conexões entre o estranhamento e o capitalismo

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Conexões entre o estranhamento e o capitalismo Stênio Eduardo de Sousa Alves Universidade Federal de Uberlândia [email protected] Resumo Nos marcos de uma sociedade capitalista “globalizada” em que as promessas de resolução de todos os problemas sociais contrasta com a manutenção e o aprofundamento do desemprego e do trabalho informal, como resultados de seu próprio mecanismo interno de funcionamento, o ser social tem obstado o seu desenvolvimento mais autêntico. Recuperando a teoria que Marx ergue em torno do estranhamento humano podemos compreender que o homem em seu processo de autoconstrução mediado pelo trabalho tem impedido o próprio desenvolvimento omnilateral ao estruturar sua existência tendo por base o modelo de sociedade cindida em classes sociais, cuja forma mais elevada e complexa é a sociedade capitalista. Resgatando o evolver econômico-histórico que conduz à esta sociedade, constatamos o surgimento do principal elemento social que fundamenta o estranhamento humano, que é a propriedade privada. E a estruturação desta mesma sociedade, tende a manter e a agudizar o quadro em que o ser social alheia-se de si, da coisa, de seu ser genérico e dos outros homens, bem como em efeito reverso proporciona bases à sua própria superação e do referido fenômeno. Introdução Estamos num cenário em que apesar de confrontarmos cotidianamente com mazelas socialmente produzidas, somos induzidos ideologicamente a acreditar no contrário (MÉSZÁROS, 2007b, p. 31). Por mais que observemos desempregados em semáforos ou mesmo trabalhando informalmente, querem nos fazer acreditar na possibilidade de resolução de todos os problemas sociais mediante a suposta “globalização” (MÉSZÁROSb, 2007, p. 31). O fato é que a realidade que vivemos contrapõe-se ao discurso dominante. O desemprego tem assolado enorme contingente de seres humanos, conforme Mészáros (2007b, p.30) “há mais de 40 milhões de desempregados nos

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Conexões entre o estranhamento e o capitalismo

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  • Conexes entre o estranhamento e o capitalismo

    Stnio Eduardo de Sousa Alves

    Universidade Federal de Uberlndia

    [email protected]

    Resumo

    Nos marcos de uma sociedade capitalista globalizada em que as promessas de resoluo de todos os problemas sociais contrasta com a manuteno e o aprofundamento do desemprego e do trabalho informal, como resultados de seu prprio mecanismo interno de funcionamento, o ser social tem obstado o seu desenvolvimento mais autntico.

    Recuperando a teoria que Marx ergue em torno do estranhamento humano podemos compreender que o homem em seu processo de autoconstruo mediado pelo trabalho tem impedido o prprio desenvolvimento omnilateral ao estruturar sua existncia tendo por base o modelo de sociedade cindida em classes sociais, cuja forma mais elevada e complexa a sociedade capitalista.

    Resgatando o evolver econmico-histrico que conduz esta sociedade, constatamos o surgimento do principal elemento social que fundamenta o estranhamento humano, que a propriedade privada. E a estruturao desta mesma sociedade, tende a manter e a agudizar o quadro em que o ser social alheia-se de si, da coisa, de seu ser genrico e dos outros homens, bem como em efeito reverso proporciona bases sua prpria superao e do referido fenmeno.

    Introduo

    Estamos num cenrio em que apesar de confrontarmos cotidianamente

    com mazelas socialmente produzidas, somos induzidos ideologicamente a

    acreditar no contrrio (MSZROS, 2007b, p. 31). Por mais que observemos

    desempregados em semforos ou mesmo trabalhando informalmente, querem

    nos fazer acreditar na possibilidade de resoluo de todos os problemas sociais

    mediante a suposta globalizao (MSZROSb, 2007, p. 31). O fato que a

    realidade que vivemos contrape-se ao discurso dominante.

    O desemprego tem assolado enorme contingente de seres humanos,

    conforme Mszros (2007b, p.30) h mais de 40 milhes de desempregados nos

  • pases industrialmente mais desenvolvidos. Na ndia, destaque nos ltimos anos

    como pas emergente, segundo Sen (1997, p. 554) apud Mszros (2007b, p.

