mobiliário baiano - flexor

Upload: crislayne-alfagali

Post on 16-Jul-2015

252 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Mobilirio

b a i a n o

Maria Helena ocHi Flexor

Mobilirio

baiano

Maria Helena ocHi Flexor

MonuMenta / ipHan

c

r d i t o s

Presidente da rePblica do brasil Luiz Incio Lula da Silva Ministro de estado da cultura Joo Luiz Silva Ferreira (Juca Ferreira) Presidente do instituto do PatriMnio Histrico e artstico nacional coordenador nacional do PrograMa MonuMenta Luiz Fernando de Almeida coordenador nacional adjunto do PrograMa MonuMenta Robson Antnio de Almeida coordenao editorial Sylvia Maria Nelo Braga edio Caroline Soudant coPidesque Ana Lcia Lucena reviso e PreParao Denise Costa Felipe, Gilka Lemos design grfico Cristiane Dias diagraMao Ronald Neri fotos e ilustraes Arquivo da autora, Caio Reisewitz, Nelson Kon, Sylvia Braga, Editora de Arte Espade caPa e guarda Caixo ou arcaz. Sculo XVIII. Sacristia da Catedral de Salvador. Foto de Caio Reisewitz, 2008.

www.iphan.gov.br | www.monumenta.gov.br | www.cultura.gov.br F619m Flexor, Maria Helena Ochi. Mobilirio baiano. Braslia, DF: Iphan / Programa Monumenta, 2009. 176 p.: il.; 26cm. (Referncia ; 3) ISBN 978-85-7334-119-5 1. Mobilirio Bahia. 2. Patrimnio histrico - conservao. 3. Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. 4. Programa Monumenta. I. Ttulo. II. Coleo. CDD 64z0

su

M r i o07 09

apresentao introduo

1| 2| 3| 4| 5| 6| 7| 8| 9|

panoraMa

Histrico

12

estudos

clssicos

22

Metodologia

do presente estudo

30

Mo

de obra: os oFcios Mecnicos

36

Materiais

utilizados

64

Mveis

e Mobilirio

78

concluses

138

glossrio

144

reFerncias

bibliogrFicas e bibliograFia

158

~6~

apresentaoO Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional vem publicando, desde a sua fundao em 1937, ttulos fundamentais para a promoo do patrimnio histrico e suporte do ensino de arte e arquitetura no pas. Um grande acervo foi editado, mas muitas obras relevantes esto esgotadas e, como jamais integraram os catlogos das editoras comerciais, encontram-se hoje inacessveis para um pblico carente da bibliografia bsica sobre nosso patrimnio. pensando, portanto, nos estudantes, pesquisadores, professores de arte, histria e arquitetura que o Programa Monumenta/Iphan chamou para si a tarefa de reeditar importantes textos de referncia, tais como Arquitetura e Arte no Brasil Colonial, de John Bury, e o Atlas dos Monumentos Histricos e Artsticos do Brasil, de Augusto da Silva Telles. Neste momento, um novo ttulo lanado, em edio revista e atualizada: o Mobilirio baiano, de Maria Helena Flexor, um minucioso estudo dos mveis e do mobilirio em uso em Salvador, do incio do sculo XVIII at meados do sculo XIX. Mais que um simples inventrio dos mveis encontrados na primeira capital brasileira durante o perodo, a autora apresenta os estilos, a mo de obra e materiais empregados em sua confeco, alm de localizar os exemplares subsistentes e levantar um extenso material bibliogrfico, textual e iconogrfico, do qual o leitor certamente poder tirar proveito. Luiz Fernando de AlmeidaPresidente do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional Coordenador Nacional do Programa Monumenta Dezembro 2009

Papeleira rococ, sculo XVIII-XIX. Museu de Arte da Bahia.

~7~

introduoO contedo deste livro foi desenvolvido com base em estudo feito nos anos 1970, enriquecido ou reafirmado, posteriormente, ao longo de mais de trinta anos, com vrios outros trabalhos, muitos dos quais apresentados em colquios e congressos ou elaborados para publicao em livros e peridicos, nacionais e internacionais. O estudo centra-se, sobretudo, em Salvador, sede do governo colonial de 1549 a 1763. Como tambm foi capital, sucedendo Salvador, o Rio de Janeiro (1763-1960) serve de base para algumas comparaes. So acrescentados exemplos do estado de Minas Gerais, considerado por alguns autores, a partir dos anos 1930-1940, produtor da mais importante expresso da arte nacional. Citam-se, eventualmente, outras regies. Focalizou-se nesse estudo os mveis e mobilirio em uso na cidade no perodo compreendido entre 1700 e meados do sculo XIX. Escolheu-se como baliza inicial o princpio do sculo XVIII, por corresponder a um momento em que a sociedade soteropolitana j estava administrativa, social e economicamente estruturada, dotando-se de registros documentais mais regulares. A baliza final, meados do sculo XIX, corresponde ao momento em que as residncias passaram a ser compostas no mais por peas individualizadas de mveis, mas por conjuntos de mveis, ou moblia, com uniformidade formal, estilstica e decorativa, de origem ou de influncia estrangeira1. A pesquisa d tambm a conhecer o tipo de mo de obra que atuou, durante o perodo considerado, na Cidade do Salvador. Estende-se, portanto, organizao dos oficiais mecnicos, como eram chamados os artesos ou artfices de diversas especialidades, como marceneiros, carpinteiros, torneadores, correeiros e ferreiros. Para este estudo foram coletados dados na documentao, manuscrita e impressa, do Arquivo Histrico Ultramarino e Biblioteca da Ajuda, de Lisboa, do Arquivo Pblico do Estado da Bahia, do Arquivo Histrico da Prefeitura Municipal do Salvador, hoje sob a guarda da Fundao Gregrio de Mattos, e do Instituto Geogrfico e Histrico da Bahia. Essa documentao inclui inventrios e testamentos, cartas do governo, registros de correspondncias entre Brasil e Portugal, livros de cartas de exame, termos de eleies de oficiais mecnicos, livros de posturas, provises do senado, livro de registro de licenas, cartas do senado e atas da cmara. Jornais tambm integram a bibliografia. Como complementao, buscou-se obter informaes sobre os materiais usados na construo dos mveis e realizou-se um extensivo levantamento bibliogrfico, textual e iconogrfico, em catlogos ou fotografias de colees de museus e particulares. De alguns mveis, no entanto, no foi possvel localizar nenhum exemplar em Salvador, recorrendose a modelos semelhantes de outras regies do pas, de Portugal, Frana ou Inglaterra, cujas descries coincidiam com aquelas dos documentos consultados.Conjunto de moblia neoclssica, sculo XX. Museu Carlos Costa Pinto. ~9~

Mobilirio baiano

Usam-se citaes de documentos de poca para introduzir no estudo o olhar dos personagens daqueles tempos e permitir que se verifiquem as diferenas que marcavam os habitantes de Salvador dos sculos XVIII e XIX. Essas citaes tero a ortografia atualizada para facilitar a leitura e compreenso. Tambm para facilitar a compreenso, apresentado um glossrio, no final do livro.

Antifonrio hbrido (clssico renascentista/ barroco), sculo XVIII.

notas1 O levantamento envolveu a consulta, no Arquivo Pblico do Estado, dos inventrios e de alguns testamentos referentes capital. Dos inventrios dos bens ou autos de partilha, extraram-se dados descritivos, por vezes bastante minuciosos, de 14.800 mveis, num total de 1.843 inventrios. Esse levantamento foi complementado por bibliografia e inventrios impressos, usados a ttulo de comparao, j que se partia de metodologia completamente diversa de estudos anteriores. Detalhe do caixo ou arcaz clssico e bofete barroco, sculo XVIII. Sacristia da Igreja do Convento do Carmo, Salvador.

~10~

Introduo

panoraMa

Histrico

1

panoraMaa

Histrico

cidade e a sociedade

Em princpios do sculo XVIII, a Cidade do Salvador j era bastante povoada, segundo Thales de Azevedo1. No h coincidncia entre os nmeros da populao total citados pelos autores, mas estes esto concordes em afirmar que a maioria dos habitantes era constituda por pretos e pardos. No mapa das freguesias, de 1775, consta que as [...] 10 freguesias da cidade contm 7.080 fogos, com 40.992 almas, a maior parte pretos e pardos cativos, porm os fogos a maior parte so brancos2. Essa caracterstica no mudaria at o final do sculo, segundo as informaes de Jos da Silva Lisboa e Lus dos Santos Vilhena. Em carta de 18 de outubro de 1781, dirigida ao doutor Domingos Vandelli, diretor do Jardim Botnico de Lisboa, Silva Lisboa dizia que a cidade da Bahia tem quase 50.000 (habitantes), de que s a quarta parte ser composta de brancos3. O cronista Vilhena computava menos de 60.000 habitantes, e estimava: [...] a tera parte de todos estes habitantes incluindo o Recncavo podero ser de brancos, e ndios, sendo as duas outras partes de negros e mulatos4. Os pretos, se no moravam com seus senhores, distribuam-se pelos becos e ladeiras, em casas pobres, como as da ladeira da Misericrdia. Segundo informava um documento, as vtimas do desabamento de terras nesse local, no inverno de 1797, foram notificadas como sendo quase todos pretos, e pretas, e nenhuma pessoa de considerao5. As casas nobres de sobrado e com loja de alugar distribuam-se em pontos no muito distantes do primeiro ncleo de povoamento de Salvador, entre a Igreja da Ajuda e o Pelourinho. Segundo Vilhena, os melhores edifcios estavam na Praia, ou Cidade Baixa, bairro opulento pela assistncia, que nele fazem os comerciantes da praa. Sobre a Cidade Alta, comenta que os seus grandes edifcios, templos, e casas nobres, so de ordinrio pelo gosto e risco antigos, em que se notam algumas irregularidades, exceo de poucos mais modernos6. Tudo isso foi confirmado por outro documento, no qual se afirma: [...] certo que os edifcios no so da melhor arquitetura, nem da mais slida construo, apesar de se encontrarem alguns nobres como sejam templos e tambm vrias casas particulares muito boas, e de gosto mais moderno; as ruas so limpas, mas no regulares, nem caladas com perfeio.7

O distanciamento socioeconmico que a escravido criou, especialmente na Bahia, entre brancos, pardos, mulatos e pretos cativos mereceu crticas por parte de Vilhena:

Fachada da igreja e detalhe do Convento do Carmo, sculo XVII-XVIII, Salvador.

