consumos de haxixe e saude mental em adolescentes

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1. INTRODUÇÃO A adolescência é uma fase onde diversas es- colhas se apresentam ao jovem e, onde se joga a sua futura identidade e identificação sexual. Num mundo de incertezas e de (re)definições cons- tantes, ela traduz-se por uma vivência de angús- tia, de medo e de incerteza, face às mudanças, quer físicas, quer psíquicas, que ocorrem siste- maticamente e a uma velocidade alucinante, que o adolescente tem muitas vezes dificuldade em acompanhar. Nesta etapa, o adolescente sente a necessidade de se confrontar, de experimentar limites, mesmo de os transgredir, constituindo estes um espaço de conquista e de afirmação, que deve ser vivido individualmente e em grupo. O desejo de ter ex- periências novas coexiste com o sentimento de invulnerabilidade (que procura esconder a vulne- rabilidade) e com o desejo de testar tais limites. Há assim uma intensa necessidade de investir a realidade externa, de procurar um “território” longe do colo parental, que não mais satisfaz to- talmente. Surge então o grupo de pares, seres di- ferentes, mas iguais, que se ajudam mutuamente nesta fase de conquista. Este grupo passa então a ter uma importância muito grande e, tudo se faz para se ser aceite no seu seio, para não se ser ba- nido. O grupo, embora contribua para a necessária separação do parental, do infantil, constitui tam- bém um dos maiores factores de risco para a ado- lescência. Falamos, não só mas também, dos com- portamentos de iniciação ao consumo de drogas, comportamentos estes que podem pôr em causa a saúde dos adolescentes. As razões para estes comportamentos são múl- tiplas, encontrando-se entre elas a aprovação do grupo, a procura de alívio ou evasão do descon- forto vivido com os conflitos intra e/ou interpes- soais, e a oposição e/ou desafio aos adultos. Quanto maior for o nível de saúde mental do adolescente, mais se espera que este seja capaz de arranjar estratégias saudáveis de lidar com a 151 Análise Psicológica (2005), 2 (XXIII): 151-172 Comportamentos de consumo de haxixe e saúde mental em adolescentes: Estudo comparativo (*) ANA SOFIA SILVA (**) ALBERTO AFONSO DE DEUS (***) (*) Artigo baseado na Monografia de Licenciatura em Psicologia do primeiro autor, sob orientação do se- gundo autor. Qualquer questão relativa ao artigo deve ser dirigida para [email protected] (**) Psicóloga. (***) Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lis- boa.

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1. INTRODUÇÃO

A adolescência é uma fase onde diversas es-colhas se apresentam ao jovem e, onde se joga asua futura identidade e identificação sexual. Nummundo de incertezas e de (re)definições cons-tantes, ela traduz-se por uma vivência de angús-tia, de medo e de incerteza, face às mudanças,quer físicas, quer psíquicas, que ocorrem siste-maticamente e a uma velocidade alucinante, queo adolescente tem muitas vezes dificuldade emacompanhar.

Nesta etapa, o adolescente sente a necessidadede se confrontar, de experimentar limites, mesmode os transgredir, constituindo estes um espaçode conquista e de afirmação, que deve ser vividoindividualmente e em grupo. O desejo de ter ex-

periências novas coexiste com o sentimento deinvulnerabilidade (que procura esconder a vulne-rabilidade) e com o desejo de testar tais limites.

Há assim uma intensa necessidade de investira realidade externa, de procurar um “território”longe do colo parental, que não mais satisfaz to-talmente. Surge então o grupo de pares, seres di-ferentes, mas iguais, que se ajudam mutuamentenesta fase de conquista. Este grupo passa então ater uma importância muito grande e, tudo se fazpara se ser aceite no seu seio, para não se ser ba-nido.

O grupo, embora contribua para a necessáriaseparação do parental, do infantil, constitui tam-bém um dos maiores factores de risco para a ado-lescência. Falamos, não só mas também, dos com-portamentos de iniciação ao consumo de drogas,comportamentos estes que podem pôr em causa asaúde dos adolescentes.

As razões para estes comportamentos são múl-tiplas, encontrando-se entre elas a aprovação dogrupo, a procura de alívio ou evasão do descon-forto vivido com os conflitos intra e/ou interpes-soais, e a oposição e/ou desafio aos adultos.

Quanto maior for o nível de saúde mental doadolescente, mais se espera que este seja capazde arranjar estratégias saudáveis de lidar com a

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Análise Psicológica (2005), 2 (XXIII): 151-172

Comportamentos de consumo de haxixee saúde mental em adolescentes: Estudocomparativo (*)

ANA SOFIA SILVA (**)ALBERTO AFONSO DE DEUS (***)

(*) Artigo baseado na Monografia de Licenciaturaem Psicologia do primeiro autor, sob orientação do se-gundo autor. Qualquer questão relativa ao artigo deveser dirigida para [email protected]

(**) Psicóloga.(***) Instituto Superior de Psicologia Aplicada, Lis-

boa.

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ansiedade, com a angústia e com a fragilizaçãodecorrente do processo pelo qual está a passar,permitindo-lhe canalizar estes sentimentos paraalgo construtivo e criativo, que lhe assegure umcrescimento saudável.

A presença destas estratégias ou mesmo o seusucesso, dependerá da história de vida de cadajovem, da dor mental maior ou menor associadaàs suas relações primordiais. Se estas relaçõesfalharam ou foram insuficientes, a fragilizaçãoneste período do desenvolvimento terá um tomainda mais acentuado, com uma consequente exa-cerbação dos sentimentos negativos associados,podendo haver o recurso a objectos de substitui-ção, no sentido de procurar um espaço de ilusãoonde o alívio desses sentimentos é possível.

O haxixe é, junto das camadas mais jovens, asubstância ilícita mais consumida e com um iní-cio de consumo em idades cada vez mais preco-ces (F.M.H., 1998; I.D.T., 2001).

Apelidada por muitos como “leve”, como senão tivesse efeitos negativos, e sendo aceite co-mo um “mal menor” pela sociedade actual, o ha-xixe é hoje em dia cada vez mais vulgar e vul-garizado em meios tão preocupantes como as es-colas. Parece ter-se tornado, em conjunto com oálcool, um modo de socialização do grupo de pa-res, uma espécie de mediador da relação Eu-Ou-tro, estando presente nos hábitos quotidianos demuitos adolescentes.

Estes novos hábitos têm consequências no de-senvolvimento dos jovens, podendo colocar emrisco a sua saúde e bem-estar. Deste modo reve-lou-se pertinente averiguar o que poderá levar aestes comportamentos de consumo de haxixe,nomeadamente qual o peso que determinadas va-riáveis têm, no início e na manutenção do consu-mo desta droga.

Perante isto, o objectivo deste estudo consistiuem fazer uma avaliação da situação acerca doscomportamentos de consumo de haxixe em ado-lescentes inseridos em meio escolar (ensino bá-sico e secundário), estudar a influência de certasvariáveis no início e na manutenção desse consu-mo (idade, situação familiar, expectativas e graude influência do grupo de pares) e avaliar a exis-tência ou não de relações entre este consumo e asaúde mental do adolescente.

1.1. A Problemática da Saúde na Adolescên-cia

A partir de meados do século XX dá-se umaprofunda alteração nas causas de mortalidade emorbilidade, com as principais causas de doençaa deixarem de ser organismos patogénicos que,introduzidos no organismo hospedeiro provoca-vam doenças, para passarem a ser o comporta-mento humano (Ribeiro, 1998).

Começou-se então a exigir intervenções dife-rentes das adoptadas até essa altura, passando aspessoas a ter um papel cada vez mais activo nasaúde e na doença. De objectos passivos, passa-ram a ser consideradas como elementos activos edecisivos no processo de adoecer ou de ser sau-dável, fazendo emergir conceitos fundamentaisacerca da relação entre comportamento e saúde ecomportamento e doenças.

O organismo humano está em entropia ou emdesordem e, através das propriedades que sãopróprias dos sistemas vivos, tende a organizar-see a reconstruir-se, para novamente entrar em de-sordem. «A vida é um desequilíbrio à procura deequilíbrio, ou, se quisermos, um equilíbrio instá-vel», como nos diz Coimbra de Matos (2002, p.180). Assim, ao considerar a saúde do ponto devista do desenvolvimento humano, dois proces-sos assumem uma posição importante: os proces-sos de desequilíbrio (que se referem à estimula-ção que o organismo deve receber) e os proces-sos homeoréticos ou heterostáticos (reacções ada-ptativas).

Para explicar o equilíbrio dinâmico inerenteao comportamento e desenvolvimento de siste-mas mais complexos, Waddington (1968) propôso conceito de homeoresia (que defendia a ideiade um fluxo constante) e Selye (1974) o de hete-rostasia, definindo-a como o estabelecimentode um novo estado de equilíbrio, alcançado porforça de acções que estimulam e aumentam ascapacidades, de maneira a elevar o nível de resis-tência do organismo. Estes conceitos vêm subs-tituir o de homeostasia, que defendia a ideia deum estado constante, revelando-se segundo os au-tores, insuficiente para dar explicação a tal equi-líbrio (Ribeiro, 1998).

Alguns trabalhos têm demonstrado um inte-resse cada vez maior pelo estudo das capacida-des adaptativas das pessoas face a condiçõesadversas, isto é, a razão porque diferentes indiví-

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duos reagem de modo diferente à mesma situa-ção stressante e utilizam diferentes respostasadaptativas (Antonovsky, 1987; Friedman, 1991).

Na teorização acerca das relações entre facto-res psicológicos, psicossociais e saúde, aparece anoção de stress e a de coping. A primeira dizrespeito aos factores do meio físico e social queexercem pressão sobre um indivíduo. A segundadiz respeito aos processos cognitivos conscientesusados por ele para manejar as ansiedades evo-cadas pelos desafios do meio envolvente (Geada,1996).

Outros dos conceitos que emergiu foi o con-ceito de resiliência, termo originário da física eque pode ser descrito como a capacidade que ca-da indivíduo tem de resistir ao stress e às adver-sidades, aprendendo a geri-los da melhor forma,conseguindo efeitos positivos (Rutter, 1990; Wang,Reynolds, & Walberg, 1995).

A aprendizagem de estratégias para lidar como stress, com os sentimentos negativos em geral(ansiedade, raiva, ira, etc.), bem como de estraté-gias de planeamento e de tomada de decisão, deresolução de problemas e gestão de conflitos ede aumento da capacidade de comunicação inter-pessoal, verbal e não verbal, é particularmente im-portante em períodos de transição como, e.g., naadolescência.

Nesta fase do desenvolvimento, as implica-ções de maior peso quanto à saúde estão relacio-nadas com as transformações biopsicossociaisvivenciadas. O crescente desenvolvimento físicocolide com as capacidades e características psi-cológicas, constituindo estas mudanças um factorde stress que exige a adaptação do adolescente.