    30) em 1993 havia 336 milhes de desempregados, nmero este superior ao de

    empregados que chegava h 307,6 milhes. E mais, na China, cotada a ser nova

    potncia econmica mundial, conforme Kuhn (1994) apud Mszros (2007b, p.

    31) embasado em relatrio do prprio governo chins, dentro de poucos anos o

    desemprego no pas atingir o assustador nmero de 268 milhes. Assim,

    Mszros (2007b, p. 31) conclui que atingimos uma fase do desenvolvimento

    histrico do sistema capitalista em que o desemprego a sua caracterstica

    dominante.

    Nos marcos dessa forma de sociedade em que o desemprego no

    exceo, mas parte integrante produzida e produtora da ordem social vigente,

    qual ser humano est sendo formado? Ser que o ser social est conduzindo aos

    limites o desenvolvimento de suas potencialidades mais autnticas? Ou ser que

    o cerne do modelo capitalista de produo, em si, impe barreiras ao

    desenvolvimento do ser social? Para minimamente tentar abordar estas questes

    faremos recurso teoria de Marx acerca do estranhamento humano.

    Alienao como base ao estranhamento

    Em linhas gerais, o estranhamento (Entfremdung) um fenmeno em que

    o homem se torna alheio em sua relao com a natureza e consigo mesmo

    (MARX, 1983, p. 155). Segundo Mszros (2007a, p. 19-20), um conceito que

    tem quatro aspectos principais: o estranhamento em relao ao produto de seu

    trabalho, em relao ao trabalho, em relao a si mesmo como ser genrico, e em

    relao aos outros homens. Estende-se, portanto, desde a mediao fundamental

    que permite a vida humana, que o intercmbio homem-natureza, at a relao

    do homem consigo mesmo e com os demais homens em sua forma mxima que

    o gnero humano.

    Em relao ao primeiro aspecto do estranhamento, o homem no se

    reconhece no produto de seu trabalho, estranha-se em relao natureza, nos

    dizeres de Marx (1983, p. 149): o objeto que o trabalho produz, o seu produto, se

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  • lhe defronta como um ser alheio, como um poder independente do produtor. E

    continuando:

    a exteriorizao do trabalho em seu produto tem o significado no s de

    que o trabalho se torna um objeto, uma existncia exterior, mas tambm

    que ela existe fora dele, independente de e alheia a ele, tornando-se um

    poder autnomo frente a ele, o significado de que e vida que ele conferiu

    ao objeto se lhe defronta inimiga e alheia (MARX, 1983, p. 151).

    Em relao ao segundo aspecto, o homem torna-se estranhado em relao

    ao seu trabalho, nos termos do prprio Marx (1983, p. 153): o trabalho exterior

    ao trabalhador, ou seja, no pertence sua essncia, que portanto ele no se

    afirma, mas se nega em seu trabalho, que no se sente bem, mas infeliz, e

    ainda, que seu trabalho no portanto voluntrio, mas compulsrio, trabalho

    forado. Por conseguinte, no a satisfao de uma necessidade, mas somente

    um meio para satisfazer necessidades fora dele (MARX, 1983, p. 153). E,

    portanto, a exterioridade do trabalho aparece para o trabalhador no fato de que o

    trabalho no seu prprio, mas sim de outro, que no lhe pertence, que nele ele

    no pertence a si mesmo, mas a outro (MARX, 1983, p. 153). Fica implcito nesta

    ltima citao que o fato do homem estranhar-se de seu trabalho est vinculado

    compreenso de que o homem que trabalha o faz no voltado si mesmo ou ao

    atendimento de seus interesses mais genunos, mas o faz voltado aos interesses

    e apropriao de outrem. Dessa maneira fica subentendido a existncia de dois

    diferentes segmentos sociais, um que produz, mas no se apropria e outro que

    no produz se apropria.