~15~

Mobilirio baiano

os brancos naturais do pas ho de ser soldados, negociantes, escrives, ou escreventes, oficiais em algum dos tribunais, ou Juzo de Justia, ou Fazenda, e alguma outra ocupao pblica, que no possa ser da repartio dos negros, como cirurgies, boticrios, pilotos, mestres, ou capites de embarcaes, caixeiros de trapiches, etc., alguns outros se bem que poucos, ou raros, se empregam em escultores, ourives, pintores, etc.8

Segundo o mesmo autor, h outros que entusiasmados sem fundamento, de que so alguma coisa neste mundo, vivendo em sua casa envolvidos na srdida misria, quando saem fora se empavesam de tal forma, que at custa reverenciar a Deus9. Essa observao confirmada por outro documento:A maior parte [dos escravos] bem intil ao pblico e s destinada para servir aos caprichos e voluptuosas satisfaes de seus senhores. prova de mendicidade extrema o no ter um escravo: ter-se-o todos os incmodos domsticos, mas um escravo a toda a lei. indispensvel ter ao menos 2 negros para carregarem uma cadeira ricamente ornada, um criado para acompanhar esse trem. Quem sasse rua sem esta corte de africanos, est seguro de passar por um homem abjeto e de economia srdida.10

No deixou Silva Lisboa de criticar, tambm, as senhoras patrcias. Os brancos mostravam o que no eram. A ostentao pblica de riqueza, muito embora nem sempre essa riqueza fosse real, era comum entre eles, no fugindo exceo os religiosos, como observaram os Arcebispos Frei D. Manuel de Santa Ins11 e Frei D. Antnio Correia12, nem os militares. Essa parece ter sido a feio de Salvador do sculo XVIII, principalmente na sua segunda metade. Mesmo com a mudana da capital para o Rio de Janeiro, em 1763, o luxo aparente da sociedade no deixou de existir. Dos senhores e proprietrios das residncias umas ricas, outras mdias, poucas pobres e a grande maioria, de brancos foram consultados inventrios e alguns testamentos. Levantaram-se dados dos pertences daqueles habitantes que residiam nas ruas Direita da Praia, do Pilar, das Laranjeiras, do Maciel, Cruzeiro de So Francisco, Direita das Portas do Carmo, Santo Antnio Alm do Carmo, Taboo, Direita de Palcio, So Bento; na Baixa dos Sapateiros; nas ladeiras da Praa e da Preguia e, medida que se caminhava para o sculo XIX, e com a melhoria dos transportes urbanos, So Pedro Velho, Piedade, Mercs, Vitria, Estrada da Graa, Sade, Ribeira, Itapagipe. Deve-se, no entanto, ressaltar que, at meados dos oitocentos, existiam engenhos na regio do Pilar, chcaras em Brotas, Rio Vermelho e Barra.~16~

Pa n o r a m a h i s t r i c o

Naquele sculo, com o processo que Gilberto Freyre13 chamou de reeuropeizao do Brasil, verificou-se a adoo, pela assimilao, pela imitao, pela coero, na colnia e depois no imprio, de uma srie de atitudes morais e de padres de vida que, espontaneamente, no teriam sido adotados pelos brasileiros. A feio de Salvador comeou, ento, a se modificar. A esse tempo, os franceses tambm tiveram grande influncia, impondo as suas modas. No eram raros os anncios de jornais acusando a presena de modistas francesas, hospedadas em alguma parte central da cidade, dispostas a receber as senhoras baianas, para vender seus vestidos e acessrios, trazidos diretamente de Paris. E vieram acessrios para casa que guardaram, por muito tempo, sua designao original entre os brasileiros, como, aps 1850: retrete, toilette, bidet, console, plateau, tagers, etc. Foi nessa poca que algumas modas francesas retornaram, formando agora conjuntos de moblias. o caso do modelo denominado estilo Lus XV ou Lus XVI que se usou no Brasil at o princpio do sculo XX, sendo o nico estilo assim chamado documentadamente. Reavivou-se ento o mvel barroco, confeccionado mecanicamente e em srie, de forma estilizada, compondo o estilo ecltico. Simultaneamente, registrou-se o aumento em nmero dos caixeiros viajantes, que eram portadores de produtos importados, bem como dos bazares, nos quais se vendiam trastes, tanto novos, quanto usados. Cabe ainda enfatizar que, fora as madeiras e couros, todos os materiais e utenslios vinham de Portugal. No final do sculo XVIII, no eram raros os produtos que chegavam da Inglaterra, atravs dos portos de Lisboa ou do Porto. Importavam-se desde pregos, colheres de pedreiros, candeeiros, almofarizes, bacias de estanho ou de arame, panelas de cobre, tigelas de p de pedra, mangas de vidro, bas, carteiras de mo, bancas de abrir, cadeiras, mesas de abas de jantar, at mesas de ch ou de jogo. Quadros, livros, instrumentos musicais e relgios eram raros. Os espelhos e vidros s foram mais profusos no sculo XIX. E tambm eram importados. Os mveis, especificamente, tinham ainda outras origens. Nas ltimas dcadas do sculo, viam-se anncios como estes:Caixo ou arcaz hbrido (clssico/renascentista e barroco), sculo XVIII. Sacristia da Igreja do Convento de Santa Teresa, Museu de Arte Sacra, Salvador.

~17~

Mobilirio baiano

Indstria Americana Figuras, bustos, cantos, flores e outros enfeites de talha, preparados com a maior perfeio em madeira e ps de serraduras, prprios para ornar e dar o maior realce as obras de marcenaria, especialmente camas, aparadores, guarda-vestidos, toilletes, etc. recebemos grande poro destas formosas peas, por preos baratssimos, que s os Estados Unidos podem apresentar: h-os desde 100 rs at 5$000. AU PALAIS-ROYAL14

Moblias Americanas Imensa Aceitao Alm de mais fortes e elegantes do que as austracas, custam menos da metade, visto que as outras custam 150$000. Embarcam-se tambm para fora da provncia sem mais despesa alguma que a de frete. AU PALAIS-ROYAL grande bazar dos melhores artigos americanos preferidos aos da Europa.15

Mveis

e sociedade

O luxo aparente dos brancos, quando se apresentavam em pblico, no sculo XVIII, parece no ter afetado o interior das residncias baianas:Com efeito ao luxo exterior dos vestidos, em nada cede aos nossos europeus; e a seda vulgarissima at nos negros forros. Porm tudo sem proporo: a indigncia muitas vezes se esconde debaixo desta exterioridade de pura fanfarronada, entretanto, que o interior da famlia est em desesperao. Felizmente para ns este luxo no tem penetrado no interior das casas, que excessivamente modesto e despojado, pelo ordinrio, de ornato e rico aparelho de mveis da Europa. A mesa costuma ser abundante, se os vveres so baratos; mas a delicadeza suntuosa e regular se no acha ainda entre gentes, que tem comodidades. A coisa nasce da falta de fundo real de riqueza na maior parte das pessoas.16

Os inventrios deixam concluir que os bens materiais desses baianos dos sculos XVIII e XIX, bem como dos portugueses que se estabeleceram em Salvador, consistiam principalmente de propriedades imobilirias, dinheiro, jias sobretudo de prata, ouro branco ou, eventualmente, ouro e escravos. Os mveis, em geral restritos ao necessrio,~18~

Pa n o r a m a h i s t r i c o

representavam uma parcela mnima das posses e, na grande maioria dos casos, contrastavam com a fortuna de seus proprietrios. O luxo aumentou um pouco no sculo XIX, com a introduo de mveis envidraados, de maior nmero de peas suprfluas, vidros e espelhos de ornamentao que, por sua natureza, tinham a aparncia de objetos luxuosos, ainda mais quando contornados de dourado. Somente a partir de meados desse sculo a quantidade de mveis aumentou consideravelmente, entulhando as residncias mais abastadas. As casas dos sculos XVII e XVIII contrastavam radicalmente com as moradias da segunda metade do sculo XIX, quando a burguesia nascente encheu todos os espaos residenciais com vrios conjuntos de mesas e cadeiras, guarda-comidas, bancas, sofs, guarda-roupas, leitos, alm de numerosas estampas, importadas da Europa, e mangas de vidro, protegendo ramos de flores metlicas, biscuits e imagens de santos, numa mesma sala, por exemplo. Em uma cidade habitada majoritariamente por pretos, crioulos, pardos e mulatos, no eram muitas as residncias que possuam mveis. Pelos inventrios, percebe-se que a casa baiana, e mesmo brasileira, quer de brancos, quer de africanos ou seus descendentes, com rarssimas excees, foi extremamente pobre at meados do sculo XVIII, observandose a ausncia de mveis, especialmente os suprfluos. Isso se justifica no apenas pelo fato de a vida do baiano estar voltada para a rua, mas pelas prprias condies do povoamento. Sabe-se que somente a partir de meados dos setecentos consolidou-se a sociedade em alguns ncleos urbanos dispersos pelo Brasil, com a fixao de povoadores nas vilas e cidades, incentivada pela poltica e aes pombalinas. A consolidao da sociedade tornou possvel o atendimento ao conforto interno das casas, observando-se ento, no s o aumento do nmero de mveis, como, sobretudo, a utilizao crescente de peas especializadas, como as cmodas, guarda-roupas, sofs e mesas de esbarra ou de jogo, inexistentes nos seiscentos, ou a substituio de mveis menos refinados, vindos do sculo anterior, como o caixo, por peas aperfeioadas. Salvador, apesar de ter perdido a condio de capital do Vice-Reino em 1763, continuou com a feio de maior centro urbano, no parecer do marqus de Lavradio, D. Lus de Almeida Portugal Soares Alarco Ea Melo Silva e Mascarenhas. Confirmava isso o conjunto da cidade, que apresentava condies de infra-estrutura melhores que as oferecidas corte quando a sede do Reino foi transferida de Lisboa para o Rio de Janeiro, em 1808. Muitas intervenes e construes na cidade foram necessrias, pois ela no dispunha de casas nobres, capazes de abrigar a realeza e a corte administrativa, diferentemente de Salvador, que tinha porte de capital.~19~

Mobilirio baiano

Em Minas Gerais, alguns ncleos urbanos tambm se estruturaram somente a partir da segunda metade dos setecentos, enquanto em So Paulo e em quase todo o Sul permaneciam inexpressivos, como muitas partes do Norte e do Nordeste. Nessas regies, certos ncleos cumpriram trajetrias diversas na histria artstica brasileira: o caso de Recife, por ter permanecido nas mos dos holandeses, So Lus do Maranho, fundada pelos franceses, ou Belm, que foi capital da regio Norte na poca pombalina. As companhias de comrcio, criadas na segunda metade do sculo XVIII, ao permitir o acesso direto s modas europias, reforaram essa diversidade. Nesses diferentes brasis, as casas tambm eram bem dspares, com poucos sobrados com loja de alugar, de pedra e cal, e muitas casas trreas de taipa, algumas vezes tendo apenas a fachada construda com material mais durvel. Em geral, situavamse em terras foreiras a comunidades religiosas. Umas e outras estavam msticas, ou misturadas, nos centros urbanos. E nessas casas trreas, quase sempre de cho de terra batida e iluminadas por candeeiros de lato ou veladores de jacarand torneados, que se usavam algumas poucas peas de mveis no sculo XVIII. Seus moradores eram pequenos comerciantes e burocratas, oficiais mecnicos, ndios civilizados, escravos libertos, artistas, pequenos lavradores, etc. Os sobrados pertenciam aos nobres e oficiais do governo, alguns senhores de engenho e/ou comerciantes, senhores de escravos de aluguel e militares de maior patente. Estavam localizados junto aos edifcios religiosos e administrativos e, os maiores, na zona comercial. Poucas casas de engenhos ou sobrados urbanos, de propriedade de pessoas mais abastadas, contavam, no sculo XVIII, com um nmero mais considervel de mveis. Como se viu, a grande maioria da populao, se no era escrava, constituase de pessoas sem condies econmicas para possuir mveis de elaborao e madeira mais refinados. No entanto, alguns ex-escravos alcanavam o mesmo padro de vida dos brancos, habitando casas ao lado destes, como se via na rua do Rosrio, em So Paulo, onde no s dispunham de mveis, quanto de escravos e de todo o aparato denotativo de certa condio econmica: objetos de prata, incluindo bengala com casto desse metal, chapus de Braga, loua da ndia ou da China, mveis de jacarand, etc. Livres, muitos ex-escravos baianos tambm desfrutavam de condies materiais similares e possuam escravos.

