constitucionalização civil

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CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL E DIREITOS FUNDAMENTAIS: UMA ABORDAGEM CRÍTICA CONSTITUTIONALIZATION OF CIVIL LAW AND FUNDAMENTAL RIGHTS: A CRITICAL APPROACH Fabio Queiroz Pereira Santiago Pinto SUMÁRIO: Introdução: o conteúdo humano e o direito civil 1. A relação entre direitos fundamentais e o direito civil 2. A constitucionalização do direito civil 3. Por uma abordagem crítica da constitucionalização do direito civil Conclusões Referências Bibliográficas RESUMO: A crítica desenvolvida visa a chamar atenção para os desvios ocorridos em razão da chamada constitucionalização do direito civil. Para isso, analisa a evolução do papel dos direitos fundamentais e sua relação com o direito civil, bem como as principais linhas que definem o referido processo de constitucionalização. Assim, por meio de uma abordagem crítica, aponta caminhos à efetivação de um diálogo leal e verdadeiro entre Constituição e direito privado. Palavras chave: Direitos. Fundamentais. Constitucionalização. Civil. Crítica. ABSTRACT: The present critique aim to call attention to the misleadings caused by the so called constitutionalization of civil law by analysing the evolution of fundamental right’s role, their relation with civil law as well as the main characteristics of the constitutionalization process. The article offers therefore perspectives in order to effectuate a loyal and real dialogue between the Constitution and Private Law. Keywords: Rights. Fundamental. Constitutionalization. Civil. Critical. INTRODUÇÃO: O CONTEÚDO HUMANO E O DIREITO CIVIL A ideia de um sistema de direito fundado em uma lógica essencialmente patrimonialista cede espaço, presentemente, para a ponderação de valores humanos na criação e na aplicação das normas jurídicas. A dignidade da pessoa humana é, hoje, pedra basilar sob a qual se sustenta o ordenamento jurídico. Por meio da adequada ponderação e aplicação desse princípio, faz-se possível a concretização de realidades que atentem para o fato de que o homem deve ser considerado como fim em si mesmo. Nesse sentido, são as palavras de SIQUEIRA JÚNIOR (2008: p. 273): A dignidade da pessoa humana é o atributo moral do indivíduo, que o qualifica enquanto ser. A conseqüência imediata desse pressuposto é que o homem é dotado de valor próprio, não podendo ser transformado em objeto. O valor absoluto dignidade da pessoa humana informa todo o sistema jurídico. O homem enquanto ser é sagrado, sendo o valor fonte de todos os direitos. No Brasil, em particular, com o advento da Constituição da República de 1988, pode-se constatar uma preocupação premente com as situações jurídicas subjetivas, individuais e coletivas, que impulsiona, constantemente, a releitura de diversos institutos jurídicos. O aludido fato se explica, sobretudo, em razão da inserção da

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  • CONSTITUCIONALIZAO DO DIREITO CIVIL E DIREITOS

    FUNDAMENTAIS: UMA ABORDAGEM CRTICA

    CONSTITUTIONALIZATION OF CIVIL LAW AND FUNDAMENTAL RIGHTS: A

    CRITICAL APPROACH

    Fabio Queiroz Pereira

    Santiago Pinto

    SUMRIO: Introduo: o contedo humano e o direito civil 1. A relao entre direitos fundamentais e

    o direito civil 2. A constitucionalizao do direito civil 3. Por uma abordagem crtica da

    constitucionalizao do direito civil Concluses Referncias Bibliogrficas

    RESUMO: A crtica desenvolvida visa a chamar ateno para os desvios ocorridos em razo da chamada

    constitucionalizao do direito civil. Para isso, analisa a evoluo do papel dos direitos fundamentais e

    sua relao com o direito civil, bem como as principais linhas que definem o referido processo de

    constitucionalizao. Assim, por meio de uma abordagem crtica, aponta caminhos efetivao de um

    dilogo leal e verdadeiro entre Constituio e direito privado.

    Palavras chave: Direitos. Fundamentais. Constitucionalizao. Civil. Crtica.

    ABSTRACT: The present critique aim to call attention to the misleadings caused by the so called

    constitutionalization of civil law by analysing the evolution of fundamental rights role, their relation with

    civil law as well as the main characteristics of the constitutionalization process. The article offers

    therefore perspectives in order to effectuate a loyal and real dialogue between the Constitution and Private

    Law.

    Keywords: Rights. Fundamental. Constitutionalization. Civil. Critical.

    INTRODUO: O CONTEDO HUMANO E O DIREITO CIVIL

    A ideia de um sistema de direito fundado em uma lgica essencialmente

    patrimonialista cede espao, presentemente, para a ponderao de valores humanos na

    criao e na aplicao das normas jurdicas.

    A dignidade da pessoa humana , hoje, pedra basilar sob a qual se sustenta o

    ordenamento jurdico. Por meio da adequada ponderao e aplicao desse princpio,

    faz-se possvel a concretizao de realidades que atentem para o fato de que o homem

    deve ser considerado como fim em si mesmo. Nesse sentido, so as palavras de

    SIQUEIRA JNIOR (2008: p. 273):

    A dignidade da pessoa humana o atributo moral do indivduo, que o

    qualifica enquanto ser. A conseqncia imediata desse pressuposto

    que o homem dotado de valor prprio, no podendo ser

    transformado em objeto. O valor absoluto dignidade da pessoa

    humana informa todo o sistema jurdico. O homem enquanto ser

    sagrado, sendo o valor fonte de todos os direitos.

    No Brasil, em particular, com o advento da Constituio da Repblica de 1988,

    pode-se constatar uma preocupao premente com as situaes jurdicas subjetivas,

    individuais e coletivas, que impulsiona, constantemente, a releitura de diversos

    institutos jurdicos. O aludido fato se explica, sobretudo, em razo da insero da

  • dignidade da pessoa humana no rol dos fundamentos da Repblica, conforme prenuncia

    o art. 1 do texto constitucional.

