constituição e integração interestatal - defesa de uma teoria intercultural da constituição

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    CENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

    CONSTITUIO E INTEGRAO INTERESTATAL: DEFESA DE

    UMA TEORIA INTERCULTURAL DA CONSTITUIO

    BRUNO CSAR MACHADO TORRES GALINDO

    TESE DE DOUTORADO

    rea de Concentrao: Direito Pblico

    Recife

    2004

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    AGRADECIMENTOS ESPECIAIS

    A Deus, pela vida, fora e capacidade intelectiva;

    Aos Profs. Drs. Nelson Saldanha, Ivo Dantas, Fernando Scaff, Michel

    Zaidan e Paulo Lopo Saraiva, pelas oportunidades de discusso das idias

    que propiciaram a elaborao desta tese;

    Aos amigos e eternos incentivadores de minhas trilhas acadmicas (por

    ordem meramente alfabtica e no necessariamente de importncia):

    Albano Ppe, Alexandre Costa Lima, Alexandre da Maia, Alfredo Rangel,

    Ana Maria Barros, Antonieta Lynch, Artur Stamford, Catarina Oliveira,

    Cludio Brando, Ernani Carvalho, Fabola Albuquerque, Felipe Deodato,Fernando Andrade, Gustavo Batista, Gustavo Rabay, Joo Paulo Allain

    Teixeira, Larissa Leal, Liana Cirne, Nelson Barbosa, Paulo Muniz,

    Ricardo Jorge Guedes, Roberta Cruz, Roney Souza, Vera Della Santa,

    Walber Agra, Waleska Vasconcelos, pelo apoio de sempre;

    A Joo Maurcio Adeodato, amigo entusiasta e grande incentivador, a

    quem considero exemplo de intelectual e acadmico no qual busco

    espelhar-me;

    Sociedade Caruaruense de Ensino Superior que, na pessoa de sua

    Diretora-Presidente Mrcia Charret, propiciou importantssimo apoio

    elaborao do presente trabalho;

    CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino

    Superior, pela Bolsa de Estudos concedida que viabilizou financeiramente

    os estudos empreendidos na Faculdade de Direito da Universidade de

    Coimbra/Portugal;

    minha famlia, pelo incentivo e compreenso sem medidas;

    Aos diletos e cordiais funcionrios da Ps-Graduao em Direito da

    UFPE, especialmente Josi, Carminha, Elaine, Geane, Joanita e Wando,

    que, mesmo diante das limitaes pelas quais passa o servio pblico

    brasileiro, nunca deixaram de agir com presteza e dedicao exemplar;

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    Aos funcionrios do Centro de Estudos Sociais e da Faculdade de Direito

    da Universidade de Coimbra, especialmente Olga Canas, que colaboraram

    imensamente com as minhas pesquisas em Portugal;

    A Manuel Lopes Porto, Presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de

    Direito de Coimbra, pela encantadora gentileza e cordialidade que o cargo

    no obnubilou;

    E, por ltimo, a trs pessoas imprescindveis, sem as quais no teria

    sido possvel a realizao deste trabalho:

    A Raymundo Juliano Feitosa, mais do que orientador, amigo e guru, a

    quem prezo especialmente pelo exemplo de profissional e ser humano que

    , iluminando seus discpulos com seu saber e sua generosidade;

    Ao Prof. Dr. Gomes Canotilho, que me acolheu com solicitude nafascinante Coimbra, e cujas lies desinteressadamente expostas nos

    dilogos que travamos em seu gabinete na tradicional Escola jurdica

    coimbrana, propiciaram-me um redirecionamento da proposta de tese, a

    partir das sugestes do grande Mestre que, por no terem sido inteiramente

    acatadas, no implicam obviamente em co-responsabilidade nas

    imperfeies existentes;

    minha amada Ana Cludia, amorosa companheira de todos os

    momentos e a maior entusiasta de todas as minhas aventuras acadmicas e

    pessoais (somente ela sabe em plenitude o quo custoso foi chegar at

    aqui).

    O Autor.

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    RESUMO

    GALINDO, Bruno. Constituio e Integrao Interestatal: Defesa de uma TeoriaIntercultural da Constituio. f. Tese de Doutorado Centro de Cincias

    Jurdicas/Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

    Este trabalho prope uma discusso acerca das relaes entre a constituio e o

    fenmeno da integrao, almejando construir uma hiptese terica intercultural e

    inequivocamente aberta e flexvel, com o objetivo de suprir algumas das insuficincias da

    teoria clssica da constituio no que diz respeito caracterizao da constituio diante

    da integrao interestatal. Para conseguir tal objetivo, procura primeiramente situar as

    teorias clssicas da constituio, assim como a evoluo do conceito e das linhas mestras

    do fenmeno constitucional, fundamentado principalmente em autores consagrados como

    Kelsen, Schmitt, Smend e Canotilho, assim como os tericos e filsofos polticos mais

    antigos. Em seguida, busca dimensionar o conceito de cultura e de interculturalismo, a

    partir de categorias tericas e filosficas abertas, destacando-se a contribuio de autores

    como Popper e Hberle. Em um terceiro momento, tentamos demonstrar a aplicabilidade

    da hiptese terica proposta ao caso da Unio Europia e as relaes existentes entre as

    diversas constituies estatais e a constituio supraestatal com os avanos institucionais

    e as imperfeies remanescentes. Por ltimo, a verificao do interculturalismo

    constitucional no continente americano, suas deficincias e a substancial diferena dos

    processos de integrao na Amrica em relao ao que ocorre na Europa.

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    ABSTRACT

    GALINDO, Bruno. Constituio e Integrao Interestatal: Defesa de uma TeoriaIntercultural da Constituio. f. PHD Centro de Cincias Jurdicas/Faculdade deDireito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

    This work poses a discussion about the relationships between the constitution and

    the phenomenon of integration, longing for construct an intercultural theoretical

    hypothesis and clearly open-minded and flexible, with the aim to supply the inadequacies

    of classical theory of constitution about the characteristics of constitution in the face of

    interstates integration. To conquer this aim, at the beginning, try to put the classical

    constitutional theories in their places, as well as the evolution of the concept and the

    master lines of constitutional phenomenon, basing on knowledge authors like Kelsen,

    Schmitt, Smend and Canotilho, as well as the political theoreticians and philosophers

    more ancients. So, the work search for calculate the concept of culture and

    interculturalism, to start from open-minded theoretical and philosophic categories,

    emphasizing the contribution of Popper and Hberle. Thirdly, we will try to demonstrate

    the applicability of the thesis theoretical hypothesis to the European Union case and the

    relationships between the various states constitutions and the supranationalized

    constitution, with the institutional advances and the remaining imperfections. At least, the

    research of constitutional interculturalism in the american continent, his deficiencies, and

    the substantial difference of integrations processes in the America in the face of

    european integration.

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    CONSTITUIO E INTEGRAO INTERESTATAL: DEFESA DE

    UMA TEORIA INTERCULTURAL DA CONSTITUIO

    *Bruno Csar Machado Torres Galindo

    ndice:

    Introduo: EM TORNO DAS INCERTEZAS TERICAS EXISTENTES, 1

    Primeira ParteA(S) TEORIA(S) CLSSICA(S) DA CONSTITUIO: APORTESEPISTEMOLGICOS E DIMENSES CONTEMPORNEAS

    Captulo IESTADO: O REFERENCIAL DA CONSTITUIO MODERNA

    1)

    Necessidade de delimitao de um adequado conceito de Estado como ponto departida, 11

    2) Estado e soberania: o advento do Estado na modernidade ocidental, 133) Estado e nao: razovel falar-se em um Estado nacional?, 17

    Captulo IITEORIA DA CONSTITUIO E CONSTITUCIONALISMO (I): PR-MODERNIDADE E POLISSEMIA DO TERMO CONSTITUIO

    1) Os antecedentes remotos da teoria da constituio: Aristteles e Ccero, 212) Antecedentes medievais: um constitucionalismo insurgente?, 26

    Captulo IIITEORIA DA CONSTITUIO E CONSTITUCIONALISMO (II): A 1a. FASE1) Constitucionalismo como processo poltico-jurdico, 302) O constitucionalismo liberal: as efetivas razes da teoria contempornea da

    constituio, 352.1) A teoria poltica liberal e as primeiras experincias constitucionais, 352.2) Assistematicidade das perspectivas tericas dos sculos XVIII e XIX, 45

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    Captulo IVTEORIA DA CONSTITUIO E CONSTITUCIONALISMO (III): A 2a. FASE

    1) O advento do constitucionalismo social, 481.1) Parmetros ideolgicos da constituio social, 481.2) As experincias constitucionais do Estado social, 50

    2) A sistematizao da teoria da constituio no sculo XX: formulaes tericascomo tentativas de uma epistemologia organizada da constituio, 522.1) Hans Kelsen e a constituio como norma hierarquicamente superior:

    a perspectiva normativista, 552.2) Carl Schmitt e a sistematizao epistemolgica: a perspectiva

    decisionista e a Verfassungslehre, 612.3) Rudolf Smend e o papel integrador da constituio, 712.4) Gomes Canotilho e o dirigismo constitucional como teoria da

    constituio do Estado social, 773) A teoria da constituio tal como ensinada: comodidade dos topoi

    dogmaticamente pr-estabelecidos e ocultamento do desconforto terico contemporneo,

    82Segunda Parte

    TEORIA DA CONSTITUIO E INTERCULTURALISMO CONSTITUCIONAL

    Captulo VCONSTITUIO E CULTURA

    1) Cultura, multiculturalismo e interculturalismo: notas definitrias, 892) A insero do interculturalismo na constituio: entre diversidade e

    homogeneidade, 953) A constituio como produo cultural, 994) A(s) teoria(s) da constituio como teoria(s) cultural(is), 103

    Captulo VIINTERCULTURALISMO CONSTITUCIONAL E CONSTITUCIONALISMOINTERCULTURAL: ELUCIDAO DA DISCUSSO

    1) Constitucionalismo intercultural: uma constituio culturalmente includente?, 1122) Interculturalismo constitucional: a diversidade de culturas constitucionais, 116

    2.1) Culturas constitucionais clssicas em uma perspectiva ideolgica: liberal esocial, 1172.2) Culturas constitucionais clssicas em uma perspectiva sistmica: romano-germnica (romanista) e anglo-americana (common law), 1232.3) Culturas constitucionais em formao: niilista e supraestatal, 1292.4) Insuficincia do culturalismo constitucional unvoco e necessidade deabertura ao interculturalismo constitucional, 1352.5) O fundamento terico da pluralidade constitucional: a teoria intercultural daconstituio, 138

