congresso internacional de gastronomia – mesa tendências 2011

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anais 2011 - mesa tendncias

Congresso Internacional de Gastronomia Mesa Tendncias 2011

Anais do Congresso Internacional de Gastronomia Mesa Tendncias 2011 / Centro Universitrio Senac So Paulo, 25,26 e 27 de Outubro de 2011.

ISSN: 2179-4766

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CENTRO UNIVERSITRIO SENAC

Reitor Sidney Zaganin Latorre

DIRETORIA DE EXTENSO Diretora Mrcia Cavalheiro Rodrigues de Almeida

DIRETORIA DE PS-GRADUAO E PESQUISA Diretora Flvia Feitosa Santana

COORDENAO DE EVENTOS Coordenadora Isabella Limes Lopes Cancado

COORDENAO INSTITUCIONAL DE PESQUISA Coordenadora Luciana Mara Ribeiro Marino

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SECRETARIA DO MESA TENDNCIAS 2011 Fernanda Yukie Okado

COMIT CIENTFICO INTERNO Prof. Dr. Mnica Bueno Leme Prof. Ingrid Schmidt-Hebbel Martens Prof. Irene Coutinho de Macedo Silva Prof. Jlio Csar Butuhy Prof. Marcelo Traldi Fonseca Prof. Silvia Ferreira Mac Dowell

COMIT CIENTFICO EXTERNO Prof. Alessandro Danielle Nicola Prof. Dennis Minoru Fujita Prof. Elisabete Frana Prof. Jacqueline Low-Beer Prof. Reinaldo Perez Machado Prof. Violta Saldanha Kubrusly Prof. Wanessa Asfora

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anais 2011 - mesa tendnciasA ddiva e a hospitalidade na comensalidade: o caso de Anthony Bourdain na Sardenha1 Rebeca Elster Rubim2 - Universidade Anhembi Morumbi RESUMO Este artigo procura demonstrar como a ddiva encontrada em cenrios de comensalidade observados no episdio sobre a Sardenha Itlia, do programa de TV No Reservations, capaz de transformar as pessoas, neste caso, seu apresentador, Anthony Bourdain. So discutidos conceitos tericos da ddiva, hospitalidade e a transformao pela qual passou a relao do homem com seu alimento, assim como todas as relaes que nascem em torno do compartilhamento de uma refeio; e como, apesar da crise de sociabilidade pela qual a sociedade passa hoje, ainda existe na alimentao um mecanismo de resgate da cultura, identidade e das relaes. Palavras-chave: Ddiva; hospitalidade; gastronomia; comensalidade. The Gift and Hospitality in Commensality: Anthony Bourdains Case in Sardinia ABSTRACT This article seeks to demonstrate how the gift found in commensality scenarios seen in the episode on Sardinia - Italy, the TV show No Reservations, is capable of transforming people, in this case, its host, Anthony Bourdain. The theoretical concepts of gift and hospitality are discussed, as well as the transformation undergone by mans relationship with its food, including also all the relations that arise from sharing a meal, and how, despite the crisis of sociability in todays society, there is still within eating a mechanism to rescue culture, identity and relationships. Palavras-chave: Gift; hospitality; gastronomy; commensality.

Introduo Cultura, ddiva e hospitalidade. Trs palavras curtas com entendimentos, explicaes e conceituao extremamente complexos. Para sua compreenso toma-se um caminho instigante at a visualizao de como a ddiva perpassa a sociedade, colocando em choque as culturas, criando cenrios onde a hospitalidade possvel. Dentre os inmeros espaos de hospitalidade onde a ddiva pode ser pesquisada, para esta pesquisadora, o campo de interesse a gastronomia. Ambiente muitas vezes confundido apenas com as artes culinrias, a gastronomia permite outras leituras da relao homem-alimento, sendo que as mais frteis para o encontro da ddiva so todas as situaes de reunio de grupos onde ocorrem trocas de alimentos almoos em famlia, 1 Artigo submetido linha de pesquisa 3. Espao Pblico e Conviviabilidade. 2 Graduada em Tecnologia em Gastronomia pelo Centro Universitrio Senac e ps-graduada em Docncia para o ensino superior com nfase em Gastronomia, Turismo e Hotelaria, na mesma instituio. Mestranda em Hospitalidade na Universidade Anhembi Morumbi, onde bolsista Prosup Institucional -CAPES. Contato: [email protected]

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anais 2011 - mesa tendnciasum caf da manh para um amigo que est passando uns dias em casa, distribuio de sopas para carentes, mesa de tapas num bar so todos cenrios possveis de se encontrar a verdadeira doao. A sociedade atual muito complexa e, apesar do homem moderno se considerar extremamente independente, pois domina a tecnologia, e livre para fazer escolhas no mercado capitalista globalizado, ele vive uma iluso na verdade esta uma das sociedades mais dependentes exatamente de tudo isso que criou. No mais possvel confiar as necessidades bsicas a si mesmo. O homem urbano no sabe mais como obter seu prprio alimento sem que algum produza e venda. A maior parte da tecnologia depende de energia, em grande parte no renovvel. O caos da cidade baseado em sistemas de transporte no naturais o que aconteceria com este homem se lhe tirassem essas muletas? O que esse modelo de dependncia e falta de sensao de liberdade causa nas sociedades? Muitas vezes resulta no profundo isolamento e egosmo em que se vive nas grandes capitais mundiais; num modo de vida que no predispe ao encontro, pois faltam espaos de interao e troca, faltam espaos inclusive de realizao da ddiva. Mas como tudo na natureza tende ao equilbrio, as sociedades tambm se reorganizam para retomar sua integridade cada vez mais pessoas buscam meios de estar novamente em comunidade, de poderem contar umas com as outras e a est uma justificativa interessante para a gastronomia: dividir uma refeio ainda uma das melhores maneiras de dividir intimidade. Oferecer um jantar, aceitar essa honra e retribuir da melhor maneira possvel: criar um vnculo e aliment-lo com comida. O homem de hoje se encontra numa situao onde as relaes esgaradas e a frustrao da solido so uma realidade e foi justamente num exemplo de homem sozinho, cidado do mundo, que surgiu um exemplo de como a ddiva pode entrar na vida de algum e transform-lo, aproximando as pessoas, estabelecendo vnculos, fazendo com que se sinta pertencente a um grupo e a um lugar. O homem a que se refere Anthony Bourdain, apresentador programa de TV americano chamado No Reservations, cujo episdio foi analisado a fim de exemplificar o problema de pesquisa. No episdio em questo ele viaja para a Sardenha, na Itlia, visita uma srie de pequenas cidades, pequenos produtores, se senta a uma dezena de mesas e divide uma srie de refeies com estranhos, amigos e familiares. Para esta pesquisadora que sempre acompanhou o programa, quando viu este episdio pela primeira vez notou uma mudana no personagem. Algo acontecera naquela viagem que o transformara. Mas para entender essas mudanas, ser necessrio apresentar o histrico do programa, de seu apresentador e fazer um resumo sobre o episdio, para ento discutir sob fundamentao terica de estudiosos da rea, como os cenrios de ddiva e hospitalidade foram identificados e interpretados no exemplo escolhido e porque afinal, podem ter despertado essa mudana. O programa: No Reservations Produzido pelo canal americano Travel Channel, est no ar desde 2005, No Reservations est atualmente na 6 temporada e completou 100 episdios no incio de setembro, comemorando com um retorno Paris, onde tambm foi filmado o primeiro episdio da srie. exibido no Brasil nos canais pagos Discovery Travel and Living e tambm no TLC HD. Em 2009 recebeu um prmio Emmy na categoria Outstanding Cinematography For Nonfiction Programming. No site oficial do programa (TRAVEL CHANNEL, 2011), possvel encontrar uma pequena descrio

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anais 2011 - mesa tendnciassobre a dinmica do programa que descreve que a comida uma das maneiras de entender como as pessoas vivem em terras distantes e territrios desconhecidos. Por ser cozinheiro, Anthony Bourdain ganha acessos especiais procura gente de sua espcie para mostrar as comidas de verdade e no aquelas para o turista ver. Por esta razo, a dinmica deste programa se distancia de boa parte dos outros programas de culinria e gastronomia, alm do fato do apresentador ser uma figura polmica, como ser apresentado a seguir. Durante as gravaes, Anthony Bourdain j passou por todos os continentes e visitou o Brasil durante a terceira temporada, em 2007, conhecendo vrias cidades, incluindo So Paulo, onde visitou ao lado do chef Jun Sakamoto o bairro da Liberdade. O apresentador: Anthony Bourdain De acordo com sua biografia encontrada na Wikipdia (2011), Bourdain nasceu em 1956 e se formou no CIA (Cullinary Institute of America) em 1978, possuindo desde ento um histrico de 28 anos em cozinhas profissionais, a maioria delas em Nova Iorque (NY), onde nasceu. De lavador de pratos chegou a ser chef executivo no Brasserie Les Halles, tambm em NY. Comeou a escrever artigos para grandes jornais americanos at que um destes, publicado no The New Yorker, deu origem ao livro Kitchen Confidential: Adventures in the Culinary Underbelly, em 2000, fazendo com que ficasse famoso quase que instantaneamente, publicando posteriormente mais nove livros. Iniciou na televiso em 2002 com o programa A Cooks Tour, que durou apenas dois anos, e continua at hoje no ar com o No Reservations. Quando no est viajando, mora em Manhattan com a esposa italiana Ottavia e a filha de trs anos Ariane. Ficou famoso por usar muitos palavres e fazer referncias sexuais, alm de revelar em seus livros que foi dependente de drogas e demonstrar nos programas de televiso ser um fumante e bbado inveterado. Os episdios de No Reservations so repletos de comentrios cidos e humor negro. Em suas andanas pelas cidades visitadas Bourdain busca quebrar ideais pr-concebidos do que so as boas comidas locais ele parece viajar pelo para se convencer sempre que aquilo que j comeu at hoje pode ser sempre uma mentira e que os pratos verdadeiramente bons esto sempre escondidos para serem revelados nos lugares mais incomuns. O Episdio: Sardenha, Itlia ORGANIZAO DOS ANAIS O episdio selecionado foi ao ar pela primeira vez em setembro de 2009 e foi o 20 e ltimo episdio da 5 temporada do programa (TRAVEL CHANNEL, 2011). Fernanda Yukie Okado Anthony Bourdain inicia com um panorama geral da viagem pela Sardenha e uma confisso: apesar de ser um lugar duro, onde era preciso lutar pelas conquistas, a famlia a fortaleza desse povo e valorizada Danielle Batista como tal. Por esta razo, Bourdain, nascido numa pequena famlia americana sem laos italianos, sempre se ressentiu deste fato, mas, ao casar com Ottavia, ele pode realizar este desejo, herdando no uma, mas Silva duas Juliana da Cunha e grandes famlias italianas. Uma de sua sogra na Lombardia e esta outra, do seu sogro, na Sardenha. Luciana Para o apresentador, a Sardenha possui um apelo especial, talvez pelo isolamento Mara Ribeiro Marino intrnseco a esta ilha, mas ali a comida diferente, em suas palavras, inacreditvel, intensa, parece de outro mundo 3 e, num lugar Pollyana Roberta Sabino dos Reis onde as pessoas consideram comer em restaurantes provavelmente uma falha de carter, sentar-se mesa com 3Traduo livre a partir do episdio original obtido na internet.