    Diante de tal panorama, os estudos de direito civil brasileiro tm sido realizados,

    de forma constante, tomando por intrito embasamento a ideia de eficcia constitucional

    nas relaes privadas, de modo que o assim denominado processo de

    constitucionalizao do direito privado transformou-se no ncleo do qual so extrados

    e reinterpretados conceitos e institutos.

    Entre ns, o interesse pela referida linha doutrinria surgiu, principalmente,

    durante o perodo final de vigncia do Cdigo Civil de 1916. Diante de um texto de

    carter individualista, que no expressava os anseios sociais por uma viso humana do

    direito, a doutrina ensaiou buscar fundamentos para tanto no novel texto constitucional,

    de forma a tentar dar contornos adequados ao que se esperava do direito civil brasileiro.

    Como implicao de tal movimento, a eficcia dos direitos fundamentais passa a

    ser sopesada em uma nova perspectiva, chegando-se, at mesmo, a juzos pautados na

    desnecessidade de intermediao da legislao ordinria. Em paralelo, pode-se perceber

    que so transplantados esfera privada, sem quaisquer regulaes, certos mandamentos

    constitucionais, redesenhando-se, como se veio de dizer, conceitos e institutos e

    criando-se, assim, uma nova perspectiva de estudos doutrinrios e aplicaes

    jurisprudenciais.

    Nesse contexto, demonstra-se extremamente relevante a adoo, pelo intrprete,

    de uma postura analtica no intuito de melhor compreender tais fenmenos, de

    possibilitar um dilogo adequado entre os mandamentos constitucionais e o direito civil

    e de contribuir para a construo de novos rumos compreenso e ao desenvolvimento

    do direito civil.

    1. A relao entre direitos fundamentais e o direito civil

    A empreitada, aqui, exige estrito cumprimento de limitaes metodolgicas,

    bem como o propsito de servir como alerta demanda simplicidade, porm agudeza.

    A temtica dos direitos fundamentais encontra-se amplamente desenvolvida por

    vasta literatura, sendo o espao jurdico brasileiro especialmente receptivo e fecundo no

    que lhe diz respeito.

    Proteg-los significa criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na

    liberdade e na dignidade humana (HESSE, 1986 apud BONAVIDES, 1997: p. 514).

    Tudo aquilo que se revele essencial realizao plena do indivduo, portanto, deve ser

    reconhecido e efetivado.

    Tais direitos, como regra, so percebidos por meio de normas de carter

    constitucional e, por isso, detm um elevado status jurdico, estando no topo da

    estrutura hierrquica do ordenamento.

    Polmica, porm, subsiste com relao ao debate acerca da relao dos direitos

    fundamentais com o direito privado, uma vez que o caminho percorrido por tal

    contenda, podendo ter chegado a um consenso como o relativo efetividade dos direitos

    fundamentais e fora normativa das normas que os prevem (ideias, hoje, aceitas com

    naturalidade), acabou por no o fazer.

    Por isso, para efeito de imediata apreenso, para se visualizar os eventuais

    desvios incorridos, alguma anlise desse caminho deve ser intentada.

    Segundo CANARIS, partindo-se da distino entre as funes dos direitos

    fundamentais como proibies de interveno (proibies de excesso) e imperativos de

    tutela (proibies de insuficincia), tem-se que as leis de direito privado, quando trazem

    eventualmente intervenes ilegtimas em direitos fundamentais, devem ser controladas

  • luz da funo de proibio de excesso. Alm disso, como garantia de proteo e

    defesa dos direitos fundamentais, as leis de direito privado devem ser percebidas como

    instrumentos concretizao da funo de imperativo de tutela, dizer, como

    instrumentos efetivao dos direitos fundamentais. Pode mesmo ocorrer que ambas as

    funes se realizem simultaneamente, hiptese na qual h,

    (...) por um lado, indagar se a interveno nos direitos fundamentais

    de uma parte onera esta de forma que ofenda a proibio do excesso;

    e, por outro lado, averiguar se a lei fica, por exemplo, aqum daquele

    mnimo que a Constituio impe para proteco da outra parte

    (CANARIS, 2003: p. 34).

    A exigncia de intermediao pelo direito ordinrio se mostra clara, seja para o

    seu prprio controle, por meio da verificao da constitucionalidade e da

    proporcionalidade de suas normas, seja para a operacionalizao dos comandos e

    valores constitucionais que lhe devem guiar.

    Como pretende o autor, fica aqui, em regra, aberto ao legislador um amplo

    espao de livre conformao (CANARIS, 2003: p. 66). Amplo, porm no ilimitado: o

    legislador democrtico deve ateno s opes polticas e axiolgicas de carter

    constitucional. Os direitos fundamentais, portanto, funcionam tambm como limite

    sua atuao: limite a intervenes ilegtimas.

    Em razo de sua fora normativa, os direitos fundamentais, de embasamento ao

    exerccio de liberdades negativas contra o Estado, passam a ser reconhecidos como

    princpios orientadores do comportamento de todos os sujeitos. dizer, sua efetivao e

    a construo de um dever de proteo de tais direitos devem ter em conta, tambm,

    eventuais ameaas resultantes da atuao de particulares, de relaes eminentemente

    privadas. A distino entre pblico e privado esfacela-se, para tanto, como critrio de

    relevncia. Contudo, parece evidente que toda essa atividade deve se sujeitar, como j

    se disse, ao controle de constitucionalidade e de proporcionalidade, at porque so

    proscritas intervenes que se mostrem ilegtimas, o que difere do automtico repdio a

    qualquer ingerncia.

    Some-se a isso o fato de que, em razo da necessidade de obedincia ao prprio

    ordenamento constitucional, no se dado ignorar, pura e simplesmente, a existncia

    legtima de legislao ordinria. Por isso, em sendo possvel, de se concluir que a

    efetivao dos direitos fundamentais deve se dar pelo direito privado.

