fantasmão (pagode baiano)
TRANSCRIPT
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
1/70
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAINSTITUTO DE LETRAS
ROGRIO LUID DOS SANTOS
QUE NEGRO ESSE DO/NO PAGODE DE SALVADOR?UMA QUESTO DE IDENTIDADE E DISCURSO
Salvador2010
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
2/70
2
ROGRIO LUID DOS SANTOS
QUE NEGRO ESSE DO/NO PAGODE DE SALVADOR?UMA QUESTO DE IDENTIDADE E DISCURSO
Monografia apresentada ao Colegiado de LetrasVernculas do Instituto de Letras da Universidade Federalda Bahia como requisito parcial para a obteno do graude Bacharel em Letras Vernculas.
Orientadora: Prof. Dr. Edleise Mendes Oliveira Santos
Salvador2010
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
3/70
3
Ao meu pai, Luiz Modesto.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
4/70
4
AGRADECIMENTOS
minha obrigao lembrar e agradecer s pessoas que agora fao memria, sem elas... Semelas este trabalho ainda estaria no plano dos sonhos ou, talvez, nem l existisse.
Professora Edleise Mendes, minha prozinha, minha orientadora, um exemplo! Obrigadopelas orientaes acadmicas e no-acadmicas;
Ao Professor Antnio Marcos, um amigo, outro exemplo de professor, de pesquisador... depessoa! Se um dia eu conseguir dar aula como ele...;
Professora Lcia Heine. Muito obrigado por me introduzir no mundo da pesquisa;
Aos meus amigos de pesquisa. Ou melhor, companheiros de vida, meus influenciadores:Fbio, por ser to sbio e to humilde; Carlinha, pela simplicidade sincera; Luana, por mostraro prazer de fazer o que se gosta; Marlia, pelo exemplo de crescimento; Adielson, peladedicao mostrada; Camila, pela alegria. Quero ser igual a vocs!
Aos meus grandes amigos, Alan e Victor, por nunca me abandonarem, mesmo quando eumerecia! Muito obrigado!
s meninas: Shirley, Manu, Camila, Miquele e Denise. Que honra poder t-las conhecido.
Tamily pela pacincia. Aprendemos juntos, n amor? Penso que agoraconhecemos nossosritmos.
minha famlia por tudo... tudo mesmo! Principalmente, pelo apoio sempre constante. Noposso nem imaginar o que eu seria sem D. Rosa, e nem posso imaginar o que seria destapesquisa sem Luco Psirico me expondo exaustivamente ao meu corpusde anlise.
A Deus, claro! Por Ele e para Ele so todas as coisas.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
5/70
5
E ai chegaram os negrosCom toda sua belezaCom toda sua cultura
Com toda sua tradio(Eu sou nego, de Gernimo)
O pagode a cultura de todas as massas(Banda Beat Beleza)
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
6/70
6
RESUMO
Neste trabalho, buscamos empreender uma reflexo acerca do modo pelo qual a identidadenegra discursivizada no pagode soteropolitano contemporneo. Para compreendermos esseprocesso, nos valemos das ferramentas terico-metodolgicas da Anlise Crtica do Discurso,cuja concepo triangular de discurso tem por base a identidade. Alm disso, este trabalhodialoga com os Estudos Culturais e a Lingustica Aplicada, pois esses campos de pesquisadesenvolvem trabalhos relevantes que relacionam discurso e identidade e que dialogam com aAnlise de Discurso Crtica. Desse modo, analisaremos duas msicas do gnero musicalPagode: Ser nego massae Conceito, das bandas SAM HOP e Fantasmo, respectivamente.Essas msicas podem ser consideradas pertencentes ao movimento neopagode, cujo estiloincorpora distores, influenciado pelo Hip Hop e j tem sido considerado pela mdia como
msica de protesto. Ao focalizarmos a construo da identidade negra nessas msicas,discutimos as questes ideolgicas que envolvem esse processo de discursivizao, isto :quais os (pr)conceitos esto na base dessa representao identitria, bem como quais funesideolgicas interpelam essa (re)construo/(re)afirmao da identidade negra. A partir denossa anlise, chegamos concluso de que o fenmeno discursivo aqui estudado, mesmo quenuma tentativa de afirmao identitria, acaba por difundir o discurso hegemnico que intentauma dominao social.
Palavras-chave: Pagode. Identidade. Cultura afro-brasileira. Anlise Crtica de Discurso.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
7/70
7
ABSTRACT
In this monograph, we seek to undertake a reflection on the way in which black identity isrepresented in contemporary soteropolitano pagode. To understand this process, we make useof theoretical and methodological tools of Critical Discourse Analysis, whose discoursetriangular design is based on identity. Furthermore, this work dialogues with Cultural Studiesand Applied Linguistics, as these fields of research develop relevant work relating discourseand identity, and that dialogue with Critical Discourse Analysis. Thus, we analyze two songsfrom the musical gender Pagode: Ser nego massaand Conceito, songs of the bands SAM
HOP and Fantasmo, respectively. These songs can be considered belonged to theneopagode movement, whose style incorporates distortions, is influenced by Hip Hop andhas already been considered by the media as song of protest. By focusing the constructionof black identity in these songs, we discuss the ideological issues involved in this process of
representation, i.e.: what are the (pre)concepts are the basis of this representation of identityand which are the ideological functions which challenge the (re)construction/(re)affirmationof black identity. From our analysis, we concluded that the discursive phenomenon studiedhere, even an attempt of affirmation of identity, it ends up spreading the hegemonic discoursethat intends to maintain a social domination.
Keywords: Pagode. Identity. African-Brazilian culture.Critical Analysis of Discourse.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
8/70
8
LISTA DE ILUSTRAES
Quadro1 Bases epistmicas da ACD de Fairclough 17
Figura 1 Concepes tridimensionais do discurso 22
Quadro2 Categorias analticas propostas modelo tridimensional 24
Figura 2 Foto e entrevista do cantor Bambam da banda SAM HOP 47
Figura 3 Foto e entrevista do cantor Eddye da banda EDYCITY 48
Figura 4 Capa da RevistaMuito 49
Figura 5 Foto e entrevista de Mrcio Victor, canto do Psrico 50
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
9/70
9
SUMRIO
1 INTRODUO 10
2 CONSIDERAES SOBRE ANLISE CRTICA DO DISCURSO2.1 OS INTERESSES DA ACD2.1.1 Das origens da ACD e seus objetivos2.1.2 Das bases epistmicas2.2 O DISCURSO EM ACD2.2.1 As propriedades e os efeitos do discurso em ACD2.3 ASPECTOS METODOLGICOS DA ACD2.4 IDEOLOGIA E HEGEMONIA2.5 O CARTER INTERDISCIPLINAR DA ACD
141415171820222427
3 A QUESTO DA IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE3.1 IDENTIDADE E CULTURA: CONCEITOS INDISSOCIVEIS3.2 A QUESTO DA FRAGMENTAO DAS IDENTIDADES3.3 IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E DIFERENA3.3.1 No caso do Pertencimento3.3.2 No caso da Diferena3.4 O INTERESSE DA ACD PELA IDENTIDADE
29313337373941
4 ANLISE DA DISCURSIVIZAO DA IDENTIDADE NEGRA NOPAGODE SOTEROPOLITANO4.1 A QUESTO DO PAGODE E SEUS EFEITOS DE SENTIDO4.2 CONSIDERAES METODOLGICAS E CONSTITUIO DOCORPUS4.2.1 A anlise de Ser nego massa4.3.2 A anlise de Conceito
4545
525462
5 CONSIDERAES FINAIS 66
REFERNCIAS 68
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
10/70
10
1 INTRODUO
Neste trabalho, buscamos empreender uma reflexo acerca do modo pelo qual a
identidade negra discursivizada no pagode soteropolitano contemporneo. Para
compreendermos esse processo, nos valemos das ferramentas terico-metodolgicas da
Anlise Crtica do Discurso, cuja concepo triangular de discurso tem por base a identidade.
Alm disso, este trabalho dialoga com os Estudos Culturas e a Lingustica Aplicada, campos
de estudo que dialogam com a Anlise Crtica do Discurso na abordagem das relaes entre
discurso e identidade.
Nossa pesquisa, que agora apresentamos em forma de monografia, teve origem
quando percebemos o que chamamos em trabalhos posteriores (LUID, 2008; 2009) desensvel mudana temtica no pagode soteropolitano. Essa mudana diz respeito maneira
pela qual as msicas de pagode soteropolitanas contemporneas aderiram temas como a
(re)afirmao da identidade negra e a valorizao do espao suburbano, comumente
denominado nessas narrativas1como guetho.
O que queremos dizer que as msicas de pagode de intenso apelo sexual, de
valorizao do homem e desvalorizao da mulher, continuam sendo produzidas2, mas outras,
com temtica diferente, tambm comeam a surgir. So msicas que colocam, sobretudo, aquesto da identidade negra em destaque, pois elas trazem baila o conceito de negritude, o
orgulho de ser negro, o guetho.
claro que o negro j era citado nas msicas de pagode de Salvador, at porque o
negro , em geral, o compositor e o pblico desse estilo musical. Dessa forma, o negoe a
negona j eram figuras que marcavam a composio do pagode, mas no podemos dizer
que a meno a eles focalizava uma afirmao de identidade. Na verdade, essas referncias
tinham o intento de estabelecer um dilogo com o interlocutor do pagode, o negro, afinal nose deve esquecer que todo enunciado essencialmente dialgico, alm de ativamente dirigido
a um interlocutor ideal.
Assim, as atuais msicas de pagode produzidas em Salvador3 parecem levar em
considerao as condies sociais da maioria dos negros da Bahia (pobreza, desvalorizao
1Com base em Barbosa Filho (2009), podemos considerar as msicas de pagode como narrativas urbanas quecompem o discurso urbano.2 Como veremos mais adiante, o pagode j exercia (e ainda exerce) uma funo discursiva de construo
identitria relacionada s questes de gnero. O homem constantemente retratado como mizeravo ouputo, adjetivos que valorizam e enaltecem o homem macho; e as mulheres so retratadas comopiriguetes, cachorras, canho; problemtica, etc. o que, por sua vez, desvaloriza a mulher.3Ou pelo menos das bandas que possuem determinadas caractersticas, como veremos adiante.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
11/70
11
social e racial, autonegao de sua imagem etc.), fomentando, por sua vez, uma valorizao
da identidade do negro inserido nessa realidade. , dessa forma, necessrio compreender o
contexto em que a maioria dos negros est inserido, uma vez que a necessidade de um
discurso que vise a afirmao de uma identidade s ocorre, quando esta desvalorizada,
desprestigiada, negada etc.
Dito isso, vale ressaltar ainda que nosso trabalho est organizado em trs captulos:
dois tericos e um de anlise.
