao IED como um todo, as atuais propostas se limitam a facilitar o investimento, evitando algumas das áreas com um alto grau de sensibilidade política, como o acesso a mercado e a resolução de controvérsias. De fato, as propostas focam em medidas com o objetivo de facilitar o estabelecimento, expansão e manutenção cotidiana dos negócios nos países receptores do investimento. Ademais, lidam com outros obstáculos, como a necessidade de maior transparência, compartilhamento de informações e um ambiente político estável.

Facilitação de investimentos na OMC: o que está em jogo?No centro da questão sobre a facilitação de investimentos residem dúvidas fundamentais: deve o tema ser discutido no âmbito da OMC? É necessária a inclusão do tema na agenda de negociação para que os membros possam acompanhar uma economia global em constante transformação? O debate também renova os questionamentos sobre a natureza da relação entre comércio e investimento – intercambiáveis ou complementares, eis a questão –, afetando o tratamento recebido pela facilitação de investimentos.

O grupo “Amigos da Facilitação de Investimentos para o Desenvolvimento” (FIFD, sigla em inglês) é formado por 11 membros da OMC: Argentina, Brasil, Cazaquistão, Chile, China, Colômbia, Coreia do Sul, Hong Kong, México, Nigéria e Paquistão. Por sua vez,

1998 – Os membros da OMC decidem estabelecer grupos de trabalho sobre quatro “questões de Cingapura” – investimento, políticas de concorrência, transparência na contratação pública, facilitação do comércio – para sua possível inclusão nas conversações de Doha.

2003 – A Conferência Ministerial de Cancún termina em um impasse.

2004 – Os membros da OMC decidem abandonar todos os “Temas de Cingapura” – exceto a facilitação do comércio.

2013 – Os membros da OMC adotam o TFA na Conferência Ministerial de Bali.

2015 – Criação do Marco de Políticas de Investimento da OCDE (PFI, sigla em inglês).

2015 – Os Estados-membros da ONU adotam a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, os ODS e o Plano de Ação de Adis Abeba, que discute as lacunas de investimento no financiamento para o desenvolvimento. O Marco de Políticas de Investimento para o Desenvolvimento Sustentável da UNCTAD é adotado em Adis Abeba.

2016 – A UNCTAD publica o Menu de Ação Global para a Facilitação de Investimentos.

2016 – Os membros do G20 adotam os Princípios para a Formulação das Políticas de Investimento Global.

2017 – O grupo FIFD celebra reuniões informais sobre facilitação dos investimentos na OMC. O grupo também organiza um fórum de alto nível em Abuja (Nigéria) com a ECOWAS.

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o grupo MIKTA é formado por México, Indonésia, Coreia do Sul, Turquia e Austrália. Com composições sobrepostas, as duas coalizões solicitam que o tema da facilitação de investimentos seja abordado no âmbito da OMC. Um documento submetido pelo FIFD cita as crescentes interconexões entre o comércio e os fluxos de investimento, que se reforçam mutuamente para promover o desenvolvimento global e o crescimento inclusivo. Por exemplo, o grupo argumenta que o GATS já cobre IED em serviços – fração correspondente a dois terços do estoque global de IED interno e 55-60% do comércio total em serviços.

Por sua vez, a Índia sugere que medidas de facilitação relacionadas aos serviços deveriam ser tratadas de forma separada – possivelmente por meio de um Acordo de Facilitação do Comércio de Serviços. Embora membros discutam a conveniência de focar em arranjos institucionais domésticos para facilitar o investimento apenas no setor de serviços, Índia, África do Sul, Uganda, Bolívia e vários outros países argumentam que regras sobre facilitação de investimentos excederiam o mandato atual da OMC.

Outra questão em jogo se refere às diferenças entre o Acordo de Facilitação do Comércio (TFA, sigla em inglês) da OMC e um possível acordo sobre facilitação de investimentos – considerando as implicações da questão dos investimentos sobre regras e instituições domésticas. De fato, a facilitação de investimentos pode exigir reformas legais que evitem os custos crescentes da atividade empresarial, garantam a concorrência e maximizem a eficácia e a eficiência de sua administração ao longo de todos os estágios do ciclo de investimentos.

