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MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:... 1 MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70: A PARTICIPAÇÃO DAS UNIVERSIDADES E DOS MUNICÍPIOS MEMÓRIAS 1ª Edição Brasília, novembro 2007 CONASEMS Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde

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MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:... 1

MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO

NA DÉCADA DE 70:

A PARTICIPAÇÃO DAS UNIVERSIDADES

E DOS MUNICÍPIOS

MEMÓRIAS

1ª Edição

Brasília, novembro 2007

CONASEMSConselho Nacional deSecretarias Municipais de Saúde

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MEMÓRIAS2

Copyright 2007 – 1ª Edição – Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS)

É permitida a reprodução total ou parcial dessa obra, desde que citada a fonte.

MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70: A PARTICIPAÇÃO DASUNIVERSIDADES E DOS MUNICÍPIOS - MEMÓRIAS

Tiragem: 10.000

Impressão: Athalaia Gráfica e Editora

Brasil. Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde

Distrito Federal/Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde – Brasília:Conasems,2007

92 p. ( MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70: A PARTICIPAÇÃODAS UNIVERSIDADES E DOS MUNICÍPIOS - MEMÓRIAS).

1. REFORMA SANITÁRIA 2. POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL 3. MUNICIPALIZAÇÃO

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Diretoria do CONASEMS

Helvécio Miranda Magalhães JúniorPresidente

José Sival Clemente da SilvaVice-Presidente

Luciano Von SaltielVice-Presidente

Aparecida Linhares PimentaDiretora Administrativa

Antônio Carlos de Oliveira JúniorDiretor Administrativo – Adjunto

Antônio Carlos Figueiredo NardiDiretor Financeiro

Mauro Guimarães JunqueiraDiretor Financeiro – Adjunto

Luiz Odorico Monteiro de AndradeDiretor Comunicação Social

Tereza de Jesus Campos NetaDiretor Comunicação Social – Adjunto

Raimundo Alves CostaDiretor de Descentralização e Regionalização

Maria Adriana MoreiraDiretor de Descentralização e Regionalização – Adjunto

Edvaldo Luiz GonçalvesDiretor de Relações Institucionais e Parlamentares

Marineze Araujo MeiraDiretor de Relações Institucionais e Parlamentares – Adjunto

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ORGANIZAÇÃO E PESQUISA

Carmen Lavras

Médica Sanitarista

Doutora em Saúde Coletiva

Pesquisadora Associada do NEPP/UNICAMP

Consultora do CONASEMS

Sonia Prieto

Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP

Vicente Contador

Doutor em História Econômica pela FFLCH - USP

Professor de História das Relações Internacionais FACAMP

REVISÃOSonia Prieto

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SUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................................ 7

Nota das organizadoras ........................................................................................... 9

Relação dos Entrevistados ...................................................................................... 11

Introdução

A conjuntura política nacional e o Movimento Municipalista na área daSaúde na década de 70 ............................................................................... 17

Capítulo 1

Saúde e Democracia: reflexão acadêmica e ação política - depoimentode Sérgio Arouca ........................................................................................... 43

Capítulo 2

As idéias e as práticas comunitárias na construção de serviços munici-pais de saúde na década de 70 .................................................................. 59

2.1. A experiência de Campinas ................................................................... 63

2.2. A experiência de Londrina ...................................................................... 73

2.3. A experiência de Niterói .......................................................................... 80

Considerações Finais .............................................................................................. 89

Lista de Siglas .......................................................................................................... 91

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APRESENTAÇÃO

A municipalização, enquanto estratégia de construção no Brasil do SistemaÚnico de Saúde – SUS – orientado pelos princípios de universalidade, eqüidade eintegralidade, e pelas diretrizes de descentralização, regionalização, hierarquizaçãoe controle social, consolidou-se amplamente no País durante as últimas décadas.Solução consensual entre os diferentes atores sociais comprometidos com o setorsaúde, a municipalização vem sendo entendida como opção estratégica para realizaros princípios essenciais que deram sustentação às mudanças do modelo de gestãoe de atenção à saúde em curso.

No amplo movimento de constituição do projeto de Reforma Sanitária Brasileiraque antecedeu em quase uma década o processo de elaboração e promulgação daConstituição de 1988 que instituiu o SUS, a contribuição de diversos movimentossociais, de universidades e de experiências desencadeadas na esfera municipal foidecisiva.

Nesse movimento, a capacidade de ação política de Sérgio Arouca foifundamental na construção de um novo caminho para o setor saúde no Brasil. Aomobilizar e integrar pessoas e instituições no debate sobre a determinação socialdo processo saúde-doença, Arouca favoreceu a formulação e a introdução, no campoda saúde, das bases conceituais e ideológicas que sustentam a concepção demedicina como prática social. Esse processo de questionamento crítico da Saúde,inaugurado nos anos 70, foi caracterizado por uma questão central defendida porArouca: a compreensão que a ação por dentro do setor saúde poderia engendrar ademocratização da sociedade brasileira. Assim, à constituição do pensamentomédico-social foram agregados conceitos básicos da luta pela transformação dasociedade, especialmente as noções de descentralização e de participação social,imprescindíveis ao processo de construção de políticas públicas.

Nessa perspectiva, os municípios de Campinas, Londrina e Niterói, dentreoutros municípios, organizaram seus respectivos sistemas de saúde e abriram novoscaminhos, polarizando a discussão sobre práticas comunitárias inovadoras na áreada saúde e, ao mesmo tempo, articulando uma rede de pessoas e instituiçõescomprometidas com o fortalecimento e o desenvolvimento do espaço municipal. Aexperiência desses municípios, na vanguarda do Movimento Municipalista, registra

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uma história de luta pela democratização do setor saúde conjugada ao processo deredemocratização do País. Naquela época, as ações municipais desenvolvidastiveram como eixo a implementação de projetos de medicina comunitária centradosno entendimento que a organização da saúde é uma atividade intersetorial, e implicaa participação da sociedade.

Com esta publicação, que reúne um conjunto de informações que permitemuma compreensão mais ampla da luta pela municipalização da saúde no períodoem questão, espera-se reafirmar a importância dessas experiências comunitáriasno campo da saúde. Momento pouco estudado da história do movimento municipalistano Brasil, a implantação de serviços locais de saúde efetuada por esses trêsmunicípios afigura-se como uma das raízes do Movimento pela Reforma Sanitáriano País e base do Movimento Municipalista.

O CONASEMS entende que revisitar esse período poderá contribuir parauma compreensão mais ampliada do processo de consolidação das concepçõesque deram sustentação ao Movimento pela Reforma Sanitária no Brasil. As questõesfundamentais que orientaram as ações desencadeadas nesses municípios naquelaépoca tomaram corpo na mobilização de diferentes grupos em torno dos interessescoletivos e em defesa de uma política de saúde pública e de qualidade. Asexperiências vivenciadas pelos municípios de Campinas, Londrina e Niteróicontribuíram para fortalecer um posicionamento político contrário ao projetoprivativista de saúde hegemônico na época, constituindo-se como um marco para oMovimento de Reforma Sanitária no Brasil.

Helvécio Miranda Magalhães JúniorPresidente do CONASEMS

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A reconstrução de parte da história do movimento pela reforma sanitáriabrasileira, incluindo o resgate das experiências de Campinas, Londrina e Niterói naárea da saúde na década de 70 levou à opção por apresentar uma Introdução1 aosdepoimentos colhidos, compreendendo a conjuntura sócio-política da época, deforma a situar as ações iniciais do movimento municipalista em seu contexto deemergência. O Capítulo 1 centra-se no depoimento de Sérgio Arouca referente aoscenários técnico e político que engendraram os vínculos entre as ciências sociaise a saúde na renovação do pensamento em saúde, bem como os desdobramentosdessa vinculação na prática médica. No Capítulo 2, mostra-se, a partir dareconstrução da história vivida pelos entrevistados, a posição de vanguarda queesses municípios ocuparam na organização de serviços de saúde de base municipalna década de 70.

As informações e depoimentos aqui apresentados foram colhidos no Encontropromovido pelo CONASEMS, que reuniu em Brasília, em 13/02/2003, o grupo deatores que fizeram parte desse momento histórico. O objetivo do Encontro, partedas comemorações dos 15 anos da entidade, foi resgatar a memória da luta dessesatores pela municipalização da saúde e pela redemocratização do País. Coordenadopor Carmen Lavras2, assessora do CONASEMS naquele momento, com o apoio deCristina Ruas e Vera Muniz, participaram desse evento os profissionais que iniciaramo processo de municipalização da saúde nesses municípios. Como no Encontro osprofissionais de Londrina não puderam comparecer, buscou-se posteriormente colhero depoimento de Márcio José de Almeida sobre a experiência desse município, oque aconteceu em 2007.

Os textos dos entrevistados, produtos da gravação do Encontro, receberamtratamento de transcrição textual, na qual foram processadas as adaptações

1 O texto introdutório desta publicação foi produzido por Vicente Contador.2 Participou, como aluna, dos projetos desenvolvidos pelo Laboratório de Educação Médica e Medicina Comunitária (LEMC) da UNICAMP.Médica Sanitarista, integrou a equipe da SMS de Campinas/SP na implantação do projeto de medicina comunitária na década de 70. FoiSecretaria Municipal de Saúde de Campinas (1994-1996).

NOTAS DAS ORGANIZADORAS

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necessárias à passagem do registro oral para o escrito. Respeitando-se o conteúdodas idéias emitidas pelos entrevistados, os depoimentos foram reorganizados soba forma de blocos temáticos. Essa opção justifica-se em função da necessidade deapresentar de forma mais didática os relatos, a fim de dar maior relevo à participaçãodos diferentes atores sociais gestores públicos, universidade, comunidades que, articulados, engendraram a transformação do setor saúde nesses municípios.

Carmen LavrasSonia Prieto

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ANTONIO SÉRGIO DA SILVA AROUCA

Médico sanitarista; Doutor em Saúde Pública;Professor de Medicina Preventiva e Social da FCMda UNICAMP; Pesquisador da FIOCRUZ (1975-1978); Fundador e Presidente do CEBES (1976);Consultor da OPAS em países latino-americanos(Nicarágua, Honduras, México, Colômbia, CostaRica e Cuba); Presidente da FIOCRUZ (1985-1989); Deputado Federal (em 1990 e em 1994);Secretário Municipal de Saúde do Rio de Janeiro(2001-2003); Secretário de Saúde do Estado doRio de Janeiro (1987-1989); Secretário de GestãoParticipativa do Ministério da Saúde (2003)

ANTÔNIO DA CRUZ GARCIA

Médico; Diretor de Saúde da Secretaria Municipalde Saúde de Campinas/SP (1977-1980);Secretário Municipal de Saúde de Campinas(1991-1992); Presidente do Conselho Municipalde Saúde de Campinas

RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS

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FRANCISCO MONTEIRO

Médico da Secretaria de Estado da Saúde doCeará; Médico da Secretaria Municipal deCampinas/SP nas décadas de 70 e 80;Funcionário da ANVISA; Representante daAssociação Médica do Ceará no ConselhoNacional de Saúde

GILSON CANTARINO O’DWYER

Médico; Especialista em Psiquiatria; SecretárioMunicipal de Saúde de Niterói/Rio de Janeiro(1989-1999); Presidente do COSEMS/Rio deJaneiro (1993-1995); Presidente do CONASEMS(1995-1998; Secretário de Saúde do Estado doRio de Janeiro (1999-2002); Presidente doCONASS (2003-2005)

HUGO COELHO BARBOSA TOMASSINI

Médico sanitarista; Professor do Departamentode Medicina Preventiva da FCM da UFF; SecretárioMunicipal de Saúde de Niterói (1997-1980);Integrante da equipe do Projeto Niterói

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MARINA SENA PESSOTO

Assistente Social; Coordenadora dos postosmédicos comunitários da SMS de Campinas nagestão de Sebastião de Moraes; Secretária dePlanejamento do Município de Itu (1983 - 1993);Assessora da SMS Campinas (1994-1996).

MÁRCIO JOSÉ DE ALMEIDA

Médico; Doutor em Saúde Pública; Professor daFCM da UEL; Secretário Municipal de Saúde deLondrina/PR (1977-1980)

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A conjuntura política nacional e oMovimento Municipalista na área da saúde

na década de 70

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A conjuntura política nacionale o Movimento Municipalista na área da saúde

na década de 70

Vicente Contador

Para melhor entendimento acerca da memória das experiências municipaispioneiras na organização de serviços de saúde na década de 70 reunidas nestevolume, afigura-se como necessária uma análise do contexto sócio-político eeconômico em que ocorreram essas experiências.

No contexto de repressão e de aumento da pobreza que marcou essa década,a luta pela democratização da saúde emerge no cenário da mobilização política dasociedade civil, compondo, junto com diversos atores sociais, a resistência aoautoritarismo do governo militar. Entre os fatores determinantes para odesencadeamento da abertura política que se iniciou naquela época, figuram aquelesque são tanto de caráter econômico, quanto de caráter político e social, os quaiscompreendem as diversas formas de movimentos de resistência pacífica à ditaduramilitar, oriundos dos setores democráticos e populares da sociedade civil nacional,entre os quais figura o chamado Movimento Municipalista para a Saúde.

O Governo Geisel (1974-1979)

O ex-presidente Ernesto Geisel, juntamente com seu chefe da Casa Civil, ogeneral Golbery do Couto e Silva, são comumente descritos por alguns analistasdo regime autoritário-militar pós-64 como os formuladores e condutores de um“projeto” de abertura política a partir de 1974. Tal forma de abordagem apregoa que

INTRODUÇÃO

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Geisel, contando apenas com a ajuda de Golbery, “acabou com a ditadura”,“desmantelou o regime”, mantendo “afastados os políticos, a imprensa e a opiniãopública”3. Nesse sentido, a transição brasileira deveu-se “menos às pressões civispor democracia que à intenção aberturista das Forças Armadas”, com o regimeautoritário-militar controlando e ordenando “o reingresso dos civis à esfera do poder”4.

Todavia, ao ser adotada essa interpretação, corre-se o risco de conformaçãocom a visão de que o abrandamento das medidas de exceção, o desmantelamentopaulatino dos órgãos de informação e repressão do regime, o enfrentamento comos oficiais denominados de linha dura que se opunham a essas medidas, e, enfim,a impossibilidade de ocorrer um novo fechamento político durante o governo Geisele o de seu sucessor, o general João Figueiredo, tudo isso teria dependidofundamentalmente da vontade e das ações unilaterais inseridas no projeto de aberturapolítica lenta, segura e gradual dos militares castelistas, que era a corrente militardentro das Forças Armadas a qual pertenciam Geisel, Golbery e Figueiredo, tidacomo “moderada”, ou seja, contrária à ditadura desde a fase inicial do regime efavorável à devolução do poder aos civis o quanto antes.

O regime, por ser então tido como “brando” quanto ao grau de repressãoutilizado contra os chamados inimigos internos, em comparação com os seuscongêneres na América Latina, desfrutaria de uma “legitimidade” para formular um“projeto” de abertura política e conduzi-lo a seu modo de forma bem sucedida,

3 Elio Gaspari, A Ditadura Envergonhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.354 Héctor Luis Saint-Pierre in Kalil Mathias, Distensão no Brasil: O Projeto Militar. Campinas: Papirus, 1995, pp. 15, 20-23.5 Ver Kalil Mathias, 1995, assim como as críticas que são feitas a sua argumentação de que a repressão empregada pelo regime autoritário-militarbrasileiro foi “baixa” e que ela “nem de longe alcançou o grau registrado em outros países, como a Argentina e Chile”. Os autores que a criticam,como é o nosso caso, assinalam que o equívovo dessa argumentação está no fato de que ela não situa corretamente no tempo a instauração dasditaduras militares nestes dois países e no Brasil, não levando em conta que o Brasil foi o primeiro país da América do Sul a implantar, na décadade 60, um regime autoritário-militar por meio de um golpe de Estado, vindo assim a servir como matriz ditatorial do exercício do poder controladopelos militares. Nunca é demais relembrar que a ditadura militar de direita no Brasil surgiu bem antes da ditadura boliviana, 1971, da chilena euruguaia, ambas instauradas em 1973, da peruana, 1975, e dos dois regimes autoritários-militares da Argentina, 1966 e 1976. Em decorrência,como diz Jacob Gorender em Combate nas Trevas (São Paulo: Editora Ática, 1998), no momento em que estss ditaduras congêneres do ConeSul surgiram, a ditadura brasileira já havia atingido o seu “ápice repressivo em 1971, quando passa ao extermínio físico sistemático dos militantesda esquerda [...], já com suas fileiras consideravelmente reduzidas”. Isso, segundo Gorender, fez com que os governos militares do Chile e daArgentina se aproveitassem da experiência brasileira, deflagrando “o máximo de atividade repressiva desde o início”, “o que explica, ao menosem parte sem dúvida, o número de mortos e desaparecidos bem menor no Brasil (em termos relativos e absolutos)”. Diante disso, toda e qualquerargumentação de que no Brasil houve baixa repressão é inválida e inconsistente se deparada com a contra-argumentação de Gorender de que“a ditadura brasileira não ficou atrás de suas similares em matéria de crueldade repressiva”, mas “bem pelo contrário, serviu-lhes de modelo epara elas exportou seu know-how” (Gorender, Idem). Essa contra-argumentação é certificada pelo documento secreto do Sistema de SegurançaInterna, SISSEGIN, que diz que “o Chile e o Uruguai adotaram em seus países um sistema semelhante ao nosso, adaptados às leis e àspeculiaridades existentes em cada um deles”. O mencionado “sistema semelhante ao nosso” se referia ao sistema CODI-DOI, “genuína criaçãobrasileira”, um “produto nacional de exportação” (Apud: Carlos Fico, Como eles agiam - Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e políciapolítica. Rio de Janeiro: Editora Record, 2001, pp.11, 135 e 147.

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evitando então chegar ao seu final por meio de um colapso5. O conceito aí implícitode projeto parte, pois, da visão de que a abertura política foi uma decisão que partiudos oficiais de alto escalão da corrente castelista-geiselista, o que contrasta com aidéia de “processo”, que, no entender do cientista político Bolívar Lamounier, implicariaconsiderar a abertura política brasileira como fruto, entre outras coisas, das “açõesdeliberadas de crítica e contestação empreendidas por grupos da sociedade civil”.

Na verdade, a abertura, constitui um processo sócio-político impulsionadopor vários movimentos de resistência encampados por diferentes sujeitos individuaise coletivos da sociedade civil brasileira, abarcando desde as camadas populares,os segmentos democráticos da classe média, tanto as de orientação liberal-democrática quanto as de esquerda, e até mesmo algumas frações da alta burguesiaindustrial nacional não mais satisfeitas com um modelo econômico desnacionalizantee dependente do capital industrial-financeiro estrangeiro, o qual, a partir de 1973,trazia à tona as suas graves deficiências estruturais. Não há como negar o impactocausado num dos pilares de sustentação social do regime com a atuação de algunssegmentos da alta e da pequena burguesia liberal que - a despeito de terem antesapoiado o Golpe de 64, como a OAB e outras entidades profissionais, a grandeimprensa, os magistrados, políticos de centro e o grosso do empresariado nacional,pouco depois da edição dos Atos Institucionais 2, 3 e 5, assim como da crise dasucessão presidencial deflagrada pela enfermidade e o impedimento do marechalCosta e Silva - começaram a questionar o fechamento político, a perseguição àoposição pacífica, as diversas formas de violência contra presos políticos, a grandeinterferência do Estado na economia, o aumento da centralização político-administrativa por parte do Governo Federal, a concentração do poder deliberativonas mãos de um grupo cada vez menor de tecnocratas civis e de oficiais da altacúpula do Exército que constituíam os centros de decisões políticas e econômicasfundamentais para o futuro do País.

Na esfera da política, a questão em torno não apenas da distensão do regimeautoritário-militar, mas também do retorno do Brasil ao regime democrático, já estavavisivelmente posta desde 1973 pela sociedade civil, quando o Movimento DemocráticoBrasileiro (MDB) lança as (anti)candidaturas de Ulysses Guimarães e Barbosa LimaSobrinho à Presidência e Vice-Presidência da República, com o slogan “navegar épreciso, viver não é preciso”. Esse fato adquire relevância histórica uma vez queacabou atraindo a atenção da opinião pública nacional, o que propiciou a alavancagemde uma ampla campanha pacífica pelo fim da opressão política e da censura àimprensa, diminuindo assim o clima de medo e a imobilização geral impostos peloregime de exceção.