    2.5.1) Os pressupostos filosfico-jurdicos: o racionalismo crtico de KarlPopper e o possibilismo constitucional de Peter Hberle, 139

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    2.5.2) As caractersticas fundamentais de uma teoria intercultural daconstituio, 144

    Terceira ParteTEORIA INTERCULTURAL DA CONSTITUIO E NOVOS ENTES

    JURDICOS SUPRAESTATAIS (I): CONSTITUIO E UNIO EUROPIACaptulo VIIEVOLUO DA INTEGRAO EUROPIA: DAS COMUNIDADES UNIO

    1) Tipos de integrao interestatal: delimitao terica, 1562) A idia de integrao europia: antecedentes e a fase da cooperao, 1623) A integrao propriamente dita, 165

    3.1) A criao da Comunidade Europia do Carvo e do Ao (CECA): o Tratadode Paris, 1653.2) A criao da Comunidade Econmica Europia (CEE) e da ComunidadeEuropia de Energia Atmica (CEEA): o Tratado de Roma, 167

    3.3) Os sucessivos alargamentos: da Europa dos seis dos vinte e cinco, 1693.4) O aprofundamento comunitrio, 1723.4.1) O Ato nico Europeu, 1723.4.2) O Tratado de Maastricht e a Unio Europia, 1733.4.3) Os Tratados de Amsterd e de Nice e o Projeto de Constituio

    Europia, 175

    Captulo VIIICONSTITUIO E DIREITO COMUNITRIO: UMA DISCUSSO ACERCADE SUAS RELAES

    1) A tentativa de caracterizao dogmtica do direito comunitrio a partir da teoriada constituio, 1801.1)

    Direito comunitrio como um novo direito constitucional de basefederalista heterodoxa: o recurso dogmtica constitucional, 1841.1.1) A Constituio da Unio Europia, 1841.1.2) A Federao europia, 1871.1.3) Ponderaes crticas, 189

    1.2) Direito comunitrio como direito internacional regional: ainda a teoriainternacionalista tradicional, 197

    1.3) Direito comunitrio como um novo ramo jurdico: possvel sada para oimpasse terico?, 2051.3.1) Originalidade do direito comunitrio: trata-se realmente de um

    direito sui generis?, 2051.3.2)

    Os caminhos do direito comunitrio: substituio dos/oucoexistncia com os direitos constitucionais dos Estados?, 206

    Captulo IXPOSSVEIS REFORMULAES DA(S) TEORIA(S) CLSSICA(S) DACONSTITUIO DIANTE DA INTEGRAO EUROPIA A PARTIR DAPROPOSTA DE UMA TEORIA INTERCULTURAL DA CONSTITUIO

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    1) A constituio kelseniana, a constituio schmittiana, a integrao smendiana eo paradigma dirigente-vinculante: o que pode subsistir desses modelos?, 210

    1.1) O paradigma normativista de Kelsen e a modificao do posicionamentohierrquico da constituio, 210

    1.2) A inadequao da sistematizao epistemolgica de Schmitt para a

    compreenso da situao atual da constituio, 2151.3) A teoria de Smend e a transferncia do papel integrador para aConstituio da Unio, 217

    1.4) O modelo dirigente-vinculante: esgotamento terico ou deslocamentopara o direito comunitrio?, 220

    2) Possveis construes tericas em torno das novas indagaes feitas porCanotilho, 226

    2.1) Papel da constituio com o esvaziamento das pretenses deuniversalizao da(s) teoria(s) clssica(s) da constituio, 227

    2.2) Territrio reinventado: o espao constitucional contemporneo, 2302.3) Nacionalismo versus europesmo: a Europa das velocidades diferentes,

    2322.4) A interconstitucionalidade como uma proposta em aberto: plausvel umconstitucionalismo em rede?, 2363) A teoria intercultural da constituio como proposta para reduzir a

    insuficincia terica dos paradigmas clssicos no caso europeu, 2403.1) A Unio Europia como integrao interestatal de uma diversidade de

    culturas constitucionais: dificuldades existentes, 2413.2) A necessidade de uma abertura terica ao interculturalismo

    constitucional para a compreenso contempornea da constituio. Possibilidadese limites da teoria intercultural da constituio no caso da Unio Europia, 247

    3.2.1) Teoria intercultural da constituio e a Constituio daUnio Europia: uma constituio supraestatal sem povo?, 248

    3.2.2) Teoria intercultural da constituio e as constituies dosEstados membros da Unio Europia: constituies sem supremacia hierrquica?, 258

    Quarta ParteTEORIA INTERCULTURAL DA CONSTITUIO E NOVOS ENTESJURDICOS SUPRAESTATAIS (II): CONSTITUIO E INTEGRAOINTERESTATAL NO CONTINENTE AMERICANO

    Captulo XA INTEGRAO AMERICANA E O BRASIL

    1) O Brasil e os modelos de integrao no continente americano, 2751.1) Associao Latino-Americana de Integrao (ALADI), 2771.2) Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), 2811.3) rea de Livre Comrcio das Amricas (ALCA), 286

    Captulo XITEORIA INTERCULTURAL DA CONSTITUIO E INTEGRAOAMERICANA

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    1) Integrao interestatal na Amrica: abertura ao interculturalismoconstitucional?, 290

    2) A inevitvel subsistncia de paradigmas constitucionalistas do Estado nacionalclssico e o afastamento terico dos modelos constitucionais europeus da atualidade:permanncia das razes europias de outrora?, 295

    3) Os caminhos da integrao americana: inclusividade ou incorporao?, 3014) Possibilidades e limites de uma teoria intercultural da constituio no casoamericano, 313

    REFERNCIAS1) Livros e artigos, 3202) Legislao e jurisprudncia, 3383) Internet, 339

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    INTRODUO:

    EM TORNO DAS INCERTEZAS TERICAS EXISTENTES

    A poca em que vivemos, para muitos denominada ps-modernidade, marcada

    por contradies e incertezas quase insolveis em praticamente todos os setores da vida

    social. A partir da intensificao do fenmeno da globalizao, as slidas instituies

    construdas na modernidade entram em crise, chegando muitos a cogitarem o seu colapso

    (Kurz: 2004, p. 15).1Este se torna realidade a partir da eroso dos paradigmas modernos,

    sobretudo os construdos no breve sculo XX, chamado por Hobsbawm de era dos

    extremos (Hobsbawm: 1997).

    Para o famoso historiador ingls, o sculo XX paradigmtico (no cronolgico)

    teria iniciado com a Primeira Guerra Mundial em 1914 e terminado com a dissoluo da

    Unio Sovitica em 1991, juntamente com a queda do socialismo real em todo o leste da

    Europa. De fato, com o fim da Guerra Fria, intensificou-se um processo de globalizao

    econmica e ideolgica, tendo por base uma maior liberalidade mundial de capitais a

    partir de um paradigma ideolgico obscuro e impreciso com algumas semelhanas com o

    liberalismo clssico e por esse motivo denominado de neoliberalismo.

    1 Segundo este autor, a filosofia do Iluminismo est historicamente acabada. No tem nenhum sentidoinvocar mais uma vez o idealismo da liberdade burguesa, pois para essa espcie de liberdade no h maisnenhum espao de emancipao. Isso se aplica tambm s regies mundiais que nunca foram alm doscomeos ditatoriais de uma universalizao da forma moderna de sujeito. Como a produtividadeeconmica, tambm a subjetividade burguesa medida pelo standard global homogneo, em que no cabea maioria dos seres humanos. Como se ver adiante, divergimos em boa medida da concepo esboadapelo socilogo alemo.

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    Com a inexistncia (ou quase inexistncia) de contraposies ideolgicas, surgem

    nos anos 80 e 90 (principalmente) precipitadas doutrinas escatolgicas falando em fim da

    histria, fim das ideologias, fim da economia, fim do emprego, fim do Estado-nao, fim

    da cincia, fim do dinheiro etc. Tais doutrinas de inspirao neoliberal no subsistem

    intocadas por muito tempo, pois antes mesmo do final da dcada de 90 so

    veementemente contestadas, no somente em termos doutrinrios, mas derrotadas nos

    prprios pleitos eleitorais em vrios pases como Alemanha, Frana e Reino Unido

    (Dantas: 1999b, p. 103-108).

    Contudo, a eleio de tendncias consideradas politicamente mais progressistasno resulta em um concreto enfrentamento do postulado doutrinrio neoliberal. Antes, ao

    contrrio, os governos eleitos com propostas de mudanas nos rumos polticos e

    econmicos neoliberais tm mesmo aprofundado algumas medidas condizentes com

    aquele iderio, o que causa, notadamente em casos como o brasileiro, uma profunda crise

    de identidade ideolgica das foras polticas relevantes existentes, tornando os

    governantes gerenciadores de interesses dissociados dos da maioria da populao e cada

    vez mais parecidos entre si, desconsiderando obviamente as diferenas mais pontuais

    (Faria: 2003, p. 1).

    A semelhana apontada tem ocasionado mais recentemente em alguns pases uma

    nova guinada eleitoral, desta feita para foras ideologicamente mais conservadoras. Na

    Frana, a derrota do Partido Socialista do ex-Primeiro Ministro Lionel Jospin; na

    Alemanha, a vitria apertada e pouco convincente da coligao liderada pelo Partido

    Social Democrata do Primeiro Ministro Gerhard Schrder; no Reino Unido, a

    permanncia do Primeiro Ministro Tony Blair no cargo, graas aos votos do Partido

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    Conservador e da manuteno de polticas muito semelhantes s conservadoras (inclusive

    o apoio irrestrito Guerra contra o Iraque, liderada pelos EUA), a ponto do sempre citado

    Hobsbawm classificar o lder trabalhista ingls como Thatcher de calas (Hobsbawm:

    2000b, p. 114-115). No Brasil, o governo do Partido dos Trabalhadores tambm parece

    titubear entre micropolticas socialmente abrangentes e uma macropoltica econmica

    bastante conservadora, de certo modo continuando medidas do iderio do governo

    anterior.

