considerações sobre o cinema na teoria crítica

12
Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005 123 Considerações sobre o Cinema na Teoria Crítica. Adorno e Kluge: um diálogo possível CONSIDERATIONS ABOUT CINEMA IN CRITICAL THEORY. ADORNO AND KLUGE: A POSSIBLE DIALOGUE Resumo Este artigo problematiza a idéia comum, e presente em trabalhos acadêmi- cos, segundo a qual o filósofo Theodor Adorno nada entendeu de cinema e que sua postura em face do tema restringiu-se às críticas elaboradas por ele e Max Horkhei- mer, em Dialética do Esclarecimento . Neste estudo, constato que, precisamente quan- to a esse livro, os autores têm como referência o cinema hollywoodiano. Desconsi- derar esse fato é descontextualizar a crítica que elaboraram ao cinema. Adorno refletiu sobre cinema em outras obras (“Transparencies on film” e Composing for the Films ), nas quais apontou a possibilidade de um cinema nos moldes de uma arte emancipada. Por fim, influenciou teoricamente (e foi influenciado por) Alexander Kluge, um dos principais cineastas e líderes do Novo Cinema Alemão. A contribuição de Adorno para a análise do cinema é um campo ainda a ser mais bem pesquisado e requer ul- trapassar o senso comum acadêmico hegemônico na área. Palavras-chave CINEMA ESCOLA DE FRANKFURT ADORNO KLUGE NOVO CINEMA ALEMÃO. Abstract The article aims to question the ordinary idea present in some studies, according to which the philosopher Theodor Adorno understood nothing about cinema and his knowledge regarding this theme was limited to the critiques Max Horkheimer and him made in the Dialectic of Enlightenment . In this article I verified that as for this book in particular, the authors had the hollywoodian cinema as reference. Disregarding this fact means taking out of context their critiques on cinema. Adorno reflected about cinema in other works ( Transparencies on film and Composing for the films ), in which he signalizes the possibility of a film production as an emancipated art. He influenced theoretically (and was influenced by) Alexander Kluge, one of the principal filmmakers and leaders of the New German Cinema. Adorno’s contribution for cinema’s analysis is a field to be better researched and requires that one overcomes the hegemonic academic thought. Keywords CINEMA FRANKFURT SCHOOL ADORNO KLUGE NEW GERMAN CINEMA. ROBSON LOUREIRO Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) [email protected]

Upload: rodrigo-teixeira

Post on 27-Jun-2015

164 views

Category:

Documents


2 download

TRANSCRIPT

Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005 123

Considerações sobre o Cinema na Teoria Crítica. Adorno e Kluge: um diálogo possívelCONSIDERATIONS ABOUT CINEMA IN CRITICAL THEORY. ADORNO AND KLUGE: A POSSIBLE DIALOGUE

Resumo Este artigo problematiza a idéia comum, e presente em trabalhos acadêmi-cos, segundo a qual o filósofo Theodor Adorno nada entendeu de cinema e que suapostura em face do tema restringiu-se às críticas elaboradas por ele e Max Horkhei-mer, em Dialética do Esclarecimento. Neste estudo, constato que, precisamente quan-to a esse livro, os autores têm como referência o cinema hollywoodiano. Desconsi-derar esse fato é descontextualizar a crítica que elaboraram ao cinema. Adorno refletiusobre cinema em outras obras (“Transparencies on film” e Composing for the Films),nas quais apontou a possibilidade de um cinema nos moldes de uma arte emancipada.Por fim, influenciou teoricamente (e foi influenciado por) Alexander Kluge, um dosprincipais cineastas e líderes do Novo Cinema Alemão. A contribuição de Adornopara a análise do cinema é um campo ainda a ser mais bem pesquisado e requer ul-trapassar o senso comum acadêmico hegemônico na área.

Palavras-chave CINEMA – ESCOLA DE FRANKFURT – ADORNO – KLUGE – NOVOCINEMA ALEMÃO.

Abstract The article aims to question the ordinary idea present in some studies,according to which the philosopher Theodor Adorno understood nothing aboutcinema and his knowledge regarding this theme was limited to the critiques MaxHorkheimer and him made in the Dialectic of Enlightenment. In this article I verifiedthat as for this book in particular, the authors had the hollywoodian cinema asreference. Disregarding this fact means taking out of context their critiques oncinema. Adorno reflected about cinema in other works (Transparencies on film andComposing for the films), in which he signalizes the possibility of a film production asan emancipated art. He influenced theoretically (and was influenced by) AlexanderKluge, one of the principal filmmakers and leaders of the New German Cinema.Adorno’s contribution for cinema’s analysis is a field to be better researched andrequires that one overcomes the hegemonic academic thought.

Keywords CINEMA – FRANKFURT SCHOOL – ADORNO – KLUGE – NEW GERMANCINEMA.

ROBSON LOUREIROUniversidade Federal

do Espírito Santo (UFES)[email protected]

000054_imp39.book Page 123 Tuesday, July 26, 2005 5:03 PM

124 Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005

INTRODUÇÃO

oureiro e Della Fonte sugerem que a relação entreeducação e cinema tem sido abordada pela produçãoacadêmica brasileira, em especial na área educacional,de forma incipiente e irregular.1 Os autores tambémconcluem como ainda tímidas as investigações quebuscam a contribuição da tradição marxista para a aná-lise dessa relação. Nos poucos estudos sobre educaçãoe cinema vinculados a essa tendência teórica, o desta-que é para a Escola de Frankfurt. Acontece que essa

presença se faz acompanhar de uma perspectiva desistoricizada, que seexpressa na polarização entre o “otimismo” de Walter Benjamin e o “pes-simismo” de Theodor W. Adorno em relação ao cinema.

A defesa dessa polarização não se restringe apenas a autores docampo educacional. Em seu livro Dos Meios às Mediações: comunicação,cultura e hegemonia, Martin-Barbero afirma que Adorno tinha o cinemacomo o expoente máximo da degradação cultural.2 O autor confrontaAdorno e Benjamin, explicitando sua tendência em defesa do último, porparecer mais “otimista” quanto ao cinema:

Adorno, como Duhamel – de quem afirmou Benjamin: “Odeia cinema e nãoentendeu nada de sua importância” –, se empenha em prosseguir julgando asnovas práticas e as novas experiências culturais a partir de uma hipóstase daarte que o impede de entender o enriquecimento perceptivo que o cinema nostraz ao permitir-nos ver não tanto coisas novas, mas outra maneira de ver ve-lhas coisas e até da mais sórdida cotidianidade.3

Nessa mesma direção, Adorno é analisado por Hollows.4 A autoraenfatiza que nem Adorno nem Horkheimer acreditaram na possível exis-tência de um bom cinema e, por isso, não houve, na apreciação desen-volvida por eles, nenhuma oportunidade de se vislumbrar uma produçãofílmica alternativa.