~20~

Pa n o r a m a h i s t r i c o

notas1 azevedo, Thales. Povoamento da Cidade do Salvador. 3ed. Bahia: Itapu, 1969, p. 183. 2 aHu. Loc. cit., v. 32, doc. 8750 (1775), p. 289. 3 Idem. v. 34, doc. 10.907 (1781), p. 505. 4 vilHena, Lus dos Santos. A Bahia no sculo XVIII. Bahia: Itapu, 1969, v. 1, p. 55. 5 aHu. Loc. cit., 1914, v. 32, doc. 17.433 (1797), p. 459. 6 vilHena, L.S. Op. cit., p. 44-45. 7 cartas do governo a sua Magestade (1797-1798). Arquivo da Prefeitura Municipal do Salvador/ Fundao Gregrio de Mattos, carta 600, 21 out. 1799. fl. 207. 8 vilHena, L.S. Op. cit., p. 138. 9 Idem, p. 52. 10 aHu. Loc. cit., 1914, v. 32, doc. 10.907 (1781), p. 505. 11 Em sua Carta Pastoral, de 1764, frei D. Manuel de Santa Ins criticou severamente as religiosas do Desterro quanto ao cerimonial que obedeciam, por admitirem, dentro do convento, as escravas para os seus servios (aHu. Loc. cit., v. 32, doc. 6.556 (1764 anexo ao doc. 6554), p. 68). 12 Frei D. Antnio Correia, em sua Pastoral sem data, provavelmente de 1784, proibia aos eclesisticos o uso de vestes e adornos prprios dos civis (aHu. Loc. cit., v. 32, doc. 11.485 (1784, anexo ao doc. 11.481), p. 554). 13 freyre, Gilberto. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Jos Olimpio, 1968. t. 1, p. 309-310. 14 dirio da baHia, Salvador, 1 mai., 1879, p. 8. 15 idem. 9 mai., 1879. p. 3. 16 aHu. Loc. cit., v. 32, doc. 10.907 (1781), p. 505.

~21~

estudos

clssicos

2

estudos

clssicos

Aps a proclamao da Repblica, em 1889, intensificou-se o processo de afirmao da nacionalidade brasileira, que se tentava estruturar desde a Independncia, em 1822 ou, na Bahia, em 1823. Entre 1889 e 1930, vrios fatos importantes marcaram a vida cultural brasileira em busca do esprito nacional. A criao dos smbolos nacionais hino, bandeira, armas, heris , a proximidade das comemoraes do centenrio da Independncia, a recepo da imigrao em massa, a introduo dos ideais anarquistas, de um lado, e socialistas, de outro, os primeiros movimentos artstico-literrios modernos, entre outros fatos, fizeram os brasileiros sentir a necessidade de conhecer o Brasil. Naquele perodo, com a chegada em massa de colonos europeus de vrias nacionalidades, o portugus deixou de ser o grande inimigo e o foco de insatisfao dos brasileiros deslocou-se para os novos povoadores estrangeiros. Nesse contexto, no foi difcil aos intelectuais brasileiros assumir para si o patrimnio cultural legado pelos lusos nos quase 389 anos em que o Brasil esteve sob sua influncia, direta ou indireta. Mrio de Andrade1 iniciava, ento, uma srie de viagens pelo Brasil. Os intelectuais e estudiosos, bem como algumas senhoras e curiosos da burguesia paulistana nascente, comearam a redescobrir o Brasil. E passaram a fazer o que Eduardo Jardim de Moraes chamou o retrato do Brasil2. Foi esse movimento que descobriu Minas Gerais e Aleijadinho, apontando-os como smbolos da arte nacional, em contraposio s regies litorneas e suas produes, que haviam recebido mais intensamente as influncias da antiga Metrpole. Carlos Ott, nessa mesma poca, deixava transparecer bem a viso dos estudiosos:Conhecidas como agora so as obras feitas no decorrer dos sculos, e conhecidos os seus autores, podemos apreciar o seu valor e investigar as influncias que receberam. Por outro lado, interessa saber quais as criaes tipicamente baianas ou regionais.3

Entre os vrios estudos, nesse contexto, encontravam-se os de autores que escreveram sobre o mobilirio brasileiro usando a metodologia comparativa: resgatavam a memria dessa produo no Brasil e a cotejavam com a de Portugal. Essa foi a metodologia adotada, por exemplo, por Gustavo Barroso, Jos de Almeida Santos, Clado Ribeiro de Lessa, Jos Wasth Rodrigues, Mrio Barata, Hlcia Dias e Jos Mariano Filho. A criao do Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional SPHAN, como conseqncia de todo o processo de recuperao dos elementos distintivos da brasilidade e sua cultura, em 1937, provocou essa primeira onda de estudos sobre o mobilirio, iniciada nessa mesma dcada e estendida seguinte. Isso, associado disseminao do interesseDetalhe de anjo tocheiro barroco, sculo XVIII. Igreja de Santa Teresa ou Museu de Arte Sacra, Salvador.

~25~

Mobilirio baiano

Cofre com trs chaves, sculo XVIII-XIX. Convento de So Francisco, Salvador.

~26~

Estudos clssicos

pelos estudos regionalistas e da cultura popular, estimulou a pesquisa de objetos e peas de arte e de mobilirio antigos. Os museus, colecionadores e antiqurios, a partir da dcada de 1940, provocaram uma segunda onda de interesse pelos estudos do mobilirio que entrou pelos anos 1960. Foi graas a esses estudos e viagens que se passou a conservar mveis antigos e objetos de arte em geral, salvos da destruio e dos cupins, como diria um desses viajantes culturais, o artista plstico Caryb, que, em companhia de Mrio Cravo Jnior, percorreu o Nordeste num veculo Skoda enfeitado com um Exu. Dos estudos desses dois perodos nasceram conceitos, tipologias, designaes estilsticas, cronologias e nomenclatura do mobilirio que acabaram consagrados. Procurava-se, ento, por um lado, distinguir um estilo brasileiro, ou colonial, e descobrir as qualidades artsticas do mobilirio, e, por outro, estabelecer as caractersticas formais dos conjuntos estilsticos. Esses autores, porm, mesmo buscando a singularidade brasileira, adotaram a nomenclatura estilstica do mobilirio de Portugal e respectiva cronologia, comparando as semelhanas e diferenas formais. Os estilos eram assim designados com os nomes rgios: Manuelino ou Filipino, este ltimo com variaes jesuticas, D. Joo V, D. Jos ou Pombalino, D. Maria I ou Imprio. Certos autores, reconhecendo criaes genuinamente brasileiras, admitiram os estilos nacionais: D. Maria I brasileiro, Imprio brasileiro, Colonial brasileiro, Regional mineiro e Beranger, que outro autor crismou de D. Pedro II. Alguns estudiosos, ainda, tomaram a diviso por reinados lusos apenas para permitir uma compreenso associativa tempo-estilo-forma , mais inteligvel que a puramente cronolgica. Em conseqncia, ligaram-se de tal modo as formas dos mveis s figuras dos soberanos, que as designaes deixaram de ser simplesmente associativas para se tornar sugestivas de uma interferncia direta da pessoa real nos estilos e modas de seu tempo. Na atualidade, essas designaes podem, eventualmente, ter validade didtica, j que esto consagradas, mas no tm nenhum rigor histrico, pelo menos para o Brasil. Tais estudos morfolgicos basearam-se nos mveis sobreviventes nos museus e colees particulares, adotando uma nomenclatura singular, s vezes esdrxula, para designar peas inteiras ou detalhes decorativos dos mveis. Essa nomenclatura4 acabou sendo tambm consagrada e adotada no vocabulrio museolgico, dos antiqurios e colecionadores, que inclui termos como bolachas, treme-treme ou tremidos, almofadas, ps de bola, ps de garra e bola, ps de pincel, sapata, ps de esptula, ps de cachimbo, ps de voluta, perna de lira, cachao, tabela, balastre, avental, arqueta, ba, cadeira de estado, mesa holandesa, mesa de bolachas, mesa de dobrar ou de cancela, mesa de aba ou~27~

Mobilirio baiano

borboleta, mesa de cavalete, mesa de encostar, mesa de dobrar, cadeira de estado, cadeira abacial, leito de bilros, cadeira de sola, cmoda boulle5, entre outros. Exemplos bem tpicos de nova nomenclatura so as designaes dadas s caixas e caixes, hoje chamadas arcas, arcazes e/ou cmodas. As mudanas adotadas levaram Carlos Ott6, colaborador do Iphan, a concluir que quando nos inventrios se fala em ornamentos, estes no se especificaram, pois naqueles tempos, ainda no existia nem a terminologia portuguesa e muito menos a internacional hoje em dia usada para designar os diversos estilos artsticos. O estudo morfolgico gerou tambm detalhamentos grficos que reuniram desenhos das diferentes peas de mveis, dando origem falsa idia de conjuntos de um mesmo estilo, inexistentes no sculo XVIII. Da mesma maneira, levou identificao do jacarand como nica madeira utilizada na confeco da maior parte dos mveis, por ser muito resistente e dura, qualidades que justificariam sua sobrevivncia. Os estudos clssicos contemplam ainda mveis ingleses e franceses. Assim, para o mobilirio de influncia estrangeira, adotou-se a designao originria, normalmente derivada do nome de seu criador, ou designer, como Hepplewhite, Chippendale7 e Sheraton, ou das figuras rgias, como Rainha Ana (1665-1714), Guilherme e Maria ingleses. Transpor essa cronologia associada para a Bahia e para o Brasil utilizar conceitos fictcios, tendo em vista que alguns mveis com caractersticas do estilo renascentista, o qual tem suas origens na Itlia do sculo XIV, persistiram em uso no Brasil at o sculo XVIII. H, entre eles, mveis de orao, como os oratrios, e mveis de guardar, como as caixas, caixes, armrios e cmodas8. Algumas dessas peas, como as caixas, foram utilizadas at o fim dos setecentos, convivendo perfeitamente com os mveis torneados ou entalhados barrocos ou rococs, estilos que, na Europa, sucederam ao renascentista. As caixas, chamadas indevidamente arcas nos museus, passaram do sculo XVI para o XVII e foram usadas na Bahia at os finais dos setecentos, com mltiplas funes. At as ltimas dcadas do sculo XVIII, os serralheiros ainda faziam fechaduras mouriscas para caixas. As arcas, sem almofadas, com o tampo abaulado e gavetas na parte inferior, s apareceram no sculo XVIII. Serviam para guardar roupa, comida, alfaias, louas e, por vezes, ao lado de uns poucos tamboretes, eram os nicos mveis das casas.

~28~

Estudos clssicos

Bofetinho barroco, sculo XVIII. Sala do Captulo do Convento de So Francisco, Salvador.

notas1 andrade, Mrio de. Mrio de Andrade: fotgrafo e turista aprendiz. So Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, 1993. 2 Moraes, Eduardo Jardim de. Mrio de Andrade: retrato do Brasil. In berriel, Carlos Eduardo (org.). Mrio de Andrade/hoje. So Paulo: Ensaio, 1990, p. 67-102. 3 ott, Carlos. Histria das artes plsticas na Bahia, 1550-1900. Salvador: Alfa, 1992. v. 2, p. 91. 4 A maior parte dos termos foi criada pelos colaboradores regionais do Iphan. 5 Vide por exemplo Krell, Olga. Aprenda a escolher antigidades. Decorao Cludia, Rio de Janeiro, ano 8, no 87A. p. 6, 8, 10, 12, 15, 17, 19, 21, 24, 26, 28, 30, 35, dez. 1968. 6 ott, C. Op. cit., v. 2, p. 68, 91. No presente trabalho, usada a nomenclatura de poca, fazendo-se referncia nomenclatura do Iphan, para a qual Ott tambm deu sua contribuio. 7 Hepplewhite e Chippendale j se enquadravam no processo da Revoluo Industrial e vendiam suas peas por meio de catlogo, dentro de um novo programa de comercializao de produtos feitos em srie. Mesmo os mveis com as designaes dos nomes rgios eram, em sua grande maioria, produtos industrializados. 8 Tambm continuam a aparecer nas portas e janelas, especialmente dos edifcios religiosos.