O primeiro captulo terico trata da Anlise Crtica do Discurso. Procuramos fazer
uma breve apresentao acerca da referida proposta terica, focando aspectos gerais sobre sua
constituio, seus objetivos, suas bases epistmicas e seus aspectos metodolgicos. Alm
disso, focalizamos noes fundamentais que constituem e do norte a esta teoria, tais como asnoes de discurso, poder, hegemonia e ideologia. Aps discorrer sobre esses aspectos gerais,
discutimos uma abordagem que integre a Anlise Crtica do Discurso a outros campos de
estudo, a fim de demonstrar o carter interdisciplinar desse campo.
Sobre esse captulo, ainda pertinente ressaltar que, ao falarmos da metodologia da
Anlise Crtica do Discurso, focalizaremos a abordagem tridimensional de Fairclough (1997,
2000). Essa ressalva pertinente, pois, por ser considerada uma rede de estudos, a Anlise
Crtica do Discurso possui diferentes propostas e tendncias terico-metodolgicas, mesmoque partilhem de um mesmo conjunto conceitual.
O segundo captulo terico procura tecer consideraes acerca da questo da
identidade na contemporaneidade. Inicialmente, empreendemos uma reflexo acerca da
identidade cultural, refletindo sobre a relao dos conceitos de cultura e identidade.
Chamamos ateno para trs questes sobre a identidade: a fragmentao identitria, a relao
identidade e pertencimento e a relao identidade e diferena. Nossas reflexes sobre esse
tema tm por base os Estudos Culturais, mas tambm estabelecemos relaes com o interesseda Anlise Crtica de Discurso pelo tema.
No captulo destinado anlise de nosso corpus, tecemos algumas consideraes sobre
a constituio do pagode soteropolitano atual. Tratamos, desse modo, do pagode que tem sido
chamado pela mdia de neopagode, bem como do perfil adotado por algumas bandas de
pagode. Em nossa anlise, exploramos as msicas enquanto texto e focalizando, portanto, o
texto, a prtica discursiva e a prtica social, com o objetivo de descrever a construo textual,
interpretar a prtica discursiva e explicar a prtica social.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
12/70
12
O discurso socialmente construtivo, constituindo os sujeitossociais, as relaes sociais e os sistemas de conhecimento ecrena, e o estudo do discurso focaliza seus efeitos ideolgicosconstrutivos. A anlise de discurso preocupa-se no apenas comas relaes de poder no discurso, mas tambm com a maneiracomo as relaes de poder e a luta de poder moldam e
transformam as prticas discursivas de uma sociedade ouinstituio.(Norman Fairclough)
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
13/70
13
2 CONSIDERAES SOBRE A ANLISE CRTICA DO DISCURSO
2.1 OS INTERESSES DA ACD
A Anlise Crtica do Discurso (doravante ACD) uma das correntes tericas Nas
quais este trabalho monogrfico est assentado. Essa proposta terico-metodolgica vem,
crescentemente, sendo desenvolvida em diversos centros de pesquisa de pases da Europa,
sia e Amrica do Sul, que tm por principal preocupao a relao bidirecional linguagem-
sociedade (HERBELE, 2008, p. 294).Retomando algo j mencionamos na Introduo, esta monografia, de igual forma,
interessa-se, sobremaneira, pela relao linguagem e sociedade. Por isso, temos como um de
nossos objetivos, perceber os efeitos scio-discursivos dos textos (as msicas de pagode) que
circulam na sociedade e sua relao com a mudana social. Tanto o interesse desse trabalho
pela relao linguagem-sociedade quanto o objetivo que acabamos de retomar fazem parte do
escopo de inquiries que a ACD visa a responder e, assim, podemos inserir, sem dvidas, o
trabalho que apresentamos no campo disciplinar da ACD.Alm disso, a anlise das msicas de pagode, que constituem o corpus desta
monografia, segue uma das propostas metodolgicas de umas das abordagens da ACD, mais
especificamente os dispositivos de anlise orientados por Fairclough (1997, 2001). At
mesmo a recorrncia desta pesquisa a outros modelos tericos (a Lingustica Aplicada e os
Estudos Culturais, mais especificamente) constitui uma caracterstica da ACD: a
interdisciplinaridade.
As questes que trouxemos baila nesse momento (relao linguagem-sociedade;
mudana social; aspectos metodolgicos de anlise orientados por Fairclough;
interdisciplinaridade etc.), e que esto na base da ACD, sero apresentadas agora neste
captulo. Nesta parte da monografia, procuraremos refletir tambm sobre questes
relacionadas origem, bases epistmicas e metodolgicas da ACD. Alm disso,
focalizaremos as noes-chave dessa proposta terico-metodolgica em anlise do discurso,
tais como: discurso, prtica discursiva, prtica social, mudana discursiva, dentre outros.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
14/70
14
2.1.1 Das origens da ACD e seus objetivos
A ACD consolidou-se enquanto rede de estudos no incio da dcada de 1990, quando,em Amsterd, em janeiro de 1991, Teun van Dijk, Norman Fairclough, Gunther Kress, Teo
van Leeuwen e Ruth Wodak reuniram-se durante alguns dias e puderam debater acerca de
teorias e mtodos em anlise do discurso (WODAK, 2004, p. 227). Entretanto, tais
estudiosos, mesmo antes deste encontro, vinham refletindo sobre perspectivas em estudos
crticos do discurso h algum tempo, de modo que, para Wodak (2004), o incio, propriamente
dito, da ACD marcado pelo lanamento da revistaDiscourse and Society(1990), editada por
van Dijk, e das seguintes obras: Language and Power, Fairclough, 1989; Language, Powerand Ideology, de Wodak, 1989.
Segundo Wodak (2004), Meurer (2005), Resende e Ramalho (2006), dentre outros, o
termo Anlise Crtica do Discursopode conferir continuao ao termo Lingustica Crtica4
que, por sua vez, surgiu no final dos anos 19705. Pedro (1997), por sua vez, considera ainda
que no existe uma diferenciao entre os linguistas crticos e analistas crticos do discurso,
fazendo o uso destes termos como sinnimos e considerando trabalhos essencialmente ligados
Lingustica Crtica, como o de Fowler et al (1979)6, abordagens em ACD. Magalhes
(2004), contudo, afirma que no cabe reduzir a ADC7 LC [Lingustica Crtica], pois h
questes tericas e prticas que foram explicitadas pela ADC, contribuindo para o avano dos
debates (MAGALHES, 2004, p. 120)
4 Segundo Fowler et al (1979 apud MEURER, 2005, p. 85) A lingustica crtica emergiu [...] como umalingustica instrumental. A lingustica instrumental, por sua vez, foi um termo utilizado por Halliday (1973apudMEURER, 2005, p. 85) para indicar estudo da linguagem utilizado para entender alguma coisa alm dalinguagem. Assim, como a Lingustica Crtica procura perceber problemas sociais a partir do ponto de vista da
lngua(guem), foi considerada uma lingustica instrumental.5Com essa informao, percebemos que a ACD e a ADF (Anlise de Discurso Francesa) tm origens bastantediferentes, ainda que suas propostas apresentem pontos em comum.6FOWLER, R; HODGE, R; KRESS, G; TREW, T. Language and control. London: Routlegde & Kenga Paul,1979.7Alguns estudiosos, no Brasil, preferem o termo ADC (Anlise de Discurso Crtica). Resende (2009, p. 11) diz:Opto pela traduo Anlise de Discurso Crtica para Critical Discourse Analysis, em lugar de AnliseCritica do Discurso. Justifico minha escolha pela tradio histrica dos estudos discursivos no Brasil,consolidados com o rtulo anlise de discurso. Tome-se como mais um argumento este diretamente ligado traduo do termo em si o texto de van Dijk (1996), em que ambas as formas aparecem: Critical Discourse
Analysis (p. 84) e critical analysis of discourse (p. 102). Parece-me coerente traduzir a primeira por Anlise deDiscurso Crtica e a segunda por anlise crtica de discursos. Para uma reflexo detida sobre isso, ver Magalhes(2005). Aqui, preferimos o termo ACD, uma vez que van Dijk no se refere mais ADC ou ACD, mas sim
ECD (Estudos Crticos do Discurso), conforme sua obra de 2008. Um outro argumento: as primeiras traduesde obras em ACD para o portugus, tais como Pedro (1997), referem-se Anlise Crtica de Discurso; almdisso, pensamo que o termo Crtica, encaixado entre as palavras Anlise e Discurso, chama imediatamentea ateno para o tipo de anlise proposta, diferenciando-a das demais formas de Anlise do Discurso.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
15/70
15
Pedro (1997) ainda considera a ACD uma rede de estudos e, como tal, no pode ser
resumida a um nico modelo, mas, ao contrrio, constituda de abordagens, assim:
diferentes investigadores, com distintas preocupaes e situados em disciplinas diversas,
podem classificar-se como localizados numa rea com a designao geral de Anlise Crtica
do Discurso (ACD) (PEDRO, 1997, p: 23). E. ainda, vrias abordagem ACD [...]
apresentam diferenas no despiciendas, mas comungam em outros aspectos igualmente
fundamentais, permitindo, por isso, falarmos de um projeto comum (PEDRO, 1997, p. 22).
Apesar do fato de haver a possibilidade de considerarmos a ACD uma rede de estudos
constituda de vrias abordagens, possvel que encontremos em obras sobre ACD, sobretudo
obras brasileiras, que Norman Fairclough o principal pensador desta rea. (RESENDE,
RAMALHO, 2006, p 21; MEURER, 2005; BENTO, 2008). Isso se d porque Faircloughquem formula a Teoria Social do Discurso na qual preconiza uma cincia crtica da linguagem
capaz de contribuir para a conscientizao dos efeitos sociais de textos nas mudanas
discursivas e, por conseguinte, nas mudanas sociais. Para ele, necessrio o entendimento de
como as mudanas ocorrem nos eventos discursivos (FAIRCLOUGH, 2001, p. 126)
Para Fairclough (2001), existem mtodos em anlise do discurso que consideram a
anlise lingustica um caminho para estudar a mudana social, entretanto: [...] ainda no
existe um mtodo de anlise lingustica que seja tanto teoricamente adequado como vivel naprtica (FAIRCLOUGH, 2001, p 19). Assim, para ele, casando-se mtodos de analisar a
linguagem, oriundos da Lingustica, aos estudos da linguagem com o pensamento social,
possvel desenvolver uma adequada teoria social da linguagem.