    A crise das ideologias (perceba-se que falamos em crise e no fim) gera uma

    postura social niilista e uma apatia poltica, a partir da grande incerteza em termos deparadigmas ideolgicos a serem seguidos. Apesar da crise, a intensificao do processo

    de globalizao, neoliberal ou no, parece ser irreversvel, embora no se possa dizer que

    seja algo definitivo e imutvel.

    Com a irreversibilidade de tal processo, configura-se uma substancial ruptura com

    os paradigmas clssicos estabelecidos. Conceitos como os de constituio,

    constitucionalismo, soberania, Estado-nao, obrigaes internacionais dos Estados,

    organizaes polticas supraestatais, organizaes regionais e outros sofrem grandes

    modificaes, inquietantes e de problemtica assimilao pelos cientistas polticos e

    juristas. Estes precisam modificar a sua tradicional anlise dos fenmenos que trabalham

    para construrem novos paradigmas e novas teorias que possam explicar adequadamente

    os mesmos e influenciarem na sua conformao.

    O trabalho ora apresentado tenta enveredar por esse caminho, qual seja, a

    construo de novas perspectivas tericas, para que o direito constitucional possa sair da

    encruzilhada em que se encontra (Verd: 1993b,passim; Verd: 1995,passim). A essa

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    altura, j se torna possvel, sobretudo no continente europeu, falarmos em um direito

    constitucional supraestatal, o direito comunitrio como algo distinto tanto do direito

    internacional como do direito constitucional estatal. O direito comunitrio como nova

    perspectiva jurdica provoca rupturas paradigmticas considerveis em ambos os ramos

    do direito, segmentos que os juristas mal se acostumaram a trabalhar, tendo em vista que

    os mesmos so relativamente recentes no mundo jurdico (sobretudo se levarmos em

    conta direitos milenares, como o civil e o comercial). Tambm nos modelos americanos,

    em boa medida influenciados por suas matrizes europias, h, por outros motivos

    verdade, uma profunda inquietao terica diante de tantas mudanas em to poucotempo, diante de propostas integracionistas completamente diversas em suas

    perspectivas, e diante de profundas modificaes de ordem material no seu

    constitucionalismo, apesar de preservarem os arqutipos formais clssicos.

    Com a realidade constitucional extremamente difusa e varivel espcio-

    temporalmente, inmeras indagaes surgem para a teoria contempornea da

    constituio: se h uma variabilidade complexa nas concepes atuais de constituio,

    pode-se ainda falar na sobrevivncia de aspectos terico-constitucionais clssicos, como

    a supremacia da constituio frente a outras normas jurdicas e as teorias do poder

    constituinte, poder de reforma e controle de constitucionalidade das normas

    infraconstitucionais? Com o predomnio ideolgico neoliberal, pode-se ainda falar em

    constitucionalismo social e dirigente, como no welfare statetradicional? Deve-se aceitar

    que os doutrinadores constitucionais ignorem o desconforto terico e permaneam

    trabalhando apenas com base nos arqutipos tericos constitucionais clssicos? O

    hermetismo terico deve permanecer por razes de rigor lgico e cientfico ou a abertura

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    crtica aos influxos tericos da diversidade constitucional pode ser uma sada para os

    impasses? Como adequar uma universalidade terica prpria do racionalismo ocidental a

    realidades constitucionais to distintas entre si, apesar das razes tericas serem

    semelhantes? Em que medida isso poderia ser dimensionado nas perspectivas especficas

    da Unio Europia e do Mercosul, assim como de outros entes de integrao, como a

    ALCA e a ALADI?

    Dentre outras, so indagaes como estas que o presente trabalho pretende

    responder, ainda que parcialmente, atravs de uma abordagem terica intercultural da

    constituio.Na primeira parte, pretendemos firmar uma base conceitual e epistemolgica

    adequada para servir de referencial nossa proposta de tese. Sem um conhecimento

    apropriado dos fundamentos tericos aludidos, no se pode estabelecer uma viso crtica

    e evolutiva da teoria da constituio, nem construir teses que realmente propiciem um

    novo tratamento temtico das constituies. Para justificar o nosso entendimento, os

    pontos de partida clssicos so essenciais e imprescindveis, pois, como diria Popper,

    necessrio saber onde estamos para descobrir onde podemos chegar (cf. Magee: 1997, p.

    310). Estes se estabelecem nos quatro primeiros captulos que compem a parte inicial do

    trabalho. Principiando por conceitos mais genricos como os de Estado, nao e

    soberania, expomos os antecedentes antigos e medievais da constituio, chegando

    mesmo primeira fase do constitucionalismo moderno, com a teoria poltica liberal e os

    fundamentos desta perspectiva de constituio, notadamente a partir dos tericos

    polticos consagrados como Montesquieu, Locke, Rousseau e Sieys. Em seguida, a

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    demonstrao da experincia do constitucionalismo social em seus desdobramentos

    poltico-jurdicos.

    Ainda no captulo sobre a segunda fase do constitucionalismo moderno, a

    delimitao epistemolgica das teorias da constituio que pretendemos trabalhar. Em

    que pese a importncia de inmeros autores de diversas nacionalidades que poderiam

    encontrar-se presentes como principais no lugar dos escolhidos, estes so aqui

    trabalhados por duas razes: a primeira, o temor de sermos excessivamente

    enciclopdicos e no chegarmos a uma efetiva proposta de tese ao priorizar uma

    exposio de carter erudito, e a segunda, o fato de que os autores referidos tenham setornado, cada um deles, a principal referncia em seus campos tericos propositivos. Da

    nos concentrarmos em quatro autores e suas grandes teses: Hans Kelsen, clebre pela

    teoria escalonadora do ordenamento jurdico, que culmina na concepo normativista de

    superioridade hierrquica da constituio; Carl Schmitt, que, a partir de sua idia

    decisionista, constri a primeira sistematizao epistemolgica da at ento dispersa e

    assistemtica teoria da constituio; Rudolf Smend, com a pioneira proposta de um papel

    integrador para a constituio, apesar da diferena para a idia de integrao interestatal,

    predominantemente debatida neste trabalho;2 Gomes Canotilho, com a teoria da

    constituio dirigente como proposta de teoria constitucional do Estado social, pensada

    em um ambiente scio-econmico e cultural mais aproximado com o do Brasil, haja vista

    sua vasta influncia na doutrina brasileira e nos prprios trabalhos constituintes de 1987-

    1988.

    2Esses trs primeiros autores esto entre aqueles que Hberle chama de gigantes da poca de Weimar (cf.Hberle: 1997, p. 14).

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    A concluso nesta primeira parte predominantemente expositiva se faz com uma

    crtica ao modo como a teoria da constituio vem sendo ensinada e debatida no Brasil e

    at mesmo em pases envolvidos com um processo de integrao mais avanado, como

    no caso de Portugal. O ocultamento do desconforto terico causado pelas incertezas

    epistemolgicas existentes tem sido a praxisno ensino do direito constitucional, sendo

    um dos objetivos deste trabalho chamar a ateno para o problema, alm de propor mais

    adiante algumas sadas.

    de se considerar que, embora a primeira parte seja prevalentemente expositiva,

    no abrimos mo de uma leitura e anlise prpria dos referidos autores, debatendocriticamente as suas concepes, apesar do aspecto crtico e reformulatrio ser

    aprofundado somente nas partes posteriores do trabalho.

    Na segunda parte, a nossa proposta comea a ganhar contornos mais precisos.

    Iniciando com esclarecimentos conceituais prvios acerca da cultura, explicitamos as

    diferenas entre multiculturalismo e interculturalismo, demonstrando o porqu da nossa

    opo pelo segundo vocbulo. Tambm temos a preocupao de demonstrar como a

    constituio e as teorias acerca da mesma so produtos da cultura poltica e institucional

    existente e como a questo cultural importante para a construo de uma teoria da

    constituio constitucionalmente adequada (Canotilho: 1994, p. 154ss.).

    Em seguida, pretende-se destacar a existncia de uma diferena conceitual entre

    constitucionalismo intercultural e interculturalismo constitucional, situando o debate

    deste trabalho nesta ltima perspectiva. Com a diversidade de culturas constitucionais,

    entendidas estas como padronizao de determinados aspectos predominantes nas

    constituies ligadas culturalmente a um determinado modelo, torna-se necessrio

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    perceber a existncia de culturas constitucionais clssicas no sentido ideolgico (liberal e

    social) e no sentido sistmico (romano-germnica e common law). Para alm dessas

    culturas clssicas, h tambm o culturalismo em formao do niilismo constitucional,

    com o desencanto ps-moderno com as constituies e o constitucionalismo, assim

    como o supraestatalismo e suas concepes de constituio dissociada do ente Estado. A

    constatao inevitavelmente a presena na complexidade constitucional contempornea

    de uma pluralidade de constituies e de constitucionalismos, dificilmente apreensveis

    cognoscitivamente pelas teorias mais tradicionais.

    Com a constatao feita, comeamos a delinear, em termos mais abstratos, anossa proposta de uma teoria intercultural da constituio. Tendo por pressupostos

    cientfico-filosficos o racionalismo crtico do filsofo anglo-austraco Karl Popper e o

    pensamento possibilista do jurista alemo Peter Hberle (cujas bases filosficas so

    explicitamente popperianas), estabelecemos em termos gerais qual a nossa idia de

    interculturalismo constitucional e em que medida ela pode servir epistemologia

    constitucional contempornea no que diz respeito diminuio do dficit cognitivo entre

    o que prope classicamente a teoria da constituio e o que vem a ser esta ltima (a

    constituio). Obviamente, se pensarmos em termos popperianos, uma proposta terica

    na linha da epistemologia evolutiva, essencialmente aberta, crtica, plural e, por que no

    dizer, falsevel, sem a menor pretenso de esgotar o debate, mas contrariamente ampli-

    lo ainda mais (Popper: 2001a,passim).

    A terceira parte dedicada s relaes entre a constituio e a Unio Europia

    (UE), ente supraestatal mais desenvolvido em termos de aprofundamento do processo de

    integrao. Em um primeiro momento, delimitamos teoricamente a questo da integrao

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    interestatal a partir de seus conceitos bsicos, expondo a evoluo histrica da integrao

    europia e situando o leitor nos acontecimentos mais relevantes do ponto de vista

    poltico-jurdico. Segue-se uma tentativa de determinar epistemologicamente a natureza

    das relaes entre as constituies dos Estados europeus e a Constituio europia

    supraestatal, debatendo as principais propostas para tal discusso: a viso federalista, a

    doutrina internacionalista clssica, a questo da singularidade do direito comunitrio,

    assim como os possveis caminhos para este ltimo nas dimenses relacionais supra-

    referidas.