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anais 2011 - mesa tendnciasamigos e famlia, uma regra desta cultura, entendida de maneira especial para um americano cosmopolita como Bourdain, que vivencia um verdadeiro acolhimento por parte desta famlia e deste povo. O episdio pode ser dividido em oito lugares diferentes por onde o personagem viaja, conhece pessoas, senta-se mesa e discursa sobre as heranas culturais que identifica ao longo dos dias. O primeiro lugar o restaurante do hotel em que ele e sua esposa se hospedam. Um estabelecimento comandado por uma mulher, que dedica mais tempo cozinha que aos outros ambientes, de onde saem pratos naturais, feitos a partir das mesmas receitas que as avs costumavam fazer. Ali o casal conversa sobre os esteretipos da Sardenha: pastores, seqestradores com facas. Para Ottavia estas so apenas figuras que representam como aquele povo sempre teve que batalhar pelo seu sustento numa terra distante de tudo e de todos, eles precisam viver daquilo que produzem. No segundo momento, toda a famlia vai visitar uma estncia de agroturismo que, segundo Bourdain, tem se proliferado por toda Sardenha como uma maneira de sustento extra, pois apenas uma famlia ou uma pequena comunidade abrindo as portas para receber turistas ou mesmo outras famlias locais, para vender o excedente de sua produo. Este agroturismo especificamente o favorito de Andreana, irm do pai de Ottavia e lder da famlia. Em volta da mesa repleta de produtos simples, totalmente caseiros, Andreana diz em italiano: na mesa, se h boa comida, ningum briga, todos concordam. Anthony observa conforme os pratos vo sendo oferecidos uma forte influncia catal, como por exemplo no presunto cru, muito mais semelhante ao espanhol que ao italiano. Isso porque aquela ilha passou por diversas invases e domnios, sendo um dos mais recentes e de maior penetrao cultural, o espanhol. A cena seguinte se passa na pequena cidade de Sassari, que para Anthony extico, mas para Ottavia como sua casa. Ali ele visita um pequeno restaurante de trabalhadores chamado de Zia Forica, onde possvel comer um prato em menos de uma hora, o que rpido, num lugar onde no h fast food. Ele se encontra com amigos que dividem o mesmo interesse pela cultura e histria da Sardenha e escolhem pratos comuns do dia-a-dia dos sardos. Bourdain se surpreende como esses pratos so representativos de uma cultura pr-romana, onde praticamente apenas produtos locais so utilizados, com exceo do tomate, que conquistou um espao entre outros de origem milenar. Eles discutem a importncia daqueles pratos consumidos ali, como por exemplo a carne de burro. Provavelmente em algum momento era uma das nicas carnes disponveis, ganhando com o tempo o status de tpico por seu carter identitrio atribudo pelas pessoas. No final do bloco Anthony resume o esprito da refeio extremamente rica que acabou de ter dizendo que o povo da Sardenha parece defender um direito fundamental que o de comer uma comida boa. Mais uma nova cena se inicia, Anthony, acompanhado de uma das amigas que estava no bloco anterior e tambm de Andreana, vai visitar duas senhoras que h anos produzem um dos pratos mais tpicos e representativos da regio, o pane carasau. Um tipo de po em forma de disco, de massa crocante, feito base de farinha de smola, trigo ou cevada e levedura. Aquelas duas senhorinhas encantaram o apresentador ao repetir o mesmo modo de preparo feito provavelmente desde os tempos remotos de sua origem (h mais de 3000 anos antes da Itlia, antes de Roma, antes de Cristo). Elas demonstram para Bourdain como ele utilizado para comer queijo e lingias curadas e tambm como funciona como um prato, com queijo fresco por esta razo, alm de ser extremamente duradouro, pois pode ser consumido um ano depois de ser preparado tornava-o muito adequado como alimento para os

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anais 2011 - mesa tendnciaspastores da regio. Ento Anthony constata uma realidade que vem se repetindo nestes dias na Sardenha: em alguns minutos uma mesa montada, so servidos queijos e lingias locais e caseiras juntamente com um vinho da casa e o pane carasau e todos aproveitam aquele momento de unio em torno de uma boa e honesta refeio. Bourdain afirma: no uma das culturas mais extrovertidas, mas uma vez que voc entra pela porta, h uma hospitalidade descontrada em todo lugar, porque parece haver um consenso de que a vida difcil e boa comida e vinho so uma recompensa digna para todos. A quinta cena acontece em outro agroturismo, onde novamente se sentam mesa com familiares e amigos. O forte deste local so as carnes de caa, todas da regio: coelho, lebre, perdiz e massas frescas feitas de maneira artesanal. Ali Anthony e sua esposa relembram alguns momentos, como quando se conheceram e ele a perguntou sobre qual era o prato tpico da sua regio na Itlia. Ao mesmo tempo em que ela o olhou com olhar de desdm dado a qualquer um que se considera ignorante, ela respondeu como se fosse bvio que na Sardenha se come o que a terra e a natureza do, peixes no vero, carnes de caa no inverno e todos os vegetais e frutos plantados e colhidos ali. Ela reafirma que esta ligao que possui com a terra faz sua adaptao nos Estados Unidos ser mais difcil. Ali ela sabe exatamente de onde vem sua carne, quem a caou e a preparou. Finalizando o clima de descontrao e proximidade, Bourdain afirma que se um visitante no possuir famlia na Sardenha, so esses agroturismos que podem oferecer algo o mais semelhante possvel: acolhimento e comida caseira. A sexta locao a cidade de Oristano, onde primeiro so mostrados os murais que se multiplicam pela cidade, representando lutas sociais, apelos polticos e crticas a regimes, guerras e culturas estrangeiras. Caminhando pelas ruas com um dos amigos que dividiu o almoo em Sassari, eles conversam sobre como as dificuldades pelas quais o povo passou ao longo dos anos os uniu. Segundo o amigo, a vida era dura para todos, sem exceo e essa igualdade lhes garantia um sentimento de proteo e unio. Ainda nesta cidade, Anthony, Ottavia e Andriana so recebidos na casa de um amigo da famlia para um almoo baseado nos frutos do mar pescados no Mediterrneo. Novamente Bourdain identifica influncias espanholas na comida servida, mas se surpreende com a qualidade e a quantidade da bottarga que colocada a sua frente. Giani, o anfitrio, alm de trabalhar no mercado financeiro, tambm o responsvel pela produo destas ovas curadas, cuja origem da produo ali em Oristano e s podem ser feitas numa poca especfica do ano. Alm disto, Giani tambm responsvel pela pesca dos frutos do mar consumidos ali e tambm pela produo do azeite servido tudo isso surpreende Anthony, que no entende como alm de atuar no mercado, consegue tempo para fazer tudo isso, que so trabalhos manuais e demorados. Ottavia explica que Giani aprendeu tudo com a me e valoriza esse aprendizado, ento sempre encontra tempo para continuar fazendo-o. Ao ouvir isso e constatar a qualidade superior de tudo, Bourdain afirma que ali reside a diferena fundamental da cozinha italiana para a francesa. Na italiana, no final das contas, o que importa mesmo so os ingredientes e a sua me. A stima cena acontece em meio ao festival de So Francisco, de caractersticas muito semelhantes ao Festival do Divino encontrado em vrias pequenas comunidades brasileiras. Anthony presencia o dia da troca do casal de patronos, que durante todo o ano anterior foram os responsveis por manter a comunidade unida para que o festival acontecesse. Ele participa do almoo oferecido aos trabalhadores e tambm da refeio especial, com pratos tpicos e cheios de significado dado aos diretamente envolvidos com a emoo daquela

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anais 2011 - mesa tendnciasfesta. Ele se entusiasma como novamente fica claro que tudo gira em torno da famlia de alguma maneira voc sempre conhece algum que te conhece e no final das contas, todos fazem parte da mesma grande famlia que se senta a mesa, divide a refeio e os momentos de alegria. Ele observa que numa regio onde nem sempre se tinha segurana, quando as coisas estavam calmas, era necessrio celebrar e festejar como se no houvesse amanh. Chega finalmente a ltima cena, na casa de Andreana, que prepara com auxlio dos filhos, um autntico almoo de famlia para Anthony e Ottavia. Ela deixa claro que nenhuma famlia de respeito deixa voc ir embora sem um verdadeiro banquete caseiro. Eles se sentam e comea a sair da cozinha uma verdadeira enxurrada de pratos, ou como ele diz, os grandes hits da Sardenha todos numa mesa. Bourdain reafirma o que colocou no incio da viagem, onde as famlias acreditam que normalmente no se confia em restaurantes para esses tipos de encontro. Para muitos so um sinal de fracasso, desespero ou ignorncia. A preguia poderia ser uma desculpa, mas num lugar onde parece que todos sabem se virar na cozinha, no preparar uma refeio caseira para um visitante deixar de ser sardo. E ali, naquela mesa enorme, prximo de sua esposa, filha e famlia italiana, Anthony discorre sobre as alegrias que aquele lugar lhe proporcionou, fazendo-o se sentir estranhamente feliz, pertencendo de verdade a um lugar. Ele se identifica com aquelas pessoas, se identifica com aquela comida, se identifica com a cultura e os lugares, ele se identifica tanto que se sente livre para dizer que a Sardenha para ele agora sua casa. Cultura, ddiva e hospitalidade A hospitalidade como conceito vem sendo discutida pelos tericos em trs linhas diferentes: na chamada escola americana, aborda-se praticamente apenas os cenrios comerciais da hospitalidade e como ela acontece influenciada pelo mercado. J na chamada escola francesa, discute-se o mbito social da hospitalidade, sua essncia que nasce no dom de acolher o outro. Finalmente, na escola inglesa, discutem-se os cenrios comerciais da hospitalidade, levando em considerao alguns aspectos socioantropolgicos que a concernem, mas sem trabalhar o paradigma da ddiva. Como se insere nos estudos epistemolgicos da gastronomia que busca mais que a relao finita entre o cozinheiro, o ingrediente e as tcnicas e tecnologias de cozinha esta pesquisa busca entender as relaes sociais que so promovidas com a troca e a ddiva em torno da mesa e do alimentar-se em grupo e/ou famlia. Segundo Godbout, a ddiva por si s pode vencer praticamente e no apenas no imaginrio e na ideologia a oposio entre o indivduo e o coletivo, fazendo das pessoas membros de um conjunto concreto mais vasto (GODBOUT, 1999, p. 19 da introduo). E o que a ddiva, se pergunta? O prprio Godbout responde que tudo aquilo que circula a fim de promover, criar e manter os laos sociais (GODBOUT, 1998). A construo deste lao social se baseia no ciclo de dar, receber, retribuir que desinteressado de qualquer finalidade alm do relacionamento estabelecido em si e no necessariamente se desenvolve naquela relao especfica, mas se potencializa por todo um grupo social. Sendo assim, a hospitalidade quando esta ddiva e seu ciclo acontecem em um lugar dividido pelos indivduos que se estendem uns aos outros e se acolhem exatamente como o so: diferentes; construindo um lao social apesar disso. A maioria dos autores tende a classificar a hospitalidade dependendo da sua esfera social de acontecimento, sendo elas a domstica ou privada, a pblica ou social e finalmente a comercial. Para alguns,