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Nas eleições parlamentares de novembro de 1974, o MDB, diferentementedas eleições anteriores, obtém uma votação maciça a nível nacional, saindo-sevitorioso ao eleger 335 Deputados Estaduais, 160 Deputados Federais (tendo assimsua representação nessa casa aumentada em 96% em relação às eleições anteriores)e 16 senadores (de um total de 24 cadeiras que foram disputadas). Após essaderrota, a preocupação política de Geisel era tal que ele tratou de centralizar maisainda o poder no núcleo duro do Governo e de interferir ainda mais no processopolítico-eleitoral do País, vindo então a criar o Conselho de Desenvolvimento Político,integrado por ele próprio, pelo ministro da Justiça, Armando Falcão, e pelo chefe doGabinete Civil, Golbery do Couto e Silva, o qual teve sua órbita de ação políticaampliada. Daí resultariam a Lei Falcão, o Pacote de Abril e a determinação emefetivamente reprimir passeatas, comícios, pronunciamentos ou outrasmanifestações políticas de caráter oposicionista em praça pública, recintos privadosou até mesmo na tribuna do Congresso, não havendo, para tanto, da parte doGoverno, hesitação em empregar a peça discricionária mais bem acabada do regime:o AI-5.

São notórios os fatos que evidenciam que os militares no poder, incluindo acorrente castelista-geiselista, não pretendiam entregar, seja na década de 70 ou nade 80, o controle direto do poder do Estado nacional aos civis e, por conseguinte,restabelecer a democracia no País.

Vale destacar que, pouco antes das citadas eleições parlamentares de 1974,o presidente Geisel havia feito um discurso ameaçador “criticando a contundênciada campanha eleitoral da oposição”, a qual clamava pela volta do país à democraciae ao Estado de Direito, dizendo que:

“erram – e erram gravemente, porém – os que pensam poder apressar esseprocesso pelo jogo das pressões manipuladas sobre a opinião pública e, atravésdessa, contra o governo. Tais pressões servirão apenas para provocarcontrapressões de igual ou maior intensidade, invertendo-se o processo delenta, gradativa e segura distensão”6.

Em março de 1974 o mesmo general-presidente decide processar o deputadoFrancisco Pinto, do MDB da Bahia, pelo fato de ele ter feito um discurso contra apresença no Brasil do então presidente do Chile, o general Pinochet.

6 Bernardo Kucinski, O Fim da Ditadura Militar. São Paulo: Editora Contexto, 2001, p.29.

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Em agosto de 1975, Geisel faz um outro pronunciamento reiterando que ogoverno não abriria mão dos “poderes excepcionais de que dispõe”7. Ou seja, atéaquele momento ele descartava o fim do Ato Institucional no 5. Dois meses depois,cinco alunos do Instituto de Tecnologia da Aeronáutica (ITA), acusados de teremparticipado de uma reunião do Partido Comunista Brasileiro em São José dosCampos, foram levados ao DOI-CODI de São Paulo, onde permaneceram presosdepois de condenados pelo Superior Tribunal Militar. Os formandos de 1977 do ITA,em protesto à prisão de seus colegas, escolheram como seu paraninfo o físico daUSP, José Goldemberg, pai de Clóvis Goldemberg, um dos cinco estudantes presos.A direção do ITA, composta por oficiais partidários da ditadura militar, não aprovou aescolha e pressionou os alunos para que o trocassem pelo então presidente daRepública, o general Ernesto Geisel. Os alunos formandos não aceitaram, ficandoassim sem paraninfo, o que fez o ocorrido chegar ao conhecimento público.

No mês de maio de 1976, Geisel reiterava que não admitiria “contestações à‘Revolução’”, recorrendo então a métodos arbitrários de solução dos problemaspolíticos. Prova disso, foi que nos anos subseqüentes, diante de informações quepreviam o crescimento do partido da oposição consentida e a sua possível vitórianas eleições legislativas de 1978 (o que de fato acabaria ocorrendo, na medida emque o MDB acabou levando sobre o partido da situação, a Aliança RenovadoraNacional – ARENA – uma vantagem de 4,2 milhões de votos na contagem global),é o próprio presidente Geisel que, ironicamente, inverte o seu “projeto” de distensãopolítica, impingindo, primeiro, em junho de 1976, a Lei Falcão, que impunha severasrestrições à propaganda eleitoral no rádio e na TV.

Um ano depois, ao editar o Pacote de Abril, Geisel fecharia o Congresso por15 dias, a fim de que fosse promovida uma reforma política casuística em favor doGoverno. Além de fechar momentaneamente o Congresso, essa medida tomadapor Geisel também estabelecia o quorum de maioria simples, e não mais de doisterços do Congresso, para a aprovação de emendas constitucionais. Numa mesmaseqüência lógica, seriam estendidas as restrições da Lei Falcão sobre o uso dorádio e da TV a todas as eleições seguintes, além de tornar indireta a eleição de umterço dos senadores (os senadores “biônicos”), de fazer com que a duração domandato do presidente da República passasse de 5 para 6 anos, e de assegurar amanutenção das eleições indiretas para governador de Estado.

8 Phydia de Athayde. In Revista Carta Capital no 278 – 18/02/2004. Ver também Maria José de Rezende, A Ditadura Militar no Brasil: Repressãoe Pretensão de Legitimidade. Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2001, p.210.

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Convém notar, entretanto, que como as regras da Lei Falcão não se aplicavamao período não-eleitoral, o MDB organiza, em maio de 1977, um programa nacionalde rádio e TV, criticando o Governo e apresentando o seu programa partidário. Arepercussão foi ampla. Pesquisa do Jornal do Brasil indicava, na seqüência, que70% da população das grandes cidades haviam assistido ao programa, com 69%delas apoiando amplamente os pontos de vista do partido.

Em fevereiro de 1977, Geisel cassou os mandatos de dois vereadores doMDB de Porto Alegre por efeito dos discursos que proferiram na ocasião de suasposses. Em maio de 1977, os estudantes da Universidade de Brasília entram emgreve. O Governo, ao invés de dialogar com os estudantes, procurando estudarsuas reivindicações, põe a UnB em recesso por 30 dias, coloca uma força policialno campus e pune vários estudantes. Em junho de 1977, seria a vez dos deputadosfederais, Marcos Tito e Alencar Furtado, terem seus mandatos cassados depoisque este último, então líder do MDB na Câmara dos Deputados, fez umpronunciamento contra o Pacote de Abril, classificando-o como impróprio aos objetivosda distensão. Em outubro do mesmo ano, sob coordenação do coronel ErasmoDias, o aparato repressor do regime invade a Pontifícia Universidade Católica deSão Paulo, onde se realizava uma assembléia estudantil, seguindo assim as diretrizesvindas do Palácio do Planalto de execução de medidas efetivas de segurança quese fizessem necessárias nos casos de agitação de qualquer grupo social.

Como esse conjunto de medidas de exceção não bastava, de acordo com ojornalista Bernardo Kucinski, Geisel acabou tornando, em agosto de 1978, aindamais abrangente a Lei de Segurança Nacional ao baixar o Decreto-lei 1.632 quedefinia como crime contra a Segurança Nacional todas as greves em serviçospúblicos e em bancos, impondo “formas mais rápidas e severas de repressão jurídicaa elas”. Certamente, esse decreto foi motivado pela maior onda de greves em quasetodo o país desde a implantação da ditadura, desencadeada pelos metalúrgicos deSão Bernardo do Campo, mas acabou contagiando, de maio a julho, operários deoutras indústrias, portuários, motoristas de ônibus, trabalhadores rurais, bancários,professores, médicos e outros servidores públicos de diversas regiões do País. Omovimento influenciou as eleições que ocorreram em 1978 nos Conselhos Regionaisde Medicina, quando foram vencedoras as chapas mais combativas na luta pormelhores salários e condições de trabalho nos ambulatórios do Instituto Nacionalde Previdência Social (INPS), em especial de médicos residentes e plantonistasque tinham de arcar com “mais de 50% do volume de atenção médica ambulatorial”8.

8 Madel T. Luz, As Instituições Médicas no Brasil – Instituição e Estratégia de Hegemonia. Rio de Janeiro. Editora Graal, 1986 – capítulo IV:“Políticas de Saúde 1968-1974” – Nota de pé-de-página 6, p.152.

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Ao agir concretamente daquela maneira, ao mesmo tempo em que empregavauma retórica distensionista, Geisel demonstrava que o que ele visava de fato era, nomáximo, afrouxar os instrumentos discricionários do regime, a fim de, diante dascrescentes pressões da sociedade civil, assegurar a posição dos militares no núcleodo poder político nacional. Demonstrando alguma sensatez a fim de evitarem umaqueda por colapso, ele e seu grupo dirigente incorporariam, quando muito, algumasdisposições liberalizantes com o intuito de estabelecer um “regime político decompetição restrita e direitos limitados”9.

Não se pode ignorar que, ao lado dos fatores sócio-políticos, os fatores deordem econômica foram também de primeira grandeza na derrocada do regimeautoritário-militar. Aliás, o projeto oficial de abertura lenta, segura e limitada sóadquire visibilidade depois que o governo Geisel se dá conta de que o Brasil não erauma ilha de prosperidade, ilesa à crise econômico-financeira pela qual vinha passandoo sistema capitalista mundial desde inícios da década de 70. No terreno econômico,o sinal de alerta aparecera quando:

a) a taxa de crescimento do Brasil caiu de 14%, em 1973, para 8% em 1974e 5% em 1975;

b) o déficit na balança comercial tornou-se explícito, com as importaçõesatingindo o montante de 12,6 bilhões de dólares e as exportações ficandono patamar dos 8 bilhões de dólares em 1974, e, em 1975, 12,2 bilhões e8,7 bilhões de dólares respectivamente;

c) a taxa anual de inflação, que havia ficado na faixa de 19,75% entre 1970 e1973, atingiu o índice médio de 34,5% entre 1974 e 1975, chegando a48% no ano de 1976;

d) a dívida externa saltou de 9,5 bilhões de dólares em 1972, para 17,1bilhões de dólares em 197410.

9 Ver Rizzo de Oliveira, De Geisel a Collor: Forças Armadas, Transição e Democracia. Campinas: Papirus Editora, 1994: p.70 e “Conflitos Militarese Decisões Políticas sob a Presidência do General Geisel” - capítulo V do livro de Alain Rouquié, Os Partidos Militares no Brasil. Rio de Janeiro:Editora Record, 1980, p.139; Velasco e Cruz, “De Castelo a Figueiredo, uma visão histórica da ‘abertura’” in Isidoro Chereski e Jacques Chonchol,Crise e Transformação dos Regimes Autoritários. São Paulo: Ícone editora/Editora da UNICAMP, 1986 - Capítulo II, p. 139.10 Daí por diante, a dívida externa brasileira só cresceu, atingindo o índice de US$ 43,5 bilhões em 1978. E, de 1979 a 1985, a dívida passa de US$49,9bilhões para US$95,8 bilhões.Fontes: www.jubileubrasil.org.br/v01/azul/credores/origens/ - acessado em 25/01/07; Werner Baer, A Economia Brasileira. São Paulo: EditoraNobel, 2a edição, 2003. Demais dados: IBGE - 1987 in Delorme Prado e Sá Earp, “O ‘milagre’ brasileiro” - Capítulo 6 do livro de Jorge Ferreira& Lucília de Almeida Neves Delgado, O Brasil Republicano: O Tempo da Ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Riode Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2003.

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Era inevitável que esses índices negativos no terreno econômico se refletissemnos campos social e político. O próprio resultado das eleições parlamentares denovembro de 1974 comprova isso. Além do mais, deve-se assinalar que a palavradistensão passou de fato a fazer parte do vocabulário político do Governo em funçãodos reveses “inesperados” trazidos por aquelas eleições. Como chegou a admitirGolbery do Couto e Silva, o “organismo nacional” transformara-se numa “panela depressão”, pois as pressões contrárias ao regime autoritário-militar acumulavam-seaceleradamente, tornando-se “fortes e quase insuportáveis”, o que, segundo o próprioGolbery punha “em risco a resistência de todo o sistema”11. É por tal razão que otermo distensão significava, primordialmente, de acordo com as próprias palavrasdo presidente Geisel, “a atenuação, senão, a eliminação das tensões” de ordempolítica, que nem mesmo o sistema político bipartidário instituído e bastante reguladopelo regime autoritário-militar conseguia evitar. O próprio Geisel chegou a revelarque “[...] não havia projeto algum [...]”, mas apenas, como diz Teixeira da Silva, aconsciência da necessidade de imprimir algumas mudanças sem, no entanto,contrariar fortes interesses existentes no interior do sistema militar12.

Portanto, Geisel não tinha outra saída senão a de deslocar a base delegitimação do regime do terreno econômico (propiciado por um tempo pelos altosíndices de crescimento da economia nos anos do “milagre”) para o terreno dapropaganda política, acenando com o auto-declarado projeto de distensão oficial,que Golbery qualificara de estratégia política “superior e criativa”, voltada para evitar“interferências desastrosas e perturbadoras”, chamadas por Geisel de “formulas[políticas] ultrapassadas”, as quais poderiam levar a uma ruptura na ordemestabelecida13.

Seguramente, essas advertências de Geisel e Golbery estavam sendodirecionadas às forças democráticas da sociedade brasileira e não aos militarestaxados de linha-dura, como prezam algumas abordagens. Para confirmar essaasserção, basta atentarmos para o pretexto ao qual o quarto general-presidente doregime autoritário-militar recorria para que a abertura política fosse feita de forma

11 Golbery do Couto e Silva, Conjuntura Política Nacional, O Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1981,p.31.12 Francisco Carlos Teixeira da Silva, “Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985”. Capítulo 7 do livro deFerreira & Delgado, op. cit., p. 264.13 Golbery do Couto e Silva, op. cit., pp. 27-32. As frases que se referem ao presidente Geisel foram retiradas de seu discurso de 1o de agostode 1975, dirigido à Nação em cadeia de rádio e TV in “Brasil: Política e Governo”. Livro do Ano Barsa 1976. Rio de Janeiro/São Paulo: EncyclopediaBritannica Editores Ltda, 1977 – “Brasil - Saúde”, p.48.

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lenta, gradual e segura. Segundo Geisel, a abertura deveria ser feita de tal formapara que as práticas democráticas fossem aperfeiçoadas em termos “realistas”,isto é, para que elas fossem adequadas

“às características de nossa gente e ao estágio alcançado pela evolução sociale política do País, a salvo porém [advertia ele] de atentados, declarados ousolertes, por parte dos que, em nome da democracia liberal, só desejam, de fato,destruí-la ou, em proveito próprio, viciá-la”14.

É preciso salientar ainda que, de tempo em tempo, Geisel recorriapropositalmente à justificativa de que a “oposição” é que dificultava o seu projeto dedistensão política. Ele próprio disse textualmente que “[...] o que atrapalhava muitoera a oposição”, que, por ter sido “virulenta”, não estaria compreendendo o seu“objetivo”, a sua “intenção”. Geisel chegou até a culpar diretamente o líder do MDBna época, o deputado Ulysses Guimarães, dizendo que ele “foi o elemento quemais me prejudicou no problema da abertura”15.

Outro ponto que merece destaque nessas declarações de Geisel é que nelasestá implícita a visão de democracia dos altos oficiais de sua corrente militar, a qualreproduz a concepção abstrata de ‘democracia’ elaborada pela Escola Superior deGuerra, baluarte dos oficiais castelistas que planejaram e executaram o Golpe de1964. Tal concepção, que foi também expressa pelo marechal Odylio Denys, umdos partícipes do referido Golpe de Estado, é a de uma democracia peculiar etipicamente brasileira, adaptada, segundo ele, ao meio, ao homem, à conjunturabrasileira e em coerência com a nossa realidade, o que vale dizer, uma “democraciarestringida”, diferente das democracias plenas dos países mais desenvolvidos, quevinham e vêm praticando esse regime político há mais tempo16.

Segundo a cúpula do regime autoritário-militar, se tivesse que haverdemocracia aqui no Brasil, ela deveria ser peculiar, vale dizer, de forma nenhumaplena, por conta do meio, do homem e da realidade brasileira. Era uma concepçãoliberal de democracia que reforçava aquela recorrente opinião das tradicionais elitesdirigentes brasileiras de que o brasileiro comum não sabe votar, aliás muito bemreproduzida pelo último presidente do regime, João Baptista de Oliveira Figueiredo,

14 Ernesto Geisel, Discursos – Volume I, 1974. Assessoria de Imprensa e Relações Públicas da Presidência da República. Brasília: Departamentode Imprensa Nacional, 1975.15 Teixeira da Silva, op. cit., pp.256-68.16 Odylio Denys, Ciclo Revolucionário Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980.

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quando ele afirmara, no final de 1979, que “o eleitor brasileiro não tem o nível eleitoraldo eleitor americano, do eleitor francês”17, daí ele, o general-presidente, não acreditarna existência da democracia plena no Brasil.

As forças democráticas e populares da sociedade civil aceleram oprocesso de abertura política dos anos 70 e 80

A sociedade civil brasileira jamais esteve apática e nem impotente ante oregime autoritário-militar, uma vez que ela foi responsável pela geração de fatosdecisivos para o desenrolar da abertura política e da posterior evolução política doPaís para um regime democrático. Com efeito, vários fatos políticos e sociaisforam determinantes para o desencadeamento do processo de abertura política,para o fim da ditadura militar e para a posterior redemocratização do Brasil.

Em 1974, realiza-se em São Bernardo do Campo, SP, o congresso dostrabalhadores metalúrgicos daquela localidade, com a conseqüente divulgação daCarta de São Bernardo que exigia o direito de greve e preconizava a autonomia dosindicato dos metalúrgicos com relação à estrutura sindical vigente desde ainstauração do regime autoritário militar em abril de 1964.

Em 1975, é organizado um culto ecumênico em celebração ao sétimo dia damorte do jornalista Wladimir Herzog, que havia sido torturado até a morte nas celasdo II Exército em São Paulo. O culto reúne 8 mil pessoas na Catedral da Sé,transformando-se na primeira manifestação pública contra a ditadura militar após oAI-5 e num impulso à ampliação de alianças contrárias a ela.

Em 1976, na reunião anual da SBPC a comunidade acadêmica e osestudantes universitários pedem o retorno dos professores e pesquisadoresexpurgados pelo regime. Quase que simultaneamente, em sintonia com a AnistiaInternacional, há as pressões do MDB, da Organização dos Advogados do Brasil(OAB) e da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) sobre o Governono tocante aos prisioneiros políticos e aos “desaparecidos políticos”, o que acabaobrigando o ministro da Justiça a divulgar uma versão oficial a respeito do assunto.

O ano de 1978 é repleto de acontecimentos que se destacam pelos efeitosque acabariam influindo decisivamente no ocaso do regime autoritário-militar. Em

17 Apud: Oscar Pilagallo, O Brasil em Sobressalto. São Paulo: Publifolha, 2002, p.148.

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fevereiro, é criado, no Rio de Janeiro, o Comitê Brasileiro pela Anistia que, numencontro nacional, pedia por uma anistia “ampla, geral e irrestrita”. De maio a julhodo mesmo ano, iniciam-se as já mencionadas paralisações dos operáriosmetalúrgicos de São Bernardo do Campo, que acabaram desencadeando, repita-se, a maior onda de greves em quase todo o País desde a implantação do regimeautoritário-militar, colocando em xeque a política de controle dos sindicatos pormeio de diretores pelegos e a política de arrocho salarial ainda mantida por Geisel.Esse movimento grevista fez com que os empresários tivessem que restabelecer, acontragosto, negociações diretas com os trabalhadores depois de 14 anos de posturaintransigente.

Dado que um dos fundamentos do modelo econômico do regime autoritário-militar era a contínua depreciação do salário-mínimo, com o conseqüente arrochodos salários dos trabalhadores, há também, em agosto de 1978, o manifesto,anexado a 1,3 milhão de assinaturas, que o Movimento Custo de Vida, ligado àsComunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, entrega no Palácio do Planalto,reivindicando, entre outras coisas, um abono emergencial de 30% para todos ostrabalhadores e o congelamento dos preços de gêneros de primeira necessidade.