~29~

Metodologia

do

presente estudo

3

Metodologia

do presente estudo

Com metodologia diversa, procurou-se reestudar os mveis baianos, considerando, alm da morfologia e da cronologia, a sua insero na sociedade, a mo de obra e os materiais empregados. Tal procedimento foi em parte adotado logo em seguida por Tilde Canti1, englobando exemplares brasileiros. Nas descries presentes na relao de bens dos inventrios, testamentos e autos de partilha, existentes no Arquivo Pblico do Estado da Bahia, esto bem claros os detalhes, como a designao do mvel, origem, quando se tratava de importado, tamanho aproximado, materiais utilizados, ornamentaes, estado de conservao, preo da avaliao. Essas descries foram sistematizadas e distribudas cronologicamente, considerando-se que os inventrios e testamentos so documentos ps-morte. A cronologia aqui utilizada , pois, baseada na vulgarizao, ou moda, dos modelos dos mveis. As datas so mais reais, pois correspondem ao momento em que houve o grande e geral uso de determinado ou determinados modelos2. A data de introduo de novos modelos secundria, de um lado, por serem em nmero reduzidssimo s vezes, uma nica pea e, de outro, porque sua vulgarizao levava muito tempo. A defasagem cronolgica entre a introduo do modelo luso, e/ou ingls ou francs, e a sua vulgarizao podia atingir mais de cinqenta anos, em algumas regies. A defasagem existia mesmo nos centros mais adiantados, como Salvador e Rio de Janeiro. Antes de mais nada, preciso considerar que no s a morfologia e a decorao das peas podem indicar a poca do uso de determinados modelos de mveis, mas tambm a especializao dos oficiais mecnicos empregados na sua elaborao e o uso de materiais especficos, que devem ser considerados na sua datao. Pode-se datar os mveis, por exemplo, pelo uso constante de madeiras diversas, tipos de ferragens, puxadores, madeiras folheadas, couro lavrado, sola picada, palhinha, damasco, veludo, verniz, vidro, mrmore, pintura branca ou colorida, douramentos etc. preciso considerar ainda que os mveis tinham uma rotatividade diminuta, no s porque era comum compr-los usados em bazares de trastes, mas tambm porque passavam sucessivamente, por herana, aos descendentes. Na realidade, seria impossvel estabelecer uma cronologia correta tomando-se os mveis comumente usados nas casas baianas e mesmo brasileiras, pois modelos muito antigos encontravam-se ao lado de outros do estilo subseqente, junto com mveis da moda, ou moderna, como se dizia. O mais comum, especialmente do sculo XVIII em diante, era a utilizao de peas isoladas de mveis de formas e estilos diferentes e de trs tipos de luxo, ordinrios e toscos , dependendo das posses de seus donos e dos aposentos. No havia o requinte de uniformizao decorativa e nem o conceito de moblia. Os mveisConversadeira. Sculo XIX. Museu Carlos Costa Pinto. ~33~

Mobilirio baiano

toscos eram elaborados em madeiras comuns, para o uso popular ou servio domstico. Esse tipo no focalizado, por ser muito simples, com linhas retas, sem caractersticas estilsticas especficas. Como indicao didtica, adotou-se a designao dos estilos gerais da arte europia ocidental, com os anos de respectivo uso na Bahia, desprezando-se os modelos hbridos, isto , aqueles que, no sculo XVIII, misturaram elementos renascentistas e barrocos, por exemplo: a. b. c. d. e. renascentistas, de linhas retas, com guarnies de almofadas e frontes (1600-1740); primeiro barroco, com torneados e retorcidos (1640-1740); segundo barroco e rococ, com talhas e linhas curvas (1740-1820); neoclssicos com linhas retas, colunas estriadas, etc. (1820-1890); eclticos e estrangeiros (1840-1910)3.

Por no haver o conceito de moblia, preferiu-se designar os mveis de acordo com a sua utilidade: a. b. c. d. e. f. g. mveis de guardar caixas, arcas, cmodas, frasqueiras, cofres, armrios, guarda-roupas, guarda-louas; mveis de trabalho contadores, papeleiras; mveis de descanso leitos, camas, catres, preguiceiros, cadeiras, tamboretes, sofs, canaps e outros; mveis de refeio e decorao mesas, bofetes, bancas, trems; mveis de higiene toucadores, gamelas, tinas ou tigres; mveis de orao oratrios, altares de dizer missa; mveis de transporte (redes)4, serpentinas, cadeirinhas de arruar.

Essas designaes se adequam perfeitamente tanto aos mveis de uso civil e leigo, quanto, em parte, aos religiosos. Como mencionado, a metodologia adotada considera, alm da morfologia e da cronologia dos mveis, a sua insero na sociedade, a mo de obra e os materiais empregados. Assim, antes de tratar dos mveis propriamente ditos, sero dadas notcias sobre a mo de obra que os elaborou no perodo abordado considerando-se seu regime de trabalho e sua importncia na vida da sociedade baiana e sobre os materiais ento utilizados.

~34~

Caixa ou arca com gavetas, clssico renascentista, sculo XVIII. Sacristia da Igreja de So Francisco, Salvador.

Metodologia do presente estudo

notas1 canti, Tilde. O mvel no Brasil; origens, evoluo e caractersticas. Rio de Janeiro: Cndido Guinle de Paula Machado, 1980. 337 p. 2 Para a datao dos mveis, foi calculada a idade mdia de casamento dos inventariados, considerando-se a idade da maioridade 25 anos , em que o matrimnio era permitido, e a idade dos filhos, alm da mdia da expectativa de vida da poca. 3 Quando o Imperador D. Pedro II visitou Salvador, em 1859, vrios aposentos do Palcio do Governo foram mobiliados com peas de estilo ecltico, de influncia francesa. A moblia da sala vermelha era de mogno, estofada de damasco vermelho, ao gosto da poca de Lus XV, por exemplo (MeMriasda

viageM

de suas

Magestades iMPeriais

a

Provincia

da

baHia. Rio de Janeiro:

Indstria Nacional de Cotrin & Campos, 1867. p. 13). 4 A rede aparece entre parnteses porque, apesar de ter sido, por longo tempo um meio de transporte eficaz, no pode ser considerada um mvel, como os demais, pois era feita de tecido.

~35~

Mo

de obra:

os oFcios Mecnicos

4

Mo

de obra: os oFcios Mecnicos

Salvador herdou de Portugal a composio administrativa e a estrutura socioeconmica, incluindo a formao de mo de obra, constituda majoritariamente de artfices. Na prtica, os ofcios foram divididos entre os brancos e os negros, sendo exercidos por uns ou por outros no exclusivamente, mas em grande parte. Do sculo XVI at a terceira dcada do sculo XIX, os artesos ou artfices e alguns pequenos comerciantes eram designados na Bahia e no Brasil como oficiais mecnicos. Os pintores e escultores, que tambm usavam as mos na elaborao de suas obras, no eram classificados como artesos, pois tinham, teoricamente, a possibilidade de inventar e, por isso, ser profissionais liberais1, enquanto aos artfices cabia copiar e permanecer administrativamente atrelados s Cmaras. Vrios oficiais mecnicos interferiam na confeco dos mveis, como os marceneiros ou carpinteiros de obras brancas e pretas, torneiros, entalhadores, carpinteiros de mveis e samblagem, correeiros lavradores de couro, picadores de sola ou couro, ferreiros ou serralheiros2. A confeco de cadeiras, por exemplo, podia reunir marceneiros e correeiros. O marceneiro podia acumular a funo de torneiro, mas no a de entalhador. O profissional dessa especialidade intervinha no mvel separadamente. Os entalhadores no tinham obrigao de cumprir os preceitos da Cmara, por estarem classificados na categoria dos escultores. Segundo afirma a historiografia clssica tanto em relao ao urbanismo quanto em relao aos ofcios mecnicos, apenas na Amrica castelhana teria havido organizao. No Brasil, por causa da presena do regime escravista, teria reinado a desordem, a desobedincia profissional. Isso bem vlido para a vila de So Paulo, que, at o sculo XIX, no teve muita relevncia. At as primeiras dcadas daquele sculo, como acusava o governador Antnio Jos de Franca e Horta, no havia em So Paulo mestres pedreiros e carpinteiros hbeis como os que existiam no Rio de Janeiro e na Bahia3. Fato praticamente desconhecido que, na Bahia, a partir do final da primeira metade do sculo XVII, foram criados os cargos de procuradores dos mesteres, hierarquicamente subordinados Cmara. A exemplo do que existia em Lisboa, procurou-se constituir as guildas de forma ativa, buscandodar maior relevo atividade dos juzes dos ofcios mecnicos, criando-lhes funo prpria sob a denominao de mesteres, como rgo de classe junto Cmara, onde teriam assento, trazendo mais uma figura ao cenrio administrativo da Cidade o juiz do povo eleito pela assemblia de 12 mesteres, por sua vez aclamados pelos vrios grupos profissionais, regularmente registrados4.

Banca de esbarra ou mesa de encostar, rococ, sculos XVIII-XIX. Museu de Arte da Bahia.

~39~

Mobilirio baiano

Institudos os mesteres, por resoluo da Cmara de 21 de maio de 16415, dois dias depois os oficiais mecnicos se reuniram, por convocao da Cmara, e elegeram 24 representantes, escolhendo-se, entre estes, 12 um ou dois de cada ofcio, dos mais indispensveis6. Seguia-se o exemplo de Lisboa, que possua um ou dois representantes, a depender do ofcio, na chamada Casa dos Vinte e Quatro7. Logo aps a escolha dos 12, elegeu-se o juiz do povo e o escrivo, aprovados com dois procuradores dos mesteres8 por Alvar Rgio de 28 de maio de 1644, da mesma forma que nas vilas do Reino e com iguais isenes e privilgios9. Cabia-lhes controlar as atividades dos seus companheiros, fixar preos e avaliar as obras. Tratava-se de uma continuao das guildas medievais. As iniciativas partidas dos proletrios, como as chamou Affonso Ruy, comearam a agitar os vereadores, originando-se, aos poucos, um ambiente de reao que foi crescendo at hostilidade contra os representantes corporativos10. Elegeram-se outros juzes do povo e mesteres. Estes, porm, cada vez mais infiltravam-se nas competncias dos vereadores11 que, por sua vez, procuravam cercear o poder daqueles. Os antagonismos continuaram at que, em 1710, os vereadores deliberaram que o juiz do povo e os mesteres s fossem s vereaes requererem, segundo Affonso Ruy, aquilo que entendessem era til ao povo12 e que no comparecessem mais s vereaes. Os juzes do povo e os mesteres foram acusados de provocar reaes populares contra a Cmara, contra o Governo e contra a Coroa13, at que, por ter mostrado a experincia ser causa dos motins que tem havido em desservio meu e do pblico desses moradores, o rei, atravs da Carta Rgia de 25 de fevereiro de 1713, extinguiu esses cargos, pelas mesmas razes por que o fizera na cidade do Porto, a pedido da prpria Cmara. Os vereadores, em 1715 e 1716, apelaram ao rei a fim de que novamente se institussem os cargos de juiz do povo e de mesteres, sem os quais, diziam, ficava a Cidade Capital do Estado do Brasil igual a mais humilde vila dele e para que houvesse o sossego do bem comum14. Tudo intil. Os cargos estavam extintos definitivamente. Os oficiais mecnicos perderam assim seus representantes junto ao poder pblico e seus privilgios, e tiveram suas atividades restringidas. A partir de ento apenas examinavam, atravs do juiz e do escrivo do ofcio, aqueles que queriam ingressar na atividade, defendiam poucos de seus interesses e avaliavam as obras, em comum acordo com a Cmara. Alm da falta de representao junto Cmara, dois fatores importantes, entre vrios outros, contriburam para enfraquecer a organizao das guildas, dentro dos moldes de Lisboa. Em primeiro lugar, a presena do brao escravo, que exercia alguns~40~