    Veja-se MOTA PINTO (2006: p. 368):

    Julgamos que a aplicao, actividade de entidades privadas, das

    normas que consagram direitos fundamentais deve ocorrer, em

    primeira linha, atravs de normas de direito privado, quer estas se

    limitem a reproduzir o teor das normas constitucionais, quer

    contenham conceitos indeterminados ou clusulas gerais, a preencher

    e concretizar segundo os valores constitucionalmente consagrados, e,

    em particular, numa actividade de interpretao conforme aos direitos

    fundamentais (Grifos no original).

    Nesse mesmo sentido, encontra-se a proposta de MARTINS-COSTA sobre o

    papel do Cdigo Civil brasileiro como estrutura receptora dos direitos fundamentais e

    como possibilidade tcnica de sua concretizao e expanso no direito privado

    (MARTINS-COSTA, 2006: p. 64-65). A autora, inclusive, j havia, em outra

    oportunidade, se pronunciado no sentido de que as clusulas gerais so as responsveis

  • pelo necessrio dilogo entre valores e conceitos presentes no Cdigo Civil, na

    Constituio e nos demais diplomas normativos. (MARTINS-COSTA, 1998: passim).

    Trata-se, como se pode ver, de verdadeiro exerccio dialtico a ser realizado.

    Entretanto, enquanto exerccio dialtico, exige a participao tanto do Cdigo Civil,

    quanto da Constituio. dizer, ignorar a existncia legtima de regulamentao

    infraconstitucional, seja ela de carter pblico ou privado, guisa de suposta defesa e

    aplicao de valores constitucionais, pode acabar por macular os frutos pretendidos, por

    ser, no raras vezes, disfarce arbitrariedade.

    No se trata, absolutamente, de retorno a alguma ideia de que os direitos

    fundamentais somente tenham relevncia indireta ou mediata, a depender de expressa

    regulamentao legislativa para serem efetivados. Estando no centro do ordenamento

    jurdico, sua no efetivao demonstra grave falha no sistema jurdico e, pior, no

    pensamento jurdico. Defender, porm, que essa efetivao se d por meio do direito

    privado no implica automaticamente um absurdo que tal.

    Situaes reguladas positivamente por lei manter-se-o por ela regidas, uma vez

    que sobreviva tal regulamentao ordinria ao controle de constitucionalidade e de

    proporcionalidade de suas disposies. dizer, estando conforme com a Constituio.

    Alis, mesmo na eventual hiptese de ausncia de regulamentao legal

    especfica, o direito privado sustentar-se- apto efetivao dos direitos fundamentais,

    seja por meio das chamadas clusulas gerais, pelo preenchimento dos conceitos abertos,

    ou ainda pelos princpios gerais de um ordenamento jurdico. Nesse sentido, discorre

    VIEIRA DE ANDRADE (1987: p.291):

    Deve [o juiz], se for o caso disso, recorrer aos conceitos abertos

    prprios do direito privado e preench-los com a ajuda dos valores

    constitucionais (...). Se tal se revelar insuficiente, dever o juiz decidir

    o caso a partir dos princpios gerais, aplicando o princpio da

    harmonizao, sempre que se possa afirmar que h um valor ou

    interesse constitucionalmente relevante que se contrape eficcia

    normativa absoluta do preceito constitucional (normalmente, a

    autonomia privada).

    Dessa passagem, em especial, merece destaque a afirmao da necessidade de

    harmonizar a pretenso de absolutismo na aplicao dos preceitos constitucionais com

    valores e interesses igualmente relevantes constitucionalmente relevantes , como a

    autonomia privada.

    O direito privado traz consigo princpios fundantes para as sociedades

    ocidentais. No cabe, aqui, ensaiar sequer a menor reconstruo de sua trajetria.

    Contudo, parece evidente a insustentabilidade de qualquer teoria que parta da premissa

    de que ele o responsvel pelas mazelas de toda uma forma de organizao social.

    Tanto pior quando tente corrigi-las a partir da adoo de uma postura arbitrria e

    antidemocrtica de desprezo legislao infraconstitucional.

    Veja-se que CANARIS, ao falar das intervenes ilcitas em direitos

    fundamentais, no contexto alemo, assevera que, contra elas, a funo de imperativo de

    tutela se d atravs dos chamados deveres no trfico e que, por isso,

    O desenvolvimento destes deveres no trfico recebe assim, por

    intermdio da funo dos direitos fundamentais como imperativos de

    tutela, extrada dos artigos 2., n. 2 e 14, ambos da LF, uma

    legitimao jurdico-constitucional, sendo certo, porm, que esta lhes

    no indispensvel, j que, contrariamente a crticas insistentes, os

  • deveres no trfico esto logo e sempre estiveram, desde o incio

    suficientemente legitimados no plano do direito civil (CANARIS,

    2003: p. 110).

    A tarefa bsica do intrprete, visando mxima efetivao dos comandos

    constitucionais, deve inarredavelmente resultar no aproveitamento das regulamentaes

    legislativas que se mostrem aptas real e eficaz concretizao de tais direitos, para alm

    de discursos meramente tericos ou retricos. Por isso que, quando no aproveitveis,

    quando frontalmente contrrios ao sentido normativo dos mandamentos constitucionais,

    os dispositivos das legislaes ordinrias devem simplesmente sucumbir ao exame de

    constitucionalidade e de proporcionalidade.

    2. A constitucionalizao do direito civil

    Adentrando o tema especfico da constitucionalizao do direito civil, verifica-se

    que o aludido fenmeno evidenciado, principalmente, em uma hermenutica que tenha

    seu ncleo na Constituio e em uma suposta identificao da sua eficcia direta no

    mbito das relaes privadas. Trata-se de desenvolvimento terico que tem origem no

    ordenamento jurdico italiano, mas que obteve grande receptividade em doutrina e

    estudos brasileiros.

    Partindo do pressuposto de que os institutos de direito civil carregam em si os

    contedos voluntarista e individualista, tpicos do estado liberali, a escola do direito

    civil constitucional intenta, sua maneira, dar novos contornos ao ordenamento jurdico

    privatstico, a partir da valorao do contedo normativo da Constituio da Repblica.

