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Considerações sobre o éthos do paulista em três músicas
Introdução
O objetivo deste artigo é analisar o éthos do paulista em três músicas: Trem das Onze, Adoniran
Barbosa; Não existe amor em SP, Criolo; Sampa, Caetano Veloso. Ou melhor, como o autor-criador vê os
cidadãos dessa cidade.
Segundo o Dicionário de Análise do Discurso, éthos é "a imagem de si que o locutor constrói em seu
discurso para exercer uma influência sobre seu alocutário".
Em Retórica: há caráter dicotômico em Aristóteles, por exemplo: "as virtudes morais que garantem
credibilidade ao orador, tais como prudência, a virtude e a benevolência" segundo o livro de Charaudeau e
Maingueneau. Aristóteles, no entanto, diz: "que comporta uma dimensão social, na medida em que o orador
convence ao se exprimir de modo apropriado a seu caráter e a seu tipo social.".
Em Pragmática: Ducrot opõe duas noções, por exemplo: éthos como imagem de si a qual é associada ao
locutor como tal; em oposição ao sujeito empírico situado no exterior da linguagem. Ou seja, éthos seria o
mascaramento do locutor.
Em Análise do Discurso: "o éthos se traduz também no tom, que se relaciona tanto ao escrito quanto ao
falado, e que apoia em uma 'dupla figura do enunciador, aquela de um caráter e de uma corporalidade'",
Maingueneau diz ainda que "cada gênero de discurso comporta uma distribuição pré-estabelecida de papéis
que determina em parte imagem de si do locutor." e "a imagem discursiva de si é, assim, ancorada em
estereótipos, um arsenal de representações coletivas que determinam a apresentação de si mesmo.".
Para esta consideração, serão usadas teorias linguísticas sobre argumentação e enunciação e discurso
presentes em dois livros, o primeiro, Enunciação e Discurso: tramas de sentido, Maria da Glória di Fanti e
Leci Borges Barbisan; o segundo, Argumentação, José Luiz Fiorin. Para que a distinção fique clara,
intercalarei alguns pontos histórico-culturais da cidade de São Paulo.
Nas três músicas a cidade já está em grande expansão sócio-econômica, visto que inúmeros
imigrantes chegam à cidade com o sonho de ascender na vida financeira. Os conteúdos analisados são as
figuras de linguagem - tropos -, argumentação e a história e seu contexto.
Na análise literária, figuras de linguagem, de pensamento, de sintaxe e tropos semânticos são usados
para analisar os recursos poéticos empregados pelos autores. O livro Figuras de Retórica do professor José
Luiz Fiorin foi utilizado por abranger todos os termos trabalhados nesse artigo.
Já na análise do discurso, analisarei o éthos, ou melhor, o caráter do paulista por meio da visão dos
autores das músicas. O contexto histórico é de grande valia, uma vez que o discurso se entrelaça ao tempo,
ou seja, não se separa discurso e história.
Desambiguação
Para sanar a dubiedade dos nomes, paulista é natural, ou habitante, do Estado de São Paulo e
paulistano do município e da capital do Estado de São Paulo. Logo, como muitas pessoas morram na
grande São Paulo, decidi juntá-los - paulistas e paulistanos -, além do mais, muitos jornadeiam para a capital
todos os dias para trabalhar. Portanto, as músicas adequam-se a ambos.
As músicas
As músicas foram escolhidas por conterem elementos corriqueiros à cidade de São Paulo. Além de
serem os intérpretes das músicas, eles também são os autores. Adoniran Barbosa, do estado de São Paulo;
Criolo, da cidade de São Paulo; Caetano Veloso, no entanto, baiano, porém esboça visão única sobre a
cidade.
Breve bibliografia acerca dos autores
Adoniran Barbosa foi compositor, cantor, humorista e ator brasileiro, nome artístico de João
Rubinato, Valinhos, 6 de agosto de 1910 - São Paulo, 23 de novembro de 1982. Por ter apresentado diversas
personagens em programas de rádio, ficou conhecido como Adoniran Barbosa, um de seus personagens de
maior popularidade. Seu primeiro sucesso Trem das Onze, popularizada pelo grupo Demônios da Garoa. Na
música, há referência a um grande bairro paulistano, Jaçanã.