Não menos importantes foram as repetidas atuações da OAB (sob apresidência de Raymundo Faoro), a CNBB, a SBPC, o MDB e, agora com aparticipação da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que desde o mês de maioposicionam-se pública e explicitamente a favor do retorno do habeas-corpus, daanistia ampla e irrestrita, da reconstrução da UNE, de uma Assembléia Constituinte,e contra a censura, as prisões arbitrárias e as torturas, a doutrina de SegurançaNacional, o Pacote de Abril, as eleições indiretas para presidente, governadores deEstado, prefeitos de capitais e para uma parte dos senadores.

O Governo Figueiredo (1979-1985)

Dois fatos são marcantes no período que compreende o governo Figueiredo.O primeiro deles foi o fim do AI-5, em janeiro de 1979 e, o segundo, a sanção da leida anistia em agosto do mesmo ano. Com a aprovação dessa lei, importanteslíderes políticos exilados, como Darcy Ribeiro, Leonel Brizola, Luis Carlos Prestese Miguel Arraes, voltam ao Brasil com seus direitos políticos recuperados, podendo,destarte, participar, de uma forma ou de outra, da vida política do País.

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O Governo procuraria tirar proveito desse fato, uma vez que o MDB não paravade crescer desde 1974, passando o bipartidarismo a incomodar o regime militar, jáque os votos dados ao único partido de oposição consentida eram nitidamentecontra o regime autoritário-militar, adquirindo assim um caráter plebiscitário. OGoverno define, então, parâmetros para o retorno do pluripartidarismo, com o firmeintuito de criar rivalidades entre os líderes da oposição, dividindo-a. Ao instituir anova Lei Orgânica dos Partidos, o Governo extingue a Arena, partido em decadência,e o MDB, este no auge de seu prestígio político-eleitoral. Ficava igualmenteestabelecida uma série de exigências e artifícios legais para a organização denovos partidos de esquerda que tivessem apoio das camadas populares organizadase combativas, como foram os casos do PDT e do PT. No que tange ao MDB, porexemplo, para impedir que se firmasse uma aderência do eleitorado a esse partidode oposição em ascensão e com forte capilaridade, a referida Lei exige a mudançade nome das novas siglas, com a obrigatoriedade da inclusão da palavra partido. OMDB, porém, limita-se a adicionar tal palavra a seu nome prévio, tornando-se PMDBem 22 de novembro. Simultaneamente, o novo partido governista surgia como PartidoDemocrático Social (PDS).

Em outubro de 1980, todos os outros partidos já haviam atendido às exigênciaslegais para o registro provisório, aparecendo então no cenário político-partidárionacional o Partido dos Trabalhadores (PT), uma agremiação política que se formafora das instituições parlamentares e que tinha como líder um sindicalista, LuisInácio da Silva (o Lula), e não um político tradicional. O Partido Trabalhista Brasileiro(PTB) foi concedido pelo TSE à deputada federal conservadora, Ivete Vargas, sobrinhado ex-presidente Getúlio Vargas, seguindo uma estratégia do Governo em nãopermitir que essa tradicional sigla fosse obtida por um líder oposicionista carismáticoe popular, Leonel Brizola, na época a maior liderança do trabalhismo de esquerdano País, que teve então que criar seu próprio partido sob outra sigla: o PDT (PartidoDemocrático Trabalhista). O tradicional político mineiro, Tancredo Neves, lança oplano de ação política de um partido liberal, de centro, o Partido Popular (PP).Ambos os partidos comunistas (PCB e PC do B) continuariam, porém, na ilegalidadeaté 1985. No período pós-promulgação da Lei da Anistia, quando ainda vigia a ditaduramilitar, a linha de conduta da maioria dos membros de ambos os partidos comunistasera a de se unir aos partidos políticos democráticos de oposição legal à ditadura,com vistas a suprimi-la.

Durante todo o ano de 1980 ocorrem cinqüenta atentados terroristas, cujasresponsabilidades foram atribuídas unicamente à corrente militar de direita, chamadade linha dura, pelo motivo de os seus oficiais e suboficiais estarem diretamente

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ligados à operacionalidade dos órgãos de repressão do regime autoritário-militar.No entanto, no ano seguinte, depois de ocorrido o atentado no Riocentro, onde serealizou, no dia 30 de abril, um show musical para cerca de 20 mil pessoas emcelebração ao 1o de maio, o presidente João Baptista Figueiredo nada fez para queas investigações sobre o caso acabassem levando a um esclarecimento, permitindoassim que os membros do Destacamento de Operações de Informações (DOI) do IExército, que o executaram, fossem inocentados. Essa postura de Figueiredo indicaque a hierarquia do regime estava organicamente atrelada aos oficiais e suboficiaisque realizavam o “trabalho sujo” junto aos aparelhos informais de repressão doregime, pois aqueles sustentavam a funcionalidade deste. Isso, é claro, deixou oGoverno mais vulnerável à indignação e às pressões da sociedade civil contra aimpunidade, o que desembocou numa forte crise no interior do próprio sistemamilitar, causando um racha na sua já abalada unidade.

Com esse cisma ocorrido no interior das Forças Armadas e da estrutura depoder do regime, as pressões da sociedade civil avançam no sentido de acelerar adistensão política, colocando na ordem do dia a atenuação e até mesmo a remoçãodas leis discricionárias do regime, bem como as reformas político-eleitorais decunho democratizante. O clamor da sociedade política pela extinção dos senadores“biônicos” e pelas eleições diretas para governador de Estado já em 1980, leva ogoverno Figueiredo a apresentar um projeto nessa direção. Esse projeto, não obstanteter sido aprovado no dia 15 de novembro do referido ano, só restabeleceria, porém,as eleições diretas para governadores em 1982, e a supressão dos senadores“biônicos” ocorreu só a partir de 1986. Ao mesmo tempo em que cedia para quehouvesse tais avanços, o governo conseguia aprovar no Congresso, em 9 de setembrode 1980, a lei que adiava as eleições municipais pré-estabelecidas pelo calendárioeleitoral para novembro daquele mesmo ano, bem como determinava a prorrogaçãodos mandatos dos então prefeitos e vereadores.

No governo do general Figueiredo, verifica-se novamente uma situaçãoeconômica desfavorável. Em 1981, a inflação atinge 95,2%, uma pequena quedadepois de uma trajetória ascendente de 1979 (77%) a 1980 (110%). Ademais, em1981, o PIB per capita chegou a 4,3% negativos em paralelo à elevação das taxasde juros, restrição do crédito, achatamento dos salários e aumento das taxas dedesemprego. Somado a isso tudo, a dívida externa brasileira tornava-se gigantesca,atingindo 100 milhões de dólares, o que acabaria deixando fragilizado o governo dogeneral João Batista Figueiredo.

Cumpre destacar ainda que, como resultado da volta da liberação dapropaganda eleitoral na TV em 1982, os partidos de oposição, juntos, obtém maioria

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na Câmara dos deputados, além de conquistarem os governos dos 10 estadosmais populosos e economicamente mais desenvolvidos. Cabe recordar, inclusive,que essas eleições de 1982 para governadores de Estado foram as primeiras diretasdesde 1965, e que elas ocorrem num cenário econômico totalmente desfavorávelao Governo, com os indicadores mostrando que a política monetarista ortodoxa emvigor estava aprofundando a recessão, indicando uma queda do PIB na ordem de6,3%, com um crescimento de apenas 0,8% no ano.

Conseqüentemente, no Estado de São Paulo, o senador peemedebista, AndréFranco Montoro, vence as eleições de 1982 para o governo, com 5,2 milhões devotos, quase a metade do eleitorado paulista. Na Assembléia Legislativa, o seupartido, o PMDB, ficou com a metade das cadeiras e, no tocante ao controle dasprefeituras do Estado, passou de 15 para mais de duzentas. No Rio de janeiro, coma vitória de Leonel Brizola, do PDT, desfez-se uma tentativa de fraude cometida pelaProconsult, empresa responsável pela apuração eletrônica que, junto com a RedeGlobo, dava vitória a Moreira Franco, candidato do PDS, ao passo que as pesquisasapontavam Brizola como franco favorito. Já em Minas Gerais, o vencedor foi TancredoNeves, do PMDB, com 54,8% dos votos.

Visto que o Partido Popular de Tancredo Neves tinha sido desfeito para seincorporar ao PMDB, e que este se saíra vitorioso nos estados mais importantes daFederação, com exceção do Rio de Janeiro, onde também quem venceu foi umpartido de oposição ao regime autoritário-militar, as eleições de 1982 restabeleceram,na essência, o caráter bipartidário e plebiscitário das disputas eleitorais que sedavam no referido regime.

Consoante ao avanço da oposição no Congresso, o Deputado do PMDB doMato Grosso, Dante de Oliveira, apresenta, em abril de 1983, proposta de emendaconstitucional visando tornar direta a eleição do sucessor do presidente Figueiredo.Em junho, o PMDB lança uma campanha pública a nível nacional por eleiçõesdiretas para presidente da República com a realização de um comício em Goiânia.Lideranças políticas de outros partidos de oposição começam a aderir. PMDB, PDTe PT formam uma frente partidária que busca mobilizar a população e atuar junto atodos os deputados e senadores para a obtenção do quorum de 2/3 nas duasCasas do Congresso Nacional. No início de 1984, a campanha pelas “Diretas Já”contava com o apoio de mais de 200 entidades da sociedade civil, incluindo agrande imprensa escrita e televisiva. Comícios gigantescos são realizados em váriascapitais de Estado, sendo o maior deles, na história do País, o de 16 de abril de1984, no vale do Anhangabaú em São Paulo, com a participação de mais de 1

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milhão de pessoas. Todavia, a “Emenda das Diretas” é derrubada pelo Congressono dia 25 do mesmo mês de abril e, nos meses subseqüentes, enquanto o grupo deUlisses Guimarães e o PT insistiam na manutenção da campanha pelas eleiçõesdiretas, outros grupos da oposição começaram a se articular nos bastidores, o quelevou a apresentação de Tancredo Neves como candidato a eleição indireta noColégio Eleitoral. Descartadas, então, as eleições diretas, Ulysses Guimarãesanuncia, em junho, a decisão do PMDB de “ir ao Colégio para destruir o Colégio”.

Um mês depois, o deputado Federal Paulo Maluf é escolhido o candidato doPDS para a presidência da República. Políticos dissidentes do partido, contrários aMaluf, formam a Frente Liberal, que inicia conversações com o PMDB para apoiarum candidato de oposição. Não tendo votos suficientes no Colégio Eleitoral paraeleger sozinho um candidato oposicionista, o PMDB é levado a formar uma coalizãocom a Frente Liberal, constituindo assim a Aliança Democrática. O candidato àpresidência dessa Aliança foi Tancredo Neves, e o vice foi o pedessista, José Sarney,que se filiou ao PMDB porque a legislação eleitoral em vigor obrigava que os candidatosa presidente e vice pertencessem ao mesmo partido. Dá-se início a uma campanhaeleitoral pública, de proporção nacional, em busca do apoio popular através decomícios e atos públicos.

Enquanto a campanha pelas Diretas Já tomava as ruas e as pautas donoticiário dos principais jornais do país, havia fortes indícios de que as cúpulas dogoverno Figueiredo, das Forças Armadas e do PDS agiam em conjunto com osórgãos de informação e de segurança do regime no sentido de tumultuarem eradicalizarem o debate político em curso, tentando associar o candidato oposicionistaà eleição indireta para a presidência da República no Colégio Eleitoral, TancredoNeves, com “organizações clandestinas”, ameaçando assim com um possívelrompimento das normas políticas então vigentes. Como informava o jornalista RuyLopes, havia “pessoal subalterno do Exército” e “cabos eleitorais do PDS” plantando“bandeiras vermelhas” e “propaganda eleitoral comunista” na convenção do PMDBque escolhera Tancredo Neves e, mais tarde, nos comícios deste18.

Quanto ao posicionamento dos cardeais do regime autoritário-militar frente aesses acontecimentos, o ex-presidente Ernesto Geisel se deixa fotografar, no Riode Janeiro, junto ao candidato oposicionista Tancredo Neves. Mas, ao mesmo tempo,uma das figuras mais importantes do “grupo palaciano” de Geisel, o secretário daPresidência da República durante o seu governo, o capitão Heitor Ferreira, entãoem sintonia com o general Golbery do Couto e Silva, defende aberta e fervorosamente

18 Filme: Muda Brasil de Oswaldo Caldeira. Rio de Janeiro, 1985, 0:59’.

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o candidato oficial, Paulo Maluf, o que demonstrava que o discurso e a atuaçãopolítica da hierarquia da corrente militar castelista-geiselista era uma ambivalência,para não dizer uma incógnita.

Em 25 de abril de 1984, dia da votação da emenda das Diretas Já no CongressoNacional, os parlamentares foram coagidos pelo governo a votar contra, em funçãodas medidas de emergência impostas em Brasília, como por exemplo, o envio detropas do Exército nas ruas e a proibição de ter a votação da tal emenda constitucionaltransmitida pelas estações de rádios e TVs do país.

As condições de saúde da população brasileira nas décadas de 70 e80 e as políticas dos governos militares para este setor

No período em tela, a atuação do Movimento Sanitário que se iniciava foiimportante não apenas para o processo político da abertura e da derrocada daditadura militar, mas para um processo muito mais amplo que foi o da democratizaçãopropriamente dita, o qual vai resultar na expansão efetiva dos direitos de cidadaniae dos serviços sociais do Estado para o conjunto da população brasileira com aConstituição de 1988.

Na área da Saúde, o quadro não era menos crítico para o regime autoritário-militar pós-64, pois que os seus indicadores também refletiam as mazelas de ummodelo econômico excludente e concentrador de rendas e de capital. Mas paraconhecermos melhor essa situação, é necessário que se faça uma breve retrospectivahistórica que nos remeta ao governo Médici (1969-1974), o que propiciará mostrar,ao mesmo tempo, a evolução da situação da saúde pública do país e as políticasde saúde dos governos militares.

No final de 1969, o Dr. Francisco de Paula Rocha Lagoa, um ex-aluno daEscola Superior de Guerra, assume o Ministério da Saúde no recém instaladogoverno Médici. Bem antes de assumir tal posto, pouco tempo depois do Golpe de1964, Rocha Lagoa havia sido nomeado diretor do Instituto Oswaldo Cruz - IOC, dobairro de Manguinhos, no Rio de Janeiro, quando afastou alguns pesquisadores decargos de chefia, além de cortar recursos e financiamentos de outros que eramacusados de conspiração comunista em seus laboratórios. Muitos dos cientistaseram, porém, indiciados simplesmente porque lutavam pela valorização da pesquisabásica e pela criação de um Ministério da Ciência – atitudes consideradas subversivas

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na época. À frente do Ministério da Saúde por 30 meses, Rocha Lagoa continuou aperseguir os pesquisadores do Instituto Osvaldo Cruz, desta vez fazendo uso do AI-5, que havia sido editado em 13 de dezembro de 1968. Daí a cassação de dezcientistas do Instituto, episódio que ficou conhecido como “massacre de Manguinhos”.O Governo aplicou também a esses pesquisadores e a outros cientistas cassados,o AI-10, editado em 19 de maio de 1969, impedindo dessa forma que essesprofissionais altamente qualificados pudessem vir a exercer atividades em qualquerinstituição pública de ensino/pesquisa e até mesmo nas particulares que tivessemfinanciamento do governo.

Em agosto de 1972 ocorre a mudança do Ministério da Saúde para Brasília.Rocha Lagoa foi substituído pelo Dr. Mário Machado de Lemos, Secretário de Saúdedo Estado de São Paulo, cujo programa, tipicamente sanistarista-campanhista,privilegiaria o combate às doenças infecciosas e parasitárias, a melhoria daprodutividade dos estabelecimentos hospitalares e a definição de uma políticanacional de alimentação. Essa última meta acabou levando o governo a criar umaautarquia vinculada ao Ministério da Saúde: o Instituto Nacional de Alimentação eNutrição (INAN), uma vez que, mesmo nas regiões ricas do país, notava-se umdeficit nutricional na população de baixa renda. Em 1971/72, o próprio Ministério daSaúde fizera uma pesquisa em todo o país que revelou que 76% da população sealimentavam, basicamente, de arroz, feijão e farinha de milho ou de mandioca. Emdecorrência, as ações práticas do INAN objetivavam prover assistência alimentarprioritariamente à população escolar de estabelecimentos oficiais de ensino de 1o

grau, gestantes, lactentes e para crianças de até seis anos de idade. No entanto,tal programa ficaria limitado pelos problemas referentes aos baixos níveis de rendae de condições sanitárias de mais de 50 milhões de brasileiros.

Ao associar desenvolvimento à saúde, Machado de Lemos postulava umapolítica médico-sanitária agressiva, sem, no entanto, enfrentar de forma determinadaos problemas de saúde: basicamente as carências da população brasileira, oriundasda extrema pobreza e da falta de saneamento de água e esgostos, uma vez quepara esses problemas o Governo não dava a devida atenção. Seguindo uma políticade atenção médica mais ligada a uma lógica privatista e curativista, com o poderpúblico repassando os correspondentes serviços e honorários aos consultóriosmédicos, laboratórios e hospitais privados, o segundo ministro da Saúde do governoMédici decide destinar Cr$ 26 milhões para o combate à tuberculose, doença queainda figurava entre as de maior incidência no Brasil com cerca de 600 mil doentesativos e 40 milhões de infectados, sendo que somente 150 mil estavam registrados

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nas diversas unidades de tratamento, excluindo-se os do INPS. Isso significava que70% dos que sofriam de tuberculose no Brasil não estavam sendo tratados, fossepor falta de esclarecimento ou por falta de atendimento. Também resulta da referidapolítica médico-sanitária do ministro Machado de Lemos a decisão de se fabricaraqui no país, além da vacina BCG, a vacina Sabin, na medida em que a paralisiainfantil aumentava sua área de incidência.

Todavia, entre todos os países americanos, o Brasil continuaria sendo umdos que menos investia em saúde, ficando à frente apenas do Equador e do Haiti.Conforme dados estatísticos fornecidos pela Organização Pan-Americana de Saúdeem Las Condiciones de Salud en las Américas, Washington, 1974, o montantedestinado pelo governo Médici à Saúde pública em 1972 perfazia 1,33 dólares porhabitante/ano.

Na edição de 4 de setembro de 1974, a revista Veja publica o montante dosgastos dos governos militares do Brasil na área da saúde, abrangendo os anos de1964, 1968, 1970 e 1974, donde se extraiu a seguinte tabela:

Histórico do orçamento da saúde no Brasil (1964-1974)

anos Cr$ Absolutos(milhões) % do orçamento da União

1964 77 3,65

1968 300 2,21

1970 316 1,60

1974 581 0,90

Fonte: G. Galache & M. André, Brasil: Processo e Integração – Estudos dos Problemas Brasileiros.SP: Loyola, 1979, p.159.

Em 1973, o Estado provia serviços de atenção médica a cerca de 60% dapopulação previdenciária urbana através do INPS e a medicina suplementar atendiaapenas 5% da população brasileira, abrangendo os funcionários de grandesempresas privadas nacionais e estrangeiras que firmavam convênios particulares.O problema era que se permitia àquelas grandes empresas industriais, financeirase comerciais pagar apenas 3%, e não 8% como eram de praxe, do valor dos saláriosde seus empregados ao INPS, ficando as firmas prestadoras de assistência privada

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de saúde com os restantes 5%19. Ocorre, porém, que no caso de doenças cujotratamento fosse demorado ou que as cirurgias fossem complicadas e caras, bemcomo nos casos de aposentadoria por invalidez e de auxílio doença, na maioria dasvezes decorrentes de acidentes de trabalho, estas continuariam sendo deresponsabilidade do INPS20.

Em 1978, esse instituto governamental calculava que cerca de 80% dapopulação previdenciária urbana seria por ele atendida. Mas, no cômputo geral, até1980, 40 milhões de brasileiros continuariam não dispondo de qualquer serviço desaúde por falta de médicos e de leitos hospitalares. E mesmo os segurados doINPS eram pouco mais do que 25 milhões diante de uma população economicamenteativa de 32 milhões21. Segundo padrões recomendados pela Organização Mundialde Saúde (OMS) nos anos 60, a proporção de médicos/habitantes num país deveriaser de um para mil e a média de leitos hospitalares/habitantes deveria ser de 5 paracada mil. No entanto, na primeira metade da década de 70, o Brasil dispunha de ummédico para um número aproximado de dois mil habitantes e uma média de 3,5leitos por mil.