Essas críticas precisam ser mais bem examinadas, pois sinalizamuma certa apropriação da tradição da Escola de Frankfurt presente em al-guns estudos sobre cinema e/ou educação e cinema, tendendo a descon-siderar evidências históricas e teóricas importantes. Dessa forma, o ob-jetivo deste artigo é problematizar a idéia comum de acordo com a qualAdorno nada entendeu de cinema e que sua postura em face do tema res-tringiu-se inexoravelmente a críticas pessimistas. Como em geral essepessimismo de Adorno é depreendido das reflexões realizadas por ele epor Horkheimer, em “Indústria cultural: o esclarecimento como mistifi-cação das massas”,5 analiso esse texto com base na sua interlocução his-

1 LOUREIRO, 2003; LOUREIRO & DELLA FONTE, 2003.2 MARTIN-BARBERO, 2001.3 Ibid., p. 87.4 HOLLOWS, 1995.5 ADORNO & HORKHEIMER, 1985.

LLLL

000054_imp39.book Page 124 Tuesday, July 26, 2005 5:03 PM

Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005 125

tórica com o cinema de Hollywood. Discuto,também, algumas considerações adornianas so-bre o cinema presentes em “Transparencies onfilm”6 e no livro Composing for the Films.7

Ao longo deste artigo, desenvolvo duas hi-póteses. Na hipótese número 1, observo que, jáem 1947, em Composing for the Films,8 Adornoparece apontar um campo mais amplo de possi-bilidades e de aliados no campo cinematográfico,tendência que se mostrou mais explícita nos seustextos de 1964 a 1969. Já na hipótese número 2,afirmo que o Novo Cinema Alemão exerceu im-portante influência sobre a asserção de Adornoquanto à possibilidade de conceber o cinemacomo arte emancipatória. Nesse sentido, exami-no como Adorno influenciou (e foi influenciado)teoricamente por Alexander Kluge, um dos prin-cipais cineastas e líderes do Novo Cinema Ale-mão, tendo sido incentivador e colaborador nainserção de Kluge no ambiente cinematográfico.ADORNO E O CINEMA: PROSSEGUINDO UMA CONVERSA

Em “Adorno e cinema: um início de con-versa”, Silva afirma que Adorno não desenvolveuuma teoria acabada sobre cinema.9 Ele lembraque, apesar de Adorno ter escrito Composing forthe Films em co-autoria com o compositorHanns Eisler, a maior parte das reflexões sobre atemática está diluída na sua obra. Em consonân-cia com essa observação preliminar, não pretendoreivindicar que os escritos de Adorno oferecem ateoria ou o método de estética do filme, e simmostrar que suas reflexões podem, ao menos, si-nalizar direções interessantes para se pensar umateoria ou um método de estética para o cinema.

Ao analisar o julgamento de Adorno quan-to à indústria fílmica, é muito comum levar emconta, notadamente, o capítulo “Indústria cultu-ral: o esclarecimento como mistificação das mas-sas”, no qual Adorno e Horkheimer realizamuma diatribe à indústria cultural.10 Não se deveesquecer, entretanto, que esse texto foi escrito no

exílio norte-americano dos autores. Tendo emvista o cinema de Hollywood, eles enfatizam que,ao ultrapassar de longe o teatro de ilusões, o ci-nema oblitera a fantasia e o pensamento dos es-pectadores, fazendo-os passear e divagar no qua-dro da obra fílmica, mas sem que tenham o con-trole dos dados exatos da película. Considerandoa maior parte da produção hollywoodiana à época(década de 1940), destacam que o cinema adestrao espectador, pois este, entregue a seus filmes,neles identifica imediatamente a própria realida-de.11 Os filmes são produzidos de tal modo quesua apreensão adequada exige certa presteza, domde observação e conhecimentos específicos. Con-tudo, é exatamente essa dinâmica que dificulta eobscurece a atividade intelectual do público, casoeste não queira perder a efemeridade dos fatosque passam ligeiramente na tela.

Os autores defendem que o esforço do es-pectador está tão fortemente inculcado, que nãoprecisa ser atualizado em cada caso para realçar aimaginação. Quem se deixa absorver no universodo filme “pelos gestos, imagens, palavras”, a pon-to de não precisar acrescentar aquilo que fez deleum universo, não precisa necessariamente estarinteiramente dominado no momento da exibiçãopelos seus efeitos particulares. Isso ocorre, subli-nham os autores, porque o público já foi molda-do e ensinado pela indústria do entretenimento ater uma reação automática e a se antecipar e es-perar os dados imagéticos veiculados na tela.12

Adorno e Horkheimer apresentam a hipó-tese de que, se a maioria dos cinemas e rádios fos-

6 ADORNO, 2004a.7 ADORNO & EISLER, 1994.8 Ibid.9 SILVA, 1999.10 ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 113-156.

11 Aqui caberia uma discussão um pouco mais detida sobre o carátermimético dos vários meios da indústria cultural, entre eles, o cinema.Grosso modo, em Teoria Estética, Adorno salienta que a “A arte objec-tiva o impulso mimético” (ADORNO, 1982, p. 316). No entanto, aotentar aderir e se igualar à realidade, à natureza, a arte se torna umaoutra realidade, ou seja, “Ao querer transformar-se num outro, seme-lhante ao objecto, a obra de arte torna-se dele dissemelhante. Só naauto-alienação através da imitação é que o sujeito se fortifica de modoa sacudir o sortilégio da imitação” (Ibid, p. 137). É essa relação dialéticainerente ao impulso mimético que a maior parte da cinematografiahollywoodiana tende a negar. Com efeito, é nessa direção que se tornacompreensível o sentido dado por Adorno e Horkheimer ao adestra-mento do espectador pelo cinema hollywoodiano, pois, para eles, “Avelha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como umprolongamento do filme que acabou de ver, porque este pretende elepróprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana,tornou-se a própria produção” (ADORNO & HORKHEIMER,1985, p. 118).12 Ibid., p. 119.

000054_imp39.book Page 125 Tuesday, July 26, 2005 5:03 PM

126 Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005

se fechada, os consumidores provavelmente nãosentiriam sua falta.13 Entendem que o cinema jánão mais conduz ao sonho, tampouco à fantasia.Porém, afirmam que o silenciar dos cinemas e rá-dios não se confundiria com um reacionário “as-salto às máquinas”. Haveria, talvez, a queixa deuma dúzia de desiludidos, alguns poucos fanáti-cos e as donas-de-casa que se refugiavam nos fil-mes que visavam integrá-las.