    O terceiro aspecto enunciado por Marx nos Manuscritos de Paris advm

    dos dois anteriores: na medida em que o trabalho alienado aliena do homem 1. a

    natureza e 2. a si mesmo, a sua funo ativa prpria, a sua atividade vital, aliena

    do homem o gnero; lhe faz da vida do gnero e meio de vida individual (MARX,

    1983, p. 155). Este terceiro aspecto pode ser entendido da seguinte forma: o

    trabalho que atributo exclusivo da espcie ou do gnero humano (MARX, 2002,

    p. 211), realizado em qualquer formao social e necessrio manuteno deste

    gnero (MARX, 2002, p. 64-65), encontra-se, sob a condio de produo

    dicotomizada apropriao, resumida (empobrecida) a ser mero meio de vida

    individual do trabalhador. E ainda, este por no ter acesso ao produto de seu

    3

  • prprio trabalho e no ter o controle sobre o processo de seu trabalho tem

    obstado o desenvolvimento integral de suas potencialidades humanas genricas,

    conforme reiterado por Tonet (2006, p. 3):

    o processo de o indivduo singular tornar-se membro do gnero humano

    passa pela necessria apropriao do patrimnio material e espiritual

    acumulado pela humanidade em cada momento histrico. atravs

    dessa apropriao que este indivduo singular vai se constituindo como

    membro de gnero humano. Por isso mesmo, todo obstculo a essa

    apropriao um impedimento para o pleno desenvolvimento como ser

    integralmente humano.

    E o quarto, e ltimo aspecto, o estranhamento do homem frente ao

    prprio homem como uma consequncia imediata do fato de o homem estar

    alienado do produto do seu trabalho, da sua atividade vital, do seu ser genrico

    (MARX, 1983, p. 158). Marx (1983, p. 159) explica tal aspecto como se segue:

    se portanto ele se relaciona com o produto do seu trabalho, como o seu

    trabalho objetivado, como um objeto alheio, inimigo, poderoso,

    independente dele, ento se relaciona com ele de maneira tal que um

    outro homem alheio a ele, inimigo, poderoso, independente dele, o

    senhor deste objeto. Se se relaciona com sua prpria atividade como

    uma atividade no-livre, ento ele se relaciona com ela como a atividade

    a servio de, sob o domnio, a coero e o jugo de um outro homem.

    O estranhamento do homem em relao ao prprio homem pode ser entendido

    como o estranhamento do produtor (no-apropriador) frente ao no-produtor

    (apropriador), entre as classes sociais.

    Antes de prosseguirmos na investigao das conexes entre o

    estranhamento e a estruturao do capitalismo, cabe aqui uma importante

    distino categorial. Em Marx, os conceitos estranhamento (Entfremdung) e

    alienao (Entusserung) tem etimologias distintas e contedos potencialmente

    distintos (RANIERI, 2001, p. 24). De maneira que

    Entusserung tem o significado de remisso para fora, extruso,

    passagem de um estado para outro qualitativamente diferente,

    despojamento, realizao de uma ao de transferncia. Neste sentido,

    Entusserung carrega o significado de exteriorizao, um dos momentos

    4

  • da objetivao do homem que se realiza atravs do trabalho num

    produto de sua criao (RANIEIRI, 2001, p. 24).

    E continuando,

    Entfremdung tem o significado de real objeo social realizao

    humana, na medida em que historicamente veio a determinar o contedo

    das exteriorizaes (Entusserunge) por meio tanto da apropriao do

    trabalho como da determinao desta apropriao pelo surgimento da

    propriedade privada (RANIERI, 2001, p. 24).

    Assim, a alienao (Entusserung) um fato histrico que ocorre em toda

    e qualquer formao social, independente de ser esta separada ou no em

    classes sociais. A exteriorizao, que o resultado do trabalho humano, uma

    necessidade incessante da vida humana. Dessa forma, a alienao o resultado

    do trabalho. E o trabalho meio para a alienao. No entanto, a alienao

    tambm meio para o trabalho e o trabalho resultado da alienao. Os objetos

    exteriorizados pelo trabalho reingressam em processos de trabalho subseqentes

    como meios de produo, ou como de meios de subsistncia que alimentam e

    assumem a forma de fora de trabalho.