Na 25a Reunião Anual da SBPC, realizada em julho de 1973 no Rio de Janeiro,após estudos apresentados em mesa-redonda acerca do “Crescimento da PopulaçãoBrasileira”, constatava-se que, de 1963 a 1973, a mortalidade infantil no Brasil vinhaaumentando, sendo algumas de suas causas principais a desnutrição, as doençasinfecciosas (como a diarréia, o sarampo e a varíola, por exemplo), as parasitoses ecomplicações do parto. Em fevereiro de 1974, o Ministério da Saúde revelava que ataxa média de mortalidade na faixa de 0 a 4 anos em todo o país era de 33,78% pormil habitantes. Em números absolutos, estimava-se que, em 1974, a quantidade decrianças de até 1 ano mortas no Brasil era de 105 por mil nascidas. Os Estadosque então apresentavam maior taxa de mortalidade de crianças até 4 anos eramCeará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas. Os Estados que tinham as taxasmais baixas eram Rio de Janeiro e Guanabara, ambos com 23,06%22.

Findo o governo Médici, o presidente Geisel coloca à frente do Ministério daSaúde o Dr. Paulo de Almeida Machado, o qual estabelece como prioritário o combate

19 G. Galache & M. André, op. cit., p.187.20 Idem, pp.177-188. Segundo os autores da referida obra, de 1970 a 1975, morreram em acidente de trabalho 329.337 homens, equivalente naépoca à população da cidade de Santos, SP.21 Hélio Silva, O Governo Geisel: 1975-1978. São Paulo: Grupo de Comunicação Três/Edições Isto é. Coleção “História da República Brasileira”,1998,p.19022 Os dados presentes tanto neste parágrafo quanto nos outros dois que o antecedem estão baseados no Livro do Ano Barsa – 1974 e 1975 quantona obra de Hilário Torloni, Estudo de Problemas Brasileiros. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1979 – capítulo 8 – 12a edição.

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às epidemias. Em reação a um aumento de 90% na incidência da meningitemeningocócica no mês de julho de 1974 (790 casos), comparado a julho de 1973(450 casos), é instituída, no final do mesmo mês, a Comissão Nacional de Controleda Meningite Meningocócica. Só em São Paulo – onde já havia sido detectado umsurto a partir de junho de 1972 - ocorreram 55 mortes por dia no referido mês dejulho. Mas a vacinação em massa contra essa doença contagiosa só veio a serpraticada depois de sua inclusão no Programa Nacional de Imunização do Ministérioda Saúde a partir de 1979, um ano depois da Fundação Oswaldo Cruz ter começadoa produzir a vacina.

Como a questão da Saúde ia adquirindo uma importância política cada vezmaior, em decorrência do crescimento industrial e urbano acelerado que vinha sedando no Brasil desde a segunda metade da década de 50, o terceiro governo doregime autoritário-militar procura então dar uma resposta à piora nas condiçõessanitárias do País, bem como à falta de políticas de saúde preventiva e de serviçosde atenção médica à população. O terceiro governo do regime autoritário-militarcria, em novembro de 1976, três secretarias nacionais: a de Vigilância Sanitária, ade Ações Básicas de Saúde e a de Ações Especiais de Saúde. Através do Grupode Avaliação de Projetos e Pesquisas (GAPP), o Ministério da Saúde financia váriosprojetos de pesquisa em saúde pública.

Essas medidas eram resultantes das pressões e ações concretas de váriossetores da sociedade civil. Em diversos locais, especialmente nos Departamentosde Medicina Preventiva de algumas Universidades, foi possível promover discussõese estabelecer propostas de mudanças nos serviços de saúde e na organizaçãosanitária do País numa perspectiva crítica e abrangente em termos do saber médico,uma vez que, essas discussões estabeleciam a correspondência das condiçõesde saúde da população com as suas condições sócio-econômicas mais gerais,ouvindo e mobilizando as comunidades.

Segundo Fleury Teixeira & Mendonça, aqueles profissionais da Saúdecompunham o chamado Movimento Sanitário, aproveitando-se das brechas abertaspela nova ordenação institucional da área da Saúde. Com a criação do Ministério daPrevidência e Assistência Social (MPAS), em 1974, profissionais da saúde passama atuar “de forma localizada e marginal”23, aplicando na prática as propostas contidasno modelo de Saúde Coletiva em busca da democratização da saúde, através de

23 Sonia Fleury Teixeira & Maria Helena Mendonça, “Reformas Sanitárias na Itália e no Brasil: Comparações”. In Reforma sanitária: Em buscade uma teoria. Sonia Fleury Teixeira (org.). São Paulo: Cortez Editora, 1989.

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ações concretas dos poderes públicos e da participação de sindicatos detrabalhadores, bem como das comunidades de bairro, como se viu, em particular,nos programas desenvolvidos pelas Secretarias de Saúde dos municípios deCampinas, Niterói e Londrina na segunda metade da década de 70.

Em 1977 foi criada a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, vindo a Leide Vigilância Sanitária a entrar em vigor em 1978. A partir de junho do mesmo ano,tornou-se obrigatória no país a vacinação de crianças até 1 ano de idade contra otétano, coqueluche, difteria, poliomielite, sarampo, varíola e tuberculose. Em agostoé aprovado no Congresso o projeto governamental que reformula o INPS, determinandoque o Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS)passasse a se constituir numa unidade estanque da administração dasaposentadorias e pensões, ficando exclusivamente responsável pela assistênciamédica aos trabalhadores.

Em discurso proferido no final de 1977, em São Paulo, o presidente Geiseldiz que os índices de mortalidade infantil no país estavam decrescendo, indicandoentão 94 mortes por mil nascidos vivos em 1973, 80 por mil em 1976 e 54 por milaté outubro de 1977. Contudo, Geisel estaria provavelmente apresentando indicadoresreferentes somente à cidade de São Paulo e generalizando-os para todo o país,uma vez que, dados de 1980 do IBGE, mostram que em São Paulo a relação era de53,9 crianças mortas por mil nascidas vivas, mas que no Recife era de 83,6/mil n.v.e em Manaus de 77,2/mil n.v.. No conjunto do país, a taxa de mortalidade infantilem 1980 havia sido de 65,8% por mil nascidos vivos24.

Enquanto na cidade de São Paulo, em 1980, o índice de mortalidade infantilera de 48,4/mil n.v., nos EUA o índice era de 10,5, na Suécia 6,4 e no Japão 5,5, sópara citarmos alguns países desenvolvidos à guisa de comparação25 (COHN, Idem:38). Ademais, com dados disponíveis até 1978, as verminoses ainda infestavamcerca de 50 milhões de brasileiros, a doença de Chagas em torno de 8 milhões, aesquistossomose por volta de 12 milhões e a hanseníase 1 milhão.

No último governo do ciclo militar, o do general-presidente João Baptista deOliveira Figueiredo, ocorreu um fato na área da saúde que chamou a atenção dascomunidades científicas nacional e internacional. Por não concordar com asestatísticas oficiais a respeito do número de casos de poliomielite no Brasil, em

24 Fonte: IBGE – Tabulações Avançadas do Censo Demográfico/Brasil – 1980; Ministério da Saúde – Estatísticas de Mortalidade/Brasil-1980. n.v.= nascidos vivos. In Amélia Cohn, A Saúde na Previdência Social e na Seguridade Social: Antigos estigmas e novos desafios. pp.35-6.25Amélia Cohn, Idem, p.38.

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1980 o cientista norte-americano, Dr. Albert Sabin, que vinha trabalhando comoassessor especial do Ministério da Saúde na gestão do presidente Figueiredo,demitiu-se do cargo. Em carta aberta ao presidente da República, Sabin suspeitavaque houvesse pelo menos dez vezes mais casos de pólio no Brasil do que indicavamos relatórios do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Ainda segundo Sabin,de cada 100 crianças que contraíam a doença no Brasil daquela época, 15 a 20morriam, enquanto que nos EUA, a taxa de mortalidade era de 5%. Dados de 1980,apresentados pelo Dr Hélio Aguinaga no VII Congresso Brasileiro de ReproduçãoHumana, no Rio de Janeiro, mostravam que 63% da população brasileira sofriam dedesnutrição e que os índices de mortalidade infantil giravam em torno de 49%26.

Para agravar a situação calamitosa dos serviços de atenção médicaprevidenciária, no primeiro semestre de 1981 os médicos do serviço público doEstado do Rio de Janeiro fazem quatro paralizações por conta do que denominavam“contínua ‘proletarização’ da classe”. Depois de realizarem passeatas nas ruas dacapital fluminense em busca do apoio da população, o Sindicato dos Médicos sofreintervenção do Governo Federal e tem decretada a prisão de seu diretor-presidente,Dr Roberto Chabo. Entretanto, em julho, a intervenção é suspensa, a diretoria dosindicato é reconduzida aos seus cargos e, no final, a categoria conquista umaumento salarial.

Os dados estatísticos, aqui apresentados, mostram que os governos do regimeautoritário-militar não tinham planos adequados para elevar os níveis de saúde emelhorar o estado sanitário da população brasileira, deixando o Brasil, nessa área,nas últimas posições no mundo e na América Latina conforme inúmeros gráficosproduzidos pela Organización Panamericana de la Salud, pelo IBGE e pelo StatisticalYearbook for Latin America da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL)das Nações Unidas.

Isso, evidentemente, acabou provocando, numa determinada fase do regimeautoritário-militar, pressões que demandavam mais atenção para essa questão social,tanto por parte da população previdenciária quanto por parte dos profissionaisdiretamente ligados à prestação de serviços de saúde no âmbito público.

Entre as diversas forças sociais de resistência à ditadura militar estava umgrupo de pessoas com formação universitária, a maioria na área das CiênciasMédicas e Biológicas, as quais, numa aproximação com as Ciências Sociais,

26 Livro do Ano Barsa 1981. Rio de Janeiro/São Paulo: Encyclopedia Britannica Editores Ltda, “Brasil – Saúde”.

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passaram a compor, em meados da década de 70, os Departamentos de MedicinaPreventiva e Social de algumas universidades brasileiras. Embora as universidadesestivessem vivendo uma experiência de repressão ainda em meados dos anos 70,esses Departamentos constituíram-se num espaço de discussão da Saúde Públicaestreitamente interligado com a questão social.

Os departamentos de Medicina Preventiva da UNICAMP, USP, UFF e UEL,entre outros, através da discussão sobre saúde pública e dos trabalhos de camporealizados nos projetos de Medicina Comunitária de suas respectivas cidades,ocuparam, de acordo com Sérgio Arouca, os espaços da Saúde para fazer umaoposição silenciosa à ditadura militar, contribuindo assim para tornar realidade aabertura política e, depois, a redemocratização do País. Essas realizações sãomais uma forte evidência de que a abertura política e o posterior avanço do Brasilem direção à redemocratização foram processos que contaram com a expressivaparticipação de movimentos e organizações da sociedade civil brasileira.

Num cenário marcado pela crise previdenciária que se instalou no País nofinal da década de 70 e início dos anos 80, e pela presença de vários movimentosde democratização da sociedade brasileira, começa a se delinear um amplo projetode Saúde Pública. Esse projeto, que vai conformar o Movimento Brasileiro pelaReforma Sanitária, teve sua expressão máxima na realização da VIII ConferênciaNacional de Saúde em 1986. Divisor de águas na história da saúde no Brasil, nessaConferência foram delineados os princípios norteadores do que viria a ser o SUSproposto pela Constituição de 1988.

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Saúde e Democracia:reflexão acadêmica e ação política

Antonio Sérgio da Silva Arouca

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Saúde e Democracia:reflexão acadêmica e ação política

depoimento de Sérgio Arouca

O depoimento de Sérgio Arouca, aqui apresentado, resgata fatos epersonalidades de um momento histórico decisivo para a constituição das basesteóricas e conceituais das temáticas integrantes da luta nacional pela reformasanitária brasileira, que iria culminar na criação, em 1988, do Sistema Único deSaúde – SUS. Seu depoimento recupera a história da mobilização, na década de70, de uma rede de pessoas que, numa diversidade de campos e lugares, seaglutinaram na luta por mudanças na realidade política e sanitária do País.

Década marcada pela luta política contra o regime ditatorial, nos anos 70emergiu nos Departamentos de Medicina Preventiva de algumas universidadesbrasileiras um movimento crítico que se configurou como um exercício deconstituição, a partir de uma abordagem marxista, de um novo pensamento sobresaúde. Oriundo da movimentação desses espaços acadêmicos na direção de umestreitamento de relações entre academia, grupos organizados da sociedade civil eserviços de saúde, esse movimento afigurou-se, por meio da interação desses atoressociais, como um campo de luta de dupla feição: como espaço para a constituiçãode novas teorias no campo da saúde, e como lugar para a renovação de uma práticamédica democratizadora.

Segundo Arouca, o projeto político do movimento caracterizou-se por umeixo central: a saúde como campo de luta contra a ditadura:

“Uma questão que considero central é que, nós, como militantes do PartidoComunista Brasileiro, estávamos na clandestinidade e tínhamos como eixofundamental de atuação a luta contra a ditadura. Optamos por empreender umaluta contra o regime autoritário não na linha da chamada luta armada, mas numalinha de ação pacífica, democrática, somando todas as forças democráticas

CAPÍTULO 1

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existentes na época. Entendíamos que todos os espaços em que fosse possívelconsolidar forças democráticas na luta contra a ditadura deveriam ser ocupadospor nós, e que um dos papéis que a Universidade deveria ter e que podíamoster naquela época era estabelecer uma rede de pessoas, articulando democratasno Brasil inteiro, nos mais diferentes lugares, com o compromisso de pensar edesenvolver projetos de redemocratização do País.

Entendíamos que a saúde era um campo privilegiado da luta democrática,associado aos outros movimentos de democratização no Brasil. Foi uma lutaparticular de uma área, mas que tinha uma ampla dimensão. Contamos com ogrupo de Chico27, no Ceará, com o de Tomassini28 em Niterói, com o de Sebastião29

em Campinas, com o de Márcio30 em Londrina, e com vários outros grupos queacabávamos identificando no Brasil inteiro, de uma forma suprapartidária, emque o eixo era a questão dos democratas na luta contra a ditadura.”

De acordo com Arouca, o movimento se constituiu pela conjugação de doisciclos: o primeiro abarca o processo de construção, nos Departamentos de MedicinaPreventiva, das bases teóricas e técnicas que deram sustentação à renovação dosaber e das práticas médicas. O segundo ciclo refere-se à institucionalização dosprojetos de medicina comunitária desses departamentos nas prefeituras deCampinas, Londrina e Niterói, no processo de organização dos seus respectivossistemas de saúde. Em relação às ações empreendidas nesse primeiro ciclo,relembra Arouca:

“O ponto de partida do movimento é a resistência à ditadura, na linha da ocupaçãode espaços para promover a redemocratização do país. Esse é o eixo central domovimento todo. Um dos pólos fundamentais nesse movimento de resistência àditadura foram os Departamentos de Medicina Preventiva. Esses Departamentosdas Universidades eram os locais onde era possível, na época, ter algumadiscussão sobre a questão social e a questão da saúde pública. Essesdepartamentos se tornaram espaços de atração de segmentos da esquerdademocrata. Foram poucos departamentos empenhados nessa luta, mas algunsforam extremamente simbólicos nessa questão.

O Departamento de Medicina Preventiva da UNICAMP foi um desses espaços deluta, porque tinha recebido o Professor Miguel Ignácio Tobar como Chefe do

27 Francisco das Chagas Monteiro28 Hugo Coelho Barbosa Tomassini29 Sebastião de Moraes30 Márcio José de Almeida

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Departamento. Ele trouxe sua experiência de trabalho com comunidade naColômbia, na linha de ensino em comunidade, de saúde comunitária hoje,saúde da família uma experiência de ensino médico que, na segunda metadeda década dos anos 60, estava promovendo a introdução das Ciências Sociaisna saúde.

Um outro departamento importante dentro desse processo de reformulação daabordagem da saúde, foi o da USP, com a ida do Guilherme31 para o Departamentode Medicina Preventiva, que era um departamento extremamente conservador.Com a chegada de Guilherme, foi aberta também na USP a discussão voltadapara repensar a questão da Medicina Preventiva. O projeto de MedicinaComunitária desenvolvido pela USP no Butantã e o trabalho de Maria CecíliaDonnangelo32 repensando a contribuição das ciências sociais nesseDepartamento acabam construindo uma rede em São Paulo. Acho que foi umprimeiro movimento de agregação do movimento, muito interessante.”

A constituição de um novo campo disciplinar na área da saúde efetuada nosDepartamentos de Medicina Preventiva atravessou momentos de intensa discussãoe de muitas tensões, como relembra Arouca:

“As Ciências Sociais que começaram a ser introduzidas na fase inicial deimplantação dos Departamentos de Medicina Preventiva seguiam a vertente daMedicina Preventiva de feição norte-americana, que privilegiava a relação médico-paciente e os padrões de conduta médica, adotando uma visão antropológica epredominantemente funcionalista da área da saúde. Essa vertente discutia muitopouco a questão da determinação social dos sistemas de saúde, da estruturasocial e do processo saúde-doença. Poderíamos dizer, então, que eram ciênciassociais aplicadas à saúde, mas era uma abordagem oriunda de um campo dasciências sociais mais conservador, de direita.

O primeiro desafio dentro dos Departamentos de Medicina Preventiva foi começara ter outra visão da questão social na área da saúde, com a introdução dopensamento marxista. Começamos a discutir a questão das relações entre classessociais e saúde, da determinação social do processo saúde-doença, a utilizar ostrabalhos de Gentile33 sobre organização do sistema, os trabalhos do próprioMário Chagas sobre sistemas de saúde, indo buscar referências teóricas nos

31 Guilherme Rodrigues da Silva32 Maria Cecília Ferro Donnangelo33 Carlos Gentile de Melo

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Institutos de Filosofia e Ciências Humanas e de Ciências Econômicas dasUniversidades. Começamos, naquela época, uma grande discussão centradana leitura de O Capital, de Marx, o que abriu, nos Departamentos de MedicinaPreventiva mais comprometidos, uma nova vertente no debate sobre as ciênciassociais aplicadas à saúde. Isso produziu enormes mudanças, não só no ensinodas ciências sociais em saúde, mas mudanças que acabaram acontecendo navisão da epidemiologia clássica, ao incorporar nessa disciplina a visão dadeterminação social das doenças.

Esses estudos nos permitiram sair do enfoque centrado na relação médico-paciente, para discutir o trabalho em saúde e a organização de sistemas desaúde. Nessa nova abordagem, a visão do trabalho comunitário passou a sermuito impregnado pela concepção da esquerda de que a participação social,popular, a conscientização da população eram instrumentos privilegiados damedicina preventiva e, simultaneamente, instrumentos do trabalho deredemocratização do País.

Chegamos, por exemplo, no Departamento de Medicina Preventiva da UNICAMPa trabalhar com uma coisa que se chamava de primeiro e segundo discurso. Oprimeiro discurso era a análise da estrutura social e dos determinantes políticose sociais da questão da saúde, mas, depois, para que isso pudesse ser absorvidono campo da Universidade, esse discurso era revestido de uma análise técnicade sistemas de saúde, para que pudesse passar.

Em Campinas esse movimento por mudanças na saúde teve um forte peso, atéporque Campinas era um fato inédito no campo da ditadura. Enquanto a maiorparte das universidades estava sofrendo uma repressão muito grande, comperseguição e prisão de professores, como era o caso da UERJ no Rio de Janeiro,e de várias universidades em ouros estados do Brasil, Campinas funcionavacomo uma ilha, onde era possível ter Maria Conceição Tavares34 dando curso; oManoel Castells35 fazendo as discussões da questão urbana e do marxismo.Para lá foram pessoas que no Brasil inteiro não conseguiam fazer residência,trabalhar ou pessoas que estavam procurando esse caminho. Então, foram paraCampinas o David Capistrano36, o Eduardo Freese37 e Heloisa38, de Pernambuco,Chico Gordo39. Quer dizer, Campinas, por suas características de esquerda,

34 Maria da Conceição Tavares de Souza35 Manoel Castells, sociólogo espanhol, professor em Berkeley.36 David Capistrano da Costa Filho37 Eduardo M. Freese de Carvalho38 Heloísa Mendonça39 Francisco Eduardo de Campos

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acabou concentrando um grupo grande de pessoas com influência em outrosestados.