Dessa forma, a ACD seria ao mesmo tempo, uma teoria e um mtodo de anlise do
discurso (MEURER, 2005, p. 81), e isso consistiria observar, nos textos que circulam na
sociedade, questes sociais que, de modo geral, refletem e refratam maneiras de representar a
realidade, manifestaes de identidade e estilo, bem como relaes de poder no mundocontemporneo. Pedro, referindo-se ACD, diz:
Trata-se, portanto, de entender o modo de funcionamento das vises de mundosubjacentes constituio dos modos e das circunstncias em que os estados decoisas so verbalizados, sendo tarefa da ACD analisar o funcionamento dessasvises do mundo, que subjazem constituio dos factos [sic], dos acontecimentose, sobretudo, da agenciao, concretamente nos aspectos que, de forma especfica, serelacionam com a linguagem, o discurso, a ideologia e a sociedade (PEDRO, 1997,p. 22)
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
16/70
16
Tudo isso a partir de uma viso de discurso como constituinte e constituidor de
prticas sociais que, por sua vez, pode ser analisado em trs instncias: enquanto texto,
enquanto prtica discursiva e como prtica social8.
2.1.2 Das bases epistmicas
No que se refere s influncias tericas que podemos encontrar no projeto da ACD,
Pedro sinaliza a influncia de filsofos do Iluminismo, de Marx, [...] de investigadores da
Escola de Frankfurt [...] dos herdeiros directos [sic] ou indirectos [sic] dos, e depois dos, anos
60, entre os quais Habermas (PEDRO, 1997, p. 22-23) e continua:
Uma outra linha de influncia remete-nos para Gramsci (1971) e para os seusseguidores em Frana e Reino Unido, principalmente Stuart Hall e outros membrosdo Centro de Estudos Culturais Contemporneos [...]. Tambm Althusser (1971),Foucault (1971) e Pcheux (1982) se encontram entre aqueles que inspiram o projetoda ACD. [...] Outras influncias vm claramente da Lingustica Crtica e daSemitica Social e de algumas abordagens desenvolvidas pela SociolingusticaCrtica na Alemanha e na ustria [...], muita dela derivando do paradigmaconceptual de Bernstein (1971-75). (PEDRO, 1997 p. 23)
A obra de Fairclough tambm marcada por essas interferncias tericas. Tal
estudioso rel diversos trabalhos que consideram a linguagem uma forma de ao e procura
preencher a falta de ateno que o discurso tem recebido como elemento que molda e
moldado pelas prticas sociais. Com base em Meurer (2005), referindo-se s bases
epistmicas da anlise crtica de Fairclough, apresentamos a Quadro 1 que representa, de
forma sinttica, as influncias tericas encontradas no postulado faircloughtiano:
Teorias/Escolas/Pensadores ContribuiesDa Pragmtica O princpio de linguagem como aoDe Pcheux A concepo de que a linguagem forma
material da ideologiaDa Lingustica Crtica O modo como casar um mtodo de anlise
lingustica (a Lingustica SistmicaFuncional, por exemplo) com uma teoriasocial do funcionamento da Linguagem
Da Filosofia A noo de HegemoniaDa Sociologia A noo de Estrutura Social, conforme
Anthony Giddens
8Mais adiante, essa forma de anlise ser explorada, quando tratarmos da perspectiva metodolgica.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
17/70
17
De Foucault A viso de discursoDe Bakhtin A noo de Dialogismo
Quadro 1: Bases epistmicas da ACD de Fairclough
Contudo, segundo Resende e Ramalho (2006), as principais noes que embasam a
Teoria Social do Discurso, postulada por Fairclough, vm dos trabalhos desenvolvidos pelo
filsofo francs Michel Foucault, sobretudo o princpio da linguagem como espao de luta
hegemnica. Dessa forma:
Fairclough [...] v em Foucault uma das grandes contribuies para a formulao daTeoria Social do Discurso. Para a ADC, importam, dentre as discussesfoucaultianas, sobretudo, o aspecto constitutivo do discurso, a interdependncia das
prticas discursivas, a natureza discursiva do poder, a natureza poltica do discursoe a natureza discursiva da mudana social(RESENDE e RAMALHO, 2006, p. 18)
Nesse sentido, destacamos ainda a presena do termo foucaltiano ordem de discurso
na obra de Fairclough (2001), quando este se refere regulao social do discurso, s relaes
interdiscursivas que se estabelecem no discurso, bem como mediao entre o discursivo e o
no discursivo. Note-se que a influncia foucaultiana grande, uma vez que em Foucault
(2008 [1970]) da ordem do discurso o fato de que em toda a sociedade a produo
discursiva [...] ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda porcerto nmero de procedimentos que tm por funo conjurar seus poderes e perigos, dominar
seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesada e temvel materialidade (FOUCAULT,
2008 [1970], p. 09), e tais caractersticas da produo discursiva esto, como veremos adiante,
diretamente interligadas concepo de discurso da ACD.
2.2 O DISCURSO EM ACD
O conceito de discurso , obviamente, de fundamental importncia para as propostas
em anlise de discurso; contudo, chegar a este conceito consiste numa tarefa rdua. Quando
falamos em discurso, a primeira considerao que devemos fazer : de que lugar terico
estamos falando? A importncia do lugar terico fundamental. Fairclough (2001) diz: ao
usar o termo discurso, proponho considerar o uso de linguagem como forma de prtica social
e no como atividade puramente individual ou reflexo de variveis situacionais
(FAIRCLOUGH, 2001, p. 90). Ao propor esta concepo de discurso, Fairclough fala do
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
18/70
18
lugar terico da ACD que, por sua vez, difere da concepo estruturalista de discurso (ou fala)
que, conforme Saussure, consiste numa atividade individual; e tambm diferente da
concepo sociolingustica que remete o discurso (de igual forma: tido como fala) a um mero
reflexo de variantes situacionais.
A posio de Fairclough traz, pelo menos, as seguintes implicaes: o discurso como
forma de prtica social , consequentemente, um modo de ao e, dessa forma, consiste
numa maneira que os sujeitos utilizam para agir no mundo e, tambm, sobre os outros9.
Destarte, se o discurso serve para agir, ento, deve ser necessria uma relao entre ele e as
estruturas sociais. Essa relao deve ser concebida como dialtica: se o discurso age no
mundo e pode ser usado pelos indivduos para agirem uns sobre os outros, o discurso tambm
constitudo (no sentido de ser restringido e moldado) pelas estruturas sociais que controlamvalores, relaes socais, relaes institucionais especficas etc., que, por seu turno, envolvem
as prticas scio-discursivas dos sujeitos sociais.
Para entendermos melhor a concepo de Fairclough, que relaciona o discurso s
estruturas sociais, tomemos Meurer (2005) e Pedro (1997).
Em Meurer (2005), referindo-se diferena entre discurso e texto, podemos encontrar
as seguintes informaes:
1- Ningum uma ilha. Todos esto inseridos em uma rede de relaes sociais,
agrupamentos socioculturais especficos;
2- Cada agrupamento sociocultural controlado por instituies que tem suas prticas,
seus valores, significados, demandas (desde a associao de moradores que controla a
conduta do condmino Igreja que zela pelos valores e comportamentos dos cristos);
3- Por ltimo, as prticas, os valores, os significados dos grupos so expressos e
articulados atravs da linguagem.
Assim, seria o discurso o conjunto de afirmaes que, articulados na linguagem,
expressam valores e significados das diferentes instituies (MEURER, 2005, p. 87), e o
9 Devemos entender prtica social como entidades organizacionais intermedirias entre estruturas e eventos(FAIRCLOUGH, 2003 apud MAGALHES, 2004, p. 115); e, dessa forma, alm de incluir o discurso, asprticas sociais incluem: aes, sujeitos e relaes sociais, instrumentos, objetos, tempo e lugar, formas deconscincia, valores etc. (MAGALHES, 2004, p. 115). Para exemplificar a funo da prtica social namediao entre estrutura social e evento discursivo, tomemos uma sala de aula. O evento discursivo seria a
prpria aula; a estruturasocialseria, por seu turno, as condies que viabilizam o acontecimento do evento: ainstituio, as hierarquias, as classes professor aluno, etc; a prticasocialorganizaria, ento, a manifestaoda estrutura no evento, regulando, por exemplo, os discursos que podem ser proferidos por professores e alunos,uma vez que estes ocupam diferentes lugares na estrutura social.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
19/70
19
texto a realizao lingustica na qual se manifesta o discurso (MEURER, 2005, p. 87).
Nesse sentido, se o discurso serve como veiculador dos valores e significados das instituies,
sendo, dessa forma, o discurso controlado por esses valores e significados, no podemos
deixar de inferir que o discurso tambm controla e molda tais valores e significados, pois
pelo discurso que eles podero ser reforados ou no. Ou seja, ao mesmo tempo em que
controlado por determinadas ideologias, o discurso tem o poder de refor-las, uma vez que
responsvel pela manuteno das ideologias e pela circulao destas na sociedade.
Em Pedro (1997), percebemos que os sujeitos sociais so sujeitos, no sentido de que
so sujeitados a determinados valores, prticas e ideologias de determinadas instituies; e
sociais, pois no esto sozinhos no mundo e se interligam uns com os outros, pois os valores a
que se submetem (e fazem submeter) so construes da sociedade. Assim:
Na Anlise Crtica do Discurso (ACD), encontramos um processo analtico quejulga os seres humanos e o uso lingustico como expresso de uma produorealizada em contextos sociais e culturais, orientados por formas ideolgicas edesigualdades sociais. O entendimento que encontramos explicitado remete para aconsiderao dos seres humanos como socializados e das subjetividades humanas edo uso lingustico como produzidos no seio de contextos sociais e culturais em quepredominam formas ideolgicas e desigualdades sociais (PEDRO, 1997, p. 21).
Vale dizer que o sujeito na concepo da ACD no como na perspectiva de anlise
de discurso de Pcheux: um lugar determinado na estrutura social (PCHEUX, 1993, p.
82), ou seja, um sujeito estritamente assujeitado. Em ACD, o sujeito subordinado s
instituies, s ideologias, mas no se faz subordinar de forma passiva e/ou mecnica. Em
ACD, um sujeito que est submetido a certa ideologias, pode tomar conscincia disso e
reivindicar sua libertao, quando por meio de uma srie de instrumentais (a prpria anlise
de discurso) consegue desvelar a situao em que est inserido.
Perceber que o discurso no deve ser simplificado como uma atividade puramente
individual ou um reflexo de variantes sociais requer ver o discurso de forma mais ampla:
como prtica social que constitui e constituda (d)as estruturas sociais que organizam as
sociedades. Essa viso de discurso faz-nos ver que o discurso repleto de propriedades
especficas e tais propriedades norteiam o(s) tipo(s) de anlise propostos em ACD.