Mas haveria, para Adorno, alguma possibi-lidade de o cinema tornar-se uma arte autêntica?Considerando-se o texto “Indústria cultural: oesclarecimento como mistificação das massas”,os autores oferecem evidências de que, se no âm-bito da atual sociedade administrada prevalece odomínio dos artefatos da indústria cultural, difi-cultando a capacidade de entendimento e recru-descendo os aspectos instrumentais da razão e dasensibilidade, dificilmente poderíamos encontraruma produção fílmica que fosse considerada artee, nesse sentido, pudesse contribuir para estreme-cer e entusiasmar as massas em direção a um es-tranhamento do mundo administrado. Arte e en-tretenimento seriam incompatíveis, pois, na soci-edade administrada, “A diversão favorece a resig-nação que nela quer se esquecer”.14

Todavia, em “Tranparencies on film”, de 1966,Adorno admite a possibilidade de o cinema vir a serarte emancipada.15 Para ele, “O filme emancipadoteria que retirar o seu caráter a priori coletivo docontexto de atuação inconsciente e irracional, colo-cando-o a serviço de intenções emancipatórias”.16

Esse texto destaca as criativas experiências estéticasde cineastas como Charles Chaplin, MichelangeloAntonioni e Volker Schlöndorff – um dos princi-pais representantes da segunda geração pós-movi-mento de Oberhausen, de 1962. Adorno dosa suascríticas a Hollywood, à indústria cultural e aoHeimatfilm17 com instigantes insights sobre a

produção fílmica. Inicia o texto observando que“Os Oberhauseners atacaram o lixo produzidonos últimos sessenta anos pela indústria fílmicasob o epíteto de cinema de papai”.18 Ainda de for-ma bem ácida, destaca o caráter infantil e a regres-são industrialmente promovida por esse tipo decinema.

É inegável que o cinema de papai corresponde real-mente ao que os consumidores querem, ou, talvez,mais propriamente que ele lhes proporciona umaregra inconsciente daquilo que eles não querem,isto é, algo diferente do que os têm satisfeito nesteinstante. Caso contrário, a indústria cultural nãopoderia ter se tornado uma cultura de massa.19

Após uma breve consideração sobre os tra-balhos de Charles Chaplin e Michelangelo Anto-nioni, Adorno afirma que, “Sem considerar a ori-gem tecnológica do cinema, a estética do filmefará melhor, fundamentando-se em um modosubjetivo de experiência ao qual o filme se asse-melha e que constitui sua característica artísti-ca”.20 Com base nesses indícios, Silva escreve queos escritos de 1964 a 1969

parecem acusar uma inflexão nas posições de Ador-no em relação ao cinema. Ao contrário do queocorria na grande maioria das passagens acerca docinema nos textos anteriores, as referências ao ci-nema parecem agora apontar para um campo depossibilidades e de aliados. As referências ao cinemadeixam de ser exclusivamente depreciativas e seuvínculo com a indústria cultural deixa de ser um tó-pico obsedante.21

Tal posição é compartilhada também poroutros autores. Mesmo levando-se em conta queAdorno e Horkheimer conceberam os filmescomo maus per se, Hollows observa que “Pelametade dos anos de 1960, Adorno modifica suaposição para sugerir que os filmes de baixa tec-nologia que deliberadamente cortejaram a imper-feição foram os que mais provavelmente tiveramméritos estéticos”.22

13 Ibid., p. 130.14 Ibid., p. 133.15 ADORNO, 2004a.16 Ibid., p. 183-184.17 Heimat pode ser traduzido como manifestação cultural ou folcló-rica de uma determinada região ou mesmo da pátria alemã. Durante operíodo nazi-fascista, os alemães enalteciam e celebravam, de maneiraexacerbada, tudo o que fosse considerado Heimat (música, cinema,arte em geral) como superior a qualquer outra manifestação.

18 ADORNO, 2004a, p. 178.19 Ibid., p. 184.20 Ibid., p. 180.21 SILVA, 1999.22 HOLLOWS, 1995, p. 22-23.

000054_imp39.book Page 126 Tuesday, July 26, 2005 5:03 PM

Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005 127

Para ser considerado arte, observa Adorno,o filme deve apresentar-se na forma de uma re-creação objetiva de uma experiência em direção aosujeito. Ele esclarece que, nas circunstâncias pre-sentes, quanto menos os filmes aparecem comoarte, mais eles se tornam obra de arte.23 Essa pro-posição pode relacionar-se à concepção adornianade potência negativa da obra de arte. Mesmo emum mundo governado pelas mercadorias e regidopelo uso pragmático instrumental da razão, algunsindícios de negatividade podem emergir, sobretu-do das obras de arte que deslocam a compreensãoe a sensibilidade do ordinário para o extraordinárioda existência. Não obstante essa observação,Adorno alerta que a potência negativa da obra dearte por si só não leva ao estranhamento da socie-dade administrada que tudo coisifica. Isso tornanecessária a mediação constante da auto-reflexãofilosófica, pois, de acordo com ele, o pensamentofilosófico ocorre em intervalos e precisa ser aco-metido por aquilo que o pensamento não é.24 A ri-gor, resistir ao que foi previamente pensado e nãonadar a favor da corrente representam, para esseautor, a força impulsionadora da filosofia.

Todavia, Adorno sustenta que, nas delimita-ções do mundo administrado, a técnica passa a do-minar o ser humano e a razão se instrumentaliza,enaltecendo tudo o que se refere aos meios pelosquais é possível a obtenção de lucro, em detrimentode uma preocupação com a finalidade da ciência edos aparatos tecnológicos. O grande desafio, pois,é considerar até que ponto é possível afrontar a ten-são constitutiva entre o filme concebido comoobra de arte e como uma das mercadorias da indús-tria cultural, sem cair na armadilha fácil que consi-dera possível despolitizar a obra de arte e estetizara política. Como lembra Silva, seria mais interes-sante analisar a relação entre um possível cinemaconcebido como “arte autônoma e a indústria cul-tural não como uma exclusão recíproca, mas comouma tensão constitutiva. O melhor cinema nuncadeixa de fazer parte da indústria cultural, mas nuncadeixa de tencioná-la e de forçar os seus limites”.25

Considerando as pistas apontadas, gostaria desugerir e defender duas hipóteses. Na tensão comos argumentos de Silva e Hollows, formulo a hipó-tese número 1, de acordo com a qual, já em 1945,Adorno apontava novas possibilidades estéticas docinema, perspectiva que se mostrou mais explícitanos seus textos de 1964 a 1969. A hipótese número2 é de que o Novo Cinema Alemão exerceu impor-tante influência sobre a asserção de Adorno quantoà possibilidade de o cinema ser uma arte emancipa-tória. Nesse sentido, preciso complementar meu ar-gumento e defender que Adorno influenciou oNovo Cinema Alemão, especialmente a filmografiado cineasta Alexander Kluge, tanto quanto foi in-fluenciado por esse movimento.