    O ltimo captulo desta terceira parte procura perceber as relaes entreconstituio e UE a partir de necessrias e urgentes reformulaes tericas, culminando

    na aplicabilidade da nossa hiptese intercultural de entendimento da constituio. Para

    isso, faz-se necessrio revisitar as teorias de Kelsen, Schmitt, Smend e Canotilho, e

    verificar a sua plausibilidade atual diante dos fenmenos subjacentes, assim como a

    sobrevivncia de seus paradigmas sedimentados. A continuidade factvel a partir das

    novas idias discutidas por um dos pensadores revisitados, o Catedrtico de Coimbra

    Gomes Canotilho. Este ltimo faz por si prprio uma crtica s dimenses de

    razoabilidade de suas teorias, defendendo reformulaes das mesmas e apontando novos

    caminhos. Estes so referenciais importantes do interculturalismo constitucional e

    permitem a edificao da teoria intercultural da constituio em termos concretos,

    articulando os constitucionalismos estatal e supraestatal, e estabelecendo proposies

    tericas pretensamente redutoras da insuficincia das teorias clssicas da constituio.

    Consiste em uma tarefa de difcil envergadura, dada a diversidade intercultural entre

    constitucionalismos to dspares como o alemo, o francs e o britnico, assim como o

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    advento de um constitucionalismo supraestatal completamente heterodoxo em termos

    modernos.

    Na quarta e ltima parte do trabalho, as preocupaes se voltam para as relaes

    entre a constituio e os modelos de integrao propostos no mbito americano

    (entendido este como abrangendo toda a Amrica do Norte, Central e do Sul - e no

    apenas os EUA). Por ser um trabalho feito no ambiente brasileiro, apesar de

    considerveis subsdios externos, no poderia o mesmo deixar de ponderar a teoria

    intercultural da constituio no Brasil e a partir dos processos de integrao dos quais o

    nosso pas faz parte. Da principiarmos por uma abordagem expositiva, sem, no entanto,perder de vista a perspectiva crtica, dos trs entes supraestatais que o Brasil integra: a

    Associao Latino-Americana de Integrao (ALADI), o Mercado Comum do Sul

    (Mercosul) e a rea de Livre Comrcio das Amricas (ALCA).

    O debate mais robusto termina por acontecer no captulo final, no qual

    procuramos demonstrar a inexistncia de um interculturalismo constitucional em

    processos de integrao incorporativa, como parece ser a ALCA, e a plausibilidade desse

    mesmo interculturalismo em integraes inclusivas, como aparenta ser o Mercosul. A

    necessidade da manuteno de alguns paradigmas clssicos diante da inadequao dos

    modelos europeus atuais, assim como pela resistncia constitucional imprescindvel ao

    abandono do dbil Estado social perifrico, procurando manter o carter dirigente da

    constituio social enquanto esta for necessria, o que parece ser o caso do Brasil e da

    Amrica Latina. Por fim, as ponderaes propostas pela teoria intercultural da

    constituio para a especificidade da realidade constitucional americana.

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    Em adendo, necessria uma ltima nota: o debate aqui proposto est longe de ter

    fim. Como prope Popper para a cincia em geral, a teoria aqui defendida tem a

    pretenso de ser aberta, crtica, plural e flexvel, embora no se esquive de elaborar

    proposies universalistas e particularistas, procurando contextualiz-las adequadamente.

    O rigor lgico no pode d lugar a qualquer dogmatismo, refutado explicitamente pela

    perspectiva popperiana, mas precisa ser ponderado em termos de racionalidade crtica,

    admitindo a possibilidade do equvoco e, a partir dele, a possibilidade da evoluo

    epistemolgica. Lembremo-nos que, como defende o filsofo anglo-austraco, as nossas

    melhores teorias no passado viram-se falseadas e no se pode esperar outra coisa dasteorias atuais. Os resultados cientficos so geralmente relativos, pois possuem o carter

    de hipteses conjecturais verossimilhantes e no de verdades absolutas. Por isso a

    necessidade de humildade por parte dos cientistas, porm, sem o temor de que suas

    teorias sejam falseadas e equivocadas, pois a intuio e a criatividade, quando permeiam

    argumentos lgico-sistemticos, baseados em sucessos cientficos anteriores e em partes

    de conhecimentos de base tomados como premissas, tornam-se aliadas imprescindveis

    dos tericos e pensadores de qualquer ramo do conhecimento (Popper: 1987b, p. 229;

    252; Popper: 2001b, p. 41-42; Worral: 1997, p. 110).3

    Com a humilde pretenso de contribuir com o debate da temtica, propondo uma

    teoria explicitamente aberta falseabilidade, ainda assim arriscamos a submet-la

    discusso, pois em torno dela, pensadores mais perspicazes talvez possam ir mais adiante,

    a partir das crticas exaradas e pensadas ao que dito aqui, e, se o presente trabalho

    3 Sobre a humildade cientfica: Falando de modo mais geral, porm, pode realmente dar-se que oscientistas se estejam tornando mais humildes, pois o progresso da cincia caminha em ampla escala atravsda descoberta de erros e, em geral, quanto mais conhecemos, mais claramente nos convencemos do quantono conhecemos (o esprito da cincia o de Scrates) (Popper: 1987b, p. 252).

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    cumprir tal objetivo, sentir-nos-emos profundamente satisfeitos. Conforme o sempre

    citado Canotilho,

    compreenda-se a mensagem aqui insinuada. Sem as teorias de Newton

    no se teria chegado Lua assim o diz e demonstra Sagan; sem o hmus

    terico, o direito constitucional dificilmente passar de vegetao rasteira,

    ao sabor dos ventos, dos muros e da eficcia (Canotilho: 2002a, p. 18

    grifos do autor).

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    Primeira Parte

    A(S) TEORIA(S) CLSSICA(S) DA CONSTITUIO: APORTES

    EPISTEMOLGICOS E DIMENSES CONTEMPORNEAS

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    CAPTULO I:

    ESTADO: O REFERENCIAL DA CONSTITUIO MODERNA

    Sumrio: 1. Necessidade de delimitao de um adequado conceito de Estadocomo ponto de partida. 2. Estado e soberania: o advento do Estado namodernidade ocidental. 3. Estado e nao: razovel falar-se em um Estado

    nacional?

    1. Necessidade de delimitao de um adequado conceito de Estado como ponto de

    partida

    No h como inserirmo-nos na discusso de uma teoria intercultural da

    constituio, se no estabelecermos alguns pontos de partida conceituais para que fique

    suficientemente esclarecido em que sentido utilizamos termos como Estado, comunidade

    ou organizao poltica, constitucionalismo e constituio, j que so expresses de

    notria polissemia. Justamente por esta plurivocidade semntica, o esclarecimento dos

    pontos de partida se faz necessrio para evitar, tanto quanto possvel, o dficit

    comunicativo, algo lamentavelmente to comum em nosso ramo do conhecimento. Com

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    exceo da nossa proposta terica de constituio, que ficar para o debate posterior, os

    esclarecimentos aludidos esto entre as finalidades desta primeira parte do nosso

    trabalho, comeando pelo debate em torno do Estado.

    Partindo de uma perspectiva histrica, percebemos que o termo Estado

    generaliza-se de tal forma na cultura poltica que faz com que, como muitas vezes

    acontece, o gnero seja tomado pela espcie. A teoria poltica e a teoria do Estado passam

    a chamar de Estado todas as organizaes polticas de carter oficial da Histria que

    apresentaram convergncia para um centro superior de mando. Neste alargamento

    semntico da expresso Estado, esta passou a designar at mesmo as unidades tribaisestudadas pela antropologia cultural, assim como as organizaes polticas da

    Antigidade Clssica e as da Alta e da Baixa Idade Mdia (Vilanova: 1996, p. 146).

    As comunidades polticas existem em toda a histria da humanidade, com maior

    ou menor grau de organizao, ora sendo vistas como organismos (teorias organicistas),

    ora como complexos de relaes intersubjetivas (sociologia relacional), ou ainda como

    construo normativa (normativismo) ou como complexo de condutas orientadas por um

    sentido (pluralismo, integracionismo etc.) (Zippelius: 1997, p. 35ss.). Nem todas elas

    podem ser classificadas como Estados, apesar de possurem muitas das caractersticas que

    o Estado tambm possui, desde um domnio efetivo sobre determinado territrio e

    populao at uma organizao sistmica ideal a partir de um ordenamento jurdico

    vinculante (Kelsen: 2002b, passim). Isso se explica pela simples razo de que todo

    Estado uma comunidade poltica, embora o inverso no seja correto, em virtude da

    maior amplitude conceitual deste ltimo termo.

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    Se precisarmos melhor o conceito de Estado, podemos perceber que o mesmo no

    pode ser aplicado a todas as formaes polticas de que estamos tratando. O sentido

    contemporneo do termo Estado aponta para um tipo de organizao poltica surgida na

    Idade Moderna e no antes.4 Se definirmos Estado como o faz Ataliba Nogueira, no

    pode ser outra a nossa concluso. Diz o Mestre da Universidade de So Paulo que Estado

    uma sociedade soberana surgida com a ordenao jurdica cuja finalidade regular

    globalmente a vida social de determinado povo, fixo em dado territrio e sob um poder

    (Nogueira: 1971a, p. 25). Com tal definio, pode-se afirmar que o Estado uma

    organizao poltica caracterizada pela existncia de quatro elementos constitutivos:povo, territrio, poder poltico (governo) e soberania. Os trs primeiros caracterizam

    tambm as demais organizaes polticas. O quarto que caracteriza especificamente a

    organizao poltica denominada de Estado.

    2. Estado e soberania: o advento do Estado na modernidade ocidental

    Na tradio alem, o vocbulo Estado um termo jurdico que se refere, ao

    mesmo tempo, Staatsgewalt(violncia/poder estatal), ramo executivo assecuratrio dos

    aspectos interno (supremacia intraterritorial) e externo (independncia extraterritorial) da

    soberania, Staatsgebiet (territrio/regio estatal), territrio claramente delimitado e ao

    Staatsvolk (povo do Estado), a totalidade dos cidados. Do ponto de vista sociolgico,

    Habermas acrescenta que o cerne institucional deste Estado denominado moderno

    composto por um aparato administrativo legalmente constitudo e altamente diferenciado,

    4Cunha: 2002, p. 106: j uma vexata quaestioa de saber se o Estado criao dos tempos modernos ouuma realidade anterior. No se negar, seja como for, que o Estado, tal como o conhecemos, deve a suagnese modernidade (grifos do autor).