Muitos comportamentos relevantes para asaúde são iniciados na adolescência, como a acti-vidade sexual, as escolhas alimentares, a escolhade exercício físico, o consumo de tóxicos e a con-dução de veículos. E são tais comportamentos quemais contribuem para a mortalidade e morbili-dade nesta fase do desenvolvimento (Parcel, Mu-raskin, & Endert, 1988, cit. por Frasquilho, 1996).

Com a transição da família alargada para afamília nuclear, e actualmente para a família mo-noparental, muitos adolescentes ficaram sem asnecessárias orientações quanto ao modelo, ao afecto,à nitidez de limites e ao apoio geral que condu-zisse a uma exploração saudável de novos com-portamentos (Macintyre, 1992, cit. por Frasqui-lho, 1996).

Promover a saúde tem a ver com a acessibili-dade a estilos de vida saudáveis, reduzindo ou-tros mais ligados ao risco de doença. Isto é so-bretudo importante na adolescência, onde porvezes a adopção de estilos de vida saudáveis évista como «cinzenta, aborrecida, desprestigian-te, e desinteressante» ao passo que, e.g., os con-sumos, as velocidades e, em geral “transgredir”,é visto como excitante e fonte de prestígio social(Matos, Simões, Carvalhosa, Reis, & Canha, 2000).

Num estudo realizado por Green e Kreuter (1991)os autores tentaram identificar quais eram os com-portamentos que os adolescentes percepcionamcomo saudáveis e como problema. Concluíramque, para os adolescentes, comportamentos sau-dáveis eram a abstinência de drogas, o comporta-mento pró-social e o bem-estar pessoal, apare-cendo o consumo de tóxicos, o comportamentoanti-social e o sexo não protegido como compor-tamentos contrários à saúde.

Assim, verifica-se que apesar dos jovens esta-rem informados e saberem distinguir o que sãocomportamentos saudáveis e comportamentos pre-judiciais, existe uma discrepância entre informa-ção e adopção de comportamento. E, é aqui quefazem sentido medidas promocionais que ajudemos jovens a transformar os seus conhecimentosem práticas de saúde.

O processo de responsabilização sobre o pró-prio estado de saúde começa, como em geral to-dos os aspectos relacionados com o desenvolvi-mento pessoal, no seio da família, mas necessitade ser reforçado na escola, pois são estes os lo-cais onde os jovens passam a maior parte do seutempo (Graciani, Lasheras, Cruz, & Calero, 1998).

Com a entrada na adolescência opera-se umamudança das figuras de relação, a qual tem tam-bém muita importância para a saúde. Os amigospassam a ter um papel muito mais significativoquando comparados às influências dos pais ou deoutros adultos. Socialmente, existe também umacesso mais facilitado à droga, ao álcool, a veí-culos motorizados e a mais oportunidades, e porvezes até pressões para os utilizar, o que colocaos jovens em risco.

Segundo Frasquilho (1996), podem fazer-se trêsinterpretações do conceito de risco na adolescên-cia: a) riscos com consequências imediatas naadolescência (e.g., adopção de comportamentosperigosos, como o conduzir sob o efeito de álcool);b) riscos com consequências para o período pós-

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-adolescência (e.g., a obesidade); c) riscos queincluem consequências tanto actuais como remo-tas (e.g., a gravidez).

Para a autora, a explicação das causas destesriscos, não esquecendo as que decorrem das ca-racterísticas próprias da adolescência, está tantonas características da personalidade e da percep-ção do ambiente (prazer do risco, ausência oudistorção da percepção de controlo sobre os acon-tecimentos), como noutras mais ligadas ao com-portamento manifesto (não usar cintos de segu-rança) e ainda noutras derivadas do ambiente (maio-res ou menores oportunidades para ter esses com-portamentos de risco).

Aponta ainda como possíveis significados pa-ra este tipo de comportamentos de risco, uma for-ma de ser solidário com os companheiros, de ga-nhar a admiração do grupo, a confirmação pesso-al da sua maioridade, a oposição à autoridade doadulto, ou ainda mecanismos errados de lidar coma frustração e a ansiedade.

Em termos cognitivo-comportamentais, pode-se dizer que serão cognições distorcidas acercado significado das situações e aprendizagens su-cessivamente erradas.

Em termos dinâmicos, dir-se-á que traduzemdefesas próprias da individuação adolescente.

1.2. O Processo Adolescente

Até há algum tempo atrás, o período da ado-lescência não era destacado como uma fase espe-cífica do desenvolvimento humano com caracte-rísticas e vivências próprias. Os comportamentosdos adolescentes eram considerados desviantes einscritos, ou no domínio da psicopatologia, oudas perturbações do comportamento. Somente apouco e pouco e, à medida que se foi reconhe-cendo a importância e a especificidade deste pe-ríodo do desenvolvimento, se foram construindomodelos próprios para o seu estudo, tornando-seclaro que durante esta fase, processos importan-tes ocorrem, não se assemelhando àqueles queocorrem na criança ou no adulto (Dias, 1982; Mar-ques, 1999).

Às mudanças fisiológicas e pulsionais, cara-cterísticas deste período, junta-se um grande mo-vimento intrapsíquico: o de estabelecer o senti-mento de identidade (Erikson, 1959), libertando--se dos comportamentos, das maneiras de se re-

lacionar, dos prazeres e dos projectos construí-dos, elaborados e vividos no decurso da infância.

É assim um período caracterizado pela perda:perda dos objectos infantis, perda do refúgio ma-terno/parental, sendo nesta perspectiva que al-guns autores utilizaram o modelo do luto, estabe-lecido por Freud (1917/1968), para clarificar esteprocesso.

Para Anna Freud (1965), o luto no momentoda adolescência, seria o esforço de aceitação deum facto do mundo exterior – a perca do objectoinvestido – e a concomitante realização das mu-danças necessárias no mundo interior, como sejao desinvestimento da libido do objecto perdido.

Por sua vez, Dias e Vicente (1984) referem quea perda dos objectos na adolescência leva a reac-ções de luto, que definem como regressões tran-sitórias de tipo narcísico, pelo que consideram quetoda a adolescência vista nesta óptica, deve serconsiderada como uma depressão normal. Nestesentido, consideram quatro lutos obrigatórios nodesenvolvimento adolescente: o luto pela fontede segurança (luto do refúgio materno), o lutorenovado do objecto edipiano (trata-se de desin-vestir os aspectos edipianos dos pais, em presen-ça deles mesmos), o luto do Ideal do Eu (o ado-lescente vai perder a imagem dos pais idealiza-dos e omnipotentes, que constituem as fontes doIdeal do Eu) e o luto da bissexualidade.

Outras posições atribuíram o essencial dos pro-cessos que ocorrem na adolescência, à separa-ção-individuação face ao parental e ao infantil,que leva à aquisição da autonomia (Blos, 1967;Jeammet, 1991; Fleming, 1993). Para tal é ne-cessário um tempo que vai possibilitar a criaçãode novas estruturas, que irão conduzir a uma iden-tidade e alteridade, as quais se constroem reci-procamente. Este processo adolescente ocorre pordiferenciação e integração progressivas, organi-zando-se a partir das alterações e da maturaçãocorporal, que faz emergir o Outro, saldando-se coma aquisição de uma escolha sexual definitiva, mas-culina ou feminina.

A adolescência é então vivenciada com dor,nos limites da ruptura, com difícil diferenciaçãoentre o sujeito e o objecto, entre o dentro e o fo-ra, entre o antigo e o novo. Neste processo hámúltiplas mudanças que originam vivências deestranheza, de confusão e de desarmonia, vivên-cias estas impostas pelo surgimento de um novocorpo, de novas sensações e de novos desejos.

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Marques (1999) usou a noção de “mudançacatastrófica” de Bion para descrever a força, vio-lência, disruptividade e turbulência envolvidasno processo adolescente. Para a autora é a mu-dança catastrófica inerente a este processo queconduz ao crescimento, sendo mais ou menos vi-vida com facilidade e transformada, quanto a dormental nela envolvida. Utiliza ainda o modelodas transformações do mesmo autor, para formu-lar a actividade mental deste período, pois pensaque é através deste modelo que melhor se podeexplicitar como é que, através do encontro, da co-municação, da relação e da ligação entre o sujei-to e o objecto, e entre as experiências anteriorese as actuais, se criam novos objectos.

A transformação pubertária cria então um du-plo desafio: por um lado, a necessidade de man-ter um sentimento de continuidade da existêncianum corpo em mudança e, por outro, a necessi-dade de integrar esta transformação no funciona-mento psíquico.

Na adolescência propriamente dita, os proble-mas essenciais colocam-se ao nível do Outro, aonível da possibilidade de percepcionar e repre-sentar o sexo oposto numa lógica de complemen-taridade de sexos, de integração do homossexuale do heterossexual, sem o que a escolha sexualdefinitiva não pode ocorrer. Porque o novo corpose tornou melhor conhecido e controlado, o essen-cial joga-se agora no desejo e na necessidade deafirmar e experimentar esse corpo (Marques, 1999).

Nesta altura, os pais deixam de poder fornecerao adolescente os modelos, as satisfações e osprazeres que até essa altura lhe tinham podidoproporcionar, sentindo o jovem a necessidade dese afastar deles. De agora em diante, uma partedas satisfações só poderá vir do exterior.

A participação de um adolescente num grupode jovens da mesma idade é saudável e desejada.Os grupos são um meio de troca de diferentes in-formações que cada um pode ter recolhido em si-tuações familiares, pessoais, em actividades detempos livres ou através de interesses individu-ais, tendo então oportunidade de as transmitiraos seus pares. É um meio de o adolescente po-der exprimir a sua originalidade. Simultanea-mente o grupo interpõe uma certa distância rela-tivamente aos pais e permite ao jovem apreenderas relações sociais necessárias do futuro adulto.

No entanto, o grupo de pares também consti-tui um dos factores de maior risco para a adoles-

cência, na medida em que funciona como umacaixa de ressonância, um amplificador potencialdos comportamentos desviantes, como e.g., doscomportamentos de consumo de substâncias: anecessidade para o jovem de fazer como os ami-gos, a fim de ser um membro de pleno direito dogrupo, são um exemplo explicativo deste risco po-tencial (Braconnier & Marcelli, 2000).

Tal como Winnicott (1969) especificou, cres-cer é um acto agressivo e, se o adolescente tole-ra os momentos de sofrimento, poderá integrá--los e ultrapassá-los nos comportamentos de re-paração, de sublimação ou de criação. Mas, pelocontrário, se o adolescente não pode tolerar estesmomentos de sofrimento, em particular se esteso reenviam para períodos de sofrimento da pri-meira infância, corre então o risco de eliminar omal-estar através de comportamentos do tipo depassagem ao acto. Voltar-se-á eventualmente paraobjectos de substituição, para esconder a perce-pção da sua necessidade de dependência.

