conflitos bioéticos

241

Upload: mirelle-ramos-araujo

Post on 18-Oct-2015

220 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • Preto

    Conflitos bioticos do viver e do morrer

    Rachel Duarte Moritz Organizadora

    Braslia 2011

  • 2011 Conflitos bioticos do viver e do morrerConselho Federal de MedicinaSGAS 915, Lote 72CEP 70390 150 Braslia/DFFone: (61) 3445 5900 Fax: (61) 3346 0231http://portalmedico.org.br e-mail: [email protected]

    Superviso editorial: Paulo Henrique de Souza

    Copidescagem/reviso: Napoleo Marcos de Aquino

    Projeto grfico/capa/diagramao: Grfica e Editora Ideal Ltda.

    Tiragem: 5.000 exemplares

    Conflitos bioticos do viver e do morrer/Organizao de Rachel Duarte Moritz; Cmara Tcnica sobre a Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do Conselho Federal de Medicina. Braslia: CFM; 2011. 188 p.; 13,5 x 20,5 cm.

    ISBN: 978-85-87077-21-9

    1- Cuidados paliativos - Biotica. 2- Terminalidade da vida - Biotica. 3- Ortotansia - Biotica. 4- Biotica. I Moritz, Rachel Duarte (Org.). II - Conselho Federal de Medicina. Cmara Tcnica sobre Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos.

    CDD 174.2

    Catalogao na fonte: Eliane Maria de Medeiros e Silva CRB1 Regio/1678

  • Diretoria do Conselho Federal de Medicina

    Presidente Roberto Luiz dAvila

    1 vice-presidente Carlos Vital Tavares Corra Lima

    2 vice-presidente Alosio Tibiri Miranda

    3 vice-presidente Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti

    Secretrio-geral Henrique Batista e Silva

    1 secretrio Desir Carlos Callegari

    2 secretrio Gerson Zafalon Martins

    Tesoureiro Jos Hiran da Silva Gallo

    2 tesoureiro Frederico Henrique de Melo

    CorregedorJos Fernando Maia Vinagre

    Vice-corregedorJos Albertino Souza

  • Conselheiros titulares

    Abdon Jos Murad Neto (Maranho)

    Alosio Tibiri Miranda (Rio de Janeiro)

    Antonio Gonalves Pinheiro (Par)

    Cacilda Pedrosa de Oliveira (Gois)

    Carlos Vital Tavares Corra Lima (Pernambuco)

    Celso Murad (Esprito Santo)

    Cludio Balduno Souto Franzen (Rio Grande do Sul)

    Dalvlio de Paiva Madruga (Paraba)

    Desir Carlos Callegari (So Paulo)

    Edevard Jos de Arajo (AMB)

    Emmanuel Fortes Silveira Cavalcanti (Alagoas)

    Frederico Henrique de Melo (Tocantins)

    Gerson Zafalon Martins (Paran)

    Henrique Batista e Silva (Sergipe)

    Hermann Alexandre Vivacqua von Tiesenhausen (Minas Gerais)

    Jec Freitas Brando (Bahia)

    Jos Albertino Souza (Cear)

    Jos Antonio Ribeiro Filho (Distrito Federal)

    Jos Fernando Maia Vinagre (Mato Grosso)

    Jos Hiran da Silva Gallo (Rondnia)

    Jlio Rufino Torres (Amazonas)

    Luiz Ndgi Nogueira Filho (Piau)

    Maria das Graas Creo Salgado (Amap)

    Mauro Luiz de Britto Ribeiro (Mato Grosso do Sul)

    Paulo Ernesto Coelho de Oliveira (Roraima)

    Renato Moreira Fonseca (Acre)

    Roberto Luiz d Avila (Santa Catarina)

    Rubens dos Santos Silva (Rio Grande do Norte)

  • Conselheiros suplentes

    Ademar Carlos Augusto (Amazonas)

    Alberto Carvalho de Almeida (Mato Grosso)

    Alceu Jos Peixoto Pimentel (Alagoas)

    Aldair Novato Silva (Gois)

    Aldemir Humberto Soares (AMB)

    Alexandre de Menezes Rodrigues (Minas Gerais)

    Ana Maria Vieira Rizzo (Mato Grosso do Sul)

    Andr Longo Arajo de Melo (Pernambuco)

    Antnio Celso Koehler Ayub (Rio Grande do Sul)

    Antnio de Pdua Silva Sousa (Maranho)

    Ceuci de Lima Xavier Nunes (Bahia)

    Dlson Ferreira da Silva (Amap)

    Elias Fernando Miziara (Distrito Federal)

    Glria Tereza Lima Barreto Lopes (Sergipe)

    Jailson Luiz Ttola (Esprito Santo)

    Jeancarlo Fernandes Cavalcante (Rio Grande do Norte)

    Lisete Rosa e Silva Benzoni (Paran)

    Lcio Flvio Gonzaga Silva (Cear)

    Luiz Carlos Beyruth Borges (Acre)

    Makhoul Moussallem (Rio de Janeiro)

    Manuel Lopes Lamego (Rondnia)

    Marta Rinaldi Muller (Santa Catarina)

    Mauro Shosuka Asato (Roraima)

    Norberto Jos da Silva Neto (Paraba)

    Pedro Eduardo Nader Ferreira (Tocantins)

    Renato Franoso Filho (So Paulo)

    Waldir Arajo Cardoso (Par)

    Wilton Mendes da Silva (Piau)

  • Cmara Tcnica sobre a Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos

    Roberto Luiz dAvila - coordenador

    Cacilda Pedrosa (CFM) - coordenadora adjunta

    Cludia Burl (AIGG-RJ)

    Diaulas da Costa Ribeiro (MP-DF)

    Jefferson Piva (CRM-RS)

    Jos Eduardo Siqueira (SBB)

    Jos Henrique Torres - Juiz - 1 Vara/Campinas-SP

    Jurema Sales (Imip)

    Leocir Pessini (USC)

    Ligia Py (UFRJ)

    Luciana Bertachini (USC)

    Maria Goretti Sales Maciel (ANCP)

    Rachel Moritz (UFSC)

    Reynaldo Ayer de Oliveira (CRM-SP)

  • Autores

    Armando Otvio Vilar de ArajoProfessor de Biotica e Medicina Legal da Universidade Potiguar (UnP); m-dico neurologista; especialista em Medicina Legal; ex-juiz de Direito; advoga-do; jornalista; conselheiro corregedor do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Norte e membro da Comisso Nacional de Reviso do Cdigo de tica Mdica.

    Claudia BurlMdica especialista em Geriatria pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia/AMB; doutoranda em Biotica pelo Programa Luso-Brasileiro de Doutorado em Biotica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto-FMUP/Conselho Federal de Medicina; membro titular da Academia de Medicina do Rio de Janeiro; membro da Cmara Tcnica sobre a Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do CFM.

    Diaulas Costa RibeiroMembro do Ministrio Pblico do Distrito Federal e Territrios; professor do curso de Medicina da Universidade Catlica de Braslia e do curso de Direito da Faciplac-Braslia.

    Jefferson P. PivaProfessor dos departamentos de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Faculdade de Medicina da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS); chefe associado da UTI peditrica do Hospital So Lucas da PUCRS; chefe do Servio de Emergncia do Hospital de Clnicas de Porto Alegre (HCPA); mem-bro da Academia Brasileira de Pediatria; membro da Cmara Tcnica sobre a Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do CFM.

    Jos Eduardo de SiqueiraDoutor em Medicina e professor de Clnica Mdica e Biotica da Universidade Estadual de Londrina (UEL); mestre em Biotica pela Universidade do Chile/Organizao Pan-Americana da Sade; membro assessor da Rede Latino-Americana e do Caribe de Biotica da Unesco (Redbiotica); membro do Board da International Association of Bioethics; presidente da Sociedade Brasileira de Biotica (2005-2007); membro titular da Academia Paranaense de Medicina; membro da Cmara Tcnica sobre a Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do Conselho Federal de Medicina (CFM).

  • Jos Francisco P. OliveiraMestre em Filosofia pela Pontifcia Universit Gregoriana - Roma/Itlia; coor-

    denador do Grupo de Estudos sobre Espiritualidade da Comisso Permanente

    de Cuidados paliativos da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia.

    Jos Henrique Rodrigues TorresJuiz de Direito, titular da 1 Vara do Jri de Campinas/SP; professor de Direito

    Penal da Pontifcia Universidade Catlica de Campinas; especialista em

    Direito das Relaes Sociais.

    Jussara de Lima e SouzaMdica assistente do setor de Neonatologia do Hospital da Mulher - Centro

    de Ateno Integral Sade da Mulher (Caism) da Universidade Estadual

    de Campinas (Unicamp); mestre em Pediatria pela Faculdade de Cincias

    Mdicas da Unicamp; coordenadora do Grupo de Cuidados Paliativos em

    Neonatologia do Hospital da Mulher Caism/Unicamp; membro da Cmara

    Tcnica sobre a Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do CFM.

    Leo PessiniProfessor-doutor do programa de ps-graduao em Biotica, mestra-

    do e doutorado, do Centro Universitrio So Camilo/SP; presidente das

    Organizaes Camilianas Brasileiras; membro da Cmara Tcnica sobre a

    Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do CFM.

    Ligia PyDoutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ);

    presidente da Comisso Permanente de Cuidados Paliativos da Sociedade

    Brasileira de Geriatria e Gerontologia; membro da Cmara Tcnica sobre a

    Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do CFM.

    Luciana BertachiniFonoaudiloga, mestre e especialista em Distrbios da Comunicao

    Humana pela Universidade Federal de So Paulo (Unifesp-EPM); es-

    pecialista em Voz e Motricidade Oral pelo Conselho Federal de

    Fonoaudiologia e Unifesp-EPM; doutoranda em Biotica pelo Centro

    Universitrio So Camilo/SP; professora da disciplina de Geriatria e

    Gerontologia da Unifesp-EPM; ouvidora geral da Unio Social Camiliana;

    membro da Cmara Tcnica sobre a Terminalidade da Vida e Cuidados

    Paliativos do CFM.

  • Maria Goretti Sales MacielCoordenadora do Servio de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Pblico Estadual (HSPE/SP); primeira presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos; membro da Cmara Tcnica sobre a Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do CFM.

    Patrcia M. LagoMembro do Comit de Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos da Associao de Medicina Intensiva Brasileira (Amib); pediatra intensivis-ta da UTI peditrica do Hospital de Clnicas de Porto Alegre (HCPA); mem-bro do Grupo de Pesquisas em Medicina Intensiva Peditrica do programa de ps-graduao em Pediatria da Faculdade de Medicina da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS); professora adjunta do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de Cincias da Sade de Porto Alegre (UFCSPA).

    Rachel Duarte MoritzMestre em Cincias Mdicas; doutora em Engenharia de Produo; coordena-dora do mestrado profissional, associado residncia mdica, em Cuidados Intensivos e Paliativos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); coordenadora do Comit de Terminalidade da Vida da Amib e do Grupo de Estudos sobre o Fim da Vida do Cone Sul; membro da Cmara Tcnica sobre a Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do CFM.

    Roberto Luiz dAvilaPresidente do Conselho Federal de Medicina; vice-presidente da Confederao Mdicas da Latinoamericana e do Caribe (Confemel) e mem-bro do Conselho de tica da Associao Mdica Mundial (WMA).

