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55 Artigos Doutrinários – Davidson Alessandro de Miranda Princípios gerais do Código Civil de 2002 Davidson Alessandro de Miranda* Para compreender o novo Código Civil não basta o exame dogmático dos seus novos dispositivos, tendo em vista que a vontade do legislador foi maior que a simples permuta do texto legal. A pretensão legislativa espelha uma busca por diploma macro mais móvel capaz de se manter no tempo, tal qual o BGB (Código Civil Alemão), razão pela qual, além do uso abundante das cláusulas gerais, a nossa codificação privada está calcada em três princípios que devem ser absorvidos pelo intérprete, quais sejam: socialidade, eticidade e operabilidade. O princípio da socialidade altera a visão individualista constante no Código Civil/1916, partindo-se das premissas de que devem prevalecer os valores fundamentais da pessoa humana, dando a estes sentido social. Ao contrário de um raciocínio açodado, o princípio da socialidade não veio surgir em detrimento da pessoa humana, perdendo este espaço para o Poder Público, como se em verdadeira Reforma Marxista. Explica-se: o proprietário que usa e abusa de sua propriedade, causando danos ao meio ambiente, assim como o empresário que se utiliza da pessoa jurídica que participa para burlar o mercado, acabam por criar um ambiente que transbordará o arbítrio individual, justificando a limitação da sua soberania em razão de sentimentos individuais que se aglutinam em sociedade 1 . Assim, a socialidade e o individualismo hão sempre de ser confrontados em ângulo macro, ”impondo a relação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclusivismos, numa ordem global de comum participação” (REALE in O Projeto do Novo Código Civil. 1999, p. 7-12) * Atualmente é agente público do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Assessor jurídico da Secretaria de Defesa Social do Estado de Minas Gerais. Professor da Faspi (Faculdade de Direito de Piumhi), professor substituto do Centro Universitário de Formiga (Unifor), de cursos preparatórios para concursos públicos, com experiência e ênfase nas disciplinas de Direito Administrativo, Civil-Constitucional, Penal, Processual Penal, Prática Penal, Lei de Execução Criminal e Ética Profissional. 1 Houve a preocupação na revisão dos conceitos dos principais personagens da vida privada (o contratante, o proprietário, o pai de família, o testador e o empresário), com a mudança do pátrio poder para o poder familiar ou poder de família, em decorrência da própria alteração social, com a emancipação da mulher. O princípio da eticidade no novel civil tem escopo bem amplo, aparecendo não somente como orientação que privilegia os critérios éticos (p. exemplo: boa-fé, justa causa, equilíbrio da relação jurídica), bem como funciona como vetor que possibilita ao julgador maior poder na busca da solução mais justa e equitativa pelo Estado-Juiz. O Código Civil/1916 pela influência histórica então reinante tencionou fechar os conceitos, prevendo todos os detalhes e hipóteses, com poucas referências diretas aos critérios tidos como éticos, o que sem dúvida afastava a possibilidade do julgador se aprofundar no âmago subjetivo da questão para decidir de forma mais justa ou equitativa. Com o Código Civil/2002 que, como já afirmado, encontra-se alicerçado no sistema de cláusulas gerais, os conceitos foram permitindo ao Estado-Juiz preencher certos espaços (propositais) da lei na busca da solução concreta mais justa ou equitativa, desde que seu representante observe em tal missão os critérios éticos-jurídicos 2 . Com o princípio da operabilidade busca-se que as matérias dispostas no Código Civil sejam de fácil aplicação, não causando embaraço na sua execução. Pensamos que a operabilidade há de ser vista sob dois enfoques: material (I) = decorrente da enunciação da norma, e processual (II) = aplicação concreta da norma, conforme interpretação intuitiva das palavras do condutor do noviço diploma codificado, Professor Miguel Reale: “[...] o que se objetiva alcançar é o Direito sem sua concreção, ou seja, em razão dos elementos de fato e de valor que devem ser sempre levados em conta na enunciação e na aplicação da norma” (destacamos) 3 . O princípio vai de encontro aos anseios de toda a comunidade jurídica, inclusive dos dedicados ao estudo do Direito Processual Civil, na medida em que com a operabilidade o legislador civil atraiu, mais que nunca, para si uma responsabilidade de não criar o confuso ou duvidoso, pois a [...] possibilidade de a tutela jurisdicional atuar como efetivo fator de pacificação social depende fundamentalmente da perfeita compreensão a 2 Em termos: MOREIRA ALVES, José Carlos. A Parte Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 26 e CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Indenização por equidade no novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2003, p. 54. 3 In Visão Geral do Novo Código Civil, p.16 Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 24, n. 2, fev. 2012