Muito marcante nas ações do movimento era o fato de que todos os Departamentosjá desenvolviam Projetos de Medicina Comunitária antes de esses projetoschegarem aos municípios. Isso aconteceu na UFF em Niterói ; na UNICAMP emPaulínia e em bairros de Campinas; na USP com o Projeto Butantã e na UEL emLondrina. O primeiro passo era o Departamento de Medicina Preventivarepensando a questão teórica da saúde, numa vertente dessa luta pelaredemocratização, estabelecendo projetos comunitários e quase criando umanova teoria da saúde.”

Além dos estudos e das discussões realizadas pelos docentes e alunos noâmbito interno dos Departamentos de Medicina Preventiva, a movimentação dessesdocentes dirigiu-se também para a construção de articulações interinstitucionais,com a adoção da estratégia da promoção de encontros de medicina preventiva,como relata Arouca:

“Um primeiro fato interessante, do ponto de vista da academia, dentro domovimento de repensar a área de saúde foi a criação dos Encontros de MedicinaPreventiva. Esses encontros começaram a ampliar o debate, a socializar asinformações, a trocar bibliografia. A bibliografia com que trabalhávamos eraconseguida a duras penas, com cópias mimeografadas ou com livros de váriosautores, como Michel Foucault e Luc Boltanski, que apareciam e eram distribuídosde mão a mão.”

Em São Paulo, o movimento do Departamento de Medicina Preventiva daUNICAMP começou a encontrar outros interlocutores institucionais. A esse respeito,relata Arouca:

“Existia ainda uma outra vertente do movimento que não vinha da vertente maisligada ao Partido Comunista. Era ligada à linha da esquerda católica e tambémestava fazendo o mesmo movimento de discussão da saúde que osDepartamentos de Medicina Preventiva faziam. Essa vertente constituiuDepartamentos de Medicina Preventiva na Santa Casa de São Paulo e na EscolaPaulista de Medicina, com núcleos que começaram também a desenvolver essareflexão.”

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MEMÓRIAS48

No âmbito dessa estratégia de ampliar a interlocução do movimento doDepartamento de Medicina Preventiva da UNICAMP com outros atores institucionais,Arouca destaca o estabelecimento da articulação com parceiros internacionais,especialmente a OPAS e a Fundação Kellogg, organismos que ajudaram a fortalecere ampliar a socialização do pensamento social na saúde que estava se constituindono Departamento:

“Creio que devemos chamar a atenção para dois pontos que foram importantespara fortalecer o movimento. O primeiro deles foi o papel da Organização Pan-Americana da Saúde - OPAS, que vinha atuando no fortalecimento do ensino dasciências sociais na área da saúde, por meio do trabalho de articulação de debatessobre o ensino médico que faziam Juan César Garcia, Miguel Marques e JoséRoberto Ferreira. Esse debate sobre as ciências sociais aplicadas à saúde estavacomeçando a acontecer, naquela época, na própria Organização Pan-Americana.Isso quer dizer que os primeiros seminários promovidos pela OPAS sobre ciênciassociais em saúde eram seminários que versavam sobre a relação médico-paciente, os padrões de comportamento, etc, o que provocou, principalmente noencontro do grupo do Juan César Garcia com docentes brasileiros, uma linha detensão muito grande. Nós, que pensávamos as ciências sociais na saúde numaperspectiva de esquerda e marxista, nos defrontávamos com o grupo daOrganização Pan-Americana. Mas acabamos encontrando um caminho comum,com Juan César Garcia fazendo na América Latina, o papel que fazíamos noBrasil. Ele identificava e articulava nos países da América Latina grupos de trabalhode Medicina Comunitária, de Ciências Sociais, de Epidemiologia. Isso foi feito noEquador, Chile, México e em vários lugares, com intercâmbio de bibliografia.Assim, o movimento que emergiu nos Departamentos de Medicina Preventiva noBrasil, além de promover um intercâmbio entre instituições brasileiras, ampliousuas articulações, passando a promover também um intercâmbio latino-americano de idéias e proposições, porque a América Latina toda, na verdade,estava passando pelo mesmo processo de ditadura e de luta pela democracia.

A outra vertente que veio a apoiar nosso movimento foi a Fundação Kellogg. Emque ela estava interessada? Ela não tinha essa visão de esquerda, da questão daluta pela democratização, mas trazia em seus programas de apoio a idéia de sepensar sistemas de saúde e reformas curriculares. Isso permitia conseguir apoiospara começar a criar laboratórios de educação em Medicina Comunitária, queteriam essa vertente das ciências sociais na saúde, pensando em mudanças noscurrículos das Faculdades de Medicina e, ao mesmo tempo, o trabalho emMedicina Comunitária.”

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As tensões vividas internamente no Departamento de Medicina Preventiva daUNICAMP, aliadas às perseguições políticas do regime ditatorial motivaram umacrise no Departamento que culminou com a saída de Arouca da UNICAMP. Ofragmento do depoimento dele transcrito abaixo refere-se a esse fato:

“Em 1975/76, tivemos que fazer uma migração forçada para o Rio de Janeiro, emfunção da crise instalada entre o Departamento e a Reitoria da UNICAMP.Havíamos feito um convênio com a Fundação Kellogg e, por meio desse convênio,criamos o Laboratório de Educação Médica e Medicina Comunitária, o LEMC.Começamos a fazer um trabalho com os alunos-monitores, na linha da medicinacomunitária, em vários municípios da região de Campinas. Através desseconvênio com a Kelloggs contratamos vários consultores internacionais, pessoasespecializadas em educação médica, em sistema de saúde, um chileno, umargentino. Só que esse grupo que chegou de fora, chegou com outroposicionamento político, diferente do nosso grupo dentro do Departamento deMedicina Preventiva, que não estava atuando com um projeto só técnico.Estávamos na luta pela democratização e num dos nossos documentos sobreMedicina Comunitária, nessa história de se ter duas versões, nós colocamos deuma forma explícita que estávamos fazendo a luta pela democracia, parademocratizar o Brasil, a luta contra a ditadura, etc. Esse documento cai nas mãosde um desses pesquisadores chilenos contratados através da Kellogg e ele levaao Zeferino40. Isso acontece num momento em que estávamos travando dentroda Universidade Estadual de Campinas um movimento junto com o Instituto deFilosofia e Ciências Humanas, para ampliar a democratização da Universidade.Eu estava na Direção do Departamento junto com o Pinotti41, batalhando parafazer a mudança do currículo nessa linha da Medicina Comunitária. O queacontece? O Zeferino, com esse documento e com esse enfrentamento que existia,resolveu fazer um corte geral. Então, pegou o cunhado dele, que era o Diretor deEstudos de Física, Marcelo Dami, e demitiu. Tirou o Pinotti da Diretoria daFaculdade de Medicina. Demitiu também o Diretor do Instituto de Filosofia eCiências Humanas, baixou um decreto determinando que eu só poderia trabalharno Centro de Saúde de Paulínia numa hora em que não tivesse nem médico,nem estudante, nem residente e pegou a minha tese [de doutoramento] queestava pronta e engavetou. Não me deixou defender. Com isso, o nosso grupointeiro não tinha mais o que fazer. Abriu-se então a perspectiva de irmos para aFundação Osvaldo Cruz, trabalhar como pesquisadores de um projeto da FINEP,

40 Zeferino Vaz, então Reitor da UNICAMP.41 José Aristodemo Pinotti

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MEMÓRIAS50

o PESES/PESPES. Na FIOCRUZ, a Escola Nacional de Saúde Pública, naquelaépoca, estava completamente esvaziada, tinha só doze ou treze pessoas queseguravam as atividades de ensino, pois o grupo da escola tinha sido destruído42.Tinha sobrado o Arlindo, o Eduardo Costa, um grupo de resistentes. E saímos empeso da Unicamp e fomos para a FIOCRUZ, o que permitiu nascer o PESES/PESPES. Ficou um grupo em Campinas que resistiu a duras penas.

Na minha saída de Campinas para ser protegido como funcionário, fuicontratado como funcionário internacional da OPAS, onde se reúne outrogrupo, o grupo da OPAS em Brasília, com Carlyle43. Com a criação doPPREPS44, que tinha uma linha de apoio a programas comunitários, aprogramas de treinamento de pessoal, consolidou-se esse grupo, comparticipação da Isabel Santos45, do Pellegrini46. Começamos naquela épocaa criar um movimento de aglutinação de pessoas, que se chamava projetoAndrômeda. Esse projeto buscava reunir pessoas comprometidas com avisão da saúde enquanto questão social, criando um espaço para pensar umprojeto de saúde que incorporasse a questão da democratização. A idéiaera pensar o que deveria acontecer com o sistema de saúde no Brasil.”

O segundo ciclo do movimento, definido por Arouca como a fase de inserçãoinstitucional, na esfera municipal, das proposições teóricas formuladas nosDepartamentos de Medicina Preventiva de universidades de São Paulo e do Rio deJaneiro, consistiu na participação de docentes desses departamentos na gestãoda saúde em algumas prefeituras. Propiciada pela eleição de prefeitos da oposição,eleitos pelo MDB em 1976, tal inserção se deu no âmbito da organização de serviçoslocais de saúde, como relembra Arouca em seu depoimento:

“O segundo ciclo da atuação dos docentes dos Departamentos de MedicinaPreventiva consiste na articulação da academia com o movimento deredemocratização, quando o MDB começa a ganhar prefeituras, abrindo umnovo espaço de luta que, para nós, era um espaço novo, porque vínhamos

42 O governo militar havia instaurado uma devassa na ENSP, com a perseguição política dos pesquisadores, demitindo vários docentes, que forampara o exílio. Esse episódio ficou conhecido como o “massacre de Manguinhos”.43 Carlyle Guerra de Macedo, pesquisador brasileiro, Diretor da OPAS.44 Em 1975, o Ministério da Saúde implanta, com o apoio da OPAS, o programa dessa Organização voltado para a formação de recursos humanospara a saúde, o Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde – PPREPS, com o objetivo de apoiar o desenvolvimento de recursoshumanos da saúde nos Estados da federação para atender às necessidades de pessoal geradas pelo Programa de Extensão de Cobertura.45 Enfermeira sanitarista responsável pela execução de projetos do PPREPS.46 Alberto Pellegrini Filho, docente da FMC da UNICAMP e do Instituto de Saúde Comunitária da UEL, integrante do PESES/PESPES daFIOCRUZ e coordenador de pesquisa da OPAS.

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trabalhando apenas em bairros. De repente, abrem-se poucos lugares importantesde luta [Campinas, Londrina e Niterói], abre-se um novo espaço teórico-práticoem que se começa a pensar o município todo. Eram prefeituras que,absolutamente, não tinham nada na área da saúde. O exemplo do Tomassini erafolclórico. Ele era o Secretário da Saúde de cemitérios, em Niterói.

Essas três prefeituras, apesar de serem só três prefeituras, tinham um potencialgrande para polarizar o pensamento crítico que estava disperso, seja nauniversidade, seja em outros espaços, e de apresentar coisas novas que estavamsendo feitas e que ninguém estava fazendo.

Então, o desafio era como começar a reconstruir o espaço municipal nessaarticulação com a experiência que foi acumulada em Medicina Comunitária e naperspectiva de um trabalho político de redemocratização. O nosso papel foimobilizar as prefeituras para começar a fazer os encontros municipais de saúde.Tínhamos a via da Universidade e, depois, a da Fundação Osvaldo Cruz paraisso.

Esse foi um momento marcante no movimento, o da integração do trabalho quevinha sendo desenvolvido nos Departamentos de Preventiva e o movimento deredemocratização que foi desembarcar nas secretarias municipais de saúdepelas vitórias do MDB nas eleições de 1976. Isso permitiu, então, o encontro entrea Universidade e os serviços de saúde, com a experiência de gestão da saúde noâmbito das prefeituras. Isso significou um outro salto qualitativo, cujo marco foi apromoção do encontro [de Secretarias Municipais de Saúde] de 1978.

Tive a oportunidade de participar desse encontro pela FIOCRUZ e de poderacompanhar o Projeto de Tomassini [na SMS de Niterói] e, mesmo tendo saído deCampinas, pude acompanhar o projeto do Sebastião Moraes [na SMS deCampinas] e o de Márcio [na SMS de Londrina]. Nós não conseguíamos chegarmuito perto do Estado, mas a perspectiva toda era abrirmos espaço de atuaçãono nível de pequenos municípios, para que eles conseguissem se transformarem efeito de demonstração. Funcionávamos um pouco como divulgadores doque o Tomassini, o Sebastião e o Márcio, e depois o pessoal de Montes Claros,estavam realizando em suas Secretarias. Mobilizávamos as pessoas para quefossem para lá. Promovíamos a divulgação dessas ações, escrevíamos sobre oque estavam fazendo e mostrávamos que havia um caminho. Um caminho queagora não era só acadêmico, também havia chegado aos serviços de saúde.”

A participação dos partidos políticos no movimento de municipalização quese iniciava através das experiências municipais que se deram na década de 70 pormeio do trabalho que se desenvolvia nessas prefeituras, e que se ampliou em funçãoda atuação de Arouca na FIOCRUZ, é relembrado por Arouca nos seguintes termos:

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“No encontro entre a academia e os serviços de saúde, o PCB, realmente, teveum papel fundamental. Apesar de clandestino, era um dos poucos partidosorganizados que existiam naquela época. A grande característica do movimentoé que, quando se começa a abrir espaço de atuação nos serviços públicos desaúde, essa atuação passa a ser suprapartidária. Essa marca foi muito forte. Se,de repente, o PCB estava brigando na União Nacional dos Estudantes com aAção Popular, quando chegávamos ao campo da saúde, essas brigas eramdissolvidas. Em vários outros lugares tinha-se enfrentamento partidário, mas nocampo da saúde, esses enfrentamentos não aconteciam. Tanto assim que omovimento agregava as mais diversas pessoas. O Sérgio Góes, na FINEP, quefoi uma pessoa central na realização do encontro entre a FINEP e o Ministério daSaúde, não tinha nada a ver com o PCB e nem com a esquerda católica. Era umapessoa de esquerda, independente, que passava por esta influência do MárioMagalhães, do Chico de Oliveira e depois vai desembarcar no PT. O DavidCapistrano era militante do PCB. O Seixas47, o Guedes48, o grupo do Mercadante49

vinham todos nessa linha da esquerda católica da AP. O interessante, acho quefoi o divisor na saúde, é que nesse campo não houve enfrentamentos de projetos,de projetos divergentes. Acabou criando certa unidade e marcando o que foi oPESES e depois o que foi a VIII Conferência, onde se desenvolveu o projeto doSUS, já na esfera desse campo suprapartidário”.

Outras vertentes do movimento de democratização da saúde são destacadaspor Arouca em seu depoimento, mostrando como a sociedade civil organizada semobilizou em torno de ideais comuns na luta pela reforma sanitária. Relembra Arouca:

“Você tem uma experiência de duas outras vertentes que não foram postas aqui:a vertente dos médicos residentes, organizada pela Associação Nacional dosMédicos Residentes, que é uma vertente interessante, com os encontrosnacionais, e a vertente constituída pelo pessoal do Movimento de RenovaçãoMédica, com o Mário Correia Lima, no Rio, depois com Roberto Chabo. Essasvertentes foram muito importantes em todo esse processo, por motivar umadiscussão maior e mais aprofundada também, que foi uma discussão muitoinstitucional da universidade. Além dessas duas vertentes, uma outra vertentesignificativa se forma por meio do trabalho das comunidades eclesiais de base,que não eram institucionais, inclusive eram anti-institucionais.

47 José Carlos Seixas48 José da Silva Guedes49 Otavio Mercadante

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Está faltando uma outra vertente também, muito interessante, que foi o movimentoque fizemos para realizar um encontro de saúde da Câmara50. Pela primeira vez,com o crescimento do MDB, foi possível a criação de uma base parlamentar naComissão de Saúde da Câmara, comprometida com a questão da democratizaçãoda saúde.

Na tese da Sarah51, ela coloca essas vertentes, mostrando como o movimentosanitário nasce no movimento da mobilização que agregou diversos grupos: opessoal da renovação sindical médica, o grupo dedicado ao desenvolvimento deprojetos comunitários, a frente parlamentar de saúde e os sanitaristas dosDepartamentos de Medicina Preventiva.”

O papel da FIOCRUZ na expansão da rede de pessoas e instituiçõescomprometidas com as teses do movimento iniciado nos Departamentos de MedicinaPreventiva foi extremamente significativo, desenvolvendo um trabalho de agregaçãode pessoas e instituições por meio do desenvolvimento de projetos na área demedicina social e da oferta de cursos de pós-graduação. Essa estratégia contribuiupara consolidar a confluência das diversas vertentes constitutivas do movimentosanitário que vinha se constituindo no País. Arouca, em seu depoimento, relataessa mobilização:

“Uma parte da esquerda católica tinha também um projeto de mudança e esteve,também, na origem desses trabalhos da FINEP, com Sergio Góes, em que váriosgrupos acabaram resultando na criação do PT.

Esse projeto da FINEP, aliás, foi um projeto que nasceu um pouco com a bênçãodesse campo da esquerda. Antes de eu ir coordenar esse projeto na FIOCRUZ,que se chamava PESES/PESPES, Programa de Estudos Sócio-Econômicos deSaúde, tivemos uma reunião com Mário Magalhães, com Francisco de Oliveira,com Fernando Henrique Cardoso, que eram pessoas que estavam no campo deluta democrática, para mostrar que existia aquele espaço e que era possível umaarticulação entre a FINEP e a Fundação Osvaldo Cruz, que começava a passarpor um processo de recuperação, com a ida de um economista que tinha ligaçõescom o PCB e que era ligado ao Seixas. Eles montaram um projeto de recuperaçãoda Fundação Osvaldo Cruz. Então, o PESPEP, que era um projeto de estudos de

50 Arouca refere-se ao trabalho de mobilização que culminou com a realização do I Simpósio sobre Política de Saúde, promovido pela Comissãode Saúde da Câmara dos Deputados em outubro de 1979. Esse Simpósio teve como tema central a discussão das políticas de descentralizaçãoe regionalização dos serviços e de desenvolvimento de recursos humanos para a saúde.

51 Pesquisadora da FIOCRUZ . Ver ESCOREL, Sarah. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. RJ: FIOCRUZ, 1998.

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epidemiologia e de estudos sócio-econômicos, permitiu criar essa abrangênciamaior do movimento no Brasil.

Criamos então esses projetos de pesquisa que, simultaneamente, eram tambémprojetos políticos. Nosso objetivo era continuar a articulação que os Departamentosde Medicina Preventiva haviam iniciado, não apenas só no nível de São Paulo eRio de Janeiro, mas agora nacionalmente, apoiando os departamentos quetivessem a perspectiva da esquerda democrática. Buscávamos identificar grupos,pessoas que estavam espalhados no Brasil, perdidos, sem contato e que estavavivendo experiências de medicina comunitária. Tínhamos um projeto dedivulgação de bibliografia. Tudo aquilo que era clandestino, reuníamos edistribuíamos para esses grupos que identificávamos, para que pudessem teracesso.

Acho que esse processo que estamos descrevendo um pouco, que aconteceu naépoca do Paulo de Almeida Machado no Ministério da Saúde, de você ter abertura,chegar um grupo de esquerda dentro do Ministério, no caso ligado à esquerdacatólica, teve, também, uma versão dentro do INAMPS. Se formos pensar umpouco sobre a geração que antecedeu a nossa, que era a do Gentile, do MárioMagalhães, do Mário Vitor de Assis Pacheco e, na Previdência, a do Murilo VilelaBastos, que tinha abertura para procurar a integração, para discutir a questão domunicípio, discutir que a Previdência tinha que integrar com o Ministério da Saúde,veremos que havia afinidades entre essas vertentes.