Outro desafio pode surgir da necessidade de melhorias na infraestrutura física, maior qualidade dos serviços disponíveis às empresas, capacitação da mão-de-obra e uma proteção mais efetiva dos direitos de propriedade. Essas questões levantam dúvidas sobre a possível perda da soberania regulatória e autonomia para a determinação da política econômica e regulatória em caso da assinatura de um tratado global sobre a facilitação de investimentos.

Propostas em negociação para Buenos AiresDiscussões sobre a facilitação de investimentos foram recentemente trazidas para a OMC por meio de esforços coordenados dos grupos FIFD e MIKTA. Ao longo de 2016, os grupos organizaram seminários e diálogos informais. Mais recentemente, um fórum de alto nível sobre comércio e facilitação de investimentos foi realizado pelo FIFD em associação com a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS, sigla em inglês).

Nesse contexto de renovado interesse pela discussão do tema, China, Rússia, Argentina e Brasil, assim como países dos grupos MIKTA e FIFD, submeteram várias propostas à OMC sobre facilitação de investimentos, usando como modelo o escopo e a estrutura do TFA. Apesar da ampla convergência em questões como maior transparência, eficiência, e coordenação internacional, as propostas também apresentam algumas diferenças notáveis.

Organizado pelo grupo MIKTA em abril, o seminário “Reflexões sobre a Facilitação de Investimentos” sugeriu que as discussões sobre o tema na OMC devem fortalecer os fluxos de comércio e investimento, assim como a coerência entre as políticas envolvendo ambos os regimes. A proposta do grupo FIFD por um “Diálogo Informal sobre a Facilitação de

Figura 1. O debate sobre facilitação de investimentos ganha impulso

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Tabela 1. Tabela comparativa de propostas sobre facilitação de investimentos

RússiaGrupo MIKTA

Grupo FIFD

ChinaArgentina e

Brasil

Data de Submissão30 abril

20174 abril 2017

21 abril 2017

21 abril 2017

24 abril 2017

Escopo

Proteção ao investimento x x x xAcesso a mercados x x x xSolução de Controvérsias x x x x

Transparência

Publicar leis e regulamentos de investimentos relevantes

Permitir que as partes interessadas comentem as propostas e emendas regulatórias x x

Elaborar princípios comuns para processar aplicações x x xEstabelecer o(s) ponto(s) focal(ais) para consultas razoáveis x x xEstabelecer mecanismos de janela única (eletrônicas) x x xNotificar novas leis e emendas x xReservar direito a não divulgação de informações sensíveis x x x x

Eficiências Administrativas

Fornecer informações e estabelecer procedimentos claros e consistentes para a obtenção de licenças x

Agilizar e rever periodicamente os procedimentos / fornecerdecisões em prazos estabelecidosFornecer informações e manter taxas e encargos a um mínimo x x x

Aprovação única x x xMelhorar a comunicação do estado investidor (por exemplo, ombudspersons/Pontos Focais nacionais) x x x

Facilitar a prevenção e resolução de disputas x x xIncluir disciplinas para impor sanções por violação de regulamentos relacionados ao investimento x x x x

Melhorar a coordenação entre as instituições regulatórias nacionais x x x x

Facilitar a entrada e a permanência de pessoal relacionado aos investimentos x x x x

Melhorar o acesso dos investidores à infraestrutura pública básica x x x

Cooperação Internacional e Implementação

Salvaguardas (tratamento especial e diferenciado)

Prover assistência técnica e capacitação para a implementação x x

Incentivar a responsabilidade social corporativa dos investidores x x

Melhorar a cooperação entre os pontos focais nacionais / ombudspersons x

Usar categorias TFA para a implementação / Estabelecer um Comitê na OMC x x x x

Permitir que os membros se auto-avaliem a capacidade de implementar regras x x x x

Criar base para discutir o futuro acesso a mercado e de tratamento de disciplinas x x x x

Melhorar a eficiência de triagem e o apoio político de investimentos externos para países em desenvolvimento e menos desenvolvidos

x x x x

Fornecer atenção prioritária às necessidades de desenvolvimento dos países menos desenvolvidos x x x x

Fonte: ICTSD

Investimentos”, também distribuída em abril, pede por um diálogo informal “para explorar – sem limitar ou prejudicar possíveis resultados – o papel que a OMC desempenharia enquanto fórum para discutir medidas que os membros poderiam adotar para facilitar o investimento”.

