conhecer os cantos à casa

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O agregador da advocacia 18 Outubro de 2011 www.advocatus.pt Testemunho Luís Geraldes, 64 anos, conhece bem os cantos à Brisa. Está na empresa há quase 35 anos. Começou como portageiro, ao mesmo tempo que tirava Direito, no curso nocturno. Chegou a director jurídico, função que enaltece pela possibilidade de prevenir situações de litígio Conhecer os cantos à casa -o com Carlos Palhinha, advogado do Entreposto, após o que passou a exercer advocacia no escritório do professor Dias Marques, de quem re- corda com saudade a grande cultura jurídica, a capacidade de trabalho e o apoio que, em termos técnicos, sempre disponibilizou aos colegas que com ele colaboravam. Foi “uma fonte de inspiração”. Em 1989 a Brisa criou uma direcção jurídica autónoma e convidou Luís Geraldes para geri-la. Teve então de optar entre a advocacia de empresa e a advocacia privada - escolheu a primeira. Foi uma decisão muito ponderada, até porque ainda hoje era obrigado a regressar a Portugal. Ainda recebeu uma oferta de empre- go da Shell, para a África do Sul, mas preferiu voltar ao país de onde saíra aos dois anos. Começou a trabalhar na portagem da Brisa, até agora a sua única “entidade patronal” em Portugal. E ingressou finalmente no curso noc- turno da Faculdade de Direito de Lis- boa. Frequentava o último ano quan- do a Brisa decidiu reforçar o núcleo jurídico. Concorreu e foi selecciona- do. Deixou a portagem e passou a apoiar o advogado do núcleo dando pareceres internos. Formou-se em 1980. O estágio profissional realizou- colha entre Letras e Ciências, ainda no liceu, foi obrigado a optar por Ci- ências, porque era a única área exis- tente. A alternativa seria estudar no Continente… Acabou por ingressar em Engenharia Electrotécnica, mas facilmente percebeu que não tinha “jeito nenhum para aquilo”. Desistiu, na convicção de que gostava mes- mo era de Direito. Já a trabalhar e casado, resolveu “arrepiar caminho”. Inscreveu-se na Universidade de Coimbra para fazer o curso à distância. Entretanto, a li- cenciatura abriu em Moçambique, mas, em simultâneo, dava-se uma reviravolta política e Luís Geraldes Ramon de Melo O percurso de Luís Geraldes na Bri- sa é, no mínimo, invulgar: o seu pri- meiro trabalho na empresa foi como portageiro, hoje é o coordenador da direcção jurídica. A sua entrada na empresa deu-se em 1977, quando, acabado de regressar a Portugal, depois da infância e juventude em Moçambique e já com família cons- tituída, se viu sem trabalho. Por um acaso, surgiu o emprego numa por- tagem - aceitou e nunca mais aban- donou a empresa. A sua história com o Direito come- çou ainda em Moçambique. Era o curso que queria seguir, mas não existia no país. Aliás, na altura da es- Ana Duarte

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Conhecer os cantos à casa

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Page 1: Conhecer os cantos à casa

O agregador da advocacia18 Outubro de 2011

www.advocatus.ptTestemunho

Luís geraldes, 64 anos, conhece bem os cantos à Brisa. Está na empresa há quase 35 anos. Começou como portageiro, ao mesmo tempo que tirava Direito, no curso nocturno. Chegou a director jurídico, função que enaltece pela possibilidade de prevenir situações de litígio

Conhecer os cantos à casa

-o com Carlos Palhinha, advogado do Entreposto, após o que passou a exercer advocacia no escritório do professor Dias Marques, de quem re-corda com saudade a grande cultura jurídica, a capacidade de trabalho e o apoio que, em termos técnicos, sempre disponibilizou aos colegas que com ele colaboravam. Foi “uma fonte de inspiração”.Em 1989 a Brisa criou uma direcção jurídica autónoma e convidou Luís Geraldes para geri-la. Teve então de optar entre a advocacia de empresa e a advocacia privada - escolheu a primeira. Foi uma decisão muito ponderada, até porque ainda hoje

era obrigado a regressar a Portugal. Ainda recebeu uma oferta de empre-go da Shell, para a África do Sul, mas preferiu voltar ao país de onde saíra aos dois anos.Começou a trabalhar na portagem da Brisa, até agora a sua única “entidade patronal” em Portugal. E ingressou finalmente no curso noc-turno da Faculdade de Direito de Lis-boa. Frequentava o último ano quan-do a Brisa decidiu reforçar o núcleo jurídico. Concorreu e foi selecciona-do. Deixou a portagem e passou a apoiar o advogado do núcleo dando pareceres internos. Formou-se em 1980. O estágio profissional realizou-

colha entre Letras e Ciências, ainda no liceu, foi obrigado a optar por Ci-ências, porque era a única área exis-tente. A alternativa seria estudar no Continente… Acabou por ingressar em Engenharia Electrotécnica, mas facilmente percebeu que não tinha “jeito nenhum para aquilo”. Desistiu, na convicção de que gostava mes-mo era de Direito.Já a trabalhar e casado, resolveu “arrepiar caminho”. Inscreveu-se na Universidade de Coimbra para fazer o curso à distância. Entretanto, a li-cenciatura abriu em Moçambique, mas, em simultâneo, dava-se uma reviravolta política e Luís Geraldes