Como alerta Matos (2002), um dos problemasde maior importância na psicologia e psicopato-logia da juventude é a dificuldade de abandonara posição anaclítica, ou seja, a condição de pro-tecção e de satisfação das necessidades básicascom o mínimo de esforço pessoal. Com este con-flito, pré-genital, pode-se correr o risco de umaregressão mais profunda, com o perigo da estru-turação de mecanismos de recuperação oral-nar-císica, como o sejam, as toxicomanias.

1.3. Comportamentos Aditivos na Adolescên-cia

Vários factores estimularam e contribuíram pa-ra o desenvolvimento e interesse crescente pelainvestigação e estudo do consumo de drogas emamostras não clínicas, de adolescentes inseridosem meio familiar e escolar: a preocupação com asaúde e o bem-estar físico, o desenvolvimento danoção de saúde psicológica e, sobretudo, a ne-cessidade da intervenção primária, como estraté-gia de intervenção mais eficaz, ao nível da toxi-codependência (Fleming, Figueiredo, Vicente, &Sousa, 1988).

Perante o consumo de droga nos jovens, im-porta distinguir o tipo, a função e a sua reper-cussão na vida social e afectiva do sujeito. Fi-gueiredo (2002) diferencia o consumidor de subs-tâncias aditivas em: a) experimental, consome de-

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vido à curiosidade, à influência de amigos ou pormotivos contestatários; b) esporádico, consomenormalmente com a finalidade de socializaçãoou recreação; c) habitual, que em geral está liga-do a motivações de uso cultural, do círculo so-cial, ou de faixas etárias onde o uso recreativotem uma constância maior; d) abusivo, quandoinicia um consumo intenso da substância, masmantendo-se vinculado ao círculo social e tendoum controlo mínimo do uso e do seu estado psí-quico; e) dependente, quando a substância e oseu uso passam a ocupar um espaço principal navida do indivíduo, normalmente fazendo com queperca o interesse pelos aspectos sociais, com umafalta de motivação psicológica para outras situa-ções não ligadas ao consumo ou obtenção da dro-ga.

Actualmente, os critérios de diferenciação en-tre as drogas ditas leves e as drogas pesadas, nãoestão a identificar a perspectiva sanitarista e oefeito psicofísico dessas substâncias, mas a pos-sibilidade da sua utilização num convívio socialque não interfere necessariamente na vida emo-cional, profissional, estudantil e psíquica da pes-soa (Figueiredo, 2002).

O que está por detrás da designação de drogasleves são aquelas substâncias psicotrópicas quepermitem uma maior flexibilidade no seu uso eexperimentação, sem afectar os âmbitos de umavida normal. Já as pesadas, corresponderiam àque-las que facilitam ou induzem o descontrolo douso e o vício, seja pela própria substância em si,seja pela forma como é utilizada, promovendo efacilitando a marginalização do indivíduo do seucontexto social.

Assim, para uma população susceptível ao con-sumo de drogas, ou mesmo para o consumidorde drogas leves, este critério de classificação fun-ciona como uma espécie de protecção, e alertacontra aquelas substâncias ou usos pesados, on-de a pessoa terá possibilidade de perder mais fa-cilmente o controlo da sua situação de uso (Fi-gueiredo, 2002).

A adolescência deverá dar saída a estruturasbem definidas do ponto de vista económico, tó-pico e dinâmico. A toxicomania actua aqui comouma armadilha, impedindo pela luta contra a de-pressão dos objectos infantis, a aquisição de umaestrutura coerente – isto é, distanciando o fim dadepressão normal da adolescência (Dias & Vicen-te, 1979).

Soulé (1974) liga o problema da toxicomaniaà pesquisa indefinida de um espaço transacional,isto é, à área da ilusão. O tempo da depressão (adesilusão) é então adiado pela instalação da toxi-comania, entendida como uma procura desse es-paço transitivo onde a ilusão pode existir.

É também esta a opinião de Cordeiro (1975),que afirma que as noções de objecto transaccio-nal de Winnicott e de objecto intermediário derelação, são essenciais à compreensão da etiopa-togenia dos toxicómanos.

Por sua vez Diatkine (1974) integra a questãona dialéctica da adolescência, no que nela estáimplicado de mudança e de redistribuição de for-ças. O uso de drogas teria a sua inserção nestenovo equilíbrio, dando importantes possibilida-des à descarga directa e ao processo primário, àssatisfações imediatas e elementares.

Fuller e Cavanaugh (1995) apontaram os facto-res de risco para o abuso de drogas: factores fa-miliares (história familiar de alcoolismo ou usode drogas, permissividade ou autoritarismo, con-flitos familiares), problemas comportamentais (com-portamento anti-social, negativismo, baixa adapta-bilidade, impulsividade, agressividade), factoresescolares (repetência precoce), amigos que usamdrogas, história de abuso sexual e factores soci-ais (fácil acesso à drogas).

O papel das expectativas positivas e negativasnos efeitos do consumo de drogas, apesar de serainda pouco claro, parece também muito impor-tante. As expectativas são adquiridas ao longo doprocesso de socialização, através do modelo queos pais fornecem, do grupo de pares, da experi-ência de vida do indivíduo e da exposição aosmeios de comunicação social. Recentemente, asexpectativas acerca dos efeitos do álcool têm si-do consideradas como participantes na iniciaçãoe na manutenção de padrões de consumo proble-máticos (Chirstiansen & Goldman, 1983; cit. porBaldwin, 1993). Estes autores notaram que as ex-pectativas prediziam os estilos de consumo ado-ptados mais tarde pelos adolescentes.

Um estudo realizado por Fonseca (1989) exa-minou a prevalência e o padrão do consumo dedrogas em 250 adolescentes escolarizados, comidade de 15 anos, tentando explorar as relaçõesentre o consumo de drogas e aspectos demográ-ficos. Os resultados confirmaram que o uso ex-perimental de drogas se tornou um comporta-mento normal e previsível nos adolescentes. Ve-

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rificaram-se diferenças estatisticamente signifi-cativas entre os que usam e não usam drogas, noque respeita a alguns aspectos da experiência fa-miliar e escolar, socialização, consumo de álcool,tabaco e medicamentos pelos pais, atitudes e opi-niões face ao consumo de drogas.

Noutro estudo, este realizado por Fleming etal. (1988) em 994 adolescentes entre os 12 e os19 anos, com o objectivo de caracterizar socio-demograficamente uma população de adolescen-tes não clínica, inserida em meio escolar e que fa-zia uso de drogas ilícitas, concluiu-se que a inci-dência do comportamento de consumo de drogasentre os adolescentes é relativamente baixa, sen-do a cannabis a droga mais consumida. Neste es-tudo, o comportamento de consumo de droga es-porádico do adolescente não perturbou o seu ren-dimento escolar e não se associou significativa-mente com a situação conjugal dos pais.

Ainda um outro estudo, levado a cabo pelaFaculdade de Motricidade Humana em 1998, te-ve como objectivo desvendar as atitudes e com-portamentos de saúde dos jovens portugueses emidade escolar. Foram inquiridos 6903 alunos doensino regular, com idades entre os 11 e os 16anos, e verificou-se que para a grande maioria asua primeira experiência com a droga é feita en-tre os 13 e os 15 anos (66,0%). 6,4% experimen-tam-na entre os 6-9 anos e 18,1% entre os 10-12anos. Os jovens referiram que as pessoas que con-somem droga o fazem porque querem experi-mentar (64,2%), porque os seus amigos tambémconsomem drogas (53,5%) e porque se sentemsós (52,8%) (Matos et al., 2000).

A deficiente capacidade de reparação tem assuas raízes no desenvolvimento infantil e é rea-ctivada pelo processo adolescente normal, nãoesquecendo o papel patogénico dos factores fa-miliares e sociais. Crumley (1982) afirma que acapacidade para lidar com o stress é assim dimi-nuta e daí que o adolescente empreenda doloro-samente inúmeras manobras para contra-agir eevitar o mal-estar crescente, constituindo a in-gestão de drogas um meio que anestesia a angús-tia e o desespero.

1.4. O Consumo de Cannabis e as suas Con-sequências na Saúde dos Adolescentes

A cannabis é a substância psicoactiva ilícitamais consumida universalmente. É uma planta

herbácea originária da Ásia Central, da famíliadas cannabaciae e da ordem das urticales. Foidescrita em 1758 pelo naturalista sueco Karl vonLinné sob a designação composta de CannabisSativa, que significa “cânhamo cultivado”, e temsido largamente utilizada pelo homem ao longode milhares de anos, quer pelas suas proprieda-des farmacológicas, como também por forneceruma fibra útil para a tecelagem e as suas semen-tes serem um bom alimento para os pássaros (Valle,1966; Grinspoon & Bakalar, 1993).

Ao longo dos séculos, a cannabis esteve sem-pre ligada quer à religião quer à medicina. Hojeainda é considerada sagrada em algumas religi-ões de países da América Central e da Ásia. Aprimeira prova do uso medicinal da cannabis éum herbário publicado durante o reinado do im-perador chinês Cheng Nung há 5000 anos. Antesde se disseminar na sociedade ocidental comouma droga recreativa, era usada como analgé-sico, antiespasmódico, sedativo, anestésico locale antidepressivo. Recomendava-se o seu uso emafecções tão diversas como reumatismo, malária,insónias ou dores menstruais (Grinspoon et al.,1993).

Em 100 anos de investigação foram obtidos apartir da resina do cânhamo indiano, 80 compos-tos, que constituem a família dos cannabinóides.Em 1896, os químicos ingleses Spivey-Wood eEastenfield (cit. por Godot, 1992) isolaram o “can-nabinol”. No ano de 1964, os trabalhos de Gaoni& Mechoulam (cit. por Richard & Senon, 1995),professores da Universidade Hebraica de Jerusa-lém, permitiram que o “Tetrahidrocannabinol”(THC) fosse isolado e que, consecutivamente,Isbell (1968) e Hollister (1970) pudessem provarque ele era o agente que induzia os efeitos psí-quicos da planta.

A cannabis é hoje considerada sobretudo umasubstância ansiolítica, que quando consumida emdoses elevadas, num contexto particular, e em in-divíduos predispostos, pode conduzir a manifes-tações alucinogénicas (Richard et al., 1995).

Há já alguns anos que duram as polémicas emseu torno. Apresentada por uns como perfeita-mente inofensiva (Michka, 1993; Grinspoon etal., 1993), é vista por outros como eminentemen-te perigosa, tanto no plano individual, como so-cial (Nahas, 1992).