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anais 2011 - mesa tendnciasa hospitalidade pura s pode acontecer na esfera privada, onde os indivduos esto despidos da maioria das imposies sociais e podem ser autnticos, pois na pblica, j estariam agindo de acordo com o esperado pela sociedade e na forma comercial, ela finita ao passo que o acerto financeiro encerra o ciclo no receber, dando a falsa idia de liberdade da no retribuio obrigatria. Mas justamente nos espaos onde a ddiva e a hospitalidade podem acontecer de maneira natural que tambm se constroem todos os laos sociais e as interaes indivduo-meio que caracterizam as culturas. Ao acolher o outro, se aceita tambm sua cultura distinta e este aceita-a de volta, ao receber esta hospitalidade. Dentre os vrios mecanismos de hospitalidade, Camargo (2003) os delimita nos eixos de tempo e espao dividindo-os entre o eixo social, que a esfera onde a hospitalidade acontece (domstico, pblico ou comercial) e o eixo cultural, que envolve os modelos de prticas culturais que a hospitalidade pode apresentar, como o recepcionar ou receber pessoas, o hospedar, o alimentar e o entreter. Para o caso especfico desta pesquisa, o modelo de hospitalidade que interessa o da alimentao. Como dito anteriormente, preocupa-se em ir alm da nutrio e da gastronomia e busca entender a refeio como um momento importante de comunicao e socialidade humanas. possvel afirmar que foi a partir desses laos criados em torno da produo, distribuio e do consumo de alimentos que se formaram algumas das caractersticas essenciais da humanidade e do que se entende por civilidade (LASHLEY, 2004). Somos o que comemos (LASHLEY, 2004, p. 11): essa afirmao vai alm do simples ato de se alimentar. Segundo o autor, este ato desempenha um papel importante tanto na definio da identidade de grupos, comunidades e sociedades, como na definio do relacionamento entre indivduos e o contexto social mais amplo. Atravs do consumo do alimento e da bebida, assim como de rituais e regras associados ao seu consumo, os indivduos expressam sua conexo ou desconexo com a comunidade mais ampla (LASHLEY, 2004, p. 12). Ou seja, como resume Carneiro,A fome biolgica distingue-se dos apetites, expresses dos variveis desejos humanos e cuja satisfao no obedece apenas ao curto trajeto que vai do prato boca, mas se materializa em hbitos, costumes, rituais, etiquetas (CARNEIRO, 2003, p.1).

As regulamentaes alimentares perpassam diversos hbitos e relaes de poder que o homem estabeleceu, tanto entre homens, como com a natureza. Por essa razo, Carneiro afirma que o que se come to importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come (CARNEIRO, 2003, p.2), justificando como a alimentao, os hbitos alimentares e todos os pequenos rituais e eventos ligados ao ato de comer so um dos aspectos da cultura mais interligados e presentes em todas as camadas da atividade humana. Mas interessante notar, que, diferentemente de outros animais onvoros, o homem civilizado come no apenas porque sente fome, mas porque sente prazer no ato de comer. Segundo Nascimento,A alimentao motivada por vrios fatores, muitos deles distanciados da nutrio propriamente dita: o incio e a manuteno das relaes pessoais e de negcios, a expresso de amor e carinho, a distino de um grupo, a reao a um estresse psicolgico ou emocional, o significado de status social ou de riqueza, recompensas ou castigos, reconhecimento, fortalecimento da autoestima, exerccio do poder poltico e econmico, preveno e tratamento de enfermidades fsicas e mentais, mudanas de hbitos (NASCIMENTO, 2007, p.29).

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anais 2011 - mesa tendnciasE exatamente pela comida representar to forte papel semitico, por estar presente em todo tipo de atividade humana e por ser uma fonte fcil e rpida de prazer, que o alimento pde evoluir para o papel que representa hoje na sociedade atual, como um objeto de consumo da sociedade capitalista. Sociedade esta que est em crise. A primeira delas, a das relaes, destacada de maneira direta por Godbout:

Entendemos aqui a sociedade moderna como composta de conjuntos de indivduos que tentam perpetuamente seduzir-se e domesticar-se uns aos outros, rompendo e reatando laos. Domesticar-se criar laos, diz a raposa ao pequeno prncipe. tornar algum nico. Sem dvida, no h nada mais banal. Mas est em via de extino. Pois falta tempo, e a domesticao precisa de tempo. por isso que os homens compram tudo pronto nas lojas, sinais de domesticao que so eles mesmos domesticados, e confiam a sua busca de uma soluo nica solidariedade dos grandes grupos, ao Estado de bem-estar... ou aos psicanalistas. (GODBOUT, 1999, p. 18 introduo)

Lashley (2004) nos coloca outro dilema, quando afirma que tanto as indstrias do turismo e da hospitalidade, como as dietas das sociedades de economias ocidentais tm sofrido drsticas mudanas ocasionadas pela industrializao e pelos mtodos agrcolas intensivos, que substituem a energia humana e animal pelos combustveis fsseis baratos, mas finitos. Pois cria ilhas de prosperidade e abundncia e mares de misria e dificuldade o fenmeno da excluso. Pollan j leva este conceito adiante, pois conforme esses processos de industrializao avanam e o homem perde o vnculo com o mundo natural - medida que nossa cultura perde o poder de administrar nosso relacionamento com a comida (POLLAN, 2006, p. 319) - mais sofrido se torna o ato de comer. Segundo o autor, o padro alimentar mundial atual, imposto pelos Estados Unidos ao longo dos anos da globalizao capitalista, carrega fortes influncias culturais alimentares de um povo que nunca contou com uma culinria nacional slida, onde a maneira de se alimentar renovada a cada gerao, o que explica como os americanos (e todos que adotaram esse padro alimentar) se tornaram um alvo fcil para modismos alimentares, alm de serem vtimas de empresas e charlates que tiram proveito da vulnerabilidade frente angstia do indivduo e desenvolvem produtos que precisam ser adquiridos para saciar a tal fome que ningum consegue ao certo descrever. Pollan descreve uma tendncia sobre o capitalismo, apresentada pelo socilogo Daniel Bell, que, na sua busca obcecada pelo lucro, provoca a eroso dos vrios pilares culturais que conferem estabilidade a uma sociedade, mas impede o avano da comercializao (POLLAN, 2006, p. 323), entre eles, o modo como se come, principalmente em famlia, com a indstria atuando fortemente para vender cada vez mais produtos diferenciados a uma populao j bem-alimentada. Portanto, apesar da industrializao e o desenvolvimento de novas tecnologias terem sido um processo histrico de racionalizao, industrializao e funcionalizao da alimentao (CARNEIRO, 2003, p. 103), no se pode deixar de destacar as conseqncias ambientais e polticas, como a contaminao ambiental, o uso de aditivos qumicos, a padronizao de gostos alimentares, controle oligoplico dos mercados, relaes comerciais desvantajosas para os pases perifricos (CARNEIRO, 2003, p. 103), assim como todas as conseqncias sociais, que somam as situaes opostas do aumento das populaes subnutridas com a ampliao da alimentao excessiva das sociedades capitalistas. Carneiro resume num pargrafo tudo o que as novas formas de capitalismo no segundo ps-guerra

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anais 2011 - mesa tendnciasrepresentaram na construo das sociedades urbanas globalizadas de hoje:Cultura do automvel, ascenso das classes mdias, consumo em massa de produtos descartveis como smbolo do modo de vida, expanso do sistema de franquias, predomnio do setor de servios, mas submetido a uma administrao de caractersticas fabris, ou seja, a industrializao do entretenimento e do lazer, padronizao da alimentao, importncia crescente da propaganda (a era do marketing), o nome da marca tornando-se mais significativo do que o prprio produto (CARNEIRO, 2003, p. 107).

Segundo Nascimento, a falta de tempo que origina a pressa, inimiga do prazer (NASCIMENTO, 2007, p. 124), ingrediente fundamental nas mudanas no estilo de vida da contemporaneidade. Compramse alimentos prontos, congelados, individuais, as famlias reunidas mesa so cada vez menos comuns, come-se fora cada vez mais e os hbitos alimentares de famlia perdem importncia na formao do gosto e fundamentao do prazer. Para a autora, nesse contexto de falta de autonomia por sua prpria alimentao que surge o malestar da alimentao, j que:

Somos responsveis cada vez menos pelo nosso cardpio, perdemos os sentidos culturais da comida, mastigamos mal, engolimos rapidamente e, sobretudo, perdemos o controle sobre o que ingerimos e, pelos riscos propagados de alguns alimentos, no sabemos o que comemos. Esse mal-estar, portanto, no decorre apenas do crescimento da fome ou da obesidade, mas subordina-se natureza do complexo industrial alimentar, que submete a sociedade a seus interesses (NASCIMENTO, 2007, p. 163).