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A proposta de Argentina e Brasil para um “Instrumento sobre Facilitação de Investimentos” na OMC foca na definição de Pontos Focais Nacionais ou Ombudspersons no nível doméstico, que cooperariam entre si e se coordenariam, além de diálogar com um Comitê sobre Facilitação de Investimentos da OMC – cuja criação o documento também sugere.

A proposta da Rússia se diferencia da abordagem adotada por outras propostas sobretudo por incluir provisões sobre “prevenção e solução de controvérsias”. O documento também abre espaço para a inclusão de futuras provisões sobre acesso a mercado para investimentos – algo que outros membros relutam em incorporar. Finalmente, a proposta reflete sobre o papel do tratamento especial e diferenciado durante o desenvolvimento das regras para a facilitação de investimentos. Por sua vez, a China recomendou dar voz aos grupos de interesse no tema para que comentem sobre novas leis e regras relacionadas a investimentos. No caso dos PMA, a proposta chinesa defende o fácil acesso dos investidores à infraestrutura pública essencial.

Definindo um caminho para o futuroOs proponentes de discussões sobre a facilitação de investimentos na OMC argumentam que a medida asseguraria uma interação coerente entre os regimes de comércio e investimento – desfecho que, por sua vez, influenciaria a provisão de bens públicos globais. No entanto, a complexidade do tema e as rápidas transformações vivenciadas pelos grupos de interesse tornam necessário um estudo mais aprofundado. Embora os próximos passos para a Ministerial de Buenos Aires sejam incertos, o crescente engajamento sugere que o debate acerca da conveniência de criar novas regras comerciais para lidar com a facilitação de investimentos – e o método para seu estabelecimento, que pode ocorrer na OMC ou em outros fóruns – está apenas começando.

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SUBSÍDIOS AOS COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS

Reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis: uma tarefa para a OMC?

A tualmente, a reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis não é um item de negociação na Organização Mundial do Comércio (OMC). Entretanto, existe um esforço para trazer tais discussões para o contexto do sistema multilateral

de comércio. Um grupo informal de países que não compõem o G20, conhecido como “Amigos da Reforma dos Subsídios aos Combustíveis Fósseis” – também conhecido como “Amigos” – preparou uma declaração com esse fim. A declaração está circulando em busca de apoio antes de seu lançamento, planejado para ocorrer durante a 11ª Conferência Ministerial da OMC, em Buenos Aires.

A iniciativa é alimentada por diversos fatores, como o trabalho em vários contextos plurilaterais e multilaterais, a abrupta queda nos preços do petróleo, as negociações sobre subsídios à pesca na OMC e a adoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) e do Acordo de Paris sobre Mudança do Clima. Nos últimos dois anos, é crescente o debate sobre o papel da OMC em uma reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis. Em um nível geral, notificações de subsídios segundo o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias da OMC há muito tempo ocorrem lentamente – e, entre outros desafios, frequentemente carecem de detalhes suficientes sobre esquemas de subsídios aos combustíveis fósseis. Tampouco existe um acordo setorial em vigor para disciplinar o apoio estatal, diferente daquilo que ocorre com as regras sobre subsídios agrícolas no âmbito do Acordo sobre Agricultura da OMC.

Enquanto as visões sobre a lógica e as opções para lidar com os subsídios aos combustíveis fósseis na OMC divergem, não há dúvida que um movimento crescente poderá incluir a questão nas agendas dos negociadores.

Subsídios aos combustíveis fósseis: dimensões econômicas e ambientaisAs principais economias do globo subsidiam a exploração, o processamento e o uso de combustíveis fósseis. O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima um gasto estatal global com subsídios para produtores e consumidores de US$ 333 bilhões por ano. Se consideramos custos externos, o número sobe para US$ 5,3 trilhões. A imensa variação nas estimativas e dados se deve à falta de uma definição, métricas e uma estrutura para a elaboração de relatórios comumente aceitas. Independentemente da discrepância, subsídios aos combustíveis fósseis constituem um fardo significativo para o orçamento dos governos, comprometendo recursos que poderiam ser usados em outras prioridades, como saúde e educação. Ademais, tais subsídios frequentemente reforçam desigualdades entre os mais ricos e os mais pobres, podendo causar sérias distorções na economia global.