Esta substância pode apresentar-se sob três for-mas (Grinspoon et al., 1993): a) erva ou marijua-

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na: é uma mistura das extremidades da plantadessecadas e de grãos, e constitui o preparado debase menos rico em THC; b) haxixe: constituídopor resina dessecada e comprimida, comerciali-zado a retalho sob a forma de “tabletes”, prote-gidas da dessecação por uma prata e apresentan-do uma concentração de THC superior à da ma-rijuana; c) óleo: é um líquido viscoso entre o ne-gro e o castanho esverdeado, com um cheiro ca-racterístico, e que resulta da extracção da resinaatravés de um solvente orgânico, tratando-se dopreparado mais rico em THC, que oscila entre os25% e os 60%, consoante a sua proveniência eos cuidados observados na sua preparação.

O haxixe é mais usado nos países ocidentais,preparando-se com ele uma espécie de cigarro defabrico artesanal, contendo uma mistura de taba-co e haxixe (sendo este previamente aquecido àchama de um isqueiro), enrolado em mortalhas emunido de um filtro muitas vezes fabricado comum cartão maleável (bilhete de autocarro ou demetro). É o chamado “charro”, que é fumado eminspirações longas, denominadas “passas”.

Segundo o DSM-IV, os critérios de diagnós-tico da intoxicação por cannabis são: a) Toma re-cente de cannabis; b) Modificações comporta-mentais inadaptadas, por exemplo: euforia, an-siedade, desconfiança ou delírio persecutório, sen-sação de alongamento do tempo, alteração do dis-cernimento, isolamento social; c) Pelo menos doisdos seguintes sintomas físicos aparecem duashoras após a tomada de cannabis: conjuntivas in-jectadas, estimulação do apetite, secura bocal,taquicardia; d) Não devido nem a perturbação fí-sica nem a qualquer perturbação mental.

Os efeitos iniciam-se por um sentimento debem-estar acompanhado de euforia e risos des-propositados ou por vezes, pelo contrário, porsedação ou mesmo letargia, falta de memória,dificuldade em efectuar operações mentais com-plexas, alterações sensoriais, diminuição das per-formances motoras e sensação de que o tempo seescoa com maior lentidão. Estes sinais estão, na-turalmente, muito relacionados com a quantidadede droga consumida, com a personalidade de ca-da indivíduo e com o grau de tolerância ao pro-duto.

A maioria das pessoas que usam cannabis apre-sentam algum tipo de efeito desagradável, alémdos efeitos relaxantes da droga. Apesar disto, osconsumidores toleram esses efeitos indesejáveis

e os próprios companheiros de consumo auxi-liam com medidas gerais de apoio que se reve-lam suficientes. No entanto, algumas pessoas,principalmente aquelas com menor experiênciacom a droga, podem ficar muito ansiosas pelosseus efeitos, manifestando reacções semelhantesa um ataque de pânico (Miller & Branconnier,1983).

A suspensão brusca do consumo de cannabis,num indivíduo que consome doses elevadas hámuito tempo, induz sinais de carência actual-mente bem caracterizados. Surgem cerca de 12horas após a última toma de droga e intensifi-cam-se durante 1 ou 2 dias, antes de desaparece-rem espontaneamente num espaço de 3 a 5 dias.Estes sinais caracterizam-se por uma viva ansie-dade, acompanhada de irritabilidade, agitação,insónia, anorexia e de uma alteração transitóriado estado geral, que se traduz num síndroma se-melhante a um episódio de gripe. No conjunto,os sinais fazem lembrar os resultantes da absti-nência de consumo prolongado de benzodiazepi-nas (Richard et al., 1995).

O uso crónico da cannabis traz pelo menos osmesmos riscos do que o abuso de álcool (Weint-raub, 1995). As duas substâncias produzem alte-ração da coordenação motora e comprometimen-to mental com relação à memória e à capacidadede planeamento intelectual. Este tipo de compro-metimento aumenta os riscos de vários acidentese do envolvimento em comportamentos de risco,como conduzir perigosamente, sexo sem protec-ção ou comportamentos anti-sociais.

Comparando o uso de cannabis com o uso detabaco, a British Lung Foundation (cit. por Young,2002) alerta que, apenas 3 cigarros de cannabispor dia causam os mesmos estragos nas vias res-piratórias do que 20 cigarros normais, principal-mente devido à maneira como os primeiros sãofumados. O fumo é levado mais profundamentepara os pulmões e é sustido numa média de 4 ve-zes mais tempo antes de ser exalado. O fumo dacannabis contém de 50% a 70% mais hidrocar-bonetos carcinogénicos do que o fumo do taba-co. Produz igualmente altos níveis de uma enzi-ma que transforma certos hidrocarbonetos na suaforma cancerígena, níveis estes que podem ace-lerar as mudanças que irão produzir células ma-lignas.

Assim, quer o fumo do cigarro, quer o fumoda cannabis produzem efeitos adversos e distin-

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tos nos seus consumidores, dentre eles os efeitosirritativos nos pulmões e os efeitos estimulantestanto da nicotina como do THC, sendo as altera-ções cerebrais produzidas pela cannabis mais pro-nunciadas do que as provocadas pela nicotina (Young,2002).

É um dado adquirido que o consumo crónicode cannabis altera as faculdades de memorizaçãoa curto prazo, de uma forma provavelmente re-versível, mas a um ritmo muito lento. As pertur-bações persistem, em todo o caso, pelo menosdurante seis semanas após uma desintoxicaçãocontrolada. Quanto mais tempo a cannabis forusada, mais afectadas ficarão as capacidades men-tais. Este tipo de efeito é especialmente preocu-pante entre os adolescentes, dado que ainda estãonuma fase de desenvolvimento físico e psíquico(Schwartz, 1990).

Foi descrito um síndroma amotivacional, fre-quentemente observado em adolescentes que eramconsumidores crónicos de cannabis (Defer, 1992).Traduz-se por um declínio de interesse pelas acti-vidades diárias em geral, um desinteresse exis-tencial, acompanhado de défice mnésico cons-tante e de embotamento afectivo e intelectual,sendo que o jovem não tem motivação para fazernada a não ser consumir esta substância.

Existem algumas evidências de que a canna-bis possa produzir, em consumidores crónicos ejá predispostos, uma psicose aguda denominada“psicose cannábica” com os seguintes sintomas:confusão mental, perda da memória, delírio, alu-cinações, ansiedade, agitação. Porém, não há da-dos suficientes que provem que o seu uso possagerar uma psicose crónica que perdure para alémdo período de intoxicação (Godot, 1992).

Uma das polémicas que gira em torno destadroga é a de saber se é correcto continuar a clas-sificá-la como sendo uma droga ilícita mas leve,tal como o são o álcool e o cigarro, estas de usolícito e diferenciá-la das drogas ditas pesadas,como a heroína e a cocaína. Segundo Figueiredo(2002), é muito difícil generalizar e categorizaras drogas entre leves e pesadas. Deve levar-seem conta os vários aspectos das situações: quemusa a droga, qual a droga usada, em que circuns-tâncias, a quantidade de droga. Para um depen-dente de qualquer tipo droga, a sua droga de con-sumo será o seu maior problema. A autora dá co-mo exemplo um alcoólico, para o qual a cocaínanão constitui um risco, sendo as consequências

do uso crónico do álcool demasiado severas pa-ra ser considerada uma substância leve.

Outra das polémicas é a utilização da cannabispara fins medicinais. O seu uso na medicina per-durou até ao século XX, quando a droga passoua ser consumida apenas para alterar o estado men-tal do consumidor. Na sua forma fumada, a can-nabis não tem aceitação no meio médico. Noentanto, o THC é fabricado numa pílula, disponí-vel com receita médica e, em alguns hospitaisnorte-americanos e holandeses, pode ser assimencontrado para uso oral ou intravenoso. Actual-mente é utilizado para tratar as náuseas e os vó-mitos que ocorrem em certos tratamentos do can-cro e para ajudar os pacientes com SIDA a co-mer melhor e a manter o peso (Hollister, 1986).

Apesar disto, estudos em animais descobriramque o THC pode destruir as células imunitárias etecidos do corpo que ajudam a proteger contra asdoenças, aumentando assim a probabilidade des-tas ocorrerem. De acordo com os investigadores,são necessárias mais pesquisas sobre os efeitossecundários do uso da cannabis e dos seus poten-ciais benefícios, antes de ser utilizada com re-gularidade no meio médico (National Institute onDrug Abuse-NIDA, 2003).

Mais uma das polémicas acerca da cannabis éo facto desta ser vista como o início da escaladapara drogas mais pesadas por parte de quem aconsome. Estudos longitudinais com estudantes,sobre os seus padrões de consumo de drogas, mos-tram que muito poucos jovens usam outras dro-gas ilegais sem antes terem experimentado a can-nabis (NIDA). Um sujeito que já usou cannabisestá mais propenso a experimentar drogas ditasmais pesadas do que um sujeito que nunca expe-rimentou. E isto deve-se não aos efeitos da can-nabis em si, mas às circunstâncias: o indivíduoque usa cannabis tem contacto com pessoas queusam drogas e geralmente, que usam outras dro-gas, para além de frequentar locais de diversãoonde faz parte consumi-las. Portanto, o grupo deamigos e os locais que o jovem frequenta, po-dem influenciar o início do uso de outras drogas.Os estudos mostram também que os adolescentesque começam a fumar cannabis muito cedo têmmais probabilidades de progredir para um usocrónico desta droga (NIDA).

Os adolescentes em geral correm mais riscosao usar cannabis, pois estão em fase de formaçãofísica e psíquica, e o seu uso pode desviar o seu

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desenvolvimento normal. Existe uma tendêncianatural, própria da idade, de manifestarem di-ficuldades de adaptação a um mundo em cons-tante mudança. O uso de cannabis pode exacer-bar tais dificuldades.

Como Fréjaville e Choquet (1977) alertam, seum jovem resolve os problemas normais daadolescência recorrendo a drogas, corre um sériorisco de se tornar num adulto imaturo, voltandonovamente a recorrer à droga sempre que se de-pare com um novo problema.

Uma observação baseada em várias experiên-cias, é a de que é inútil tentar suscitar o medonos jovens no que diz respeito aos malefícios dasdrogas. Tanto para o tabaco, como para o álcoole outras drogas, os destinatários da informaçãoparecem pôr rapidamente em jogo os diversosmecanismos de defesa, tornando o empreendi-mento totalmente ineficaz, talvez porque a even-tualidade dos desenlaces dramáticos descritos,parece muito distante e improvável ou talvez por-que o emissor da mensagem é suspeito de váriosmotivos, tornando-se aquela duvidosa (Fréjavilleet al., 1977; Carvalho, 1989; Figueiredo, 2002).

O consumo de haxixe tem vindo a ganhar ca-da vez maior número de adeptos junto aos esta-belecimentos de ensino, e a este factor não é in-diferente a descriminalização desse consumo, co-mo afirma o Chefe do Núcleo de Investigação Po-licial da PSP/Porto, Comissário Neto. No últimoano, a PSP notou uma tendência natural para evi-denciar um circuito de haxixe junto das escolas,em particular do segundo ciclo e secundárias.Desde a descriminalização do consumo, encon-trar jovens com haxixe é hoje praticamente banal(Pinto, 2003).

