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A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO E O PROJETO DO NOVO
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL1
Daniel Gomes de Miranda
Mestre em Direito pela UFC. Professor da Faculdade 7 de Setembro, nos cursos de graduação
e pós-graduação. Professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará – ESMEC.
Professor no Curso Professor Jorge Hélio. Fundador do Jurisdictio – Instituto de
Aprimoramento do Conhecimento Jurídico. Membro do Instituto Brasileiro de Direito
Processual – IBDP. Secretário Geral da Associação Norte e Nordeste de Professores de
Processo – ANNEP. Advogado.
1. Colocação do Problema
A ciência jurídica desenvolvida após a Segunda Guerra Mundial procurou se
desvencilhar do pensamento positivista puro, de inspiração kelseniana, para volver o Direito a
valores, readmitindo a axiologia como componente da noção de direito, manifestada,
sobretudo, pelos valores de justiça e de legitimidade2.
Seguindo essa linha de idéias, o constitucionalismo desse período fundou-se numa
compreensão de que a ordem jurídica é composta por normas dotadas de alta carga axiológica,
1 Trabalho publicado em DIDIER JUNIOR, Fredie; BASTOS, Antônio Adonias Aguiar (ORG.). O Projeto do
Novo Código de Processo Civil. Estudos em Homenagem a José Joaquim Calmon de Passos. Salvador: Jus
Podivm, 2012, p. 229.242. 2 VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da Norma Jurídica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
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dentre elas aquela que prima pela dignidade da pessoa humana, como vetor fundamental de
um ordenamento jurídico.
Essa compreensão, amoldurada à idéia, também kelseniana, de supremacia
hierárquica da Constituição, fez com que não durasse muito tempo até que teóricos
começassem a defender a influência das normas constitucionais sobre todo o ordenamento
jurídico3.
O direito processual não ficou alheio a essa linha de pensamento, de sorte que se
advoga, nos países de tradição jurídica romano-germânica, a produção de efeitos dos valores
constitucionais sobre a ordem jurídica processual4.
O projeto do novo Código de Processo Civil também restou influenciado pela
constitucionalização do direito, buscando inserir no texto legal as diretrizes constitucionais
relativas ao processo, dando primazia à axiologia constitucional.
Até que esse estágio fosse alcançado, quatro etapas de evolução teórica se seguiram,
conforme roteiro teórico discriminado por Fredie Didier Junior5, quais sejam:
a) Sincretismo ou Praxismo. Num primeiro momento, não havia qualquer
preocupação científica com o processo. Essa fase, que prevaleceu das origens até quando se
começou a especular, no século XIX, sobre a natureza jurídica da ação e do próprio processo,
desenvolveu uma visão linear do ordenamento jurídico, caracterizando-se pela confusão entre
os planos material e processual do ordenamento.
3 “Daí a obrigação – não mais livre escolha – imposta ao jurista de levar em consideração a prioridade
hierárquica das normas constitucionais, sempre que se deva resolver um problema concreto. [...] a solução para
cada controvérsia não pode mais ser encontrada levando em conta simplesmente o artigo de lei que parece contê-
la e resolvê-la, mas, antes, à luz do inteiro ordenamento jurídico, e, e, particular, de seus princípios fundamentais, considerados como opções de base que o caracterizam.” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do
Direito Civil. Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007, p. 5) 4 Dentre os autores que adotam essa concepção, vale a pena mencionar: GUERRA, Marcelo Lima. Direitos
fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2003; MARINONI, Luiz Guilherme.
Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT, 2006; CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e
Neoprocessualismo. 2. ed. São Paulo: RT 2011; MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no Processo
Civil – Pressupostos Sociais, Lógicos e Éticos. 1. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009; SAMPAIO
JUNIOR, José Herval. Processo constitucional – nova concepção de jurisdição. São Paulo: Método, 2008. 5 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito Processual Civil. 13 ed. Vol. 1. Salvador: Jus Podivm, 2011, p. 31.
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b) Processualismo. Nessa etapa, iniciada no século XIX, passa-se defender a plena
consciência da autonomia da ação e dos demais institutos processuais, sendo marcada pelas
grandes construções científicas do direito processual.