Ou seja, como colocado por Poulain:

Paralelamente, a transformao culinria se industrializa. A mudana da valorizao social das atividades domsticas leva as indstrias agroalimentcias a se desenvolver no espao de autopromoo que representava a cozinha familiar. Propondo produtos cada vez mais perto do estado de consumo, a indstria ataca a funo socializadora da cozinha, sem, no entanto, chegar a assumi-la. Assim, o alimento visto pelo consumidor como sem identidade, sem qualidade simblica, como annimo, sem alma, sado de um local industrial no identificado, numa palavra, dessocializado (POULAIN, 2004, p. 51).

Reside aqui a funo primordial do alimento a ser resgatado em nossa sociedade, alm de reencontrar o caminho a partir da produo e dos responsveis pela obteno da comida, o alimentar-se em grupo precisa ser resgatado: reaproximar o homem moderno daquilo que come, criando um sentimento de identidade que se estende a outras esferas atravs do restabelecimento do seu pertencimento. Sentindo pertencente a um lugar, a uma cultura, o indivduo se abre para os outros, se relaciona, se fortalece como parte individual e engrenagem de um todo. A relao dos conceitos com o objeto Como apresentado anteriormente, muitos autores se preocupam com o fato de que hoje, por conta dos extensos ciclos da alimentao industrial, as pessoas perderam completamente o vnculo com a origem dos alimentos. Seja por esquecimento, seja por falta de conhecimento, o ser humano est cada vez mais distante do seu papel como engrenagem nos ciclos naturais do planeta Terra (POLLAN, 2006). Pollan afirma que a maneira como o homem come representa seu compromisso mais profundo com o

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anais 2011 - mesa tendnciasmundo natural.Diariamente, ao comermos, fazemos a natureza virar cultura, transformando o corpo do mundo nos nossos corpos e mentes. A agricultura fez mais para mudar a forma do mundo natural do que qualquer outra coisa que os seres humanos tenham feito, tanto no que diz respeito a suas paisagens, como composio de sua flora e fauna. (...) Comer nos pe em contato com tudo aquilo que compartilhamos com outros animais, e com tudo o que nos mantm parte. algo que nos define (POLLAN, 2006, p. 18).

Se sociedade urbana de hoje empobrecida de relaes, onde a prpria culinria diminuda de significados, observar a fartura do campo, a simplicidade e a generosidade como apresentada na descrio do episdio na Sardenha o retrato de oposio perfeito e objeto de curiosidade e de desejo deste homem urbano que se encontra, como descrito por Bourdain, sozinho, sem certeza exata at do que pode ser considerado seu lar. Todos os exemplos de ddiva descritos, desde o queijo e vinho oferecido por desconhecidos, at o partilhar do banquete em famlia so para este indivduo momentos transformadores e libertadores. Libertadores, pois, como descrito por Godbout (1998), a ddiva possibilita uma liberdade da falsa idia que o mercado proporciona atravs da liquidao da dvida (pois no mercado controlado pelo consumo nunca se est totalmente livre). J a liberdade da ddiva situa-se dentro do lao social, e consiste em tornar o prprio lao mais livre, multiplicando os rituais que visam diminuir, para o outro, o peso da obrigao no seio da relao (GODBOUT, 1998, p. 5). Ou seja, aqui os indivduos possuem autonomia sobre o lao que querem criar e de que maneira o faro, pois a ddiva invisvel e imensurvel, totalmente livre, portanto das regras mercadolgicas. Alm disso, a ddiva, o que circula a servio do lao social, o que o faz aparecer, o alimenta (GODBOUT, 1998, p. 8). Todo movimento de doao , segundo Godbout, intencional na busca pela comunicao, para que o isolamento seja quebrado e a prpria identidade possa ser sentida. Assim ele explica o carter transformador:Da o sentimento de poder, de transformao, de abertura, de vitalidade que invade os doadores, que dizem que recebem mais do que do, e muitas vezes do prprio ato de dar. A ddiva seria, ento, um princpio consubstancial ao princpio vital, aos sistemas vivos. (GODBOUT, 1998, p. 8)

Portanto, se a funo bsica da hospitalidade estabelecer um relacionamento ou promover um relacionamento j estabelecido e se, atravs dessas pontes ela capaz de transformar estranhos em conhecidos, inimigos em amigos, amigos em melhores amigos, forasteiros em pessoas ntimas, no parentes em parentes o ato de preparar, cozinhar e servir o alimento , afinal, um ato de transformar culturalmente substncias naturais, sendo assim, os pequenos atos de dar e receber alimentos so meios simblicos de definio de identidade e de contato com o outro, demonstrando como as regras e as prticas de hospitalidade alcanam profundamente as ocasies mais ntimas e casuais da vida social cotidiana (SELWYN, 2004). Consideraes Finais Espera-se que, com o auxlio dos autores representativos tanto da teoria da ddiva, quando da discusso contempornea da sociologia da alimentao, tenham sido levantados questionamentos claros sobre

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anais 2011 - mesa tendnciasa modificao do papel do alimento e das relaes em torno da produo e diviso do mesmo na sociedade moderna. Acredita-se que, apesar do momento de crise, o alimento, por sua caracterstica vital, pode tambm ser um meio de retomar o controle sobre algo que caracteriza indivduos e sociedades: sua cultura, seus hbitos e tradies. A partir dessas suposies, procurou-se deixar claro as razes que podem justificar como foi possvel que os cenrios de hospitalidade e ddiva vividos por Anthony Bourdain no episdio selecionado sofreu uma transformao diante das cmeras. Foi a partir da liberdade e todo sentimento de fora e segurana alimentados pelos momentos de troca e doao que o despiram das suas costumeiras posturas questionadoras e cidas, abrindo espao para uma viso mais ampla, aceitando o diferente e permitindo se encantar e ser aceito por ele. A Sardenha acolheu Anthony Bourdain, que em retribuio, a acolheu como lar.

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anais 2011 - mesa tendnciasA narrativa da palavra Terroir 1 The narrative of the word Terroir

gata Morena De Britto Universidade do Vale do Rio dos Sinos- UNISINOS2

Paulo Reyes Universidade do Vale do Rio dos Sinos- UNISINOS3

Resumo Este artigo trata da narrativa da palavra terroir desde sua origem etimolgica e histrica e seu desenvolvimento ao longo das mudanas na sociedade. um questionamento sobre o valor dos produtos do territrio nas culturas alimentares no mundo e vislumbra a possibilidade de agregao de valor a estes produtos por meio do design estratgico aplicado ao territrio, conseqentemente valorizando a cozinha regional.

Palavras Chave: Design; terroir; cozinha regional; design estratgico; artefatos.

AbstractThistext is about the narrative of the word terroir, from its etymological and historical origin to its development through society changes. It is the questioning about the value of territory products inside food cultures of the world. It analyses the possibility of adding value to these products by means of strategic design applied to the territory, therefore adding value to the regional cooking as well.

Keywords: Design; terroir; regional cooking; strategic design and artifacts.

Linha de Pesquisa: Do campo mesa: sustentabilidade em toda a cadeia de consumo. Mestranda em Design na Unisinos, especialista em gesto gastronmica pela Escola Superior de Hotelaria Castelli (2005) e graduao em Hotelaria pela UCS (2003). Atualmente professora do curso de gastronomia da Unisinos, atuando no exerccio da docncia desde 2008. E-mail: [email protected] 3 Doutor em Cincias da Comunicao pela Unisinos, mestre em planejamento urbano pela UnB, especialista em design estratgico pela Unisinos e graduado em arquitetura e urbanismo pela UniRitter. Professor do PPG em design e do curso de arquitetura e urbanismo da Unisinos.

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anais 2011 - mesa tendnciasIntroduo

Este artigo resultado de uma pesquisa que relaciona produto local e territrio e a valorizao destes objetos atrelados ao conceito de terroir por intermdio da criao de um sistema-produto, como no caso dos produtos de terroir na Itlia. Est apoiado nos fundamentos do Slow Food, movimento iniciado por Carlo Petrini, que considera os produtos regionais como patrimnio das suas respectivas regies e naes. Esta filosofia defendida pelo Movimento Slow Food pode ser justificada por meio dos conceitos de sustentabilidade e produto contemporneo de Ezio Manzini, baseado nos recursos limitados do planeta. Esse movimento busca a preservao dos produtos tidos como resultado de determinado terroir, com o objetivo de fomentar o crescimento sustentvel das comunidades agrcolas, bem como a proteo dos saberes e fazeres das culturas locais, no caso a cozinha regional, desta forma visando defender a biodiversidade na cadeia de distribuio alimentar. A abordagem no enfoque dos vnculos estabelecidos entre produtor e consumidor e na relao estabelecida pelo consumo do bem, assim como o processo de sistema-produto no qual esto inseridos a partir de uma viso multidisciplinar, do campo de estudos da alimentao e do design. Para tanto, se faz uma reflexo sobre o conceito de terroir e sua aplicabilidade no territrio brasileiro, de acordo com o exemplo italiano, Slow Food . Os resultados demonstram que o modelo italiano de valorizao dos produtos regionais eficiente e auxilia na sustentabilidade da biodiversidade local e comunidades agrcolas de pequenos produtores. Portanto, esse modelo pode ser utilizado no desenvolvimento de um mercado para os produtos dos terroirs brasileiros.