A maioria dos jovens fumam haxixe porqueos amigos ou os irmãos o usam pressionando-ospara experimentar. Outros jovens usam-no por-que vêm pessoas mais velhas ou familiares aconsumi-lo. Outros podem pensar que está namoda consumir haxixe porque ouvem músicasacerca dele ou o vêm na TV ou em filmes. Al-guns adolescentes sentem que precisam dele e deoutras drogas para os ajudar a escapar de proble-mas que têm em casa, na escola ou com os ami-gos (NIDA).

Já que o uso de haxixe pode afectar o pensa-mento e o julgamento, os consumidores embar-cam muito facilmente em comportamentos derisco para a saúde como sejam relações sexuais

desprotegidas, expondo-se ao VIH e a doençassexualmente transmissíveis, gravidez não dese-jada, condução de veículos sem cinto de segu-rança ou em grande velocidade.

Num estudo efectuado por Chabrol, Massot,Montovany, Chouicha & Armitage (2002) ava-liou-se as ligações entre a frequência e os pa-drões do uso de haxixe e a dependência e as cren-ças ligadas ao seu uso, em 163 rapazes e 122 ra-parigas, com uma média de idades de 17,5 anos.33% dos jovens preenchiam os critérios de de-pendência de cannabis. Expectativas de prazerou alívio e crenças permissivas, reflectindo a per-cepção do uso de cannabis como sendo livre deriscos, foram altas nos consumidores e, particu-larmente, em sujeitos dependentes desta droga.

2. METODOLOGIA

2.1. Participantes

Os participantes neste estudo foram jovensadolescentes de ambos os sexos (55,7% do sexomasculino e 44,3% do sexo feminino), entre os13 e os 17 anos de idade, que frequentavam entreo 8.º e o 10.º ano de escolaridade, em regime di-urno e em ensino regular. A recolha dos questio-nários foi feita em escolas dos arredores de Lis-boa, entre os meses de Abril e Junho de 2003,sendo o processo de selecção das turmas aleató-rio.

Foram recolhidos um total de 289 questioná-rios, sendo que 37 constituíram o primeiro pré--teste, 25 o segundo pré-teste, e os restantes 227a recolha definitiva. Destes 227, foram elimina-dos seis, sendo então o total de participantes con-siderado, 221.

2.2. Tipo de Estudo

Este estudo é um estudo descritivo, na medidaem que foi composto por uma parte onde não sepretendeu explicar porque é que ocorrem deter-minados fenómenos, apresentando-se somente osresultados que se obtiveram. É também um es-tudo de comparação entre grupos, uma vez quecomparamos resultados dentro do total de parti-cipantes. O método foi experimental natural (Ri-beiro, 1999), sendo a variável manipulada, o con-

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sumo de haxixe (consumidores versus não con-sumidores).

2.3. Instrumentos

Questionário sobre Comportamentos de Con-sumo de HaxixePara a realização deste estudo, e porque não

foi encontrado qualquer instrumento que permi-tisse estudar as variáveis pretendidas, nomeada-mente quanto aos comportamentos dos jovensadolescentes em relação ao consumo de haxixe,decidiu-se construir um questionário que permi-tisse aceder a tais comportamentos.

Tendo por base a adaptação para a populaçãoportuguesa do Questionário de Comportamentosde Consumo de Álcool, de Lowe, Foxcroft e Sib-ley (1993), feita por Trindade em 1999, surgiu oQuestionário sobre Comportamentos de Consu-mo de Haxixe (Q.C.C.H.).

As questões especificamente relacionadascom o haxixe, foram criadas tendo por base apesquisa bibliográfica efectuada. Todas as ques-tões deste questionário são fechadas, com exce-pção dos itens 17, 20 e 24, onde se deu a possibi-lidade de enumeração de: outras razões para o con-sumo de haxixe por parte do jovem (item 17),outros locais de consumo (item 20) e outros mo-tivos que levam os jovens em geral a consumi-rem haxixe (item 24). Nestes itens foram criadascategorias nas quais se encaixaram as respostas.

O questionário é composto por 4 partes. A pri-meira parte, que engloba os itens 1-12, pretendeucaracterizar os jovens, nomeadamente quanto aosexo, idade, número de irmãos, situação familiar,situação escolar, situação face ao grupo de parese situação face ao consumo de haxixe. Contémuma instrução de salto de modo a permitir que osjovens que responderam negativamente ao item12 (que nunca consumiram haxixe) passassemdirectamente à parte III do questionário.

A segunda parte, respondida apenas pelos queafirmaram ter alguma vez consumido haxixe (itens13-21), visou caracterizar tais comportamentospor parte dos jovens, nomeadamente quanto àidade da primeira experiência, frequência e quan-tidade de consumo, possíveis razões para esse con-sumo, pessoas com quem se consome, locais ealturas em que é consumido, e despiste de outrasdrogas tomadas em conjunto com o haxixe.

Numa terceira parte (item 22) pretendeu-seestudar quais as expectativas que os jovens, querfossem ou não consumidores de haxixe tinham,acerca dos efeitos desta substância. Este item écomposto por 9 alíneas, seis formuladas positi-vamente e as restantes negativamente. Estas alí-neas são antecedidas pela frase: “Qual é o graude certeza que tens de …”. As respostas são efe-ctuadas mediante a indicação de uma pontuaçãonuma escala tipo Likert de 5 pontos, em que (1)está associado a nenhuma certeza e (5) a toda acerteza.

Pretendeu-se igualmente desvendar nesta ter-ceira parte o modo como os jovens, quer sejamou não consumidores, classificam o haxixe en-quanto droga (item 23) e os motivos que encon-tram para explicar o consumo desta substância(item 24).

Finalmente a quarta parte só foi utilizada nafase preliminar da recolha dos dados (pré-teste),num número reduzido de alunos (n=62), sendoconstituída por um espaço onde os jovens pude-ram fornecer os seus contributos, através da enun-ciação de eventuais erros que estariam presentesna construção dos itens do questionário ou dapresença de itens que fossem percepcionados co-mo confusos e pouco claros, e através de suges-tões de como poderíamos melhorá-lo. Esta partefinal do questionário resultou da necessidade detornar este instrumento o mais válido possível noque respeita à clareza e compreensão dos itenspor parte dos adolescentes.

Inventário de Saúde MentalEm conjunto com o Q.C.C.H. utilizou-se a ada-

ptação portuguesa feita por Ribeiro (2001) doMental Health Inventory (M.H.I.), o Inventáriode Saúde Mental.

O M.H.I. começou a ser desenvolvido em 1975como uma medida destinada a avaliar a saúdemental na população em geral, e não somentenas pessoas com doença mental. Foca sintomaspsicológicos de humor, ansiedade e de perda decontrolo sobre os sentimentos, pensamentos ecomportamentos.

Este instrumento foi adaptado para a popula-ção portuguesa por Ribeiro (2001), numa amos-tra de 609 estudantes saudáveis, 53% do sexo fe-minino, com idades entre os 16 e os 30 anos. Osresultados mostraram uma consistência internapelo Alfa de Cronbach de 0,80.

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Assim, o Inventário de Saúde Mental é um ques-tionário de auto-resposta, que inclui 38 itens dis-tribuídos por cinco sub-escalas. Os itens permi-tem medir quer a dimensão positiva da saúdemental (bem-estar psicológico), através da somados itens das sub-escalas Afecto Positivo (11 itens)e Laços Emocionais (3 itens), quer a dimensãonegativa (distress psicológico), pela soma dositens das sub-escalas Ansiedade (10 itens), De-pressão (5 itens), e Perda de Controlo Emocio-nal/Comportamental (9 itens).

A resposta a cada item é dada numa escalaordinal de cinco posições (itens 9 e 28) ou seisposições (restantes itens). Parte dos itens são co-tados de modo invertido (itens 1, 4, 5, 6, 7, 8, 10,12, 14, 17, 18, 22, 23, 26, 31, 34 e 37), sendo anota total resultante da soma dos valores brutosdos itens que compõem cada sub-escala.

2.4. Procedimento

Depois de obtida a devida autorização por par-te dos Conselhos Directivos das várias escolas,deu-se início à recolha dos dados. Numa primei-ra fase, e porque foi construído um questionário,procedeu-se a um pré-teste, ou seja, à aplicaçãodo mesmo a 37 alunos, cujas características es-tavam dentro do pretendido para este estudo.

Os resultados deste pré-teste mostraram quehavia alguns itens, que suscitavam dúvidas e con-fusão aos jovens, surgindo então a necessidadede alterar o questionário. Seguidamente, o novoquestionário foi aplicado a outro grupo de jovens(n=25), cujas características eram também seme-lhantes às pretendidas para o estudo, não tendosurgido dúvidas nem confusões relativamente aositens do questionário, decidindo então proceder--se ao início da recolha definitiva dos dados.

Esta foi feita no horário das aulas, de formacolectiva, nas turmas dos professores que se dis-ponibilizarem a colaborar neste estudo. Depoisde uma breve explicação aos alunos onde se pre-tendeu enquadrar o âmbito da investigação, foipedida a sua colaboração e garantida a confiden-cialidade dos dados recolhidos. A aplicação con-junta do Questionário sobre Comportamentos deConsumo de Haxixe e do Inventário de Saúde Men-tal, demorou 25-30 minutos por turma. Após a re-colha, estes instrumentos foram numerados alea-toriamente.

3. RESULTADOS

Como resposta à pergunta “Já alguma vezconsumiste haxixe?” (item 12, Q.C.C.H.) verifi-cou-se que a grande maioria dos participantes(81,9%) afirmou nunca ter consumido haxixe,havendo apenas 18,1% que diz ter alguma vezconsumido esta droga.

Procedeu-se a uma análise descritiva das res-postas à parte II do Q.C.C.H., pelo facto dos par-ticipantes que responderam a esta parte, já emalgum momento das suas vidas terem consumidohaxixe (n=40; 18,1%).

Assim, como respostas à pergunta “Com queidade experimentaste pela primeira vez haxi-xe?” (item 13) verificou-se que a maioria dos ado-lescentes experimentou esta droga pela primeiravez aos 13 anos (27,5%) e aos 14 anos (25,0%).Os restantes experimentaram-na pela primeiravez um pouco mais tarde: 17,5% aos 15 anos e12,5% aos 16 anos. De salientar que 15% dos par-ticipantes afirmaram tê-la experimentado pelaprimeira vez aos 12 anos e 2,5% aos 11 anos.

Quanto à frequência do consumo de haxixefeita pelos adolescentes (item 14), a maioria re-feriu ter experimentado uma vez a droga, nuncamais tendo consumido (42,5%). Dos restantes,27,5% afirmou só consumir em ocasiões especi-ais, 20,0% consome algumas vezes durante o mêse 10,0% consome mais do que uma vez por se-mana.