    Em face das variadas inspiraes presentes no direito privado, somente o texto

    constitucional estaria apto a fornecer a necessria unidade do sistema. Isso porque,

    particularmente entre ns, princpios como o da dignidade da pessoa humana ganham

    inegvel projeo e se renovam a partir da Constituio da Repblica de 1988, e, assim,

    assumem a condio de norte interpretativo da totalidade das normas de carter

    civilstico.

    Um dos principais expoentes da escola do direito civil constitucional revela-se

    na figura do professor da Universidade de Camerino, PIETRO PERLINGIERI. Sobre o

    presente tema, assim se manifesta o autor italiano:

    A questo da aplicabilidade simultnea de leis inspiradas em valores

    diversos resolve-se somente tendo conscincia de que o ordenamento

    jurdico unitrio. A soluo para cada controvrsia no pode ser

    mais encontrada levando em conta simplesmente o artigo de lei que

    parece cont-la e resolv-la, mas, antes luz do inteiro ordenamento

    jurdico, e, em particular, de seus princpios fundamentais,

    considerados opes de base que o caracterizam (PERLINGIERI,

    1997: p. 5).

    Em verdade, a mencionada linha terica assenta-se na impossibilidade de o

    Cdigo Civil centralizar o sistema jurdico, o que abriria espao para a adoo do texto

    constitucional como ncleo apto a lhe dar a pretendida coerncia. A principiologia

    emanada das normas constitucionais teria por funo a unificao do sistema, diante de

    um quadro legislativo notadamente variado. Por isso, apoiando-se em princpios como o

    da dignidade da pessoa humana, demonstrar-se-ia necessrio encontrar novos desenhos

    para velhos institutos, possibilitando solues que propugnem pela verdadeira justiaii.

  • Observa-se, pois, uma busca pela coerncia sistemtica, diante de variadas inspiraes a

    permearem os elementos do direito civil.

    Assim, uma das premissas em que se assenta a aludida linha doutrinria a de

    que o Cdigo Civil no mais ocupa o papel central no mbito do direito privado. A

    impossibilidade de tratar variadas matrias em um nico texto legal leva ao surgimento

    de vasta legislao ordinria, que tende a abordar, de maneira setorizada, diversos temas

    de direito civil.

    Essa ocorrncia tambm conhecida pela expresso descodificao do direito

    civiliii. Em consonncia com tal inteligncia, no haveria mais considerar o Cdigo

    Civil como a Constituio do direito privado, principalmente em razo da ausncia de

    completitude do seu texto. Por isso, hoje, convivendo com outros instrumentos legais, o

    Cdigo Civil no mais exerceria seu anterior papel unificador do sistema jurdico

    privatstico.

    dizer, o centro do sistema no mais se revela no Cdigo Civil. H, em verdade,

    uma variada gama de matrias que so tratadas isoladamente, perfilhando pequenas

    esferas jurdicas, tambm chamadas de microssistemas. Essa temtica foi desenvolvida

    por NATALINO IRTI, que assim se manifesta:

    Um sistema, que j no corresponda a um corpo definido de leis,

    assume um novo valor. No mais monossistema, ligado s estruturas

    do Cdigo Civil, desenvolvido de acordo com o desenho e a diviso

    deste; mas polissisistema, como um quadro de princpios, no qual se

    insere uma pluralidade de microssistemas e de lgicas setoriais. O

    Cdigo Civil apenas uma parte do sistema de direito privado, que

    tem no centro a Constituio, da qual so irradiados feixes de ncleos

    legislativos (IRTI, 1979: p. 145) .iv

    O sistema, ento, encontra-se dividido em variados compartimentos, que

    procuram tratar de temas especficos. H uma multiplicidade de microssistemas. A

    ttulo de exemplo, no Brasil, existem diplomas especficos que tratam de matrias

    setorizadas, como o Cdigo de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criana e do

    Adolescente ou a Lei do Inquilinato. Tais matrias possuem ntido contedo civil, mas

    no se encontram albergadas no corpo de um nico texto legal.

    Trata-se de um fenmeno verificado em diversas ordens jurdicas de origem

    romano-germnica. O principal fator de propagao desses diplomas legais apartados

    encontra-se na necessria linguagem setorial no trato de alguns temas. O direito privado

    permeado por diversas matrias dotadas de complexidade mpar. Seria impossvel

    condensar todo contedo em um nico instrumento legislativo. Assim, diversas leis

    ordinrias vm dar delineamentos especficos e setorizados a campos em que no se

    prescinde da utilizao de uma linguagem especial, nem sempre dotada de contedo

    essencialmente jurdico. Esse caminho ao polissistema legislativo o que demarca o

    advento da chamada era dos estatutos (FACCHINI NETO, 2006: p. 25).

    A coerncia e uniformidade do sistema jurdico privatstico deslocam de eixo, ao

    argumento de que diante de variados diplomas legislativos tais caractersticas se

    estruturam em razo do texto constitucional. Somente a Constituio tem a capacidade

    de integrar o sistema, em razo do contedo e da principiologia que carrega. Dessa

    maneira, a interpretao e a aplicao do direito privado deslocam-se do Cdigo Civil

    pretendendo encontrar uniformidade no texto constitucional.

    Outro ponto em que se assenta a constitucionalizao do direito civil o fim da

    dicotomia entre pblico e privado. Na atualidade, no h mais considerar direito pblico

    e direito privado como esferas estanques e distintas. Essa realidade, tpica do sculo

  • XVIIIv, no mais prospera, no sendo possvel imaginar um ordenamento no qual no

    haja um intercmbio entre os referidos campos.

    O Estado passa a intervir na atividade privada por meio de polticas que,

    ocasionalmente, visando a bons propsitos, acabam mesmo por limitar excessivamente

    a liberdade e a autonomia privada. Em paralelo, o texto constitucional passa a tratar de

    temas tpicos de direito civil, levando antigos institutos a novos desenhos. Assim, temas

    como casamento, adoo, contratos ou propriedade passam a ser objeto de normas de

    carter essencialmente pblico.

