conceitos de risco no campo da saÚde e da vigilÂncia sanitÁria
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O RISCO NO CAMPO DA SAÚDE E
DA VIGILÂNCIA SANITÁRIA
Naomar de Almeida FilhoInstituto de Saúde Coletiva/UFBA
Sina: Parcas / Fates / Moirae Castigo: Nêmesis Acaso: Tyché Sorte: Fortuna Desafio: Prometeu
Alegorias do Destino
Fates (moirae)
Nêmesis Adrastea
Tyché
Fortuna
Prometeu
CAUSA
Súmula etimológica sobre Causa
“Cavere” (causa), termo jurídico que
significava ”ação judicial”. Ganha o
sentido de origem, gênese ou etiologia
(1600).
Sentido herdado do grego etio (αιτια), daí
etiologia e etiológico (Lalande, 1980)
Scuola di Atenas (Rafael, 1504)
Platão vs. Aristóteles
Discordo, Amado Mestre, nada do que foi pode durar eternamente. Para mim, a causalidade é essencial. Como escrevi na Física: “conhecimento e ciência consistem em se dar conta das causas e nada mais são senão isso”
Ari querido, depois da
“criação”, o mundo existe
para todo o sempre.
Aristóteles (384-322 a. C.)
Eixos da Física aristotélica
• Teoria do Real• Teoria do Ser• Teoria das Causas• Teoria dos Eventos
Teoria do Real
• Universal• Particular• Singular
Teoria do SerPrincípios da existência:• Identidade
(A=A)• Não-contradição
(A # ~A)• Terceiro excluído
(A é V ou F).
Teoria das Causas• Causa material• Causa final• Causa formal• Causa eficiente
• Material: aquilo de que é feita a coisa – o bronze é causa da estátua.
• Formal: a coisa mesma – substância – a humanidade é causa do homem.
• Final: aquilo para o qual a coisa é feita – a saúde é a causa de passear.
• Eficiente: aquilo que dá origem ao processo em que a coisa surge – o pai/a mãe é causa do filho.
TEORIA DAS CAUSAS
Galileu Galilei(1564-1642)
Faço ciência para conhecer as potências que são a causa das mudanças e as forças que são causas necessárias e suficientes do
movimento dos corpos
Discurso do método(1637) - método universal para encontrar a verdade e esclarecer as “ciências especulativas”
E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu procurava
René Descartes(1596-1650)
Implicações epistemológicas do cartesianismo:• Objetividade• Simplicidade• Neutralidade• Linearidade• Disciplinaridade
• Causalismo
Isaac Newton(1564-1642)
não se deve admitir maiscausas das coisasnaturais que aquelas quesejam ao mesmo tempo verdadeiras e suficientespara explicar suaaparência
Ataque cético decisivo à idéia de que há um vínculo necessário entre causa e efeito
Não há garantia lógica de que uma sucessão de eventos implica um nexo de necessidade
A ideia de causa, se fosse de natureza lógica, deveria valer em todos os mundos possíveis, mesmo em mundos com leis físicas distintas do mundo real
David Hume(1711-1776)
Immanuel Kant (1724-1804)
Princípio da produção: tudo o que acontece (ou começa a existir) supõe antes de si alguma coisa da qual ele resulta segundo uma regra.
Princípio da sucessão no tempo segundo a lei da causalidade: todas as mudanças se produzem segundo a lei da ligação da causa e do efeito.
Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft (1787)
Conceitos de causa
Século XIX:• Claude Bernard:
noção de processo causal• Cânones de Mill• Postulados de Koch
Metáforas do Causalismo
EventoFatos como fenômenos recortados
NexoVínculo unívoco de eventos
FluxoProcesso (linear) de produção de
efeitos
Modelo causal (clínico) do HIV/AIDS
TransmissãoEndovenosa
TransmissãoSexual
Infecção HIV
Fatores de Patogenicidade
Fatores de Vulnerabilidade
Sinais/sintomasHIV/AIDSCaso de
AIDS
TransmissãoVertical
... defeito na estrutura molecular de células, com lesão em nível tissular, resultando em alteração de funções de órgãos e sistemas, produzindo patologia, expressa objetivamente como signos e sintomas em indivíduos doentes que, acumulados aditivamente em grupos enfermos, conforma morbidade em populações...