A narrativa do terroir Desde sempre o homem utilizou o territrio como recurso de sobrevivncia e de fixao. Se isso parece evidente, no evidente a narrativa sobre essa relao. Neste sentido, preciso interpretar a narrativa criada pelos homens para valorizar o produto de sua regio e a identidade construda em torno do conceito estabelecido pela sociedade em relao ao local de habitao, territrio, chamado, inicialmente pelos franceses, de terroir.O terroir de acordo com a etimologia tem sua origem na palavra terratorium, uma alterao galo-romana para a palavra territorium do latim e significa uma extenso de terra limitada considerada pelo ponto de vista de suas aptides agrcolas com caractersticas particulares do local. Dessa forma, pode-se compreender que este local tenha condies e recursos especficos, de acordo com o seu clima, localizao geogrfica e espcies nativas. Porm, esses no so os nicos fatores que fazem com que o terroir carregue o significado utilizado atualmente. Alm das influncias do local, o que faz o terroir ser considerado uma regio com expresso nica e singular a relao entre o seu regionalismo, a dimenso social e o territrio. Com o conjunto destas influncias se criam condies locais e recursos ideais para determinados cultivos agrcolas e mesmo para o consumo de espcies nativas que nascem de forma natural nesse territrio especifico, essencial para as culturas alimentares. Porm, este conceito de terroir, e sua valorizao, utilizado nos dias de hoje, relacionado com as culturas alimentares, um conceito relativamente novo, com origem no sculo XIX. De acordo com Montanari, (2006:93) o conceito atual de terroir foi conseqncia de fenmenos culturais e

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anais 2011 - mesa tendnciaseconmicos ocorridos devido a era da industrializao a passagem da sociedade da fome para a sociedade da abundncia e volume. Foi um movimento que surgiu primeiramente na Frana e depois no restante da Europa (sculos XVII e XVIII), criando-se uma nova cultura do gosto, devido a nova forma de se alimentar, que surgiu junto com a criao das indstrias da alimentao. Com isso, houve uma mudana de paradigma, j que a cozinha pr-moderna mostrava um amor pelo artificial, fato simples de ser constatado ao se investigar livros de cozinha anteriores a essa ruptura. Nesse momento, houve uma redescoberta (na verdade descoberta) das razes e, conseqentemente, a inveno de novos sistemas alimentares, chamados de cozinha regional. Esse tema tambm foi aprofundado por outros pesquisadores, como De Certeau em A Inveno do Cotidiano (1994) em que afirma que havia uma hierarquizao alimentar, onde os camponeses vendiam o que produziam e acabavam por passar fome. Com a mudana cultural, causada pela industrializao, as diferenas muitas vezes ficam por conta de uma histria cultural regional baseada em uma tradio que se adapta produo agrcola do lugar. Ou seja, na perspectiva de De Certeau, quando um determinado legume ou fruto colhido em abundncia preciso aprender a prepar-lo e conserv-lo (Certeau, 1994, 241). Montanari ainda afirma que na Europa pr-moderna este conceito de regionalismo e terroir seria invivel. Pois, em uma sociedade com ideologia rigorosamente orientada para as classes sociais, a comida era usada como instrumento de diferenciao social. Isso ainda se manifesta em muitos locais. Por meio do terroir e regionalismo tentase abolir ou, pelo menos, enfraquecer as distines sociais, pois se resgata a dimenso simples da alimentao. Terroir portanto a mistura de diversos elementos relacionais: as pessoas, a cultura, as tradies, e os produtos oriundos deste territrio. Analisando o conceito de terroir pode-se afirmar que terroir uma realidade mundial, porm o necessrio no Brasil mapear e valorizar todos os diversos terroirs brasileiros em potencial. A definio destes terroirs brasileiros, de acordo com Dria (2008:210), depende fundamentalmente da desconstruo da chamada cozinha regional brasileira, j que a cozinha regional baseada em uma diviso geo-politica e no em uma representao da relao do homem com o meio, da cultura brasileira e com a explorao dos terroirs propriamente dito. Existe tambm a possibilidade de haver uma classificao estritamente gastronmica, assim valorizando os modos de fazer e sabores singulares. Porm, se no houver uma reflexo quanto sustentabilidade o que ir acontecer inevitavelmente o desaparecimento desta cultura e destes produtos tpicos de determinadas regies, fato acentuado pela agricultura de monocultura e estritamente voltada para os rendimentos financeiros.

O terroir na contemporaneidade De acordo com Simon, um artefato pode ser como um ponto de encontro entre um ambiente interno, a substncia e organizao do prprio artefato, e um ambiente externo, as condies em que o artefato funciona (1981:29). Com essa afirmao, pode-se situar os produtos do terroir, vistos como artefatos, como um ponto de encontro entre a cultura de um povo e o seu meio natural. Ele funciona como um elo de articulao entre o

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anais 2011 - mesa tendnciasnatural e o cultural. As cozinhas regionais de cada canto do mundo surgiram dessa forma, da relao do meio natural, aonde os povos habitavam, e suas identidades culturais como a soluo de um problema. Porm com a modernidade, essas cozinhas regionais comearam a sofrer um processo de modificao. Os ingredientes produzidos e vendidos em uma determinada localidade no so mais os produtos consumidos nos locais do terroir. No mundo atual, as novas tecnologias proporcionaram uma mudana na alimentao muito grande. Entre elas, a agricultura que possibilitou que o consumo de um alimento fosse produzido em uma regio, mas originrio de outras culturas. Esse fato acarreta diversos problemas relacionados com o territrio rural, como o esvaziamento dos campos. possvel verificar grandes proprietrios de terras transformando as reas em enormes campos de monocultura esvaziando-os dos signos e smbolos do terroir. O interesse econmico transformou os hbitos alimentares das pessoas, fazendo com que tradies e culturas de diferentes partes do planeta estejam em vias de desaparecimento. Isso acarreta principalmente perdas na cozinha regional, pois os ingredientes locais perdem sua identidade. Ou seja, a identidade a construo da relao do meio com o seu produto. Nesse sentido, preciso que haja uma reflexo para que se desenvolva uma redescoberta dos sabores e do terroir.Se verdade que o terroir valoriza o produto local, verdade tambm que isso no ocorre de maneira espontnea. necessrio criar estratgias para a efetiva valorizao desses produtos. Nesse sentido que o design pode contribuir nesse processo.

A narrativa do terroir pelo design Manzini (2009) aponta para a transformao da nossa relao com os objetos e artefatos, e mais especificamente, para os produtos do terroir. De acordo com ele, necessrio haver um movimento da sociedade que leve em considerao os recursos limitados. Ainda afirma que um artefato pode significar algo falso ou artificial. No entanto, pode significar tambm feito com arte. Assim, de acordo com a perspectiva do autor, devemos procurar produzir objetos com maior qualidade, em se tratando de sustentabilidade, pode-se concluir que sejam produtos que respeitem a natureza e as pessoas que habitam este planeta. (Manzini, 2009, pag. 16) Portanto, artefatos produzidos de forma sustentvel, respeitando os recursos limitados do planeta, deve ser o foco de um produto contemporneo, valorizando as identidades locais, em longo prazo. O produto do terroir possui caractersticas como a indicao de procedncia, segurana de qualidade dada ao consumidor, assegura uma melhor qualidade de vida para a comunidade produtora, estimula a economia local, alem de valorizar as cozinhas regionais. Estas caractersticas fazem com que este tipo de produto se torne uma atividade humana sustentvel. Com o objetivo de deixar o planeta habitvel e rico em possibilidades o produto do terroir tem um papel indispensvel nesta mudana de paradigma na sociedade, fazendo com que o produto retorno ao seu territrio, valorizando-o.Nesta mudana de comportamento e aes que entra o papel do design como inovao, sendo uma ponte entre a arte e a tcnica que consiste em produzir mercadorias. Segundo Galisai (2008, pag. 2-3), necessrio compreender que uma mercadoria no trata apenas de objetos concretos, mas, alm disso, o design responsvel pela produo de produtos, servios e experincias que sero negociados no mercado, momento em que sero tratados como mercadorias. Portanto, com o design se deve ser capaz de transmitir os valores desejados e os significados intangveis que definem a identidade do produto, servio e/ou experincia em questo.

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anais 2011 - mesa tendnciasPara que se transmitam estes valores, se deve recorrer a uma ramificao do design: o design estratgico, aliando a materialidade e imaterialidade do produto por meio de um projeto estratgico, criando um valor agregado para o produto. O design estratgico ir ajudar a definir a identidade. Desta forma, com o design estratgico, a empresa, sistema de servio e produto, obter um posicionamento no mercado e conseqentemente, adquirir uma vantagem competitiva.Zurlo explica que: design estratgico a atividade de projeto cooptada na formulao e no desenvolvimento das estratgias de uma organizao; seu objetivo dar forma estratgia que , principalmente, um sistema-produto, isto , o conjunto orgnico e coerente dos vrios meios de comunicao em massa (produto, servio, comunicao) com os quais a empresa constri a prpria identidade, posiciona-se no mercado, define o sentido de sua misso na sociedade. Nesta citao de Zurlo, fala-se sobre empresa. No entanto, pode-se pensar tambm em territrio, ou seja, em design estratgico aplicado ao territrio e sobre cultura e produes locais de alimento. Aqui se pode utilizar o conceito de Reyes (2008, pag. 4) que consiste no territrio sendo focado pelo design estratgico com o objetivo de ser valorizado e de poder ocupar um novo posicionamento, tanto em termos de imagem, quanto de sustentabilidade econmica e social. Com design territorial, pode-se desenvolver e provar a eficincia de uma estratgia de insero na sociedade de consumo dos produtos do terroir estimulando o crescimento deste mercado e de produtos alimentcios sustentveis. Para isto, devem-se desenvolver padres e critrios, que sero estruturados no metaprojeto, fundamentando os sistemas alimentares e respeitando as tradies, cultura, qualidade de produo e organolpticas dos produtos produzidos. (Deserti, 2007) Utilizando o design como um facilitador para a valorizao dos produtos regionais criando um sistema entre produtores e consumidores se promover e estimular solues inovadoras e sustentveis. De acordo com Manzini (2008, pag. 5), o design de food network a criao de um sistema produto-servio, aonde produtos e servios integrados so projetados para atender uma demanda, buscando estratgias para planejar novas solues compatveis com estruturas j existentes, parte da cultura das comunidades locais. Portanto, com a ao de interveno do design sobre o territrio se poder estimular a patrimonializao dos valores locais internamente reconhecidos como identidade local e os mesmos servirem de troca com agentes externos.