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    monopolizador dos meios legtimos de violncia e obediente a uma diviso de trabalho

    com uma sociedade de mercado que dispe de liberdade econmica. Apoiado por foras

    armadas institucionais (militares e policiais), o Estado preserva sua autonomia interna e

    externa. Para o filsofo de Frankfurt,

    a soberania significa que a autoridade poltica mantm a lei e a ordem

    dentro das fronteiras de seu territrio, bem como a integridade dessas

    fronteiras em confronto com o meio internacional, onde os Estados rivais

    se reconhecem mutuamente nos termos do direito internacional

    (Habermas: 2000, p. 297-298; Habermas: 1999, p. 84; cf. tb. Hasebe:1999, p. 115-118).

    por esse motivo que no se pode chamar de Estado a todas as comunidades

    polticas que tenham os trs primeiros elementos. Os Estados so espcies do gnero

    organizaes polticas. Dentre estas, podemos falar em reinos, imprios, sultanatos,

    tribos, cls, principados,polise outras que no so necessariamente Estados (em que pese

    a opinio em contrrio de autores consagrados como Jellinek, para quem a soberania no

    constitui caracterstica essencial do Estado Jellinek: 2000, p. 441ss.;passim).

    Nas teocracias do oriente prximo, os imprios no criaram um sistema de

    filosofia poltica, sendo atribudo o poder poltico a partir de dogmas religiosos

    inflexveis e supersticiosos que afirmam a origem divina do poder e, por vezes, o poder

    poltico considerado como o poder da prpria divindade, impedindo investigaes sobre a

    origem, natureza e aperfeioamento possvel do mesmo (Gettel apudDantas: 1999a, p.

    61).

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    No mundo greco-romano, temos o desenvolvimento de sistemas de filosofia

    poltica que inspiram experincias institucionais mais slidas (Saldanha: 2000, p. 14).5

    No entanto, nem a polis grega, nem a repblica ou o imprio romano desenvolvem

    terica ou praticamente a idia de soberania. Napolisgrega, a principal referncia oficial

    o povo (demos), o grupo de cidados, desconsiderando o prprio territrio. Os

    atenienses, tebanos e corntios so identificados completamente com as suas respectivas

    comunidades polticas. A comunidade de cidados corresponde polis que muitas vezes

    traduzida como cidade-Estado, mas que no possui um necessrio vnculo com um

    territrio (para os gregos seria impensvel um Estado com grande extenso territorial).O referencial sempre a comunidade de cidados, o povo (Jellinek: 2000, p. 153).

    Em Roma, prevalece a noo de civitas (comunidade dos cidados) ou de res

    publica, a coisa comum a todo o povo, sendo substituda no incio da era crist pela de

    imperium, tambm sem uma delimitao da idia de soberania, embora as idias de

    cidadania e nacionalidade estivessem presentes como vnculos entre o indivduo e a

    comunidade poltica romana, vnculos que ao longo dos sculos so gradativamente

    estendidos aos habitantes das provncias de Roma.6Dentre os romanos, prevalece uma

    espcie de pragmatismo imperial que at certo ponto procura respeitar as instituies das

    diversas localidades conquistadas militarmente, desde que estas paguem determinados

    tributos e permitam a presena administrativa de um procurador ou governador que

    representa Roma nas instituies locais autnomas (Duverger: 1996, p. 14).

    5 Segundo este autor, com os gregos que se verifica a conjuno de uma experincia institucionalextremamente variada com um teorizar idneo e desenvolvido.6Tambm merece registro o fato de que Ccero e inmeros jurisconsultos romanos defendem a idia de queno h res publicasem um poder supremo (summa potestas) (Goyard-Fabre: 1999, p. 58)

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    Se entre os antigos no se cogita de soberania, nas organizaes polticas

    medievais, menos ainda podemos afirmar a sua existncia. Na Idade Mdia, o poder

    poltico encontra-se bastante fragmentado e confuso, havendo pelo menos trs esferas de

    poder, cada qual buscando uma maior efetividade do seu comando: os feudos, os reinos e

    a Igreja, representando respectivamente poderes locais, regionais e o que denominamos

    hoje de internacionais (mas pretendendo-se superior aos feudos e reinos, diferentemente

    dos poderes de coordenao das organizaes internacionais contemporneas). Cada um

    destes poderes polticos detm tropas, autoridades, tesouros e representaes

    diplomticas prprias, o que torna o ofcio de governar um negociar contnuo, pois adificuldade de submisso unilateral de uma comunidade poltica outra grande, j que

    h uma pluralidade de autoridades em uma mesma faixa territorial, alm de pluralismos

    legal, cultural e, por vezes, mesmo religioso, como ocorre na Espanha, no perodo

    anterior ao incio da reconquista (poltica de intolerncia crist para com os mouros)

    por Fernando II, rei catlico de Len (Zippelius: 1997, p. 72; Arnaud: 1999, p. 53).

    Por outro lado, a idia do territrio como referencial comea a surgir com maior

    nitidez na perspectiva do domnio poltico efetivo sobre o mesmo. A referncia poltica

    deixa de ser o demose passa a ser o territrio, at em virtude da valorizao da terra na

    Idade Mdia. A comunidade poltica mais ou menos poderosa a partir da maior ou

    menor dominao territorial, o que possibilita a gnese da soberania como idia poltica e

    a existncia de comunidades polticas com grande extenso territorial, dando origem aos

    modernos Estados (Jellinek: 2000, p. 154-155).

    Todavia, somente na Idade Moderna que surge a teoria e a prtica da soberania,

    bem como a noo contempornea de Estado. O vocbulo Estado utilizado no sentido

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    moderno pela primeira vez, embora ainda com algumas imprecises, por Maquiavel no

    seu mais famoso escrito em que afirma que Todos os Estados, os domnios todos que

    existiram e existem sobre os homens, foram e so repblicas ou principados (Maquiavel:

    1977, p. 11).

    A Idade Moderna o perodo histrico em que se delineia o conceito atual de

    Estado, culminando na idia de Estado nacional. Ainda assim, no final do sculo XVIII

    temos a utilizao do termo Estado, designando classes ou estamentos sociais, como

    nas obras de pensadores como Sieys e na prtica revolucionria francesa (aluso a

    estados gerais ou terceiro estado) (Sieys: 1997; Bonavides: 1996, p. 66ss.). Mas odelineamento do conceito de Estado s possvel a partir do desenvolvimento da teoria e

    prtica da soberania.

    Do ponto de vista terico, o primeiro a trabalhar o conceito de soberania Jean

    Bodin, no seuDe la Rpublique. Para ele, todo poder inferior subordinado a um poder

    superior e no pice, h um poder que no tem sobre si nenhum outro, sendo este o poder

    soberano (summa potestas) (Malberg: 1998, p. 80ss.). Para Bodin, por soberania se

    entende o poder absoluto e perptuo que prprio do Estado (apud Bobbio: 1998, p. 95-

    96). A soberania surge como a caracterstica essencial do poder do Estado sob dois

    aspectos: por um lado, a independncia diante dos poderes internos reside no fato de que

    a regulao jurdica se torna efetiva, mesmo sem o consentimento dos sditos ou dos

    estamentos sociais; por outro, a faculdade de regulao soberana tambm independe de

    poderes externos, sendo delimitada apenas por mandamentos divinos, leis naturais e

    princpios gerais de direito (Zippelius: 1997, p. 75; Goyard-Fabre: 2002, p.130ss.).

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    A idia de um poder com carter absoluto e perptuo tambm pensada por

    Thomas Hobbes. O pensador ingls elabora a doutrina absolutista do Estado,

    desenvolvendo a concepo de soberania de Bodin, mas ampliando as justificativas do

    seu carter absolutista a partir do momento em que os cidados, em nome da segurana,

    concedem o poder absoluto ao soberano, devendo obedincia igualmente absoluta a este

    ltimo. Para evitar o catico estado de guerra de todos contra todos, os homens

    precisam renunciar a todos os direitos perante o poder de mando absoluto e obedecer a

    este (Llorente: 1999, p. 125; Hobbes: 2000, passim; Hobbes: 1998, passim). Embora

    absolutista, a concepo hobbesiana no nega a existncia de direitos dos sditos, masdefende a renncia aos mesmos por razes de segurana, pois esta seria prefervel

    liberdade individual em um estado de coisas catico. O valor segurana prepondera na

    cultura poltica de ento em detrimento do valor liberdade.

    Tais doutrinas, aliadas s profundas transformaes ocorridas nos sculos XVI e

    XVII, propiciam a delimitao terica e prtica da soberania do Estado. Enfraquecem os

    poderes feudais locais com o desenvolvimento do capitalismo mercantilista e o poder

    eclesistico com a fragmentao religiosa provocada pela reforma protestante. Com a Paz

    de Westfalen, em 1648, os Estados absolutistas soberanos apresentam-se na sua feio

    clssica. O Estado absolutista soberano, cujo poder pertence ao monarca, apresenta-se

    com suas duas principais caractersticas relacionadas ao seu poder: circunscrito a um

    territrio delimitado, ele o mais alto poder dentro deste territrio, tendo supremacia

    sobre todos os demais, e independente frente a poderes externos e vinculados a outras

    circunscries territoriais (Llorente: 1999, p. 124-125, tb. Malberg: 1998, p. 80-82).7

    7De acordo com o primeiro autor, A noo de soberania surge no contexto das guerras religiosas, comouma categoria necessria para dotar o direito de um fundamento autnomo, desligado das crenas

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    Embora a soberania pertena ao Estado, a titularidade da mesma do monarca

    que, por este motivo, denominado soberano. A caracterstica do Estado absolutista de

    atribuir a titularidade da soberania ao monarca faz com que se confunda o prprio Estado

    com a pessoa do soberano, a ponto de se atribuir ao Rei Lus XIV (Rei Sol), o mais

    clebres dos monarcas absolutistas, a famosa frase O Estado sou eu (LEtat cest moi).