Sob uma perspectiva ambiental, os subsídios aos combustíveis fósseis contribuem de forma importante para a mudança climática. A concessão de tais subsídios encoraja a sobre-extração e o consumo perdulário de combustíveis fósseis, que respondem por 90% das emissões de gases de efeito estufa (GEE), retardando a transição para o uso de fontes de energia limpa. Desse modo, os subsídios aos combustíveis fósseis ajudam a construir o problema climático. Além disso, a poluição do ar causa uma série de problemas de saúde.

Os danos ambientais, ineficiências econômicas e efeitos adversos sobre o desenvolvimento social relacionados aos subsídios aos combustíveis fósseis enfraquecem os objetivos compartilhados de desenvolvimento sustentável – dispostos na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU e nos ODS relacionados, assim como no preâmbulo do Acordo de Marraquexe, que fundou a OMC. Ademais, põem em risco os esforços para manter a temperatura mundial abaixo da meta definida no Acordo de Paris sobre Mudança

Um grupo de países vêm analisando o papel das ferramentas comerciais, incluindo as regras da OMC, na promoção de reformas nos subsídios aos combustíveis fósseis.

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do Clima. A meta estabelecida na capital francesa é limitar o aumento da temperatura a 2°C acima dos níveis pré-industriais. Cientistas climáticos alertam que exceder esse nível poderia acarretar impactos ambientais devastadores, como eventos climáticos extremos e outros desastres naturais causados pela mudança climática.

O impulso para uma reforma internacionalEmbora inexistam compromissos globais legalmente vinculantes sobre os subsídios aos combustíveis fósseis, vários fóruns internacionais incluíram o tema em suas agendas e assumiram compromissos voluntários para disciplinar seu uso ao longo dos últimos anos.

Em 2009, a coalizão de economias desenvolvidas e emergentes conhecida como G20 se comprometeu na Cúpula de Pittsburgh a “diminuir e racionalizar, a médio prazo, subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis e a oferecer apoio específico para os mais pobres”. Os membros do G20 criaram um processo de revisão por pares, implementado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), para aumentar a transparência em torno dos subsídios. Alemanha e México são os últimos países a passar pelo processo, com revisões publicadas e discutidas durante a 23ª Conferência das Partes (COP 23) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês), realizada na cidade alemã de Bonn em novembro de 2017. Em 2016, Estados Unidos e China foram avaliados.

Em 2009, os 21 membros do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC, sigla em inglês) fizeram uma promessa similar, que inclui a eliminação dos subsídios aos combustíveis fósseis e a realização de revisões por partes. Enquanto isso, o G7 afirmou, em seu comunicado de 2016, que seus membros “permanecem comprometidos com a eliminação de subsídios aos combustíveis fósseis ineficientes e encorajam todos os países a fazerem o mesmo até 2025”.

Desde sua criação em 2010, os “Amigos” se comprometeram a diminuir os subsídios aos combustíveis fósseis e têm promovido suas ideias por meio de declarações políticas, pesquisas e seminários. Em dezembro de 2015, o grupo divulgou um comunicado informal durante a COP realizada na cidade francesa de Paris, pedindo que a comunidade internacional “aumente os esforços para diminuir os subsídios aos combustíveis fósseis por meio […] de transparência política, uma reforma ambiciosa e apoio direcionado para os mais pobres”. Até agora, 43 países e milhares de empresas endossaram a declaração.

A adoção do Acordo de Paris sobre Mudança do Clima e dos ODS impulsionaram ainda mais o clamor por reformas. O Artigo 2.1.c do Acordo de Paris requer que as partes “[tornem] os fluxos financeiros consistentes com um caminho na direção de baixas emissões de gases de efeito estufa e desenvolvimento climático resiliente”, e 13 países submeteram planos de ação climática que se referem à reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis. Por sua vez, o ODS 12.C requer “[racionalizar] os subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis”.

Até o momento, inexiste uma ferramenta legalmente vinculante para monitorar o cumprimento dessas promessas, tampouco uma estrutura que discipline o uso dos subsídios aos combustíveis fósseis de maneira eficaz. Nos últimos anos, um número crescente de países passou a apoiar a ideia de que a OMC deve preencher essa lacuna.