    O direito pblico, por sua vez, tambm no se isenta de uma maior influncia

    por parte do direito privado. A Administrao Pblica passa a estar adstrita a normas de

    contedo civil, uma vez que atua como particular em determinadas situaes. Assim,

    matrias como contratos, propriedade ou responsabilidade civil so ampliadas para que

    tenham aplicao garantida em relao a tais situaes. Nesse sentido, discorre

    MICHELE GIORGIANNI (1998: p. 54):

    A aproximao entre as duas esferas j est madura (...) tambm pela

    ntima evoluo que se est operando no prprio mbito do Direito

    Administrativo. Tambm aqui seja concedido ao privatista not-lo

    com alguma satisfao, fala-se em crise ou at mesmo de

    por causa da penetrao dos elementos privatistas. Na verdade, j

    existe uma larga zona em que o Direito Administrativo se comporta

    exclusivamente como um direito estatutrio dos entes pblicos, do

    qual deriva uma ampla comunho de conceitos e de princpios com a

    correspondente disciplina dos entes privados.

    Desse modo, pode-se, hoje, inegavelmente, falar da quebra desse paradigma de

    separao absoluta entre pblico e privado. No h mais sentido prtico na manuteno

    da dicotomia, excetuando-se razes primordialmente didticas.

    Nesse contexto, a referida quebra potencializa a defesa, pelos seus adeptos, da

    constitucionalizao do direito civil. No mais havendo empecilhos dogmticos, o

    intrprete deve buscar solues prticas, tendo sempre como base os valores

    fundamentais inseridos na Constituio.

    Para tanto, porm, parte-se da aceitao da ideia de que os preceitos

    constitucionais que elencam matrias de direito civil teriam aplicabilidade direta,

    prescindindo de qualquer tratativa por parte da legislao ordinria. A Constituio,

    portanto, estabeleceria diretamente normas de conduta no mbito privado. Diante desse

    panorama, assim se manifesta PERLINGIERI acerca da aplicao direta do texto

    constitucional sem intermediao de instrumentos legais ordinrios:

    No existem argumentos que contrastem a aplicao direta: a norma

    constitucional pode, tambm sozinha (quando no existirem normas

    ordinrias que disciplinem a fattispecie em considerao), ser a fonte

    da disciplina de uma relao jurdica de direito civil. Esta a nica

    soluo possvel, se se reconhece a preeminncia das normas

    constitucionais e dos valores por ela expressos em um

    ordenamento unitrio, caracterizado por tais contedos.

    (PERLINGIERI, 1997: p. 11)

    Essas teorizaes ligadas ao que se convencionou chamar direito civil

    constitucional encontraram no Brasil terreno frtil para novos desenvolvimentos.

    Quando das primeiras tratativas acerca da mencionada construo doutrinria, estava

    em vigncia o antigo Cdigo Civil, datado de 1916. Tal diploma, porm, tinha suas

  • razes no sculo XIX e, por isso, refletindo uma estrutura social diferente, se mostrava

    incompatvel com os anseios de valorizao do contedo humano. Sua inspirao

    notadamente liberal desdobrava-se em uma exacerbada valorizao de um pensamento

    patrimonialista.

    Nesse contexto, assim se expressou TEPEDINO acerca da desatualizao do

    Cdigo Civil:

    O Cdigo Civil, bem se sabe, fruto das doutrinas individualista e

    voluntarista que, consagradas no Cdigo de Napoleo e incorporadas

    pelas codificaes do sculo XIX, inspiraram o legislador brasileiro

    quando, na virada do sculo, redigiu nosso Cdigo Civil de 1916.

    quela altura, o valor fundamental era o indivduo. O direito privado

    tratava de regular, do ponto de vista formal, a atuao dos sujeitos de

    direito, notadamente o contratante e o proprietrio, os quais, por sua

    vez, a nada aspiravam seno ao aniquilamento de todos os privilgios

    feudais: poder contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens como

    expanso da prpria inteligncia e personalidade, sem restries ou

    entraves legais. Eis a a filosofia do sculo XIX, que marcou a

    elaborao do tecido normativo consubstanciado no Cdigo Civil

    (TEPEDINO, 1999: p. 2).

    Com o advento do Novo Cdigo Civil, em 2002, novas abordagens foram

    efetivadas. Diante de uma codificao que tem como base o uso de conceitos jurdicos

    indeterminados e de clusulas gerais, buscou-se no texto constitucional um vetor

    interpretativo para a sua aplicao. O carter aberto do sistema possibilitou que seu

    preenchimento se desse com a utilizao de princpios de ordem constitucional. Assim,

    expresses como funo social ou boa-f passam, em razo do desconhecimento de seu

    verdadeiro contedo, a buscar algum norte interpretativo na Constituio.

    A escola do direito civil constitucional se atualizou, portanto, e permitiu um

    contnuo fluxo de construes doutrinrias. Apregoa-se, ainda hoje, a necessria

    releitura do direito privado luz da Constituio, encontrando, assim, seus institutos

    uma correta aplicao no sistema.

    3. Por uma abordagem crtica da constitucionalizao do direito civil

    Como antes afirmado, revela-se imperioso que o contedo apresentado seja

    analisado sob um vis crtico. A escola do direito civil constitucional teve importncia

    mpar no desenvolvimento de variados estudos e construes doutrinrias. Importa,

    todavia, verificar a validade de suas premissas e, ainda, se a aplicao e incremento de

    suas propostas encontram espao hodiernamente.

    Um primeiro ponto a ser abordado o da existncia dos chamados

    microssistemas e, consequentemente, o da busca da unidade sistemtica da ordem

    jurdica no texto constitucional. A existncia de inmeros instrumentos legislativos

    especiais nos mais diversos campos do direito privado retirou, sobremaneira, a

    importncia que detinha o Cdigo Civil e, na linha do que se veio de expor, levou a um

    repensar do sistema a partir do texto constitucional, aparentemente o nico apto a

    fornecer a necessria unidade.