  • Sumrio

    Apresentao ................................................................................13

    Roberto Luiz dAvila

    Definindo e aceitando a terminalidade da vida ......................... 15 Jos Eduardo de Siqueira

    Espiritualidade e cuidados paliativos ......................................... 25 Leo Pessini

    Luciana Bertachini

    Cuidados paliativos: afinal, do que se trata? .............................. 41 Claudia Burl

    Assistncia terminalidade da vida: a orientao do cuidado paliativo ........................................................................................51

    Maria Goretti Sales Maciel

    A comunicao de ms notcias: um desafio do processo teraputico ....................................................................................71

    Luciana Bertachini

    Um cuidador a ser cuidado .......................................................... 89 Ligia Py

    Jos Francisco P. Oliveira

    Cuidados paliativos em ambientes crticos .............................. 101 Rachel Duarte Moritz

    Cuidados de final de vida na criana .........................................113Jefferson P. Piva Patrcia M. Lago

    Cuidados paliativos em neonatologia ...................................... 129 Jussara de Lima e Souza

    Mltiplos enfoques sobre a morte e o morrer ......................... 141 Armando Otvio Vilar de Arajo

    Ortotansia no homicdio nem eutansia ........................... 157 Jos Henrique Rodrigues Torre

    A terminalidade da vida: uma anlise contextualizada da Resoluo CFM n 1.805/06 .......................................................187

    Roberto Luiz dAvila Diaulas Costa Ribeiro

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 13

    Apresentao

    A morte um problema dos vivos, pois os que morreram no mais precisam se preocupar com ela, como nos disse Norberto Bobbio. Heidegger tambm nos alertou que viver caminhar para a morte e que no se vive cada dia, mas morre-se um pouco a cada dia.

    Vida e morte encerram mistrios que nos encantam desde o incio dos tempos. Por um lado, nos remetem a elementos msticos, sobre-naturais ou biolgicos; por outro, tornam mais visvel a nossa vulne-rabilidade diante de fenmenos to determinantes. De forma contra-ditria, so fatos antagnicos e complementares.

    Quem nunca tremeu ante a ideia de morrer ou se sentiu maravilhado pela conjuno de fatores que geram a vida. Assim, normal que vida e morte causem conflitos, com dificuldades para entend-los ou aceit-los como parte da realidade com a qual somos confrontados diariamente. Pontuamos, aqui, que essa crise no pode ser vista ape-nas de uma forma, mas como uma etapa de nossa evoluo pessoal e coletiva.

    A morte no pode ser percebida apenas como algo negativo, mas como um estmulo ao crescimento e a busca de respostas que tor-nem nossa jornada mais acolhedora e frutfera. A biotica, campo do conhecimento recente, nos ajuda a compreend-la e, por isso, seu estudo deve ser estimulado.

    Este o objetivo da presente obra, resultado das contribuies envia-das Cmara Tcnica de Terminalidade da Vida e Cuidados Paliativos do Conselho Federal de Medicina (CFM). Os artigos, escritos por es-pecialistas da rea, levaro os leitores a novos territrios, alguns mais conhecidos que outros, no intuito de fazer com que essa viagem tra-ga novas percepes e melhore o nosso viver e o nosso morrer.

    Roberto Luiz dAvilaPresidente do CFM

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 15

    Definindo e aceitando a terminalidade da vida

    Jos Eduardo de Siqueira

    Introduo

    A rotina imposta aos mdicos a de reconhecer e perseguir mltiplos objetivos, que podem ser complementares ou excludentes: curar a en-fermidade, cuidar da insuficincia orgnica, restabelecer a funo, com-pensar a perda, aliviar os sofrimentos, confortar pacientes e familiares, acompanhar ativamente e com serenidade os ltimos momentos da vida do paciente. Tarefa nem sempre fcil e isenta de frustraes, pois so situaes que os obrigam a considerar, caso a caso, o justo equilbrio nas tomadas de decises, evitando a obstinao teraputica em situa-o de terminalidade da vida, reconhecendo a finitude humana e as li-mitaes da cincia mdica, sem deixar de proporcionar todos os bene-fcios oferecidos pelos avanos do conhecimento cientfico. Entretanto, fundamental ter sempre presente o significado da morte, assim apre-sentado por Tagore: Morrer pertence vida, assim como o nascer. Para andar, primeiro levantamos o p e depois o baixamos ao cho (...). Algum dia saberemos que a morte no pode roubar nada do que nossa alma tiver conquistado, porque suas conquistas se identificam com a prpria vida 1.

    certo, outrossim, que a modernidade encara a morte de maneira di-versa, percebendo-a como prova de fracasso. Em novembro de 1993, o jornal The New York Times apresentou-a por meio da seguinte per-cepo: Quando a morte era considerada um evento metafsico, exibia certo tipo de respeito. Hoje, que o processo se prolonga enormemente, vista como prova de fracasso (...). Num sentido bastante novo em nossa cultura, ficamos envergonhados da morte e procuramos nos esconder dela, que a nosso ver um fracasso 2.

    Tratando da mesma temtica, porm com enfoque diverso, recolhe-mos este ensinamento de Rubem Alves: Houve um tempo em que nosso poder ante a morte era muito pequeno e, por isso, os homens e as mulheres dedicavam-se a ouvir sua voz e podiam tornar-se sbios na arte de viver. Hoje, nosso poder aumentou, a morte foi definida como inimiga a ser derrotada, fomos possudos pela fantasia onipotente de nos livrarmos de seu toque. Com isso, nos tornamos surdos s lies que ela pode nos ensinar 3.

  • Conselho Federal de Medicina16

    Lemos em Eclesiastes, escrito no sc. III a.C.: Tudo tem seu tempo, o momento oportuno para todo propsito debaixo do sol. Tempo de nas-cer, tempo de morrer (Ecl 3, 1 e 2). Inevitavelmente, cada vida huma-na chega ao seu fim. Assegurar que esta passagem ocorra de forma digna, com cuidados adequados e buscando-se o menor sofrimento possvel, misso daqueles que assistem aos pacientes portadores de enfermidades terminais.

    O envelhecimento da populao , seguramente, o fator que mais preocupar as autoridades governamentais no presente sculo. Em 1950, o percentual de maiores de 60 anos era de 8,2%; em 2000, de 10%. As projees feitas para 2050 mostram que o planeta abrigar 21,1% de pessoas idosas. No Brasil, os ndices so similares: em 1950, 4,9%; em 2000, 7,8%; para 2050 estima-se a impressionante cifra de 23,6% de idosos presentes no convvio social.

    As ltimas dcadas do sculo XX foram marcadas por extraordinrios avanos tecnolgicos, o que resultou em maior indicao de sofis-ticados procedimentos teraputicos a grande parcela da populao idosa. Entre 1987 e 1995, o nmero de pacientes norte-americanos com idade superior a 65 anos, beneficiados pela cirurgia de revascu-larizao miocrdica, saltou de 82.000 para 141.000, enquanto a in-dicao de angioplastia coronria cresceu trs vezes, de 44.000 para 131.000.

    O aumento significativo de custos impostos por pacientes idosos com doenas crnico-degenerativas e terminais fundamentalmen-te gerado por internaes mais frequentes e maior nmero de proce-dimentos teraputicos. Por estarem mais prximos terminalidade da vida, os gestores responsveis pela alocao de recursos escassos na rea da sade os catalogam como peso demasiado oneroso para as instituies hospitalares e o equilbrio econmico da nao. Assim, estabelece-se a associao: paciente idoso/doena terminal/recursos escassos/custos assistenciais elevados, o que acaba por estigmatizar os pacientes idosos, sobretudo considerando que vivemos numa so-ciedade que privilegia viso marcadamente economicista, desconsi-derando os valores humanos.

    consensual reconhecer no Ocidente trs escolas de biotica: a anglo-americana, a europeia e a latino-americana. A primeira privi-legia a autonomia da pessoa, inspirando-se no pragmatismo liberal. A segunda, com base na tradio filosfica grega e judaico-crist,

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 17

    preocupa-se com questes atinentes fundamentao dos prin-cpios morais. A latino-americana, embora ainda em construo, alimenta-se das reflexes das escolas anteriores e se distingue de ambas por priorizar o social, dando igual nfase para fatos cientfi-cos e valores morais.

    Os modernos preceitos morais sobre envelhecimento so paradoxais. Declaram-se, por meio de diplomas legais, respeito aos idosos, mas, simultaneamente, os mesmos so marginalizados e considerados um peso para a sociedade. Chega-se velhice ocupando posies cen-trais em fotografias de famlias esquecidas em lbuns de recordaes. Elisabeth Kbler-Ross relata em seu ltimo livro o pungente depoimen-to de uma paciente octogenria portadora de doena terminal: Somos como uma torta: damos um pedao para nossos pais, outro para nossos amores, um pedao para os amigos, para os filhos e um outro para nossa profisso. No final da vida, algumas pessoas no guardaram nenhum pe-dao para si mesmas e nem mesmo sabem que tipo de torta elas foram 4.

    Relao mdico-paciente

    A pergunta que se impe aos mdicos sobre o que ocorreu com a prtica mdica no cenrio da modernidade. O modelo cartesiano-flexeneriano, matriz da formao mdica atual, intro-duziu prticas na ateno sade que resultaram em dramticas mudanas no relacionamento mdico-paciente. O extraordinrio avano tcnico-cientfico aliado ao uso acrtico de mtodos de se-miologia armada descaracterizou a medicina como arte, levando o profissional a distanciar-se das dimenses biogrficas das pes-soas enfermas.

    Heidegger definiu a tecnocincia como veculo que conduz a vida pura instrumentalidade, inviabilizando o projeto de existncia humana autntica. Jacques Ellul, assim como Heidegger, reconheceu a civi-lizao da tcnica como instrumento de anulao da liberdade hu-mana e identificou uma perverso do homem pela tecnologia, j que esta o desviou de seus objetivos essencialmente humanos 5. Se os conhecimentos cientficos so cumulativos, a construo de valores ticos no o . A tica no tempero a ser adicionado ao banquete da cincia para lhe conferir melhor sabor; ao contrrio, ingredien-te indispensvel para tornar digervel o condimentado prato da alta

  • Conselho Federal de Medicina18

    tecnologia mdica (high-tech). O impressionante crescimento da tec-nologia em medicina foi sendo assimilado de maneira inadequada na prtica profissional, pois originalmente complementares, os m-todos de semiologia armada transformaram-se em procedimentos essenciais, deixando a condio de sdito para assumirem a sobera-nia nas decises clnicas.

    Atrofiou-se enormemente a destreza em realizar anamneses elu-cidativas e o exame fsico detalhado transformou-se em exerccio cansativo e desnecessrio ante a grande preciso das informaes fornecidas pelos equipamentos. O que era complementar transfor-mou-se em essencial. A vinculao entre profissional e enfermo, que o ato mdico impe, resultado de dois movimentos que se com-pletam: o do enfermo que procura o profissional e o do mdico que acolhe o paciente. Embora ambos sejam qualitativamente distintos, Hipcrates os descreveu por um nico termo: philia que deve ser traduzido como amizade, amor, solidariedade e compaixo 6.