2.2.1 As propriedades e os efeitos do discurso em ACD
J vimos que o discurso , em ACD, uma forma de prtica social e, desta forma,
controla e controlado por determinadas estruturas sociais. Assim, chegamos concluso de
que o discurso possui propriedades especificas que o constituem e que so responsveis pelo
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
20/70
20
fato de o discurso contribuir para a constituio de todas as dimenses da estrutura social que
direta ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas prprias normas e convenes, como
tambm relaes, identidades e instituies (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91).
Dessa forma, as propriedades do discurso que compem sua ordem permitem-nos
perceber que ele tem um poder construtivo trplice. Em outras palavras, o fato de o discurso
apresentar como propriedade participar da constituio de todas as dimenses da estrutura
social nos faz ver que o discurso atua na construo das dimenses da estrutura social, pelo
menos, em trs formas: em primeiro lugar10, o discurso contribui para a construo do que
variavelmente referido com identidades sociais e posies de sujeito para os sujeitos
sociais e os tipos de eu (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91); em segundo lugar, o discurso
contribui para construir as relaes sociais entre pessoas (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91); e,em terceiro lugar, o discurso contribui para a construo de sistemas de conhecimentos e
crenas (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91).
Segundo Meurer (2002), a representao da realidade diz respeito rede de
conhecimentos e crenas que, em seus textos, os indivduos revelam sobre diferentes aspectos
do mundo (MEURER, 2002, p. 20-21). Segundo o mesmo autor, as relaes sociais dizem
respeito s conexes, dependncias e entrelaamentos interpessoais, envolvendo os
participantes do evento discursivo (MEURER, 2002, p. 24); e a composio de identidadessociais, por seu turno, imbrica-se com as representaes da realidade que os indivduos criam
em seus textos e com os relacionamentos sociais que os indivduos articulam (MEURER,
2002, p. 26).
De acordo com essas afirmaes de Meurer (2002), podemos perceber que os efeitos
construtivos do discurso mantm uma relao de imbricamento. Isso quer dizer que no
podemos ver no discurso apenas um ou outro efeito, mas os trs atuando numa relao de
dependncia: quando afirmamos algo referente a uma identidade, ali esto tambmrepresentaes que fazemos de uma realidade e o modo como estabelecemos relaes com a
identidade em questo.
Na perspectiva terico-metodolgica da ACD, necessrio, em qualquer abordagem
situada nesta rede de estudos, focalizar em sua anlise os constituintes do discurso. Ou seja,
em qualquer anlise crtica do discurso de singular importncia focalizar as identidades, as
10 Fairclough quem diz que em primeiro lugaro discurso contribui para a construo de identidades. De igualmaneira, o estudioso classifica como segunda contribuio do discurso a construo de realidades sociais. Por
fim, a terceira contribuio, ainda seguindo a enumerao de Fairclough, seria a construo de sistemas deconhecimentos e crenas. Contudo, mesmo que classificados em primeiro, segundo e terceiro, no podemosdizer que h uma hierarquia entre os constitutivos do discurso, uma vez que na medida em que o discurso servepara construir identidades, ele representa realidades e constri vnculos sociais.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
21/70
21
relaes sociais e as representaes de sistemas e crenas manifestadas no discurso em
anlise.
Na perspectiva de Fairclough (2001), analisar o discurso enquanto texto, prtica
discursiva e prtica social uma forma de se chegar aos constituintes do discurso. Esta
metodologia conhecida, conforme Fairclough (2001), como concepo tridimensional do
discurso.
2.3 ASPECTOS METODOLGICOS DA ACD
De acordo com o que vimos anteriormente, a ACD constitui uma rede de estudos e,
como tal, congrega abordagens diferentes. Isso significa dizer que cada abordagem terica
inserida na ACD poder ter sua prpria metodologia. Nesta seo, focalizaremos a abordagem
metodolgica encontrada dos trabalhos de Fairclough (2001), a Concepo Tridimensional do
Discurso, uma vez que a anlise das msicas de pagode desenvolvida nesta monografia
adotar tal mtodo.
Conforme sugere Fairclough, a concepo tridimensional do discurso [...] uma
tentativa de reunir trs tradies analticas, cada uma das quais indispensvel na anlise do
discurso (FAIRCLOUGH, 2001, p. 100). Segundo o autor, nesse enquadre metodolgico
esto imbricadas a tradio de anlise textual conforme a Lingustica, e as tradies
macrossociolgicas e microssociolgicas que, respectivamente, do conta da anlise das
prticas sociais em relao s estruturas sociais, bem com das prticas sociais em relao s
reprodues individuais de discursos socialmente compartilhados.
O modelo tridimensional do discurso pode ser representado conforme a Figura 1
abaixo:
Figura 1: Concepo tridimensional do discursoFonte: Fairclough (2001, p. 101).
TEXTOPRTICA DISCURSIVA
PRTICA SOCIAL
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
22/70
22
O modelo de anlise de texto dividido em categorias textuais. Nesse sentido,
procura-se, no momento da anlise textual, focalizar o vocabulrio, a gramtica, a coeso,bem como a estrutura textual. Conforme salientam Resende e Ramalho:
O estudo do vocabulrio trata das palavras individuais neologismos,lexicalizaes, relexicalizaes de domnios da experincia, superexpresso,relaes entre palavras e sentidos e a gramtica, das palavras combinadas emfrases. A coeso trata das ligaes entre frases, atravs de mecanismos de referncia,palavras de mesmo campo semntico, sinnimos prximos e conjunes. A estruturatextual refere-se s propriedades organizacionais do texto em larga escala, smaneiras e ordem em que os elementos so combinados. (RESENDE eRAMALHO, 2004, p. 187)
A anlise de prticas discursivas, por sua vez, procura sinalizar para a produo,
distribuio e consumo dos textos (FAIRCLOUGH, 2001, p. 101). Analisam-se tambm as
categorias fora, coerncia e intertextualidade. Segundo Resende e Ramalho (2004):
A fora dos enunciados refere-se aos tipos de atos de fala desempenhados; acoerncia, s conexes e inferncias necessrias e seu apoio em pressupostosideolgicos; a anlise intertextual refere-se s relaes dialgicas entre textos eoutros textos (intertextualidade) e s relaes entre ordens de discurso(interdiscursividade) (RESENDE e RAMALHO, 2004, p. 187)
Por fim, a anlise da prtica social relaciona-se aos aspectos ideolgicos e
hegemnicos no discurso analisado. Nessa instncia de anlise, o analista crtico do discurso
deve focalizar a categoria ideologia e, dessa forma, observar os aspectos do texto que
podem ser investidos ideologicamente: relaes de poder, pressuposies, estilo, metforas.
Alm disso, o analista deve focalizar a hegemonia e, assim, observar as orientaes da
prtica social, ou seja, orientaes econmicas, polticas, culturais. Procura-se, assim,perceber como os textos servem como instrumento de luta hegemnica, colaborando com a
manifestao implcita ou explcita de fatores ideolgicos.
Em resumo, podemos sumarizar a concepo tridimensional do discurso em
Fairclough nas categorias analticas vistas no Quadro 2, a seguir:
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
23/70
23
TEXTO PRTICA DISCURSIVA PRTICA SOCIAL
- Vocabulrio;
- Gramtica;
-Coeso;
- Estrutura textual.
- Produo;
- Distribuio;
- Consumo;
- Contexto;
- Fora;
- Coerncia;
- Intertextualidade.
- Ideologia:
- sentidos;
- pressuposies;
- metforas.
- Hegemonia:
- orientaes polticas;
- econmicas;
- culturais;
- ideolgicas.Quadro 2: Categorias analticas propostas no modelo tridimensional
Fonte: Resende e Ramalho (2004, p. 188)
importante sinalizar que esta proposta metodolgica, apesar de muito usada em
diversas abordagens em ACD, no a nica praticada nesta rede de estudos. Conforme
sinalizam Resende e Ramalho (2004), o prprio Fairclough, em recentes trabalhos com a
pesquisadora Lilie Chouliaraki, vem desenvolvendo um modelo metodolgico, chamado
Articulao entre prticas que tem por objetivo uma prtica terica emancipatria. Emsuma, o enquadre de Chouliaraki e Fairclough reflete as mudanas sociais contemporneas e
sobre possibilidades de prticas emancipatrias em estruturas cristalizadas na prtica social.
Nesse sentido, para alcanar promover uma anlise nesse enquadre terico-metodolgico,
necessrio postular o discurso no contexto da Modernidade Tardia, isto : (i) numa viso
cientfica de crtica social; (ii) no campo da pesquisa social crtica sobre a modernidade tardia;
e (iii) na teoria e na anlise lingustica e semitica (RESENDE, RAMALHO, 2004, p. 190)
2.4 IDEOLOGIA E HEGEMONIA
Na proposta da teoria tridimensional de anlise, a qual apresentamos acima, a
percepo do discurso como prtica social (que constitui a terceira dimenso da proposta) s
pode ser postulada em termos de ideologia e hegemonia. A proposta tridimensional de anlisediscursiva, em sua dimenso da prtica social, concebe o discurso em relao ideologia e ao
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
24/70
24
poder (como hegemonia) e em relao evoluo das relaes de poder como luta
hegemnica (FAIRCLOUGH, 2001, p. 116).
Reconhecendo a importncia de Althusser para os debates sobre discurso e ideologia,
Fairclough (2001) ratifica os postulados deste pensador, asseverando que a ideologia tem
existncia material nas prticas das instituies e isso permite a investigao das prticas
discursivas como formas matrias da ideologia. Ou seja, ressalta-se o fato de que a ideologia
interpela os sujeitos e, por isso, foi um erro da Lingustica ignorar por tanto tempo o sujeito,
j que este um efeito ideolgico; e, por fim, diz que os aparelhos ideolgicos do estado
so lugares para a luta de classes e, por consequncia, luta no/do discurso11. (FAIRCLOUGH,
2001).
Contudo, ao mesmo tempo em que reconhece a importncia dos estudos de Althusserpara as reflexes sobre a relao discurso-ideologia, mantendo, dessa forma, as asseres
ditas acima na sua prpria teoria de anlise de discurso, Fairclough (2001) mantm uma
postura de embate com o terico, apontando suas limitaes. O trabalho de Althusser, para
Fairclough (2001, p. 117) contm uma contradio no-resolvida entre uma viso de
dominao que imposio unilateral e reproduo de uma ideologia dominante, em que a
ideologia figura como um cimento social universal. Ou seja, porque os sujeitos so
assujeitados por uma ideologia que o aprisionaria, seria praticamente impossvel a mudanadiscursiva e social.
Alm disso, para ele, o fato de Althusser considerar os aparelhos ideolgicos de estado
como local e marco delimitador de uma constante luta de classe, deu a ideia de que essa luta
sempre est em equilbrio, quando, na verdade, o que sabemos que o papel da hegemonia e
do discurso hegemnico um determinante para as lutas de classes.