    Ocorre que, na verdade, importa perceber que, na maioria das vezes, se est

    diante apenas da verificao da conformidade da lei com a Constituio. Esse variado

    leque de legislao extravagante deve ser, pois, controlado luz da Constituio, de

    modo a se verificar sua adequabilidade em relao aos preceitos e valores

  • constitucionais. Por isso, instrumentos de controle de constitucionalidade devem ter

    especial relevo.

    Passo contnuo, apresenta-se tambm importante identificar a exata extenso e

    importncia do elemento hermenutico. Isso porque a interpretao das normas

    ordinrias, bem como dos institutos por ela desenhados, deve ser realizada em

    conformidade com a Constituio. Esse labor revela-se extremamente relevante e traz

    consigo a preocupao de acatamento axiologia emanada do texto constitucional.

    Assim, diante dos valores inseridos nas normas constitucionais, com a carga simblica,

    poltica e jurdica que revelam, imperativo que a legislao infraconstitucional

    tambm os siga, tanto na sua elaborao, quanto na interpretao e aplicao.

    V-se, assim, que no se est diante de nenhuma tcnica nova. Trata-se apenas

    de buscar os pressupostos de validade que o sistema impe. Diante do necessrio

    primado da Constituio, nada mais natural que verificar a conformidade de todo o

    sistema jurdico com os contornos definidos constitucionalmente. dizer, se uma norma

    qualquer no est em consonncia com a Constituio, ela deve, pois, ser extirpada do

    ordenamento jurdico, em razo, simplesmente, da ausncia do seu pressuposto de

    validade. Assim, como assevera VILLELA, a expresso direito civil constitucional ,

    no mnimo, redundante (VILLELA, 2010), em razo de toda norma de direito civil

    dever obedincia ao texto constitucional.

    Distinta, porm, a questo da chamada superao da dicotomia entre direito

    pblico e direito privado. Como se teve oportunidade de falar, o aludido fenmeno

    serve como justificativa comum para um recurso direto, no raramente descuidado,

    Constituio, objetivando solucionar problemas tpicos de direito privado. Muitas vezes

    essa compreenso leva a equvocos, conforme demonstra MOTA PINTO (2005: p. 43):

    H, porm, equvocos importantes a desfazer. Assiste-se hoje, sem

    dvida, superao de certos pressupostos ideolgicos do passado, do

    modelo liberal da justia, da absoluta separao Estado/Sociedade, do

    Estado abstencionista e dos princpios da liberdade e igualdade

    encarados de um ponto de vista meramente formal [...]. Mas da no

    decorre necessariamente uma adeso s teses da , da e muito menos

    da superao da distino entre o direito pblico e o direito privado.

    Sem prejuzo, contudo, do papel da Constituio como Lei

    fundamental e, nessa medida, do controlo de constitucionalidade das

    leis civis (leis ordinrias), assim como sem prejuzo do

    reconhecimento dos princpios constitucionais no preenchimento das

    clusulas gerais e conceitos indeterminados de direito civil, do

    princpio da interpretao em conformidade com a Constituio, etc.

    , por isso, importante destacar que os novos pressupostos ideolgicos no

    justificam uma superao definitiva da diviso entre direito pblico e direito privado.

    Pode-se constatar a existncia de pontos convergentes entre os dois grandes campos,

    mas no a extino de uma separao de importncia sistemtica. A aproximao de

    institutos e conceitos de direito pblico e de direito privado no afasta, por si s, a

    importncia de se manter a referida classificaovi.

    O exerccio de qualificao de uma relao jurdica como de direito pblico ou

    de direito privado mantm-se como de extrema relevncia para a verificao das normas

    a serem aplicadas, uma vez que os regimes jurdicos so diversos. Para que se possa

    aplicar a um caso concreto a correlata norma, demonstra-se imprescindvel a

    identificao do regime em que est inserida a relao jurdica. S por meio desse

  • exerccio possvel constatar as eventuais peculiaridades existentes, fato que, por si,

    fornece embasamento suficiente para a manuteno dessa categorizao sistemtica.

    Ademais, outro questionamento que se apresenta reside na questo da

    aplicabilidade direta das normas constitucionais, sem o necessrio auxlio de lei

    ordinria. Como visto, para a escola do direito civil constitucional, a tarefa do jurista

    no se restringe verificao da constitucionalidade conformidade e

    proporcionalidade de determinada legislao, nem tampouco a um labor

    hermenutico. Por suas construes tericas, possvel pensar a aplicabilidade direta

    das normas constitucionais, sem qualquer intermediao por leis ordinrias.

    Transpondo o debate para nossa realidade mais recente, a Emenda

    Constitucional n 66, de 13 de julho de 2010, vem suscitando alguma polmica centrada

    na sua aplicabilidade direta, fazendo com que, direta ou indiretamente, sejam sopesados

    argumentos que se prendem escola do direito civil constitucional.

    Isso porque, antes da promulgao da referida Emenda, o 6 do art. 226 da

    Constituio da Repblica dispunha: o casamento civil pode ser dissolvido pelo

    divrcio, aps prvia separao judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei,

    ou comprovada separao de fato por mais de dois anos. O novo texto, entretanto,

    suprimiu uma parte desse dispositivo constitucional, que passou a ter a seguinte

    redao: o casamento civil pode ser dissolvido pelo divrcio.

    Parte da doutrina e da jurisprudncia rapidamente entendeu estar-se diante de

    norma como que de eficcia plenavii, a prescindir de qualquer regulamentao por lei

    ordinria. Tendo por base, aparentemente, a proposta do direito civil constitucional,

    firmou-se entendimento de que a intermediao legislativa ordinria no se

    demonstraria necessria, principalmente sob o argumento, utilizado um tanto quanto

    superficialmente, de que se estaria diante de valores e opes que visam dignidade da

    pessoa humana.