    Mas, a alienao pode ser base ao estranhamento. O processo de trabalho

    processo de exteriorizao, ou seja, processo de produo de coisas ou

    efeitos teis que atendam s necessidades humanas, de maneira que a alienao

    uma condio eterna sobrevivncia do ser social. No entanto, sob

    determinadas circunstncias, a alienao do trabalho, ou seja, sua exteriorizao

    pavimenta o solo do estranhamento. Mas quais so essas circunstncias? Para

    tentarmos responder a esta questo faremos breve recurso a um longo evolver

    histrico.

    Fundamentos econmico-histricos ao estranhamento

    O estranhamento no surge com o capitalismo, mas atinge seu grau mais

    elevado e complexo sob esse sistema, nos dizeres de Ranieri (2001, p. 164-165):

    sob o capitalismo, o contedo do estranhamento atinge, se tomarmos como

    ponto de partida as exteriorizaes que conformaram os progressos da histria da

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  • humanidade, o ponto mais alto de sua complexificao. Ele surge com a

    propriedade privada dos meios de produo, dela decorre e nela se converte

    (MARX, 1983, p. 160-161). um fenmeno prprio a toda e qualquer sociedade

    fundada na existncia da propriedade privada, ou seja, a sociedade de classes.

    Convm investigarmos o surgimento da primeira sociedade de classes que

    prvia ao desenvolvimento do capitalismo, a sociedade escravista, uma vez que o

    seu forjamento acompanhado pelo estranhamento.

    Segundo Netto e Braz (2007, p. 56), nos primrdios da humanidade, os

    homens viviam em comunidade primitiva. Esta sociedade durante um longo

    perodo (cerca de 30 mil anos) viveu de forma nmade coletando vegetais e

    caando animais (NETTO; BRAZ, 2007, p. 56). Ela possuiu como diviso do

    trabalho a diviso sexual do trabalho, onde aos homens foi atribuda a tarefa da

    caa e s mulheres, a coleta e preparao dos alimentos (NETTO; BRAZ, 2007,

    p. 56). Esta sociedade aderiu ao sedentarismo a partir do momento em que

    iniciou a domesticao dos animais e a praticar a agricultura (NETTO; BRAZ,

    2007, p. 56). Somado ao artesanato, estas duas atividades proporcionaram uma

    produo de bens que ultrapassava as necessidades imediatas de sobrevivncia

    de seus membros (NETTO; BRAZ, 2007, p. 57). Eis que surgiu o excedente

    econmico (NETTO; BRAZ, 2007, p. 57). E uma vez superada as necessidades

    imediatas, os bens puderam ser acumulados (NETTO; BRAZ, 2007, p. 57).

    O excedente econmico devidamente acumulado permitiu a realizao de

    trocas entre comunidades, e com o desenvolvimento das trocas, o nascimento da

    mercadoria e do comrcio (NETTO; BRAZ, 2007, p. 57). E ainda, possibilitou pela

    primeira vez na Histria a explorao do trabalho humano, e com esta a

    inaugurao de uma sociedade distinta: a escravista (NETTO; BRAZ, 2007, p.

    57).

    A explorao do trabalho humano e a inaugurao do escravismo precisam

    ser melhor compreendidos. A explorao do trabalho, como descrito acima, s foi

    possvel graas a um desenvolvimento da capacidade produtiva da comunidade

    primitiva, atravs do desenvolvimento da agricultura, do artesanato e da criao

    de animais (NETTO; BRAZ, 2007, p. 56-57).

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  • O desenvolvimento da capacidade produtiva de toda e qualquer sociedade

    ocorre no seio de relaes determinadas entre os homens e a natureza e entre

    os prprios homens (NETTO; BRAZ, 2007, p.59), ou seja, no interior de relaes

    sociais de produo determinadas pelo regime de propriedade dos meios de

    produo (NETTO; BRAZ, 2007, p.59).