É o período de desenvolvimento das grandes teorias processuais, como, por
exemplo, aquelas concernentes à natureza jurídica da ação e do processo, as condições da
ação e os pressupostos processuais.
c) Instrumentalismo. Reconhecendo a natureza científica do processo, bem como
sua autonomia, defende uma relação de interdependência entre o direito material e o direito
processual, de modo que este serve de instrumento para a efetivação daquele, que, por sua
vez, confere sentido a este.
O processo, segundo essa corrente de pensamento, é teleológico. Volta-se à
efetivação do direito material, para o qual serve de instrumento de tutela e concreção.
d) Neoprocessualismo. É a fase atual do processo civil brasileiro. O direito
processual não pode ser aplicado sem que, antes, seja aferida a compatibilidade das normas
infraconstitucionais como sistema normativo estabelecido na Constituição. Em suma:
enxerga-se o processo sob a ótica constitucional.
O projeto do novo Código de Processo Civil não poderia se desvencilhar do
momento histórico-doutrinário em que inserido. E não o fez. Em verdade, o projeto dispõe,
logo no art. 1º, que “O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os
valores e os princípios fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa
do Brasil, observando-se as disposições deste Código.”
2. O projeto do novo Código de Processo Civil e o neoprocessualismo
O Estado Democrático de Direito instituiu uma ordem jurídica material, em que os
direitos fundamentais assumem a configuração de normas jurídicas estruturantes de todo o
sistema jurídico, fazendo surgir uma ordem objetiva de valores.
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Por ordem objetiva de valores, pretende-se afirmar que os direitos fundamentais
representam-se por regras e princípios possuidores de validez objetiva e universal, tendo sua
aplicabilidade desvinculada de qualquer experiência do indivíduo.
Admite-se, em razão disso, um caráter objetivo dos direitos fundamentais, que
deixam de ser meras garantias de proteção para assumir a feição de pautas principiológicas
que influenciam todo o sistema normativo.
Pode-se afirmar, ainda, que os direitos fundamentais representam princípios gerais
do sistema jurídico, na medida em que suas normas, na grande maioria, se estruturam como
princípios, os quais, trazendo em seu bojo os valores fundamentais da Constituição,
expressam os pilares da ordem jurídica.
Segundo Robert Alexy6, as normas de direitos fundamentais são importantes para o
ordenamento jurídico em razão de dois atributos: (i) a fundamentalidade formal, que resulta
da primazia hierárquica dessas normas, haja vista que ocupam a posição mais elevada na
estrutura escalonada do ordenamento; e (ii) a fundamentalidade material, que permite atribuir
a essas normas a qualidade de viabilizar as decisões sobre a estrutura normativa do Estado e
da sociedade.
A idéia que fundamenta toda essa nova ordem jurídica parte do pressuposto de que a
Dignidade da Pessoa Humana constitui o fundamento de todos os demais princípios
constitucionais. Representa, no dizer de Glauco Barreira Magalhães Filho7, o fundamento
6 ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos e
Constitucionales, 1979, pp. 503-506. 7 “A pessoa humana é o valor básico da Constituição, o Uno do qual provém os direitos fundamentais não por
emanação metafísica, mas por desdobramento histórico, ou seja, pela conquista direta do homem. Só podemos compreender os direitos fundamentais mediante o retorno à idéia de dignidade da pessoa humana, pela regressão
à origem. Havendo colisão de direitos fundamentais em um caso concreto, deve-se referi-los à noção de
dignidade da pessoa humana, pois nela todos os princípios encontrarão a sua harmonização prática, descobrindo-
se uma solução que considera a existência de todos os direitos fundamentais, ao mesmo tempo que se procede a
uma hierarquização entre eles, em consonância com a compreensão social do que é mais relevante para se
alcançar o fim coletivo e a dignificação da pessoa humana.
A dignidade da pessoa humana (Uno) serve de pré-compreensão para os direitos fundamentais (emanações), e a
compreensão dos últimos, no caso concreto, através do retorno à idéia original, configurará um círculo
hermenêutico.” (MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e a Unidade Axiológica da
Constituição. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 229).
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material da unidade axiológica da Constituição, harmonizando os demais direitos
fundamentais.
Expressa-se, assim, uma repersonificação e, concomitantemente, uma
despatrimonialização e uma funcionalização do Direito, na medida em que a proclamação da
Dignidade da Pessoa Humana, como vetor do sistema constitucional, rende primazia ao
sujeito de direitos, visando a afastar o individualismo patrimonialista despersonalizado que
dominara, por séculos, a doutrina jurídica.