Quanto ao tencionamento das assertivas deSilva e Hollows, fundamento-me em Wigger-shaus26 e Hansen27 para corroborar minha hipóte-se número 1. Wiggershaus afirma que, no prefácioque compõe o livro Dialética do Esclarecimento:fragmentos filosóficos, em sua versão impressa de1947, seus autores abstraem uma informação im-portante que constava da edição mimeografada de1944, qual seja: “Grandes partes realizadas há mui-to tempo só estão esperando a última redação. Elaspermitirão que se apresentem, também, os aspec-tos positivos da cultura de massa”.28 Wiggershausesclarece que “Essa noção de aspectos positivos dacultura de massa e de desenvolvimento das formaspositivas da cultura de massa achava-se, também,em Komposition für den Film (Composição para oFilme), que Adorno redigiu em colaboração comHanns Eisler, entre 1942 e 1945”.29

Hansen, por sua vez, também sugere queAdorno realmente reconsiderou aquelas váriasposições e críticas sobre cinema e as arranjou emuma constelação diversa.30 Para ela, isso pode serclaramente observado na republicação, em 1969,de Composing for the Films, texto que, como afir-ma, contradiz qualquer visão do clichê de Adorno

23 ADORNO, 2004a.24 Idem, 1995, p. 21.25 SILVA, 1999, p. 126.

26 WIGGERSHAUS, 2002.27 HANSEN, 1981-1982.28 ADORNO & HORKHEIMER apud WIGGERSHAUS, 2002, p.352.29 Ibid., p. 352.30 HANSEN, 1981-1982.

000054_imp39.book Page 127 Tuesday, July 26, 2005 5:03 PM

128 Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005

como um mero elitista, um simples crítico teóricoda cultura de massas.

Composing for the Films, cuja primeira ediçãofoi publicada nos Estados Unidos em 1947, está di-vidido em sete capítulos, todos dedicados à com-posição musical para o cinema. Nesse livro, seus au-tores consideram que o cinema não pode ser enten-dido como um fenômeno isolado, uma específicaforma de arte. Sublinham que o filme pode somen-te ser compreendido como o meio de comunicaçãomais típico da indústria cultural contemporânea, aoutilizar a técnica de reprodução mecânica. Obser-vam que os produtos populares da indústria cultu-ral não podem ser concebidos como uma arte ori-ginalmente criada para as massas, haja vista que essetipo de arte não mais existiria. Mesmo as ruínas da-quela espontânea arte popular desapareceram nospaíses industrializados. Aquele tipo de arte popularespontânea, no melhor dos casos, sobrevive em al-gumas regiões agrárias subdesenvolvidas. Na era in-dustrial avançada, “as massas são compelidas a pro-curar por relaxamento e descanso a fim de repor oprocesso de trabalho; e essa necessidade das massasé o ingrediente básico da cultura de massas. Sobreela desenvolveu-se uma poderosa indústria da di-versão, que constantemente produz, satisfaz e re-produz novas necessidades”.31

Não obstante essas impressões gerais, os au-tores explicam que aqueles insights críticos em di-reção às características da cultura industrializadanão poderiam ser mal compreendidos como umasentimental glorificação do passado. Para eles, nãohá nenhum acidente no fato de que a indústria cul-tural prosperou parasiticamente sobre as mercado-rias da velha era individualista. A rigor, argumen-tam que a tecnologia, por si só, não pode ser res-ponsabilizada pelo barbarismo da indústria cultu-ral. No entanto, os desenvolvimentos técnicos,triunfo dessa indústria, não podem ser aceitos sobtodas as circunstâncias, pois, segundo os autores,numa obra de arte, por exemplo, seriam determi-nados pelas exigências intrínsecas a ela própria.32

Adorno e Eisler argumentam que o cinemanão pode ser entendido isoladamente, mas so-mente como o mais característico meio da indús-

tria cultural. O cinema padrão de Hollywood doperíodo era marcado por uma “pretensão de ime-diaticidade”, que mascarava as contradições ine-rentes ao meio (sua natureza tecnológica e seu dis-tanciamento administrativo). Eles sublinham que amúsica para o cinema serviu para ressaltar a ilusãode imediaticidade e de vidas expostas, presentesnos filmes hollywoodianos, trazendo “a cena paraperto do público, tal como a cena traz, ela própria,para perto por meio do close-up; a música trabalhapara ‘interpor um revestimento humano entre odesenrolar da cena e os espectadores”.33

Para esses autores, o uso da música no ci-nema deveria ser inspirado por considerações ob-jetivas, pelas exigências do trabalho. Asseguramque a relação entre as exigências objetivas e osefeitos sobre os espectadores não é uma simplesoposição. Mesmo sobre o regime da indústria, opúblico não é apenas um registrador de fatos epersonagens; por trás da concha de comporta-mentos convencionalizados como padrões, resis-tência e espontaneidade ainda sobrevivem. Suporque a demanda do público é sempre “má” e o

31 ADORNO & EISLER, 1994, p. LI.

32 Vale lembrar que, à mesma época em que Adorno e Eisler trabalha-vam em Composing for the Films, Horkheimer e Adorno estavamenvolvidos na produção da Dialética do Esclarecimento. No que tangeà questão da técnica, no âmbito da indústria cultural, Adorno eHorkheimer afirmam que “o terreno no qual a técnica conquista seupoder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortesexercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionali-dade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedadealienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema mantêmcoeso o todo e chega o momento em que seu elemento nivelador mos-tra sua força na própria injustiça à qual servia. Por enquanto, a técnicada indústria cultural levou apenas à padronização e à produção emsérie, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a dosistema social” (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 114). Já emsua obra póstuma, Teoria Estética, quando Adorno escreve sobre a rela-ção entre técnica e obra de arte, argumenta que “A técnica não surgiude nenhum modo como tapa-buracos a partir de fora, embora a histó-ria da arte conheça momentos que se assemelham à revoluçõestécnicas da produção material. Com a crescente subjectivação dasobras de arte, a livre disposição a seu respeito aumentou nos procedi-mentos tradicionais. A tecnificação impõe a disponibilidade comoprincípio. Para se legitimar, pode apelar para o facto de que as grandesobras de arte tradicionais, que desde Palladio apenas intermitente-mente estavam ligadas ao conhecimento dos processos técnicos, rece-bem no entanto a sua autenticidade do critério da sua perfeiçãotécnica, até que a tecnologia faça explodir os processos tradicionais. Éretrospectivamente que a técnica se deve reconhecer como constitu-inte da arte, mesmo para o passado, de um modo incomparavelmentemais agudo do que o admite a ideologia cultural que, segundo elaafirma, imagina a era técnica da arte como posteridade e declínio doque outrora foi espontaneamente humano” (ADORNO, 1982, p. 75). 33 ADORNO & EISLER, 1994, p. 58.