Mo de obra: os ofcios mecnicos

ofcios mecnicos, sobretudo aqueles que exigiam maior esforo fsico ou que lidavam com sangue; em segundo, a instabilidade e as restries poltico-administrativas impostas Cmara de Salvador, quer pelo governo geral, quer pela corte. Como exemplo de interferncia de rgos superiores da corte, escrevia Vilhena15:uma outra origem de desordem no Senado a ascendncia que o Supremo Tribunal da Relao tem arrogado sobre ele, sendo certo que querendo o Senado fazer obviar algumas infraes das leis municipais, e ainda portarias dos excelentssimos governadores interpem a parte um agravo para a Relao, e tem por certo o provimento com que j conta quando agrava; motivo por que vem a ficar sem validade as posturas, e reiteradas portarias do Senado, ou para melhor, o presidente iludido, e os perversos com a mo alada para descarregarem quando este obsta as suas pretenses.16

Apesar disso, a Cmara e os oficiais mecnicos tentaram organizar suas corporaes mesmo sem os poderes, isenes e privilgios, que haviam conquistado a partir de 1641, e que perderam em 1713. Essas tentativas esto registradas nos manuscritos existentes no Arquivo Histrico da Prefeitura Municipal do Salvador, sob a guarda da Fundao Gregrio de Mattos. Embora a documentao tenha sofrido vrias interrupes ou esteja danificada, pode-se, h alguns anos, de uma maneira genrica, estabelecer a histria dos ofcios mecnicos do Salvador17, correlacionando-a de Lisboa. As atividades dos oficiais mecnicos eram reguladas, em parte, pelo Livro de Regimentos dos Oficiais mecnicos de Lisboa, de 1572. Nesses regimentos, reformados pelo marqus de Pombal em 177118, foram baseadas as posturas estabelecidas pela Cmara de Salvador. Em 1704, os oficiais mecnicos requereram ao rei que, em Salvador, se observassem os estilos, ou costumes, da corte para a eleio de seus juzes em casas particulares, como a Casa dos Vinte e Quatro, de Lisboa. Solicitada a opinio da Cmara, esta procurou dar esclarecimentos ao rei sobre as irregularidades e diferenas na observncia desses estilos19. A maioria das eleies, apesar desse pedido, continuou sendo realizada na Cmara, conforme o costume desta. Em Salvador, chamava-se vulgarmente de regimento lista de preos das obras que os oficiais mecnicos executavam, e no um conjunto de normas de procedimentos. Essa lista era estabelecida em comum acordo com a Cmara, enquanto existiram os juzes do povo e os mesteres, e depois somente pela Cmara. Os regimentos dos diversos ofcios~41~

Mobilirio baiano

constam dos livros de posturas da Cmara. As atividades de alguns artfices, entretanto, eram regulamentadas pelos regimentos das confrarias. Esses regimentos e/ou as posturas da Cmara definiam a vida pblica e profissional dos artfices. As posturas, estabelecidas pela Cmara, eram lidas em preges pblicos, nas praas e ruas costumadas da cidade, praia e seus arrabaldes, em voz alta e inteligvel, para que fossem bem entendidas por todo povo e que ningum pudesse alegar ignorncia20. Qualquer pessoa do povo podia denunciar os culpados que agiam contra as posturas e tinham direito tera parte das condenaes, as coimas21. As penas impostas eram aplicadas pelos almotacs das execues, a pedido dos juzes de fora ou da Cmara. Os primeiros livros de posturas foram perdidos. Sabe-se que, com a entrada dos inimigos rebeldes de Holanda se haviam perdido os livros da Cmara, e pedia-se, expulsos os invasores,que se pusessem [...] o traslado das posturas, que se haviam feito antes disso, e estavam nos ditos livros perdidos das quais ainda havia alguma notcia, por estar o traslado delas em poder do escrivo da Almotaaria Joo Mendes Pacheco, as quais de novo haviam por boas, e mandaram se copiassem como nelas se continham, e que pelas penas nelas estabelecidas fossem executadas as pessoas que cassem em coima, e fossem contra elas.22

Com referncia aos oficiais mecnicos, as posturas da Cmara de Salvador estabeleciam que de novo se mandavam cumprir, e executar nas pessoas que forem contra elas (1625), e definiam:que nenhum oficial de qualquer ofcio ponha tenda sem licena da Cmara, e fiana nela, e seja examinado, e tenha seu regimento a porta, pena de seis mil ris .............................................................................................................................................6$00023. que todos os oficiais sero obrigados a acompanhar a bandeira os dias das procisses del Rei, pena de seis mil ris ..................................................................................... 6$000.24

Ao pedir a licena Cmara, os oficiais mecnicos pagavam fiana, apresentando avalistas. A fiana era vlida por um ano, ou seis meses para aqueles que recebiam pagamento de terceiros25. Registravam-se em livros prprios os nomes dos oficiais e, por vezes, os endereos e tipo de atividade26. As licenas para os escravos eram tiradas em nome de seus senhores, os quais pagavam a fiana. Poucos foram os oficiais que cumpriram com regularidade essas duas obrigaes: licena e exame.

~42~

Mo de obra: os ofcios mecnicos

oFcios

e Hierarquia

Existiam, na Cidade do Salvador, os seguintes ofcios denominados mecnicos: barbeiro, sapateiro, carpinteiro de obra branca ou de edifcios, carpinteiro das naus da ribeira, carapina, correeiro, dourador, espadeiro, esparteiro, ferreiro, latoeiro, marceneiro, ourives do ouro e da prata, parteira, pasteleiro, pedreiro, polieiro, sangrador, seleiro, serralheiro, sombreiro, tanoeiro, tintureiro, torneiro, alfaiate, anzoleiro. Muitos dos ofcios existentes em Lisboa no passaram para o Brasil por no serem de primeira necessidade ou, ento, foram anexados a outros ofcios. As demais atividades constituam, normalmente, monoplio real. Como dizia Jos da Silva Lisboa a Domingos Vandelli, em 1781, as artes na Bahia se reduzem aos ofcios mecnicos de pura necessidade27. Hierarquicamente, encontravam-se em So Paulo o mestre, o oficial, os aprendizes e os serventes, enquanto na Bahia existiam o mestre, o oficial, os aprendizes e os jornaleiros. Com a exceo dos serventes e jornaleiros, os demais podiam e deviam prestar exames para galgar os ttulos superiores da hierarquia. Os exames consistiam na confeco de uma obra prpria do ofcio ou em questionrio sobre os principais conhecimentos que o candidato devia possuir. A execuo da obra, objeto de exame, no tinha prazo definido. Podia estender-se por meses. Apenas em caso de troca de juzes ficavam os examinados obrigados a conclu-la em um tempo predeterminado. A avaliao cabia aos juzes anteriores. O exame era individual, vlido para o profissional nele inscrito. Se no fosse habilitado na primeira examinao, o candidato deveria submeter-se a outros exames seis meses depois. Nesse intervalo, permanecia como aprendiz na tenda de um mestre, voltando tantas vezes quantas fossem necessrias at receber aprovao. Alguns ofcios, dependendo do lugar e da poca, foram interditados. Em 1578, em So Paulo, o ferreiro Bartolomeu Fernandes foi proibido de ensinar o seu ofcio a um ndio porque era grande prejuzo da terra. J em Porto Seguro, ao contrrio, na segunda metade do sculo XVIII, determinou-se que os meninos ndios fossem alocados em casas de oficiais mecnicos, separando-os das famlias, para que no continuassem a falar a lngua materna, aprendessem algum ofcio e se civilizassem. Ficavam em companhia dos mestres ou amos at o tempo do casamento. O produto dos pagamentos devia ser aplicado no vesturio, na compra de gado ou ferramentas para a lavoura, telhas e confeco de suas casas. Em qualquer circunstncia, como compensao pela ajuda, os mestres e amos deviam sustentar seus aprendizes e dar-lhes vesturio de uso semanal e festivo, alm de remunerao por outros servios prestados28. Mas, como grande parte dos habitantes do Brasil, estavam todos envolvidos, a partir de 1763, na procura do ouro, no importa onde.~43~

Mobilirio baiano

aprendizesA aprendizagem de um ofcio era direta, realizando-se por meio da convivncia, da observao. Podia durar de dois a doze anos. H notcias de que, em 1727, a Santa Casa da Misericrdia da Bahia colocava os filhos de seus escravos como aprendizes de barbeiro para que aprendessem a arte de sangrar. No fim de trs anos, o barbeiro recebia 12$000 ris por cada criana que ensinasse. Em So Paulo, em 1716, Manoel Mendes dos Santos, aps a morte de sua mulher, Antnia da Conceio, encaminhou seu filho, Joo de Passos, para aprender o ofcio de alfaiate com o mestre Martinho Rodrigues Tinoco. Na ocasio, assinou um termo de compromisso pelo qual se obrigava a pagar 30 mil ris ao mestre caso o jovem fugisse ou adoecesse. O compromisso valia por dois anos. Jos dos Passos contava, ento, 18 anos. Nem todos os pais faziam um contrato por escrito. Este podia ser oral, permanecendo entre ambos, pais e mestre, um contrato moral. No havia idade certa para o incio da aprendizagem. O aprendiz era colocado sob a guarda do mestre ou, como chamavam, do amo. Este no somente lhe ensinava o ofcio, como o educava e, a ttulo de educao, tambm se servia dele para todos os demais servios, principalmente domsticos. O aprendiz podia ser castigado, eventualmente, com penalidades corporais. Permitia-se aos mestres ter no mximo dois aprendizes, para garantir a eficincia da aprendizagem. A falta de mestres, no entanto, por todo o Brasil, mesmo em Salvador, levou os aprendizes a procurar as tendas dos oficiais, sem que estes fossem ou tivessem o ttulo de mestre. Na Bahia, a inobservncia de regimentos, ou posturas, favoreceu essa prtica. No existia, pelo menos em Salvador, a categoria de meio-oficial, de que Serafim Leite29 d notcia, repetida por Jos Mariano Filho30. Existiam, como se disse, jornaleiros e escravos admitidos como obreiros31. No h registros sobre os custos desse aprendizado. Entre os brancos, o pai do aprendiz estabelecia um contrato formal, ou moral, com o mestre. A aprendizagem podia ser paga em espcie ou em servios prestados pelo aprendiz. No caso dos escravos, supese que prevalecessem as mesmas prticas de remunerao, sob a responsabilidade de um amo ou mestre, como se observou em relao aos aprendizes da Misericrdia. Por vezes era o prprio senhor de escravos, com uma ocupao artesanal, quem ensinava gratuitamente, possibilitando aos aprendizes aperfeioarem-se at chegar a oficiais. Os escravos podiam tambm aprender com os oficiais da prpria senzala. (No eram os senhores que iam ensinar na senzala, mas existiam escravos oficiais de algum ofcio que, naquele lugar, podiam ensinar aos outros)~44~