Supera-se o paradigma da igualdade liberdade formal, típica do Estado Liberal, bem
como da igualdade material, própria do Estado Social, para se atingir uma ordem jurídica
fundada na solidariedade, valor fundamental – positivado no texto constitucional brasileiro –
do Estado Democrático de Direito.
Além disso, os valores objetivos inseridos na Constituição é que, irradiando-se sobre
o direito infraconstitucional, sobretudo o processual, produzem efeitos hermenêuticos que
promovem severa mudança de perspectiva na compreensão de institutos jurídicos seculares,
na medida em que, buscando à efetivação da noção da solidariedade nas relações jurídicas
processuais, a constitucionalização manifesta-se, sobremodo, através da promoção da
cooperação no processo8, rendendo fundamento, principalmente, à ideia de lealdade e boa-fé
processual.
O princípio da cooperação, manifestação do princípio da solidariedade, parece ser o
grande avanço do Código de Processo Civil em vias de criação. Com efeito, o processo civil
do Século XXI deve estimular a participação dos atores processuais em um sentido específico,
qual seja o de, sob os auspícios da Constituição, isto é, promovendo-se um debate isonômico
sobre as questões jurídicas e fáticas objeto do processo, efetivar o direito apresentado em
Juízo, através da solução mais justa para o caso concreto.
Isso exige esforços de todos aqueles que atuam no íter processual, a saber: a) do juiz,
exige-se que conceda às partes a oportunidade de se manifestar no processo e de influenciar
8 MITIDIERO, Daniel Francisco. Colaboração no Processo Civil - Pressupostos Sociais, Lógicos e Éticos. 1.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
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na decisão a ser tomada, efetivando, assim, o princípio do contraditório. Da mesma forma,
cabe-lhe bem fundamentar a decisão, fornecendo, ao sucumbente, instruções bastantes à
postulação eventual de recurso contra a decisão, no que se efetiva a norma contida no art. 93,
inciso IX, da Constituição de 1988, dentre outros; e b) das partes, exigem-se os deveres gerais
de boa-fé, apresentando os fatos em juízo conforme a verdade, fazendo-se comparecer nos
atos processuais, prestando os esclarecimentos necessários, não demandando nem
apresentando resposta que sabe ser destituída de fundamento etc.
3. Modos de constitucionalização do processo
Nada obstante o que se expôs a respeito da constitucionalização do processo,
podem-se distinguir, didaticamente, três momentos em que o próprio ordenamento processual
pode ser constitucionalizado, isto é, pode sofrer a incidência dos valores objetivos traçados na
Constituição.
3.1. Da constitucionalização quando da criação/atualização legislativa
A própria Constituição já traz, em seu bojo, normas que, privilegiando os princípios
constitucionais, vão de encontro a outras regras infraconstitucionais, de sorte que, no
confronto entre as duas, a norma inferior perde seu fundamento de validade.
O legislador, inserido nessa nova realidade de primazia da Constituição sobre todo o
sistema jurídico, fica condicionado, na elaboração normativa do direito processual, à
observância dos princípios garantidores de direitos fundamentais, como, por exemplo, dos
princípios de igualdade, quando edita normas sobre o tratamento processual desigual daqueles
que se encontram em situação de desigualdade (inversão de ônus de prova, v.g.); e da
solidariedade, na medida em que busca efetivar, por via legislativa, a cooperação no processo.
Virgílio Afonso da Silva, lecionando sobre a adaptação das leis à Constituição,
assim se manifestou:
A mais efetiva, e, ao menos em tese, a menos problemática forma de
constitucionalização do direito é realizada por meio de reformas, pontuais ou
globais, na legislação infraconstitucional. É parte da tarefa legislativa adaptar a
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legislação ordinária às prescrições constitucionais de caráter dirigente, realizá-la por
meio da legislação.9
No mesmo sentido expressa-se Gustavo Tepedino, quando afirma: “Não há dúvidas
que as normas constitucionais incidem sobre o legislador ordinário, exigindo produção
legislativa compatível com o programa constitucional, e se constituindo em limite para a
reserva legal.”10
A elaboração normativa se expressa, num primeiro momento, quando da criação de
regramento novo pelo legislador. Nesse sentido, as normas que surgem devem ter o condão de
explicitar os valores constitucionais que são afetos ao tema legislado. Assim, a criação
legislativa tem o dever de render eficácia à Constituição, através da disponibilização de
normas que atendam aos seus princípios norteadores.