Figura 1 – Adoniran Barbosa
Fonte: http://kultme.com.br/kt/wp-content/uploads/2015/04/barbosa.jpg; acesso em ago. 2015.
Caetano Veloso é músico, produtor, arranjador e escritor brasileiro. Caetano nasceu em Santo
Amaro, Bahia, 7 de agosto de 1942. Sampa, música do décimo primeiro álbum Muito - Dentro da Estrela
Azulada, lançada em 1978.
Figura 2 – Caetano Veloso
Fonte: http://www.estadao.com.br/fotos/caetano_veloso.jpg; acesso em ago. 2015.
Criolo, nome artístico de Kléber Cavalcante Gomes, nasceu em São Paulo, 5 de setembro de 1975, é
um rapper brasileiro e cantor de MPB. Não existe amor em SP foi lançada em março de 2011.
Figura 3 - Criolo
Fonte: http://rollingstone.uol.com.br/media/images/original/2012/01/05/img-1003251-criolo.jpg; acesso em ago. 2015.
Breve contexto histórico em que as músicas foram escritas
Trem das Onze
O contexto histórico-cultural da música Trem das Onze passa-se num momento crítico no Brasil,
pois, no nosso país, ocorre o Golpe de Estado, em 1964, o qual acarreta uma série de ocorrências políticas. O
estopim para o golpe ocorre no comício ministrado por Leonel Brizola e João Goulart, na Central do Brasil,
Rio de Janeiro. No comício, foram discutidas as reformas pelas quais o Brasil passaria, por exemplo:
plebiscito para convocação de uma nova constituição, reforma agrária e a nacionalização de refinarias
estrangeiras. Jornais da época apoiam o golpe, pois pensam que Jango, João Goulart, levaria o Brasil a um
tipo de sistema governamental comunista. O golpe modifica o paradigma nacional visto que vivíamos num
país democrático, logo se torna autoritário e nacionalista. Então, iniciam-se profundas modificações nas
organizações política, econômica e social. Por conta da censura, sob a égide da Lei de Segurança Nacional e
do Ato Institucional n°5, muitas músicas, livros e notícias são vetadas.
O famoso “trem das 11”, eternizado por Adoniran, primeiramente existiu para instalar e levar dutos
de água a serra da Cantareira, em 1894, porém ele foi desativado no ano seguinte ao do sucesso da música,
em 1965. O uso do trem era reservado apenas para a condução de dutos, todavia, com o crescimento da
população, o uso para o público foi permitido. No dia da demolição, Adoniran Barbosa estava presente para
se despedir da estação.
Figura 4 – Estação
Fonte: http://www.estacoesferroviarias.com.br/j/fotos/jacana.jpg; acesso em ago. 2015.
Trem das Onze, Adoniran Barbosa
Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto, muito amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã,
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã.
Além disso, mulher
Tem outra coisa,
Minha mãe não dorme
Enquanto eu não chegar,
Sou filho único
Tenho minha casa para olhar
E eu não posso ficar.
Análise
O amor é impedido por três motivos: distância, preocupação materna e preocupação com a violência.
Na música, podemos perceber o dilema do eu-lírico em ficar com o amor ou voltar para a casa. O
trem, referido na música, só foi aberto ao público a partir do século XX. Como São Paulo não tinha uma
linha de transporte tão ampliada, se ele não voltasse para a casa, naquele horário, teria de passar a noite na
rua, ou seja, tal situação geraria preocupação em sua mãe.
O trem – ou a distância – não é o único empecilho do eu-lírico, há ainda a preocupação da mãe. A
preocupação pode ser entendida como: medo urbano, além do mais, era o prelúdio da ditadura militar.
E podemos ver a prevenção da gravidez explicada pelo desenvolvimento urbano, a qual é muito
como hodiernamente, “Sou filho único”.
O éthos do paulista pode ser traçado como: temeroso por causa da violência urbana e sensato com
suas paixões.
Sampa
O então presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, faz uma visita ao Brasil, ele é o quinto
presidente americano a vir ao país.
O AI-5, em 13 de outubro de 1978, chega ao fim, no governo de Ernesto Geisel, a emenda
constitucional n°11 revogou todos os atos que contrariavam a Constituição Federal. Houve a eleição do
General João Batista Figueiredo para presidente pelo colégio eleitoral, ou seja, um órgão seleto de pessoas
com poderes deliberativos para eleger alguém a um cargo importante. No regime militar, o colégio era
formado por membros do Poder Legislativo federal, em certos momentos, estadual.