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Artigos Doutrinários – Alexandre Pontieri

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Artigos Doutrinários – Davidson Alessandro de Miranda

Princípios gerais do Código Civil de 2002Davidson Alessandro de Miranda*

Para compreender o novo Código Civil não basta o exame dogmático dos seus novos dispositivos, tendo em vista que a vontade do legislador foi maior que a simples permuta do texto legal. A pretensão legislativa espelha uma busca por diploma macro mais móvel capaz de se manter no tempo, tal qual o BGB (Código Civil Alemão), razão pela qual, além do uso abundante das cláusulas gerais, a nossa codificação privada está calcada em três princípios que devem ser absorvidos pelo intérprete, quais sejam: socialidade, eticidade e operabilidade.

O princípio da socialidade altera a visão individualista constante no Código Civil/1916, partindo-se das premissas de que devem prevalecer os valores fundamentais da pessoa humana, dando a estes sentido social. Ao contrário de um raciocínio açodado, o princípio da socialidade não veio surgir em detrimento da pessoa humana, perdendo este espaço para o Poder Público, como se em verdadeira Reforma Marxista. Explica-se: o proprietário que usa e abusa de sua propriedade, causando danos ao meio ambiente, assim como o empresário que se utiliza da pessoa jurídica que participa para burlar o mercado, acabam por criar um ambiente que transbordará o arbítrio individual, justificando a limitação da sua soberania em razão de sentimentos individuais que se aglutinam em sociedade1. Assim, a socialidade e o individualismo hão sempre de ser confrontados em ângulo macro, ”impondo a relação concreta e dinâmica dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja preservada sem privilégios e exclusivismos, numa ordem global de comum participação” (REALE in O Projeto do Novo Código Civil. 1999, p. 7-12)

* Atualmente é agente público do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Assessor jurídico da Secretaria de Defesa Social do Estado de Minas Gerais. Professor da Faspi (Faculdade de Direito de Piumhi), professor substituto do Centro Universitário de Formiga (Unifor), de cursos preparatórios para concursos públicos, com experiência e ênfase nas disciplinas de Direito Administrativo, Civil-Constitucional, Penal, Processual Penal, Prática Penal, Lei de Execução Criminal e Ética Profissional.

1 Houve a preocupação na revisão dos conceitos dos principais personagens da vida privada (o contratante, o proprietário, o pai de família, o testador e o empresário), com a mudança do pátrio poder para o poder familiar ou poder de família, em decorrência da própria alteração social, com a emancipação da mulher.

O princípio da eticidade no novel civil tem escopo bem amplo, aparecendo não somente como orientação que privilegia os critérios éticos (p. exemplo: boa-fé, justa causa, equilíbrio da relação jurídica), bem como funciona como vetor que possibilita ao julgador maior poder na busca da solução mais justa e equitativa pelo Estado-Juiz. O Código Civil/1916 pela influência histórica então reinante tencionou fechar os conceitos, prevendo todos os detalhes e hipóteses, com poucas referências diretas aos critérios tidos como éticos, o que sem dúvida afastava a possibilidade do julgador se aprofundar no âmago subjetivo da questão para decidir de forma mais justa ou equitativa. Com o Código Civil/2002 que, como já afirmado, encontra-se alicerçado no sistema de cláusulas gerais, os conceitos foram permitindo ao Estado-Juiz preencher certos espaços (propositais) da lei na busca da solução concreta mais justa ou equitativa, desde que seu representante observe em tal missão os critérios éticos-jurídicos2.