    Mller, citado por Troncon, avalia que as escolas mdicas esto submergindo os estudantes em pormenores opressores sobre co-nhecimentos especializados e aplicao de tecnologias sofisticadas, restringindo a aprendizagem de habilidades mdicas fundamentais, podendo isto levar a uma fascinao pela tecnologia, tornando o artefato mais importante que o paciente 7. bvio que o fasc-nio pela tecnologia apontado pelo autor domina no exclusiva-mente a pessoa do profissional, mas, igualmente, o universo de fantasia de pacientes que, informados inadequadamente pelos diversos veculos miditicos, pressionam seus mdicos a solicitar os ltimos exames inventados pela tecnocincia, bem como lhes prescreverem as mais modernas conquistas das empresas farma-cuticas. Este sinergismo de equvocos acaba por transformar o profissional em prosaico intermedirio entre a ganncia de gran-des empresas farmacuticas e de tecnologias biomdicas pouco afeitas a preceitos ticos, e um enorme contingente de inconse-quentes e mal informados consumidores.

    Desde as primeiras lies, o estudante de medicina ensinado, por metodologia analtica, que para bem compreender uma en-fermidade deve dividir o objeto de seu estudo em tantas partes quanto possveis. Este modelo de cincia foi proposto por Ren Descartes nO discurso do mtodo, publicado no sculo XVII, onde prope que a busca do saber cientfico verdadeiro deve partir do

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 19

    conhecimento das partes e somente por intermdio deste proce-dimento poder-se- alcanar os autnticos objetivos de qualquer pesquisa. O modelo vigente de ensino mdico, inaugurado no in-cio do sculo XX por Abraham Flexner, fiel herdeiro da proposta cartesiana. Inegavelmente imprescindveis, o mtodo cartesiano que permitiu desvincular a cincia do territrio inadvertidamente ocupado por dogmas religiosos e o modelo flexneriano de ensino que trouxe credibilidade formao mdica, ambos permanece-ram imutveis at nossos dias, desconsiderando que no transcur-so do sculo XX a sociedade assistiu a transformaes nos campos do conhecimento cientfico e dos valores morais como nunca an-tes em toda a histria da humanidade.

    A aplicao do mtodo cartesiano em medicina nos faz descrever o ser humano por diferentes mecanismos: respiratrio, circulatrio, hormonal, muscular, sseo, digestivo, imunolgico, reprodutor etc. Tenta-se organizar essas informaes parceladas de rgos e siste-mas e acomod-las num grande saco epidrmico. Olhar para esta estrutura e imaginar que estamos diante de uma pessoa reduzir ao biolgico o que, em realidade, um ser biopsicossocial e espi-ritual. Efetivamente como previra Hellegers, no incio dos anos 70, nossos problemas em medicina no alvorecer do sculo XXI so mais ticos do que tcnicos.

    O ser humano, o grande desconhecido de Alexis Carrel, , na verda-de, muito complexo e os mdicos tm pleno conhecimento de que no existe enfermidade que se manifeste fora de um temperamento pessoal, de vivncias e experincias. Mesmo que se apresente com fi-sionomia semelhante no conjunto, seus traos particulares mostram coloraes singulares do ser humano biogrfico. O doente, na viso de Michel Foucault, sempre ser a expresso da doena com traos singulares, com sombra e relevo, modulaes, matizes e profundidade, sendo que a tarefa do mdico ao descrever a enfermidade ser a de re-conhecer esta realidade viva 8.

    Ao subestimarmos valores socioantropolgicos do ser humano en-fermo e o apreend-lo como um conjunto de variveis biolgicas, induzimos jovens estudantes de medicina a se transformarem em meros cuidadores de doenas. Qualquer mdico sabe, por experin-cia prpria, que uma doena raramente orgnica ou psquica, social ou familiar. O profissional reconhece que a enfermidade simultane-amente orgnica e psquica, social e familiar.

  • Conselho Federal de Medicina20

    Bernard Lown prope-nos a inquietante questo: (...) busca-se o m-dico com quem nos sentimos vontade quando descrevemos nossas queixas, sem receio de sermos submetidos, por causa disso, a numerosos procedimentos; o mdico para quem o paciente nunca uma estatstica (...) e, acima de tudo, que seja um semelhante, um ser humano cuja preo-cupao pelo paciente avivada pela alegria de servir 9. provvel que somente alcanaremos formar o mdico pedido por Lown e resga-tarmos plenamente a arte perdida de cuidar, quando estivermos pre-parados para compreender o ensinamento de Maimnides, clebre mdico do sculo XII, que considerava imprescindvel no esquecer que o paciente um semelhante, transido de dor e que jamais deve ser considerado como mero receptculo de doenas.

    Vrios so os relatos veiculados pela mdia de maus-tratos a idosos, asilados ou internados em hospitais gerais que, no infrequentemen-te, veem-se despersonalizados e tratados como vzinhos, perdem a privacidade e, em algumas circunstncias de impossibilidade de cura de doenas crnico-degenerativas ou terminais, so abandonados. Todas essas variveis os fazem entregar-se ao desnimo e passar a viver inexorvel decadncia fsica e mental.

    Mdico e paciente so dominados pela sensao de fracasso: o pri-meiro, vencido pela falta de alternativas teraputicas em casos de doenas terminais; o segundo, aterrorizado com o vulto da morte que se aproxima incontinente, assume atitudes de fuga ou negao. Decepciona-se o mdico, sobretudo aquele que valoriza excessiva-mente a busca da impossvel cura, subestimando as atitudes de cui-dar e confortar e orientando-se pela equivocada prerrogativa de que os pacientes submetidos a seus cuidados devem obedec-lo sem impor quaisquer questionamentos sobre propostas diagnsticas ou teraputicas, para o que basta sua competncia profissional.

    Evidentemente, frustrante para o mdico no realizar um proce-dimento que julga beneficente para seu paciente. Esta, certamente, nunca ser deciso passvel de assimilao sem conflitos com sua prpria conscincia profissional. Entretanto, no reconhecer o direi-to de o paciente recusar qualquer procedimento mdico atitude inaceitvel do ponto de vista tico. Como justificar moralmente a imposio de valores, mesmo que na busca do maior benefcio ao paciente, se o protagonista da ao teraputica assim no o deseja? O enfermo, quando competente, tem o direito de exercer plenamen-te sua autonomia em tomar decises sobre o prprio corpo, mesmo sustentando opinies discordantes do mdico assistente.

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 21

    Os mdicos so submetidos, com enorme frequncia, a duras provas oriundas de diferentes percepes morais, o que no deve ser inter-pretado como impotncia, mas sim como limitaes intrnsecas ao ato de cuidar da sade de pessoas que tm o direito de discordar do profissional. Dois outros aspectos devem merecer nossa ateno: a medicalizao da vida e a ocultao da morte. No Ocidente, ao mes-mo tempo em que se imagina possvel oferecer medicamentos para tratar todos os males fsicos e mentais, a finitude da vida tratada como prova de fracasso da medicina.

    Com relao formao profissional, parece til considerar os dados descritos por Hill que, passados dezesseis anos da publicao de sua pesquisa, ainda mostram-se atuais. As concluses expostas pelo au-tor no aludido artigo pretendem demonstrar que entre as causas do despreparo dos mdicos para tratar de questes atinentes morte e terminalidade, est a insuficincia de contedos programticos so-bre a temtica oferecidos nas grades curriculares dos cursos mdicos de graduao e ps-graduao. O estudo apresenta dados que com-provam que apenas cinco de 126 escolas de medicina estaduniden-ses ofereciam ensinamentos sobre a morte e somente 26% de 7.048 programas de residncia mdica tratavam do tema como atividade obrigatria em algum momento da formao especializada 10.

    Faz-se necessrio, portanto, introduzir com mais nfase temas de biotica, terminalidade da vida e cuidados paliativos na grade curricular dos cursos mdicos e ouvir com ateno a recomenda-o de Andr Hellegers, primeiro diretor do Instituto Kennedy de Biotica, que considerou que os problemas que se apresentariam aos mdicos seriam cada vez mais de natureza tica e menos de ordem tcnica.

    Consideraes finais

    A medicina atual vive um momento de busca de sensato equilbrio na relao mdico-paciente. A tica mdica tradicional, concebida no modelo hipocrtico, tem forte acento paternalista. Ao paciente cabe simplesmente obedincia s decises mdicas, tal qual uma criana deve cumprir sem questionar as ordens paternas. Assim, at a primei-ra metade do sculo XX qualquer ato mdico era julgado levando-se em conta apenas a moralidade do profissional, desconsiderando-se

  • Conselho Federal de Medicina22

    os valores e crenas dos pacientes. Somente a partir da dcada de 60 os cdigos de tica profissionais passaram a reconhecer o enfermo como agente autnomo.

    mesma poca, a medicina passou a incorporar com muita rapidez um impressionante avano tecnolgico. Unidades de terapia inten-siva e novas metodologias criadas para aferir e controlar as variveis vitais propiciaram aos profissionais a possibilidade de adiar o mo-mento da morte. Se no incio do sculo XX o tempo estimado para o desenlace aps a instalao de enfermidade terminal era de cinco dias, ao seu final era dez vezes maior. Tamanho o arsenal tecnol-gico hoje disponvel que no descabido dizer que se torna quase impossvel morrer sem a anuncia do mdico.

    Em A arte perdida de curar, Bernard Lown afirma: As escolas de me-dicina e o estgio nos hospitais os preparam [os futuros mdicos] para tornarem-se oficiais-maiores da cincia e gerentes de biotecnologias complexas. Muito pouco se ensina sobre a arte de ser mdico. Os m-dicos aprendem pouqussimo a lidar com os enfermos terminais (...). A realidade mais fundamental que houve uma revoluo biotecnolgica que possibilita o prolongamento interminvel do morrer 9.

    O poder de interveno do mdico cresceu enormemente, sem que, simultaneamente, houvesse uma reflexo sobre o impacto des-sa nova realidade na qualidade de vida dos enfermos. Seria ocioso comentar os benefcios auferidos com as novas metodologias diag-nsticas e teraputicas. Incontveis so as vidas salvas em situaes crticas como, por exemplo, os pacientes recuperados aps infarto agudo do miocrdio e em enfermidades com graves distrbios he-modinmicos que foram resgatados plenamente saudveis por meio de engenhosos procedimentos teraputicos.

    Hoje, nossas unidades de terapia intensiva passaram a receber, tam-bm, pacientes portadores de doenas crnicas incurveis com inter-corrncias clnicas as mais diversas, que so contemplados com os mesmos cuidados oferecidos aos agudamente enfermos. Se para os ltimos, com frequncia, alcana-se plena recuperao, para os cr-nicos pouco se oferece alm de um sobreviver precrio e, s vezes, no mais que vegetativo. Somos expostos dvida sobre o real sig-nificado da vida e da morte. At quando avanar nos procedimentos de suporte vital? Em que momento parar e, sobretudo, guiados por quais modelos de moralidade?

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 23

    Despreparados para a questo, passamos a praticar uma medicina que subestima o conforto do enfermo portador de doena termi-nal, impondo-lhe longa e sofrida agonia. Adiamos a morte custa de insensato e prolongado sofrimento para o paciente e sua famlia. O estudo Support (Study to understand prognosis and preferences for outcomes and risk of treatment) colheu informaes de familiares e pacientes idosos gravemente enfermos e concluiu que 55% dos mes-mos estiveram conscientes nos trs dias antecedentes morte; 40% sofreram dores insuportveis; 80%, fadiga extrema e 63%, extrema dificuldade para tolerar o sofrimento fsico e emocional 11. As evidn-cias parecem demonstrar que esquecemos o antigo ensinamento que reconhece como funo do mdico curar s vezes, aliviar muito frequentemente e confortar sempre. Deixamos de cuidar da pessoa doente e nos empenhamos em tratar a doena da pessoam, desco-nhecendo que nossa misso primacial deve ser a busca do bem-estar fsico e emocional do enfermo, j que todo ser humano sempre ser uma complexa realidade biopsicossocial e espiritual.