000054_imp39.book Page 128 Tuesday, July 26, 2005 5:03 PM

Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005 129

ponto de vista dos especialistas é sempre “bom”é favorecer uma perigosa supersimplificação.34

O último capítulo é mesclado com umaconclusão e sugestões para o trabalho nessa área.Embora analisem um tema específico para a in-dústria cinematográfica, Adorno e Eisler parecemvislumbrar a possibilidade de uma estética fílmicacontrária35 à predominante no contexto em queestão escrevendo. Apesar da cáustica crítica àmaioria dos filmes de Hollywood, eles são bas-tante cautelosos e apresentam caminhos parauma estética do cinema que supere a estética doclichê dos clássicos filmes produzidos nos estú-dios californianos, em especial no campo da com-posição musical. Vale lembrar, também, que am-bos eram não apenas amigos, mas também admi-ravam o trabalho de cineastas hollywoodianoscomo Charles Chaplin e Fritz Lang.36

De fato, minha hipótese número 1 se for-talece quando Adorno e Eisler, paradoxalmente,sustentam que a tecnologia poderia abrir infinitaspossibilidades para a obra de arte, numa época fu-tura. No entanto, “o mesmo princípio que per-mitiu essas oportunidades também as vincula aogrande negócio. A discussão da cultura industri-alizada deve mostrar a interação desses dois fato-res: o potencial estético da arte de massas no fu-turo, e seu caráter ideológico no presente”.37

Vale sublinhar que, na primeira publicação deComposing for the Films, não consta o nome deAdorno, temeroso com o tormento pré-macarthis-ta que já aterrorizava Hollywood, em especial coma perseguição a Gehart, irmão de Hanns Eisler, e aoutros tantos amigos.38 O próprio Eisler foi vítima daperseguição perpetrada pela House Un-AmericanActivities Committee (Comitê da Câmara de Ati-

vidades Anti-Americanas). Nesse fórum, em 1947,o então representante Richard Nixon alegou a par-ticipação de Eisler como agente comunista infiltra-do nos círculos artísticos de Hollywood. Eisler foio primeiro a entrar para a famosa lista vermelha deHollywood e, até a sua deportação para a Alema-nha, em 1948, não mais conseguiu trabalho comocompositor nos Estados Unidos.39

Para corroborar a hipótese número 2, recorroao texto “Introduction to Adorno”, em que Han-sen explica que “A estética e a política de filme deKluge foram elas próprias, de forma significativa,formadas por sua amizade com Adorno”.40 A au-tora contextualiza que o conceito de cinema deKluge advém de seu vínculo com a literatura, em es-pecial do paradigma de discurso modernista dela.Também chama a atenção para a inflexão atenta e oreolhar de Adorno em direção ao cinema: “Pode tersido desse detour ou, antes, da apropriação de umaforma de arte tradicional para a estética do filme,além da fundamentação de Kluge na Teoria Crítica,que fez com que Adorno abandonasse sua crítica aofilme como mass media e considerasse a possibili-dade de uma prática cinematográfica alternativa”.41

Hansen fundamenta-se em uma carta de Hei-de Schlüpmann, na qual esta autora escreve que “SeKluge foi influenciado por Adorno, também, porsua vez, os últimos escritos de Adorno sobre filmesão tributários da sua amizade com Kluge, sem a qualeles não poderiam ter sido escritos”.42 Quanto ao li-vro Composing for the Films, Hansen destaca: “Vinteanos após a publicação na Alemanha Ocidental, em1949, Adorno autorizou uma versão alemã reconsti-tuída com um prefácio expressando sua esperança decontinuar o estudo e a teoria de música para o filmeem cooperação com Alexander Kluge”.43

Após essas considerações, na próxima seçãoapresento um panorama sobre o trabalho do inte-lectual, escritor, cineasta e produtor de televisãoAlexander Kluge, um dos responsáveis pela inova-ção do cinema alemão.

34 Ibid., p. 121.35 Essa estética já se manifestava, de modo incipiente, e contraditoria-mente, em produções fílmicas hollywoodianas. O leitmotiv estava asso-ciado ao rompimento com a forma e o conteúdo daquelas produçõescujas narrativas conduziam o espectador a um eterno retorno do sempremesmo, impossibilitando maneiras criativas e emancipatórias de intera-ção com a obra fílmica. As respostas prontas dos filmes mais dificulta-vam a imaginação e a fantasia do que potencializavam o público a manterum contato crítico com a película e a realidade na qual estava inserida.36 Cf. ADORNO, 2004b; e McCANN, G. “New introduction”, in:ADORNO & EISLER, 1994.37 ADORNO & EISLER, 1994, p. LII-LIII.38 Cf. HANSEN, 1981-1982; McCANN, G. “New introduction”, in:ADORNO & EISLER, 1994; e LANG, 2004.

39 LANG, 2004; e McCANN, G. “New introduction”, in:ADORNO & EISLER, 1994.40 HANSEN, 1981-1982, p. 194.41 Ibid., p. 194.42 Ibid.43 Ibid., p. 194.

000054_imp39.book Page 129 Tuesday, July 26, 2005 5:03 PM

130 Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005

ALEXANDER KLUGE: UM CINEASTA NA TRADIÇÃO DA TEORIA CRÍTICA

É mentira que os mortos estejam mortos.ALEXANDER KLUGE

Antes de comentar o trabalho de Kluge, émister tecer um rápido panorama do cinema ale-mão do pós-Segunda Guerra Mundial. Em linhasgerais, Hake afirma que os mais recentes estudossobre a filmografia alemã, no período de 1945 a1961, destacam que os filmes dessa época repro-duziram a mesma estrutura lógica daqueles pro-duzidos sob o Terceiro Reich.44 Ela sublinha quea maioria dos filmes era conservadora, senão re-acionária, no que se refere a valores sociais e cren-ças políticas. Quanto ao público alemão, a autoraobserva que, nesses estudos, os espectadores sãofreqüentemente descritos com base numa neces-sidade psicológica de esquecer os danos do pas-sado e ignorar os problemas do presente.

Em 1961, a partir de uma proclamação ofi-cial do governo, assistiu-se a falência do cinemaartístico da Alemanha Ocidental. Não houve, na-quele ano, nenhuma premiação, pois o Ministériodo Interior entendeu que não havia obra digna detal honra. A mensagem poderia ser lida comoRentschler45 e Sandford46 sugerem, quando lem-bram que o governo alegava que os velhos cine-astas haviam fracassado na entrega das mercado-rias. Porém, os dois autores observam que umanova geração estava surgindo, convencida de quepoderia realizar um trabalho diferente daqueledos antigos cineastas. Essa nova geração estavarealizando especialmente curta-metragens.