Nesse sentido, Fairclough (2001) considera que a ideologia o modo pelo qual a
realidade construda, representada ou significada de forma a manter a produo das relaesde dominao. Ele diz:
Entendo que as ideologias so significaes/construes da realidade (o mundofsico, as relaes sociais, as identidades sociais) que so construdas em vriasdimenses das formas/sentidos das prticas discursivas e que contribuem para aproduo, a reproduo ou as transformaes das relaes de dominao. [...]. Asideologias embutidas nas prticas discursivas so muito eficazes quando se tornamnaturalizadas e atingem statusde senso comum. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 117)
11 Se com a origem da ACD, pudemos reconhecer que ACD e ADF tm bases distintas, agora percebemospontos em comum entre as teorias, uma vez que notadamente um dos traos principais da ADF, fundada por
Pcheux, o fato de o discurso materializar ideologias, de ser o sujeito um efeito ideolgico, pois o individuo interpelado em sujeito pela ideologia (PCHEUX, 1988), alm de o discurso ser local de manifestao da luta declasses. Salientamos, contudo, o que j dissemos anteriormente: para a ACD o sujeito capaz de se dar conta deque est submetido a essa ou aquela ideologia, caracterstica que o sujeito da ADF no tem.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
25/70
25
Assim, torna-se um foco da ACD desvelar as ideologias usadas na manuteno da
dominao. Dominao esta, vale dizer, tida como poder, controle ou hegemonia. Van Dijk
(2008) sinaliza que, apesar da diversidade dos estudos crticos do discurso e sua
metodologias, h um intento maior que est na base de todas as abordagens: o estudo da
reproduo discursiva do abuso de poder (VAN DIJK, 2008, p. 15)
Em Fairclough (1997, p. 80) j encontramos suas postulaes iniciais acerca do
conceito de hegemonia. Para ele, a hegemonia implicaria no desenvolvimento de prticas que
naturalizam relaes e ideologias especficas e que so, na sua maioria, prticas discursivas. O
desenvolvimento dessas prticas se d em vrios domnios da sociedade: desde o trabalho s
atividades de lazer.A ideologia e a hegemonia se relacionam para manter o controle social. A ideologia,
como nos aponta Fairclough (2001), um sistema de significaes responsveis pela
manuteno da dominao e se torna mais eficiente quando se torna senso comum. Quando
chega a esse status, passamos a lidar com o hegemnico em termos de discurso. Ou seja, o
discurso hegemnico da pobreza, o discurso hegemnico do racismo, do sexismo, da
imigrao etc. Segundo Van Dijk (2008), a hegemonia responsvel pelo controle do poder
social, do contexto e do acesso ao discurso ativo12
, e at do controle da mente em termos decognio.
Contudo, Pedro alerta que o conceito de hegemonia sugere que uma anlise crtica do
discurso e da dominao est longe de poder ser fcil e, s vezes mesmo, clara, j que muitas
formas de dominao parece serem produzidas conjuntamente, atravs de modos intricados de
interao social e discursiva (PEDRO, 1997, p. 29)
Cabe, ento, ao analista crtico do discurso desvelar o discurso hegemnico presentes
nos textos que circulam na sociedade, os quais representam as ideologias responsveis pelocontrole social. Dessa forma, o analista crtico de discurso deve busca subsdios nas mais
diversas teorias sociais para dar conta de seu objetivo. por isso que a ACD ,
essencialmente, interdisciplinar.
Passemos ento a refletir sobre o carter interdisciplinar da ACD.
12O discurso ativo ope-se ao discurso passivo. o discurso responsvel pelo controle, ou seja, o discurso damdia, da escola, da igreja... o discurso dos aparelhos ideolgicos.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
26/70
26
2.5 O CARTER INTERDISCIPLINAR DA ACD
Desde seu surgimento, a ACD pode ser intitulada interdisciplinar. Ao falarmos das
bases epistmicas dessa rede de estudos, dissemos que muitas foram as teorias que
contriburam com o programa da ACD. Dissemos ainda que, segundo Fairclough, uma anlise
de discurso eficiente consegue relacionar mtodos de analisar a linguagem, oriundos da
Lingustica, com estudos da linguagem com o pensamento social. Tudo isso j aponta o
carter interdisciplinar da ACD.
Pagano e Magalhes (2005), chegam a considerar que o hibridismo entre ACD e
outras teorias, em especial as teorias culturais, um hibridismo necessrio. Isso porque umconceito mobilizado para uma anlise de discurso pode ter ancoragem em outras ideias
tericas.
o caso do conceito de identidade: muito presente na ACD, foco da anlise que
apresentamos aqui, e tema de discusso que, conforme Mendes (2009), talvez tenha mais
destaque hoje.
A ACD uma rede de estudos interdisciplinar por reconhecer a necessidade de todo
suporte que auxilie na anlise discursiva da dominao. No caso de nosso trabalho, tratamosda identidade com base na ACD e reconhecemos a necessidade da busca do auxilio
supracitado. Dessa forma, recorremos aos Estudos Culturais e Lingustica Aplicada, porque
temos a conscincia de que ambas partem do pressuposto de que a linguagem um fenmeno
social e cultural (isto : tem um pensamento social da linguagem) e tm uma ampla gama de
estudos em identidade considerando a contemporaneidade e o movimento discursivo que
constitui a identidade.
No captulo que segue, discorreremos mais detidamente sobre o fenmeno daidentidade para chegarmos em sua constituio discursiva e, dessa forma, termos subsdios
para entender como se configura a identidade negra nas msicas de pagode que analisamos
nesse trabalho.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
27/70
27
Quando a identidade perde as ncoras sociais que a faziamparecer natural, predeterminada e inegocivel, aidentificao se torna cada vez mais importante para os
indivduos que buscam desesperadamente um ns a quepossam pedir acesso(Zygmunt Bauman)
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
28/70
28
3 A QUESTO DA IDENTIDADE NA CONTEMPORANEIDADE
A questo da identidadetem sido amplamente discutida hodiernamente. Tanto que jse tornou lugar comum algumas asseres do tipo no fcil definir identidade, o conceito
de identidade complexo, multifacetado etc. Para aqueles que situam a questo no escopo
das discusses sobre a ps-modernidade, seja pelo ponto de vista dos Estudos Culturais, seja
pelo vis da Lingustica Aplicada ou das anlises do discurso, uma srie de outras asseres j
esto tambm se tornando senso comum, a saber: o sujeito e as identidades so
fragmentadas (MOITA LOPES, 2002, p. 16); os sujeitos possuem diversas identidades que
podem, muitas vezes, ser contraditrias e no definidas entre si, as identidades no sodefinidas a priori, mas a partir das mudanas estruturais e institucionais pelas quais o mundo
tem passado (HALL, 2006, p. 17) etc.
A respeito dessas caractersticas da identidade, que so algumas vezes repetidas em
exausto, Possenti (2007) nos diz:
bvio que identidades so construes histricas. evidente que no se trata detraos de tipos essenciais. Diria que j deveramos considerar esta questo vencida,
isto , que nem deveramos mais repetir esta declarao, porque ela supe quehaveria um discurso adversrio, uma posio que mereceria ser combatida, quedefenderia que a identidade uma questo de traos universais e permanentes, trans-histricos e esse discurso no existe mais. (POSSENTI, 2007, p. 186)
A obviedade acerca do fato de a identidade ser uma construo histrica, a qual nos
aponta Possenti (2007), uma ratificao do que nos apresenta Orlandi (1998), que nos diz
que considerar a identidade um movimento na histria admitir que ela no sempre igual a
si mesma.
Essas asseres que acabamos de caracterizar como a voz do senso comum nosestudos do tema identidade so fruto de uma srie de reflexes sobre o assunto que, por
mais que tenham chegado a concluses como estas, esto longe de esclarecer o tema
plenamente.
O mundo acadmico tem conhecimento e difunde que as identidades so
fragmentadas, porque os sujeitos assim o so; que as identidades esto em evidente crise; que
as identidades esto longe de ser um mero reflexo do fator biolgico; j admite que a
linguagem constri identidades e, por conseguinte, marca diferenas, alm de ser fruto de um
processo maior de mudana social. Isso to verdade que Navarro (2008) nos aponta que:
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
29/70
29
As inmeras publicaes disponveis hoje no pas sobre o tema da identidade soemblemticas de um esforo terico que se concentra em compreender as causas econsequncias do que est sendo caracterizado como fragmentao e perda dosreferenciais que garantiam certa estabilidade s imagens de identidades pessoais ecoletivas (NAVARRO, 2008, p. 89)
Mas, afinal, se j se sabe tantas coisas acerca do que vem a ser e do que vem a
constituir a identidade, por que continuar a estud-la? J dissemos: porque ainda estamos
muito longe de chegar a um ponto final sobre tudo o que diz respeito ao entendimento da
identidade e sua constituio na contemporaneidade (se que esse o objetivo). O que
queremos dizer que, em geral, as pesquisas sobre identidade no esto buscando uma
explicao definitiva acerca do tema. O que se pretende, ento, compreender quais sos os
diversos processos de constituio identitria, o que vem motivando esses processos deidentificao, como a (re)afirmao de uma identidade mobiliza certas estratgias (dentre elas
estratgias de linguagem) etc.
Prova disso o que nos expe Stuart Hall, importante nome dos Estudos Culturais:
O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estvel, estse tornado fragmentado; composto no de uma nica, mas de vrias identidades,algumas vezes contraditrias ou no resolvidas. Correspondentemente, asidentidades, que compunham as paisagens sociais l fora e que asseguravam nossaconformidade subjetiva com as necessidades objetivas da cultura, esto entrando
em colapso, como resultado de mudanas estruturais e institucionais. O prprioprocesso de identificao, atravs do qual nos projetamos em nossas identidadesculturais, tornou-se mais provisrio, varivel e problemtico. Esse processo produzo sujeito ps-moderno, conceptualizado como no tendo uma identidade fixa,essencial ou permanente. (HALL, 2006, p. 12) (grifos nossos)
Assim, podemos dizer que o que move as inquiries atuais sobre a identidade, alm
do esforo emblemtico do qual nos falou Navarro (2008), a compreensodo que grifamos
na citao de Hall (2006) que agora parafraseamos: dos diferentes processos de identificao
e projeo das identidades que atuam na constituio das identidades culturais.
O que queremos dizer que mesmo tendo cincia de que os sujeitos e as identidades
so fragmentados devido aos processos de mudanas estruturais e institucionais pelas quais o
mundo tem passado (HALL, 2006), existe a necessidade de compreendermos como - por meio
do que - os sujeitos se identificam com esta ou aquela identidade, com este ou aquele grupo,
at mesmo para que possamos compreender que tipos de mudanas estruturais e institucionais
esto ocorrendo.