    A obsesso de manter a vida biolgica a qualquer custo nos conduz chamada obstinao teraputica. Alguns, alegando ser a vida um bem sagrado, por nada se afastam da determinao de tudo fazer enquanto restar um dbil sopro de vida. Um documento da Igreja Catlica de maio de 1980 sobre a eutansia assim considera a ques-to: lcito renunciar a certas intervenes mdicas inadequadas a situaes reais do doente, porque no proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e sua famlia. Nestas situaes, quando a morte se anuncia iminente e inevitvel, pode-se em conscincia renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precrio e penoso da vida (...) 12.

    Referncias

    1. TAGORE, R. Pssaros perdidos. So Paulo: Paulinas, 1991.

    2. ROSENBLAT, R. Lewis Thomas. The New York Times, 21 nov. 1993. section 6, p. 2-4.

    3. ALVES, R. O mdico. Campinas: Papirus, 2003.

    4. KUBLER-ROSSE, E.; KESSLER, D. Os segredos da vida. Rio de Janeiro: Sextante, 2004.

  • Conselho Federal de Medicina24

    5. BOURG, D. O homem artifcio. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.

    6. ENTRALGO, P.L. Cincia, tcnica y medicina. Madrid: Alianza Editorial, 1986.

    7. TRONCON, L.E.; CIANLONE, A.R.; MARTIN, C.C. Contedos hu-mansticos na formao geral do mdico. In: MARCONDES, E.; GONALVES, E.L. Educao mdica. So Paulo: Sarvier, 1998. p. 99-114.

    8. FOUCAULT, M. Nascimento da clnica. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1998.

    9. LOWN, B. A. Arte perdida de curar. So Paulo: JSN Editora, 1997.

    10. HILL, T.P. Treating the dying patient: the challenge for medical education. Archives of internal medicine, v.155, n.12, p.1265-9, 1995.

    11. LYNN, J et al. Perceptions by family members of the dying expe-rience of older and seriously ill patients. SUPPORT Investigators. Study to Understand Prognoses and Preferences for Outcomes and Risks of Treatments. Annals of internal medicine, v.126, n.2, p. 97-106, 1997.

    12. Vaticano. Sagrada Congregao para a Doutrina da F. Declarao sobre Eutansia. LObservatore Romano, 5 de maio de 1980. AAS 72, v.1, p. 542-52, 1980. Documenta 38. Disponvel em: . Acesso em: 22 set. 2011.

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 25

    Espiritualidade e cuidados paliativos

    Leo Pessini Luciana Bertachini

    Introduo

    No contexto de uma publicao multidisciplinar sobre questes bio-ticas relacionadas prtica de cuidados paliativos, o presente tra-balho enfoca a importncia dos valores religiosos e espirituais, bem como a f das pessoas no enfrentamento e no relacionamento com os grandes acontecimentos da vida humana: nascimento, dor, sofri-mento e alm-vida, entre outros.

    Nosso itinerrio reflexivo abre a porta do mundo das grandes reli-gies apresentando alguns de seus valores fundamentais, dentre os quais buscar nas razes da f seus pontos convergentes e as suas distines, sem separar religio, espiritualidade e mstica. A seguir, delimitaremos o nosso enfoque no mbito da medicina, ressaltando alguns documentos internacionais que valorizam a dimenso da es-piritualidade na esfera dos cuidados de assistncia a sade. Faremos tambm referncia carta brasileira dos direitos dos usurios da sa-de, que reconhece o direito de ser cuidado espiritualmente.

    Com todos esses elementos, avanaremos perguntando qual a im-portncia de cultivar a espiritualidade frente ao mistrio da dor, sofri-mento humano e cuidados paliativos. Conclumos que fundamental-mente a espiritualidade tem a ver com a busca transcendente de um sentido maior no aparente absurdo de passarmos por experincias de dor, sofrimento, perda, angstia e, at mesmo, o medo da morte.

    1. Entrando no mundo das grandes religies

    Em tempos de globalizao econmica excludente ousa-se falar no desafio de globalizar a solidariedade. As religies tm tido importan-te papel em denunciar a primeira e ousar apontar o horizonte utpi-co em direo segunda, ou seja, a globalizao da solidariedade. Uma das formas de superao das polarizaes histricas em termos de valores internacionais tem sido a unio das diversas tradies cris-ts pelo dilogo inter-religioso e pela busca ecumnica 1.

  • Conselho Federal de Medicina26

    Busca nas razes das religies

    Todas as religies so mensagens de salvao que procuram respon-der s questes bsicas do ser humano. So perguntas sobre os eter-nos problemas humanos do amor e sofrimento, culpa e perdo, vida e morte, origem do mundo e suas leis. Por que nascemos e por que morremos? O que governa os destinos das pessoas e da humanida-de? Como se fundamentam a conscincia moral e as normas ticas que afirmam a existncia de uma vida ps-morte?

    Todas oferecem s pessoas caminhos semelhantes de salvao nas situaes de penria, sofrimento, bem como ensinamentos para comportarem-se de forma correta e responsvel nesta vida, a fim de alcanarem uma felicidade duradoura, constante e eterna: a liber-tao de qualquer sofrimento, culpa e morte. Mesmo quem rejeita as religies deve lev-las a srio, como realidade social e existencial bsica. Elas tm a ver com o sentido e o no sentido da vida, com a liberdade e a escravido das pessoas, com a justia e a opresso dos povos, com a guerra e a paz na histria e no presente, com a doena, o sofrimento e a sade das pessoas.

    Em todas as grandes religies existe uma espcie de regra de ouro. A qual foi atestada por Confcio (551-489 a.C.): O que no desejas para ti, no o faas aos outros ; pelo judasmo, em formulao negati-va: No faas aos outros o que no queres que te faam a ti (Rabi Hillel, 60 a.C.-10 d.C.); por Jesus de Nazar, de forma positiva: O que quereis que os outros vos faam, fazei-o vs a eles (Mt 7,12;Lc 6,31); pelo bu-dismo: Um estado que no agradvel ou prazeroso para mim no o ser para o outro; e como posso impor ao outro um estado que no agradvel ou prazeroso para mim? (Samyutta Nikaya V,353.3-342.2), e pelo islamismo: Ningum de vocs um crente a no ser que deseje para seu irmo o que deseja para si mesmo.

    Diferentemente das filosofias, as religies no apresentam apenas modelos de vida abstratos, mas pessoas modelares. Por isso, as fi-guras lderes das religies so da maior importncia: Buda, Jesus de Nazar, Confcio, Lao-Tse ou Maom. Existe significativa diferena entre ensinar abstratamente s pessoas uma nova forma de vida e apresentar um modelo concreto de vida comprometida com o segui-mento de Buda, Jesus ou Confcio, por exemplo e aqui entramos no mago da espiritualidade, que precisamos distinguir de religio. A religio codifica uma experincia de Deus e d forma de poder

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 27

    religioso, doutrinrio, moral e ritual ao longo de sua expresso histrica. A espiritualidade se orienta pela experincia profunda e sempre inovadora e surpreendente do encontro vivo com Deus. Hoje, percebe-se no horizonte da humanidade um desgaste da reli-gio entendida enquanto doutrina, instituio, norma e dogma. Em paralelo, existe grande busca de espiritualidade, que vai ao encon-tro aos anseios mais profundos do corao humano em termos de transcendncia, dando sentido ltimo existncia humana.

    A religio, no seu sentido originrio, o elo de todas as coisas: o cons-ciente com o inconsciente, a mente com o corpo e a pessoa com o cosmos; o masculino e o feminino, o humano (imanente) com o di-vino (transcendente). A misso da religio no se esgota no espao sagrado. Seu lugar est no corao da vida. Quando bem-sucedida, emerge a experincia de Deus como o sentido ltimo e o fio condu-tor que perpassa e unifica tudo. Os smbolos e ritos que definem o espao sagrado so criaes para celebrar o Deus da vida. Viver esta religao obra da f. Sem dvida, enorme desafio para as religies histricas, de modo especial para o cristianismo, resgatar esta f ori-ginria, que recria a religao de tudo.

    Religies: pontos convergentes

    As grandes religies, no obstante suas diferenas doutrinais e tradi-es, apresentam convergncias fundamentais, como enfatiza Kung 2. Entre as mais significativas, assinalam-se:

    a) o cuidado com a vida todas as religies defendem a vida, espe-cialmente aquela mais vulnervel e sofrida. Prometem a expanso do reino da vida, quando no a ressurreio e a eternidade, no to-cante no apenas vida humana, mas tambm a todas as manifes-taes csmico-ecolgicas;

    b) o comportamento tico fundamental todas apresentam um impe-rativo categrico: no matar, no roubar, no violentar, amar pai e me e ter carinho para com as crianas. Esses imperativos favo-recem uma cultura de venerao, de dilogo, de sinergia, de no violncia ativa e de paz;

    c) a justa medida as religies procuram orientar as pessoas pelo caminho da sensatez, que significa o equilbrio entre o legalismo

  • Conselho Federal de Medicina28

    e o libertinismo. Propem nem o desprezo do mundo nem sua adorao, nem o hedonismo nem o ascetismo, nem o imanentis-mo nem o transcendentalismo, mas o justo equilbrio desses do-mnios. Este o caminho do meio, das virtudes. Mais do que atos, so atitudes interiores coerentes com a totalidade da pessoa e que impregnam de excelncia todos os seus relacionamentos;

    d) a centralidade do amor todas pregam a incondicionalidade do amor. Confcio alertava: O que no desejas para ti, no o faas aos outros. Jesus dizia: Amem-se uns aos outros como eu vos tenho amado. Na perspectiva ecolgica de Jonas 3: Age de tal maneira que os efeitos da tua ao sejam compatveis com a permanncia de uma vida autenticamente humana;

    e) figuras ticas exemplares as religies no apresentam somente mximas e atitudes ticas, mas, principalmente, figuras histri-cas concretas, paradigmas vivos, como tantos mestres, santos e santas, justos e justas, heris e heronas que viveram dimen-ses radicais de humanidade. Da surge a fora mobilizadora de figuras eticamente exemplares como Jesus, Buda, Confcio, Francisco de Assis, Ghandi, Luther King, Madre Teresa de Calcut, entre outros;

    f ) definio de um sentido ltimo trata-se do sentido do todo e do ser humano. A morte no a ltima palavra, mas a vida, sua conservao, sua ressurreio e sua perpetuidade. Todas apre-sentam um fim bom para a criao e um futuro bem-aventurado para os justos 4.

    Religio e espiritualidade: distinguir sem separar

    Na viso de Dalai Lama h distino entre religio e espiritualida-de: Julgo que religio esteja relacionada com a crena no direito salvao pregada por qualquer tradio de f, crena esta que tem como um de seus principais aspectos a aceitao de alguma forma de realidade metafsica ou sobrenatural, incluindo possivelmente uma ideia de paraso ou nirvana. Associados a isso esto ensina-mentos ou dogmas religiosos, rituais, oraes e assim por diante. Considero que espiritualidade esteja relacionada com aquelas qua-lidades do esprito humano, tais como amor e compaixo, pacin-cia e tolerncia, capacidade de perdoar, contentamento, noo de

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 29

    responsabilidade, noo de harmonia que trazem felicidade tanto para a prpria pessoa quanto para os outros. Ritual e orao, junto com as questes de nirvana e salvao, esto diretamente ligadas f religiosa, mas essas qualidades interiores no precisam ter a mesma ligao. No existe, portanto, nenhuma razo pela qual um indivduo no possa desenvolv-las, at mesmo em alto grau, sem recorrer a qualquer sistema religioso ou metafsica 5.