Mo de obra: os ofcios mecnicos

Juzes

e escrives

Para cada ofcio havia um ou dois juzes e um escrivo. Em Lisboa e outras cidades e vilas do Reino, podiam ser eleitos apenas os que fossem mestres e, no caso dos escrives, aqueles que soubessem escrever, ler e contar. De acordo com os regimentos de 1572 e 1771, de Lisboa, a reeleio s era permitida trs anos aps o ltimo exerccio, salvo quando no houvesse oficiais categorizados32. Em Salvador, entretanto, parece ter havido carncia de homens com as qualidades requeridas, pois eram eleitos os mesmos juzes e escrives por anos consecutivos. O esprito de liderana e o maior empenho de alguns devem ter exercido certa influncia para que a escolha recasse sobre determinados representantes consecutivamente, mesmo porque o nmero de profissionais no era grande, como j se observou. As eleies eram efetuadas anualmente. Os regimentos de Lisboa estabeleciam datas fixas para cada ofcio. Em Salvador, porm, de acordo com os registros dos termos de eleies, essa norma no foi seguida. As datas das eleies variavam de ano para ano. Como j mencionado, os oficiais mecnicos recorreram ao rei em 1704, reivindicando que em Salvador se observassem os estilos da corte. Na carta dirigida a Sua Majestade, a Cmara comunicava:[...] sendo os ditos Oficiais os que com vrios pleitos e agravos se tm eximido de eleger juzes dos seus Ofcios e examinar se do ano de mil setecentos e um at o presente (1704) sendo uma e outra coisa conforme ao estilo desse Reino se atrevem eles a queixar se a Vossa Majestade das ditas demandas requerendo ao mesmo tempo a observncia dos estilos que at o presente tem impugnado os quais parece no deve Vossa Majestade mandar observar nesta Cidade por Lei porque assim como a Cmara dessa Corte e mais desse Reino as introduziram segundo a cada uma mais conveniente pareceu podemos ns tambm estabelecer os que mais convenientes forem a este Estado que em muitas causas discrepa desse Reino e com efeito neste Senado h tambm neste particular estilo que h muitos anos nele se pratica quase conforme com o de Lisboa e s diferente no modo das eleies dos seus juzes e cartas dos seus examinados por que de se fazerem ditas eleies fora deste Senado contra a forma que at o presente se usa se lhes d motivos aos subornos desatenes e tumultos que resultaram de se fazerem em uma casa particular e trazendo as assim feitas para se lhes dar o juramento vem este Senado a ser quase constrangido a aprovar eleies que podem ter muitas nulidades no sendo obradas em sua presena e o quererem que os seus nomes sejam somente escritos nos Livros da Cmara contra a regalia que ela tem de os confirmar por Proviso e dar-lhes nas costas dela o juramento estilo que se observa com os mais ofcios e oficiais que este Senado prove de juzes escrives pedneos e outros que com este exemplo no querero servir com mais ttulo nem com outro

~45~

Mobilirio baiano

instrumento que o de estarem os seus nomes escritos nos livros dele e sobre os examinados foi c sempre uso que com a certido dos examinadores lhes passamos suas provises o Senado.33

Nada conseguiram os oficiais. Os juzes eleitos e escrives continuaram a ser confirmados nos cargos por proviso do Senado da Cmara, com sinais e selo prprios, para um perodo de um ano, at o ltimo (dia) de dezembro. No verso da proviso transcrevia-se o termo de juramento dos Santos Evangelhos, para que bem e direitamente servissem o ofcio, guardando o servio de Deus e de Sua Majestade34. Aos juzes cabia efetuar as examinaes dos que desejavam exercer as atividades mecnicas, fazer visitas peridicas s tendas e lojas, avaliaes e vistorias das obras, estas ltimas quando convocados pela Cmara. Uma vez habilitado, o candidato recebia uma certido de exame, que devia apresentar Cmara, onde era tambm registrada em livro prprio. Recebia, ento, transcrita na prpria certido de examinao, uma carta de exame e a confirmao da certido. A certido era feita pelo escrivo do ofcio e assinada por ele e pelos juzes. O juiz de fora, os vereadores e o procurador assinavam a carta concedida pela Cmara. Na ocasio da apresentao da certido, os aprovados tambm prestavam juramento, segundo o qual ficavam sujeitos s posturas do Conselho da Cmara e demais acordos da mesa de Vereao, e se comprometiam a no se valer de nenhum privilgio. As cartas de examinao davam direito aos mestres de exercer seus ofcios e ter tenda aberta na Cidade do Salvador e seu termo, que compreendia parte do Recncavo. Teoricamente, os juzes e escrives no podiam examinar seus familiares, como filhos e parentes at quarto grau, cunhados ou aprendizes. Deviam requerer Cmara que lhes indicasse um substituto, de preferncia um juiz que tivesse servido no ano anterior. Tambm essa norma no foi rigidamente obedecida em Salvador. Os oficiais ou mestres estranhos, vindos de outras regies do Brasil ou de qualquer parte do Reino, deviam apresentar sua certido Cmara. Examinada e tida como verdadeira e sem vcio algum que duvidosa a fizesse, era confirmada sob a condio de que o requerente ficasse sujeito, enquanto residisse na cidade ou seu termo, s mesmas obrigaes que os demais oficiais mecnicos. Caso no possusse certido ou carta, o oficial devia submeter-se ao exame dos juzes do ano. Uma postura de 1716 previa que, na falta de examinao, era necessria a licena do Senado da Cmara para ter tenda pblica35, facultando, de certa forma, o exame.

~46~

Mo de obra: os ofcios mecnicos

Os profissionais no podiam desempenhar atividades que no fossem de seu ofcio, sob pena de cadeia e multa, para garantir a boa execuo das obras e os limites entre as ocupaes teoricamente, porque sempre houve conflitos resultantes de intromisses nas atividades alheias. No Rio de Janeiro, segundo ocorrncia registrada nos Autos de Litgio de 1759-1761, os mestres entalhadores no estavam sujeitos a exame, como se exigia dos carpinteiros e marceneiros. O litgio foi movido pelo mestre marceneiro Manoel da Costa Carvalho contra o mestre entalhador Francisco Flix Cruz, porque este estaria usando ilicitamente o ofcio daquele. Segundo os depoentes, alguns entalhadores vinham trabalhando em obras de marcenaria sem que ningum os impedisse, sendo freqentemente solicitados por outros ofcios, como os de pedreiros, carpinteiros, marceneiros e ourives, para dar riscos, moldes ou executar obras de talha, o que era hbito em Lisboa. Todas as testemunhas afirmaram pertencer aos marceneiros a funo de encaixilhar ou ensamblar obras lisas ou com talha, e que tanto marceneiros quanto entalhadores interferiam nessas obras, como acontecia na corte e outras cidades do Reino, trabalhando uns nas casas dos outros. Em seus depoimentos, esclareciam como uns artfices complementavam o trabalho dos outros. Uma das testemunhas dizia que sabe pelo ver, que ao marceneiro pertence fazer cadeiras, e tamboretes, leitos, catres, e outras semelhantes obras lisas, emolduradas, mas entalhe, que em algumas das ditas obras de marceneiro se faz as mandam estes fazer a entalhador36. V-se que, como na escultura, vrias pessoas colaboravam numa pea. Manoel de Arajo, furriel do Tero de Auxiliares do Rio de Janeiro, testemunha no mesmo litgio, dizia que h vinte e um anos trabalhava na cidade de Lisboa e no Rio de Janeiro e que nunca lhe proibiram de fazer, em sua loja de entalhador, as obras de talha ou sem ela. E disse mais: [...] que sabe pelo ver, que os entalhadores desta Cidade no so obrigados ao exame, nem examinados, e s o foram em Lisboa por se anexarem a bandeira, e Irmandade dos marceneiros para entrarem na Casa dos Vinte e Quatro alternativamente com os ditos marceneiros.37

Conflitos semelhantes ocorreram em Lisboa. Ao fim de meio sculo de litgios entre carpinteiros da rua das Arcas e marceneiros, estes passaram a se denominar, a partir de 1767, carpinteiros de mveis e samblagem. Isso explica a denominao daqueles mecnicos que chegaram ao Brasil na segunda metade dos setecentos e a adoo da mesma designao na Bahia. Eram os carpinteiros de obra preta e se diferenciavam dos carpinteiros de obra branca, figuras estas das mais essenciais nos engenhos.

~47~

Mobilirio baiano

Em Salvador no se encontram referncias a registros de cartas de exames, eleies ou provises relativas a entalhadores. Constituem excees as solicitaes dirigidas Cmara a partir de 1790 por Toms Rodrigues de Santana, que pretendia ento obter licena para ter tenda de entalhador na rua das Laranjeiras38. Em 1797, entretanto, ele aparecia como marceneiro39 e, a partir de 1819, passou a solicitar licena para vender obras de marcenaria40. A malcia dos oficiais mecnicos deu origem a acrescentamentos, ou acrscimos, s antigas posturas e, em fins do sculo XVIII, com respeito s cartas de examinaes e licenas, diziam:que nenhum oficial, ou qualquer outra pessoa, cujo trato carea de licena, carta de exame, digo, do Senado da Cmara para usar dela no se valha de licena, carta de exame, ou regimento concedido a diversa pessoa tomando para esse fim o nome de terceiro ausente, ou defunto [...] o no faa antes tire as ditas licenas em seu nome com pena de seis mil ris e trinta dias de cadeia pela malcia com que se houver neste requerimento.41

Com base nessa prtica, muitos trabalhavam como jornaleiros para algum mestre fugindo obrigao de tirar a licena necessria e submeter-se aos exames ou em parceria com oficiais licenciados. Todos deviam ter o seu regimento porta:[...] que nenhum oficial de qualquer ofcio esconda a taxa do seu ofcio caso que a tenha, a qual vulgarmente se chama Regimento antes a pender-se a porta da mesma tenda para que o povo leia nela os preos das obras, que lhe vai encomendar pena de quatro mil ris.42

O regimento, ou melhor, a lista de preos era estabelecida pela Cmara. Por meio da listagem das obras e respectivos preos ou salrios, esta procurava controlar de perto as obras executadas. As intervenes das Cmaras portuguesas nos exerccios mecnicos, administrativa e judicialmente, foram sempre mais rigorosas. Em Salvador, a prpria situao de Cmara de terra conquistada tirava desta grande parte de seu poder, como notificado pelo Tribunal da Relao.

obrigaes

religiosas

Alm das obrigaes burocrticas, os oficiais mecnicos tinham obrigaes de ordem religiosa. Todos deviam acompanhar a bandeira43 representativa de seu ofcio nos dias das procisses del Rei ou do Senado, sob pena de multa e priso.~48~

Mo de obra: os ofcios mecnicos

A instituio chamada bandeira no existiu em Salvador. A palavra designava apenas o estandarte que os oficiais mecnicos deviam portar nas festas organizadas pela Cmara ou pelas confrarias. Esse estandarte era zelosamente guardado. Em Minas Gerais, os oficiais mecnicos eram obrigados a mant-lo na Cmara. Acredita-se que os oficiais mecnicos de Salvador tambm guardassem os estandartes na Cmara, retirando-os por ocasio das festas, por no disporem de casa particular ou de instituio como a Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa. Nas festas, cabia Igreja o cerimonial litrgico, enquanto o brilhantismo do acontecimento dependia do Senado da Cmara. Esta dividia os grupos por profisses e elegia um encarregado dos festejos o cabo da festa , que assinava um termo de responsabilidade comprometendo-se a organizar, especialmente, os festejos oficiais44. Os artesos deviam participar ativamente dessas procisses, comparecendo com os estandartes dos padroeiros e insgnias dos respectivos ofcios mecnicos. O costume de realizar essas procisses chamadas del Rey, por serem obrigatrias e regidas pelas Ordenaes Filipinas passou de Lisboa para o Brasil45. As procisses del Rey eram obrigatoriamente patrocinadas pela Cmara, que alm de Corpus Christi, So Sebastio, So Felipe e Santiago, Santo Antnio de Arguim e So Francisco Xavier, eram as procissesde So Sebastio [que foi] criada em memria do Serenssimo Rei Dom Sebastio, a de So Filipe Santiago, em ao de graas da feliz restaurao desta Cidade e a de Santo Antnio de Arguim, cuja criao foi por razo dos inimigos o tomarem na fora de Arguim, tratando mal o Santo, o fez dar a Costa na dita Capitania [Bahia] e apareceu o Santo em uma pedra em p [em Itapu].461 Busto de So Francisco Xavier, sculo XVII, padroeiro da Cidade do Salvador. Acervo da Catedral Baslica do Salvador.