Relativamente à quantidade de consumo fei-ta pelos adolescentes (item 15), a grande maioria(60,0%) afirmou não ter consumido na semanaanterior à passagem do questionário. Dos restan-tes, 20,0% afirmou ter consumido uma ou duasvezes, 12,5% consumiu três ou quatro vezes e7,5% afirma ter consumido mais do que cincovezes na semana anterior.

Quando foi pedido aos adolescentes que ava-liassem essa quantidade de consumo (item 16),60,0% afirmou que na semana anterior o seu con-sumo foi nulo. Dos restantes, 20,0% avaliou oseu consumo na última semana como moderado,10,0% avaliou-o como tendo sido grande, 7,5%como tendo sido ligeiro e 2,5% como tendo fei-to um consumo muito grande.

Relativamente às razões que levaram estesadolescentes a consumirem haxixe, estas foramdadas pelas respostas ao item 17 do Q.C.C.H..Este item continha uma resposta aberta («Ou-

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tras»), na qual foram criadas 7 categorias de res-posta, de forma a permitir classificar as respostasdos jovens. Assim, a maioria (37,5%) deu outrasrazões para consumir haxixe, para além das queestavam presentes no questionário. As duas ou-tras razões com maior percentagem de resposta(ambas 36,8%) apresentadas para o consumo dehaxixe foram «Para experimentar» e «Porque éfixe/divertido». Das respostas que estavam pre-sentes, 31,3% dos participantes afirmou que con-some haxixe porque este os faz ficar relaxados,14,6% afirmou que consome haxixe porque esteos faz sentir mais próximo dos amigos, 10,4%consome haxixe porque este os faz sentir menospreocupados, 4,2% porque o haxixe os faz es-quecer das dores e 2,1% porque o haxixe lhes fazmelhorar a criatividade.

No que diz respeito às pessoas com quem es-tes jovens consomem haxixe (item 18), a gran-de maioria (62,0%) afirmou consumir haxixe nacompanhia dos amigos da sua idade, 20,0% afir-mou consumir na companhia dos amigos maisvelhos, 14,0% consome sozinho e 4,0% consomecom os irmãos.

Relativamente ao despiste de drogas toma-das em conjunto com o haxixe (item 19), a gran-de maioria (67,4%) referiu que consome haxixeisoladamente. 25,6 % dos jovens afirmou consu-mir haxixe e álcool e 7,0% diz consumir haxixee outras substâncias. De referir que nenhum par-ticipante afirmou consumir haxixe associado comheroína ou cocaína.

Relativamente aos locais escolhidos pelos jo-vens para o consumo de haxixe, estes são da-dos pelo item 20 do questionário. Este item apre-senta, tal como o item 17, uma resposta aberta(“Noutros Locais”) para a qual foram criadas 5categorias para classificar as respostas dadas.Assim, a maioria destes adolescentes (51,0%) es-colhe a rua como local para o consumo de ha-xixe. Dos restantes participantes, 20,4% escolhea casa dos amigos, 12,2% escolhe a escola e 2,0%escolhe a sua própria casa. 14,3% dos participan-tes diz efectuar o consumo de haxixe noutros lo-cais para além dos referidos no questionário: fes-tas, concertos e campos de férias apareceram en-tre os locais mencionados pelos jovens.

Finalmente quanto à altura do dia em queefectuam o consumo (item 21), a maioria (60,4%)afirmou consumir haxixe à noite, quando sai comos amigos, 16,7% afirmou consumi-lo depois das

refeições principais, 12,5% antes de ir dormir e10,4% diz consumi-lo de manhã antes de ir paraa escola.

No que diz respeito aos resultados do item 22da parte III do Q.C.C.H., referentes às expecta-tivas relativas aos efeitos do consumo de haxi-xe, recorreu-se ao teste t de Student para Amos-tras Independentes, como forma de verificar a exis-tência de diferenças entre os dois grupos (consu-midores versus não consumidores).

Como se pode verificar, o teste t de Studentrevelou a existência de diferenças significativaspara p ≤0,05 entre os dois grupos nas seguintesquestões: 22b, 22c, 22d, 22e, 22g e 22i (Tabela 1).

Assim, o grupo que consome haxixe, compa-rativamente com o que não consome, reveloumaior certeza relativamente aos seguintes efeitosdesta droga: a) o haxixe proporcionar maior des-contracção e consequentemente maior diversãocom os amigos; b) o haxixe proporcionar menosnervosismo; c) o haxixe ser menos prejudicial àsaúde do que o tabaco.

Por sua vez, o grupo que não consome haxixerevelou maior certeza sobre os seguintes efeitos:a) haver possibilidade de não realizar as tarefasque tenha para fazer se consumir haxixe; b) ha-ver mal estar físico e psicológico poucas horasdepois do consumo de haxixe; c) o haxixe ser pre-judicial à saúde.

De seguida averiguou-se se os dois grupos di-feriam no modo como classificam o haxixe en-quanto droga (item 23 do Q.C.C.H.), tendo-separa tal recorrido ao teste Qui-Quadrado.

Verificou-se que a maioria dos adolescentesdo grupo que consome haxixe classifica estadroga como uma droga leve, sendo que os res-tantes não a consideram sequer uma droga. Nogrupo que não consome, embora a maioria consi-dere o haxixe uma droga leve, há uma grandepercentagem a classificar esta droga como sendopesada. O teste Qui-Quadrado revelou a existên-cia de uma diferença significativa entre os doisgrupos nesta questão (Tabela 2).

Comparou-se ainda os dois grupos nas respos-tas ao item 24 do Q.C.C.H., que pretendia reve-lar a opinião dos jovens acerca dos motivosque levam ao consumo de haxixe. A maioriados adolescentes do grupo que consome haxixereferiu a “diversão” como o principal motivo queleva os jovens a consumir esta droga (55%). Ou-tro dos motivos mais referidos foi “os amigos

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TABELA 1t de Student para Amostras Independentes: Comparação dos dois grupos nas questões do

Q.C.C.H., relativas às expectativas sobre os efeitos do consumo de haxixe

t de Student para Amostras Independentes

t G1 p

Se uma pessoa consumir Haxixe é melhor aceite pelos amigos da sua idade? ,360 219 ,719

Se uma pessoa consumir Haxixe há a grande possibilidade de não realizar as -3,876 219 ,000tarefas que tenha para fazer?

Se uma pessoa consumir Haxixe sente-se mais descontraído e assim pode 4,585 219 ,000divertir-se mais com os amigos?

Se uma pessoa consumir Haxixe sente-se mal fisicamente e/ou psicologica- -6,894 219 ,000mente, horas depois de o ter feito?

Se uma pessoa consumir Haxixe prejudica a sua Saúde? -2,247 219 ,026

Se uma pessoa consumir Haxixe é melhor aceite pelos amjigos mais velhos? -1,182 219 ,239

Se uma pessoa consumir Haxixe sente-se menos nervosa? 3,807 219 ,000

Se uma pessoa consumir Haxixe consegue estar mais à vontade com as pessoas 1,579 219 ,116do sexo oposto ao seu?

Se uma pessoa consumir Haxixe está a prejudicar menos a sua saúde do que se 2,858 219 ,005consumir tabaco?

TABELA 2Teste Qui-Quadrado: Comparação dos dois grupos nas respostas ao item 23 do Q.C.C.H.

Q23

É uma droga leve É uma droga pesada Não é uma droga Total

GRUPO Consomem Haxixe 29 11 4072,5% 27,5% 100,0%

Não Consomem Haxixe 96 85 18153,3% 46,7% 100,0%

Total 125 85 11 22156,8% 38,2% 5,0% 100,0%

X2 = 70,28; p = 0,000

Page 15: Consumos de Haxixe e Saude Mental Em Adolescentes

consumirem” (15%). Apenas 1 participante refe-riu “Problemas (pessoais/familiares)” como es-tando na base do consumo desta droga.

Contrastando com os resultados deste grupo,verificou-se que no grupo que não consome ha-xixe houve uma maior diversidade de respostas,não havendo um motivo que fosse, isoladamente,referido pela maioria dos adolescentes. Uma gran-de percentagem referiu os motivos “os amigosconsumirem” (29,8%) e a “diversão” (17,1%),sendo de realçar que neste grupo o motivo “Pro-blemas” foi mais referenciado do que no grupoque consome haxixe.

Quando comparados os dois grupos de parti-cipantes, relativamente à variável ReprovaçõesEscolares, verificou-se que, embora a maioriados jovens em ambos os grupos nunca tenha re-

provado, existe de uma forma geral, um maiornúmero de reprovações no grupo de jovens con-sumidores. Este grupo de jovens apresentou, igual-mente uma maior percentagem de reprovaçõesno 9.º ano e no 10.º ano de escolaridade, quandocomparado com o grupo de jovens não consumi-dores. Na variável Situação Familiar verificou--se existir uma maior percentagem de pais nogrupo de consumidores que estão separados oudivorciados (Tabela 3).

Procedendo-se ao estudo estatístico sobre a in-fluência de certas variáveis nos dois grupos, ve-rificou-se que esta era estatisticamente significa-tiva quanto à variável idade e quanto à variávelgrau de influência do grupo de pares nas decisõese/ou actos.

Assim, no que diz respeito à variável idade, o

165

TABELA 3Comparação dos dois grupos relativamente às variáveis reprovações escolares, anos de

escolaridade onde se deram as reprovações e situação famíliar

Grupo

Cons. Haxixe n=40 Não Cons. Haxixe n=181

Variáveis Freq. % Freq. %

Reprovações EscolaresNão Reprovou 24 60,0% 141 77,9%Reprovou 1 vez 9 22,5% 27 14,9%

Reprovou 2 vezes 4 10,0% 12 6,6% Reprovou 3 vezes 2 5,0% 1 0,6%

Não Responde 1 2,5% 0 0,0%

Anos das Reprovações Escolares1.º ano 0 0,0% 1 1,9% 2.º ano 0 0,0% 0 0,0% 3.º ano 0 0,0% 1 1,9% 4.º ano 3 12,5% 9 16,6% 5.º ano 2 8.2% 7 13,0% 6.º ano 4 16,7% 6 11,0% 7.º ano 6 25,0% 11 20,4% 8.º ano 1 4.2% 12 22,2% 9.º ano 3 12,5% 1 1,9%

10.º ano 4 16,7% 5 9,2% Não responde 1 4,2% 1 1,9%

Situação Familiar Vivem Juntos 22 55,0% 131 72,4%

Estão Separados 6 15,0% 16 8,8% Estão Divorciados 10 25,0% 28 15,5%

Pai Faleceu 2 5,0% 5 2,8% Mãe Faleceu 0 0,0% 1 0,5%

Ambos Faleceram 0 0,0% 0 0,0%

Page 16: Consumos de Haxixe e Saude Mental Em Adolescentes

grupo que consome haxixe apresentou uma mé-dia de idades (15,45) superior à do grupo que nãoconsome haxixe (14,98), revelando o teste t deStudent que esta diferença é estatisticamente signi-ficativa (Tabela 4).