    No sculo XVIII, com as revolues liberais estadunidense e francesa, temos

    modificaes quanto titularidade da soberania. A influncia das idias iluministas,

    sobretudo as de Jean-Jacques Rousseau, modificam a idia de soberania quanto sua

    titularidade que no mais deve ser atribuda a uma pessoa, mas a um ser coletivopossuidor da vontade geral (Rousseau: 1995, p. 38ss.).

    O ser coletivo ao qual atribuda a titularidade da soberania em fins do sculo

    XVIII a nao. No mais o monarca, mas a nao a titular da soberania, passando a

    sedimentar o paradigma de que a cada Estado corresponde uma nao. O Estado e a

    nao se fundem sob a forma de Estado nacional.

    3. Estado e nao: razovel falar-se em um Estado nacional?

    Em torno das relaes entre Estado e nao e da consolidao do termo Estado

    nacional, as dificuldades j se estabelecem em torno do controverso conceito de nao.

    religiosas. O que d unidade ao Estado, res publica, a existncia de um poder soberano, definido comopoder absoluto e perptuo de fazer as leis, que dizer, como fonte nica do direito (positivo) vlido. Estepoder, cujo titular naturalmente o monarca, um poder territorialmente circunscrito: a vontade soberanano pode se impor fora de suas fronteiras perante a lei, porm somente pela fora e, no mbitointernacional, na relao entre os Estados, no existem mais normas obrigatrias alm daquelas aceitastcita ou expressamente, por estes Estados. A soberania a caracterstica tpica do poder do monarca dentrodo Estado, mas em virtude dessa conexo necessria entre o poder e o territrio tambm se qualifica comosoberano o Estado propriamente dito em sua relao com os demais, enquanto, por estar sujeito somente aoprprio monarca, absolutamente independente do exterior.

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    Embora em geral se entenda que o vocbulo tem conotaes de uma comunidade

    moldada pela descendncia, cultura e histria comuns, e muitas vezes, tambm por uma

    lngua comum, o conceito bastante varivel no tempo e no espao. O seu radical

    etimolgico latino natio indicava, no uso clssico dos romanos a ascendncia comum,

    mas houve uma grande modificao conceitual at a modernidade, quando se

    estabelecem conceitos aproximados com o que colocado acima, designando por nao

    as comunidades de origem do indivduo, sem um necessrio atrelamento a uma

    comunidade poltica estatal (Habermas: 2000, p. 298; Habermas: 1999, p. 86; Habermas:

    1997b, p. 282). Mas efetivamente no se consegue nenhuma definio cientificamentedensa e aceitvel. Por maiores que tenham sido os esforos engendrados, as indagaes

    de Otto Bauer, feitas no incio do sculo XX, ainda permanecem sem resposta (Bauer:

    2000, p. 45-46).8

    Alm da dificuldade de se conceituar adequadamente nao, temos outros

    problemas como o das naes espalhadas por vrios Estados como a nao rabe ou

    judaica (a despeito da existncia dos Estados de Israel e da Arbia Saudita), assim como

    o dos Estados plurinacionais. De fato, se no Estado nacional a cada nao um Estado e a

    8Bauer assim se expressa sobre a questo: Bagehot diz que a nao um daqueles muitos fenmenos quecompreendemos, desde que no nos faam perguntas sobre ele, mas que no sabemos explicar em termosbreves e sucintos. Porm, a cincia no pode contentar-se com uma resposta desse tipo; no podeabandonar a questo do conceito de nao, se quiser falar dela. Responder a essa questo no to fcilquanto, a princpio, parece. a nao uma comunidade de pessoas que descendem da mesma origem? Masos italianos descendem dos etruscos, dos romanos, dos celtas, dos teutnicos, dos gregos e dos sarracenos;

    os franceses de hoje, dos gauleses, dos romanos, dos bretes e dos teutnicos; e os alemes, dos teutnicos,dos celtas e dos eslavos. a lngua comum que une as pessoas numa nao? Mas os ingleses e irlandeses,os dinamarqueses e noruegueses, os srvios e croatas falam, em cada um dos casos, a mesma lngua, e nempor isso so um nico povo. Os judeus, por outro lado, no tm uma lngua comum mas so uma nao.Ser a conscincia de uma insero comum num grupo que compe a nao? Mas, nesse caso, o camponsdo Tirol no seria alemo, j que nunca teve conscincia de fazer parte do mesmo grupo que os prussianosorientais e os pomeranianos, os turngios e os alsacianos. De que, exatamente, os alemes tm conscinciaquando se lembram de sua germanidade? O que os torna membros da nao alem, pares de outrosalemes? Sem dvida, primeiro preciso que haja um critrio objetivo dessa parceria, para que se possatomar conscincia dela.

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    cada Estado corresponde uma nao inteira, como afirma Mazzini, temos dificuldades de

    enquadramento de vrios Estados neste perfil (Hobsbawm: 2000, p. 273). S a ttulo de

    exemplo, podemos citar o Reino Unido com ingleses, escoceses, galeses e irlandeses, a

    Sua com cidados de origem germnica, francesa, italiana e reto-romana, a Espanha

    com castellanos, galegos, catales e bascos, para no falarmos na antiga Unio das

    Repblicas Socialistas Soviticas com mais de cem naes distintas (Nogueira: 1971b, p.

    85ss.; Venter: 1999, p. 21).

    Para dificultar ainda mais a preciso terminolgica, tambm as organizaes

    polticas internacionais utilizam freqentemente o termo nao com o mesmo significadode Estado, a exemplo da Organizao das Naes Unidas (ONU) que, a despeito do

    nome, congrega Estados e no naes.9

    Como se percebe, a denominao Estado nacional possui dificuldades

    intrnsecas. A perspectiva de correspondncia entre um Estado e uma nao pode, por

    exemplo, dificultar a inclusividade das minorias nacionais em um Estado plurinacional

    com prevalncia de uma nao especfica que possa ser culturalmente dominante. Ao

    mesmo tempo, a idia de Estado nacional pode ainda proporcionar a incorporao

    forada de um determinado territrio ao Estado, sob o argumento nacionalista, como

    ocorreu com o Anschluss da ustria por Hitler, fundamentado no discurso

    pangermanista.10

    9 Aunque hoy algunas naciones todava nos recuerdan a los viejos imperios (China), a las ciudades-Estado (Singapur), a las teocracias (Irn), a las organizaciones tribales (Kenya), o muestren rasgos declanes familiares (El Salvador) o empresas multinacionales (Japn), los miembros de la Organizacin delas Naciones Unidas forman, a pesar de todo, una asociacin de Estados-nacin (Habermas: 2001a, p. 85-86).10Sobre o conceito de pangermanismo, cf. Goyard-Fabre: 1999, p. 422-425.

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    Apesar dos perigos apontados, no h dvida que o Estado nacional, a partir da

    sua caracterizao iluminista no sc. XVIII, serve historicamente para resolver problemas

    importantes das comunidades polticas. Sobretudo com a passagem republicana

    (entendida no sentido de res publica e no como forma de governo contraposta

    monarquia) da soberania da realeza para a soberania popular, como afirma Habermas, o

    Estado nacional pde solucionar dois problemas de uma s vez:

    1) fundou um modo democrtico de legitimao do poder poltico estatal;

    2) fundamentou este modo democrtico em uma forma nova e mais

    abstrata de integrao social, substituindo as desgastadas formastradicionais de integrao da sociedade por uma integrao atravs da

    cidadania democrtica. O Estado administrador, fiscal e soberano torna-se

    tambm um Estado constitucional democrtico (Habermas: 2000, p. 300;

    303; Habermas: 2001a, p. 86).

    A referncia democracia no deixa de ter, paradoxalmente, um carter inclusivo

    das prprias minorias e da populao em geral com a abertura democrtica aos direitos de

    cidadania, no mais pertencentes apenas a estamentos especficos, mas ampliados ao

    povo como um todo.

    No negamos os avanos polticos que o Estado nacional traz, mas contestamos

    do ponto de vista cientfico a terminologia utilizada que no corresponde ao objeto que

    procura definir.

    Entretanto, embora etimolgica e empiricamente falha, a denominao Estado

    nacional prevalece a partir das revolues liberais do sculo XVIII e ser aqui utilizada

    para evitarmos o dficit comunicativo, apesar da ponderao crtica que fizemos. As

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    caractersticas bsicas do Estado nacional, assim como os seus quatro elementos,

    permanecem com o advento das revolues liberais, mudando a titularidade da soberania,

    no para a nao, mas para o povo como conjunto de cidados (o Staatsvolk da tradio

    alem), ligados entre si por um vnculo jurdico.11Sendo atribuda ao povo e no nao,

    a questo da titularidade da soberania mais bem explicada tanto nos Estados nacionais

    como nos plurinacionais, embora inevitavelmente precisemos fazer uso de um conceito

    jurdico de soberania em detrimento de conceitos sociolgicos.

    Delimitada a teoria do Estado nesta perspectiva em que estamos discutindo,

    podemos dela extrair inicialmente duas concluses fundamentais:a) s podemos falar em Estado como espcie do gnero organizaes

    polticas, espcie esta surgida somente na Idade Moderna e no antes,

    sendo, portanto, um dado histrico-cultural (Dantas: 1999a, p. 54-55;

    Vilanova: 1996, p. 146-147);

    b) o Estado nacional surge somente no final do sculo XVIII com a

    mudana de titularidade da soberania, que no pertence mais ao monarca e

    sim nao (na verdade, ao povo). A partir desses elementos,

    pretendemos levar adiante a discusso proposta acerca da teoria da

    constituio que tem no Estado (pelo menos at o momento) o seu

    referencial por excelncia.12

    11 Alguns autores entendem como povo em sentido sociolgico o que designamos aqui como nao(Zippelius: 1997, p. 94).12Os problemas referentes insuficincia das teorias do Estado aqui esboadas sero discutidos na segundae terceira partes deste trabalho.

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    CAPTULO II:

    TEORIA DA CONSTITUIO E CONSTITUCIONALISMO (I):

    PR-MODERNIDADE E POLISSEMIA DO TERMO

    CONSTITUIO

    Sumrio: 1. Os antecedentes remotos da teoria da constituio:Aristteles e Ccero. 2. Antecedentes medievais: um constitucionalismoinsurgente?

    1. Os antecedentes remotos da teoria da constituio: Aristteles e Ccero

    Como afirmamos anteriormente, tambm o termo constituio, objeto do nosso

    trabalho, semanticamente plurvoco. Considerando este aspecto, necessitamos

    estabelecer um adequado entendimento desta plurivocidade para que o leitor compreenda

    o debate e o nosso posicionamento em relao a ele. A construo de uma teoria

    intercultural da constituio, como proposta neste trabalho, perpassa necessariamente

    por uma anlise da situao terica clssica da constituio, referencial obrigatrio para

    as tentativas reformulatrias.