Evolução do diálogo desde a COP 23Durante a COP 23, a Nova Zelândia – um dos principais impulsionadores do trabalho dos “Amigos” – pressionou para que a OMC assumisse um papel na reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis. Em seu discurso, o ministro neozelandês para Povos do Pacífico, William Sio, afirmou que a “Nova Zelândia gostaria de ver um maior foco na reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis por parte da OMC. Acreditamos que a política comercial pode e deve lidar com os desafios ambientais globais”. Pedidos para que a OMC discipline os subsídios aos combustíveis fósseis também foram feitos em vários paineis e seminários na Organização – inclusive durante um evento em junho de 2017.

2009 – O G20 e a APEC decidem reformar os subsídios aos combustíveis fósseis e realizar revisões por pares.

2010 – O grupo informal dos “Amigos” é criado, com o objetivo de construir um consenso político sobre a importância do tema.

2013 – O G20 decide começar a eliminar progressivamente os subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis no médio prazo.

2015 – A terceira Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento discute a inclusão de outro acordo global para reformar os subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis. A reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis é incluída nos ODS.

2015 – Os membros da ONU adotam o Acordo de Paris sobre Mudança do Clima. O grupo dos “Amigos” publica seu comunicado.

2017 – As discussões sobre a reforma dos combustíveis fósseis atraem apoio de alto nível durante a COP 23. Revisões por pares do G20 são publicadas por Alemanha e México. O grupo dos “Amigos” prepara uma declaração para a Ministerial de Buenos Aires.

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Buscando atrair as atenções dos membros da OMC para a reforma e encorajar um diálogo sobre o tema, os “Amigos” – em conjunto com Nova Zelândia e Finlândia – estão organizando um evento paralelo durante a Ministerial de Buenos Aires. Os organizadores solicitarão a participação de alto nível e o apoio para sua declaração sobre o papel da OMC nas discussões para disciplinar o uso dos subsídios aos combustíveis fósseis. A França também está contribuindo com o movimento – impulso que motiva uma iniciativa da União Europeia (UE) de apoiar o diálogo sobre o papel do comércio para disciplinar subsídios aos combustíveis fósseis. O objetivo final da iniciativa é a inclusão do tema na agenda do Comitê sobre Comércio e Meio Ambiente da OMC.

A lógica por trás da iniciativaDefensores de uma reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis capitaneada pela OMC justificam a iniciativa com argumentos de caráter comercial e ambiental.

Subsídios aos combustíveis fósseis produzem efeitos distorcivos ao comércio. O oferecimento de subsídios a produtores de commodities como petróleo, gás e carvão pode distorcer a concorrência entre produtores de diferentes países, assim como entre distintas fontes de energia. Ademais, o impacto pode se estender a indústrias caracterizadas pelo uso intensivo de energia e que estejam localizadas à jusante na cadeia de suprimentos – afinal, a energia é um fator importnte na determinação dos custos de produção. Finalmente, os subsídios aos combustíveis fósseis impactam as condições de concorrência de fontes de energia limpa, reduzindo os investimentos direcionados à produção de energia sustentável. Por sua vez, a lógica ambiental relaciona os subsídios aos combustíveis fósseis à mudança do clima.

Alguns defensores das reformas vão além, reivindicando o papel da OMC mesmo na ausência de distorções ao comércio. Por exemplo, destacam o preâmbulo do Acordo de Marraquexe, que reconhece explicitamente a necessidade de “proteger e preservar o meio ambiente”. Sob essa lógica, o impacto ambiental causado pelos subsídios seria uma condição suficiente para o envolvimento da OMC. Segundo o grupo, o sistema multilateral de comércio proporcionaria um arcabouço adequado para disciplinar tais subsídios.

Entre os trunfos da OMC, destacam-se sua estrutura institucional para a realização de negociações; seus mecanismos de monitoramento – como o Mecanismo de Revisão de Políticas Comerciais (TPR, sigla em inglês) –, assim como aqueles que garantem o cumprimento de normas e regras – caso do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC); e sua experiência na negociação de subsídios setoriais. Por exemplo, os defensores citam a experiência acumulada em áreas como subsídios à agricultura e à pesca. Por outro lado, a tarefa de atualizar regras antigas sobre o apoio doméstico à agricultura ou de estabelecer novas proibições ao uso de subsídios à pesca predatória se mostrou desafiadora na prática.