O Murilo era aberto a alianças, isso foi uma coisa interessante. Ao mesmo tempoem que havia um trabalho mais político-ideológico nos Departamentos deMedicina Preventiva, havia também esse tipo de trabalho acontecendo em váriosoutros lugares: como o trabalho solitário do Mário Magalhães, que levava ascríticas às últimas conseqüências, ele com a Nise da Silveira, mas a Nise comoutra cabeça; como o trabalho da Associação Médica do Estado do Rio de Janeiro,com o Mário Vitor52, que colocava a questão central de pensar a indústriafarmacêutica, seu controle e propaganda. Tinha-se lá toda uma luta, com o Murilocomo ponto de referência na discussão. Tanto assim que, no desenvolvimentodas experiências que começaram a fazer essa aproximação com o município,via Previdência, uma figura central, que discutia isso lá dentro, era o Murilo VilelaBastos. Acabou acontecendo na Previdência um pouco o que aconteceu na saúde,com o Aloísio Sales, quando ele foi presidente e monta um grupo de planejamentojunto a ele, que era um grupo de planejamento já nessa vertente de esquerda e,nesse caso, uma esquerda meio independente. O Guilherme Santos abre essavertente.

52 Mário Vítor de Assis Pacheco

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Acho que esse fato, de repente, de o Estado autoritário começar a abrir brechase fissuras e começar a ser ocupado por questões democratizantes, começa aacontecer não só no Ministério da Saúde. Aconteceu no INPS e em vários outroslugares. Alguns com mais força do que em outros.

O inédito no nosso trabalho é essa articulação que ninguém fez, aí ninguém fezmesmo. Não aconteceu na Educação, na Assistência Social, uma movimentaçãopara fazer a articulação entre a Universidade, o pensamento crítico, e a organizaçãode serviços, a montagem de um projeto alternativo novo. Tanto assim que, quandovem a redemocratização, e fomos para a Oitava e para a Constituinte, nãoestávamos inventando a roda. Era um processo que já tinha experiência teóricae prática acumulada na formação de pessoas, na elaboração de idéias, comteses e publicações, como a revista Saúde e Debate53. A coisa caminha para acriação do SUS de uma forma quase natural, porque estávamos discutindo durantea ditadura, não só a crítica à ditadura, mas o projeto de substituição da ditadura.Isso é que foi o novo, o que não aconteceu, por exemplo, na área da educação.

A discussão na área da educação só vai acontecer quando começa a discussãoda Lei de Diretrizes e Bases, quase dez anos depois de ter acontecido o SUS.”

Esse novo patamar da luta pela democratização da saúde se fortalece coma ocupação de espaços governamentais, especialmente no Ministério da Saúde,por um grupo de profissionais ligados ao movimento sanitário. Relembra Arouca:

“No Ministério da Saúde, um grupo de profissionais vinculados à Ação Popular daIgreja Católica, pela primeira vez, teve acesso ao Ministério, com Paulo de AlmeidaMachado e, como Secretário Geral do Ministério, o Seixas, o Yunes. Eles começama fazer, também no Ministério da Saúde, essa luta. Começam a proteger pessoasque eram perseguidas, criam canais junto ao OPAS para formas de contrataçãode pessoas, para não terem que passar ficha no SNI. Começa-se a receberpessoas do exterior, que vem para o exílio, como o Mário Hamilton54 e o Chorny55.Então, começa, no espaço do Ministério da Saúde, uma luta para encontrar espaçosinstitucionais para dar cobertura às pessoas perseguidas pelo SNI. Isso nãoacontece só no Ministério da Saúde; começa também a acontecer na FINEP eem vários lugares do aparelho estatal, que, naquele processo deredemocratização começa a abrir espaço para os integrantes da luta democrática,mesmo num período duro, que era o período Geisel da ditadura.

53 Publicação do CEBES54 Dalton Mario Hamilton55 Adolfo Horácio Chorny

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Nessa linha, foram criados na Fundação Osvaldo Cruz os projetos financiadospela FINEP. Acho importante essa coisa de ocupar espaços, de considerar que oEstado não era uma coisa monolítica e que você podia ocupar o espaço dentrodo aparelho do Estado, mesmo na ditadura, buscando construir a democracia edefinindo um eixo fundamental. Era uma divisão de água.”

Em seu depoimento, Arouca faz um retrospecto da evolução do movimentosanitário, desde sua fase inicial das experiências inovadoras dos Departamentosde Medicina Preventiva na recriação das práticas médicas, passando pelasmudanças processadas por meio da atuação dos profissionais ligados ao movimentoaté culminar no SUS. No relato desse processo de mudanças no setor saúde, acontribuição do movimento na construção do SUS é destacada por Arouca nosseguintes termos:

“Tivemos uma grande vitória, num primeiro momento, que talvez tenha sido atésurpreendente, porque o texto que fala da saúde na Constituição foi o único quenasceu de uma emenda popular, com mais de cem mil assinaturas no Brasilinteiro. Passou pelos movimentos da Pastoral, pelos movimentos dosDepartamentos de Medicina Preventiva, pelos partidos. Eu tive o privilégio deapresentar essa emenda popular na Constituinte.

O SUS nasceu, num primeiro movimento, da base social, ao criar essa estruturademocrática, ter conferência, conselho. Não existe nada parecido com o SUS naAmérica Latina.

O segundo movimento foi o de institucionalizar essa vitória, de ganhar a baselegal, de aprovar a legislação, que até agora ainda está sendo aprovada, de fazera vinculação constitucional, a municipalização. Descentralizar e normatizar adescentralização, implantar a Lei Orgânica, criar as NOBs. Enfim, foi um projetomuito intenso de institucionalização que, respeitando sua própria lógica, privilegioudeterminados aspectos, abandonou alguns tópicos da reforma sanitária e teveque se concentrar no eixo estratégico, que era o eixo da municipalização, porquese não municipalizasse, o SUS morreria. A base do SUS era ser vitorioso namunicipalização, tanto assim que criou uma base impressionante de novossujeitos na área da saúde pública.

Quantas secretarias municipais de saúde tínhamos antes do SUS? Depois doSUS, foram criados conselhos municipais de saúde em mais de quatro milmunicípios e as secretarias municipais incorporaram um número imenso detécnicos. Os encontros de epidemiologia antes do SUS reuniam, por exemplo,

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cinqüenta pessoas. Hoje, a ABRASCO reúne cinco mil, sete mil pessoas. Isso éfruto do processo da municipalização.

Ao ter que municipalizar, ao ter que criar a base legal, ao ter que normatizar, aoter que incorporar o INAMPS dentro disso, a dinâmica da reforma sanitária foiabandonada e, ao ser abandonada, a universidade de desgarrou. Ela perdeuessa dinâmica que tinha na relação com o SUS. Hoje, o pacto de uma universidadeno SUS é mínimo. Quanto à questão de mudança de currículo na área de saúdenão aconteceu nada, absolutamente nada. Participar atualmente de uma reuniãoda ABEM56 é como se participássemos da reunião da ABEM há trinta anos. É omesmo temário, é a mesma coisa. Não avançamos nada. Os temas mais éticosda reforma sanitária acabaram sendo abandonados durante esse período, comoa questão da humanização, por exemplo. Consolidamos o modelo invertido nomodelo assistencial, quer dizer, nós municipalizamos, porém não mudamos omodelo assistencial e continuamos baseados no hospital, baseados naemergência. Crescemos pouco ainda na perspectiva da qualificação da atençãobásica e primária. E não conseguimos formar os profissionais adequados paraesse novo desafio.

Penso ser esse o grande desafio que está sendo colocado agora. Diante de umgoverno de mudanças, como é o governo do Lula, o que avançamos no SUS equal é o novo ciclo que tem que ser feito? Quais são os temas que temos querecuperar e que foram abandonados nesse período da institucionalização?

Penso que esse documento57 que está sendo produzido pelo Conselho Nacionalde Saúde pode ser um ponto de partida importante. Mostra a maturidade doConselho ao desenvolver um trabalho de construção de um documento tãocrítico, num espaço complexo como é o Conselho, com empresários, comprodutores, com gestores municipais, estaduais, centrais de trabalhadores, atéchegar a um consenso. A identificação desses onze pontos críticos apontadosnesse documento mostra novos desafios. Por isso estamos discutindo aconvocação de uma conferência extraordinária, que não é para discutir apenastodos esses assuntos, mas sim, o que é fundamentalmente estratégico. Como éque vamos mudar o modelo assistencial?”

56 ABEM – Associação Brasileira de Educação Médica57 Conselho Nacional de Saúde. Diretrizes para a Política de Saúde do Brasil para o período de 2003 a 2007. Brasília: CNS, 2003.

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CAPÍTULO 2

As idéias e as práticas comunitárias na construção deServiços Municipais De Saúde na década de 70:a perspectiva democrática em três prefeituras

Como se pôde perceber por meio do depoimento de Arouca, as experiênciasde organização dos serviços municipais de saúde da década de 70 contribuírampara demonstrar as possibilidades da municipalização no processo de mudançasda realidade sanitária, fortalecendo as temáticas fundamentais que, nos anos 80,configuraram a luta do movimento sanitário no País.

A luta por mudanças no setor saúde nos municípios de Campinas, Londrinae Niterói emergiu em meados dos anos 70, num contexto político marcado por fortemobilização da sociedade civil, quando a crise do modelo econômico-social e políticodo Estado autoritário no Brasil já se fazia presente.

As histórias das lutas pela saúde nesses municípios revelam uma identidadefundamental, construída na articulação entre a mobilização de docentes e alunosdos Departamentos de Medicina Preventiva e Social da Universidade Estadual deCampinas – UNICAMP, da Universidade Federal Fluminense – UFF e da UniversidadeEstadual de Londrina – UEL pela renovação da prática médica e as demandas dosmovimentos populares por mudanças na saúde. Essa articulação nasceu dentro daperspectiva da luta contra o regime autoritário, aglutinando uma rede de pessoascomprometidas com transformações no setor saúde orientadas pela problematizaçãoda saúde como questão social, e pela implementação de mudanças no sistema desaúde vigente. Prevalecia o entendimento que o processo de construção de ummodelo descentralizado de atenção à saúde se constituiria também num instrumentode redemocratização do País. Relembra Arouca, referindo-se às experiências dessesmunicípios:

“... [Campinas, Londrina e Niterói] são as três únicas prefeituras, pelo menosidentificadas, que estavam naquele momento mobilizadas pela questão

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democrática. O trabalho em saúde era assim entendido como instrumento deredemocratização, na perspectiva de construir um modelo de saúde em que omunicípio seria o eixo. Na nossa luta pela questão da democratização, se aditadura centralizava, a nossa idéia era descentralizar como eixo democrático. Aluta era para abrirmos esse espaço no nível de pequenos municípios, para queeles conseguissem se transformar em efeito de demonstração.”

Tendo como eixo central a resistência à ditadura, a identidade das experiênciasda luta dos municípios de Campinas, Londrina e Niterói pela municipalização dosserviços de saúde foi também amalgamada em torno da interação com asUniversidades. As experiências docentes-assistenciais, que de formas diversascontribuíram para o surgimento dessas iniciativas municipais, foram pautadas porduas linhas de ação: 1) a reformulação da articulação entre ensino médico e serviçosde saúde, empreendendo a construção de um saber e de uma prática médicaorientada por um projeto social em saúde e 2) o fortalecimento da participação dacomunidade na integração entre ensino e serviço de saúde.

Nessa perspectiva, a fim de potencializar o pensamento crítico dispersopelo País e apresentar propostas para a organização de serviços municipais desaúde, os atores do movimento pela municipalização desses serviços, lideradospor Sérgio Arouca - “construtor e cimentador”58 do movimento -, organizaram em1978 o I Encontro Municipal do Setor Saúde. Hugo Tomassini relata esse processonos seguintes termos:

“Arouca é o costurador da articulação dessas três secretarias, que estavamtrabalhando na mesma direção. Elegeu-se Campinas para ser a sede do IEncontro Municipal do Setor Saúde da Região Sudeste, com a preocupação deque não fosse apenas um encontro do MDB. Tínhamos a preocupação de dar aoencontro um caráter suprapartidário, um encontro de secretarias municipais queestavam tentando assumir sua função, o seu papel dentro do sistema nacional desaúde. E, por isso, envolvemos o IBAM59 e a ENSP60, que nos ajudaram muito napreparação do encontro, na escolha dos temas a serem debatidos. Então, paratirar esse caráter de ser um encontro do governo da oposição, procuramos convidar

58 Nas palavras de Francisco Monteiro, sintetizando uma percepção generalizada no Movimento Municipalista.59 Instituto Brasileiro de Administração Municipal60 Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca

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secretários estaduais, representantes do INAMPS e do Ministério da Saúde,embora nosso discurso já fosse, naquele momento, o discurso da unificação dosistema, da unificação do MPAS e do MS. Já apontávamos os erros da Lei 6.22961,da política tributária, da questão da divisão dos recursos entre os níveis federal,estadual e municipal, porque na partilha, a grande fatia ficava com o GovernoFederal. Já apontávamos a questão da necessidade de desconcentração. Issodeu um caráter técnico ao Encontro, o que facilitou chamar prefeituras que nãofossem do MDB. Os problemas na saúde na época - carências, dificuldades, anão existência de ações municipais - eram problemas de quase todos osmunicípios do Brasil. Grande parte dos municípios não tinha secretaria de saúde,apenas um departamento ou setor de higiene. Tentamos mostrar que o municípiotinha um papel na saúde e que eles deveriam ter uma secretaria de saúde.”

Num mesmo sentido, relembra Antônio da Cruz Garcia:

“O Sérgio é o responsável pela unidade do movimento, a meu ver. Essa unidadeque permitiu que pessoas como Sebastião, como Tomassini, como Márciochegassem às secretarias municipais de saúde com um novo projeto.”

Realizado em Campinas no período de 17 a 20 de maio de 1978, esse Encontroreuniu representantes de vários municípios das regiões Norte, Nordeste, Sul eSudeste e contou com a presença de autoridades municipais e de outros níveis dafederação. Nesse encontro, foram discutidos os seguintes temas: compartilhamentode responsabilidade entre União, Estados e Municípios; reforma tributária;necessidade de aumento de recursos para saúde nos municípios; ampliação deconceitos e práticas em saúde, com ênfase na estratégia da APS e responsabilizaçãodos prefeitos e SMS.

Segundo Sérgio Arouca em seu depoimento, a realização do Encontrofortaleceu

61 A Lei 6.229, de 17 de julho de 1975, organizou o Sistema Nacional de Saúde, definindo as competências do Ministério da Saúde (MS), responsávelpelas ações de saúde coletivas, e do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), responsável pelas ações de saúde individuais, nummodelo de atenção de natureza assistencial curativista. Essa organização dicotômica, com forte característica centralizadora no nível federal,recebeu severas críticas dos setores acadêmicos e de setores da sociedade civil.

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“...a articulação entre a academia e esse outro movimento pela redemocratizaçãoque foi desembarcar nas secretarias de saúde pelas vitórias do MDB, reunindonum mesmo espaço os trabalhadores da academia e os trabalhadores dosserviços de saúde. O encontro entre os Departamentos de Medicina Preventivadas Universidades e as experiências democráticas das prefeituras significou umsalto qualitativo.”

Essas discussões tiveram continuidade no II Encontro Municipal do SetorSaúde, realizado em Niterói no período de 24 a 29 de março de 1979. Esse encontrofoi organizado em torno das seguintes temáticas: constituição de rede de serviços;participação social; responsabilização do Executivo e Legislativo; reforma tributária;redistribuição de competências entre União, Estados e Municípios; unificação doMS-MPAS e reorientação da política de recursos humanos da saúde.

A identidade dos processos da luta pela municipalização dos serviços desaúde nesses três municípios evidencia-se nos relatos dos entrevistados, a seguirapresentados.

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2.1. A experiência de Campinas

“As experiências de Campinas passaram a ser ilhasde atração de gente que não se exilou fora do País,de pessoas que se “exilaram” dentro do País, pessoasde outros estados que estavam vindo paraCampinas.”

(Francisco Monteiro)

Sebastião Moraes

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A transformação do setor saúde no Município de Campinas foi desencadeadana gestão de Sebastião de Moraes na Secretaria Municipal de Saúde (1977-1981),compondo a equipe gestora do governo Francisco Amaral, prefeito eleito pelo MDBcom uma proposta democrática de esquerda, em oposição ao regime militar. Pessotorelembra em seu depoimento os antecedentes à chegada de Sebastião Moraes àSecretaria:

“Tínhamos um trabalho ligado aos movimentos sociais da Igreja, em queutilizávamos sempre a dramatização como recurso para discutirmos temas sociaiscom a população. Com esse trabalho de dramatização, queríamos, além damensagem explícita, dar uma conotação mais abrangente. Quando o Sebastiãoera convidado por essas comunidades para dar uma palestra, ele não ia apenascomo conferencista. Nós íamos juntos, com todas as músicas de contestação ecom a dramatização sobre a temática principal para a qual ele tinha sido chamado.No auge da pancadaria dos anos 70, estávamos fazendo uma peça e tivemos ainvasão do DOPS em uma das nossas reuniões. O Sebastião, com o grupo queele nucleava dentro da cidade, era extremamente reconhecido como alguém devanguarda. Em função desse reconhecimento, e por ser médico, Sebastião foiconvidado para a Secretaria, por pressão do vice-prefeito, porque o Prefeito,Francisco Amaral, conhecia o Sebastião apenas de nome. A pressão do vice-prefeito sobre o Prefeito pela indicação do Sebastião ocorreu em função dessetrabalho que fazíamos. Na ocasião, havia no grupo uma discussão sobre ainstitucionalização do nosso trabalho como uma saída legal, e pensamos muitoem assumir a Secretaria. Achei bom situar o porquê de o Sebastião ter sidoconvidado para a Secretaria, porque não emergimos nem da universidade, nemde partido político. O nosso grupo tinha esse tipo de experiência e éramosconsiderados muito à esquerda do próprio MDB.

Ao assumir a Secretaria, não tínhamos muita clareza do que íamos fazer. Lembro-me de que, no primeiro ano, a receita era de seiscentos mil cruzeiros, da qual oHospital Mário Gatti, anexado à Secretaria, levava mais da metade. E tínhamossó um posto de saúde em cada um dos quatro distritos da cidade, sendo que osmédicos iam aos postos duas vezes por semana. Havia ainda no município oproblema da falta de fiscalização, que era bastante sério. Quer dizer, a Secretarianão existia.”

Garcia complementa o relato, lembrando:

“Em 1976, Francisco Amaral foi eleito para a Prefeitura de Campinas pelo MDB eSebastião Moraes foi escolhido para ser o Secretário de Saúde. Na ocasião, fui

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convocado para ser seu Diretor de Saúde. Não tínhamos nenhuma idéia do queera a Prefeitura de Campinas e, muito menos, o que representava administrarum serviço de saúde do porte da Secretaria. Na época, a Secretaria consistia dequatro unidades de saúde, onde havia um médico e uma enfermeira. Na prática,não existia nenhum serviço. O Sebastião Moraes foi o grande desbravador, ogrande incentivador. Tinha uma capacidade criativa muito grande e grandecapacidade de mobilização das pessoas. Fazia com que cada um se sentisseparte importante do trabalho. Isso produzia um estímulo fantástico nas pessoase fazia com que trabalhássemos muito além da nossa capacidade.”

Na composição da equipe central da Secretaria Municipal de saúde, Sebastiãode Moraes procurou articular uma equipe plural, reunindo pessoas de esquerdaoriundas da Universidade (UNICAMP) e pessoas que desenvolviam um trabalhojunto aos movimentos sociais da Igreja, com um objetivo bem definido: implantaruma rede pública local de serviços de saúde.

O projeto de mudança sanitária implementado por Sebastião de Moraes nomunicípio de Campinas centrou-se na organização dessa rede, fundamentando asações de saúde da Secretaria nas concepções de medicina comunitária oriundasdo Departamento de Medicina Preventiva e Social da UNICAMP, que desenvolvia,através do Laboratório de Educação Médica e Medicina Comunitária – LEMC62, umtrabalho de ensino e assistência médica junto à população de bairros periféricos deCampinas e região. Em 1975-1976, esse Departamento passou por uma criseinstitucional, que resultou na saída da Universidade de vários docentes, dentre elesSérgio Arouca, em função de perseguições políticas gestadas no SNI. A crise instalouno Departamento uma cisão entre os docentes que não se vinculavam às práticascomunitárias e assistenciais e os docentes comprometidos com a intervenção nosserviços locais de saúde. Um grupo restrito de professores e alunos-monitores doLEMC procurou resistir e passou a lutar pela continuidade das ações e projetos demedicina social que desenvolviam, como relembra Lavras:

“Dentro da UNICAMP, no LEMC, existiam três frentes de trabalho: uma no Costae Silva, uma na Vila Rica e uma no Parque Brasília, três bairros da cidade em que

62 Criado no início dos anos 70, o Laboratório discutia criticamente o modelo de atenção médica vigente, efetivando, no processo de ensino, umaprática de intervenção centrada no apoio ao desenvolvimento dos serviços de saúde de vários municípios da região. Desenvolvia um trabalho comum conjunto de monitores, alunos da graduação da FCM da UNICAMP, na perspectiva da implantação de novos modelos de organização deserviços de saúde municipais.