Assim com estas iniciativas por meio do design estratgico se possibilitar a criao de uma rede do sistema alimentar que vir a estimular o cultivo de produtos do terroir, por meio do valor agregado a ele atribudo com o planejamento estratgico aplicado ao territrio, conseqentemente valorizando a cultura do territrio e a cozinha regional. O exemplo italiano A Europa j possui seus terroirs devidamente mapeados e descobertos pelo mercado, e usar o exemplo europeu como base para futuros estudos dos terroirs no Brasil de grande importncia. Neste artigo, sero discutidos casos que pertencem ao territrio italiano, devido em parte a ao do movimento Slow Food: no

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anais 2011 - mesa tendnciascaso dos frangos capes de Morozzo, mostrando assim como a ao de um grupo no governamental pode auxiliar na valorizao do territrio; e no caso do limoncello, a iniciativa do grupo de produtores e comunidade para criar uma rede de valorizao do produto. Krucken (2008: 83) afirma que o potencial de um recurso local est relacionado com suas caractersticas, sua viabilidade econmica, tcnica e ambiental e sua insero no mercado e na sociedade. A projetao deste sistema de valores justifica o uso do design estratgico como ferramenta para o desenvolvimento de sistemasproduto que beneficiam a valorizao deste produtos com base em recursos locais. Os casos que sero citados abaixo esto de acordo com estes critrios de potencialidade de acordo com a autora. O limoncello um licor preparado a partir da mistura de cascas do limo sorrentino com lcool de cereais. um produto originalmente italiano que faz parte de seu patrimnio histrico e sua receita data do XVII e sua produo muito importante do ponto de vista econmico para a regio de produo. A preservao e sua importncia econmica atual se devem a movimentao dos produtores ao se organizarem e formarem uma cooperativa - a cooperativa Solagri, em 1994. Este movimento devido a uma necessidade regional, em redinamizar a agricultura local, que estava deixada de lado, em razo ao desenvolvimento do turismo local. Para buscar a proteo e valorizao do limo sorrentino e seu licor; a recuperao de tcnicas antigas de cultivo; obter a certificao de indicao geogrfica e denominao controlada; a cooperativa formou o consrcio Terra delle Sirene, envolvendo tanto os agricultores quanto os produtores de licor. Nesse caso, pode-se verificar a atuao do design no fortalecimento dos elementos do produto como marcadores de identidade: o estabelecimento de uma estratgia de venda, a comunicao, a identificao com os consumidores e a incluso do produto em uma viso de marketing turstico. (Krucken, 2008, pag. 87) O movimento Slow Food surgiu da inteno de Petrini de apoiar e defender a boa comida. Porm ao longo dos anos se transformou em uma rede de pessoas que buscam uma educao que luta contra a futilidade da alimentao contempornea. Como exemplo do trabalho feito pelo movimento, pode-se destacar o caso dos frangos capes de Morozzo, mostrando a ao da comunidade com o objetivo de manter uma tradio em vida. Com o objetivo de catalogar e preservar os produtos do territrio ameaados de extino, houve a criao da Arca do Gosto. Para o efetivo funcionamento da mesma se utilizou o frango capo de Morozzo como prottipo para alavancar a idia. Em 1998, quando o produto foi inserido na ao do movimento, este produto estava em vias de desaparecimento, pela mudana na economia local. Com a encomenda de diversos animais, feita por Petrini e sua rede, a produo se manteve e obteve a oportunidade de crescimento necessria, alcanando a indicao geogrfica e denominao de origem controlada do governo italiano em 2001. Aqui podemos ver a ao do design no estabelecimento de redes de cooperao trabalhando com os saberes da produo, estimulando a economia agrcola e por meio do marketing alimentar para a divulgao e valorizao do produto local, atravs da coproduo (Petrini, 2009, pag. 157). Dria diz que o terroir a ecologia e a cultura do sabor, ao analisar esta afirmao v-se uma necessidade da preservao destes sabores locais, como foi mostrado nos casos acima. Porm no Brasil ainda se est distante deste sistema europeu de valorizao do territrio, pois o conceito de que cada territrio permeado pela sua singularidade alimentar relativamente novo no Brasil. No entanto, no inexistente, podendo se constatar no fato de o governo brasileiro criar um sistema de classificao de produtos brasileiros de acordo com o critrio territorial, por meio do INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), (Dria, 2008, pag. 211). A relativa novidade dos produtos de terroir no Brasil pode ser confirmada por meio dos nmeros de produtos com indicao geogrfica no Brasil: com menos de dez produtos classificados, enquanto, na Itlia, pode-se contar centenas de produtos com selos de denominao de origem controlada. Consideraes finais

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anais 2011 - mesa tendnciasAssim, pode-se verificar que a alimentao tem um grande valor conservacionista, que atravs da sustentabilidade ambiental e social possvel preservar tradies, a cultura dos povos e a natureza, sem prejudicar o desenvolvimento econmico das comunidades. Para que isso ocorra necessrio a elaborao de um conceito sntese de cada terroir brasileiro (Dria, 2008, pag. 218) e, por meio, do design estratgico possvel gerar qualidade nos produtos e servios da cadeia de distribuio alimentar. Alm do fato de que para que a gastronomia no Brasil continue a se desenvolver e ser conhecida internacionalmente, a mesma depende diretamente da preservao de seu ecossistema. Pois o grande diferencial so seus ingredientes, produtos ligados diretamente ao seu territrio, e no ritmo atual da agricultura brasileira baseada em monoculturas uma questo de tempo para o desaparecimento de diversos produtos do terroir.

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anais 2011 - mesa tendnciasReflexes E Interfaces Entre A tica Contempornea Em Turismo E A Gastronomia Enquanto Instrumento De Conviviabilidade, Contato E Trocas Culturais E Simblicas Em Turismo.

SCHULZE, Thiago Rodrigues1 PUC-SP

Resumo

O presente artigo estabelece reflexes e interfaces entre a tica contempornea em Turismo e Gastronomia a partir de 5 elementos por ns identificados como inerentes tica em Turismo, especificamente a sustentabilidade, a hospitalidade, a incluso social, a cidadania e o multiculturalismo, e os trs elementos identificados na Gastronomia, especificamente a conviviabilidade, o contato da Gastronomia com o turismo, e as trocas culturais e simblicas. O artigo dividido em quatro momentos. No primeiro, apresentamos o contexto em que o artigo surgiu e foi desenvolvido; no segundo, descrevemos o significado de cada um dos cinco elementos da tica ligada ao Turismo; no terceiro, falamos dos trs elementos da Gastronomia e sua relao com o turismo; finalmente, no quarto, apresentamos as principais concluses e perspectivas decorrentes do cruzamento dos oito elementos identificados.

Palavras-chave: turismo, gastronomia, tica

Abstract

The present article establish reflections and interfaces between the contemporary ethics in Tourism and Gastronomy, based on the five elements identified as inherents to the ethics in Tourism, particularly the sustainability, hospitality, social inclusion, citizenship and multiculturalism, and the three elements identified in Gastronomy, particularly the conviviality, the contact of Gastronomy with Tourism, and the cultural and symbolic exchanges. The article is divided in four moments. On the first, we present the context in which the article emerged and was developed; on the second, we describe the meaning of each one of the five elements of ethics related to Tourism; on the third, we explain the three elements of Gastronomy and this relation to the Tourism; finally, on the forth, we present the main conclusions and perspectives derived to the crossing of the eight identified elements.

Key-words: tourism, gastronomy, ethics

1 Bacharel em Turismo pela PUC-Campinas, Mestre e Doutor em Educao-Currculo pela PUC-SP. [email protected]

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Reflexes E Interfaces Entre A tica Contempornea Em Turismo E A Gastronomia Enquanto Instrumento De Conviviabilidade, Contato E Trocas Culturais E Simblicas Em Turismo.

Contextualizao

O presente artigo, que objetiva estabelecer reflexes e interfaces entre a tica contempornea em Turismo e a Gastronomia enquanto instrumento de conviviabilidade, contato e trocas culturais em Turismo teve como origem parte de nossos estudos realizados durante a tese de doutoramento e a busca por novos campos nos quais poderamos estabelecer relaes entre os resultados alcanados e as diferentes reas que integram o produto turstico, e o setor de Alimentos e Bebidas uma delas.

Apesar de nossa tese ter enfatizado a busca por contribuies e subsdios a um currculo de Turismo no Brasil fundamentado nos princpios norteadores da tica contempornea, portanto uma tese cuja temtica se concentra na rea de Cincias da Educao, especificamente no campo do Currculo, um dos captulos (SCHULZE, 2011), dedicamos a investigar quais elementos poderiam compor esta noo de tica contempornea em Turismo e chegamos a um total de 5 elementos: sustentabilidade, hospitalidade, incluso social, cidadania e multiculturalismo.

Na seqncia de nossos estudos ps-defesa de tese, buscamos possveis desdobramentos de nossas reflexes em reas especficas do turismo, de forma a estabelecer um dilogo que aprofunde no somente nosso entendimento sobre tica em tais reas, mas sobretudo perceber de que forma podemos trocar experincias sobre a temtica, partindo de situaes mais concretas, aprender com as mesmas. E uma destas reas a de Alimentos e Bebidas.

Assim, como a Gastronomia, atravs do fornecimento de produtos e servios de Alimentos e Bebidas, integra o fenmeno turstico, podendo at se constituir em um de seus pilares, entendemos que, a partir da anlise de pesquisas e publicaes de autores que abordam a relao entre a Gastronomia e Turismo, esta seria uma oportunidade de identificarmos de que forma a Gastronomia, inserida no contexto mais ampliado da tica em Turismo, poderia ser encarada como um elemento potencializador de conviviabilidade, contato com o turismo, alm de trocas culturais e simblicas.

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O artigo dividido em trs partes: a primeira, aborda os cinco elementos da tica contempornea em Turismo; a segunda, destaca reflexes sobre a Gastronomia enquanto elemento de conviviabilidade, aprendizagem, contato, trocas culturais e simblicas; a terceira, como exerccio de sntese e cruzamento dos dados alcanados, efetuamos uma interface entre a tica e a Gastronomia em Turismo e da apresentar as principais concluses e perspectivas sobre a temtica.

A tica contempornea em Turismo

Conforme destacamos na parte introdutria do artigo, em um captulo de nossa tese de doutoramento, investigamos a contribuio da tica contempornea como elemento do Turismo e a identificao de quais elementos a poderiam compor. Para tanto, adotamos como conceito base de tica, a manifestao do contato de cuidado entre os seres humanos e entre os seres humanos e o mundo, a partir dos fundamentos de Boff (1999) em seu livro Saber cuidar: tica do humano compaixo pela terra. Ou seja, reconhecemos outros conceitos e linhas de pensamento sobre tica, porm necessitvamos adotar uma linha, e a que adotamos foi a do ser humano de cuidado.