Nesse sentido, neste captulo vamos trazer baila algumas ideias dos estudos da
identidade na ps-modernidade, a saber: a relao cultura e identidade, a questo da
fragmentao identitria e as noes de pertencimento e diferena. Em seguida, focalizaremos
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
30/70
30
o interesse da ACD pela questo identitria, tendo em vista que na ACD o discurso tem o
poder de construir discursivamente identidades (FAIRCLOUGH, 2001), e justamente a
construo discursiva de identidades um dos focos desta monografia.
3.1 IDENTIDADE E CULTURA: CONCEITOS INDISSOCIVEIS.
Para falarmos em identidades culturais, temos a necessidade de estudar a noo de
cultura. Segundo Mendes (2009, p. 743) pensar a identidade tambm pensar a cultura,
afinal, cultura e identidade so dimenses muito prximas, as quais se constroem atravs de
processos simblicos complexos, ancorados nas aes e relaes desenvolvidas na vida emsociedade. Essas aes e relaes que so desenvolvidas na vida em sociedade podem,
segundo Nstor Canclini, ser entendidas como a prpria determinao da cultura, pois, para
ele a cultura apresenta-se como processos sociais (CANCLINI, 2005, p. 41). E, nesse
sentido, esses processos sociais so os responsveis pela produo, circulao e consumo da
significao na vida social que, por sua vez, se do, tambm, atravs dos processos de
identificao.
O que acabamos de mostrar que a construo (ou reconstruo) de uma identidadeocorre segundo os princpios culturais, e a cultura, por seu turno, identificvel atravs dos
processos simblicos que subsidiam a identidade. A esse respeito, Samir Nar diz que la
identidad es precisamente el ncleo de todo culturalismo (NAR, 2006, p. 21). Para ele a
identidade responsvel pela identificao de uma cultura, pois ela representa a cultura.
Nessa linha de pensamento, Nar defende que a cultura (assim como a identidade) no
deve ser pensada em termos essencialistas, pois as culturas esto em dilogo. Defende ele:
La temtica del dilogo de las culturas parece obvia para todo el mundo, pero en laactualidad tenemos que decir, argumentar, por qu necessitamos ms que nunca ese dilogo
(NAR, 2006, p. 09).
Assim, se, conforme Nar (2006), as identidades so representaes culturais e as
culturas esto em dilogo e, por isso, no devem ser pensadas em termos essencialistas, as
identidades tambm no podem ser homogneas, estticas, mas mltiplas. Isso quer dizer que
estudar os processos de construo identitria tambm estudar os processos simblicos
culturais complexos.
Ainda no que diz respeito questo da relao identidade e cultura, trazemos para a
discusso as ideias de Homi Bhabha, que busca problematizar a articulao das diferenas
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
31/70
31
culturais na constituio de posies de sujeito, ou seja, identidades. Segundo ele: o que
teoricamente inovador e politicamente crucial a necessidade de passar das narrativas de
subjetividade originrias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que so
produzidos na articulao de diferenas culturais (BHABHA, 2007, p. 20). Isso quer dizer
que a identidade se relaciona com a diferena tambm atravs de um movimento cultural. A
diferena, a contraparte da identidade (MENDES, 2009) marca a prpria identidade, pois se
constitui culturalmente.
A esse respeito Bourdieu (1979, p 558 apudMOITA LOPES, 2002, p. 16) diz que a
identidade social consiste na diferena, e a diferena afirmada contra aquilo que mais
prximo e que representa a maior ameaa. Seria, dessa forma, a identidade uma marcao da
diferena entre o mesmo e o diferente (ORLANDI, 2007), ou seja, a identidade sereafirmaria em oposio ao que dela difere culturalmente.
Vale dizer ainda que, quando se fala em identidade enquanto representao cultural ou
em cultura como instncia em que cada grupo organiza sua identidade (CANCLINI, 2005,
p. 43), tambm devemos entender o que significa representao. Uma identidade no o
espelho que representaumacultura, pois nem a identidade um espelho e nem a cultura
algo totalmente definido que se possa refletir nesse espelho. Isso se d, pois as culturas
tendem a ser sistemas de significados e costumes com limites pouco definidos. E tambmpouco estveis. (CASHMORE, 2000, p. 154).
Ao falarmos em identidade enquanto representao cultural, estamos, na verdade,
dizendo que as identidades nascem dos processos sociais (aos quais se refere Canclini), mas
esses processos culturais no so fixos, estticos ou mesmo estabilizados. Eles so definidos a
partir das mudanas estruturais pelas quais as sociedades tm passado (HALL, 2006) e pelo
contexto de dilogo cultural em que esses processos so forma(ta)dos. Desse modo, devemos
pensar a representao como uma forma de significao da realidade (vista tanto do ponto devista do eu quanto do outro). Nessa perspectiva, a representao teria:
[...] trs funes sociais: de representao coletiva, que organiza os esquemas declassificao, de aes e de julgamentos; de exibio do ser social por meio dosrituais, estilizaes de vida e signos simblicos que os tornam visveis; depresentificao, que uma forma de encarnao, em um representante, de umaidentidade coletiva. [...] Assim, as representaes se configuram em discursossociais que testemunham, alguns, sobre o saber de conhecimento sobre o mundo,outros, sobre um saber de crenas que encerram sistemas de valores dos quais osindivduos se dotam para julgar a realidade. (MAIGUENEAU; CHARAUDEAU,2008, p. 433)
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
32/70
32
Assim, ainda que falemos em cultura negra, cultura brasileira e, assim, falemos
tambm em identidade negra e identidade brasileira, nem as culturas e nem as identidades
negra e brasileira so blocos fechados, determinados. O que nos faz denominar essa ou aquela
cultura so os processos de determinao histrico-ideolgicos (ORLANDI, 1998) e, tambm,
os esteretipos sociais (POSSENTI, 2007), que so responsveis pelas crenas, aes e
julgamentos de determinao cultural-identitria.
Com o que acabamos de expor, pudemos refletir sobre o envolvimento da cultura e da
identidade. A cultura mais do que um conjunto de obras de arte, ou materiais, signos e
smbolos das classes dominantes: trata-se, na verdade, como j dissemos, de processos sociais
que so produzidos, consumidos e se consomem na histria social (CANCLINI, 2005). A
identidade, por seu turno, est relacionada com a cultura de tal forma que representa a culturaao mesmo tempo em que a identifica. Assim, o dilogo entre as culturas e as diferenas
culturais se relacionam com (e at podemos pensar que motivam) a multiplicidade e a
fragmentao identitria, bem com os processos de diferena identitria.
, pois, sobre a questo da fragmentao identitria e sobre as noes de diferena e
pertencimento que as sees seguintes se detero com mais acuro.
3.2 A QUESTO DA FRAGMENTAO DAS IDENTIDADES
Hall (2006, p. 07), partindo do princpio de que as velhas identidades [...] esto em
declnio, nos diz que:
Um tipo diferente de mudana estrutural est transformando as sociedades modernasno final do sculo XX. Isso est fragmentando as paisagens culturais de classe,gnero, sexualidade, etnia, raa e nacionalidade, que, no passado, nos tinham
fornecido slidas localizaes como indivduos sociais. Estas transformaes estotambm mudando nossas identidades pessoais, abalando a idia que temos de nsprprios como sujeitos integrados. Esta perda de um sentido de si estvel chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentrao do sujeito. Esse duplodeslocamento descentrao dos indivduos tanto de seu lugar no mundo social ecultural quanto de si mesmos constitui uma crise de identidade para o indivduo.(HALL, 2006, p. 09)
A partir do exposto, o terico questiona-se se no a prpria modernidade que est em
transformao e reflete sobre o assunto, chegando concluso de que dentro daquilo que
chamamos mundo ps-moderno ns mesmos somos como sujeitos-ps: isto , sujeitos
que no podem ser pensados a partir das concepes essencialistas que procuram fixar as
identidades. Hall (2006) estabelece, ento, uma relao entre as mudanas estruturais e
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
33/70
33
institucionais pelas quais o mundo tem passado e a posio ocupada pelo sujeito nesse
contexto. As mudanas estruturais s quais se refere Hall (2006) afetaram as definies do
termo sujeito, essencial para a compreenso da identidade.
Hodiernamente, devemos entender o conceito de sujeito como um ser inserido e
afetado pelo mundo. Apesar de a concepo de sujeito variar de acordo com a teoria em que
explorada, consensual que o termo sujeito uma categoria que caracteriza o indivduo
enquanto elemento que se relaciona de diferentes modos e formas com a sociedade da qual faz
parte. No que tange identidade, poderamos dizer que cada concepo de sujeito
desenvolvida ao longo da histria evocaria uma noo de identidade. Assim, sabemos que
pelo menos trs concepes de sujeito se desenvolveram na histria dos estudos da relao
entre o homem e a histria, a saber: o sujeito do Iluminismo; o sujeito sociolgico; e o sujeitops-moderno. Em consequncia disso, trs concepes de identidade so identificadas na
associao com essas concepes de sujeito.
O sujeito do Iluminismo seria o sujeito centrado, unificado e dotado de uma
essncia plena. Assim, o centro do eu era a identidade da pessoa (HALL, 2006, p. 11). Ou
seja, se o sujeito do Iluminismo centrado em si mesmo, ele est no mundo, mas no
afetado pelo mundo. Sua identidade j foi definida a priori: a partir do seu nascimento ele
identificado por um nome e tudo que fizer no mundo tem inspirao prpria, j que suaessncia no permite influncia. Nesse sentido, a identidade do sujeito do Iluminismo a sua
carteira de identidade ele apenas ele mesmo.
Essa ideia, perdurou durante o Iluminismo, perodo em que se preconizava o
racionalismo e um certo cientificismo, pois foi considerado o perodo neo-clssico por
retomar concepes dos gregos clssicos. Porm, a Idade Moderna inaugura uma nova forma
de pensar; forma esta que se opunha ao racionalismo do Iluminismo e propunha uma
valorizao da subjetividade do sujeito. A forma moderna de pensar o sujeito superou a formailuminista por afirmar a existncia de um ncleo exterior ao sujeito com o qual ele era
obrigado a se relacionar
Nessa linha de pensamento, o sujeito deixa de ser auto-suficiente, fechado em si
mesmo e pensado a partir da relao entre o eu e o outro. Os interacionistas simblicos
(HALL, 2006, p. 11) da sociologia comearam a pensar a complexidade do mundo moderno
e, em sua perspectiva, a essncia do eu no deve ser absoluta, mas forma(ta)da na relao com
o outro e, assim, a identidade desse sujeito seria concebida na mediao entre o eu e o outro.