Nesse contexto, em fevereiro de 1962, 26 jo-vens cineastas publicaram um manifesto, duranteo VIII Festival de Cinema de Oberhausen,47 emque eram exibidos os curta-metragens na Alema-

nha Ocidental. O manifesto de Oberhausen pro-clamou a morte do antigo cinema alemão, tornan-do possível o surgimento de um novo gênero defilmes e de um cinema liberado das convençõestradicionais. Os signatários do manifesto deOberhausen compreenderam a necessidade de seunir contra os grandes monopólios de cinema daAlemanha Ocidental. Tinham, como parte de seusobjetivos, a intenção de promover um cinema des-vinculado da lógica do mercado, guiado e inspira-do pelas idéias, imaginação e concepção estéticados seus criadores (cinema de autor), mas, em cer-ta medida, conectado às expectativas do público.Os oberhauseners tentaram lançar as bases legal eorganizacional de um livre trabalho criativo.

Grosso modo, no que se refere ao novo ci-nema alemão, podem-se destacar as seguintes ca-racterísticas básicas: baixo custo das produções;recusa das formas estéticas do cinema tradicional,com sua narrativa linear e sínteses fáceis; uso dopreto e do branco recorrente, na tentativa de nãotornar o filme um retrato fiel da realidade; fusãoentre documentário e ficção (cinema-verdade, ci-nema direto); preocupação com a tematização dequestões históricas e sociais.48 Entre os 26 cine-astas signatários do Manifesto de Oberhausen,destaca-se Alexander Kluge,49 podendo-se afir-mar que os esforços de Kluge formam uma ex-pressiva constelação que contribui para a compo-sição dos estudos sobre cinema. Como recorda ocineasta Volker Schlöndorff, “Numa época emque a onda do cinema erótico a tudo submergia,o cinema se aproximou da literatura quando Ale-xander Kluge lançou as bases de uma nova arte(um pouco no espírito da nouvelle vague francesa

44 HAKE, 2002.45 RENTSCHLER, 1990.46 SANDFORD, 1980.47 O festival de cinema de Oberhausen foi lançado em 1954. A partirde 1958, despontou como um dos mais dinâmicos festivais de curta-metragem da Europa. Nesse ano, Hilmar Hoffmann, então organiza-dor do evento, cunhou o lema passagem para os vizinhos, permitindoque cineastas do Leste Europeu pudessem exibir suas produções naentão Alemanha Ocidental. Vários detratores anticomunistas e políti-cos conservadores em Bonn, que temiam o influxo da cultura socialistana República Federativa Alemã, apelidaram o festival de OberhausenVermelho (FEHRENBACH, 1995).

48 Cf. HAKE, 2002; RENTSCHLER, 1988; e SANDFORD, 1980.49 Alexander Kluge nasceu na Alemanha, em 14 de fevereiro de 1932,na cidade de Halberstadt. Seus estudos secundários foram na suacidade natal e em Berlin-Charlottenburg. Depois, estudou direito, his-tória e música sacra, nas universidades de Marbug e Frankfurt amMain. Em 1956, doutourou-se em direito, com a tese “A auto-gestãoda universidade”. Logo em seguida, começou suas atividades profissio-nais em Frankfurt am Main, em especial como assistente jurídico doInstituto para Pesquisas Sociais. Na época, começou a escrever suasprimeiras estórias ficcionais e, durante um curto período, foi professorno departamento de cinema, na Hochschule für Gestaltung, e tambémprofessor honorário na Universidade de Frankfurt. Kluge é reconheci-damente um dos principais representantes do movimento do NovoCinema Alemão. Foi o primeiro cineasta alemão do pós-SegundaGuerra Mundial a ganhar um prêmio no Festival de Cinema deVeneza, em 1966.

000054_imp39.book Page 130 Tuesday, July 26, 2005 5:03 PM

Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005 131

lançada pelos ‘Cahieurs du Cinéma’), dando ascostas às pesquisas puramente formais em favorda descrição e análise da sociedade alemã”.50

Tendo sido o principal jovem cineasta ale-mão a lutar por uma efetiva mudança nas leis decinema da Alemanha, especialmente quanto aossubsídios, Alexander Kluge, em parceria com Pe-ter Glotz, parlamentar e membro do Partido So-cial Democrata Alemão, trabalhou e apresentouao parlamento um projeto com novas leis relati-vas ao subsídio de filmes com méritos artísticos,em detrimento dos blockbusters da época.51

Em 1962, Kluge, Edgar Reitz e DetlevSchleiermacher fundaram o Ulm Institut für Fil-mgestaltung (Instituto para Pesquisa de Filme).Em entrevista concedida a Stuart Liebman, em1986, Kluge afirma que esse instituto ficou conhe-cido como o departamento teórico do Novo Ci-nema Alemão e modelado a partir dos mesmospreceitos do Instituto para Pesquisa Social (Escolade Frankfurt).52 Somente em 1969, o Ulm Institutfür Filmgestaltung aceitou a participação de estu-dantes. No entanto, durante as revoltas dos anos1960, muitos estudantes que criticaram o trabalhode Kluge, denominando seus filmes de elitistas, pe-garam seus equipamentos e abandonaram o insti-tuto.

É bastante curiosa a forma como Kluge ini-ciou sua carreira como cineasta, no final da déca-da de 1950. Na Universidade de Frankfurt, tor-nou-se não apenas aluno, mas também amigo deTheodor Adorno. Seu primeiro contato com aprodução cinematográfica deu-se pela mediaçãode Adorno. Como Kluge atesta em outra entre-vista, o primeiro encontro com Adorno foi numaaula inaugural de um curso de filologia sobre ohistoriador Tácito.

Diante de mim sentava-se um senhor com olhoscastanhos belíssimos e de grande intensidade, quaseinteiramente calvo. Quando eu o olhava, ele me re-tribuía o olhar num misto de irritação e interesse.Fiquei me perguntando se aquele homem seria jus-tamente quem Thomas Mann descrevera em seus

diários como Theodor Wissengrund Adorno. En-tão, resolvi abordá-lo diretamente: “O senhor éTheodor Wissengrund Adorno?”. Tornamo-nos apartir de então amigos. Por motivos que não vêmao caso, me tornei depois conselheiro jurídico dopróprio Instituto de Pesquisa Social, mas não fuialuno e sim um amigo.53

Segundo Langford, em razão de discussõescom Adorno, Kluge reforçou seu interesse pelocinema e, em 1958, foi apresentado por aquele aocineasta Fritz Lang.54 Em entrevista concedida aLiebman, Kluge diz que: “[Adorno] me envioupara Fritz Lang a fim de me proteger de algo pior,para que eu não tivesse a idéia de escrever quais-quer livros. Se eu fosse rejeitado, então, no finaldas contas, eu faria algo mais valioso, que eracontinuar a ser assistente legal do Instituto”.55