    A distino entre religio e espiritualidade nos ajuda a resgatar a alta relevncia da espiritualidade para os dias atuais, marcados pelo modo secular de ver o mundo e pela redescoberta da complexidade misteriosa da subjetividade humana.

    As religies constroem edifcios tericos as doutrinas, as morais, as liturgias e os ritos. Constroem tambm edifcios artsticos, gran-des templos e catedrais. Atravs da arte em geral, da msica sacra e das artes plsticas as religies nos elevam a Deus. s entrarmos numa catedral, por exemplo, a Notre Dame de Paris, para encontrar-mos em seu interior e vitrais, alm da magnfica arquitetura, retrata-da toda uma poca histrico-cultural e religiosa. As religies cons-tituem uma das construes de maior excelncia do ser humano. Trabalham com o divino, o sagrado, o espiritual, mas no so, em essncia, o espiritual.

    O que afirma Boff 6 nos ajuda a refletir: Quando a religio se esquece da espiritualidade, ela pode se autonomizar, articulando os poderes religiosos com outros poderes. No Ocidente tivemos muita violncia religiosa, feita em nome de Deus. Ao se institucionalizarem em forma de poder, seja sagrado, social ou cultural, as religies perdem a fonte que as mantm vivas a espiritualidade. No lugar de homens caris-mticos e espirituais passam a criar burocratas do sagrado. Ao invs de pastores que esto no meio do povo, criam autoridades acima do povo e de costas para ele. No querem fiis criativos, mas obedientes; no propiciam a maturidade na f, mas o infantilismo da subservin-cia. As instituies religiosas podem tornar-se, com seus dogmas, ritos e morais, o tmulo do Deus vivo.

    A religio codifica uma experincia de Deus e lhe d a forma de po-der doutrinrio, moral e ritual. A espiritualidade se orienta pela ex-perincia do encontro vivo com Deus. Este encontro sempre novo e inspirador vvido, como gerador de sentido, entusiasmo de viver e transcendncia.

  • Conselho Federal de Medicina30

    Afinal, o que entender por espiritualidade e mstica?

    Nossa compreenso alinha-se com a perspectiva de Boff quando diz que a espiritualidade aquela atitude pela qual o ser humano se sente li-gado ao todo, percebe o fio condutor que liga e re-liga todas as coisas para formarem um cosmos. Essa experincia permite ao ser humano dar um nome a esse fio condutor, dialogar e entrar em comunho com ele, pois o detecta em cada detalhe do real. Chama-o de mil nomes: Fonte Originria de todas as coisas, Mistrio do Mundo ou simplesmente Deus 7.

    E Boff 6 ainda ressalta: A espiritualidade tem a ver com experincia, no com doutrina, no com dogmas, no com ritos, no com celebra-es, que so apenas caminhos institucionais capazes de nos ajudar a alcan-la, mas que so posteriores a ela. Nasceram da espiritualidade, podem at cont-la, mas no so a espiritualidade. So gua canaliza-da, no a fonte de gua cristalina 6.

    E o que entender por mstica? (...) a mstica aquela forma de ser e de sentir que acolhe e interioriza experiencialmente esse Mistrio sem nome e permite que ele impregne toda a existncia. No o saber sobre Deus, mas o sentir Deus funda o mstico. Como dizia com acerto Wittengeistein: O mstico no reside no como o mundo , mas no fato de que o mun-do 8. Para ele, crer em Deus compreender a questo do sentido da vida; crer em Deus afirmar que a vida tem sentido. esse tipo de mstica que confere um sentido ltimo ao caminhar humano e a suas indagaes irrenunciveis sobre a origem e o destino do universo e de cada ser humano 8.

    A mstica e a espiritualidade se exteriorizam institucionalmente nas re-ligies e subjazem aos discursos ticos, portadores de valores, normas e atitudes fundamentais. Sem elas, a tica se transforma num cdigo frio de preceitos e as vrias morais em processos de controle social e de domesticao cultural. Por isso, a tica, como prtica concreta, remete a uma atmosfera mais profunda, quele conjunto de vises, sonhos, utopias e valores inquestionveis cuja fonte situa-se na mstica e na espiritualidade. So como a aura, sem a qual nenhuma estrela brilha 8.

    2. Medicina e espiritualidade

    H um cansao na cultura contempornea em relao a uma medi-cina que reduz o ser humano meramente sua dimenso biolgi-

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 31

    co-orgnica. O ser humano muito mais do que sua materialidade biolgica. Poderamos dizer que este cansao provocou uma crise da medicina tcnico-cientfica e favoreceu o nascimento de um novo modelo: o paradigma biopsicossocial e espiritual 9,10. a partir desta virada antropolgica que podemos introduzir a dimenso espiritual do ser humano como importante componente a ser trabalhado na rea de cuidados no mbito da sade. J existem inmeras publica-es em nosso meio sobre essa questo, que no podem passar des-percebidas 11-13.

    A Declarao Universal sobre Biotica e Direitos Humanos da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco), adotada por aclamao em 19 de outubro de 2005 14, apresenta em sua introduo, como fundamento, uma vi-so antropolgica integral, holstica, contemplando a dimenso espiritual do humano: Tendo igualmente presente que a identida-de de um indivduo inclui dimenses biolgicas, psicolgicas, sociais, culturais e espirituais.

    A Associao Mdica Mundial (AMA), na Declarao sobre os Direitos do Paciente, revista na 171 Seo do Conselho, em Santiago, em ou-tubro de 2008, elenca onze direitos, dos quais o 13o o Direito as-sistncia religiosa. Na ntegra: O paciente tem o direito de receber ou recusar conforto espiritual ou moral, incluindo a ajuda de um ministro de sua religio de escolha.

    No Canad, o Cdigo de tica Mdica (atualizado em 2004), ao apresentar as dez responsabilidades fundamentais dos mdicos, no tocante ao assunto em tela diz que uma responsabilidade fun-damental do mdico prover cuidados apropriados ao seu paciente, mesmo quando a cura no mais possvel, incluindo o conforto fsico e espiritual, bem como suporte psicossocial.

    Nos EUA, a Associao Mdica Americana, em uma declarao sobre cuidados de final de vida (2005), diz que na ltima fase da vida as pes-soas buscam paz e dignidade e sinaliza que os mdicos prestem aten-o nos objetivos e valores pessoais da pessoa na fase final de vida. Os pacientes devem confiar que seus valores pessoais tero uma prioridade razovel, seja na comunicao com a famlia e amigos, no cuidado das necessidades espirituais, na realizao de uma ltima viagem, na tarefa de concluir uma questo ainda inacabada na vida, ou morrer em casa, ou em outro lugar de significado pessoal.

  • Conselho Federal de Medicina32

    No Mxico entrou em vigor, em 5 de janeiro de 2009, o Decreto por el que se reforma y adiciona la Ley General de Salud en Matria de Cuidados Paliativos. Em seu Captulo II, que trata dos Direitos do paciente em situao terminal, entre os doze direitos arrola-dos o XI diz que o paciente tem direito a receber os servios es-pirituais quando ele, sua famlia, representante legal ou pessoa de confiana o solicitar.

    3. Brasil Carta dos Direitos dos Usurios da Sade

    Em nosso pas, a Portaria 1.820, de 13 de agosto de 2009, do Ministrio da Sade, que dispe sobre os direitos e deveres dos usu-rios da sade nos termos da legislao vigente (art. 1), aprovou o que passou a constituir a Carta dos Direitos dos Usurios da Sade (art. 9)15.

    O art. 4 afirma: Toda pessoa tem direito ao atendimento humaniza-do e acolhedor, realizado por profissionais qualificados, em ambiente limpo, confortvel e acessvel a todos. Pargrafo nico: direito da pessoa, na rede de servios de sade, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminao, restrio ou negao em virtude de idade, raa, cor, etnia, religio, orientao sexual, identida-de de gnero, condies econmicas ou sociais, estado de sade, de anomalia, patologia ou deficincia, garantindo-lhe: (...) III - nas con-sultas, nos procedimentos diagnsticos, preventivos, cirrgicos, tera-puticos e internaes, o seguinte: respeito (...) d) aos seus valores ticos, culturais e religiosos; (...); g) o bem-estar psquico e emocional; X - a escolha do local de morte; (...) XIX o recebimento de visita de religiosos de qualquer credo, sem que isso acarrete mudana da rotina de tratamento e do estabelecimento e ameaa segurana ou pertur-baes a si ou aos outros.

    O art. 5 expressa que Toda pessoa deve ter seus valores, cultura e direitos respeitados na relao com os servios de sade, garantin-do-lhe: (...); VIII o recebimento ou a recusa assistncia religiosa, psicolgica e social.

    Como vemos hoje, h um reconhecimento em termos de polticas pblicas, bem como no mbito da prpria medicina, da necessidade do cuidado espiritual.

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 33

    4. Que espiritualidade cultivar frente ao mistrio do sofrimento humano?

    No mbito das terapias da sade vivemos um momento cultural scio-histrico, dominado pela analgesia, em que fugir da dor o ca-minho racional e normal. medida que a dor e a morte so absorvi-das pelas instituies de sade, as capacidades de enfrentar a dor, de inseri-la no ser e de viv-la so retiradas da pessoa. Ao ser tratada por drogas, a dor medicamente vista como uma disfuno nos circuitos fisiolgicos, sendo despojada de sua dimenso existencial subjetiva. Claro que esta mentalidade retira do sofrimento seu significado nti-mo e pessoal, transformando a dor em problema tcnico.

    Diz-se que hoje temos a chamada trindade farmacolgica da fe-licidade, nos nveis fsico-corporal, psquico e sexual, disponvel a conta-gotas nas prateleiras das farmcias, a um custo razovel. O Xenical para emagrecimento e busca da felicidade do corpo escultural; o Prozac para livrar-se dos incmodos da depresso e da busca do bem-estar psquico, e o Viagra, que liberta do fra-casso e da vergonha da disfuno ertil (impotncia) para pro-porcionar o prazer e a felicidade sexual. No mais possumos os msticos de outrora, que atribuam dor e ao sofrimento um sen-tido. Vivemos numa sociedade em que o sofrer no tem lgica. Por isso, nos tornamos incapazes de encontrar razo numa vida marcada pelo sofrimento. Na base das solicitaes para se praticar a eutansia, temos sempre o drama da vida envolta em sofrimento sem perspec-tivas. As culturas tradicionais tornam o homem responsvel por seu comportamento sob o impacto da dor, mas na atualidade a socie-dade industrial quem responde pessoa que sofre, para livr-la do incmodo.

    Em meio medicalizado, a dor perturba e desnorteia a vtima, obrigan-do-a a entregar-se ao tratamento. Ela transforma em virtudes obso-letas a compaixo e a solidariedade, fontes de reconforto. Nenhuma interveno pessoal pode mais aliviar o sofrimento. S quando a fa-culdade de sofrer e de aceitar a dor for enfraquecida que a interven-o analgsica tem efeito previsto. Nesse sentido, a gerncia da dor pressupe a medicalizao do sofrimento.