Especialistas afirmam que várias opções existem para disciplinar o uso de subsídios aos combustíveis fósseis na OMC. As opções vão do uso de mecanismos existentes de notificação e transparência – casos do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias e do TPR – até uma iniciativa de reforma plurilateral, uma reforma do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias, ou a negociação de uma nova estrutura legal. A escolha dependeria do nível de ambição e dos argumentos escolhidos para justificar a estratégia adotada.

Os primeiros passos de uma reformaA reforma dos subsídios aos combustíveis fósseis não é um item oficial na agenda de negociação da OMC. Transformá-la em um item de negociação exigirá trabalho adicional e vontade política, especialmente para atrair o apoio de países fortemente dependentes de combustíveis fósseis. Ademais, o impulso deverá responder questões antigas no interior da OMC. Por exemplo, deveriam os mandatos de negociação existentes ser ampliados a fim de incluir novos tópicos?

Entretanto, vários compromissos internacionais intensificaram o impulso para disciplinar o uso dos subsídios aos combustíveis fósseis. A ideia de que a OMC, com sua estrutura

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institucional e experiência, pode oferecer uma estrutura adequada para transformar compromissos em ações está ganhando força. A declaração dos “Amigos”, prevista para a Ministerial de Buenos Aires, pode representar um primeiro passo concreto nessa direção. Seu impacto dependerá do apoio que receber e das reações que motivar.

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SERVIÇOS

Regulação doméstica de serviços: a busca por condições equitativas

A expansão do comércio de serviços e sua crescente importância na geração de valor agregado têm atraído a atenção internacional para a importância de uma regulação adequada. Além disso, o advento da economia digital e de novos modelos de

negócios levaram reguladores nacionais e negociadores a refletir sobre as características dessas regras. Nesse contexto, a produtividade nacional e a competitividade comercial dependem cada vez mais de um ambiente institucional sólido e da redução de barreiras regulatórias – ou, ainda melhor, da convergência regulatória.

O Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (GATS, sigla em inglês) da Organização Mundial do Comércio (OMC) lida com a questão dos arcabouços regulatórios domésticos. O GATS oferece “critérios” específicos a serem considerados e aplicados ao longo do desenho e administração de “regras domésticas” que afetam o comércio de serviços. Esses critérios incluem transparência, objetividade, imparcialidade, moderação e buscam evitar regulamentações excessivamente rígidas, que podem atuar como uma restrição disfarçada ao comércio de serviços.

Regras domésticas não constituem necessariamente limitações para o acesso a mercado ou tratamento nacional. No entanto, podem afetar a habilidade de um provedor de serviços ou de um serviço para acessar um mercado específico. Exemplos dessas regras incluem medidas de aplicação geral que afetam o comércio de serviços – podendo envolver medidas relativas a requisitos e procedimentos de qualificação –, padrões técnicos e requisitos para licenças.

Por exemplo, o oferecimento de serviços legais em uma determinada jurisdição pode depender da vinculação a uma associação. No caso de serviços médicos ou de saúde, certificações específicas, padrões técnicos ou licenças podem ser exigidas para autorizar a prestação de serviços. Assim, a capacidade concreta de acesso a um mercado no setor de serviços é determinada tanto por “limitações tradicionais de acesso a mercado” quanto pelo conjunto das regras domésticas que governam uma atividade.

Considerando sua complexidade, variedade e relevância, regulamentações domésticas poderiam ajudar a promover condições mais equitativas para o comércio internacional de serviços. A qualidade e eficácia dessas regras têm o potencial de mudar o perfil do espaço regulatório de um país, melhorando radicalmente sua habilidade de participação nos fluxos comerciais. Por outro lado, se desenhadas e implementadas de uma maneira inconsistente com os critérios ou princípios acordados sob o GATS, regulamentações domésticas têm o potencial de se tornar uma camada adicional de limitações ao intercâmbio de serviços.