Essa a identidade do sujeito sociolgico.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
34/70
34
Argumenta-se, contudo, que esta forma de ver o sujeito e a identidade, mesmo que j
observe as mudanas sociais, acaba por estabilizar o sujeito e o mundo cultural, uma vez que
a identidade passa a ser a costura do sujeito estrutura (HALL, 2006). Isto : de um lado h
uma abertura das noes de sujeito e de identidade, j que a constituio de ambas as
categorias d-se considerando o mundo exterior; mas, por outro lado, fecha-se a noo de
sujeito, j que sua identidade o ataria estrutura social. Para Hall (2006, p. 12) Estabiliza
tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos
reciprocamente mais unificados e predizveis.
Depois do exposto, chamamos ateno para a terceira concepo de sujeito e
identidade que se tornou aquela atualmente desenvolvida e tomada como ponto de partida
para os estudos sobre identidade na contemporaneidade, em diversas reas do saber. aidentidade do sujeito ps-moderno. O sujeito ps-moderno aquele que assume variadas
identidades em diferentes contextos. Elas no so unificadas ao redor de um eu coerente,
podendo, muitas vezes, ser contraditrias. Alm disso, essas identidades no so definidas
biologicamente, mas historicamente, pois a identidade um movimento na histria
(ORLANDI, 1998, p. 204)
Do ponto de vista da linha dos Estudos Culturais a que se filia o pensamento de Hall
(2006), foram as mudanas estruturais e institucionais as responsveis pela fragmentao daidentidade. Para ns, este postulado importante em dois aspectos. Num plano lato, para
entendermos que as identidades no so definidas a priori, ou seja, no se pode definir uma
identidade apenas e somente do ponto de vista biolgico, por exemplo, tendo em vista que as
mudanas pelas quais a contemporaneidade passa afeta fortemente a postulao identitria.
Num plano stricto, este fato interfere diretamente na nossa anlise, pois afirmar em uma
msica de pagode uma identidade negra mais do que ressaltar uma caracterstica
biolgica, , antes de tudo, uma tentativa de reconstruir uma identidade perdida na poca doprocesso ps-abolio da histria social brasileira.
Nesse sentido, lembremos que uma pessoa fenotipicamente negra pode denominar-se
parda ou morena, ou mesmo branca, com o intuito de desassociar sua imagem de um
passado em que ser negro inevitavelmente significava ser escravo. o que afirma Oliveira
(2003) para o caso da Bahia. Segundo este autor, a negao do negro na sociedade baiana tem
ligao direta com a condio de escravido em que este se encontrava. Era a condio de
escravo que fazia do negro um negro, e tal concepo se estende at aps a Abolio da
Escravatura: A questo do negro na Bahia e em Salvador , no princpio, negada: a
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
35/70
35
condio de escravo que transforma o negro em negro (OLIVEIRA, 2003, p. 87). Nessa
linha de pensamento, Fonseca (2000) afirma que:
A cor da pele, mesmo quando esmaecida pelo mito da harmonia racial, semprerecorrncia a um sistema de relaes em que ser negro continua a ser significado porformas de despersonalizao construdas pelo iderio escravocrata. Por isso, sobreos indivduos marcados pela cor negra da pele, a violncia pode ser exercida comoatividade natural (...) (FONSECA, 2000, p. 97).
Isso quer dizer que a negao do negro comea pelo fato de este ter sido escravo.
Dessa forma, pode-se asseverar que ainda est no imaginrio da sociedade brasileira a
lembrana desse passado negro; logo, dentre as inmeras significaes que o signo negro
possa trazer, est a condio de escravo.
Acrescido a este fator est a questo da mestiagem ou miscigenao, muito forte emSalvador nos tempos coloniais e, tambm, nos atuais. No contexto da mestiagem, novas
identidades comearam a nascer e, com isso, abre-se um leque de possibilidades identitrias
que colocam a identidade negra, com toda sua carga escrava, de lado. O fato de poder ser
considerado pardo, mulato ou moreno marca a diferena entre um escravo e um ser
livre, pelo menos aparentemente. Em detrimento de outras identidades que possibilitem a
diferena que o conceito negro desaparece. o que afirma Oliveira (2003), referindo-se
questo negra na Bahia e em Salvador, ao dizer:
Os negros desapareceram como conceito, embora at hoje se encontrem na Bahiaos negros mais negros do Brasil. Em seu lugar, os pardos do censo oficial e osmulatos. Quase todo mundo na Bahia e em Salvador mulato; ainda em 1950 ocenso assinalava: na populao de 10 anos e mais da Bahia, 50% de pardos, 20%de pretos e 29% de brancos. (OLIVEIRA, 2003, p. 88)
E ainda:
Os pardos constituem o ncleo daquela indiferena, da qual no est excluda aprpria auto-representao do ego: a fronteira que separa o preto do pardo autodeclarada pelo informante, num movimento de introspeco da indiferena
social, mas em que certamente ser negro lembra ter sido escravo. de novo asituao original do trabalho que pe a cor como referente. (OLIVEIRA, 2003, p.89)
Tudo isso, finalmente, para ratificar a ideia de Hall (2006): as identidades no so
categorias fixas, homogneas, ao contrrio, so fluidas, heterogneas e at contraditrias; as
identidades no podem, nesse sentido, ser definidas priori; as identidades esto se
fragmentando em consequncia das mudanas estruturais e institucionais pelas quais o mundo
tem passado. Tomemos como exemplo o exposto sobre a condio do negro na Bahia, em que
a definio da negritude est(va) muito mais ligada escravido do que ao carter biolgico,
propriamente dito.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
36/70
36
3.3 IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E DIFERENA
Quando falamos depertencimentoe de diferenanas teorizaes acerca da identidade,
estamos, necessariamente, tratando da alteridade, a entidade que marca aquele que no sou
eu, categoria que define o outro13que designa o exterior, o social constitutivo do sujeito. Os
conceitos de pertencimento, diferena e alteridade mantm uma relao indelvel.
3.3.1 No caso do Pertencimento...
No caso do pertencimento, a alteridade define o outro que no sou eu, mas que
compartilha comigo de ideais, princpios, ideologias e discursos. um membro dacomunidade da qual o sujeito faz parte. Nesse aspecto, trazemos algumas formulaes de
Zigmunt Bauman sobre comunidade-pertencimento-identidade. Para ele:
comum afirmar que as comunidades (s quais as identidades se referem comosendo as entidades que as definem) so de dois tipos. Existem comunidades de vidae de destino, cujos membros [...] vivem juntos numa ligao absoluta, e outras queso fundidas unicamente por idias ou por uma variedade de princpios. A questoda identidade s surge com a exposio a comunidades da segunda categoria eapenas porque existe mais de uma idia para evocar e manter unida a comunidade
fundida por idias a que se exposto em nosso mundo de diversidades epolicultural. porque existem tantas dessas idias e princpios em tono dos quais sedesenvolvem essas comunidades de indivduos que acreditam que precisocomparar, fazer escolhas, faz-las repetidamente, reconsiderar escolhas j feitas emoutras ocasies, tentar conciliar demandas contraditrias e frequentementeincompatveis. (BAUMAN, 2005, p. 17)
No que se refere s palavras de Bauman (2005), podemos perceber que as identidades
do-se na interao/integrao com as comunidades ideolgicas, se assim podemos cham-
las, mas no deixam de ser cambiantes, flutuantes. Isso quer dizer que os sujeitos podem
pertencer a mais de uma comunidade, e isso que constitui sua fluidez: o sujeito joga nosentido de conciliar, comparar, mediar os princpios das comunidades das quais faz parte e
nesse entremeio que sua identidade forjada. Da surgem os conflitos, as relaes de
contradio ou de adio.
Para exemplificar o que acabamos de dizer, tomemos um jovem protestante, ou
mesmo catlico, que comea a se inserir (e se identificar - pertencer) no ambiente acadmico.
Assim, esse sujeito adentraria em um espao dominado pelo discurso ceticista, mas sem
13Em AD, comum a distino entre o outro e Outro. Com letra minscula, outro simboliza o exterior,um outro sujeito social. Com letra maiscula, o Outro quer dizer a presena do discurso-Outro no inconscientedo sujeito, as vozes das instituies (famlia, escola, igreja) que deixam suas marcas no discurso do sujeito.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
37/70
37
deixar de lado sua prtica e vivncia da comunidade ideolgico-discursiva da religiosidade.
Sabemos, contudo, que em nossa sociedade f e razo e, por conseguinte, suas
comunidades representativas (religio e cincia) se opem. Sendo assim, obviamente,
conflitos ideolgicos iro surgir entre os princpios das duas comunidades das quais este
sujeito est fazendo parte. bvio tambm que ele no s protestante, ou s acadmico,
mas protestante e acadmico, de modo que fazem parte da sua constituio identitria os
conflitos e os no-conflitos da relao f e razo, e faz parte tambm dessa sua constituio
lidar com esses conflitos e resolv-los.
Dito isso, continuemos a refletir, baseando-nos, ainda, nas palavras de Bauman (2005),
acerca da questo do pertencimento e da identidade:
Tornamo-nos conscientes de que o pertencimento e a identidade no tm asolidez de uma rocha, no so garantidos para toda a vida, so bastante negociveise revogveis, e de que as decises que o prprio indivduo toma, os caminhos quepercorre, a maneira como age e a determinao de se manter firme a tudo isso so fatores cruciais tanto para o pertencimento quanto para a identidade(BAUMAN, 2005, p. 17)
A partir do comentrio exposto, Bauman (2005) reitera aquilo que j discutimos aqui:
as identidades so mveis, flutuantes, no permitem fixaes. Contudo, com base nessa tese,
o terico nos diz um pouco mais: o pertencimento, como caracterstica inerente e constituinteda identidade, no tenta aprisionar a identidade num conjunto de discursos e ideologias, no
tem o poder de fazer do sujeito um sujeito de uma nica comunidade, ao contrrio o sujeito
pertence quela e quela e quela outra comunidade, e assim se funda sua identidade.
A noo de pertencimento no fecha a identidade do sujeito, pois o sujeito pertence a
muitas comunidades ideolgicas. Kathryn Woodward nos diz que com frequncia, a
identidade envolve reivindicaes essencialistassobre quem pertence e quem no pertence a
um determinado grupo identitrio, nas quais a identidade vista como fixa e imutvel
(WOODWARD, 2007, p.13). Essas reivindicaes criam a iluso de que se pertence a uma
nica comunidade ideolgica, ou grupo identitrio, e por isso as identidades estariam fixadas
a esses grupos e comunidades, de modo a se mostrarem imutveis.
Mas essa apenas uma iluso. Segundo Woodward (2007), o sujeito identifica-se com
uma comunidade por conta de determinadas caractersticas scio-culturais, ao mesmo tempo
em que se identifica com outras comunidades por conta de outros fatores scio-culturais.