Conceito cartesiano de Doença
Reducionismo:populações humanas = soma de… indivíduos = conjuntos funcionais de…órgãos e sistemas = tecidos
diferenciados formados por… células = micro-usinas bioquímicas
produtoras de…moléculas
Conceito cartesiano de Doença
• Teorias microbianas
• Teorias ambientais
• Teorias comportamentais (estilo de vida)
• Teorias constitucionais (genética)
Causalismo:
Conceito cartesiano de Doença
Modelos de intervenção:• Correção de defeitos
• Supressão de agentes
• Compensação de carências
• Controle de desequilíbrios
Conceito cartesiano de Doença
CONTINGÊNCIA
Teoria dos EventosModalidades lógicas:
• Possível• Impossível• Necessário• Contingente
Aristóteles (Órganon, 332 a. C.)
Característica de certas proposições ou juízos, que determina o modo pelo qual se atribui um predicado a um sujeito:
possibilidade: “É possível que S seja P”; impossibilidade: “É impossível que S seja P”;necessidade: “É necessário que S seja P”.contingência: “É acidental que S seja P”;
Modalidade
Contingentia: baixo latim (Escolástica, c. 1300). Uso corrente mais tardio (1800), sentido de acontecimentos fortuitos, imprevisíveis.
‘acontecer’ e ‘acontecimento’ provêm de contigescere, passa ao espanhol antigo contescer e chega ao português acontecer.
Contingência
Aristóteles usa os termos ‘acidente’ e ‘acidental’ (accidens).
Contingente: indecidível relativamente ao presente e ao futuro, mas não quanto ao passado.
A modalidade contingência se refere a eventos, acontecimentos, ocorrências sobre as quais podemos apenas constatar ou analisar seus efeitos.
Contingência
caráter de tudo aquilo concebido como podendo ser ou não ser, ou ser algo diferente do que é.
acontecimento do qual não podemos reduzir o aparecimento a um feixe de causalidade; é um evento (como uma emergência) de ocorrência possível mas incerta.
Contingência
Epistemologia Pascaliana:
Contingência como método: verdades múltiplas, fragmentárias; paradoxais.
Objeto não tem essência.
A Natureza não obedece a leis universais, mas é sempre flutuação e movimento.
O conhecimento não é certo nem neutro, e sim depende do objeto
Blaise Pascal (1623-1662)
1. Os objetos não se apresentam naturalmente: são relacionais, construídos;
2. A questão do correlato do objeto no mundo ou na representação não é relevante;
3. As verdades são circunscritas às regiões nas quais a experiência foi produzida;
4. A racionalidade pode ser pensada como um saber não universal e não necessário;
5. O conhecimento humano é contingente.
Contingência em Pascal
RISCO,CAUSA,
CONTINGÊNCIA, SOBREDETERMINAÇÃO
EM EPIDEMIOLOGIA
Pearson K. “Contingency and Correlation – The Insufficiency of Causation” In: The Grammar of Science. London: A. C. Black, 1911.
Karl Pearson:... Another fetish amidst the inscrutable
arcana of modern science: the category of cause...