A discussão – e a subsequente negociação – de disciplinas adicionais sobre regulação doméstica é um dos principais desafios não resolvidos nas discussões multilaterais sobre política comercial. Caso resultem de um processo conduzido de forma adequada, qualquer passo em direção a uma maior coerência regulatória e à melhoria da solidez de regimes regulatórios ofereceria uma contribuição valiosa para o sistema multilateral de comécio e para a concretização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

A evolução nas negociações sobre o comércio de serviços na OMCApesar de consolidarem progressos em algumas áreas, como a criação de novas disciplinas sobre subsídios à exportação agrícola e a negociação do Acordo de Facilitação do Comércio (TFA, sigla em inglês), os membros da OMC não foram capazes de concordar sobre novas e melhores regras para o comércio de serviços nas duas décadas desde a assinatura do

Os membros da OMC mantiveram intensas discussões com o objetivo de chegar a um resultado positivo em um antigo mandato: o desenvolvimento de disciplinas sobre a regulação interna de serviços.

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GATS. O Artigo VI:4 do GATS sobre regulação doméstica contém um mandato específico para os membros “desenvolverem quaisquer disciplinas necessárias” com vistas a “garantir que medidas relativas a requisitos e procedimentos de qualificação, padrões técnicos e obtenção de licenças não constituem barreiras desnecessárias para o comércio de serviços”.

No campo das negociações, o desafio tem sido lidar com a tensão entre o direito dos governos de regular a atividade econômica e o mandato explítico do GATS para desenvolver disciplinas com o fim de garantir que “medidas relativas a requisitos e procedimentos de qualificação, padrões técnicos e obtenção de licenças” não sejam “mais exigentes que o necessário para garantir a qualidade do serviço”. Este último é conhecido no jargão comercial como “teste de necessidade”.

As negociações sobre regulação doméstica na OMC têm se baseado historicamente na divulgação de documentos, sendo guiadas pelo presidente do Grupo de Trabalho sobre Regulação Doméstica (WPDR, sigla em inglês). Dois textos da presidência, divulgados em março de 2009 e abril de 2011, foram publicados pelo WPDR e anexados aos relatórios do presidente da “Sessão Especial” do Conselho sobre Comércio de Serviços – o fórum mais amplo de negociação das novas regras sobre serviços. Esses documentos refletem todas as observações, áreas de consenso e desacordos entre os membros ao longo do processo de negociação até o momento de sua divulgação.

Em geral, a divergência entre os membros da OMC pode ser descrita como centrada em dois campos. O primeiro envolve a resistência em levar adiante qualquer tipo de discussão ou negociação sobre o tema da regulação doméstica, devido ao medo de que a imposição de disciplinas adicionais poderia levar a uma perda da autonomia para a formulação de políticas domésticas. Um profundo desacordo também existe sobre a questão histórica do “teste de necessidade” – sem uma solução clara à vista. Enquanto alguns membros se opõem a qualquer referência ao tema, outros defendem sua inclusão como uma questão de acesso efetivo a mercados.

Até o momento, os membros foram incapazes de chegar a um acordo sobre qual texto da presidência adotar como base para as negociações futuras. Com o objetivo de reativar as negociações, um grupo de 25 membros liderado por Austrália e União Europeia (UE) tem promovido um debate sobre um subconjunto de temas menos polêmicos dentro da agenda mais ampla sobre regulação doméstica. Tais itens compartilham o potencial de promover a facilitação do comércio. Embora não descarte a discussão sobre temas mais sensíveis, a iniciativa busca focar em áreas com uma maior probabilidade de consenso.

Divulgada em 7 de novembro de 2017, a proposta JOB/SERV/272/Rev.1 cobre tópicos como a submissão e processamento de solicitações; critérios aplicáveis a prazos; aceitação de solicitações eletrônicas; definição dos pontos de informação; melhores mecanismos de transparência; teste de necessidade; e uma nova seção sobre desenvolvimento. Uma versão subsequente, intitulada JOB/SERV/272/Rev.2, foi divulgada em 24 de novembro de 2017.

A inclusão do tópico “teste de necessidade” nessa proposta resultou de uma demanda específica de um grupo limitado de membros da OMC, históricos apoiadores do cumprimento dessa parte do mandato do Artigo VI:4 – especificamente, Chile, Hong Kong, Moldávia, Nova Zelândia, Peru e Suíça. A proposta também inclui elementos em relação à oportunidade de comentar e oferecer informações antes da entrada em vigor de uma regulamentação; submissão de aplicações; prazos e taxas de solicitações; independência (da autoridade competente); e padrões técnicos.