    No se pode desconsiderar que a constituio tal como ns a concebemos hoje

    como uma norma hierarquicamente superior que organiza as linhas mestras do poder

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    poltico estatal e define o alcance dos direitos fundamentais um projeto da

    modernidade. No perodo que aqui denominamos pr-modernidade no h essa

    perspectiva de constituio, sendo do entendimento comum a existncia de normas que

    regulam a existncia e o funcionamento do poder poltico sem ainda prognoses precisas

    de hierarquia, superioridade normativa ou direitos fundamentais como entendemos

    atualmente. Nas Idades Antiga e Mdia, assim como na maior parte da Idade Moderna a

    constituio um fenmeno muito diverso do que concebemos a partir das revolues

    liberais dos sculos XVII e XVIII (principalmente).

    A discusso em torno do conceito de constituio e de uma construo terica emtorno da mesma possui antecipaes bastante remotas. J na Antigidade clssica

    possvel perceb-las, apesar do conceito antigo de constituio ser bem diverso do

    contemporneo.

    Embora autores como Loewenstein fale de um constitucionalismo hebreu e de

    uma Constituio do Prncipe Botoku, do Japo, no ano 604 a. C., as razes da teoria da

    constituio so geralmente atribudas a Aristteles (Loewenstein: 1964, p. 154-155). A

    grande maioria dos doutrinadores atribui ao estagirita as primeiras idias para um teorizar

    consistente do fenmeno constitucional. Para Ren Marcic, por exemplo, Aristteles o

    primeiro terico da constituio, considerando-a como a forma essencial do Estado.

    Assim tambm considera Kelsen, afirmando que a Poltica de Aristteles uma teoria

    da constituio. Verd ainda afirma ter sido Aristteles o fundador do direito

    constitucional comparado ao compilar para Alexandre Magno cerca de 158 constituies

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    de diversaspolisde seu tempo, apesar de quase todas elas terem se perdido, exceo da

    de Atenas (Verd: 1994, p. 11-12; Cunha: 2002, p. 279-280).13

    A referncia terica atribuda a Aristteles pela doutrina decorre de alguns fatores

    relevantes. Primeiramente os arqutipos da cultura poltica do ocidente contemporneo

    tm sua origem na rica experincia institucional da polis grega. Em segundo lugar, o

    estagirita influencia, com a sua filosofia poltica, a conformao do funcionamento das

    instituies atenienses. E por ltimo, ainda existem inmeras construes tericas

    contemporneas acerca da constituio claramente influenciadas pelo pensamento

    aristotlico, como veremos adiante.A experincia institucional ateniense de fato notvel. A diviso de poderes, a

    organizao relativamente democrtica do exerccio do poder poltico, a distribuio

    deste ltimo pelos cidados ativos, as frmulas da democracia direta so contribuies

    inegveis da polis grega, apesar de no se poder esconder a base escravocrata e

    excludente na qual se erige a cidadania em Atenas. A averso dos gregos concentrao

    do poder e arbitrariedade faz com que construam muitos instrumentos de controle do

    poder poltico que influenciam o constitucionalismo at os nossos dias. Os mandatos

    temporalmente fixados, a rotatividade dos governantes no exerccio do poder poltico, o

    acesso do cidado comum aos cargos pblicos em geral so instituies que extrapolam a

    polise sobrevivem atravs da histria da democracia no ocidente (Loewenstein: 1964, p.

    156-157).

    13 Verd: 1994, p. 11-12: Desgraciadamente, solo se conserva la Constitucin de los atenienses,encontrada entre las arenas de Egipto en 1880 por Kenyon. El texto se hallo incompleto. Este escrito,como sostiene Garca Valds, transparenta una slida base terica, y esa teorizacin se relacionaestrechamente con la experiencia.

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    Em torno do desenvolvimento institucional grego, a filosofia poltica de

    Aristteles a maior contribuio terica conformadora das instituies polticas de

    ento. O estagirita o primeiro a tratar explicitamente de uma diviso das funes

    polticas em deliberativa/legislativa, executiva/governamental e judicial e atribu-las a

    pessoas ou grupos de pessoas distintas, mais de dois milnios antes de Montesquieu. A

    defesa da eletividade dos governantes e detentores do poder poltico, a curta durao dos

    seus mandatos e as resolues da assemblia dos cidados para decidir acerca dos

    negcios pblicos de maior importncia tambm esto presentes no pensamento

    aristotlico, tudo isso como uma tentativa de racionalizao do poder poltico para queeste no venha a se degenerar (para que a monarquia no se torne tirania, para que a

    aristocracia no se torne oligarquia e para que a democracia no se degenere em

    demagogia) (Aristteles: 1998, p. 177ss.; Fioravanti: 2001, p. 22-23; 30-31).

    Com a preocupao de criar estruturas polticas ao mesmo tempo democrticas e

    duradouras, gerando uma estabilidade institucional necessria polisgrega, Aristteles

    procura construir uma forma de governo adequada a este fim, tendo em vista toda a

    problemtica exposta. Para isto prope a existncia de umapoliteia, geralmente traduzida

    como constituio. E esta traduo que provoca controvrsias quando se discute a

    constituio dos pr-modernos em confronto com a constituio da modernidade

    ocidental. Em verdade, politeiano significa em Aristteles o mesmo que constituio

    geralmente significa na cultura poltico-jurdica contempornea. Alm disso, h uma

    substancial variao do significado do referido vocbulo mesmo dentre os gregos antigos.

    Vejamos.

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    Desde o sculo XVIII torna-se corrente traduzir politeiacomo constituio, mas

    anteriormente a preferncia , segundo Stourzh, pela palavra inglesa governmentou ainda

    conceitos como policie ou commonwealth, lembrando que o vocbulo governo

    significava a organizao e exerccio do poder poltico, no tendo sinonmia com poder

    executivo, como nas doutrinas modernas de diviso de poderes(Neves: 1994, p. 54-55;

    Canotilho: 1999a, p. 50). Outros, como Rolando Tamayo y Salmorn, vo mais adiante

    ao levantar vrias acepes do termo entre os gregos antigos (apud Dantas: 1999a, p.103-

    105). Porm, a traduo corrente mesmo constituio (cf. Aristteles: 1998, passim;

    Aristteles: 1995,passim).O conceito aristotlico de constituio (politeia) o de estrutura poltica da polis

    (da a similitude com o conceito de governo que expusemos acima). a ordem da polis

    em relao aos cargos governamentais, a como se d sua distribuio, determinao do

    poder governamental superior e finalidade da comunidade poltica (Neves: 1994, p. 54;

    Craig: 2001, p. 126). Corresponde em parte ao primeiro sentido dado por Schmitt ao

    conceito absoluto de constituio, entendendo esta como la concreta manera de ser

    resultante de cualquier unidad poltica existente (Schmitt: 1996, p. 30). Tambm

    possvel fazer aproximaes conceituais com a constituio real de Lassalle (1998, p. 32),

    com a constituio em sentido material de Loewenstein (1964, p. 152), assim como a de

    Mortati (1998, p. 195ss.). A matria constitucional (organizao do poder poltico)

    diversa das matrias das demais normas jurdicas, havendo, para Aristteles, uma

    diferenciao material entre constituio e demais normas jurdicas, embora ainda no

    haja uma diferenciao formal em termos de supremacia hierrquica. As normas sobre a

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    organizao do poder poltico fazem parte da essncia da polis (Jellinek: 2000, p. 457-

    458).

    Apesar das aproximaes, no se pode esquecer o forte contedo axiolgico da

    teoria aristotlica. Alm de discutir a forma de ser dapolis, ele analisa valorativamente as

    formas de governo (o caso das degeneraes acima descrito), alm de estabelecer um

    telos para a constituio (Aristteles: 1998, p. 105).14 Em Aristteles a constituio

    contm elementos substanciais, tico-sociais e econmicos (Verd: 1994, p. 19; Goyard-

    Fabre: 1999, p. 56). Neste particular diferencia-se, sobretudo, de Lassalle.

    Mais do que a estrutura poltica efetivamente existente, a politeia a particularforma constitucional capaz de promover e realizar a justa medida entre dois extremos, em

    si mesmos negativos, como a aristocracia e a democracia, mas que, sendo equilibrados,

    produzem a constituio ideal (Fioravanti: 2001, p. 24).

    O termo que utilizamos (constituio), entretanto, de origem romana.

    proveniente do vocbulo constitutio, tambm polissmico como politeia. Tanto

    utilizado para a traduo deste ltimo termo como para assumir novas significaes. Na

    evoluo das competncias em Roma, o imperador assume, gradativamente o poder de

    emitir normas prximas das nossas atuais leis. E so estas normas oriundas diretamente

    do poder imperial, embora no necessariamente referentes estrutura da civitas, que os

    romanos chamaram de constitutiones, no sendo, portanto, habitual entre eles o

    significado depoliteia, corrente na historiografia contempornea (Saldanha: 2000, p. 15-

    16).

    14A Constituio integral diz: 1o. de quem e de que espcie de pessoas um Estado deve ser composto; 2o.como deve ser governado para ser feliz e florescente.

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    A concepo predominante em Roma tem suas bases tericas em Ccero.

    Inicialmente com as discusses em torno do termo res publica, tambm de permanente

    oscilao semntica, e em virtude disso, cunhou o termo constitutio, embora continue

    associando este res publica no sintagma reipublicae constitutio, sendo o primeiro

    elemento adjetival. Em conceituadas tradues daDe Re Publica, o autor das Catilinrias

    justape os conceitos de res publica e constitutio, afirmando ser o primeiro equivalente

    civitasromana, enquanto o segundo refere-se organizao desta ltima (Cunha: 2002, p.

    271-272).15

    Percebemos, portanto, que Ccero constri um conceito essencialmente jurdicode constituio, afirmando que o termo constitutio corresponde forma jurdica da

    unidade da civitas. Embora no ignore os valores, a preocupao de Ccero

    predominantemente tcnico-jurdica e formal (Verd: 1994, p. 18-19). um conceito

    voltado para a idia de ordem jurdica. A organizao jurdica do poder poltico romano

    o que Ccero considera como a constitutio da res publica, da civitas, que necessita de

    parmetros jurdicos racionais de ordenao e controle do poder poltico para funcionar

    adequadamente. Afigura-se ntida aqui a influncia das idias gregas.