Com efeito, a Escola de Frankfurt pode servista como a principal base teórica a fundamentaro trabalho de Kluge, não apenas como cineasta,mas também como escritor. Bowie mencionaque, na Alemanha, Kluge é considerado uma dasprincipais figuras literárias e também um teóricoda tradição da escola de Frankfurt.56 Do mesmomodo, Liebman afirma que Kluge é um leitoratento, mas, ao mesmo tempo, crítico de Marx eAdorno, assumindo a considerável responsabili-dade de refletir sobre a complexa herança do Es-clarecimento.57 Como o próprio Kluge menciona,a respeito de seu trabalho com o sociólogo OscarNegt, “Acreditamos que nosso trabalho tem a vercom a Teoria Crítica. Sustentamos que é ortodo-xo. Mas esse é um problema de disputa entre nóse Adorno e Horkheimer”.58 No entanto, Klugetambém considera que “A teoria crítica não sepreocupa com o filme, e sim com os meios ex-pressivos possíveis e com circunstâncias reais”.59

De acordo com Liebman, o livro de Adornoe Eisler, Composing for the Films, foi uma das basesteóricas de Kluge. Esse livro poderia sugerir – a umleitor como Kluge – novas possibilidades para a

50 SCHLÖNDORFF, 2002, p. 3.51 BOWIE, 1986.52 KLUGE, 1988.

53 Idem, 2001.54 LANGFORD, 2003.55 LIEBMAN, 1988, p. 36.56 BOWIE, 1986.57 LIEBMAN, 1988, p. 7.58 KLUGE, 1988, p. 39.59 Ibid., p. 48.

000054_imp39.book Page 131 Tuesday, July 26, 2005 5:03 PM

132 Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005

construção cinemática e, “Apesar de apareceremdiferenças na força dialética da formulação teóricada sua experiência prática, Kluge aceita a maiorparte das premissas de Adorno e Eisler”.60 Nãoobstante, a abordagem de Kluge em direção à te-oria crítica não pode ser reduzida ao trabalho teó-rico de Adorno. Entre os outros integrantes da Es-cola de Frankfurt, Kluge inspirou-se também nostrabalhos de Horkheimer, Benjamin, Löwenthal eMarcuse. Com efeito, autores como Kant, Freud,Siegfried Kracauer e Bertolt Brecht também foramreferências importantes para o seu trabalho.

Kluge explica que, no começo de sua car-reira, não tinha familiaridade com o estudo de te-orias fílmicas. Suas primeiras influências foram osfilmes que assistiu em uma retrospectiva, em Ber-lin Oriental, em 1958 e 1959. Ele declara que oprimeiro livro de teoria do filme que leu foi DerKampf um den Film, de autoria de Hans Richter.Apesar de ter ficado entusiasmado, Kluge escla-rece que isso não se relacionou com detalhes dolivro, pois, naquele momento, não estava buscan-do uma digressão profunda e detalhada sobre aestética do cinema. Depois disso, jornalistascomo Wilhelm Roth, Ulrich Gregor e tambémEnno Patalas foram referências no aprendizadoteórico sobre a história do filme. Vale lembrar,também, os dois volumes sobre roteiros de filmeescritos por Bertolt Brecht e que influenciaram aformação de Kluge como cineasta.61

De maneira geral, no que se refere à conce-pção teórico-fílmica, Kluge opera com conceitosvariados, como enigma, montagem, fantasia e his-tória. Para ele, enigma em arte não é realmenteum enigma, mas uma espécie de realidade escon-dida. Ele destaca que, na obra de arte, não há se-quer um simples sobrepujar,62 o que nos lembraAdorno, ao afirmar que “Todas as obras de arte,e a arte em geral, são enigmas; isso desde sempreirritou a teoria da arte”.63

Langford observa que Kluge não somenteteoriza sobre o cinema, mas também o pratica apartir de uma nova concepção de montagem

completamente diferente das “estratégias de edi-ção invisíveis de Hollywood e a prática do filmecomercial, e da montagem dialética tal como te-orizada e praticada por Sergei Eisenstein e a Es-cola Soviética de cineastas”.64 A caótica, fragmen-tária e, até mesmo, ilógica conexão entre as ima-gens dispostas nos trabalhos de Kluge autoriza emotiva o público a ser co-produtor de seus fil-mes. O que, no entanto, não significa que o ci-neasta não exponha sua própria montagem.

Na concepção de Kluge, fazer cinema devedivergir do imperialismo da consciência. Comesse termo, mostra como o público, ao deparar-secom filmes de padrão eminentemente comercial,atua na maioria dos casos como robô, com seuspapéis predeterminados; a indústria cultural tor-na esses filmes o modelo estético comum a serreferenciado pelo espectador de cinema. Por con-seguinte, também explica que “a ameaça da guer-ra, a industrialização da consciência e a repressãopor meio do consumo, do entretenimento, são osmeios pelos quais a dominação é expressa”65 eque todas essas questões são sempre colocadaspela teoria crítica.

Quanto à história, Kluge preocupa-se com“aqueles elementos na sociedade contemporâneaque minam a memória histórica e procuram per-petuar um estado constante de diversão, um pre-sente voraz que engole e anula o passado”.66

Grosso modo, história e filosofia estão semprepresentes nos filmes de Kluge. Mas como Klugeconcebe a história? Para ele, história significaTrauerarbeit (trabalho de luto) e a sua elucidaçãoé uma das mais importantes questões apresenta-das na atuação política das suas personagens nabusca de elaborar não apenas suas vidas particu-lares, mas o passado e a memória coletiva. Issoporque o devido Trauerarbeit ainda não foi reali-zado e, como lembra Kluge, “Auschwitz não éum fantasma, mas uma realidade histórica”.67

Quando as personagens de Kluge escavamos fatos enterrados com o passar do tempo, o es-pectador é levado a perceber que o passado está

60 LIEBMAN, 1988, p. 10-12.61 Cf. RENTSCHLER, 1990.62 KLUGE, 1988.63 ADORNO, 1982, p. 140.

64 LANGFORD, 2004.65 KLUGE, 1988, p. 41.66 RENTSCHLER, 1990, p. 40.67 KLUGE, 2001, p. 7.

000054_imp39.book Page 132 Tuesday, July 26, 2005 5:03 PM

Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005 133

meio-morto e que há um comportamento ético aimpulsionar no sentido da produção de outrasformas de afetos e pensamentos na contempora-neidade. Isso, forçosamente, nos remete ao texto“O que significa elaborar o passado”, no qualAdorno chama a atenção para a necessidade de opovo alemão iniciar um processo de elaboraçãode seu passado mais recente, haja vista que, já nadécada de 1950, diversos grupos neonazistas co-meçavam a surgir na Alemanha.68 De certo mo-do, para Adorno, esse fenômeno estaria vincula-do ao processo de recalcamento das atrocidadescometidas ao longo do período nazi-fascista, noqual o Estado teve o apoio significativo da massaque compunha o tecido social alemão. O fato delembrar, retirar das cinzas do inconsciente, todoo mal cometido naquele período poderia signifi-car a possibilidade de elaborar o passado com vis-tas não à reparação do mal, mas à sua não recor-rência na história da Alemanha. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo dos argumentos apresentados, in-fere-se que as teses que criticam as consideraçõesadornianas sobre o cinema abstraem o fato de queAdorno, em co-autoria com Horkheimer, no livroDialética do Esclarecimento, especialmente no clás-sico texto “Indústria Cultural: o esclarecimentocomo mistificação das massas”, teve como referên-cia o cinema hollywoodiano. Desconsiderar essefato é descontextualizar as críticas que ele eHorkheimer tecem ao cinema, pois, como lembraSilva, referindo-se ao texto em questão, os autores