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se desenvolviam projetos de medicina comunitária. Quando Francisco Amaral,candidato do MDB, fazia sua campanha para a eleição de 1976, apoiamos suacandidatura, com o compromisso de que fosse instalada uma unidade de saúdenum prédio, vago na época, construído pelo Projeto Cura. A unidade iria funcionarbaseada no trabalho de medicina comunitária que vínhamos desenvolvendo emvários bairros de Campinas, naquela altura de forma clandestina, pois a UNICAMPhavia nos colocado para fora do LEMC. Com a vitória de Francisco Amaral e aescolha de Sebastião de Moraes para o cargo de Secretário de Saúde,apresentamos então a Sebastião nosso projeto para o Jardim Conceição. Oprojeto foi aceito. Na semana seguinte, já estávamos trabalhando no gabinetedele e iniciando as ações do projeto. Foi apresentado também ao Secretário, porprofissionais oriundos da UNICAMP, um outro projeto para a saúde, centradonum modelo mais clássico de atendimento materno-infantil. Esse projeto tambémfoi aceito. Assim, no início da gestão, foram inaugurados, num mesmo dia, doispostos de saúde: um, no Jardim Conceição, organizado de acordo com o modelode medicina comunitária; o outro, em Aparecidinha, que se estruturou segundo omodelo materno-infantil de atendimento. Entretanto, na gestão da SecretariaMunicipal de Saúde, prevaleceu o projeto de medicina comunitária. Nós, além deoferecermos à população um atendimento integral, fazíamos um trabalho dealfabetização pelo método Paulo Freire, trabalhávamos com farmácia popular eorganizávamos a população contra a ditadura. Foi essa lógica dos projetos doLEMC que se reproduziu no trabalho da Secretaria Municipal de Saúde.”

Assim, as práticas de intervenção e mobilização popular caracterizadorados projetos do LEMC puderam migrar para a Secretaria Municipal de Saúde deCampinas, configurando o projeto institucional dessa Secretaria na gestão deSebastião Moraes. Nesse projeto, a participação da população na gestão dosserviços de saúde por meio de uma prática pedagógica democrática e organizativados movimentos sociais constitui-se no eixo da luta, em Campinas, pelaredemocratização do País. Garcia relata esse processo nos seguintes termos:

“A questão que vejo como da maior importância é que nós começamos aqui ummovimento sanitário em paralelo ao movimento em nível federal. Estávamosisolados e sentindo a necessidade de implantar uma rede primária de saúde, jáque todo o sistema de saúde estava organizado na forma de uma rede deambulatórios do INPS, centralizados, e de hospitais conveniados e hospitais dasuniversidades, também centralizados. Identificamos que a populaçãopraticamente não tinha assistência. Assumi a Diretora de Saúde da Secretaria

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Municipal de Saúde de Campinas com um orçamento ridículo. O Sebastião buscouapoio em dois órgãos importantes, que eram a SETEC63 e a SANASA64. Elesfinanciaram os equipamentos para a instalação dos centros de saúde.”

O processo de implantação dos centros de saúde pautou-se pelos princípiosda regionalização e hierarquização do sistema, e foi caracterizado por intensamobilização das comunidades, num ritmo de trabalho também acelerado. RelataGarcia:

“Um procedimento importante que sempre antecedia à implantação dos centrosde saúde era que o Secretário identificava, através dos líderes ou associações demoradores dos bairros, os locais onde deveriam ser instalados os centros.Tínhamos reuniões com a população local antes da implantação dos postos.Considero as discussões, que ocorriam nessas reuniões, como muito maisimportantes que a própria presença dos postos de saúde, porque discutíamos, deforma ampla, a questão da saúde. Mostrávamos que o posto de saúde poderiabeneficiar a população em termos de melhoria das suas condições de vida. Oprocesso de discussão era muito rico. Utilizávamos uma dramatização, da qualtodos participavam, que era baseada numa peça de teatro chamada A Receita65,proibida nos anos 70. Por meio dessa dramatização, levantávamos toda aproblemática da saúde, a questão da alimentação, a questão do saneamentobásico, a questão do trabalho, a questão da moradia e do transporte. Tudo issoera discutido com muita profundidade. A população tinha uma capacidade muitogrande de discutir e compreender. Para nós, a questão central era até onde ocentro de saúde poderia melhorar as condições de vida da população, sendo umgerador de discussão. Os centros de saúde foram implantados como um espaçogerador de discussão.”

Complementa Lavras:

“Quando já estávamos com oito unidades, fizemos várias reuniões com oSebastião tentando diminuir o ritmo de implantação dos postos para que oprocesso não explodisse. Ele falou uma coisa que me marcou muito: “A genteabre os postos e o que abrir ninguém vai fechar. Eu abro de qualquer jeito, masabro”. E fomos para mais de vinte e cinco postos.”

63 SETEC - Serviços Técnicos Gerais - autarquia da Prefeitura Municipal de Campinas.64 SANASA - Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento - empresa de economia mista de Campinas.65 Peça do teatrólogo Jorge Andrade, proibida na época pela censura.

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Em termos da logística da implantação das unidades de saúde, relembraPessoto:

“Para otimizar o processo, implantamos a Comissão de Padronização deMedicamentos. A padronização do material necessário para cada centro chegoua um grau de aperfeiçoamento para a época muito bom, com um posto de saúdeservindo de modelo. Assim, quando tínhamos uma unidade a ser instalada, jásabíamos o que comprar, porque o que havia em um posto era reproduzido emoutro. Como o material era padronizado, se um posto fosse mais amplo,aumentávamos a quantidade de material. Isso facilitava o processo licitatório eevitava também conflitos entre as unidades.”

Esse processo de implantação das unidades, com a participação dascomunidades locais, permitiu a realização do diagnóstico da saúde de cada bairrodo município, utilizado de forma a orientar a organização dos centros de saúde queiam sendo construídos. Relembra Lavras:

“A chegada de Maria Nilde66 à Secretaria de Saúde de Campinas foi um reforçomuito importante para a equipe. Ela ajudou a montar o processo de diagnósticodos bairros. Íamos de casa em casa, fazendo a investigação epidemiológica quesustentou a organização dos programas e dos projetos que os centros de saúdeiam desenvolver.”

A instalação das unidades de saúde da rede municipal foi perpassada porinúmeras dificuldades, tanto no nível da relação da Secretaria com outros órgão daPrefeitura e do Estado, quanto no nível operacional dos centros de saúde. Garcia,em seu depoimento, relembra como se deu o enfrentamento dessas dificuldades:

“Na questão da implantação dos serviços, tivemos muitas dificuldades. Primeiro,pelo nosso desconhecimento da máquina administrativa. Essa foi uma questãointerna muito complicada, pois a experiência que tínhamos da máquinaadministrativa era muito pequena. Segundo, pelo ritmo de Sebastião, que

66 Maria Nilde Mascelani, educadora. Foi coordenadora do Serviço Vocacional da Secretaria de Educação do Estado de são Paulo (1962-1968).

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estabeleceu como prioridade implantar com rapidez os postos de saúde. Eleficava na linha de frente, fazendo contatos, identificando as áreas possíveis paraimplantação de postos de saúde e nós da Secretaria tentando dar o suportenecessário, a logística necessária para poder implantar os centros. No primeiroano, não havia recursos; eles vinham de outras instituições. Vendo hoje, nãoacredito que conseguimos iniciar a montagem da rede, em função das dificuldadesque tínhamos com a máquina na época.

Como éramos considerados dentro da Prefeitura muito à esquerda do próprioMDB, tínhamos um problema muito grande com relação a recursos e verbasorçamentárias. Nós utilizávamos as discussões com a população como forma depressão sobre o Prefeito e, com isso, o trabalho foi se desenvolvendo.

Na medida em que os postos estavam sendo implantados começamos aidentificar as dificuldades de operação da rede. A primeira dificuldade foi a questãodo abastecimento e do fornecimento de medicamentos aos postos, já que aSecretaria não tinha recursos suficientes para garantir um abastecimento razoávelaos centros de saúde. Outra dificuldade foi a questão do atendimento deretaguarda. Começamos a identificar onde os exames solicitados seriam feitos epor quem; identificamos também a necessidade de integração com outros níveisde especialidade, à medida que os pacientes precisavam de internação. Essa foiuma grande dificuldade, que remeteu à necessidade de discussão com outrosníveis do sistema de saúde, o estadual e o federal. Acho que podemos identificardois momentos em Campinas. Houve um primeiro momento, o da instalaçãodos centros de saúde, e um segundo momento, o da vivência, na prática, dasdificuldades de integração com outros níveis do governo. Havia áreas no municípioonde funcionavam um centro de saúde do Estado e um centro de saúde municipal.Estávamos duplicando serviços numa mesma região. Havia ainda a necessidadede integração com o hospital universitário, porque o hospital funcionava comonível terciário e quaternário de atuação. Discutir essa integração foi uma dasgrandes dificuldades que enfrentamos; foi bastante difícil estabelecer umadiscussão sobre isso dentro do município.

Tivemos dois momentos de tensão entre a Secretaria Municipal de Saúde deCampinas e o Estado. Quando começamos a fazer citologia oncótica do colouterino, o INAMPS fez um movimento contra a Prefeitura, acusando-nos de tirar aclientela dele. Houve tensão também quando se constatou o impacto dasiniciativas municipais de atenção à criança na diminuição das internaçõeshospitalares, o que levou ao fechamento do maior hospital infantil da cidade. Naárea da citologia, fizemos um convênio com o setor de ginecologia da UNICAMPpara onde iam todas as lâminas coletadas. Conseguimos estruturar uma redecom marcação de consultas, tanto nos serviços municipais como nos serviços daUNICAMP. Esse processo evoluiu bem.”

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Nos depoimentos das pessoas que participaram da municipalização da saúdeem Campinas, destaca-se um aspecto fundamental, que perpassou a ação do grupona superação dos obstáculos que enfrentaram na época: a preocupação com odesenvolvimento de uma reflexão crítica nascida da prática e sustentando a prática.Em outras palavras, na implantação da rede municipal de saúde, a discussão teórica,voltada para a questão da hierarquização, da regionalização e da atenção integral,foi alicerçada nas experiências vivenciadas na prática, geradora dos processos einstrumentos de organização do sistema municipal. Pessoto, em seu depoimento,chama a atenção para esse aspecto:

“Quero colocar a importância de Toninho [Antônio Garcia] como Diretor, porque,como o Sebastião era uma pessoa extremamente carismática, ele sonhava e acoisa acontecia. A figura do Toninho ficava meio apagada, mas se não existisseele na equipe, a Secretaria não seria o que é hoje, porque o Toninho sistematizavaas ações do Sebastião. Sebastião tinha no Toninho uma pessoa de uma relaçãode credibilidade enorme. Junto com o processo de democracia interna instaladona Secretaria, a figura sistematizadora do Toninho foi fundamental. Acho queesse é o diferencial, desde a hora de eleger o alvo onde a unidade de saúde seriainstalada, discutir com a população e fazer toda a parte de recrutamento, seleçãoe treinamento de pessoal na própria área de funcionamento do posto. Acho quea democracia só funcionou porque as regras foram feitas por meio das nossasreuniões semanais de representantes, nos postos. Os representantes participavamdas reuniões do nível central da Secretaria, discutindo as questões da saúde decada unidade. Nessas reuniões, a discussão era muito intensa entre as váriascorrentes ideológicas e políticas existentes67, mas saíamos de lá com um certoconsenso sobre as práticas de saúde a desenvolver nas unidades. Sinto muitoorgulho de ter participado desse processo, de ver que fomos uma semente, àsvezes até de algumas loucuras, mas foram ações muito sérias.”

Lavras complementa o relato, lembrando:

“Há vinte e tantos anos, já tínhamos uma série de posturas, de instrumentos deplanejamento, uma cultura de planejamento que ficou. O diagnóstico era feitocom investigação epidemiológica; o Plano de Saúde da unidade era feito com aparticipação da população; os programas escritos, os PAMI Programa de Atenção

67 A Secretaria de Saúde de Campinas tinha essa característica democrática de gestão interna e de espaço político, agregando o pessoal do MDB,PC, do PC do B, do MR-8, da AP.

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Médica Integral eram elaborados por faixa etária e grupos de risco.Trabalhávamos com as Comissões Locais de Saúde, implantadas em cadaunidade, tudo isso muito antes do SUS. Implantamos também a nossa“informatização manual”, a ficha de furinho, picotada na lateral, para organizar asinformações. Esse foi o tipo de planejamento utilizado para montar as unidades.Quer dizer, tínhamos uma série de instrumentos de gestão, naquela época, quese consolidaram na experiência da Secretaria.”

Outro aspecto destacado pelos depoentes diz respeito à natureza democráticada gestão de Sebastião de Moraes, que transformou a Secretaria Municipal deSaúde de Campinas num espaço de luta, agregando uma frente suprapartidária.Lavras relembra esse aspecto em seu depoimento:

“A Secretaria tinha essa dinâmica de aglutinação de diferentes correntesideológicas no nível central. Na época, tínhamos o pessoal do PCB, do PC do B,do MR-8, da AP na Secretaria. Sentávamos todos, nas sextas-feiras, e asdiscussões eram ferrenhas. De lá apoiávamos todos os movimentos políticos,por exemplo, as greves do ABC.

O que significou a Secretaria enquanto espaço político? Tudo que acontecia nacidade, acontecia dentro da Secretaria de Saúde. Depois, no momento em que aPrefeitura foi fechando, como aconteceu também em Niterói, na gestão doTomassini com o Moreira Franco, lá também por interesses políticos, tivemos quemigrar para outros espaços. Havia um padre progressista que ofereceu a igreja efizemos muitas reuniões lá. Na época, nessa linha de resistência, já estávamosmobilizando setores do Estado, do País e associações de apoio.”

Garcia complementa o relato, destacando:

“A partir de 79, quando houve a primeira greve de reivindicação salarial, já tínhamosnossos representantes na comissão de negociação. Na greve seguinte, a de 80,já dirigíamos o movimento da Prefeitura como um todo, a partir da Saúde.”

Em 1981, ano que antecede o final da gestão municipal, foram feitas váriastentativas de afastamento de Sebastião de Moraes da Secretaria de Saúde. Isso foimotivado, na visão dos entrevistados, pelo conflito de interesses que se instalou emCampinas em função da eleição que se avizinhava. A forte resistência, tanto dos

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profissionais da Secretaria Municipal de Saúde como dos movimentos sociais dacidade, não foi suficiente para impedir que o afastamento de Sebastião Moraes seconsolidasse meses antes do término do governo. O relato de Francisco Monteirorefere-se a esse momento:

“Com a saída de Sebastião [da Secretaria], ficamos numa resistência que osnovos dirigentes municipais não conseguiam segurar, mesmo tentando acabarcom as reuniões semanais nos centros de saúde. Se não dava para fazer areunião nele, fazíamos em outro lugar. Virou resistência. Os que melhor tentaramnegociar tiveram que conviver conosco, porque era muito difícil agüentar Carminha[Carmen Lavras] e eu. Perturbávamos muito, movimentando a comunidade. Elestiveram que aceitar muita coisa e fazer acordo conosco, para poder funcionar.Com a saída do Sebastião, não houve tanto, em Campinas, uma solução decontinuidade, porque tínhamos um movimento organizado dentro da saúde queextrapolava a saúde, extrapolava não só a Secretaria, mas extrapolava para acidade com um todo.”

Quando a gestão de Sebastião de Moraes na Secretaria Municipal de saúdefoi encerrada, a rede municipal de serviços de saúde de Campinas contava commais de vinte e cinco unidades básicas distribuídas pelo município, com a maioriadelas instaladas em bairros periféricos da cidade.

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2.2. A experiência de Londrina

“Na minha gestão na Secretaria, a participação daUniversidade foi intensa. Sem o envolvimento diretodos professores da Enfermagem, da Medicina, e dosestudantes, dos residentes, dos habilitantes, nãoteríamos montado a rede municipal. Foi um trabalhoconjunto, um projeto construído coletivamente.”

(Marcio Almeida)

Marcio José de Almeida

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A organização de serviços de saúde na perspectiva da medicina comunitária,que já vinha sendo implantada no município de Londrina68, foi ampliada na gestãode Márcio José de Almeida na Secretaria Municipal de Saúde (1977-1980), integrandoa equipe de governo do Prefeito Antônio Belinatti, eleito em 1976 pelo MDB.

Concluídos os créditos do curso de Mestrado em Medicina Social no Institutode Medicina Social da UERJ, Márcio Almeida retorna a Londrina em 1977 e assumea Secretaria Municipal de Saúde, com um projeto centrado prioritariamente naampliação da rede de atenção primária à saúde existente no município. Sobre osdeterminantes de sua escolha para o cargo de Secretário, relata Almeida:

“O primeiro determinante foi a participação do Grupo Médico69 liderado peloNelsão70, pelo Darli71 e pelo ex-Prefeito da Cidade, todos vinculados ao MDB, nacampanha eleitoral em 1976, na disputa entre MDB e Arena. Eles conseguiraminserir na plataforma do Candidato a Prefeito Antônio Belenetti o compromissode instalar postos de saúde nos bairros urbanos da cidade e na zona rural.Assim, com a vitória do MDB, havia uma plataforma que precisava ser executada.O segundo, foi o fato de esse grupo ter tido prestígio para apresentar nomes paraformar o secretariado do Prefeito que ganhou a eleição de 1976, e indicarammeu nome. O terceiro determinante é que não tinha gente interessada no cargo,naquela época. Eu fui o último nome a ser escolhido. A última Secretaria a serpreenchida foi a Saúde.”

A gestão de Márcio Almeida na Secretaria de Saúde de Londrina buscouconsolidar no município um modelo de serviços de saúde centrado nos princípiosda medicina comunitária, colocando em prática a análise teórica do setor saúdeque vinha sendo construída nas Universidades, bem como as propostas de mudançada realidade sanitária no nível local. É esse projeto que Almeida procura desenvolverna Secretaria, com a participação da UEL. Relembra Almeida:

68 A UEL, através do Departamento de Saúde Comunitária e do Hospital Universitário, vinha desenvolvendo, desde o início da década de 70, açõesde saúde no município de Londrina. Um convênio estabelecido entre a Universidade e a Prefeitura, em que recursos municipais da saúde eramrepassados à UEL, foi possível assegurar a assistência à população, através do Hospital Universitário e das três unidades básicas de saúdeimplantadas no município: duas na área urbana (Vila da Fraternidade e Jardim do Sol) e uma na zona rural (Paiquerê). Conforme estabelecidono convênio, a UEL, além de administrar o Pronto-Socorro Municipal agregado ao Hospital Universitário, assumiu também a administração dasunidades básicas de saúde, que funcionavam como campo de estágio para os alunos da universidade. O modelo de atenção adotado pela UEL nagestão das UBS foi o da atenção à saúde familiar, com ênfase no atendimento materno-infantil, por meio do Programa Comunitário de AtençãoFamiliar (PROCAF), desenvolvido pela Universidade com o apoio da OPAS e da Fundação Kellogg. Ver. Almeida, MJ. A organização de serviçosde saúde a nível local: registros de uma experiência em processo. [Dissertação de Mestrado]. RJ: IMS/UERJ, 1979, cap. 5.69 Esse grupo era vinculado ao Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Estadual de Londrina - UEL.70 Nelson Rodrigues dos Santos71 Darli Antônio Soares

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“Minha formação teórica no campo da saúde comunitária iniciou-se com o Nelsone o Darli, no Departamento de Saúde Comunitária, que faziam reuniõesbibliográficas semanais com a participação dos alunos. Eu participava dasdiscussões sobre as concepções da medicina comunitária no Departamento,que era o espaço de formação política que os docentes da UEL tinham na época.Discutíamos questões teóricas ligadas à saúde comunitária e à atenção primáriaà saúde, conteúdos que ficavam fora da grade curricular. Mas o curso, desde oinício, tinha preocupações sociais, tinha um projeto inovador e atuava nos serviçosde saúde de Londrina. Não foi à toa que quem estruturou o Departamento deParasitologia tenha sido o Samuel Pessoa, junto com outros convidados de SãoPaulo. O pessoal da Cirurgia, que tinha sido perseguido dentro da USP, tambémfoi pra lá; o Nilton Freire Maia, pesquisador famoso, que também foi perseguido,foi pra lá; quer dizer, havia uma administração na Universidade que começava,que era liberal, aberta, e isso propiciava a formação integral do médico. Nós,enquanto estudantes, participávamos também das reuniões de Preventiva queocorriam em São Paulo. O Nelsão, o Darli e o Guilherme levavam os estudantesinteressados para os eventos que aconteciam lá. Na UEL, os fóruns de discussãodo movimento estudantil na área da saúde aconteciam, credenciando a cidadepara sediar uma das Semanas de Estudos sobre Saúde Comunitária (SESAC)realizadas em 1977 e 1978. Ao me formar, em 1973, decidi buscar umaespecialização nesse campo.