Essas procisses e a obrigatoriedade de acompanh-las foram extintas em 1828, com exceo da de Corpus Christi47. A procisso de So Francisco Xavier, escolhido como padroeiro da cidade, foi instituda por voto solene do povo baiano em 10 de maio de 1686 (figura 1). A confraria dessa invocao estava instalada na atual Igreja Catedral. A procisso, que havia sido extinta com as demais, em 1828, foi restabelecida em 1860 pela mesma confraria. A festa de Corpus Christi parece ter cado em desuso nas cidades brasileiras por volta de 1668, segundo informou Balthazar da Silva Lisboa48. Notificao do Senado da Cmara da Cidade do Salvador49 destacava a necessidade de retomar os usos e costumes, e interessante descrever como, em 1673, se recomendava realizar a procisso.~49~

Mobilirio baiano

Por haver crescido muito todos os ofcios, e estavam alguns sem concorrerem para as ditas procisses com parte nem coisa alguma, concordaram os oficiais da Cmara de Salvador, estando presentes o juiz do povo e mesteres, que os oficiais de carpinteiro deviam apresentar na procisso de Corpus Christi a bandeira de costume e a armao de madeira para a serpe [serpente] e mais madeira que se precisasse, tendo a mesma obrigao os marceneiros e torneiros. Os oficiais de alfaiate deviam apresentar a bandeira de costume e o pano com que se cobria a serpe, pintado e aparelhado. Uns e outros deviam fornecer os negros necessrios para carregar a serpe. Os sapateiros deviam apresentar a bandeira do costume e o drago [drago]; os pedreiros uma bandeira, os tintureiros, sombreiros, funileiros e tanoeiros apresentar uma bandeira e quatro cavalinhos fuscos; os padeiros e confeiteiros apresentar dois gigantes e uma giganta e um ano, que o vulgo, ou povo, chamava Pai dos gigantes. Os ferreiros, serralheiros, barbeiros, espadeiros, correeiros, todos pertencentes Confraria de So Jorge, eram obrigados a apresentar uma bandeira, ou guio, conforme o costume e o Santo de vulto na sua charola, sendo este Santo de figura a cavalo, armado, ou acompanhado, de pagem, alferes, trombeta, tambores e seis sargentos da guarda, todos vestidos decentemente e armados. As vendeiras de porta, taverneiros e taverneiras e esparteiros deviam apresentar quatro danas. Os marchantes fornecer trs tourinhas. falta com essa determinao, prometia-se pena de seis mil ris que seriam pagos da cadeia. A coima, ou multa, seria encaminhada para as obras da Cmara e Cadeia nova.50.

Documento idntico foi expedido no Rio de Janeiro, dando apenas aos marceneiros a incumbncia de contribuir com a imagem do Menino Jesus e aos marchantes a atribuio de apresentar, alm das tourinhas, a figura de Davi e que no sejam coisas ridculas, recomendava-se naquela capitania, em 170451. Os acrescentamentos, ou modificaes, feitos s posturas em 1742, determinavam que os oficiais mecnicos, nas procisses do Senado e nas demais em que eram obrigados a levar bandeiras, deviam comparecer com toda a modstia, quietao e compostura, vestidos com suas casacas e gravatas, e no com capotes, como at ento usavam, sob pena de seis mil ris de multa, pagos da cadeia, onde ficariam presos por trinta dias52. Por volta de 1830, desapareceu a exigncia de se registrar na Cmara os documentos referentes aos ofcios mecnicos. As profisses passaram a ser exercidas independentemente de qualquer interveno da edilidade, dentro da nova organizao que se estabeleceu, transformando-se os Senados da Cmara em Intendncias e, depois, em Prefeituras e Cmaras Municipais53, atravs da Lei de 1 de outubro de 182854. Como os demais comerciantes, os oficiais mecnicos continuaram com a obrigao de pedir licena para abrir estabelecimento prprio. Entre eles encontravamse os marceneiros, executores das obras que interessam diretamente a este estudo, e os torneiros, correeiros e serralheiros, que contribuam com os acessrios.~50~

Mo de obra: os ofcios mecnicos

os

oFiciais Mecnicos dos Mveis

As atividades dos correeiros e dos serralheiros eram regulamentadas pelas posturas dos respectivos ofcios. J as dos marceneiros regulamentavam-se, em parte, pelo regimento de Lisboa e, em parte, pelo da Confraria de So Jos, dos pedreiros e carpinteiros. Somente em 1785 encontrado, nos livros de posturas, o Regimento dos Marceneiros55. Nas primeiras dcadas do sculo XVIII, pediram licena Cmara diversos oficiais e mestres marceneiros, torneiros e ensambladores, vindos principalmente do Norte de Portugal. No fim do mesmo sculo, vrios carpinteiros de mveis e samblagem, provenientes de Lisboa56, passaram a trabalhar em Salvador57. Seguindo o costume do Porto, Viana ou Lisboa, os oficiais apresentavam suas certides e cartas de exame na Cmara de Salvador, que lhes passava, como o fazia a todos os que vinham do Reino, uma licena geral, como a do exemplo abaixo, ou simplesmente registrava suas cartas nos livros prprios.Registro de uma Licena geral de marceneiro e torneiro de Simo Henrique. O Doutor Juiz de fora Vereadores e procurador do Senado da Cmara desta Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos etc. Fazemos saber a todos os juzes, vereadores e procurador do Conselho desta Capitania e bem assim a todos os corregedores, provedores, ouvidores, julgadores e justias e mais pessoas do Reino de Portugal e suas Conquistas a quem apresente licena geral for apresentada, e o conhecimento dela deva e haja de pertencer que a nos enviou a dizer Simo Henrique oficial de marceneiro e torneiro que pela carta junta consta haver sido examinado na cidade do Porto no ano de mil e seiscentos e noventa e sete pelos juzes do dito ofcio que no dito ano serviam o qual exame fora julgado por bom como da dita carta consta, porm como a jurisdio daquele Senado seno estendia a mais que a todo o seu termo nos requeria que visto de presente se achar nesta cidade queria usar do dito seu ofcio de marceneiro e torneiro com sua tenda aberta e por nos constar da dita carta ser verdade o que relatava por no ter vcio que dvida fizesse, havemos por bem de lhe confirmar e pela presente lhe confirmamos, ficando sujeito as posturas do Conselho e mais acrdos da mesa de Vereao contra o que no poder valerse de privilgio algum e nesta forma lhe concedemos licena para que nesta cidade e seu termo possa usar do dito ofcio sem que lhe seja posto impedimento algum. Pedimos aos senhores julgadores assim a faam cumprir e guardar como nela se contm em suas jurisdies para o que ns tambm faremos o que por parte de Vossa Merc nos for requerido e deprecado. Bahia e Cmara de fevereiro vinte e trs de setecentos e trinta e dois Joo de Couros Carneiro ao subscrevi/Manuel Correia de Mesquita Basto/Custdio Rodrigues Lima/Marcelino Soares Ferreira/ Manoel Xavier Ala/Antnio da Costa de Andrade/Selo. Lima.58

~51~

Mobilirio baiano

Dos naturais da terra e dos portugueses que haviam iniciado sua atividade mecnica em Salvador, um nmero diminuto se submeteu aos exames. Constam poucos registros de suas examinaes, entre os manuscritos da Cmara. Grande parte dos marceneiros pedia simplesmente sua licena, pagando fiana para ter tenda aberta ou loja para vender mveis ou trastes usados. Pelas licenas verifica-se que no eram raros os casos em que os marceneiros possuam duas tendas, ou uma tenda e uma loja para vender mveis, embora isso fosse proibido. Verificou-se o mesmo em Minas Gerais, onde prevaleceu o uso de licenas, por exemplo, em Vila Rica59. Os sapateiros e alfaiates foram mais regulares no cumprimento das posturas que os obrigavam a ser examinados. As certides apresentadas Cmara e as licenas por ela fornecidas seguiam, com adaptaes locais, o formulrio daquelas expedidas na corte:Registro da Carta de exame do Ofcio de Marceneiro passado a Vitorino Gomes Romo O Doutor Juiz de Fora, Vereadores, e Procurador do Senado da Cmara desta Cidade da Bahia e seu termo etc. Fazemos saber aos que esta Carta de Exame virem, que por nos constar por Certido do Juiz e Escrivo do Ofcio de Marceneiros haverem examinado a Vitorino Gomes Romo, e o acharem apto para exercer o dito ofcio, havemos por bem de conceder licena ao dito Vitorino Gomes Romo, para que possa usar do dito seu Ofcio de Marceneiro, e ter sua tenda aberta nesta Cidade e seu termo / enquanto no mandarmos o contrrio / e far termo de no usar de privilgio algum e responder perante os Almotacs das Execues deste Senado, guardando em tudo as ordens da Vereao e Posturas, em firmeza do que lhe mandamos passar a presente sob nossos sinais, e selo, e se registre. Bahia em Cmara 14 de fevereiro de 1795. Jos Rodrigues Silveira, escrivo do Senado a fez escrever. Vieira/Bitancourt/Andrade/Braga. Lugar do Selo. Bitancourt.

A seguinte licena se apensava Certido de Exame:Jos Gomes Romo e Antnio da Encarnao Juzes do Ofcio de Marceneiro, e Torneiro nesta Cidade da Bahia e seu termo etc. Porquanto examinando a Vitorino Gomes Romo, oficial do dito ofcio de marceneiro, o achamos com a suficincia necessria para usar dele com sua tenda aberta, assim de obra preta como da branca, lhe passamos sua Carta de Exame, que a presente a qual rogamos ao Meritssimo Senhor Doutor Juiz de Fora, Presidente do Senado da Cmara, e aos Senhores Vereadores, se dignem mandar lhe dar todo o vigor e cumprimento visto tambm constar haver o dito aprovado satisfeito a sua esmola ao glorioso patriarca o Senhor So Jos. Dada e assinada por ns sobreditos mestres do ofcio na Bahia aos 10 de fevereiro de 1795. Eu, por falecimento do escrivo Gonalo Arajo o mandei escrever e assinei Jos Gomes Romo / Antnio Encarnao Pessoa / Escreveu-se-lhe o termo de obrigao onde assinou o dito e o escrivo do Senado e prestou o juramento do estilo.60~52~

Mo de obra: os ofcios mecnicos

A partir da segunda metade do sculo XVIII, passou a constar, nas certides de exames dos marceneiros aprovados, terem os mesmos satisfeito a sua esmola ao Glorioso Patriarca o Senhor So Jos. Por essa poca organizou-se a Confraria de So Jos, constituda pelos ofcios de carpinteiro, pedreiro e agregados mesma bandeira marceneiros, torneiros, canteiros e alvneos. Tinham capela privativa do patrono na antiga Igreja da S, onde se realizavam as eleies dos juzes dos ofcios de carpinteiro e pedreiro e dos membros da mesa da confraria. Encontra-se no Arquivo Histrico Ultramarino o Compromisso da Confraria de So Jos, ou seja, o Compromisso e Regimento Econmico dos Ofcios de Carpinteiro e de Pedreiro e dos mais agregados a Bandeira do Glorioso So Jos e sua Confraria ereta na S Catedral da Cidade da Bahia dedicado ao mesmo glorioso Santo e feito na dita Cidade no ano de 178061 (figura 2). Os artfices, na maior parte dos ofcios, herdaram os regimentos lusos, em especial os de Lisboa, que foram adaptados aos novos locais, como o Brasil, principalmente por causa da presena dos ndios e dos escravos. interessante notar que esse Compromisso foi praticamente copiado do Regimento e Compromisso da Mesa dos Ofcios de Pedreiros e Carpinteiros da Bandeira do Patriarca So Jos ano de 1709, de Lisboa62. Diferenciava-se apenas em dois captulos e acrescentamentos, destacados em negrito nos registros abaixo. O item 5, do Captulo VIII, do regimento lisboeta, rezava:No poder Oficial algum ser admitido no referido exame sem mostrar primeiro Certido do Mestre com quem aprendeu, de ter acabado o seu tempo. No poder ser admitido ao dito exame negro de qualidade alguma e s sim pardo que seja forro pelo pai (se) assim o permitir. E sendo caso, que algum oficial se queira examinar do ofcio de canteiro e alvneo, ser obrigado a mostrar que aprendeu um, e outro ofcio por certido dos mestres deles; e sendo assim examinados, sero obrigados a registrar a sua carta no Senado da Cmara; e sendo achado, que antes do referido exame usam dos ditos ofcios sero condenados todas as vezes que forem compreendidos, em seis mil ris, metade para o Senado e a outra para o ofcio.2 Capa do Compromisso e Regimento Econmico dos Ofcios de Carpinteiro e de Pedreiro e dos mais agregados a Bandeira do Glorioso So Jos e sua Confraria ereta na S Catedral da Cidade da Bahia dedicado ao mesmo glorioso Santo e feito na dita Cidade no ano de 1780.