    Ocorre que esse entendimento, j possuidor de relevante aceitao na prtica

    jurdica, no se coaduna com o que se deve esperar de um ordenamento jurdico

    sistematizado. A reforma apenas deixou de impor, com fora constitucional,

    determinados requisitos para a realizao do divrcio, restando ao legislador ordinrio,

    justamente por se dever observar o devido processo legislativo, espao para

    regulamentar a questo da maneira que melhor lhe aprouvesse. Nesse sentido, assevera

    VILLELA (2010):

    A emenda Constitucional no declarou seu repdio aos requisitos que

    constavam do 6 do Art. 226. No os proscreveu do direito

    brasileiro. Onde est escrito que ela o tenha feito? Apenas dispensou

    (na medida em que no os repetiu), o que algo bem diferente. Uma

    vez que apenas os dispensou, o legislador ordinrio fica livre para

    conserv-los ou no. E se os conservar hoje, poder mand-los para o

    lixo amanh. Voltar a adot-los em futuro prximo ou remoto. E

    assim por diante. Tudo segundo seu prprio, livre e amplo juzo de

    convenincia.

    Admitir tal repdio, que no se demonstra expressamente, acaba por afastar um

    necessrio labor do Poder Legislativo e, assim, em nome de uma propalada defesa da

    dignidade da pessoa humana, colocar em risco valores democrticos, igualmente

    essenciais. A Constituio prev a necessidade de elaborao de leis e estabelece, para

    tanto, rigorosamente, o funcionamento do processo legislativo. necessrio, portanto,

    que se preste tributo segurana jurdica, elemento base para que se construa um

    ordenamento que se pretenda justo.

  • O fenmeno, porque jurdico, complexo. A nova codificao, ainda que, como

    a anterior, possuidora de antigas razes, carreou, de fato, novos valores e uma nova

    estrutura. Importa, pois, verificar a necessidade de se recorrer Constituio para suprir

    valores eventualmente no processados pelo direito civil. Nessa contenda, assim se

    manifesta VILLELA (2010):

    Quando valores novos que, por natureza, devam ser processados no

    direito civil ganham primeiro o tecido constitucional, justifica-se que

    sejam aplicados diretamente at que sejam incorporados legislao

    ordinria. Foi o caso, por exemplo, dos direitos da privacidade, da

    intimidade, da recusa ao tratamento mdico e outros similares, que

    comearam pela Constituio e s depois chegaram ao Cdigo Civil.

    uma situao absolutamente transitria e denota, possivelmente, o

    nico sentido em que a expresso direito civil constitucional merece

    curso, apesar da manifesta impropriedade dos termos.

    O novo Cdigo Civil trouxe consigo valores que antes estavam restritos ao texto

    constitucional. Eles, porm, no se substituem reciprocamente, tampouco se

    confrontam: antes, se complementam. No h porque realizar um recurso assistemtico,

    superficial e, pior, arbitrrio Constituio. O direito civil constitucional, entendido

    como aplicao direta da Constituio, s se justifica quando da eventual ausncia de

    legislao ordinria suficientemente regulamentadora. A partir do momento que o

    Cdigo Civil aborda novos temas, conferindo a seus institutos contornos em

    conformidade com o texto constitucional, esvazia-se uma das premissas em que se

    assenta a constitucionalizao do direito civil.

    CONCLUSO

    Embora a Constituio no possa, por si s, realizar nada, ela pode

    impor tarefas. A Constituio transforma-se em fora ativa se essas

    tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposio de

    orientar a prpria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a

    despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos

    juzos de convenincia, se puder identificar a vontade de concretizar

    essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituio

    converter-se- em fora ativa se fizerem-se presentes, na conscincia

    geral particularmente, na conscincia dos principais responsveis

    pela ordem constitucional , no s a vontade de poder (Wille zur

    Macht), mas tambm a vontade de Constituio (Wille zur

    Verfassung). (Grifos no original) (HESSE, 1991: p. 19)

    Transformar a Constituio em fora ativa e orientar as normas jurdicas e os

    comportamentos individuais e coletivos de acordo com as opes constitucionais so

    exigncias do pensamento jurdico contemporneo que resultam em grandes avanos.

    Como decorrncia direta tem-se, por exemplo, a naturalidade com a qual hoje se

    reconhece a fora normativa dos preceitos constitucionais.

    A crtica aqui realizada deve ser entendida como tentativa de contribuio aos

    desenvolvimentos tericos e jurisprudenciais futuros, inclusive ao fenmeno se bem

    compreendido conhecido por neoconstitucionalismo(s), que, de resto, no se confunde

    com as ponderaes acima rebatidas.

  • O foco das futuras discusses, em que pese os avanos j verificados, deve

    voltar-se importncia do direito privado na efetivao dos direitos fundamentais.

    Assim, compreender-se- melhor a dimenso humana desse campo do sistema jurdico,

    muitas vezes desprezada pela crtica de um excessivo patrimonialismo. Ademais, esse

    retorno possibilitar a retomada de debates concernentes autonomia poltica do povo e

    autonomia privada do cidado.

    Isso porque os efeitos prticos decorrentes do direito civil constitucional no

    espao jurdico brasileiro podem ser terrificantes, a comear pelo eventual desprezo

    legislao infraconstitucional.

    Sob o argumento de que o sistema majoritrio no corresponde s demandas por

    legitimidade democrtica, ignora-se a existncia legtima de regulamentao

    infraconstitucional ao argumento de se priorizar, por meio de suposta ponderao, a

    efetividade de comandos constitucionais. Entretanto, no se respeita qualquer regra de

    discurso, qualquer nus argumentativo.

    No cabe, aqui, discorrer sobre a falta de responsividade dos sistemas

    majoritrios, especialmente diante da verificao de que eles nem sempre

    corresponderam s demandas sociais. Contudo, inaceitvel admitir-se, a partir da

    premissa de que esse modelo de participao democrtica falho, o seu puro e simples

    desprezo, seguido do protagonismo dos pretensos guardies da democracia. Parece,

    mesmo, evidente: o desprezo lei, ao seu extremo, desprezo prpria democracia.