Mas o legislador tem o dever, também, de aperfeiçoar a legislação que já se encontra
em vigor, de modo que as normas infraconstitucionais sejam otimizadas no sentido de
possibilitar uma maior aplicação dos valores constitucionais.
É esse segundo momento que se vive no direito processual civil brasileiro. O projeto
busca harmonizar os procedimentos àqueles valores contidos na Constituição, de tal modo que
os princípios e regras constitucionais, relativas ao processo, sejam incorporados pelo novo
Código.
O legislador, portanto, exerce papel fundamental na efetivação dessa ordem objetiva
de valores contida na Constituição, cabendo-lhe o papel revisor da legislação recepcionada
pela ordem constitucional, bem como o dever de potencializar, ao máximo, na criação de
novas leis, os princípios constitucionais relativos à matéria a ser legislada.
3.2. Da constitucionalização quando da interpretação legislativa
Em decorrência da afirmação de que a Constituição passa a ocupar o centro do
ordenamento jurídico, impera a necessidade de se reconhecer que todos os atores da atividade
9 SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito. São Paulo: Malheiros, 2008, pp. 39/40. 10 TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Relações de Direito Civil na Experiência Brasileira. Separata
de Stvdia Jvridica, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, nº 48, pp. 330.
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jurídica estão sujeitos à observância dos princípios constitucionais. Dessa realidade não pode
fugir o intérprete, uma vez que a interpretação de toda e qualquer norma jurídica está
condicionada à observância dos princípios constitucionais.
Essa tese também confirma o modelo de composição das teorias de aplicabilidade
direta e indireta das normas de direitos fundamentais, porquanto impõe ao intérprete o dever
de buscar diretamente na Constituição a norma inicial para a resolução do caso concreto11
,
após o que buscará, no Código de Processo Civil, o referencial normativo infraconstitucional
que concretize, no procedimento, o princípio eleito.
Esse entendimento expressa, unicamente, a visão mais recente sobre a matéria. Uma
digressão é necessária.
Predominou, por muito tempo, o entendimento de que os princípios norteadores da
ordem jurídica seriam os “princípios gerais de direito”, a que se refere a Lei de Introdução ao
Código Civil. Essa noção de princípio remete o jurista para a idéia de brocardo, ou seja, o
princípio nada mais seria do que a fonte histórica do instituto, na forma como foi idealizada e
aplicada em sua origem.
Por essa razão, como aponta Gustavo Kohl Muller Neves12
, foram os princípios gerais
de direito, quando da época das codificações, relegados a segundo plano, porquanto remetiam
ao direito antigo, que os ideais revolucionários afastavam, como condição para o
estabelecimento de uma nova ordem jurídica. Ressalta o autor, em complemento, que a
“escola da exegese é, antes de tudo, uma estrutura de controle daquilo que deve ou não ser
admitido em uma nova ordem”13
, o que teria afastado a predominância dos princípios.
11
Veja-se, nesse sentido, a lição de Luis Roberto Barroso: “O ponto de partida do intérprete há de ser sempre os
princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus
postulados básicos e seus fins. Dito de forma sumária, os princípios constitucionais são as normas eleitas pelo
constituinte como fundamentos ou qualificações essenciais da ordem jurídica que institui. A atividade de
interpretação da Constituição deve começar pela identificação do princípio maior que rege o tema a ser
apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai
reger a espécie. Aos princípios cabe (i) embasar as decisões políticas fundamentais, (ii) dar unidade ao sistema normativo e (iii)
pautar a interpretação e aplicação de todas as normas jurídicas vigentes. Os princípios irradiam-se pelo sistema
normativo, repercutindo sobre as demais normas constitucionais e infraconstitucionais.” (BARROSO, Luís
Roberto. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, t. 2, p. 149). 12 NEVES, Gustavo Kohl Muller. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil constitucional. In
RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al (org). Diálogos sobre Direito Civil – Construindo a Racionalidade
Contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 04. 13 NEVES, Gustavo Kohl Muller. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil constitucional. In
RAMOS, Carmem Lúcia Silveira et al (org). Diálogos sobre Direito Civil – Construindo a Racionalidade
Contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 04.