Esse conceito importante para ns (e dever ser mobilizado no momento da anlise),
pois nos faz ver que o sujeito, como ser social, pertence a uma comunidade ideolgica, mas
este pertencimento no traduz a essncia do sujeito, apenas uma faceta dele. Alm disso, se,
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
38/70
38
como j dissemos, o sujeito possui identidades conflitantes, contraditrias, atravs da ideia de
pertencimento, podemos entender o porqu de o sujeito poder apresentar discursos
contraditrios ele pertence a esta e quela comunidade ideolgica que, apesar de
contraditrias, servem para os objetivos especficos do indivduo14.
Moura (2005) prope compreender o processo de construo de uma identidade a
partir da constituio de um texto. Nessa analogia, a identidade poderia ser pensada como
tecimento, tecido e contextura/tessitura (MOURA, 2005, p. 80-81) e, assim, os textos
identitrios anunciariam, de forma mais explcita ou ntida, o perfil de um sujeito, um grupo
ou uma sociedade. Das consideraes desse terico, chamamos a ateno para o fato de que se
deve atribuir sentido a esses textos identitrios, construindo um movimento de levar o
indivduo a um contexto social. Dito de outra forma: encarar o indivduo, localizando-o numcontexto maior para, ento, atribuir a ele uma identidade, ou melhor, modos de identificao.
Isso quer dizer, conforme o pensamento de Moura (2005) o indivduo pertence a uma
comunidade ideolgica, sujeitando-se a ela15, para, ento, ter de quem se diferenciar e obter
uma identidade. essa a relao que o indivduo mantm com a alteridade: pertence a uma
comunidade ideolgica, enquanto se diferencia de outra e nesse movimento configura sua
identidade.
3.3.2 No caso da Diferena...
Se o pertencimento agrega o indivduo e sua alteridade a partir, sobretudo, de uma
comunidadede vida ou ideolgica, a diferena vai marcar uma separao entre o indivduo e
sua alteridade. Nesse sentido, o que apresentamos agora a relao da identidade e da
diferena como uma relao central para a constituio do sistema de classificao da
sociedade. Em outras palavras: a identidade e a diferena esto estreitamente relacionadas sformas pelas quais a sociedade produz e utiliza classificaes (SILVA, 2007, p. 82), j que
afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distines entre o que fica
dentro e o que fica fora (SILVA, 2007, p. 82).
De uma forma simplificada, o que acabamos de dizer que a identidade relaciona-se
com a diferena, separando o que diferente de mim do grupo ao qual perteno. Marcando-
se uma identidade, marca-se uma diferena. Tanto assim que ao dizer eu sou nego, eu sou
do gueto, est-se dizendo: eu nosou branco, nosou do burgo, do centro...
14Pretendemos deixar isso mais claro no momento da anlise.15Mas no em termos pcheuxtianos da ADF.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
39/70
39
Nesse sentido, importa-nos saber que a identidade marcada pela diferena. No atual
contexto social ps-moderno h uma necessidade de afirmar esta ou aquela identidade
tambm com o intuito de dizer eu no sou isso nem aquilo. Hall (2006), apoiado nas ideias
de Marx e Engels, e tratando do carter da mudana na modernidade tardia, nos diz que as
sociedades modernas so [...] sociedades de mudana constante, rpida e permanente. Esta a
principal distino entre as sociedades tradicionais e as modernas (HALL, 2006, p. 14).
Esse carter de rpida transitoriedade das sociedades, ao mesmo tempo em que auxiliou as
mudanas estruturais e institucionais das quais j falamos, que, por sua vez, facilitaram a
fragmentao do sujeito, conduziram o sujeito necessidade de afirmao identitria.
Bauman (2005) nos diz que diante de tantas possibilidades de ser isto ou aquilo na
chamada sociedade moderna lquida16, comeou a existir o imperativo daidentificao/definio do sujeito dentro de um contexto scio-histrico. Na chamada
sociedade tradicional, os papis sociais estavam bem definidos, no havendo, assim, a
necessidade de uma afirmao identitria. Na sociedade moderna de Marx e Engels (1973
apud HALL, 2006), ou ps-moderna de Hall (2006) ou, ainda, lquida de Bauman (2005), os
lugares17sociais e seus papis no so fixos; isso faz com que, a depender do contexto que
esteja inserido, o indivduo necessite afirmar-se, marcar sua posio em oposio a outras.
Moura (2005) afirma que a problemtica a alteridade e, por conseguinte, da diferenano exatamente nova, uma vez que j no final do sculo XIX, a Antropologia j tratava da
questo. Contudo, a questo da diferena levada em considerao nas ultimas dcadas,
quando: o outro, o (ex)colonizado, adentra a casa do metropolitano e lhe diz que ele, o
metropolitano, tambm um outro (MOURA, 2005, p. 78). Ou seja, o homem ocidental,
branco, judeu/cristo, que pensou o mundo como se fosse o ume o outro fosse simplesmente
o outro, agora se depara com a incmoda acusao de que ele, o homem ocidental, o outro
daquele outro, o colonizado. (MOURA, 2005, p. 79). Essas consideraes mostram-nos quea questo da diferena se impe a todas as realidades, j que todas as sociedades passam por
transformaes estruturais.
16Para Bauman (2005), a modernidade lquida o estado atual em que se encontram as sociedades. Ela se oporia modernidade slida. A modernidade slida j teria acabado e teria incio com as transformaes clssicas e oadvento dos conjuntos estveis de valores e modos de vida cultural e poltico. A modernidade lquida, por suavez, refere-se ao perodo em que tudo voltil, as relaes humanas no so mais estveis e a vida em conjuntoperde consistncia e estabilidade.17 comum, sobretudo em AD e ADC, a diferenciao entre lugar e posio. O lugar est para a funosocial do sujeito e a posio est para sua relao com o poder. Assim, um sujeito pode ocupar o lugarde patro,lugar este que vai lhe projetar para uma posio de autoridade em relao ao seu empregado. Contudo, essadiferenciao parece no ter funcionalidade nos Estudos Culturais.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
40/70
40
Woodward (2007) nos diz que afirmar uma identidade e, consequentemente, marcar
uma diferena tem seu lado problemtico. Esta estudiosa, baseando-se no problema entre
srvios e croatas, nos diz que quando se assume uma identidade em oposio a outra, nega-se
que exista qualquer singularidade entre elas. Nesse sentido, a autora argumenta que, nesses
casos, o processo de identificao sustentado por uma fora maior de excluso, e como a
identidade marcada por smbolos (WOODWARD, 2007, p. 9), a diferenciao das
identidades em jogo se d no s na linguagem, mas na absoro de elementos que permitam
uma associao direta identidade objetivada. Trata-se de uma questo de representao: um
smbolo pode representar uma identidade, ou uma identidade pode fazer uso de um smbolo
para marcar sua diferena em relao a outras.
A questo da representao importante, pois atua no espao entre aquilo que de le aquilo que daqui. A representao inclui as prticas de significao e os sistemas
simblicos por meio dos quais os significados so produzidos, posicionando-nos como
sujeitos (WOODWARD, 2007, p. 17).
Associado ao sistema de representao est o discurso. Nas palavras de Woodward
(2007) os discursos e os sistemas de representao constroem os lugares a partir dos quais os
indivduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. sobre o discurso e sua
interao com a identidade que vamos tratar agora, situando a questo no mbito da ACD
3.4 O INTERESSE DA ACD PELA IDENTIDADE
Acabamos a seo anterior afirmando que a identidade marcada por smbolos
(WOODWARD, 2007, p. 9), e que o discurso atua em conjunto com os sistemas simblicos
de representao para licenciar os lugares nos quais os indivduos podem se posicionar. Nombito da ACD, o discurso em si tem efeitos construtivos: ele constri identidade, estabelece
relaes sociais e representa sistema de crenas e conhecimentos18. Assim, a identidade
constitui um dos alicerces do programa de pesquisa de Norman Fairclough, e da ACD, de
modo geral.
medida que se constri identidades, no discurso, tambm se estabelece relaes e se
representa crenas. Esses poderes do discurso so indissociveis, atuam juntos e todos eles
so necessrios para a construo identitria. A questo da identidade to relevante na ACD
18 Tudo isso j foi exposto no Captulo 1 desta monografia.
-
7/25/2019 Fantasmo (pagode baiano)
41/70
41
que Fairclough (2001) prope separar a funo interpessoal, proposta por Halliday, em 1978,
em outras duas: a funo identitriae a relacional, com o intuito de reservar um espao de
atuao especifico para a identidade.
Outro aspecto da obra de Fairclough (2001) a retomada do termo aristotlico de
ethos, para definir o comportamento total de um participante, do qual seu estilo verbal
(falado e escrito) e tom de voz fazem parte, expressa o tipo de pessoa que ele e sinaliza sua
identidade (FAIRCLOUGH, 2001, p. 181). Apoiadas em Fairclough, Resende e Ramalho
propem que a identificao seja vista como um processo dialtico em que discursos sejam
inculcados em identidades (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 76), j que a identificao
pressupe a representao, em termos de presunes, acerca do que se , e isso se liga ao
estilo.Segundo Gregolin (2008), a anlise do discurso feita no Brasil (crtica e francesa)
oferece bons meios para que a identidade possa ser analisada do ponto de vista da linguagem.
Em suas palavras: As teorias que esto na base da Anlise do Discurso colaboram para o
descentramento do sujeito cartesiano, e, [...], oferecem meios para pensarmos as identidades
na contemporaneidade. (GREGOLIN, 2008, p. 90).
O conceito de estilo tambm profcuo em ACD. O estilo constitui o aspecto
discursivo de identidades, ou seja, relaciona-se identificao de atores sociais em textos.(RESENDE; RAMALHO, 2006; BENTO, 2008). O estilo pode ser entendido como na tica
de Bakhtin (2003, p. 266): integra o gnero do discurso e representa as peculiaridades e
particularidades de indivduos e grupos. Nesse sentido, o estilo daria pistas discursivas sobre
constituies de identidades coletivas. Fairclough (1997) sugere que a identificao deve ser
compreendida como um processo dialtico, em que discursos so revestidos por identidades,
j que a identificao pressupe a representao, em termos de presunes, acerca do que se
.Outro trabalho inserido no campo terico da ACD que merece destaque por valorizar a
identidade o de Van Leeuwen (1997). Sua teoria acerca da representao dos atores
sociais permite o acesso aos significados representacionais em textos. Esse terico aponta
que as maneiras como os atores sociais so representados nos textos que circulam na
sociedade podem indicar posicionamentos em relao a suas identidades. Nesse sentido,
segundo Van Leeuwen (1997), alguns atores sociais poderiam ter seu agenciamento, suas
atividades e seus enunciados enaltecidos ou escondidos, par