    H um tnue limite entre a concretizao da vontade da Constituio e o

    desprezo autodeterminao legislativa. Desse ltimo, pode-se extrair, ainda, grave

    constatao, pois a desconsiderao da manifestao do legislador democrtico ilustra

    seu descrdito e induz crena na sua incapacidade para instrumentalizar a efetivao

    dos preceitos constitucionais.

    A valorao das opes constitucionalmente relevantes sociedade brasileira

    deve ser realizada tambm pelo Legislativo. Nesse contexto, torna-se imprescindvel a

    real discusso e implementao de uma reforma poltica efetiva, centrada, por exemplo,

    nas noes de accountability, responsability e responsiviness, paralelamente

    igualmente necessria conscientizao do dever de autoconteno por parte do

    Judicirio.

    Some-se a isso o fato de se presenciar o empobrecimento dos estudos de direito

    civil, em razo das construes doutrinrias serem comumente elaboradas tomando por

    base o texto constitucional. Essa preocupao exacerbada leva, muitas vezes, a um

    tratamento desmazelado de temas tpicos de direito civil. No se v uma busca pelo

    aprimoramento dos institutos e conceitos, mas sim uma tentativa de justific-los com a

    aplicao direta da Constituio.

    Como consequncia, toda a discusso se torna superficial. Em razo da falta de

    profundidade das anlises realizadas, perde-se a noo do real significado dos institutos

    de direito privado, tambm constitucionalmente relevantes.

    Esse fenmeno deve ser enfrentado, pois os prejuzos decorrentes da diluio

    semntica desses institutos e princpios so prejudiciais.

    Diante do Novo Cdigo Civil, deve o intrprete conciliar aquela vontade de

    Constituio, o imperativo de efetividade dos preceitos constitucionais e a defesa dos

    direitos fundamentais com o igualmente essencial respeito legislao

    infraconstitucional, autodeterminao poltica perpetrada pelo legislador democrtico

    e aos valores e institutos de direito privado. Essa possibilidade aberta, como j se

    disse, pelas clusulas gerais e pelo preenchimento dos conceitos indeterminados, em

    uma atividade constitucionalmente conforme.

  • Houve avanos, como se viu, porm tempo de refletir sobre os caminhos

    trilhados e os desvios cometidos. Tal a condio para se dar o prximo passo, rumo a

    um dilogo leal entre Constituio e direito privado.

    REFERNCIAS

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    Portuguesa de 1976. Reimpresso. Coimbra: Almedina, 1987.

    i TEPEDINO assevera que o direito civil exercia outro papel, dentro da perspectiva do estado liberal.

    Segundo o autor: Ao direito civil cumpriria garantir atividade privada, e em particular ao sujeito de

    direito, a estabilidade proporcionada por regras quase imutveis nas suas relaes econmicas. Os

    http://www.cartaforense.com.br/Imprimir.aspx?id=6075

  • chamados riscos do negcio, advindos do sucesso ou do insucesso das transaes expressariam a maior

    ou menor inteligncia, a maior ou menor capacidade de cada indivduo. (TEPEDINO, 1999: p. 3) ii Nas palavras de TEPEDINO: Se o Cdigo Civil mostra-se incapaz at mesmo por sua posio

    hierrquica de informar, com princpios estveis, as regras contidas nos diversos estatutos, no parece

    haver dvida que o texto constitucional poder faz-lo, j que o constituinte, deliberadamente, atravs de

    princpios e normas, interveio nas relaes de direito privado, determinando, conseguintemente, os

    critrios interpretativos de cada uma das leis especiais. Recupera-se, assim, o universo desfeito,

    reunificando-se o sistema. (TEPEDINO, 1999: p. 13) iii Nesse sentido, aduz PERLINGIERI: O Cdigo Civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O

    papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilsticos quanto naqueles de

    relevncia publicstica, desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional.

    Falar em descodificao relativamente ao Cdigo vigente no implica absolutamente a perda do

    fundamento unitrio do ordenamento, de modo a propor a sua fragmentao em diversos

    microordenamentos e em diversos microssistemas, com ausncia de um desenho global.

    (PERLINGIERI, 1997: p. 6) iv Traduo livre do original: Un sistema, che ormai non combacia con un corpo definito di leggi,

    assume un nuovo valore. Non pi mono-sistema, correlativo alle strutture del codice civile, svolto

    secondo il disegno e le partizioni di esso; ma poli-sistema, come quadro dinsieme, o cornice di principi,

    in cui si iscrive una pluralit di micro-sistemi e di logiche di settore. Il codice civile soltanto una parte

    del sistema del diritto privato, che vede al centro la Costituzione e di qui irradiarsi un fascio di nuclei

    legislativi. (IRTI, Natalino, 1979: p. 145) v FACCHINI NETO aduz que nesse contexto histrico que se encontra a mais intensa diviso

    dicotmica entre pblico e privado. Assevera o autor que: o Direito Pblico passa a ser visto como o

    ramo do direito que disciplina o Estado, sua estrutura e funcionamento, ao passo que o Direito Privado

    compreendido como o ramo do direito que disciplina a Sociedade civil, as relaes intersubjetivas, e o

    mundo econmico (sob o signo da liberdade). (FACCHINI NETO, 2006: p. 19) vi Nesse ponto, imperioso, novamente, transcrever as palavras de MOTA PINTO: Dir-se-, numa breve

    sntese conclusiva, que a distino entre o direito pblico e o direito privado uma tarefa de classificao

    e arrumao sistemtica e, nessa medida, uma tarefa da cincia do direito, que deve ser despida de

    conotaes ideolgicas e no pe em causa o postulado fundamental da unidade da ordem jurdica.

    (MOTA PINTO, 2005: p. 44) vii Importa salientar que a referida classificao realizada de acordo com clssica obra do professor Jos

    Afonso da Silva, no estando adstrita a eventuais discusses acerca da manuteno de sua teoria. Ver:

    SILVA, Jos Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7 ed., Malheiros: So Paulo, 2007.