    A dor pode ser definida como uma perturbao, uma sensao no corpo. O sofrimento, em paralelo, conceito mais abrangente e complexo: atinge o todo da pessoa. Pode ser definido, no caso de

  • Conselho Federal de Medicina34

    doena, como um sentimento de angstia, vulnerabilidade, perda de controle e ameaa integridade do eu. Pode existir dor sem sofri-mento e sofrimento sem dor. Em cada caso, somente ns podemos senti-lo, bem como alivi-lo. A dor exige medicamento e analgsico; o sofrimento clama por sentido. Como afirma Cassel 10: O sofrimento ocorre quando existe a possibilidade de uma destruio iminente da pessoa, continua at que a ameaa de desintegrao passa ou at que a integridade da pessoa restaurada novamente de outra maneira. Aponto que sentido e transcendncia (grifo nosso) oferecem duas pistas de como o sofrimento associado com a destruio de uma parte da personalidade pode ser diminudo. Dar um significado condio sofrida frequentemente reduz ou mesmo elimina o sofrimento a ela as-sociado. A transcendncia provavelmente a forma mais poderosa pela qual algum pode ter sua integridade restaurada, aps ter sofrido a desintegrao da personalidade 10.

    Na Bblia, o Livro de J, escrito h mais de 2500 anos, apresenta o mistrio do sofrimento e Deus. Nele encontramos a mesma pergun-ta que tantos Js (sofredores) se fazem hoje: por que Deus faz isto comigo? O rabino Kushner responde que as palavras de J nem de longe contm uma indagao de ordem teolgica elas so um grito de dor. Depois daquelas palavras caberia um ponto de exclamao, no de interrogao. O que J queria de seus amigos (...) no era teolo-gia, mas simpatia. No desejava que lhe explicassem Deus, tampouco estava querendo mostrar-lhes que sua teologia era insatisfatria. Ele queria somente dizer-lhes que era realmente um bom homem e que as coisas que lhe estavam acontecendo eram terrivelmente trgicas e injustas. Mas seus amigos empenharam-se tanto em falar de Deus que quase esqueceram de J, a no ser para observar que ele deveria ter feito alguma coisa de muito ruim para merecer aquele destino das mos de um Deus justo 16.

    Na histria da espiritualidade crist catlica em poca no muito distante se enfatizava, exageradamente, a importncia do sofri-mento, caindo-se numa mentalidade de valorizao do sofrimen-to por si mesmo. A popular expresso se a gente no sofre no ganha o cu espelha bem esta mentalidade. Na busca de supera-o desta religio do sofrimento e da culpa, precisamos beber da fonte primeira, redescobrindo nos Evangelhos que no centro no est a dor e o sofrimento, mas o amor. O mandamento no para sofrer, mas para amar.

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 35

    Na carta apostlica Salvifici doloris lemos que O sofrimento humano suscita compaixo, inspira tambm respeito e, a seu modo, intimida. Nele, efetivamente est contida a grandeza de um mistrio especfico. dito tambm que o amor ainda a fonte mais plena para a resposta pergunta acerca do sentido do sofrimento. Esta resposta foi dada por Deus ao homem, na Cruz de Jesus Cristo 17.

    5. Espiritualidade e cuidados paliativos

    A espiritualidade diz respeito busca do ser humano por um sen-tido e significado transcendente da vida. A religio, em paralelo, um conjunto de crenas, prticas rituais e linguagem litrgica que caracteriza uma comunidade que est procurando dar um significa-do transcendente s situaes fundamentais da vida, desde o nascer at o morrer.

    A filosofia dos cuidados paliativos desde suas origens, a partir do cul-tivo da viso antropolgica biopsicossocial e espiritual, prope um modelo de cuidados holsticos que v ao encontro das necessidades de vrias dimenses do ser humano, quer no nvel fsico, psquico, social ou espiritual. A prpria definio da Organizao Mundial da Sade contempla esta perspectiva.

    Hoje, refora-se a convico de que os cuidados paliativos devem expandir seu foco para alm do controle da dor e dos sintomas fsicos, para incluir as abordagens psiquitrica, psicolgica, existencial e espi-ritual nos cuidados de final de vida e, talvez em situaes especficas, culminar no processo de aceitao com serenidade e em paz da prpria morte 18.

    O conjunto de medidas para controle da dor e dos sintomas fsicos continua sendo o objetivo bsico e fundamental para os paliativistas, haja vista que tais sintomas se transformam em fonte de angstia e so-frimento para o paciente, mas os paliativistas possuem as ferramentas e habilidades para efetivamente lidar com essa sintomatologia.

    Os objetivos da medicina podem ser resumidos em prolongar, pro-teger e preservar a vida humana. Mas como aplic-los aos cuidados paliativos? Prolongar a vida no um objetivo clnico em cuidados paliativos. Paradoxalmente, estudos recentes mostram que pacien-tes cuidados em hospices sobrevivem por mais tempo que os pa-

  • Conselho Federal de Medicina36

    cientes em fase final cuidados em outros contextos clnicos. Proteger o paciente de danos apresenta-se como razovel em cuidados palia-tivos. O que significa preservar a vida como um objetivo em cuidados paliativos? Significa fazer todo o possvel para que o paciente man-tenha a essncia de quem , seu senso de identidade, significado e dignidade na ltima fase da vida e no processo do morrer. Isto pode ser obtido pelo controle dos sintomas, cuidados humanizados, facili-tando o relacionamento com as pessoas queridas, focando em ques-tes existenciais que necessitam ser finalizadas e cuidar do legado (o que a pessoa deixa). Portanto, em cuidados paliativos os objetivos so raramente prolongar a vida, frequentemente proteger a vida, mas sempre preservar e cuidar da vida.

    A compaixo um importante elemento humano em todas as in-teraes em cuidados paliativos e pode ser definida pela hospitali-dade, presena e abertura para ouvir. O termo hospitalidade a raiz das expresses hospital e hospice. O encontro clnico dos cuida-dores com o doente implica em que este seja comunicado do senso de que todos estamos relacionados uns com os outros, enfrenta-mos as mesmas realidades e questes existenciais por exemplo, nossa finitude 19,20.

    Estar presente procurar focar e centralizar-se nas preocupaes e histria do paciente. Ouvir responder de tal maneira s suas preocupaes e angstias que este se sinta compreendido. A empa-tia est no corao e na arte de ouvir. O objetivo maior desta abor-dagem na fase terminal ajudar no processo de aceitao da vida vivida e, finalmente, chegar aceitao da morte. Em outras palavras, enfrentar a morte com serenidade e paz. William Breitbart afirma: Reconhecer e encarar com serenidade a prpria morte, nossa finitude de vida, pode ser para muitos um fator de transformao. A atitude de enfrentar a prpria morte leva a pessoa a se voltar para encarar e abra-ar a vida que foi vivida 18.

    Ao olhar e examinar a vida que viveu e que luta para aceitar, esta pes-soa enfrenta uma srie de desafios. Enfrentar a morte pode aprimorar o processo ao se buscar um senso de coerncia, significado e comple-tude de vida. Isto tambm permite que tenhamos a conscincia de que o ltimo captulo da vida a ltima oportunidade para viver toda a sua potencialidade, para deixar um autntico legado e se conectar com o alm, colocando a vida numa perspectiva de transcendncia. Neste momento ainda existe vida para ser vivida, tempo para sim-

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 37

    plesmente ser, de forma que o paciente pode partir com um senso de paz e de aceitao da vida vivida. O paradoxo desta dinmica de final de vida que atravs da aceitao da vida que se viveu, surge a aceitao da partida e da morte, conclui o psiquiatra W. Breitbart, paliativista do Memorial Hospital de Nova Iorque 21.

    Como seres humanos, buscamos o sentido maior das coisas e da vida e nos preocupamos com trs questes bsicas: 1) De onde vim?; 2) Por que estou aqui? 3) Para onde vou? (existe algo alm da morte?). Essas so questes centrais na experincia religiosa e espiritual. A palavra religio vem do latim religio, onde a raiz re (novamente) e ligare (conectar) fundamentalmente diz respeito ao esforo de se reconectar ou ligar junto. A busca de transcendncia ou conexo como algo a mais de ns mesmos a maneira bsica e simples de uma aventura espiritual, independentemente de se acreditamos em Deus ou no.

    Para as pessoas que cultivam uma f religiosa podem-se oferecer cuidados e respostas confortantes para essas questes existenciais. Para os que no possuem um sistema de crenas religiosas podemos prover conforto via solidariedade e compaixo, que ameniza os me-dos associados com a dor, o sofrimento e o sentimento de sentir-se relegado ao esquecimento aps a morte.

    Consideraes finais

    Para alm dos tratamentos farmacolgicos que visam aliviar a dor e tratar dos sintomas fsicos desagradveis, faz-se necessrio o resgate da dimenso espiritual da existncia humana. A maior contribuio de Victor Frankl para a psicologia humana foi o despertar para a cons-cincia de um componente espiritual da existncia e experincia hu-mana e da importncia central do significado (ou busca de significa-do). Seus conceitos bsicos incluem: 1) o sentido da vida: a vida tem um sentido e este no perdido na fase final da vida. O significado pode mudar neste contexto, mas nunca deixa de existir; 2) busca de significado: uma motivao bsica do ser humano; 3) livre arbtrio: liberdade de buscar um sentido na vida e escolher a atitude frente ao sofrimento e na fase final da vida 22. Como diz o filsofo brasileiro Oswaldo Giacia Jr., o insuportvel no s a dor, mas a falta de senti-do da dor, mais ainda, a dor da falta de sentido.

  • Conselho Federal de Medicina38

    A dimenso da espiritualidade fator de bem-estar, conforto, es-perana e sade. Considerando tais predicados, faz-se urgente-mente preciso que nossas instituies de sade se organizem no atendimento desta necessidade humana. Faltaria um elemento muito importante no processo de humanizao dos cuidados de sade, no caso de negligenciarmos a promoo do bem-estar es-piritual do doente 23.

    Nessa perspectiva de cuidados, estaramos preservando a dignida-de e integridade da pessoa em fase final de vida. Dignidade basica-mente significa respeito pessoa na sua integralidade de ser, bem como para com seus valores de vida. Integridade seria o esforo de preservar sua prpria identidade, mantendo-a conectada com tudo o que tem sentido e valor em sua vida, mesmo ante uma cadeia progressiva de perdas e progresso da enfermidade, at o momen-to final. No podemos esquecer que como necessitamos de cuida-dos ao nascer, precisamos tambm de cuidados no momento de nos despedirmos da vida.

    Referncias

    1. KNG, H. Religies do mundo: em busca dos pontos comuns. Campinas: Verus, 2004.

    2. KNG, H. Teologia a caminho: fundamentao para o dilogo ecumnico. So Paulo: Paulinas, 1999.

    3. JONAS, H. O princpio da responsabilidade: ensaio de uma ti-ca para a civilizao tecnolgica. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-Rio, 2006.

    4. BOFF, L. Tempo de transcendncia: o ser humano com um projeto infinito. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.