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O culto à lei, somado ao desprestígio dos princípios, agravado quando da supremacia
do positivismo na Europa, fez com que não mais se questionassem as instâncias de valor14
que
deveriam ser atributos da norma. Assim, não se cogitava sobre a justiça ou a legitimidade da
regra, bastando que ela fosse elaborada em conformidade com o processo legislativo
preceituado na Constituição.
Porém, os incidentes da Segunda Guerra Mundial criaram uma necessidade
metodológica de se construir uma teoria do direito que ressuscitasse a axiologia jurídica,
somando, às instâncias de validade da norma – decorrentes do processo legislativo – as
instâncias de valor.
Foi com esse ânimo que Gustav Radbruch fez publicar uma circular, que distribuiu aos
alunos da Faculdade de Direito de Heidelberg, intitulada “Cinco Minutos de Filosofia do
Direito”, em que afirmava: “Não, não se deve dizer-se: tudo o que for útil ao povo é direito;
mas, ao invés: só o que for direito é útil e proveitoso para o povo”15
.
Fez-se premente, assim, que o Direito, em primeiro plano o direito civil, e, no ponto
que interessa a este trabalho, o direito processual civil, passasse a ser interpretado em
conformidade com os princípios constitucionais, o que permite afirmar que a interpretação do
direito processual deve ser pautada, como já afirmado por Luis Roberto Barroso, nos valores
contidos na Constituição16
.
É esse o momento atual. É essa a interpretação própria para o novo Código de
Processo Civil.
Segundo as lições de Raimundo Bezerra Falcão, tem-se que exigir do intérprete-
integrador-aplicador que proceda segundo os ditames do que denomina “Hermenêutica
Total”, observando-se sempre a finalidade da interpretação/integração, que é a busca da
Justiça17
-18
.
14 Sobre as instâncias de validade e de valor da norma jurídica, cf. VASCONCELOS, Arnaldo. Teoria da
Norma Jurídica. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000. 15 RADBRUCH, Gustav. Cinco Minutos de Filosofia do Direito. In RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito.
5. ed. Tradução e prefácio de L. Cabral de Moncada. Coimbra. Armênio Amado Editor, 1974, p. 416. 16 BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, t. 2, p. 149. 17 Justiça é instância de valor jurídico, como sustentado por Arnaldo Vasconcelos. (VASCONCELOS, Arnaldo.
Teoria da Norma Jurídica. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.) 18 “Mas, para ser total, a Hermenêutica precisa de manter o ser humano em seu patamar de dignidade, ao mesmo
tempo em que não permita que sua individualidade prejudique o funcionamento do todo, em cujo âmbito
também estão inumeráveis outras individualidades. Assim, contemplará todas as valorações que lhe for viável
contemplar; lembrar-se-á da parte interpretante e da parte destinatária; terá sensibilidade para o funcionamento
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Nesse diapasão, tem-se que é obrigação primordial do aplicador na norma processual
manter como finalidade precípua a consecução da Justiça, representada, aqui, pela
observância aos princípios constitucionais, notadamente aqueles que afirmem e promovam o
reconhecimento da humanidade das pessoas envolvidas na relação jurídica processual, além
da consagração de princípios outros, já mencionados neste trabalho, como liberdade, isonomia
e solidariedade.
Não se pode olvidar, ainda, da constitucionalização do direito processual que se opera
através da concessão, a determinada regra, de interpretação conforme à Constituição. Através
dessa técnica, é possível conceder, a determinada norma processual, significado que a amolde
à interpretação que o Supremo Tribunal Federal confere à Constituição, o que se pode dar por
duas formas: (i) leitura da norma processual da melhor forma que realize o sentido e o alcance
dos valores constitucionais que lhe são subjacentes; (ii) declaração de inconstitucionalidade
parcial sem redução do texto, mediante exclusão de determinada interpretação possível e
afirmação de uma outra interpretação compatível com a Constituição.19
Ora, havendo divergência de significado entre o texto codificado e o texto
constitucional, pode-se aplicar a interpretação conforme à Constituição, mantendo-se o texto
normativo e lhe conferindo um significado próprio, condizente com os princípios e regras
constitucionais20
.