E lia-se no Captulo X:Atendendo que tendo os mestres muitos aprendizes, nem estes podero sair bons oficiais, nem as obras feitas como convm. No poder mestre algum ter mais de dois aprendizes; e para constar de como no excedem a disposio deste captulo; sero os mestres obrigados a fazer presentes a mesa os aprendizes que ensina, e

~53~

Mobilirio baiano

sendo achado que ensinam mais de dois como fica dito; sero condenados em oito mil ris para a mesa do ofcio; e lhe sero tirados os tais aprendizes, que demais tiverem. Na mesma forma incorrer qualquer mestre que tomar aprendiz que seja negro, nem ainda mulato cativo; pois s ensinar brancos, ou mulatos forros. 63 As eleies dos marceneiros continuaram a se realizar na Cmara, ao estilo desta ou na capela da Confraria. Eram eleitos dois juzes e um escrivo pelos demais oficiais de marceneiro, no mesmo dia, frente aos vereadores a mais votos. Registravam-se os termos das eleies em livro prprio e os eleitos eram providos em seus cargos por Proviso do Senado da Cmara64.

Tem-se a relao dos juzes e escrives eleitos entre 1706 e 1809. Destacam-se entre eles alguns personagens, como Jos Rodrigues Marrecos65, que exerceu sua atividade em fins do sculo XVII e princpios do XVIII e Gaspar dos Reis Souza, originrio do Porto, que, embora registrasse sua certido somente em 1707, serviu de primeiro juiz no ano anterior. Pode-se citar tambm Manoel de Souza Ribeiro, de origem portuguesa, que somente em 1745 solicitou sua licena, embora tivesse servido como juiz em 1725. Merecem ainda referncia Toms de Arruda Pimentel e Belchior Francisco da Cruz, que ocuparam por vrias vezes o cargo de juiz, bem como Jos Gomes Romo, que exerceu sua atividade entre 1756 e 1808, e Vitorino Gomes Romo ambos juzes numerosas vezes , Jos Dias Rebouas, Jos Vicente de Santana Pereira e Antnio da Encarnao Pessoa, entre outros. Foi registrado nos livros da Cmara um nmero reduzido de marceneiros entre 1700 e 1705, perodo em que esses profissionais solicitaram ao rei o direito de eleger juiz e escrivo fora da Cmara. At meados do sculo XVIII, quase todos prestavam exame para os ofcios de marceneiro e de torneiro simultaneamente. Uma vez examinados, os marceneiros podiam exercer seu ofcio em tenda assim de obra preta como de branca66, enquanto os carpinteiros podiam executar somente as obras brancas, ou de carpintaria de edifcios. Houve, no entanto, aqueles que desempenhavam todas as atividades, como Lus Adriano da Silva (1792-1805), que solicitou vrias licenas Cmara, ora para exercer o ofcio de marceneiro, ora de carapina e de carpinteiro, ou mesmo para vender madeiras, tendo sido juiz de marceneiro em 1804. tambm o caso de Loureno da Porcincula que, sendo carpinteiro, compareceu s eleies dos marceneiros de 1809.

coMposio

social dos oFiciais

Os marceneiros e torneiros eram em sua maioria brancos, sendo raros os pretos, pardos e mulatos, forros ou escravos. Na documentao consultada no Arquivo Histrico da Prefeitura Municipal do Salvador, no transcorrer de um sculo e meio (1700-1850),~54~

Mo de obra: os ofcios mecnicos

estavam registrados apenas oito homens de cor, entre os quais negros e crioulos forros. Provavelmente os marceneiros brancos possuam vrios oficiais e escravos sem que estes fossem examinados na Cmara, pois a profisso, pelo que se sabe, no era rigorosamente regulamentada nem fiscalizada. Encontrava-se um maior nmero de negros, especialmente escravos, em determinadas profisses, como as de alfaiate, sapateiro, carapina, tanoeiro, calafate, ferreiro, vendeiro, vendeira de porta ou ganhadora de rua. Eram os negros que exerciam, especialmente, ofcios que envolviam a lida com sangue, como os de cirurgio, sangrador, barbeiro ou parteira. Interessante era a figura do barbeiro, que, alm de suas atividades especficas cortar cabelos e fazer barbas , tambm encanava pernas e braos quebrados, tirava dentes, aplicava ventosas, sanguessugas e fazia sangrias67, alm de ensinar msica. No raras vezes tinha um conjunto musical e sua presena ficou marcada nas despesas, por exemplo, das festas de Santo Antnio ou So Francisco, dos frades franciscanos, de Salvador, que registravam a msica de barbeiros, alm da msica de organista. Os franciscanos tambm registraram, na dcada de 1830, a compra de oito navalhas, quatro lancetas e dois botices para seus escravos barbeiros68. Jean Baptiste Debret69, no sculo XIX, dizia:[...] O oficial de barbeiro no Brasil quase sempre um negro ou pelo menos escravo. Esse contraste, chocante para o europeu, no impede ao habitante do Rio de entrar com confiana numa dessas lojas, certo de a encontrar numa mesma pessoa um barbeiro hbil, um cabeleireiro exmio, um cirurgio familiarizado com o bisturi e um destro aplicador de sanguessugas.

Aps 1808, 84% dos pedidos para o ofcio de sangrador, feitos Fisicatura-mor70, eram de forros ou escravos. Em Minas Gerais, entre 1832 e 1871, todos os barbeiros tinham essa condio71. Alguns cronistas e historiadores notaram que se considerava socialmente degradante para os homens brancos ocupar os ofcios mecnicos. Alm de serem muito poucas as artes mecnicas e fbricas em que possam empregar-se, nelas mesmas o no fazem, pelo cio que professam, e a conseqncia que daqui pode tirar-se, que infalivelmente ho de ser pobrssimos, dizia Vilhena72. No era numerosa a classe dos oficiais mecnicos, se forem contados entre os brancos. Permanecia a mesma situao registrada por Jos da Silva Lisboa, como foi referido antes, em 1781. Os dispositivos relativos proibio da participao dos negros nos ofcios foram se adaptando nova realidade do Brasil, medida que o tempo avanava. Apesar dessa proibio, constante no Compromisso citado e, supe-se, em outros compromissos, verifica~55~

Mobilirio baiano

se que a regra foi rompida, pois, nos sculos XVIII e XIX, encontram-se vrios oficiais de pedreiros e carpinteiros escravos. Mesmo assim, havia diferenas nas diversas atividades, quanto separao ou aproximao entre as dos brancos e as dos negros. Na realidade, o nmero maior de escravos e pardos que exerciam ofcios aparece no sculo XIX, quando a Cmara j no controlava o ingresso nas profisses mecnicas e as irmandades profissionais no possuam mais sua antiga organizao ou mesmo haviam desaparecido. Aquele sculo tambm trouxe os imigrantes, que relativizaram a vilania a que estavam supostamente condenados os oficiais mecnicos no perodo anterior. Em qualquer ocupao, verificavam-se vrias categorias relativas ao domnio e habilidade dos escravos. A classificao mais genrica dividia-os em ladinos, aqueles que j dominavam a lngua e costumes locais, e boais, os que no tinham esse domnio. Mas considerava-se tambm uma variedade de nveis, de meio boais, meio desassisados, meio oficiais, at negras sem profisso, sarnentas e talabardeiras73. Alm disso, o escravo podia ter apenas princpios de conhecimento, ser aprendiz, ter luz de ofcio ou ser oficial completo ou, ainda, oficial perito, oficial pouco perito mas jamais mestre74. No foi constatada dominncia de nenhuma das naes nos diversos ofcios. O comum era a presena de vrias naes, de acordo com a chegada de novos contingentes. Entre os 2.399 escravos identificados de 1730 a 1830, num total de 263 inventrios, somente 25% das ocupaes declaradas correspondiam s de oficiais mecnicos. Destes, 8% eram carapinas, 4% carpinteiros, 1% ferreiros. Por meio dessa amostragem verifica-se que nenhum dos oficiais empregados na elaborao dos mveis era escravo ou homem forro, o que confirmado por Silva75 nas pginas da gazeta Idade dOuro do Brazil, nas quais os artesos mais mencionados so os escravos:estes eram oficiais, ou aprendizes das vrias artes mecnicas necessrias sociedade colonial. Eram pedreiros, carapinas ou carpinas, ferreiros, calafates, sapateiros, pedreiros, barbeiros, etc. Quanto a seus mestres, brancos, pois s estes possuam a maestria, apenas acidentalmente lhes feita referncia nos anncios [...]

Entre os brancos, vrios militares exerceram o ofcio de marceneiro, como o alferes Manuel de Souza Ribeiro (1725-1745), de origem portuguesa, o capito Alberto Coelho Pereira (1787-1802), o ajudante Francisco do Rosrio Coutinho (1787-1797), o capito Loureno Julio dos Reis (1788-1804) e o tenente Pedro Teixeira de Magalhes Garcia (1788-1809). Todos exerceram cargos de juiz ou escrivo de ofcio. Normalmente, tratavase de oficiais das tropas auxiliares, que no recebiam soldo e precisavam exercer outra atividade para sua sobrevivncia.~56~

Mo de obra: os ofcios mecnicos

No sculo XIX, os oficiais mecnicos j trabalhavam por empreitada e reuniam em torno de si outros artfices capazes de cumprir os contratos. Ainda assim, a mulher tinha o direito de encabear os negcios do marido, caso este morresse. Por isso encontram-se os nomes de Joana Luza de Jesus (1820-1821) e Catarina Ferreira (1822) em pedidos de licena para vender mveis, provavelmente peas deixadas pelos maridos por ocasio do falecimento. Infelizmente no possvel identificar os respectivos maridos, porque no havia, na poca, a obrigatoriedade de uso do mesmo sobrenome entre marido e esposa e mesmo entre os filhos.

o

arruaMento dos oFcios

Ainda nos setecentos, a Cmara tentava estabelecer as arruaes dos ofcios. O sistema de arruao fora adotado em Lisboa para facilitar a fiscalizao efetuada pelos juzes nas tendas dos oficiais mecnicos. Nas cidades portuguesas urbanizadas no estilo que se observava em Salvador, as lojas e tendas espalhavam-se por labirintos de velhas ruas, situao que tornava rdua a fiscalizao. Com o arruamento obrigatrio, cada ofcio passou a ter um local determinado dentro da rea da cidade e s nesse local os respectivos oficiais podiam abrir loja76. Em Salvador foi determinado, pela Postura 33, de 178577, que os ferreiros e caldeireiros deviam se instalar do trapiche do Azeite at o hospcio dos Padres de So Felipe Neri; os negociantes de atacado ou retalho, promiscuamente, da Alfndega at a Igreja do Pilar, na Cidade Baixa, e, na Alta, das Portas de So Bento at as Portas do Carmo, pela rua Direita, e do Taboo at a Rua nova que se est fazendo; os latoeiros, funileiros, douradores e picheleiros, do incio da ladeira das Portas do Carmo at a Cruz do Pascoal; os mestres das tendas de barbeiro que ensinam a tocar instrumentos, no incio da ladeira do lvaro (Alvo) e bairro da Sade; os tanoeiros, na rua dos Coqueiros; os tabaqueiros, na rua do Passo; os alfaiates, seleiros e sapateiros, na rua que vem das Portas de So Bento at as Portas do Carmo, por trs de Nossa Senhora da Ajuda. Aos marceneiros, torneiros, carpinteiros de mveis e s