    5. DALAI LAMA. tica do terceiro milnio. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.

    6. BOFF, L. Espiritualidade: um caminho de transformao. Rio de Janeiro: Sextante, 2001.

    7. BOFF, L. Ethos mundial: um consenso mnimo entre os huma-nos. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 39

    8. BOFF L, FREI BETTO. Mstica e espiritualidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

    9. SIQUEIRA, J.E. Tecnologia e medicina entre encontros e desen-contros. Biotica, Braslia, v.8, n.1, p. 55-64, 2000.

    10. CASSEL, E.J. The nature of suffering and the goals of medici-ne. New York: Oxford University Press, 1991.

    11. LELOUP, J-Y. et al. O esprito na sade. 6 ed. Petrpolis: Vozes, 2002.

    12. PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C.P. Em busca de sentido e ple-nitude de vida: biotica, sade e espiritualidade. So Paulo: Paulinas/Centro Universitrio So Camilo, 2008.

    13. PESSINI, L.; BERTACHINI, L. (Org.). Humanizao e cuidados paliativos. 4 ed. So Paulo: Centro Universitrio So Camilo/Loyola, 2009.

    14. UNESCO. Declarao Universal sobre Biotica e Direitos Humanos. Paris: Unesco, 2005.

    15. BRASIL. Ministrio da Sade. Portaria n 1.820, de 13 de agosto de 2009. Dispe sobre os direitos e deveres dos usurios da sade. Dirio Oficial da Unio, 14 ago. 2009. Seo 1, p. 80-1.

    16. KUSHNER, H.S. Quando coisas ruins acontecem s pessoas boas. So Paulo: Nobel, 1999.

    17. JOO PAULO II. Carta apostlica Salvifici doloris: o sentido cristo do sofrimento humano. So Paulo: Paulinas, 1984.

    18. BREITBART, W. Thoughts on the goals of psychosocial palliative care. Palliative Supportive Care, v.6, p. 211-2, 2008.

    19. PESSINI, L.; BERTACHINI L. Cuidar do ser humano: cincia, ter-nura e tica. 2 ed. So Paulo: Paulinas, 2010.

    20. PESSINI, L.; BERTACHINI, L. O que entender por cuidados pa-liativos? So Paulo: Paulus, 2006. [Srie Questes Fundamentais de Sade]

    21. BREITBART, W. Espiritualidade e sentido nos cuidados paliativos. In: PESSINI, L.; BERTACHINI, L. (Org.). Humanizao e cuidados paliati-vos. 4 ed. So Paulo: Centro Universitrio So Camilo/Loyola, 2009.

  • Conselho Federal de Medicina40

    22. FRANKL, V. Em busca de sentido. 26 ed. Petrpolis: Vozes, 2008.

    23. HARDING, J. Questes espirituais no fim da vida: um convite discusso. Mundo Sade, v.24, n.4, p.321-4, 2000.

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 41

    Cuidados paliativos: afinal, do que se trata?

    Claudia Burl

    Introduo

    O aumento da expectativa de vida uma das maiores conquistas bio-tecnolgicas na rea da sade, resultado da reduo dos ndices da mor-talidade, o que, por sua vez, redunda de uma melhoria das condies de vida em geral. O viver mais acompanhado do declnio fisiolgico das funes orgnicas e, consequentemente, de maior probabilidade do surgimento de doenas crnicas, incapacitantes e no evolutivas.

    transio demogrfica alia-se o tremendo desenvolvimento cient-fico e tecnolgico experimentado no sculo passado, desde tcnicas de imunizao e implantao de saneamento bsico ao desenvol-vimento de frmacos e de toda uma aparelhagem tecnolgica que permitiram que doenas anteriormente fatais passassem a ser con-troladas e se tornassem crnicas, de carter degenerativo, mas ainda compatveis com a vida. Esse processo se ampliar ainda mais em de-corrncia dos avanos nos conhecimentos da engenharia gentica e da biotecnologia, alterando substancialmente no apenas os indica-dores demogrficos como a expectativa de vida, mas principalmente o prprio limite do tempo de vida ou relgio biolgico 1.

    O fato que so alarmantes os nmeros de mortes decorrentes de longos processos de enfermidade. A Organizao Mundial da Sade (OMS) estimou, em 2004, que 59 milhes de pessoas morrem por ano no mundo. Os registros evidenciam que apenas cerca de 10% des-sas mortes decorrem de causas agudas, acidentes, doenas fatais e catstrofes 2. Os demais 90% resultam das doenas agudas incapa-citantes e enfermidades crnico-degenerativas que podem evoluir com lento e longo processo de morrer, dependendo da doena e das comorbidades envolvidas 3.

    A partir de estudos e investigaes sistemticas, a OMS faz grave aler-ta, referindo-se ao final da vida de pessoas doentes: em pases desen-volvidos e em desenvolvimento, pessoas esto vivendo e morrendo sozinhas e cheias de medo, com suas dores no mitigadas, sintomas fsicos no controlados e as questes psicossociais e espirituais no

  • Conselho Federal de Medicina42

    atendidas 4. Deve-se considerar, ainda, que especialmente no prolon-gado caminho para o fim da vida os pacientes no se beneficiam dos recursos da alta biotecnologia, mesmo que disponveis. O avano da doena faz com que a morte seja inevitvel, e qualquer teraputica curativa instituda em uma doena crnica em fase avanada pode ser considerada ftil e no razovel.

    neste contexto que a OMS reconhece e recomenda os cuidados paliativos como a modalidade de atendimento e assistncia indica-da para os portadores de doenas incurveis e em fase avanada de evoluo, para as quais todos os recursos de possibilidade de cura foram esgotados, ressaltando que o foco do tratamento a pessoa, no a doena.

    Com base em tcnicas desenvolvidas especificamente para pacien-tes com doenas em fase avanada, terminais, sem qualquer possibi-lidade de cura, a Medicina Paliativa (especialidade mdica) pode pro-porcionar alta qualidade de sobrevida, pois sua proposta teraputica no a mudana do curso natural dos problemas, mas sim das com-plicaes consequentes, intercorrncias e qualquer sintoma que cau-se sofrimento durante a evoluo da doena. O seu principal objetivo o controle adequado dos sintomas que surgem, pois seguramente influenciaro na qualidade do final da vida e na forma de morrer.

    Na ltima dcada, muito se tem falado sobre qualidade de vida, hoje expresso comum. A maioria das aes humanas visa melhorar a qualidade de vida, seja do indivduo ou da comunidade. Em ltima instncia, esse conceito regula as polticas pblicas e as aes pri-vadas. Avanos na rea da sade foram responsveis pelos ganhos mais significativos de qualidade de vida no passado recente: os in-divduos esto (em mdia) vivendo mais e com mais sade do que nunca antes. Mas qualidade de morte outra questo. A morte, apesar de inevitvel, gera angstia ao ser cogitada e, em muitas cul-turas, constitui-se tabu.

    Mesmo quando discutidas abertamente, as obrigaes implcitas ao juramento hipocrtico o ponto de partida para toda a medicina curativa no se encaixam com as demandas para cuidados paliati-vos ao fim da vida, quando improvvel que o paciente se recupere e compete ao mdico (ou mais frequentemente ao cuidador) mini-mizar o sofrimento medida que a morte se aproxima. Mas esse tipo de assistncia raramente existe: de acordo com a Aliana Mundial de

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 43

    Cuidados Paliativos, mais de 100 milhes de pessoas se beneficiariam de cuidados paliativos e de hospice por ano (incluindo familiares e cuidadores que precisam ajuda e orientao para cuidar); entretanto, menos de 8% delas a eles tm acesso 5.

    Poucos pases, incluindo os desenvolvidos, com sistemas de sade de ponta, incorporam a estratgia dos cuidados paliativos em sua polti-ca geral de sade apesar de, em muitos, o aumento da longevidade e da populao idosa significar provvel significativo acrscimo da demanda por cuidados ao fim da vida. Em termos globais, a forma-o em cuidados paliativos raramente includa no currculo das profisses da rea da sade. Instituies especializadas na proviso de cuidados paliativos e de cuidados ao fim da vida frequentemente no integram os sistemas nacionais de sade e muitas dependem de trabalho voluntrio ou tm a condio de filantrpicas.

    A morte um evento inevitvel: todo ser vivo um dia morre. Para muitos, trata-se de perspectiva angustiante, e muitas culturas a con-sideram tabu. Para os mdicos, treinados na arte de curar, a morte de um paciente o fracasso de sua atuao profissional. A tecnologia chegou a tal ponto que se pode dizer que um paciente internado em unidade de terapia intensiva de um hospital de ponta pode ter sua vida bastante prolongada, o que poderamos chamar de medicaliza-o da morte. Os avanos tecnolgicos na rea mdica fizeram com que no s os mdicos, mas a sociedade como um todo, perdessem a noo de que a vida finita.

    A paliao indicada para qualquer paciente que convive ou est em risco de desenvolver uma doena que ameaa a vida, inde-pendentemente do diagnstico, prognstico ou idade, podendo complementar e at melhorar o tratamento modificador da doen-a; em algumas situaes, pode mesmo ser o prprio tratamento. Nesse contexto, a paliao de qualquer sintoma que cause sofri-mento busca dar ao paciente e a seus familiares a melhor qualida-de de vida possvel.

    Conceito

    O conceito de cuidados paliativos evoluiu ao longo do tempo, acompanhando o desenvolvimento dessa modalidade de assis-tncia em muitas regies do mundo. O mais instigante em re-

  • Conselho Federal de Medicina44

    lao ao conceito dos cuidados paliativos que a referncia a pessoa doente, suas necessidades especiais e as de sua fam-lia, e no o rgo comprometido, a idade ou o tipo de doena. Tradicionalmente, os cuidados paliativos eram vistos como exclu-sivamente aplicveis no momento em que a morte era iminente. Hoje, so oferecidos no estgio inicial do curso de determinada doena progressiva, avanada e incurvel 6.

    A OMS comeou a dar especial ateno aos cuidados paliativos em 1982, quando criou um comit incumbido de definir polticas para o tratamento e alvio da dor em pacientes com cncer. O documento foi publicado em 1986, sob o ttulo Cancer pain relief 7. Em 1990, esse comit elaborou o primeiro conceito de cuidado paliativo, centrado no tratamento de pessoas com cncer 8. Em 1997, a OMS publica o documento Conquering suffering, enriching humanity 9, que tem por foco as doenas no comunicveis. Diz o documento: inevitvel: um dia a vida acaba. Temos que fazer com que isto ocorra da forma mais digna, cuidadosa e menos dolorosa possvel. Essa preocupao no s da rea mdica per se, mas de toda a sociedade.

    Os cuidados paliativos so uma abordagem voltada para a qualidade de vida tanto dos pacientes quanto de seus familiares frente a pro-blemas associados a doenas que pem em risco a vida. Sua atuao busca a preveno e o alvio do sofrimento, mediante o reconheci-mento precoce de uma avaliao precisa e criteriosa e do tratamento da dor e de outros sintomas, e das demandas, quer de natureza fsica, psicossocial ou espiritual 10.

    Digna de nota a incluso, nesta definio, dos familiares de pacien-tes como tambm beneficirios dos cuidados e a extrapolao, para alm dos aspectos fsicos exclusivamente, do atendimento das de-mandas psicossociais e espirituais.

    A OMS, atenta atualidade, importncia e pertinncia do tema, toma posio em relao ao cuidado paliativo, oferecendo-nos na ta-bela a seguir um detalhamento explicativo, com nfase nos aspectos cruciais especificidade de sua aplicao.