Houve a assinatura do decreto que revoga o banimento de 122 brasileiros por João Figueiredo, ele
também extingue a Comissão Geral de Investigação.
Figura 5 – Cruzamento da Avenida Ipiranga e da Avenida São João
Fonte: http://3.bp.blogspot.com/-4RApATHSh7A/T9LNrsDJ1PI/AAAAAAAAAz0/kbPYvI_lxdk/s1600/sampa.jpg; acesso
em ago. 2015.
Sampa, Caetano Veloso
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas
Ainda não havia para mim, Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a Avenida São João.
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mal gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos Mutantes.
E foste um difícil começo
Afasta o que não conheço
E quem vem de outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso
Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva.
Pan-américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os Novos Baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa.
Análise
O eu-lírico chega à cidade e se surpreende com a imensidão e multidão. Podemos considerar a
composição biográfica visto que Caetano Veloso dispõe, ao longo da música, suas opiniões e considerações
acerca da metrópole.
A música faz alusão a inúmeros elementos que compõem a metrópole e a caracterizam.
Ao cruzar a Avenida Ipiranga e a Avenida São João, sente que alguma coisa acontece com seu
coração, logo seria o tremor de uma cidade imensa e desenvolvida. Ainda, na primeira estrofe, referências
literárias são feitas quando ele diz "Da dura poesia concreta de tuas esquinas", logo alude a Décio Pignatari e
sua pugna pelo "avesso" e aos irmãos Haroldo e Augusto de Campos os quais lideravam o movimento
concretista. O próximo trecho "Da deselegância discreta de tuas meninas", até hoje, é "criticado” pelas
mulheres da metrópole, quiçá estranhamento da indumentária em comparação às mulheres baianas.
Caetano cita Rita Lee e ainda diz que ela é uma ótima tradutora da cidade "Ainda não havia para
mim, Rita Lee/ A tua mais completa tradução".
Na estrofe que contém o verso "É que Narciso acha feio o que não é espelho" fica bem clara a
relutância para aceitar São Paulo. Logo, só aceitava o que lhe era comum, nesse caso, a Bahia, sua terra
natal. Entretanto, posteriormente, acostuma-se com a ideia da diversidade "Porque és o avesso do avesso do
avesso do avesso", ou seja, não há paradigma.
No penúltimo verso, reitera-se a força do consumismo e capitalismo "Da força da grana que ergue e
destrói coisas belas/ Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas" e, em consequência, a poluição causada
pela industrialização e urbanização.
Na última estrofe, ele incita a vinda para a grande metrópole, onde há espaço e aceitação para todos.
A alcunha de terra da garoa é referenciada na última parte. Os novos baianos foram um grupo musical
natural da Bahia que tocavam gêneros musicais vadiados, os integrantes do grupo eram Moraes Moreira,
Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor, Dadi e Luiz Galvão. "Mais possível novo
quilombo de Zumbi", ou seja, refúgio para todos.
Podemos analisar dois éthe: um exterior e outro interior, por exemplo: muitos vêm tentar mudar de
vida em São Paulo, logo, ao chegarem, deparam-se com inúmeras idiossincrasias, ou seja, um "pot-pourri"
cultural, porém rapidamente absorvem os valores novos. Já o paulista/paulistano – até pessoas de outras
naturalidades – mostram-se receptivos com novas pessoas e culturas, pois, numa cidade que a cada dia
recebe mais habitantes, aqui, desejam muda a própria situação financeira, ou seja, São Paulo é cosmopolita.
Não Existe Amor em SP
Panorama da música Não Existe Amor em SP. Em 2011, o primeiro presidente negro, Barack Obama,
anuncia e confirma a morte do terrorista mais procurado do mundo, Obama Bin Laden, morto no Paquistão.
"Justiça foi feita", disse Obama.
Dilma Rousseff é empossada primeira presidente da República, a candidata disputava com o tucano
José Serra, grande marco na história do Brasil, ela assume o cargo politico mais alto. No primeiro
pronunciamento, Dilma disse que erradicaria a pobreza do Brasil e reitera o episódio marcante de ser a
primeira mulher presidente. Linguisticamente, Dilma prefere a troca da desinência nominal do substantivo
para o feminino "presidenta" ao substantivo comum de dois, apenas pela troca do artigo, a presidente.