Ao longo de nossa tese, com base tanto em nossa dissertao de mestrado, que abordamos a hospitalidade e a sustentabilidade como elementos norteadores da aprendizagem em um curso de Turismo (SCHULZE, 2006), quanto novas publicaes que refletiram sobre as transformaes globais ocorridas sobretudo aps 2008-2009, chegamos a cinco elementos, abaixo descritos:

1 Sustentabilidade

Como sustentabilidade, entendemos como um princpio relacionado a um desenvolvimento relacionado satisfao de nossas necessidades atuais, sem comprometer a capacidade das pessoas satisfazerem as suas no futuro, e que conforme Swarbrooke (2000) envolva o meio ambiente, as pessoas e os sistemas econmicos. Com isso, compreendemos durante a dissertao de mestrado, que o desenvolvimento sustentvel abrangeria as dimenses econmica, ambiental e scio-cultural. Porm, aps uma publicao de Beni (2006), pudemos acrescentar s trs dimenses da sustentabilidade, uma quarta, intitulada sustentabilidade poltico-institucional. Uma das afirmaes do autor nos auxilia a compreender a relevncia desta dimenso ao falar dos instrumentos de implementao. Conforme Beni:

O turismo sempre lembrado como grande possibilidade econmica, mas pouco se explica que seus benefcios dependem de grande esforo poltico e institucional. Sem os instrumentos de implementao, a poltica de turismo sustentvel se transforma em pea retrica (BENI, 2006, p. 116)

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anais 2011 - mesa tendnciasAtravs deste comentrio do autor, pudemos perceber a preocupao do mesmo em no encarar a sustentabilidade apenas como discurso, e buscar nos esforos poltico e institucional, materializados nos instrumentos de implementao, formas de se integrar todas os nveis que integram o desenvolvimento sustentvel do turismo.

2 Hospitalidade

Como hospitalidade, durante a dissertao de mestrado, havamos optado por seguir uma linha de raciocnio mais ligada escola europia, que compreende a hospitalidade como uma ddiva que extrapola a esfera comercial, mais predominante nos estudos de vertente norte-americana. Por isso, adotamos o conceito de Luiz Octvio de Lima Camargo, que a define assim. A hospitalidade pode ser definida como o ato humano exercido em contexto domstico, pblico e profissional, de recepcionar, hospedar, alimentar e entreter pessoas temporariamente deslocadas de seu habitat natural (CAMARGO, 2004, p. 52).

Conforme pudemos observar, o autor destacou acima de tudo a hospitalidade como um ato humano, mais afinado ento com os preceitos do ser humano de cuidado, eixo fundamental para as discusses sobre tica na dissertao de mestrado e na tese de doutorado. Percebemos tambm que a hospitalidade tratada nos trs domnios, especificamente no contexto domstico, que trata do conjunto de relaes existentes quando visitamos algum em seus lares, no contexto pblico, que trata de como as cidades e os pases nos recebem, e, finalmente, no contexto profissional, este sim mais ligado hotelaria. Tambm foi destacado os tempos sociais da hospitalidade, o recepcionar, hospedar, alimentar e entreter.

Em relao s atualizaes decorrentes das novas publicaes sobre o tema durante a tese de doutoramento, destacamos o livro de Boff (2005) intitulado Virtudes para um outro mundo possvel, vol 1: hospitalidade. Nesta publicao, as mesmas dimenses pblica, comercial e domstica se fizeram presentes, alm da noo de hospitalidade como ddiva. No entanto, assim como na sustentabilidade, o principal aspecto que chamou ateno foi a conotao poltica atribuda tambm hospitalidade. Conforme o autor:

O ideal de hospitalidade deve ajudar a formular boas leis e a inspirar polticas pblicas generosas que viabilizem a acolhida do estrangeiro, do emigrado, do refugiado e do diferente. Caso contrrio, permanece uma utopia sem contedo concreto (BOFF, 2005, p. 107)

Mesmo que interpretemos que o autor no utilize a palavra turista como um dos merecedores de hospitalidade, destacamos que estes, no contexto trazido pelo autor, podem ser considerados os estrangeiros que visitam outras localidades, outras residncias, outros hotis, e diferentes, por seus costumes, tradies e manifestaes culturais distintas dos residentes na localidade. O mais relevante porm, sobre a afirmao trazida, diz respeito idia de que a hospitalidade, enquanto esfera presente do contato de cuidado entre os seres humanos, no se limita a um conjunto de idias, mas se transforma em ao, tambm por meio de leis e polticas, assim como dito por Beni (op cit), quando este

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anais 2011 - mesa tendnciasfalou sobre sustentabilidade.

Antes de apresentarmos os trs itens subseqentes emergentes das anlises ligadas s novas transformaes globais, compreendemos ser relevante trazer aqui trs comentrios que transmitem um pouco essa noo de novo, de uma era de incertezas que nos demanda novos elementos, novas reflexes sobre nossas aes em escala global.

O primeiro comentrio trazido por Joshua Ramo. Para o autor,

A imensido dos desafios que temos hoje diante de ns, os fracassos perturbadores que provavelmente nos esperam e nossa incapacidade de lidar eficazmente com os problemas, pois utilizamos modos antigos de pensar, nos levaro seguramente a questionar muitos valores fundamentais de nossa sociedade (RAMO, 2010, p. 21)

A partir deste comentrio, duas situaes surgiram como relevantes para nossa busca por novos elementos. A primeira, diz respeito emergncia de novos desafios em escala global. Tais desafios podem ser exemplificados pela crise econmica global de 2008-2009, pelas catstrofes naturais que ainda assolam diferentes pontos do planeta terra, ou mesmo o cenrio de instabilidade gerado nas mais diversas destinaes tursticas, pela continuidade dos ataques terroristas. A segunda, diz respeito ao fato de que, se temos novos desafios, como os acima descritos, estes demandam uma nova forma de soluciona-los. Por isso, nossa busca por elementos que nos auxiliem a compreender e contribuir para a identificao e construo de antdotos para as possveis dificuldades vindouras em turismo.

Se Ramo (op cit) concentrou seus esforos em anlises globais mais ligadas sociedade como um todo, Kotler & Caslione tambm foram capazes de identificar este novo momento no mundo corporativo. E assim trouxeram a seguinte afirmao:

Os lderes de negcios precisam de uma nova viso de mundo e de novos referenciais para lidar com tanta instabilidade e fecundidade. De acordo com essa nova viso de mundo, as mudanas ocorrem o tempo todo. Elas podem irromper em qualquer canto do planeta e exercer grande impacto sobre qualquer empresa (KOTLER & CASLIONE, 2009, p. 2)

Esta afirmao reala a emergncia de uma nova era de transformaes contnuas, aceleradas e inesperadas, e a conseqente necessidade de se desenvolver novas competncias por parte dos lderes das organizaes, para lidar com elas.

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anais 2011 - mesa tendnciasE se ocorrem transformaes contnuas e aceleradas nas esferas social e tambm das organizaes, o turismo passa pelo mesmo processo. E Panosso & Trigo bem retratam esta situao ao afirmarem que:

No se pode deixar de levar em considerao novos valores regionais e globais e novas alternativas de desenvolvimento. Surge a necessidade premente de tica, de justia social, de compreenso das novas culturas e, especialmente, de percepo de que o surgimento e o desenvolvimento sistemtico das novas tecnologias realmente significam para a sociedade ps-industrial (PANOSSO & TRIGO, 2009, p. 22-23)

Os autores, alm de reconhecer este novo momento e a emergncia de novos valores ligados a esta nova era, explicitaram tais valores. De certa forma foi um ponto de partida para nossa identificao da incluso social, da cidadania e do multiculturalismo como novos elementos ligados tica em Turismo. Assim, abaixo traamos algumas linhas do significado de cada um destes trs elementos para o turismo.

3 Incluso social

Entendemos aps a anlise das bibliografias acima citadas, e da concepo de que o desenvolvimento do turismo, baseado nos preceitos da tica, um turismo inclusivo aquele que contempla todos os seres humanos envolvidos com o fenmeno turstico, portanto, um desenvolvimento tico est diretamente ligado a um desenvolvimento inclusivo e as novas transformaes globais ilustraram esta situao. Alis, o prprio Plano Nacional de Turismo 2007/2010 tem como ttulo Plano Nacional de Turismo 2007/2010: uma viagem de incluso (BRASIL, 2007) e traz declaraes como as seguintes:

Chegou a vez do turismo de incluso. Uma incluso na mais ampla acepo da palavra: incluso de novos clientes para o turismo interno, incluso de mais turistas estrangeiros, incluso de mais divisas para o Brasil, incluso de novos investimentos, incluso de novas oportunidades de qualificao profissional, incluso de novos postos de trabalho para o brasileiro. Incluso para reduzir as desigualdades regionais e para fazer do Brasil um pas de todos (BRASIL, 2007, p.8)

Entendemos que esta associao do termo incluso trazida no Plano Nacional de Turismo refora em diferentes aspectos do turismo, como a esfera social e econmica, atravs da gerao de empregos e renda, reduo das desigualdades, nosso entendimento que a incluso social diretamente ligada tica em Turismo, pois valoriza acima de tudo o ser humano e no somente o capital.

4 Cidadania

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anais 2011 - mesa tendnciasO desenvolvimento do turismo nos moldes ticos, conforme observamos ao longo dos estudos tambm valoriza a ajuda mtua, o bem comum, e um conjunto de direitos e deveres necessrios para que o contato de cuidado em turismo seja garantido. A isso atribumos o nome de cidadania em turismo. E Panosso e Trigo enfatizam essa caracterstica, quando indicam que

Outro tipo de turismo ser possvel apenas em uma sociedade mais participativa. Capital e conhecimento so importantes nessa construo, mas a revalorizao do humanismo fundamental para que a vida seja preservada e dignificada (PANOSSO & TRIGO, 2009, p. 85)

Mais uma vez as relaes humanas so sobrepostas s estritamente mercantis, quando os autores indicam que outro turismo, portanto mais tico, somente ser possvel em uma sociedade mais cidad, que compreenda a importncia da participao de todos os agentes envolvidos, sejam eles representantes do poder pblico, das organizaes e mesmo a comunidade receptora.

5 Multiculturalismo

Uma atividade mais inclusiva e mais cidad contempla tambm o respeito s diferentes manifestaes culturais de seus participantes e da localidade onde o turismo desenvolvido. Somam-se a este respeito s diferenas culturais, a ascenso de uma cultura de nichos e de segmentos de mercado, conforme pudemos observar em Anderson (2006) e Lypovetsky (2007). Para verificarmos essa presena do multiculturalismo, trazemos abaixo uma afirmao de cada autor.