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 45

    Tabela 1. Cuidados paliativos: aspectos cruciais

    Promovem o alvio da dor e de outros sintomas que geram sofri-mento

    Reafirmam a vida e veem a morte como um processo natural

    Oferecem um sistema de suporte que auxilia o paciente a viver to ativamente quanto possvel at a morte

    Oferecem um sistema de suporte que auxilia a famlia e entes queridos a sentirem-se amparados durante todo o processo da doena e no luto

    Utilizam os recursos de uma equipe multiprofissional para focar as necessidades dos pacientes e seus familiares, incluindo acom-panhamento no luto

    Melhoram a qualidade de vida e influenciam positivamente no curso da doena.

    Devem ser iniciados o mais precocemente possvel, junto a outras medidas de prolongamento de vida como a quimioterapia e a radioterapia , e inclurem todas as investigaes necessrias para melhor compreenso e abordagem dos sintomas.

    neste contexto da medicina contempornea, submersa em espcie de imperativo tecnolgico que domina o seu fazer cotidiano, que sur-ge o moderno movimento hospice, no qual se inserem os cuidados paliativos 11. Tal movimento emerge em um ethos que se fundamenta na compaixo e no cuidado do paciente como um todo e no suporte s necessidades de sua famlia, enfocados como uma unidade, numa busca ativa de medidas que aliviem os sintomas angustiantes em especial a dor e que possam dar continente ao seu sofrimento, en-carando a morte como parte de um processo natural da biografia hu-mana e no como um inimigo a ser enfrentado 12.

    Cuidados paliativos como modalidade de interveno

    Com o avano da biotecnologia, doenas que levavam morte sem qualquer possibilidade teraputica podem, hoje, ser tratadas e con-troladas. Porm, no so passveis ainda de serem curadas, acarre-tando, como consequncia para a pessoa acometida, sequelas que podem gerar incapacidades, criando graus variveis de dependn-cia para as suas necessidades bsicas, como alimentao, higiene,

  • Conselho Federal de Medicina46

    gerncia administrativa e financeira. Nesse momento, a perda da au-tonomia se estabelece e a pessoa, particularmente a de mais idade, se torna um ser dependente 13.

    Vale lembrar que cada indivduo possui um cdigo pessoal de conceitos, desenvolve o seu prprio processo de adoecimento e mantm uma relao peculiar com a sua doena e a aproximao de sua morte 14.

    Para fazer frente s necessidades de pacientes que perdem qual-quer possibilidade de tratamento voltado para a cura, surgem os cuidados paliativos, com aes destinadas ao bem-estar fsico e es-piritual, com alvio da dor e de outros sintomas, oferecendo-lhes conforto e maiores possibilidades de aproximao dos seus familia-res e amigos.

    Esse cenrio veio provocar mudanas significativas na abordagem teraputica das pessoas doentes, especialmente quando portado-ras de doenas crnicas em fase avanada. O mdico treinado para salvar vidas, e a morte de um paciente representa o seu fra-casso profissional: a morte um inimigo a ser derrotado. H, en-to, o choque profissional, tico, moral quando o mdico, trei-nado para fazer o possvel para manter o seu paciente vivo, se v ante um indivduo idoso, com doena crnica em fase avanada, que no mais responde a qualquer teraputica curativa. Mais do que o conhecimento tcnico, essencial a competncia humans-tica com humildade para perceber o processo de terminalidade da vida. Neste momento, a atuao profissional no visa medi-das de prolongamento artificial da vida, mas sim proporcionar o maior conforto possvel para que a pessoa doente consiga viver at o momento de sua morte 13.

    Na rea da paliao, preciso observar a diferena entre cuida-dos paliativos e cuidados ao fim da vida. Cuidados paliativos de-vem ser aplicados ao paciente num continuum, pari passu com outros tratamentos pertinentes ao seu caso, desde a definio de uma doena incurvel e progressiva. Os cuidados ao fim da vida so parte importante dos cuidados paliativos, referindo--se assistncia que um paciente deve receber durante a lti-ma etapa de vida, a partir do momento em que fica claro que se encontra em um estado de declnio progressivo e inexorvel, aproximando-se da morte 15.

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 47

    A interveno paliativa constitui uma modalidade teraputica in-terdisciplinar que objetiva o alvio do sofrimento e a melhoria da qualidade de vida de pessoas com doena incurvel, em evoluo para a morte. especfica para aplicao em situaes em que exis-te uma expectativa de vida limitada pela prpria progresso da doena e as intervenes no iro influenciar no tempo de vida da pessoa, mas sim em sua qualidade, aliviando qualquer sintoma que acarrete sofrimento 16.

    A concretizao dos cuidados paliativos acontece na dinmica inter-disciplinar. Nenhuma cincia ou rea do conhecimento retm o pa-trimnio da verdade, ou fonte de todos os valores. O pressuposto da interdisciplinaridade a capacidade de transformar um tema em problema, em procura, em vida. O objetivo, sem dvida, utpico da interdisciplinaridade se volta unidade do saber, mas no s; volta-se tambm unidade do fazer. Com certeza, quando se fragmenta o sa-ber e o fazer, fragmenta-se a pessoa, sujeito desses processos.

    Da mesma forma que no h um saber nem um conhecimento mais alto, ou mais nobre, ou mais importante que os demais, no h tam-bm um participante do processo que se sobreponha a outros. Sob este aspecto, pode-se dizer que a interdisciplinaridade se constitui em um grande acordo, que prev relaes bem transitivas e estreitas alianas entre os participantes do processo, incluindo-se, a, a pessoa doente demandante de cuidados.

    Consideraes finais

    A proposta dos cuidados paliativos, especialmente no cenrio da ter-minalidade da vida, vem provocar uma transformao no atendimen-to mdico, ampliando o horizonte do campo da sade, enfatizando a relao profissional-paciente-familiares, no contexto da interdisci-plinaridade e, ousadamente, trazendo para o centro da ateno o ser humano em sua integralidade 17.

    frente a essa realidade desafiadora que os cuidados paliativos se apresentam como forma inovadora de assistncia na rea da sade, com um atendimento de alta pertinncia e eficcia aos pacientes em fim de vida, estendendo sua abrangncia ao controle dos sintomas, assistncia psicossocial e espiritual. curioso como na era da alta biotecnologia uma modalidade de atendimento a pessoas que esto

  • Conselho Federal de Medicina48

    morrendo revele uma interveno interdisciplinar com ares revolucio-nrios: um olhar apressado no captura a dimenso do cuidado palia-tivo, uma prxis na rea da sade que integra conhecimento cientfico, interpelao biotica e sensibilidade ante o sofrimento humano.

    Por fim, cabe ressaltar que os cuidados paliativos constituem, hoje, uma resposta indispensvel aos problemas do final da vida. Em nome da tica, da dignidade e do bem- estar de cada homem, pre-ciso torn-los cada vez mais uma realidade.

    Referncias

    1. FRIES, J. F.; CRAPO, L. M. Vitality and aging: implications of the retangular curve. San Francisco: WH. Freeman, 1981.

    2. DAVIS, E.; HIGGINSON, I. (Eds). Better palliative care for old people. Denmark: WHO Regional Office for Europe, 2004.

    3. DOYLE, D.; WOODRUFF, R. The IAHPC manual of palliative care. 2nd ed. Houston: International Association Hospice and Palliative Care, 2008. Disponvel em: . Acesso em: 22 set. 2011.

    4. WHO. Programmes and projects. Cancer: palliative care. Geneva: WHO, 2010. Disponvel em: . Acesso em: 25 jan. 2011.

    5. ECONOMIST INTELLIGENCE UNIT. The quality of death: ranking end-of-life care across the world. London: The Economist Intelligence Unit, 2010. Disponvel em: . Acesso em: 14 jul. 2010.

    6. PESSINI L. Cuidados paliativos: alguns aspectos conceituais, biogrficos e ticos. Prtica Hospitalar, v.7, n. 41, p.107-12, set./out. 2005.

    7. WHO. Cancer pain relief. Geneva: WHO, 1986.

    8. WHO. Cancer pain relief and palliative care: report of a WHO expert committee. Geneva: WHO, 1990. (WHO technical report series 804).

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 49

    9. WHO. The world health report 1997: conquering suffering, enriching humanity. Geneva: WHO, 1997.

    10. WHO. Programmes and projects. Cancer. Definition of palliati-ve care. Geneva: WHO, 2002. Disponvel em: . Acesso em: 24 fev. 2010.

    11. DUNLOP, R. Cancer: palliative care. London: Springer-Verlag, 1998.

    12. CAMPBELL, C.S.; HARE, J.; MATTHEWS, P. Conflicts of conscience: hospice and assisted suicide. Hastings Center Report, v. 25, n. 3, p. 36-43, 1995.

    13. BURL, C. Paliao: cuidados ao fim da vida. In: FREITAS, E.V et al. (Eds.).Tratado de geriatria e gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan; 2006. p.1079-89.

    14. BURL, C.; PY, L. Humanizando o final da vida em pacientes ido-sos: manejo clnico e terminalidade. In: PESSINI, L.; BERTACHINI, L. (Orgs.). Humanizao e cuidados paliativos. So Paulo: Loyola, 2004. p.125-134.

    15. WATSON, M et al. Oxford handbook of palliative care. 2nd ed. New York: Oxford University Press, 2009.

    16. CHERNY, N. The challenge of palliative medicine. In: DOYLE, D et al. Oxford textbook of palliative medicine. 3rd ed. New York: Oxford University Press, 2004. p.7-11.

    17. BURL, C.; PY, L. Decises clnicas no fim da vida. In: LIBERMAN, A et al. (Orgs.) Diagnstico e tratamento em cardiologia geritrica. Barueri/SP: Manole, 2005, p. 446-52.

  • Conflitos bioticos do viver e do morrer 51

    Assistncia terminalidade da vida: a orientao do cuidado paliativo

    Maria Goretti Sales Maciel

    Nossa meta no mudar a forma como as pessoas vo morrer, mas a forma como vivem as que esto morrendo e como suas famlias experi-

    mentam e vo recordar da sua morte

    Timothy Donner, geriatra americano

    Introduo

    Ao possibilitar ao mdico a responsabilidade de oferecer cuidados paliativos aos pacientes em situao de irreversibilidade de determi-nado quadro clnico que pode levar morte, o novo Cdigo de tica Mdica defende a adoo de um conhecimento ainda pouco estu-dado nas escolas mdicas e adotado apenas no pequeno nmero de unidades de cuidados paliativos existentes no Brasil 1.

    No entanto, vrios pases j adotam de forma bem mais ampla as condutas clnicas recomendadas por esta rea do conhecimento cientfico e conseguem, com isso, minimizar o sofrimento relacio-nado ao final da vida de muitas pessoas, seus familiares e equipes assistentes 2.

    Hoje, um dos exemplos mais significativos o do Reino Unido, ao prover uma rede de assistncia ao final da vida que inclui os hospices (unidades de internao de baixa complexidade especi-ficamente voltadas para o cuidado paliativo), equipes consultoras em hospitais gerais e atendimento domiciliar para as pessoas por-tadoras de doenas potencialmente letais e em franca evoluo, com necessidades de cuidados paliativos desde o diagnstico de sua doena 2-4.

    Muito alm das pessoas nesta circunstncia, para as quais a sistem-tica do cuidado oferece uma rede assistencial complexa, que envolve vrias aes que constituem o cerne dos cuidados paliativos, h a condio de final de vida em todas as