Em geral, esses acréscimos tornam as obrigações já existentes mais precisas, mas não são uma atualização significativa de sua essência. Entretanto, os acréscimos avançam uma agenda sobre regulação doméstica na OMC, que busca diminuir as distâncias entre regras multilaterais e as regras negociadas no âmbito dos acordos comerciais regionais. Afinal,

1995 – O GATS entra em vigor. O parágrafo 4 de seu Artigo VI estabelece o mandato para negociar normas sobre a regulação doméstica dos serviços.

2001 – Lançamento da Rodada Doha da OMC, que inclui um mandato para as negociações comerciais em serviços.

2009 – Publicação de um texto da presidência sobre as conversações relativas a serviços nacionais.

2011 – Publicação de um relatório da presidência sobre as negociações relativas a serviços nacionais. As negociações da Rodada Doha são declaradas “bloqueadas”.

2017 – Os membros da OMC debatem opções para a regulação doméstica do setor de serviços. Ademais, discutem um possível Acordo sobre Facilitação do Comércio no Setor de Serviços e uma disposição sobre a prevenção da discriminação de gênero.

GUIA DAS NEGOCIAÇÕES PONTES | NÚMERO ESPECIAL BUENOS AIRES - DEZEMBRO 2017 42

muitas das melhorias propostas no nível multilateral já foram adotadas em acordos bilaterais e plurilaterais.

Várias interconexões também existem entre a área de formulação de políticas e os ODS. A regulação doméstica tem um importante papel em garantir oportunidades iguais de acesso a mercado. Estruturas regulatórias adequadas permitem às pequenas e médias empresas participar dos fluxos comerciais e tirar proveito dos benefícios resultantes. O desenvolvimento de padrões ou critérios multilaterais pode aumentar a coerência regulatória entre os países, facilitando o comércio internacional de serviços.

Ademais, a inclusão de uma seção abrangente sobre “desenvolvimento” nessa proposta – inspirada pelos princípios que governam o TFA – reconhece a importância da incorporação de um sistema eficaz de ajuda para o comércio nas negociações comerciais multilaterais. Ao fazê-lo, os membros da OMC podem traçar uma ligação explícita entre suas obrigações comerciais e o cumprimento dos ODS.

A seção sobre “desenvolvimento” diferencia entre países em desenvolvimento, desenvolvidos e países menos avançados (PMA). Embora os PMA estariam isentos de quaisquer obrigações, a proposta os encoraja a adotar medidas que sejam condizentes com suas capacidades. Países em desenvolvimento contariam com um mecanismo que permitiria maiores prazos antes da entrada em vigor de provisões específicas – sujeitos a condições e prazos explícitos. A seção também define um sistema de “ajuda para o comércio”, que seria acionado caso solicitado, e que auxiliaria países em desenvolvimento com dificuldades para adotar marcos institucionais e regulatórios adequados.

O cenário às vésperas de Buenos AiresAs discussões ao longo dos últimos meses se basearam amplamente na proposta aqui descrita. Apesar de angariar o apoio de um terço dos membros da OMC, o cenário às vésperas da Conferência Ministerial de Buenos Aires permanece incerto. Afinal, uma parte significativa dos membros não apoiou ou rejeitou a proposta.

Caso consigam firmar um acordo sobre “regulação doméstica” na Ministerial de Buenos Aires, os membros da OMC superarão um impasse histórico nas negociações multilaterais sobre serviços. Um resultado positivo poderia transformar o ano de 2018 no início de uma nova etapa nas negociações comerciais multilaterais, marcada pela intensificação da parceria entre as negociações sobre comércio de bens e sobre comércio de serviços – aproximação realizada por meio da perspectiva da “facilitação”.

Por outro lado, a possibilidade de que os membros da OMC não consigam chegar a um acordo durante a Ministerial de Buenos Aires existe. Nesse caso, a discussão retornaria ao Conselho sobre Comércio de Serviços (CTS, sigla em inglês) e ao WPDR para mais deliberações entre as delegações. Não está claro quanto tempo tal processo poderia durar. Tendo em vista o significativo apoio recebido pela proposta aqui descrita, fontes ouvidas pelo ICTSD afirmam que é possível que seus defensores peçam a orientação específica dos ministros presentes nas conversações na Argentina. O objetivo: definir como a OMC deveria avançar nessa área ao longo de 2018.

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