    A propriedade dos meios de produo fator decisivo apropriao dos

    produtos do trabalho humano, de maneira que os apropriadores so os

    proprietrios (NETTO; BRAZ, 2007, p. 59-60). Assim, na comunidade primitiva,

    em que a propriedade dos meios de produo foi coletiva, a apropriao dos bens

    produzidos tambm foi coletiva (NETTO; BRAZ, 2007, p. 59). Porm, quando a

    propriedade desses meios tornou-se privada, a apropriao foi privada (NETTO;

    BRAZ, 2007, p. 59-60). Tal apropriao, vide o carter da propriedade, ocorreu

    mediante a explorao do trabalho da classe dos no-proprietrios pela classe

    dos proprietrios (NETTO; BRAZ, 2007, p. 60). Assim surgiu a primeira dentre as

    sociedades de classe que precedem e embasam o sistema capitalista de

    produo, a sociedade ou modo de produo escravista.

    E o surgimento do escravismo acompanhado pelo estranhamento*. O

    escravismo, no seu surgimento, traz consigo elementos que subsidiam o

    estranhamento. A partir do momento em que o excedente econmico passa a ser

    produzido por um segmento social que dele no se apropria, os no-proprietrios

    do meios de produo, os homens envolvidos nesse processo passam a

    estranhar-se do produto de seu trabalho bem como do prprio processo de

    trabalho. E o elemento que assegura a explorao do trabalho, e seu

    conseqente estranhamento, a propriedade.

    A propriedade privada dos meios de produo fundamento para o

    estranhamento. O regime de propriedade privada assegura aos proprietrios dos

    meios de produo a explorao do trabalho dos no-proprietrios. A explorao

    do trabalho realiza-se mediante a apropriao dos produtos do trabalho dos no-

    proprietrios pelos proprietrios. Assim, temos uma mediao poltica que se

    complementa dimenso econmica, neste caso assegurando aos proprietrios o

    direito explorao do trabalho dos no-proprietrios. Da que a propriedade

    privada segrega determinado segmento social da apropriao efetiva do produto

    7

  • de seu trabalho, e essa a condio mais fundamental sobre a qual se

    desenvolve o estranhamento.

    No a totalidade social que se apropria dos resultados do trabalho, mas

    determinado segmento, o que implica que uma parcela significativa da sociedade,

    mediante a existncia a propriedade privada, obstada da possibilidade de

    aceder aos resultados do prprio trabalho e, consequentemente, privada da

    possibilidade de desenvolver suas potencialidades mais essenciais, como ser

    genrico. Assim, enquanto perdurar a propriedade privada dos meios de produo

    ir perdurar o estranhamento.

    Por outro lado, da mesma maneira que a propriedade privada supe o

    estranhamento, o estranhamento alimenta a existncia daquela. Seres sociais

    que no se identificam com seu trabalho, no tm satisfao dentro e fora do

    trabalho, com sua capacidade de trabalho reduzida mera coisa, ou seja, seres

    sociais com desenvolvimento fsico e intelectual limitados, desumanizados, so

    essenciais para a sustentao de modelos produtivos desumanos.

    Compreendidos os fundamentos da relao entre o estranhamento e a

    propriedade privada, vamos nos ocupar agora de como se desenvolve esta

    relao no interior do sistema capitalista de produo.

    Capitalismo: ampliao e superao do estranhamento

    O modo capitalista de produo estrutura-se mediante a subordinao

    estrutural do trabalho ao capital (MSZROS apud ANTUNES, 2006, p. 19).

    Pressupe ao seu funcionamento a separao da propriedade dos meios de

    produo dos produtores, nos dizeres do prprio Marx (2006, p. 828): O sistema

    capitalista pressupe a dissociao entre os trabalhadores e a propriedade dos

    meios pelos quais realizam o trabalho. O capital, mediante suas personificaes,

    compra meios de produo e fora de trabalho e os faz operar sob seus domnios

    (MARX, 2002). O processo de produo visa incorporao da fora de trabalho

    aos meios de produo, de maneira que o trabalho material que se conserva e

    se acrescenta pela suco do trabalho vivo, graas ao qual se converte num valor

    que se valoriza, em capital, e funciona como tal (MARX, 198-, p. 54). E mais,

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    * Por no ser objeto de investigao deste trabalho, o surgimento econmico-histrico do estranhamento, apenas fazemos meno, didaticamente, aos eventos econmico-histricos que permitem o surgimento da propriedade privada que antecede e subsidia o capitalismo. O estudo do modo de produo asitico, articulado quele evolver requer aprofundamento analtico.