Especificamente, em São Paulo, no mês de Janeiro em 2011, a chuva acomete a grande São Paulo,
causado inúmeros danos, prejuízos e mortes. Só na capital, o volume de chuva atinge o ápice, logo registra o
recorde de acúmulo do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia).
Outro fato que abalou a cidade foi o aumento da passagem dos ônibus. O custo para utilizar esse
meio de transporte foi de R$2,70 para R$3,00.
Figura 6 – Centro de São Paulo
Fonte: http://lounge.obviousmag.org/traz_mais_uma/amor%201.jpg; acesso em ago. 2015.
Não existe amor em SP, Criolo
Não existe amor em SP
Um labirinto místico
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever
Numa linda frase
De um postal tão doce
Cuidado com doce
São Paulo é um buquê
Buquês são flores mortas
Num lindo arranjo
Arranjo lindo feito pra você
Não existe amor em SP
Os bares estão cheios de almas tão vazias
A ganância vibra, a vaidade excita
Devolva minha vida e morra
Afogada em seu próprio mar de fel
Aqui ninguém vai pro céu.
Não precisa morrer pra ver Deus
Não precisa sofrer pra saber o que é melhor pra você
Encontro duas nuvens
Em cada escombro, em cada esquina
Me dê um gole de vida
Não precisa morrer pra ver Deus.
Análise:
O eu-lírico da música expressa visão pessimista logo no título visto que afirma a não existência de
amor em São Paulo. No trecho "um labirinto místico", faz referência à imensidão de São Paulo, quando o
adjetiva como místico, faz menção à vastidão religiosa da cidade/estado.
Muitas vezes, deparamo-nos como frases impactantes no centro de São Paulo, ou melhor, em lugares
mais periféricos da cidade, logo, tornam-se murais de expressão. Os grafites são de certa forma manifestação
artística, na música, "os grafites gritam", ou seja, clamam para ser ouvidos pela sociedade.
No decorrer da música "Não dá pra descrever/ Numa linda frase/ De um postal tão doce", podemos
presumir o porquê da não descrição numa única linda frase de um postal, pois o caos não pode ser definido,
a metrópole é indescritível. Na epístrofe do trecho "De um postal tão doce/ Cuidado com doce" podemos ver
dois sentidos para palavra "doce", ambos conotativos, o primeiro, sentido figurado, significa afetuoso e
aprazível; o segundo, temos a gíria paulistana para LSD, droga sintética que altera a percepção do indivíduo.
Também podemos usar a figura ploce para designar a alteração da palavra doce.
Seguindo com a música temos "São Paulo é um buquê/ Buquês são flores mortas/ Num lindo arranjo/
Arranjo lindo feito pra você", nesses versos temos a qualificação de São Paulo pelo predicativo do sujeito
buquê e, consequentemente, temos buquê de novo por anadiplose, porém buquê é definido como flores
mortas num lindo arranjo – no Barroco, flor é definida como frágil, bela e consciente de sua beleza, logo,
torna-se ambiciosa, mas murchará no fim –, ou seja, São Paulo está sobrecarregado de vaidade e egoísmo, os
cidadãos apenas pensam em si mesmos.
Nos próximos versos há alusão ao padrão social de São Paulo. Indubitavelmente, bares ficam lotados
todos os dias ao redor da cidade. O elemento ganância está mais do que associado à selva de pedra porque é
o centro financeiro do país, além disso, o capitalismo e – a nova “ideologia” nascida do funk brasileiro – a
ostentação fazem que o consumo por coisas triviais ascenda, além do mais, intensifica o hedonismo dos
adeptos à ostentação.
Na última estrofe, fica mais do que evidente que o eu lírico acredita em Deus. Nesse trecho, Deus é
alcançável pela fé, logo não precisaríamos morrer para poder vê-lo ou saber se ele realmente existe. A
cidade suga a vitalidade, ou humanidade, das pessoas por ser caótica e por não haver compaixão entre os
habitantes.
Carlos Henrique Teixeira de Araújo
2-ALEN, 2015
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