    A civitasromana, segundo Loewenstein, um exemplo clssico de uma sociedade

    poltica que sendo fundamentalmente constitucional, no se perde em excessos

    democrticos como sua predecessora Atenas, j que as assemblias so muito mais

    institucionalizaes da estrutura social tradicional do que fruns de deliberaes

    democrticas. Sobretudo no perodo republicano, Roma possui um sistema poltico com

    15Ferreira da Cunha utiliza o vocbulo Estado em lugar de civitas, mas tal denominao no nos pareceadequada, tendo em vista a nossa posio conceitual acerca do significado do termo Estado. A nossaopo pela expresso civitasdenota os nossos esforos para mantermo-nos coerentes e buscar uma razovelpreciso terminolgica. Sobre a oscilao semntica do termo repblica, cf. Kirsch: 2002, p. 208-209.

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    complexos dispositivos de freios e contrapesos para dividir e limitar o poder poltico dos

    governantes, com estruturas legislativas e judiciais colegiadas, assim como a limitao na

    durao dos mandatos. A prpria ditadura, que uma espcie de direito constitucional de

    crise ou de legalidade extraordinria, limitada na sua durao e nos seus fins. No

    perodo imperial, o constitucionalismo degenera e a civitas se torna uma organizao

    poltica desptica com nuances teocrticas (Loewenstein: 1964, p. 156-157).

    2. Antecedentes medievais: um constitucionalismo insurgente?

    Na Idade Mdia h, como vimos, uma fragmentao do poder entre as

    organizaes polticas existentes (feudos, reinos, Igreja). Com tal disperso do poder

    poltico, ocorre tambm uma espcie de concorrncia pelo exerccio do mesmo, j que

    no h monoplio da violncia legtima por qualquer das referidas organizaes polticas.

    No havendo tal monoplio, que se configura como uma das caractersticas do poder

    poltico soberano, tambm no h organizao poltica dotada de soberania. Com a

    dificuldade de subsistncia de pretenses totalizadoras por parte das organizaes

    polticas existentes, a maior parte da vida dos cidados medievais se desenvolve fora das

    previses normativas oficiais, seguindo a fora normativa do costume (Fioravanti: 2001,

    p. 35).

    Portanto, temos aqui, como assevera Fioravanti, a primeira caracterstica geral da

    constituio medieval: a intrnseca limitao dos poderes pblicos. Obviamente no se

    trata de uma limitao com base na idia moderna de separao de poderes, nem mesmo

    pode-se falar em uma limitao de ordem formal. A limitao apenas de ordem ftica:

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    simplesmente no h, apesar do almejo universalista da Igreja e de alguns imprios, um

    centro irradiador de normas jurdicas que possam ordenar efetivamente o conjunto de

    relaes civis, polticas e econmicas da sociedade (Fioravanti: 2001, p. 35-36; Arnaud:

    1999, p. 58ss.). Os poderes das organizaes polticas so limitados porque no

    conseguem se afirmar soberanamente, como acontece com o Estado, e concorrem entre si

    para se firmarem enquanto instncias detentoras de poder poltico de fato.

    A constituio medieval tambm possui uma segunda caracterstica: a existncia

    de relaes substancialmente indisponveis por parte dos poderes pblicos em termos de

    uma ordem jurdica dada. necessrio preservar e defender o equilbrio costumeiroexistente de todos os que tentem fazer alteraes arbitrrias no mesmo. As normas

    consagradas consuetudinariamente devem ser preservadas de modificaes unilaterais por

    parte do poder poltico existente, evitando a tirania do detentor deste poder, notadamente

    do monarca (Fioravanti: 2001, p. 36-37).

    De certo modo, temos aqui uma antecipao ftica do que se consagra

    posteriormente no constitucionalismo liberal como os dois pilares da constituio: a

    separao de poderes (idia de limitao recproca dos poderes pblicos) e os direitos

    fundamentais (idia dos limites ao exerccio do poder poltico pela existncia de relaes

    sociais indisponveis por parte do detentor do poder).

    claro que no se pode pensar que h na Idade Mdia uma constituio no

    sentido contemporneo. Ainda quando consubstanciadas suas linhas gerais em um

    documento escrito, a constituio medieval ainda em boa medida uma constituio real

    (no sentido lassalliano), embora no se deva descartar a existncia de um certo idealismo

    subjetivo proposto por autores como Toms de Aquino quando defendem a existncia,

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    por exemplo, de um direito de resistncia tirania, autorizando a desobedincia civil em

    certos casos.

    Todavia, para alm da antecipao ftica que fizemos referncia acima, na Idade

    Mdia que so produzidos os primeiros documentos escritos que guardam uma maior

    semelhana com as constituies contemporneas. no perodo medieval que comeam a

    surgir tais textos que servem de referncia para a teoria da constituio como

    antecipaes medievais do constitucionalismo. So as idias de pactos normativos entre

    governantes e governados, limitaes formais dos poderes polticos, direitos dos sditos

    (na verdade, apenas de parte destes) diante do monarca etc. que ganham contornos maisprecisos nesse perodo histrico. Surge a Bula urea de Andr II da Hungria (1225), as

    Ordenaes portuguesas, o Privilgio Geral Aragons (1283) (mais remotamente, h

    ainda uma referncia Constituio japonesa do sc. VII) e o mais conhecido desses

    documentos que , indubitavelmente, a Magna Charta Libertatum dos ingleses (1215)

    (Cunha: 2002, p. 104; Fioravanti: 2001, p. 51).

    A Magna Carta das Liberdades basicamente uma carta de direitos, pactuada

    entre o monarca e os nobres ingleses. Para compreender o surgimento da mesma, no se

    pode esquecer das caractersticas peculiares do desenvolvimento do feudalismo ingls.

    Enquanto a fragmentao do poder poltico caracterstica intrnseca do feudalismo

    europeu continental, na Inglaterra do sc. XIII j existe uma maior centralizao,

    antecipando em alguns sculos caracteres do absolutismo da Idade Moderna. A

    centralizao monrquica tambm antecipa as lutas antiabsolutistas, embora os direitos e

    liberdades ainda sejam exclusivos para os homens livres, em verdade, limitaes do

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    poder monrquico diante da aristocracia privilegiada (David: 1998, p. 285; Canotilho:

    1999a, p. 65; Garca-Pelayo: 1999, p. 252).

    Apesar do seu carter aristocrtico, a Carta inglesa a mais importante referncia

    histrica de um constitucionalismo insurgente na Idade Mdia. Surge a partir da

    insatisfao da nobreza feudal com as polticas implementadas pelo Rei Joo Sem Terra,

    em especial no que diz respeito tributao. No se trata de uma revoluo classista ou

    de uma ruptura drstica com o modelo anterior; antes, diversamente, a nobreza deseja

    estabelecer documentalmente a confirmao de seus privilgios e liberdades j existentes

    em regras consuetudinrias e que se vem ameaados pelos decretos reais (Garca-Pelayo: 1999, p. 253). Direitos e garantias fundamentais surgem como limitaes ao

    poder monrquico, e princpios como o da legalidade tributria e penal, assim como

    instrumentos de proteo da liberdade individual, como o habeas corpus, tm a sua

    existncia formalizada a partir do clebre documento ingls. O prprio surgimento do

    Parlamento deita razes na referida Carta, considerando a exigncia do consentimento

    geral dos homens livres para o estabelecimento de um tributo, contido nos seus arts. 12 e

    14 (Lpez: 2001, p. 161).

    De menor influncia histrica, mas com um desenvolvimento certamente notvel

    em termos de Idade Mdia, est o constitucionalismo histrico ibrico apontado por

    Ferreira da Cunha. Apesar de no possuir um documento referencial da dimenso da

    Magna Charta Libertatum, pode-se dizer, seguindo o Professor portugus, que h, ainda

    na Idade Mdia, o desenvolvimento de um constitucionalismo na Pennsula Ibrica, em

    que h um sistema de proteo das pessoas e at de relativo controle do poder poltico.

    Possui caractersticas similares ao modelo britnico, tais como o tradicionalismo, a

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    historicidade e a assistematicidade. Limita o poder monrquico ao permitir a interveno

    das cortes no governo, na sucesso do trono, na guerra e na paz, no lanamento de

    tributos. Como destaca Teixeira de Pascoaes,

    Em plena Idade Mdia, enquanto outros Povos gemiam sob o peso do

    poder absoluto, impnhamos nossa monarquia a forma condicional: o rei

    governar se for digno de governar, e governar de acordo com a nossa

    vontade, expressa em cortes gerais, reunidas anualmente (apud Cunha:

    2002, p. 124).

    Temos, portanto, em vrios quadrantes europeus o desenvolvimento deexperincias constitucionais pr-modernas, embora ainda no se chegue ao sentido

    contemporneo do vocbulo constituio. Em termos tericos, pode-se afirmar at que,

    no obstante as referidas experincias de fato, no h a articulao de teorias da

    constituio. Os autores medievais, como Toms de Aquino, Salisbury, Bracton e

    Marslio de Pdua, no se preocupam em teorizar acerca da constituio, optando por

    discutir questes pertinentes ao exerccio concreto do poder poltico e suas limitaes

    tambm concretas. verdade que fazem algumas antecipaes importantes, mas no

    menos verdadeiro que as mesmas ainda tm em vista a realidade poltica fragmentria da

    Idade Mdia (e nem poderia ser diferente), ainda distante, de um modo geral, do

    centralismo do Estado soberano e da possibilidade, a partir do surgimento deste ente

    poltico, de articular um teorizar constitucional mais prximo do sentido contemporneo.

    o que se prope no captulo que se segue.

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    CAPTULO III:

    TEORIA DA CONSTITUIO E CONSTITUCIONALISMO (II): A

    1a. FASE

    Sumrio: 1. Constitucionalismo como processo poltico-jurdico. 2. Oconstitucionalismo liberal: as efetivas razes da teoria contemporneada constituio. 2.1. A teoria poltica liberal e as primeiras experincias

    constitucionais. 2.2. Assistematicidade das perspectivas tericas dossculos XVIII e XIX.

    1. Constitucionalismo como processo poltico-jurdico

    Ao tratarmos de constitucionalismo e de teoria da constituio, tratam