“parecem condenar a natureza do cinema tout court,quando na verdade não fazem mais do que reagirenergicamente contra o cinema de Hollywood”.69

O livro publicado em co-autoria comHanns Eisler, em 1947, prolonga a crítica deAdorno a Hollywood, mas, ao mesmo tempo,anuncia os germens de uma análise das possibili-dades contraditórias do cinema. Tal perspectiva émais explícita em seus escritos da década de 1960,nos quais Adorno registra sua admiração por ci-neastas vinculados ao próprio universo ho-llywoodiano, assim como pelos jovens cineastasdo Novo Cinema Alemão. Nesse contexto, me-rece destaque especial a interlocução de Adornocom Alexander Kluge, cineasta e escritor cujo pa-pel foi fundamental para a retomada do cinemaalemão. A partir do Manifesto de Oberhausen,Kluge intensificou a produção de obras fílmicasque questionavam a apatia histórica da sociedadealemã em relação aos eventos ocorridos no perío-do nazi-fascista. Pode-se afirmar que a maior par-te dos cineastas contemporâneos e continuadoresdo espírito crítico iniciado em Oberhausen colo-cou em xeque a maioria da cinematografia reali-zada na Alemanha, entre 1933 e 1961.

Assim, com base nas evidências apresenta-das, conclui-se que a contribuição de TheodorAdorno para a análise do cinema é um campoainda a ser mais bem pesquisado e requer, acimade tudo, ultrapassar o senso comum acadêmicopredominante sobre as posições desse filósofofrankfurtiano em relação ao tema em questão.

Referências BibliográficasADORNO, T.W. “Transparencies on film”. In: ADORNO, T.W. The Culture Industry. London: Routledge, 2004a, p. 178-

186.

______. “Chaplin Times Two”. The Yale Journal of Criticism. <http://www.forum-global.de/soc/bibliot/adorno/chaplintimestwo.htm>. Acesso: 3/abr./2004b.

______. Can One Live After Auschwitz?: a philosophical reader. Org.: Rof Tiedemann. Califórnia: Stanford UniversityPress, 2003, p. 3-18.

______. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

______. Teoria Estética. Rio de Janeiro: Edições 70, 1982.

ADORNO, T.W. & EISLER, H. Composing for the Films. London: Athlone Press, 1994.

68 ADORNO, 2003. 69 SILVA, 1999, p. 118.

000054_imp39.book Page 133 Tuesday, July 26, 2005 5:03 PM

134 Impulso, Piracicaba, 16(39): 123-134, 2005

ADORNO, T.W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1985.

BOWIE, A. “Alexander Kluge: an introduction”. Cultural Critique: special section on (aesthetic) modernism and (social)modernity (aesthetic), postmodernism and (social) post-modernity. New York: Telos Press, n. 5, 1986, p. 180-206.

FEHRENBACH, H. Cinema in Democratizing Germany: reconstructing national identity after Hitler. North Carolina:North Carolina Press, 1995.

HAKE, S. German National Cinema. London/New York: Routledge, 2002.

HANSEN, M.B. “Introduction to Adorno, ‘Transparencies on Film’ (1966)”. New German Critique, New York, n. 24/25,Special Double Issue on New German Cinema, autumn/1981-winter/1982, p. 186-198.

HOLLOWS, J. “Mass culture theory and political economy”. In: JANCOVICH, M. & HOLLOWS, J. (orgs.). Approachesto Popular Film. Manchester: Manchester University Press, 1995.

KLUGE, A. “A zona dos sentimentos: uma entrevista com Alexander Kluge”. Folha de São Paulo, São Paulo, 4/jun./01. Caderno Mais!, p. 10-12.

______. “On new German cinema, art, enlightenment, and the public sphere: an interview with Alexander Kluge(by Stuart Liebman)”. October: Alexander Kluge – theoretical writings, stories and an interview, v. 46, p. 23-59, 1988.

LANG, A. “Hanns Eisler: a composer’s life”. North American Hanns Eisler Forum. <http://www.eislermusic.com/huac.htm>. Acesso: 9/mar./04.

LANGFORD, M. “Alexander Kluge”. Senses of Cinema: online. Jun./2003. <http://www.sensesofcinema.com/con-tents/directors/03/kluge.html>. Acesso: 25/mar./04.

LIEBMAN, S. “Why Kluge?”. October, n. 46, p. 4-22, 1988.

LOUREIRO, R. Educação e cinema no GT 16 da ANPED: considerações sobre o cinema em Adorno e Benjamin.Poços de Caldas: ANPED, CD-rom, 2003, GT16.

LOUREIRO, R. & DELLA FONTE, S.S. Indústria Cultural e Educação em “Tempos Pós-Modernos”. Campinas: Papirus,2003.

MARTIN-BARBERO, J. Dos Meios às Mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.

RENTSCHLER, E. “Remembering not to forget: a retrospective reading of Kluge’s brutality in Stone”. New GermanCritique, New York, n. 49, Special Issue on Alexander Kluge, p. 23-41, 1990.

______. West German Filmmakers on Film. New York/London: Holmes & Meier, 1988.

SANDFORD, J. The New German Cinema. London: Oswald Wolff, 1980.

SILVA, M.A. “Adorno e o cinema: um início de conversa”. Novos estudos CEBRAP, São Paulo: CEBRAP, p. 114-126, jul./1999.

SCHLÖNDORFF, V. “As desrazões da história”. Folha de São Paulo, São Paulo, 10/mar./02. Caderno Mais!, p. 3.

WIGGERSHAUS, R. A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Rio de Janeiro:DIFEL, 2002.

Dados do autor

Professor assistente do departamento defundamentos da educação e orientação educacional

do Centro de Educação da UFES desde 1997.Mestre em filosofia da educação. Doutorando do

Programa de Pós-Graduação em Educação daUniversidade Federal de Santa Catarina, na linha

de pesquisa educação, história e política.

Recebimento artigo: 31/ago./04Consultoria: 10/set./04 a 14/out./04

Aprovado: 24/fev./05

000054_imp39.book Page 134 Tuesday, July 26, 2005 5:03 PM