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O percurso de Luís Geraldes na Bri-sa é, no mínimo, invulgar: o seu pri-meiro trabalho na empresa foi como portageiro, hoje é o coordenador da direcção jurídica. A sua entrada na empresa deu-se em 1977, quando, acabado de regressar a Portugal, depois da infância e juventude em Moçambique e já com família cons-tituída, se viu sem trabalho. Por um acaso, surgiu o emprego numa por-tagem - aceitou e nunca mais aban-donou a empresa.A sua história com o Direito come-çou ainda em Moçambique. Era o curso que queria seguir, mas não existia no país. Aliás, na altura da es-

ana Duarte

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Outubro de 2011 19O agregador da advocacia

www.advocatus.pt

não consegue definir qual o tipo de advocacia que prefere: no escritório tinha “coisas encantadoras no do-mínio profissional”, mas a advocacia empresarial é “aliciante”, principal-mente pela questão da “prevenção”. Dentro de uma empresa o advoga-do consegue actuar de forma mais preventiva do que quando está num escritório. Por norma, num escritório o cliente surge já com uma situação que tem de ser resolvida e o advo-gado não tem modo de evitar que se chegue a essa situação. Mas esta função de consultoria é fundamental no domínio empresarial: Luís Geral-des argumenta que é a consultoria prestada no âmbito da actividade da empresa, desempenhada por advogados profissionalmente pre-parados, que evita que se cometam erros, que podem resultar no mínimo em processos de contencioso. É a importância desta função preventiva que tenta transmitir às direcções e empresas do grupo, alertando para que não desenvolvam acções sem que passem pelo crivo do advoga-do. Ainda assim, a experiência já lhe ensinou que, por vezes, “a realidade suplanta a imaginação” e nem sem-pre é possível prevenir. No entanto, considera importante que dentro da empresa exista a ideia de um perma-nente acompanhamento jurídico.No departamento jurídico da Brisa existem constantemente mais de mil processos para ver e resolver. Por isso, em matérias muito específicas a empresa opta por recorrer a advo-gados externos. É o caso do Direito Laboral. Luís Geraldes justifica que esta abordagem facilita a aprecia-ção de todas as questões, pois pode estar em causa “o colega do lado ou um director” e, além de “extre-mamente desgastante”, “não seria muito saudável” ser um profissional interno a lidar com estes processos.Também as questões relativas ao Direito Fiscal são, pela sua espe-cificidade, entregues a advogados exteriores à empresa, que é ainda acompanhada por escritórios de ad-vogados em grandes negócios ou operações de empréstimos obriga-cionistas. Como director jurídico, Luís Geral-des tem pouco tempo para ir a tri-bunal, o que lamenta: “De vez em

quando gostava de lá ir, vestir a toga e divertir-me um pouco”. O gabinete que coordena trabalha três grandes áreas: contencioso, contratos e ex-propriações; apoio às empresas par-ticipadas do grupo; e apoio aos no-vos negócios e internacionalização, núcleo criado há cerca de um ano. A Brisa – explica - aspira progredir no mercado internacional, pelo que é bastante importante a criação deste núcleo, principalmente com a crise que se faz sentir, em que os projec-tos não podem ser dados como se-guros e definitivos. Ao identificar uma mais-valia da con-sultoria in house não hesita: “O ad-vogado que está cá dentro conhece muito melhor a empresa do que o advogado que está lá fora”. Além disso, consegue ter contacto direc-to com os centros da empresa, o que lhe permite responder de forma muito mais célere e “eventualmente com um maior rigor”. Os advogados de empresa, resume, “conhecem os cantos à casa”, sabem onde devem recolher os elementos e a quem os pedir. Quase a completar 35 anos ao serviço da Brisa, Luís Geraldes sen-te-se um advogado realizado, ainda que seja inevitável olhar para trás e pensar como seria a sua vida se ti-vesse decidido optar pela advocacia em actividade privada. Não enjeita o percurso que fez, mas de uma coisa tem a certeza: se não fosse advoga-do tinha “insistido” em tirar o curso de engenharia, que o iria “infernizar a vida toda”.

é a consultoria prestada no âmbito da actividade da empresa,

desempenhada por advogados

profissionalmente preparados, que evita

que se cometam erros, que podem resultar no mínimo em processos

de contencioso

Luís Geraldes foi para Moçambique com a mãe e irmãos quando tinha apenas dois anos. O pai já estava no país, vivendo no Cabo Delgado, em Mataca. Da infância recorda as longas viagens que fazia para ir de Lourenço Marques, onde es-tudava, até à casa dos pais. Aos nove anos, per-corria sozinho cerca de 3000 km, uma viagem que durava todo o dia. Mas o que recorda com maior saudade é de entrar pelo mato, de carro ou a pé, e não ver ninguém, estar só com a natureza. Algo que não se consegue fazer em Portugal. É dessa

relação com a natureza que sente mais falta. Tal como do cheiro da terra e das brincadeiras que tinha com os nativos: “É uma saudade que não se esquece”.Mas voltar para ficar nem pensar, é em Portugal que tem a família, ainda que mantenha em Mo-çambique muitos amigos. Em 1998 decidiu mos-trar o país às filhas. Foi lá que a mais velha viveu mas só até aos seis meses, pelo que não tinha memórias. Foram, pois, três semanas de regresso ao passado.

Saudade de MoçambiquePERFIL

“O advogado que está cá dentro conhece muito melhor a empresa

do que o advogado que está lá fora”