Quanto à variável grau de influência do gru-

po de pares nas decisões e/ou actos, verificou--se que no grupo que consome haxixe existia umamaior percentagem de participantes (20%) a re-ferirem que o grupo tem muita influência nas suasdecisões e/ou actos, comparativamente com oque se passava no grupo que não consome (7,7%).

166

TABELA 4t de Student para Amostras Independentes: Comparação dos dois grupos relativamente à

variável idade

t de Student para Amostras Independentes

t GI p

Idade 2,735 219 ,007

TABELA 5t de Student para Amostras Independentes: Comparação dos dois grupos nas respostas à variável

grau de influência do grupo de pares nas decisões e/ou actos

t de Student para Amostras Independentes

t GI p

O11 2,042 219 ,042

TABELA 6t de Student para Amostras Independentes: Comparação dos dois grupos no

Inventário de Saúde Mental

t de Student para Amostras Independentes

t GI p

Nível de Saúde Mental -1,611 219 ,109

Ansiedade -1,642 219 ,102

Depressão -1,621 219 ,106

Perda de Controlo -1,208 219 ,228

Distress Psicológico -1,644 219 ,102

Afecto Positivo -1,019 219 ,309

Laços Emocionais -1,324 219 ,187

Bem Estar Psicológico -1,196 219 ,233

Page 17: Consumos de Haxixe e Saude Mental Em Adolescentes

A média do grupo que consome haxixe nesta ques-tão foi mais elevada (2,80) do que a do grupo quenão consome (2,50). O teste t de Student reveloua existência de uma diferença significativa entreos dois grupos (Tabela 5).

Finalmente, no que diz respeito ao Inventáriode Saúde Mental, o teste t de Student não reve-lou para p ≤0,05 a existência de diferenças esta-tisticamente significativas entre o grupo que con-some haxixe e o grupo que não consome haxixeem qualquer das suas sub-escalas (Tabela 6).

4. DISCUSSÃO E CONCLUSÃO

Como afirma Ginzberg (1991) (cit. por Fras-quilho, 1996) a adolescência é um período críti-co para intervenções com vista à promoção dasaúde e para a adopção de estilos de vida saudá-veis, sendo que a população em maior risco deconsumo de drogas é a população escolar, sobre-tudo ao nível do ensino básico e secundário (Cor-deiro, 1988).

Para Matos (2002) as dificuldades na desvin-culação do objecto endogâmico e/ou a conquistae estabelecimento do laço com o objecto exogâ-mico, resumem as angústias e a dor do evoluir naadolescência. Afirma que compreendê-la é com-preender o trabalho de luto, essencial ao cresci-mento psicoafectivo e ao desenvolvimento so-cial.

Por sua vez Cordeiro (1988) cita dentre as de-fesas do adolescente contra a ansiedade de sepa-ração dos objectos de relação infantis, a desloca-ção da libido que a seu ver pode ser muito forte econduzir a actings, cuja evolução irá dependeressencialmente dos novos objectos de relaçãoque o jovem possa encontrar. A via da toxicoma-nia pode então ser vista, ou como um sintoma decrise individual ou social, ou como uma organi-zação patológica da pessoa ou do grupo (Matos,2002).

Baseando-nos na forma como Figueiredo (2002)diferencia o consumidor de substâncias adictivasquanto à frequência de consumo, pode-se dizerque neste estudo os jovens distribuíram-se da se-guinte forma: 42,5% eram consumidores experi-mentais; 27,5% eram consumidores esporádicos;20,0% eram consumidores habituais e 10,0% eramconsumidores abusivos.

Os adolescentes têm uma intensa necessidade

de experimentar o novo. Isto faz parte integranteda mentalidade juvenil. Assim, e para a maioriadestes adolescentes consumidores, o haxixe re-velou ser mais uma experiência adolescente, queescolheram não continuar.

Aos que fazem um consumo esporádico pen-samos que não é alheio o peso do grupo: as saí-das à noite para festas ou concertos, que nestaaltura do desenvolvimento são ocasiões especi-ais, porque muito desejadas e investidas, sãomomentos propícios para o incitamento por partedos pares, ao consumo de haxixe, criando a ex-pectativa de uma maior diversão em grupo. Cadaum motivado pelas suas razões intrínsecas (dasquais só poderemos enumerar as mais frequen-tes: conquistar a admiração dos amigos, intensodesejo de não ser posto à margem do grupo, de-safio à autoridade parental), os jovens aventu-ram-se.

Para os restantes, consumidores habituais e abu-sivos, o haxixe já se tornou um caminho. Fuman-do, embarcam na procura de um espaço transiti-vo, de ilusão (Soulé, 1974; Cordeiro, 1975), on-de todo o mal-estar é eliminado, onde o não-pen-sar predomina. Por diversas razões individuais, oadolescer destes jovens parece ser mais disrupti-vo e desestabilizador, originando momentos re-gressivos, orais, em vez de progressivos.

Os motivos que movem os adolescentes con-sumidores na procura desta droga são diferentese pessoais. No entanto, como se pôde verificar,temos um conjunto de razões que foram enume-radas pelos jovens e que estão ligadas: a) ou aoexperimental, à curiosidade pelo que é novo (pa-ra experimentar – 36,8%); b) ou a uma procurade integração grupal (para me sentir mais pró-ximo dos amigos – 14,6%) e consequente pro-cura de diversão (porque é fixe/divertido – 36,8%);c) ou ao controlo da angústia decorrente da vi-vência de fragilização pela qual estão a passar(para relaxar – 31,3%; para me sentir menos pre-ocupado – 10,4%; para esquecer as dores – 4,2%).

Estes resultados assemelham-se muito aos en-contrados no estudo efectuado pela Faculdade deMotricidade Humana, em 1998, onde as razõesenumeradas pelos jovens para o consumo de dro-gas ilícitas e as distribuições de respostas em ter-mos de percentagem, são idênticas às por nós en-contradas. Contrariam, no entanto, os resultadosencontrados por Fonseca (1989), onde o aumen-to da criatividade e o aborrecimento aparecem

167

Page 18: Consumos de Haxixe e Saude Mental Em Adolescentes

como sendo as razões que mais motivam os jo-vens a consumir drogas ilícitas.

A precocidade destas experiências é cada vezmaior, como foi demonstrado pelo estudo de Fon-seca (1989), onde a média das idades de iníciopara o consumo de drogas era de 14,47 anos epelo da Faculdade de Motricidade Humana em1998, em que a faixa etária dos 13 aos 15 anosera dominante nestes comportamentos de início.Também neste estudo os resultados foram seme-lhantes: a idade dos 13-14 anos revelou-se comosendo a altura em que as primeiras experiênciascom o haxixe ocorrem.

Nesta faixa etária estão já em decurso muitasdas mudanças físicas características do períodopubertário (11-13 anos). Tal facto leva a umafragilização do Eu, a uma vivência de desarmo-nia e de descontinuidade em relação ao corpo in-fantil, a que Dias (1995) chamou “asfixia do sen-tir”, vivido como uma “saturação do espaço on-de não caibo”. Esta vivência obriga a um mobi-lizar de estratégias psicológicas necessárias parareelaborar as antigas representações e investi-mentos, que permitem fazer face aos novos desa-fios dados pela maturação.

Esta faixa etária revela ser igualmente o perío-do de transição para a adolescência propriamentedita (14-18 anos), onde o Outro, adquire uma im-portância crescente, sendo à luz desta relaçãocom os outros, companheiros iguais/diferentes,que o jovem (se) experimenta. É a altura da for-mação dos grupos, cujos interesses comuns sãomuitas vezes experiências evasivas nas quais seinclui o uso de drogas.

Os amigos adquirem um papel muito maissignificativo à medida que o jovem avança nesteperíodo. Como os resultados deste estudo mos-traram, para os consumidores de haxixe os paresexercem muito mais influência sobre as suasdecisões, do que para o grupo que não consomeesta droga. As razões para este facto variam dejovem para jovem, mas pensamos que fica claroque factores como a pressão grupal, o medo deser banido do grupo, a necessidade de ser aceitepelos iguais, jogam aqui um papel fundamentalno início e na manutenção de comportamentosde consumo de haxixe.

Esta substância banalizou-se no quotidiano demuitos adolescentes: para uns como mediadordas suas relações (um pouco como o álcool), é adroga de grupo (Fréjaville et al., 1977). Os ami-

gos encontram-se para fumar ou fumam para sedivertir em grupo. Para outros ela surge num ní-vel mais primário como objecto de substituiçãoque mascara a percepção da necessidade de de-pendência, funcionando como um objecto quepode ser controlado externamente pelo sujeito (Jeam-met, 1991), donde mais seguro do que a sua rea-lidade interna. Estes jovens parecem ser repre-sentados pelos nossos participantes que fazemum consumo sobretudo abusivo e solitário.

Pensamos que quer num caso, quer noutro, ohaxixe aparece pela necessidade de construiruma realidade substitutiva pela frustração maisou menos intensa com que o jovem vive a reali-dade concreta. Com recurso a ele, abre uma vál-vula de escape para a tensão interna, não se pro-cessando a elaboração dos conflitos, nem a uti-lização adaptada da energia interna.

Os riscos para a saúde que advêem destes com-portamentos de consumo de haxixe são vários:aumento de problemas crónicos ao nível do apa-relho respiratório, possível escalada para o con-sumo de outras drogas, pela convivência comgrupos que as utilizam e incentivam, diminuiçãoda capacidade de atenção e de concentração, dacapacidade de memorização, com efeitos imedia-tos nas competências escolares.

Relativamente às expectativas face aos efeitosdo consumo de haxixe, estas assumem papéis di-ferentes nos dois grupos de adolescentes, e con-tribuem para o facto de consumirem ou não con-sumirem haxixe.

O grupo de participantes que consome asso-ciou maior certeza quanto ao facto de o haxixeproporcionar maior descontração, o que lhes per-mite uma maior diversão com os amigos e maiorcerteza quanto ao haxixe proporcionar menos ner-vosismo. Estes resultados são concordantes comos obtidos pelo estudo de Chabrol et al. (2002),onde expectativas de prazer e alívio foram altasnos consumidores. Ao funcionar como uma subs-tância depressora do Sistema Nervoso Central,com um efeito ansiolítico, o haxixe pode actuarfrequentemente, induzindo uma sensação de re-laxamento e de tranquilidade, um esquecimentomomentâneo do mal-estar, com consequente fa-cilitação da diversão.

Este grupo de participantes tem ainda a expe-ctativa de que o haxixe é menos prejudicial àsaúde do que o tabaco. Esta expectativa erróneadá ao adolescente consumidor uma espécie de

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Page 19: Consumos de Haxixe e Saude Mental Em Adolescentes

protecção, que lhe permite desculpabilizar o con-sumo. Na verdade o haxixe é mais nocivo do queo tabaco, quer devido ao modo como é fumado,quer pelos componentes que apresenta, quer ain-da pelas alterações cerebrais produzidas.