  • mediante o prolongamento cronolgico do uso da fora de trabalho, temos a

    materializao do excedente produtivo, a mais-valia, segundo Marx (2002, p.

    228):

    comparando o processo de produzir valor com o de produzir mais-valia,

    veremos que o segundo s difere do primeiro por se prolongar alm de

    certo ponto. O processo de produzir valor simplesmente dura at o ponto

    e que o valor da fora de trabalho pago pelo capital substitudo por um

    equivalente. Ultrapassando esse ponto, o processo de produzir valor

    torna-se processo de produzir mais-valia (valor excedente).

    A mais-valia apropriada pela classe capitalista, e sob controle deste uma parte

    da mais-valia consumida como renda, outra parte empregada como capital ou

    acumulada (MARX, 2006, p. 689). O trabalhador no tem acesso ao excedente

    produtivo, tem acesso apenas a uma quantia do valor-capital (denominada

    salrio) que equivale to-somente aos meios de subsistncia necessrios

    manuteno de sua fora de trabalho (MARX, 2002, p. 201).

    Esta condio humana de sobrevivncia que limita o ser social a mero fator

    de produo condio para que no desenvolva a plenitude de suas

    potencialidades humanas, ao desenvolvimento omnilateral, de maneira que o

    trabalho estranhado converte-se num forte obstculo busca da omnilateralidade

    e da plenitude do ser (ANTUNES, 2007, p. 130) Portanto, esta forma de

    produo que em seu cerne estrutura-se opondo produtores (proprietrios da

    fora de trabalho) a apropriadores (proprietrios dos meios de produo),

    constitui-se como uma forma limitante ao pleno desenvolvimento humano.

    Entretanto, este sistema produtivo apresenta contraditoriamente duas

    caractersticas que o diferencia de todos os demais modos de produo

    predecessores: amplia em escala crescente a degradao da condio humana e

    da natureza, ao mesmo tempo em que desenvolve condies efetivas ao

    desenvolvimento humano integral, pelo desenvolvimento das foras produtivas e,

    a conseqente, produo da abundncia material (LESSA, 2005, p. 3).

    Uma vez que o capital necessita desenvolver-se em escala ampliada,

    visando acumulao, amplia tambm a extrao do sobretrabalho mediante o

    investimento crescente de capital em meios de produo e decrescente em fora

    de trabalho, para Marx (2006, p. 732): a acumulao do capital, (...) realiza-se,

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  • conforme vimos, com contnua mudana qualitativa de sua composio,

    ocorrendo constante acrscimo de sua parte constante custa da parte varivel.

    No limite, implica na sofisticao tecnolgica servio da extrao de mais-valia e

    no rebaixamento do padro de vida do trabalhador (MARX, 2006). Porm, neste

    mesmo processo, os patamares de produtividade trabalho atingem ndices cada

    vez maiores, que se colocados sob controle de todo o conjunto social poderiam

    possibilitar, com a reduo da jornada de trabalho, trabalho para todos os homens

    e a possibilidade de maior tempo para a atividade livre, espiritual e social dos

    indivduos (MARX, 2006, p. 602), e consequentemente, maiores condies ao

    desenvolvimento omnilateral humano.

    Consideraes finais

    O conceito do estranhamento, retomado por Marx, sob forma e contedos

    distintos, a partir de seus antecessores e contemporneos, como Hegel e

    Feuerbach, chave para compreenso da condio humana sob os marcos das

    diferentes sociedades de classe, sobretudo o capitalismo. Fica aqui uma questo

    que, se quisermos entender melhor o homem de nosso tempo, teremos que nos

    defrontar: qual a relao entre o estranhamento e a lgica de funcionamento

    contempornea do capital sob os marcos de uma crise estrutural do capital?

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