Com o princípio da operabilidade busca-se que as matérias dispostas no Código Civil sejam de fácil aplicação, não causando embaraço na sua execução. Pensamos que a operabilidade há de ser vista sob dois enfoques: material (I) = decorrente da enunciação da norma, e processual (II) = aplicação concreta da norma, conforme interpretação intuitiva das palavras do condutor do noviço diploma codificado, Professor Miguel Reale: “[...] o que se objetiva alcançar é o Direito sem sua concreção, ou seja, em razão dos elementos de fato e de valor que devem ser sempre levados em conta na enunciação e na aplicação da norma” (destacamos) – 3. O princípio vai de encontro aos anseios de toda a comunidade jurídica, inclusive dos dedicados ao estudo do Direito Processual Civil, na medida em que com a operabilidade o legislador civil atraiu, mais que nunca, para si uma responsabilidade de não criar o confuso ou duvidoso, pois a

[...] possibilidade de a tutela jurisdicional atuar como efetivo fator de pacificação social depende fundamentalmente da perfeita compreensão a

2 Em termos: MOREIRA ALVES, José Carlos. A Parte Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 26 e CARVALHO FILHO, Milton Paulo de. Indenização por equidade no novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2003, p. 54.

3 In Visão Geral do Novo Código Civil, p.16

Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, v. 24, n. 2, fev. 2012

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respeito de inúmeras situações da vida sobre o que provimento surtirá efeito. Somente assim poderá o processualista prever tutelas adequadas ao escopo da função jurisdicional4.

Nada obstante o tripé dos princípios em questão, para que o Código Civil/2002 tenha êxito como uma codificação fortemente móvel, propiciando a aplicação da lei civil por um período mais duradouro, foi necessário o prestígio às cláusulas gerais que, em breve resenha, são normas lançadas em forma de diretrizes, dirigidas ao Estado-Juiz, que deverá – dentro do que foi previamente traçado pelo legislador – dar a solução mais perfeita, observado, para a concretização da atuação judicial, não só o critério objetivo, mas também as situações particulares que envolvem cada caso5. A adoção maciça das cláusulas gerais6 não implica dizer, inadvertidamente, que o Código Civil/2002 abriu mão do conceitualismo de certos institutos. Um sistema ideal deve ter a aplicação balanceada, com dispositivos legais fechados (casuísticos) e hipóteses legais para um preenchimento (cláusula geral), pois a simbiose evita o engessamento provocado por um sistema fechado, assim como diminui o grau de incerteza que pode ser gerado por um diploma impregnado apenas de cláusulas gerais.7

Enfim, esta pequena resenha demonstra que para se criticar (ou elogiar) a nova codificação é necessário muito mais do que analisar as aliterações introduzidas isoladamente nos dispositivos. Em verdade, a aferição quanto o êxito legislativo do Código Civil/2002 exige reflexão que extrapola a superficial leitura do texto po-sitivado.

4 BEDAQUE, José Roberto dos Santos, Direito e Processo (Influência do Direito Material sobre o Processo). 2. ed. (2 tiragem). São Paulo: Malheiros, 2001. p. 20

5 No sentido, destaca-se o item 26 do parecer final do relator (Senador Josaphat Marinho), em que se reconhece a necessidade de possuirmos um sistema capaz de recepcionar as mudanças e situações supervenientes, decorrentes de um contínuo sistema em construção.

6 Qualquer estudo sobre cláusulas gerais necessita de cotejo obrigató-rio à tese de doutorado da Professora Judith Martins Costa (Sistema e Cláusula geral, USP – 1996), cujas conclusões estão resumidamente apresentadas no artigo O Direito Privado como um sistema em cons-trução – As cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro (in RT 753, p. 25-28). Posteriormente, a tese de doutoramento fez frutifi-car a obra A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

7 Tanto assim, pelo temor da insegurança, as cláusulas gerais não são tão abundantes na Parte Geral do Código Civil/2002, tendo o legislador se preocupado nesta parte com o rigor conceitual nos dispositivos. No sentido: MOREIRA ALVES, in ob. cit. p. 24

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