Visual demonstration ofcorrelation but not
causation: the contingency table
P
Estrutura do objeto epidemiológico
PD
Estrutura do objeto epidemiológico
Estrutura do objeto epidemiológico
O G D I P
P = População; I = Infectados; D = Doentes; G = Casos Graves; O = Óbitos
D ⊂ PO ⊂ D ⊂ P
O ⊂ G ⊂ D ⊂ PO ⊂ G ⊂ D ⊂ I ⊂ P
Estrutura do objeto epidemiológico
População = Conjunto PDoentes = Subconjunto DP ⊃ D
RISCO = D / P |tempo
Conceito Epidemiológico de Risco
PD
Conceito Epidemiológico de Risco
S
S = (1 – R)
S = 1 – (R1, R2... Rn)
R = Risco de D[doença]
Saúde = S
Risco de Saúde
fator de risco não implica necessariamente fator etiológico ou causal
indicador de exposição⇓ ⇓
fator de risco marcador de risco⇓ ⇓
causa grupo de risco↓ ↓
prevenção prevençãoprimária secundária
Conceito Epidemiológico de Risco
E = Expostos ao Fator de Risco potencialE = Não-expostos ao Fator de RiscoP = PE ∪ PEPE ⊃ DEPE ⊃ DEForma sintética do Fator de Exposição:2 categorias: expostos, não-expostospode ser ...n categorias
Conceito Epidemiológico de Risco
RE = DE / PERE = DE / PERR: Risco Relativo, Razão de RiscosRA: Risco Atribuível, Diferença de RiscosRR = RE / RE RA = RE - RE RE > RE ⇒ RR > 1.0, RA > 0
Conceito Epidemiológico de Risco
PD
Estrutura do objeto epidemiológico
PE
DE DE
PE
Estrutura do objeto epidemiológico
R
EE = 0 E = 1
a
b1
Formalização do objeto epidemiológico segundo Miettinen
R
EE = 0 E = 1
aC = 1
C = 0
C
Formalização do objeto epidemiológico segundo Miettinen
R
EE = 0 E = 1
a
C = 1
C = 0
C
Formalização do objeto epidemiológico segundo Miettinen
Formalização do objeto epidemiológico segundo Miettinen
Considerando um modelo de regressão
(1) R=a+b1(E)
R=risco, E=exposição, b1= RA,
RR=1+b1/a(E)
(2) R=a+b1(C)+b2(E),
a’=a+b1(C), então R=a’+b2(E),
RR=1+b2/a’(E)
R= f (E|C) :: função determinante condicional de risco
Modelo de Risco (epidemiológico) de HIV/AIDS
Sexo semproteção
Partilha de seringas
Sexo comoprofissão
Práticassexuais de risco
Sistema de saúde precário
Uso de drogasinjetáveis
Estrutura social
Transfusãocontaminada
Residência em área de risco
Margina-lização
Urbani -zação
RISCO de HIV/AIDS
Conceitos correlatos:• Fatores e marcadores de risco
• Grupos de risco
• Comportamentos de risco
• Situações de risco
• Emergências, desastres e catástrofes
As práticas que compõem o campo da Saúde podem ser classificadas em três grupos (+ 1):
1. Prevenção de Riscos e Agravos2. Proteção da Saúde3. Promoção da Saúde4. Precaução
O campo de práticas da Saúde
Ações destinadas a evitar a ocorrência de doenças ou agravos específicos e suas complicações ou seqüelas, em geral de aplicação e alcance individuais, não obstante repercussões no nível coletivo provenientes de efeitos agregados cumulativos das medidas de prevenção.
Prevenção de Riscos e Agravos
Práticas de Prevenção de Riscos e Agravos à Saúde (Modelo de
Leavell & Clarck)
1. Prevenção Primária2. Prevenção Secundária3. Prevenção Terciária
Compreende ações específicas, de caráter defensivo, com a finalidade de proteger indivíduos ou grupos contra doenças ou agravos. Distingue-se da prevenção porque a especificidade da proteção encontra-se na natureza e magnitude das defesas e não na intensidade dos riscos.
Proteção da Saúde
ação difusa, sem definir agravo ou risco específico como alvo determinado, buscando melhoria global no estado de bem-estar ou qualidade de vida do grupo ou comunidade e seu ambiente; fomento da capacidade dos seres e dos ambientes de agregar "valores de promoção da vida", num sentido afirmativo da saúde
Promoção da Saúde
Práticas de Promoção da Saúde (quanto ao nível)
1. Moleculares (individuais)2. Micro-sociais3. Reticulares4. Comunitárias5. Institucionais6. Ambientais
1. Regulação2. Intervenção3. Vigilância4. Participação5. Mobilização6. Construção simbólica7. Construção imaginária
Práticas de Promoção da Saúde (quanto ao tipo de ação)
Aplicações do Conceito de Risco
• PREVENÇÃO = Marcadores, Fatores
• PROTEÇÃO = Sensores, Padrões
• PROMOÇÃO = Monitores, Tendências
• PRECAUÇÃO = Indícios, Vigilância
Qual o futuro da inferência baseada na predição?
Bases da ciência pós-cartesiana: probabilidade ou causa?
Que conceito de Risco cabe num mundo pascalino, pós-causal, pós-clínico?