Por sua vez, o grupo de participantes não con-sumidor teve maior certeza de haver possibili-dades de não realizar tarefas se consumir haxixee (ou devido a) haver mal-estar físico e psicoló-gico depois de se consumir. Estas expectativastambém protegem estes jovens, mas no sentidode os levar ao não consumo, por medo de se sen-tirem mal ou de comprometerem as suas activi-dades escolares. O haxixe é essencialmente paraestes jovens uma droga e, como tal, perigosa eprejudicial à saúde.

Deste modo, também nos parece que o factodos adolescentes se encontrarem ou não a consu-mir haxixe, poderá igualmente reforçar as suasexpectativas face aos efeitos do consumo destadroga, contribuindo, no caso dos primeiros, paraque se mantenham os consumos e, no caso dossegundos, para que estes não tenham início.

As diferenças encontradas nas expectativas vãoao encontro do modo como os jovens classificamo haxixe. Embora esta substância seja, para osnão consumidores, sobretudo uma droga leve, háno entanto uma grande percentagem de jovens aconsiderá-lo como uma droga pesada. Pensamosque para este grupo, é secundário o facto de o ha-xixe ser uma droga leve ou pesada. É uma droga,e como tal, nociva.

Contrariamente, para o grupo de participantesconsumidor, o haxixe é uma droga leve, nem sen-do considerada uma droga para 27,5% dos jo-vens. Mais uma vez é notória a protecção e ocontrolo que sentem por detrás da denominação“leve”, como é notório também o facto desta dro-ga ser de tal modo banal e vulgar dentro deste cír-culo de jovens, que deixou até de ser considera-da uma droga. Estes resultados vão uma vez maisao encontro dos encontrados por Chabrol et al.(2002), onde a percepção de que o haxixe era li-vre de riscos, foi alta nos consumidores.

O uso de todas as drogas durante a adolescên-cia é particularmente nocivo e perigoso, não fa-zendo sentido continuar a distingui-las entre le-ves e pesadas. Ao facilitar a irrupção violenta ecaótica do inconsciente, elas desencadeiam bre-chas importantes no sentimento de unidade e deintegridade, que se acompanha do desapareci-

mento mais ou menos marcado dos limites doEu. Este facto pode ser intensificado no períododa adolescência. Pensamos que nos participantesdeste estudo que fazem um uso habitual ou abu-sivo de haxixe, este dificilmente pode ser consi-derado uma droga leve, perante os riscos imedia-tos e a longo prazo que acarreta.

Como os teóricos das relações de objecto têmdefendido (Mahler, 1971; Kohut, 1977; Fairbain,1954), a meta principal do desenvolvimento psi-cológico humano consiste no evoluir de um esta-do inicial de dependência psicológica para umestado posterior de crescente autonomia e matu-ridade individual (Geada, 1996).

Período de crise porque período de mudança,a adolescência situa-se entre duas eras do estatu-to social do ser humano: a da dependência e a daindependência. E é com o crescimento e adapta-ção harmónicos, que a adolescência normal sedefine: fazendo da crise, que angustia e deprime(pela inquietação do desconhecido para que setende e pela tristeza da perda do passado infan-til), um desenvolvimento em que o indivíduo seafirme e satisfaça, constituindo-a como um orga-nizador psíquico. Se a droga pode encontrar umadolescente nesta crise normativa do luto, elapode também eternizá-lo.

Com este estudo não conseguimos demonstrardiferenças estatisticamente significativas ao ní-vel da saúde mental entre os dois grupos. Pensa-mos que isto poderá ter ficado a dever-se ao factode termos muitos participantes (42,5%) com umuso apenas experimental de haxixe, os quais fo-ram colocados no grupo dos consumidores poressa experiência ser pertinente para o que dese-jávamos estudar. Tal revelou-se ineficaz para es-tudar a existência de diferenças naquela variável.

A promoção da saúde mental ao nível do pro-blema da droga não se pode desligar na actua-lidade da problemática da adolescência. Esta pro-moção deverá ser conduzida, estimulando a re-dução das tensões psicológicas entre os adoles-centes e os adultos. Na família actual observa-seuma crise, paralela à revolução tecnológica, quemodificou hábitos de vida e a própria noção detempo (Dias, 1979), sendo a comunicação cadavez mais difícil e superficial. Este facto contribuipara que o adolescente se encontre muitas vezessó, perante as suas incertezas, os seus desejos eas suas angústias.

Na mesma linha, a prevenção secundária de-

169

Page 20: Consumos de Haxixe e Saude Mental Em Adolescentes

verá ser feita levando em conta que a droga é umsintoma, entre outros, do mal-estar e da depres-são do adolescente, e que o tratamento individualdeve sobretudo restabelecer as possibilidades decrescimento, encarando somente intervenções maispesadas quando a dependência e habituação sãorealmente incomportáveis.

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RESUMO

O presente estudo teve como objectivos avaliar asituação acerca dos comportamentos de consumo dehaxixe, em adolescentes inseridos em meio escolar,estudar a influência de variáveis como, a situação fa-míliar, o grau de influência do grupo de pares nas de-cisões e as expectativas, no início e na manutenção doconsumo daquela substância. Pretendeu-se ainda ava-liar a existência ou não de relações entre este consumoe a saúde mental dos adolescentes.

Os participantes foram 221 adolescentes de ambosos sexos, com idades compreendidas entre os 13 e os17 anos e que frequentavam entre o 8.º ano e o 10.º anode escolaridade, do ensino regular diurno, em escolasdos arredores de Lisboa.

Como instrumentos de medida, construiu-se um ques-tionário (Questionário sobre Comportamentos de Con-sumo de Haxixe), baseado num já existente para ava-liar o consumo de álcool, que depois de ser sujeito apré-teste, foi administrado juntamente com a adapta-ção para a população portuguesa do Mental Health In-ventory, o Inventário de Saúde Mental.

Os resultados mostraram que a maioria dos jovensnão consome haxixe (n=181; 81,9%). Daqueles que ofazem (n=40; 18,1%), 42,5% são consumidores expe-rimentais, 27,5% são ocasionais, 20% são habituais e10% são abusivos. A maioria (27,5%) afirma ter tido asua primeira experiência com o haxixe aos 13 anos,sendo os motivos principais do consumo a procura derelaxamento (31,3%) e de diversão (36,8%). Os ami-gos da mesma idade são os principais companheiros deconsumo (62,0%), sendo a rua o local eleito pela maio-ria para o mesmo (51,0%).

Quando comparados os dois grupos de participantes(consumidores versus não consumidores), verificou-seque, no grupo de consumidores existe uma tendênciapara a escolaridade se apresentar afectada (40% repro-varam), com as reprovações a surgirem em maior nú-mero a partir do 9.º ano de escolaridade (12,5%; 16,7%no 10.º ano). Quanto à situação familiar verificou-se aexistência de uma maior percentagem de pais de con-sumidores que se encontram separados (15,0%) ou di-vorciados (25,0%). Expectativas de maior descontra-ção com consequente aumento da diversão (p=.000),de menor nervosismo (p=.000) e de o haxixe ser me-nos prejudicial do que o tabaco (p=.005), foram altas

nos consumidores. Este grupo classifica o haxixe co-mo uma droga leve (72,5%) ou como não sendo umadroga (27,5%), sendo o principal motivo que apresen-tam para se consumir, a diversão (55.0%). As diferen-ças entre os dois grupos quanto à influência da idade edo grupo de pares nas decisões e/ou actos, foram esta-tisticamente significativas (p=.007 e p=.042, respecti-vamente).

Não foram encontradas diferenças estatisticamentesignificativas entre os dois grupos quanto à saúde men-tal.

De tudo isto se conclui que a frequência de utiliza-ção desta substância e o significado que ela tem, diferede jovem para jovem. Torna-se importante levar emconsideração este facto e, nesta base, delinear progra-mas de prevenção que promovam o diálogo entre ospais e o adolescente, a resiliência deste e as suas com-petências sociais, com direcção ao bem-estar e a umcrescimento saudável.

Palavras-chave: Adolescência, saúde mental, haxi-xe, expectativas, drogas leves/pesadas.

ABSTRACT

The present study had the intent to evaluate the si-tuation concerning the behaviors of consumption ofhashish, in adolescents who attended school, to studythe influence of variables such as, family situation, de-gree of influence of the group of pairs in decisions, andexpectancies, in the beginning and in maintenance ofthe consumption of that substance. It was still intendedto evaluate the existence or not of relationships bet-ween this consumption and the adolescents’ mentalhealth.

The participants were 221 adolescents of both se-xes, with ages between 13 and 17 years old, and thatfrequented between 8th and 10th, in schools of thesurroundings of Lisbon.

As measure instruments, it was built a questionnai-re (Questionário sobre Comportamentos de Consumode Haxixe), based on one already existent to evaluatethe consumption of alcohol, that after being subject toa pre-test, it was administered together with the ada-ptation for the portuguese population of the MentalHealth Inventory, the Inventário de Saúde Mental.

The results showed that most of the youths doesn’tconsume hashish (n=181; 81,9%). Of those that do (n=40;18,1%), 42,5% do an experimental consume, 27,5% anoccasional, 20% a habitual and 10% an abusive. Most(27,5%) of them affirms to have had his/her first expe-rience with hashish at 13 years old, being the main rea-sons for consumption the search of relaxation (31,3%)and of amusement (36,8%). Friends of the same ageare the main consumption companions (62,0%), beingthe street the elected place for most to consume (51,0%).

When compared the two groups of participants(consumers versus no consumers), it was verified that,

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in the consumers’ group a tendency exists to schoolbecome afected (40% reproved), with the dissaprovalsappearing in larger number at 9th (12,5%; 16,7% in10th). As for the family situation, it was verified theexistence of a larger percentage of consumers’ parentsthat are separate (15,0%) or divorced (25,0%). Expe-ctations of larger relaxation with consequent increaseof amusement (p=.000), of smaller nervousness (p=.000)and of the hashish to be less harmful than tobacco(p=.005), were high in the consumers. This group clas-sifies the hashish as a light drug (72,5%) or as notbeing a drug at all (27,5%), being the main reason forconsume, amusement (55.0%). The differences amongthe two groups for the influence of age and group of

pairs in decisions and/or acts, were statistically signi-ficant (p=.007 and p=.042, respectively).

There weren’t found differences statistically signi-ficant among the two groups as for mental health.

To conclude, frequency of use of this substance andthe meaning that she has, differs. It becomes importantto take in consideration this fact and, on this base, de-lineate prevention programs that promote dialogueamong parents and adolescents, their resilience andtheir social competences, in direction to well-beingand to a healthy growth.

Key words: Adolescence, mental health, hashish,expectancies, light/hard drugs.

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