3.3. Da constitucionalização quando da aplicação da lei
É a proclamação da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que consiste,
segundo lição de Marcelo Lima Guerra, nos efeitos jurídicos decorrentes do reconhecimento
dos direitos fundamentais como valores fundamentais constitutivos da ordem jurídica, que faz
do todo como âmbito de realização das partes e de cada parte como possibilitação funcional da coordenação no
todo. E tudo isso como afã de equilíbrio, ou, no caso do Direito, como fator de consecução de justiça.”
(FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 243). 19 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito
constitucional no Brasil). Revista Opinião Jurídica. Ano III, nº 6 (2005.2). Fortaleza: Faculdade Christus,
2005, pp. 211/252 20 Segundo Inocêncio Mártires Coelho: “[...] presumem-se constitucionais os atos do Congresso; na dúvida,
decide-se pela sua constitucionalidade; entre duas interpretações, escolhe-se a que torne esses atos compatíveis
com a Constituição, ao invés de preferir a que afronte o texto fundamental; e, por fim, diante de vários sentidos
que se consideram igualmente constitucionais, deve-se dar preferência ao que, orientado para a Constituição,
melhor corresponde às decisões do legislador constitucional.” (COELHO, Inocêncio Mártires. O Novo Código
Civil e a Interpretação Conforme à Constituição. In Domingos Franciulli Netto et AL (org). O novo Código
Civil – Estudos em Homenagem ao Professor Miguel Reale. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 52).
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com que se possa aplicar, nas relações jurídicas processuais, a proteção constitucional desses
mesmos direitos fundamentais.
Reconheceu-se, com o neoprocessualismo, a legitimidade do Poder Judiciário para,
através da aplicação da Constituição nas relações jurídicas processuais, dar nova interpretação
às normas de direito processual infraconstitucional, de modo a garantir a observância de
preceitos constitucionais fundamentais.
O estabelecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais possibilitou, assim,
a atuação dos magistrados no sentido de, através da interpretação e da aplicação da norma
infraconstitucional segundo as diretrizes principiológicas da Constituição, aperfeiçoar o
sistema jurídico, adaptando-o à Constituição e, mais ainda, aplicar diretamente as próprias
normas constitucionais nas relações jurídicas21
.
Quanto à influência da dimensão objetiva dos princípios constitucionais sobre o Poder
Judiciário, afirma o Marcelo Lima Guerra:
No tocante à atuação dos órgãos jurisdicionais, que é o que interessa mais de perto, no presente trabalho, advirta-se que a dimensão objetiva dos direitos fundamentais é
o que determina, por exemplo: (a) que o órgão jurisdicional identifique e deixe de
aplicar normas excessivamente restritivas de direito fundamental,
independentemente de qualquer manifestação de um dos eventuais titulares do
direito restringido; (b) que o órgão jurisdicional realize, também sem nenhuma
referência à dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, uma interpretação
conforme à Constituição, no sentido de extrair de determinada norma um sentido e
um alcance que maior proteção assegure a um direito fundamental relacionado a ela;
(c) que o órgão jurisdicional leve em consideração, na realização de um determinado
direito fundamental, eventuais restrições a este impostas pelo respeito a outros
21 “[...] A pensarmos como nos idos dos Séculos XVIII e XIX, a supremacia formal do texto constitucional
tenderia a ser mais simbólica que efetiva, como um programa normativo vinculante, todavia principiológico, a
ser legislativamente desenvolvido. As fundações e exercícios do controle de constitucionalidade se apropriaram dessa principiologia, às vezes, espectral, tanto para fornecer matéria aos supostos fragmentos normativos
constitucionais, quanto para invadir a interpretação das normas infraconstitucionais, reduzindo ou ampliando
seus significados. Foi essa, digamos, a capacidade hetero-generativa da Constituição que, no momento seguinte,
este que chega a nossos dias, contrariou as previsões dos Modernos e ainda deixa perplexos analistas do Direito,
ora a se posicionarem em sentido reativo, de crítica à inflação constitucional (deslegitimidade, pois que
promovida pelo poder aristocrático ou contramajoritário); ora, supostamente, na direção do „progresso
constitucional‟, pela efetivação judiciária e irradiante, horizontal e verticalmente, dos direitos fundamentais.”
(SAMPAIO, José Adércio Leite Mito e história da constituição: prenúncios sobre a constitucionalização do
direito. In SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira. (coord.) A Constitucionalização do Direito
– Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 200/201.)