Questões cruciais:
RISCO E SOBREDETERMINAÇÃO
EM SAÚDE
Sobredeterminação no MHEm “Contradição e sobredeterminação”, capítulo central de A favor de Marx (1967), Althusser discute as dialéticas hegeliana e marxista, argumentando que o conceito de contradição em Marx indica uma sobredeterminação de forças provenientes das instâncias que compõem a formação social.
Louis Althusser(1918-1990)
Sobredeterminação no MH
DIALÉTICA EM MARXa totalidade compreende muitas contradições, das
quais algumas são determinantes e determinadas
por todas as outras.
“o concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso” (MARX, Introdução à Crítica da Economia Política, 1857).
Para Althusser, a parte contraditória de um sistema é sobredeterminada pelo todo desse sistema.
SobredeterminaçãoTrês sentidos:1. Categoria mais geral numa
taxonomia de processos determinantes
2. Trajetórias de determinação por contingência
3. Rede heurística em modelos de complexidade
‘causação’ biológica de patologias
‘determinação’ social da situação e das condições de saúde
‘produção’ cultural das práticas
‘construção’ política das instituições
‘invenção’ simbólica dos sentidos da saúde
Sobredeterminação I
Risco como sobredeterminação• Risco como indicador de causalidade. Base
indutiva. Subsidia modelos de controle clínico e prevenção individual.
• Risco como resíduo da probabilidade. Base indutiva, frequentista, fisheriana. Subsidia modelos de prevenção populacional (Teorema de Rose).
• Risco como perigo estruturado. Base dedutiva, descritiva, estrutural. Subsidia modelos de proteção da saúde ambiental e ocupacional.
• Risco como emergência. Base filosófica da contingência, modelos de complexidade. Subsidia: a) modelos de Promoção da Saúde; b) modelos de Vigilância em Saúde.
Estratégias de Atuação em Saúde
ESTRATÉGIAS MODELOSTIPOLOGIAS
INTERVENÇÃO MODAIS
PREVENÇÃO Causalidade Modelagem Necessário
PROTEÇÃO Controle Experimento Impossível
PROMOÇÃO Estrutura Regulação Possível
PRECAUÇÃO Emergência Vigilância Contingente
ESTRATÉGIAS DISPOSITIVOS SINAIS ALVOS AÇÕES
PREVENÇÃO Riscos Fatores de risco
Grupos de risco
ReduçãoRemoção
PROTEÇÃO Marcadores Defesas SujeitosComunidades
ImunizaçãoReforço
PROMOÇÃO Monitores TendênciasPadrões
AmbientesCenários
Monitora-mento
PRECAUÇÃO Sensores Eventos sentinela
Ambientes Produtos
LegislaçãoControle
Estratégias de Atuação em Saúde
O objeto “ENFERMIDADE” é plural e multifacetado, simultaneamentedefeito, lesão, alteração, patologia, doença, risco, dano; regido por uma lógica de complexidade; pode ser construído sob a forma de uma ‘rede de sobredeterminação’, em planos distintos de existência.
Sobredeterminação III
Depressão
Capitalsocial
Eventos de vida
Produçãode Riscos
Estruturafamiliar
Pato-gênese
Copingbehavior
Vulnera-bilidade
Produçãode Casos
Alteraçãometabólica
Estruturapsíquica
Fatores de proteção
Prevenção
Base Genética
Produçãode Danos
Rede de Sobredeterminação (RSD) de Transtornos Depressivos
cultura
sociedade
Ambiente
Sujeito
MSt
MSy
SbI
Cas
PaR
EcS
SoC
Alt
Les
Pat
Dis
Rsk
Haz
Sik
GENOMA
PROTEOMA
Referências Bibliográficas:
ALMEIDA-FILHO N; COUTINHO D. Causalidade, contingência, complexidade: o futuro do conceito de risco. Physis, n. 17, p. 95-137, 2007.
COUTINHO D; ALMEIDA-FILHO N; CASTIEL LD. Epistemologia da Epidemiologia. In: ALMEIDA-FILHO, N; BARRETO, ML (Orgs). Epidemiologia & Saúde:Fundamentos, Métodos, Aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2012, p. 29-42.
ALMEIDA-FILHO N; CASTIEL LD; AYRES JR. Risco: Conceito Básico da Epidemiologia. In: ALMEIDA-FILHO, N; BARRETO, ML (Orgs). Epidemiologia & Saúde:Fundamentos, Métodos, Aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2012, p. 43-54.