A primeira afirmao que demonstra este vnculo do multiculturalismo nossa compreenso de tica e segmentos de mercado diz respeito emergncia de uma nova teoria que se alinha com os preceitos do multiculturalismo, a teoria da cauda longa. Conforme Anderson

A teoria da cauda longa pode ser resumida nos seguintes termos: nossa cultura e nossa economia esto cada vez mais se afastando do foco em alguns hits relativamente pouco numerosos (produtos e mercados da tendncia dominante), no topo da curva da demanda, e avanando em direo a uma grande quantidade de nichos na parte inferior ou na cauda da curva da demanda (ANDERSON, 2006, p. 51)

Este conceito de cauda longa construdo pelo autor pode nos auxiliar a estabelecer uma conexo entre os preceitos do multiculturalismo e a segmentao de mercado em turismo, pois aborda uma transio da oferta generalizada em poucos hits, como um pacote elaborado por uma grande operadora de turismo, de uma semana em julho em um resort localizado em alguma praia da regio da Amrica Central-Caribe, oferecido a um publico relativamente homogneo,

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anais 2011 - mesa tendnciaspara uma variedade de segmentos que almejam uma experincia de frias mais individualizada e afinada ao seu gosto, ao invs de terem de se adaptar aos pacotes estandartizados.

Porm, enquanto seres humanos, mesmo que tenhamos gostos mais individualizados, como estamos em contato com o mundo e com os outros seres humanos, e somos influenciados por nossas caractersticas ligadas diversidade, como gnero, raa, etnia e nacionalidade, bem como caractersticas ligadas ao pluralismo. Exemplo, podemos ter ou no filhos, gostar de um ou outro gnero musical, preferir visitar locais cuja principal motivao turstica a histria e as manifestaes culturais dos residentes, ao invs de um destino cujo atrativo o sol e o mar. Enfim, caractersticas comuns que permitem a ascenso de uma cultura de nichos, em que se oferecem produtos e servios a hiperconsumidores com perfis, necessidades e desejos especficos, marcados pela diversidade e pelo pluralismo e o turismo se enquadra neste contexto.

Lypovestky tambm enfatiza a segmentao de mercado, quando fala sobre o hiperconsumo, e por meio de exemplos, indica a relao entre ambos. De acordo com o autor:

Ao processo de segmentao parcial tpica da fase precedente, segue-se uma segmentao extrema, quase ilimitada, visando a faixas etrias e grupos cada vez mais diferenciados, oferecendo produtos e servios cada vez mais dirigidos a um certo pblico, explorando nichos especficos e micromercados com durao de vida curta: preparao instantnea para bolos destinados ao segmento das mulheres casadas de 35 a cinqenta anos com filhos (Procter & Gamble); cosmticos para mulheres afroamericanas ativas de 25 a 35 anos (Esthe Lauder); jornada semana de reduo dos preos para os clientes de 62 anos ou mais (magazines Duckwall-Alco). A poca do hiperconsumo inseparvel da hipersegmentao dos mercados (LYPOVETSKY, 2007, p. 82)

Entendemos que esta afirmao do autor se alinha teoria da cauda longa, pois ambas tratam de uma democratizao do consumo, atravs dos nichos e da segmentao. Reconhecemos que no momento anterior tambm haviam segmentos, porm, como dito pelos prprios autores, presencivamos uma segmentao relativa, seja ela estruturada pela diviso entre os poucos hits situados no topo da demanda e o resto da oferta, seja ela marcada pelas divises de classe. Neste momento atual, a segmentao adquire um carter mais democrtico tambm no turismo, quando falamos por exemplo dos diferentes tipos de cruzeiros martimos oferecidos atualmente, tais como os cruzeiros gastronmicos, fitness, musicais, LGBT, ou mesmo cruzeiros com festas temticas.

A Gastronomia como elemento potencializador de conviviabilidade, contato, trocas culturais e simblicas em Turismo

Conforme destacamos na parte introdutria, buscamos aps a concluso de nossa tese, identificar novos campos

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anais 2011 - mesa tendnciasdo turismo que trouxessem exemplos prticos de como essa noo de tica, por ns adotada ao longo do trabalho, pudesse ser incorporada. E a rea de Alimentos e Bebidas foi uma delas. Assim como na trajetria estabelecida para se identificar aspectos relacionados tica em turismo, atravs de publicaes ligadas ao tema, chegamos a trs elementos que ligam a Gastronomia ao Turismo. Tais elementos so baixo apresentados

1 Conviviabilidade

Sobre este primeiro aspecto, a conviviabilidade, ou o viver com, conviver, remetemos noo inicial de contato entre os seres humanos atravs de uma dada atividade ou em um mesmo espao, um contato tico que demanda cuidado, respeito e compreenso. E se entendemos que conviver significa viver junto, a Gastronomia tambm apresenta estas caractersticas. E esta relao aparece nas palavras de Gimenez, quando a mesma fala sobre o comer junto. Para a autora Comer junto significa experimentar fazer parte, sentir-se aceito. Da mesma forma, o ato de oferecer comida significa uma oferta de incluso, um reconhecimento, um acolhimento (GIMENEZ, 2010, p. 195)

Nesta concepo mais ampliada de contado atravs do comer junto, pudemos identificar o valor que a autora atribui ao ato de comer junto, que envolve dois ou mais seres humanos, aqueles que oferecem e aquele ou aqueles que recebem a ddiva. No se trata apenas de satisfazer as necessidades fisiolgicas atravs do consumo de determinados alimentos, mas um ato que envolve hospitalidade, compreender o outro, aceitar a ddiva do outro, experimentar aquilo que ele tem a oferecer na forma de refeio, e tambm, em contrapartida, no caso de quem oferece o alimento, acolher o outro, repartir, incluir atravs da satisfao das necessidades de alimento, ou mesmo reconhecer que ele digno de receber o alimento oferecido.

E esta noo de conviviabilidade atravs da gastronomia se faz presente tambm no ato de viajar, a partir do momento que partirmos da concepo de produto turstico dada por AnsarahPara a autora, o produto turstico conceituado como:

uma mistura de elementos tangveis e intangveis, centralizados numa atividade especfica e numa determinada destinao. Compreende e combina as atraes desta destinao, mais as facilidades e as formas de acesso, das quais o turista compra a combinao de atividades e servios para atender a suas necessidades e desejos (ANSARAH, 2001, p. 21-22)

parte das necessidades e desejos daqueles que viajam, consumir produtos e servios ligados rea de Alimentos e Bebidas, no somente porque trata-se de uma necessidade essencialmente fisiolgica, ou seja, pois para permanecermos por um determinado perodo numa localidade, visitando seus atrativos e praticando atividades ligadas ao turismo e ao entretenimento, existe a necessidade bsica humana de nos alimentarmos de modo a ter energia suficiente para realizar as demais atividades. Porm, uma anlise mais aprofundada da conviviabilidade atravs da gastronomia, sobretudo nos

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anais 2011 - mesa tendnciasestabelecimentos que oferecem alimentos e bebidas, nos permite apresentar outra afirmao pertinente ao tema, antes de aprofundarmos esta noo de contato entre gastronomia e turismo.

Ao abordar a temtica refeies inesquecveis, Lashley, Morisson & Randall enfatizam a relevncia de se criar um ambiente acolhedor nos estabelecimentos destinados a oferecer refeies. De acordo com os autores

Ao criar ambientes que tm como caracterstica o aspecto informal e familiar e na qual as pessoas podem se sentir autoconfiantes, os donos de restaurante podem envolver seus clientes em experincias de refeio realmente satisfatrias (LASHLEY, MORISSON & RANDALL, 2005, p. 211)

A partir desta afirmao, pudemos concluir tambm que a conviviabilidade tambm pode ser contemplada nas relaes comerciais que envolvem a gastronomia, especificamente nos estabelecimentos responsveis pelo fornecimento de refeies, conforme os autores, os restaurantes, na medida em que buscam, atravs de um princpio de harmonia, de um esforo de fazer seu cliente se sentir em casa na companhia daqueles com quem partilha sua experincia gastronmica.

2 Contato com o turismo

Conforme identificado durante nossa anlise sobre a conviviabilidade, o produto turstico possui como uma de suas subdivises, ou elementos, o setor de Alimentos e Bebidas, pois um turista, quando em visita a determinada localidade, tambm possui necessidades fisiolgicas e alimentar-se uma delas. No entanto, identificamos que alguns autores expandem essa noo de contato entre gastronomia e turismo, chegando at a afirmar que a prpria gastronomia local, pode ser um elemento motivador de viagens. A seguir, dois comentrios que ilustram tal situao.

O primeiro comentrio sobre essa associao destacado por Gimenes, quando a mesma afirma que

A associao entre gastronomia e turismo pode ocorrer de diversas formas, seja por meio de estabelecimentos especializados (restaurantes, bares e casas noturnas diferenciadas), rotas e roteiros tursticos (envolvendo, alm de estabelecimentos de alimentos e bebidas, unidades produtoras, como vincolas, queijarias e chocolaterias), seja por meio de acontecimentos programados (eventos focados em alimentos in natura e seus produtos, ou ainda em bebidas e comidas tpicas) (GIMENES, 2010, p. 198)

Identificamos nesta afirmao, que a gastronomia extrapola a mera condio de servio turstico destinado a satisfazer as necessidades fisiolgicas dos turistas, para efetivamente se tornar, em algumas destinaes, temtica de

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anais 2011 - mesa tendnciaseventos como a prpria Oktoberfest em Blumenau-SC, Festa da Uva em Louveira-SP, Festa do Figo em Valinhos-SP e Vinhedo-SP ou mesmo motivao principal de visita s localidades como a Rota dos Vinhos em Bento Gonalves-RS, Caxias do Sul-RS e Garibaldi-RS. Ou seja, deixa de ser mero servio turstico para se tornar o atrativo principal de tais localidades.

Neste sentido, esta valorizao da gastronomia enquanto atrativo turstico acaba por valorizar o conjunto de caractersticas da prpria localidade, como mencionado por Schluter, ao afirmar que

A gastronomia como patrimnio local est sendo incorporada aos novos produtos tursticos orientados a determinados nichos de mercado, permitindo incorporar os atores da prpria comunidade na elaborao desses produtos, assistindo ao desenvolvimento sustentvel da atividade (SCHLTER, 2003, p. 70)

De necessidade fisiolgica, passando por elemento integrante do produto turstico, a gastronomia assume importncia mais ampliada, encarada como patrimnio local, parte do conjunto de manifestaes scio culturais da comunidade receptora, peculiar a determinada localidade, que motiva a sua preservao, respeito e reconhecimento, capaz de motivar os prprios integrantes da comunidade a desenvolver uma atividade turstica sustentvel estruturada em seus hbitos de alimentao e relao com os alimentos e pratos caractersticos de sua regio. E se consideramos a gastronomia um elemento motivador da visitao de turistas a determinada localidade, um elemento que motiva seres humanos se deslocarem a tais destinos para conhec-la ou ao menos participar de evento