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direitos fundamentais, independentemente mesmo de qualquer consideração quanto
à dimensão subjetiva desses últimos.22
Nessa linha, é de se ter que, quanto à aplicação da norma jurídica processual, objeto do
Código vindouro, não há mais lugar para o silogismo puro e simples. A estrutura
principiológica da Constituição, proclamando valores, confere ao intérprete maior grau de
liberdade. Mas há, em contrapartida, a criação de deveres direcionados a si, uma vez que se
exige comprometimento do intérprete com a própria essência da Constituição.23
É certo afirmar que a interpretação dos textos normativos em conformidade com a
Constituição, dando ao aplicador da norma liberdade de definição de qual princípio e,
posteriormente, qual regra processual aplicar no caso concreto, pode gerar insegurança e
decisões díspares.
Ocorre que é igualmente certo dizer que a decisão judicial deve ser muito bem
motivada, explicitando-se as razões de escolha do princípio constitucional aplicável –
decorrência da solução do conflito entre princípios por aplicação da regra da
proporcionalidade – e, posteriormente fundamentando-se o porquê de escolha da norma
infraconstitucional que tenha referência ao princípio eleito.
A preterição de uma norma em favor de outra não pode prescindir de correta,
adequada e suficiente fundamentação por parte do magistrado, no que avançou o projeto,
quando, no art. 476, parágrafo único, nega fundamentação à decisão que (i) se limita a
indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo; (ii) empregue conceitos jurídicos
indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; (iii) invoque
motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; ou (iv) não enfrentar todos os
22 GUERRA, Marcelo Lima. Direitos Fundamentais e a Proteção do Credor na Execução Civil. São Paulo: RT, 2003, pp. 98/99. 23 Sobre esse tema, veja-se o que afirma Marcio Augusto de Vasconcelos Diniz: “Esse caráter aberto e
fragmentário, ao mesmo tempo em que dá ao intérprete um maior grau de mobilidade na sua concretização,
acarreta maior responsabilidade, porque não se pode prescindir da normatividade constitucional, isto é, não se
pode admitir uma qualquer atribuição de sentido em detrimento da manifestação ontológica da Constituição
enquanto lei fundamental do Estado e da sociedade. A questão, portanto, não reside tanto em discutir a natureza
da Constituição – pois trata-se de algo que se dá como condição de possibilidade de sua interpretação –, mas de
verificar o grau, a intensidade de vinculação que ela objetivamente suscita no intérprete e na liberdade de
concretização que ele possui diante de suas normas.” (DINIZ, Marcio Augusto de Vasconcelos. Constituição e
Hermenêutica Constitucional. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 241.)
28
argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo
julgador.
É essa a contrapartida exigida pelo legislador: concede-se liberdade para a criação da
norma jurídica do caso concreto, mas essa liberdade encontra limites na adequada
fundamentação da decisão, que deve seguir os parâmetros instituídos no dispositivo
mencionado.
4. Considerações finais
Do que se expôs, chega-se à conclusão de que:
O neoprocessualismo, fase atual da doutrina processual brasileira, reconhece a força
normativa dos princípios contidos na Constituição, admitindo sua aplicação no processo;
O projeto do novo Código de Processo Civil não pode se esquivar do momento
histórico-doutrinário em que inserido e, reconhecendo isso, traz, em seu art. 1º, o
reconhecimento da submissão hierárquica e axiológica do Código à Constituição;
A constitucionalização do processo gera efeitos de três ordens:
a) A criação normativa: momento em que inserido o projeto do novo Código de
Processo Civil, uma vez que o legislador busca adequar a legislação
infraconstitucional aos direitos fundamentais assegurados e protegidos pela ordem
jurídica brasileira;
b) A interpretação normativa: reconhece-se que não há mais espaço para os vetustos
princípios gerais de direito, brocardos seculares, na interpretação normativa
processual. A interpretação do novo Código deve-se dar através de um vetor
hermenêutico, qual seja a Constituição Federal. Enxerga-se o Código com os olhos
da Constituição; e
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c) A aplicação normativa: o magistrado, quando da aplicação das normas contidas no
novo Código, tem – em decorrência da interpretação constitucionalizada que
conferiu ao texto normativo – um grau maior de liberdade de decisão, na medida
em que pode recusar aplicação da regra, sob fundamento de desconformidade com
o texto constitucional, o que não significa que se esquiva do dever de bem motivar,
também constitucional.
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