Em 1974, fui fazer residência em Medicina Integral no Hospital de Clínicasda Universidade do Estado do Rio de Janeiro e emendei com o Mestrado no Institutode Medicina Social. Fui da segunda turma do mestrado e aluno (e quase colega,pois eles eram da primeira turma) do Hésio Cordeiro, do Reinaldo Guimarães, doNoronha, da Nina Pereira Nunes, da Madel Luz e do Carlos Gentile de Melo, dentreoutros. Nessa época, passei a fazer parte da base política da saúde do PCB no Rioe, quando voltei para Londrina em 1977, continuei a atuar nessa linha.”

Márcio Almeida encontra a Secretaria Municipal de Saúde e de PromoçãoSocial em uma situação precária, sem recursos financeiros e com pouquíssimosrecursos humanos específicos do setor saúde. Essa situação só foi revertida em1978, conforme relata:

“Quando eu assumi o cargo de Secretário em 1977, a Secretaria não tinha nenhummédico, não tinha nenhum posto de saúde atuando regularmente. A Secretariafuncionava na época para tomar conta de parques infantis, pois existiamconsultórios médicos instalados só em uma ou duas creches comunitárias paraatender as crianças e o Pronto-Socorro Municipal era conveniado com o HospitalUniversitário, para o qual a Prefeitura repassava os recursos da saúde.

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Eu era na época o único médico da Secretaria e ia atender em creches. O entãoPrefeito ficou um pouco como coadjuvante naquele processo, até que em 1977/78 passou a ser protagonista, e dar condições para a Secretaria funcionar. Assim,em Londrina, o trabalho só passou a ter um desenvolvimento maior a partir de1978, quando eu consegui a liberação de recursos para a Secretaria. Antes disso,praticamente todo o dinheiro da Prefeitura que era aplicado em Saúde erarepassado para a Universidade, em função do convênio estabelecido entre aPrefeitura e a UEL para manutenção do Pronto-Socorro Municipal, que havia sidocriado em 1969/1970. Então, não sobrava nada para a Secretaria, a não serpoucos recursos para a manutenção dos parques Infantis, com recreacionistas, edois ou três Assistentes Sociais. Quando o novo Prefeito assumiu em 1977, oReitor da UEL na época exigiu modificar a modalidade de financiamento definidano convênio. Queria mudar o repasse global de recursos para a forma depagamento por unidades de serviço [modalidade de pagamento que o INAMPSutilizava para a compra de serviços de saúde na rede privada]. Então, todos osargumentos do Gentile e os estudos feitos no Mestrado me valeram para embasaro Prefeito na recusa dessa proposta. O resultado disso foi o rompimento doconvênio, que era o que o Reitor queria mesmo, pois na época eles eramadversários político-partidários, e o Reitor queria que o ônus ficasse para aPrefeitura. Eu fiz uma análise do problema e mostrei que o ônus não ia caber àPrefeitura, porque quem estava com o serviço já era a Universidade. Além disso,o compromisso da campanha foi com a abertura de unidades básicas de saúde.Minha posposta, quando o Prefeito rompeu o convênio, era aplicar esses recursosna montagem de oito postos de saúde.”

Na organização da rede de atenção básica em Londrina, a participação daUEL foi decisiva, como aponta Almeida em seu depoimento:

“Desde 1970/71, o Departamento de Saúde Comunitária da UEL já estavaestruturando unidades básicas de saúde no município, como campo de estágiopara os alunos da graduação. Eu, como estudante, participei da montagem dospostos de saúde nos bairros, na zona rural, junto com o Nelsão, o Darli. O modeloadotado era o da atenção primária, com uma equipe de saúde desenvolvendoações de promoção, prevenção e recuperação da saúde.

Na minha gestão na Secretaria, a participação da Universidade foi intensa. Semo envolvimento direto dos professores da Enfermagem, da Medicina, e dosestudantes, dos médicos residentes, das habilitantes de enfermagem, nãoteríamos montado a rede municipal. Foi um trabalho conjunto, um projetoconstruído coletivamente. Nós fazíamos reuniões regulares na Secretaria nosmoldes das reuniões bibliográficas semanais, do meu tempo de estudante. Nós

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juntamos as duas equipes: a dos professores da Universidade e nós queestávamos começando na Prefeitura. Toda semana nós fazíamos reuniões paradefinir as estratégicas da formação dos auxiliares e planejar os cursos de formação.Os primeiros profissionais contratados eram ex-médicos residentes e habilitantesde enfermagem do Departamento de Saúde Comunitária da UEL e os recém-formados na linha da medicina integral. Sem a participação da Universidade,não teria jeito de implantar um projeto inovador, seria algo tradicional, repetindoo INAMPS.”

A participação social na montagem das unidades de saúde em Londrina foimarcada por dificuldades variadas. Relembra Almeida:

“A participação social era muito precária. Lembro que tinha havido a OperaçãoBandeirantes72, ou Barriga Verde, não me lembro bem, vivíamos então um climade medo e de controle político-ideológico. O próprio Nelsão, na época diretor doCentro de Ciências da Saúde da Universidade, havia sido preso numa dessasoperações. Nós, da equipe da Secretaria, tínhamos apenas dez pessoas parafazer as reuniões com as associações de moradores, para discutir a montagemdos postos. Na época, não havia ambiente político para montar conselhos oucomissões locais de saúde. Nosso trabalho baseava-se nas relaçõesinterpessoais. Eu não me lembro de nenhuma unidade, em que havia a propostade montar Conselho de Saúde, Comissão. No máximo, houve a organização degrupos por agravos: grupo de hipertensos, grupo de gestantes. Esse foi o máximode ação coletiva que conseguimos organizar, apesar de existirem naquelapequena equipe inicial várias pessoas politizadas, ex-presos políticos e militantesde movimentos clandestinos.”

A montagem das equipes de saúde das unidades básicas em Londrina revelou-se como uma oportunidade para estimular a participação das comunidades. A esserespeito, relembra Almeida:

“Nas unidades básicas contávamos com o trabalho de sanitaristas e alunos daUEL, que atuavam como estagiários nos postos de saúde. Trabalhávamos tambémnessas unidades estimulando a participação da comunidade na composição dasequipes de auxiliares de enfermagem, os auxiliares de saúde. Adotamos como

72 A Operação Bandeirantes – OBAN – foi um centro de informações organizado pelo Exército brasileiro, em 1969, com a função de coordenare integrar os órgãos de repressão da ditadura militar. Instalado na rua Tomás Carvalhal, no 1030, em São Paulo capital. Caracterizado como umaformação paramilitar de ação repressiva direta e violenta, foi financiado pelos diversos grupos privados que deram apoio á ditadura.

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critério para a contratação dos auxiliares de saúde das equipes dos postos queesses auxiliares residissem nos bairros nos quais iam sendo instaladas asunidades.”

No cenário da organização dos serviços municipais de saúde em Londrina, aarticulação da Secretaria de Saúde com a rede de pessoas e instituiçõescomprometidas com as lutas do movimento municipalista que vinha se formandoem São Paulo e no Rio de Janeiro, contribuiu para o fortalecimento, na rede municipalde Londrina, dos princípios de regionalização e integralidade das ações de saúdeadotados na organização dos serviços de saúde do município. Essa aproximação,articulada por Sérgio Arouca, entre municípios de Campinas, Londrina e Niteróipossibilitou o desenvolvimento de ações conjuntas de natureza técnica e política.Sobre essa articulação, relembra Almeida:

“Nós três [Sebastião Moraes, Márcio Almeida e Hugo Tomassini] estávamosfazendo coisas parecidas em nossos municípios. Só faltava nos conhecermos etrocarmos experiências. Quando o Tomassini, o Sebastião e eu sentamos paraconversar, apresentados pelo Nelsão e pelo Arouca, nós arquitetamos eplanejamos fazer uma série de encontros municipais de saúde, para trocarexperiências e discutir a organização de serviços locais. O Sebastião era o maisvoluntarioso de todos, animadíssimo. Então, o primeiro encontro foi sediado emCampinas, em 197873; o segundo, em Niterói, em 1979; e em 1980, nós faríamoso encontro em Londrina.”

O trabalho que vinha sendo desenvolvido na Secretaria de Saúde de Londrinafoi interrompido em 1980, quando Márcio Almeida renuncia ao cargo de Secretário.Os motivos da ruptura com o então Prefeito foi relatada por Almeida nos seguintestermos:

“Em fevereiro de 1980 eu renunciei e entreguei o cargo ao Prefeito. Entregueiporque ele, que tinha sido eleito pelo MDB, abandonou a oposição e aderiu aopartido da ditadura, o PDS. E exigiu que os seus secretários fizessem o mesmo.Eu não concordei, pedi as contas e me retirei quando completava o terceiro anode trabalho. Mas os membros da equipe técnica continuaram e desenvolvemos

73 O primeiro desses eventos planejados, denominado I Encontro Municipal de Saúde, realizou-se em Campinas no período de 17 a 20 de maiode 1978. O segundo foi realizado em Niterói, no período de 24 a 27 de março de 1979.

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estratégias para dar andamento ao projeto mesmo nas novas condições, maisadversas. Eu continuei a vida como profissional do movimento da reformasanitária, ajudando a organizar os núcleos do CEBES, como professor em cursosuniversitários, como pesquisador e assumi a presidência do Diretório Municipaldo PMDB.”

Londrina encerrou a década de 70 com quinze unidades básicas de saúdedistribuídas pelos bairros e distritos rurais. A política municipal de saúde orientadapelos princípios da Atenção Primária à Saúde e pelas diretrizes do Movimento daReforma Sanitária permaneceram inalteradas, ainda que com variações, nas gestõesdos prefeitos que assumiram o cargo nas décadas de 1980 e 1990. Hoje o municípioé uma das referências nacionais em termos de Sistema Local de Saúde.

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2.3. A experiência de Niterói

“Para o Rio, foi importante a presença do CEBES, apresença dos movimentos populares pela saúde;foi importante a presença dos outros movimentospolíticos, a presença da AP, das comunidades debase, as iniciativas da universidade, de alguns oásisdentro da universidade..”

(Tomassini)

Hugo Coelho Barbosa Tomassini

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A transformação da realidade sanitária em Niterói teve início com agestão de Hugo Tomassini na Secretaria Municipal de Saúde (1977 – 1980),integrando a equipe do governo que unira as forças da esquerda nas eleiçõesde 1976 para o poder executivo municipal. Com a vitória política da oposição aoregime militar, foram convidados a ocupar a Secretaria Municipal de Saúde ePromoção Social de Niterói professores envolvidos no Projeto Saúde Comunitária,que vinha sendo desenvolvido pelo Departamento de Medicina Preventiva daFaculdade de Ciências Médicas da Universidade Federal Fluminense. Assimrelata Tomassini:

“Ao assumir a Prefeitura de Niterói, Moreira Franco decidiu que as áreas sociaisdo seu governo, principalmente saúde e educação, fossem ocupadas por genteda universidade [UFF]. O Reitor Manuel Barreto Neto, conhecendo nosso trabalhona Vila Ipiranga, levou meu nome ao Prefeito eleito. Assim começa uma históriaem Niterói em que a universidade passa a ter um papel extremamente importante.Embora a universidade fosse politicamente antagônica à oposição, existiam neladiferentes modos de pensar. Nós tínhamos um pensamento de esquerda e játrabalhávamos com a comunidade local. Isso vai dar origem ao nosso trabalhona Secretaria.”

Segundo Tomassini, a Secretaria de Saúde de Niterói era conhecidanaquela época como “secretaria da morte”, devido ao fato de sua estrutura serconstituída por um serviço funerário e um centro social urbano, onde funcionavaum posto de saúde, que estava cedido, em comodato, à Secretaria Estadualde Saúde.

Coube a Tomassini a reestruturação da Secretaria, implantando uma rede depostos de saúde abrangendo unidades instaladas nos diversos bairros periféricosda cidade desprovidos de serviços de saúde. Relembra Gilson O’Dwyer:

“Tomassini tira a Secretaria Municipal de Saúde de Niterói do campo deadministradora de cemitérios e cria, efetivamente, um sistema de saúde localque, depois, vai se fortalecendo com a VIII Conferência, com o SUDS e com oSUS.”

As concepções que embasaram a construção desse sistema de saúde emNiterói tiveram sua origem na experiência acumulada pelo Secretário no

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Departamento de Medicina Preventiva74 da Faculdade de Ciências Médicas da UFF.Nesse Departamento se concentrava na época a discussão sobre a questão dasaúde pública. Assim relata Tomassini:

“A minha atividade como professor da UFF baseou-se, fundamentalmente, notrabalho desenvolvido junto a uma área de população favelada chamada VilaIpiranga, financiado pelo PIDAS75 e apoiado pela Fundação Kellogg. Era umainiciativa do Departamento de Saúde da Comunidade, realizada em conjuntocom a associação de moradores da Vila Ipiranga e funcionava numa unidade daFundação Leão XIII, que pertencia ao Governo do Estado. Eu levava os alunospara trabalhar nessa unidade de saúde da Vila. Trabalhávamos com uma equipede assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, diferentes profissionais. Os alunostiveram uma recepção muito boa a esse trabalho, gostavam muito disso. Gilson[O’Dwyer] foi um dos alunos nessa época, trabalhador na Vila Ipiranga. Essaexperiência eu pude levar para a Secretaria. Naquele trabalho atuavam pessoasde várias correntes ideológicas. Tinha o pessoal da AP, o pessoal do PC, o pessoaldo PC do B. Eu conseguia juntar diversas correntes ali. O grupo era extremamentediversificado e os alunos sentiam essa diversificação, essa pluralidade muitogrande.”

A gestão de Hugo Tomassini na Secretaria Municipal de Saúde de Niteróiaglutinou as forças representadas por instituições e entidades comunitáriascomprometidas com a municipalização da saúde e a redemocratização do País,favorecendo a introdução de novos atores sociais na gestão da saúde no município:a universidade e os movimentos populares. Naquele momento, implantou-se naSecretaria um desenho organizacional novo e um novo projeto para a saúde,resultantes do desenvolvimento de processos de trabalho inovadores, a fim deassegurar a participação social na qualificação da atenção à saúde no município. Amontagem da nova estrutura da Secretaria foi relatada por Tomassini nos seguintestermos:

“Quando comecei a montar a Secretaria, recorri à UERJ e à UFF para compor aequipe de trabalho. Convoquei todos os técnicos da Secretaria que existiam

74 Na época, esse departamento era denominado Departamento de Saúde da Comunidade. Criado em 1968, adotou como estratégia a articulaçãocom a rede de serviços de saúde, inicialmente no município de São Gonçalo. Na década de 70, desenvolveu um trabalho interinstitucional com aspopulações periféricas de Niterói voltado para a assistência à saúde e apoio ao movimento organizado na comunidade de Vila Ipiranga.75 Programa de Integração Docente Assistencial

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(eram poucos), mais a secretária e os motoristas, os médicos (eram poucostambém, os que existiam eram do Estado) e começamos a percorrer Niterói.Trabalhávamos com as associações dos moradores e as lideranças locaisdiscutindo as necessidades dos bairros. O intuito era fazer um diagnóstico dasaúde. Então, levávamos as idéias que tínhamos e eles nos ajudavam, por suavez, a mostrar as necessidades de Niterói. Com isso pudemos fazer um diagnósticoda saúde e foi possível elaborar o plano de trabalho da Secretaria. Foi o primeiroPlano Municipal de Saúde que a cidade teve. A preocupação era começar logo aimplantar uma rede de saúde local para dar assistência à população.”

O desenho organizacional da nova estrutura da Secretaria compreendeu, nonível central, a conformação de dois setores: o de planejamento e o de coordenaçãodas unidades básicas de saúde. Em relação à organização do nível central da SMSe dos processos de trabalho implantados, relembra Hugo Tomassini:

“O nível central da secretaria era bastante enxuto, basicamente formado pelopessoal da UFF e da UERJ. Havia a área de planejamento, que estava a cargo deMário Roberto Dal Poz76 e o setor responsável pelas unidades de saúde, da açãoexecutiva dessas unidades, que estava sob a responsabilidade da Dra. Maria doEspírito Santo Tavares de Souza77. Trabalhávamos coletivamente, realizandoreuniões periódicas com os técnicos do nível central, e destes técnicos com cadauma das equipes das unidades, buscando encaminhar os conflitos que apareciam.Os profissionais da rede vinham fundamentalmente da UFF: médicos,enfermeiras, nutricionistas, assistentes sociais, porque a Secretaria não era sóuma secretaria de saúde; era uma Secretaria de Saúde e Promoção Social. Naparte da promoção social, tive a felicidade de caminhar com Celina Franco, queelaborou um programa de creche maravilhoso, tendo uma antropóloga da UFFpara auxiliar no desenvolvimento do programa.”

A concretização do Diagnóstico de Saúde de Niterói (1977), realizado emconjunto com as associações de moradores dos bairros, subsidiou a elaboração doprimeiro planejamento da gestão municipal da saúde no Município. DenominadoPlano de Ações de Saúde 1977-1980, e referenciado nos princípios da Medicina

76 Docente da FCM da UERJ77 Docente da FCM da UFF.

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Comunitária e nas propostas emanadas da VI Conferência Nacional de Saúde (1976),o plano tinha como eixo a criação de uma rede de unidades voltadas para a atençãoprimária à saúde. Relembra Tomassini:

“O Plano se caracterizava, fundamentalmente, pela implantação de uma redebásica de saúde em toda a cidade, especialmente na periferia do município,constituída por dezesseis unidades de saúde. Na elaboração do Plano, osprincípios que adotamos foram a hierarquização e a regionalização, de acordocom as discussões da época acerca da questão da democratização do setorsaúde. O modelo de atenção à saúde foi o da medicina integral. Naquele momento,discutíamos muito a Lei 6.229, por que ela chegava ao absurdo de querer entregarao município a questão da emergência, sem nenhuma noção do que fosseemergência. Nossa rede foi formada por unidades de atenção primária à saúde.

Montamos dezesseis unidades, paulatinamente, cobrindo todo o município deNiterói. E elaboramos um plano para o financiamento da construção dessasunidades, através do FAS78. Brigamos muito com o FAS, porque era a época doshospitais e a prioridade do Fundo não era o setor público. Denunciamos isso, oque nos trouxe muitas dificuldades na implantação das unidades. Em váriasunidades tivemos que entrar com recursos próprios.”

Em relação ao processo de constituição das equipes multiprofissionais desaúde das unidades básicas implantadas, incorporando nesse processo aparticipação da comunidade, relembra Tomassini em seu depoimento:

“Os auxiliares de saúde eram fundamentalmente pessoal da própria comunidade,de cada área onde implantávamos uma unidade de saúde. Para formarmosaquilo que considerávamos como pessoal básico do trabalho, que eram osauxiliares, os agentes de saúde, buscamos uma articulação com as associaçõesdos moradores e lideranças locais dos diversos bairros da cidade. A idéia eraque, através da associação, pudéssemos conhecer pessoas que pudessem formara equipe básica de saúde das unidades, constituindo o grupo de auxiliares desaúde. A equipe de técnicos da Secretaria ia às reuniões articuladas pelaassociação de moradores para expor nossas propostas. Daí nasciam os cursosde preparação das pessoas do bairro para atuarem como agentes de saúde.Esses cursos eram conduzidos por pessoal nosso [da equipe central], comenfermeira da Secretaria. Mas sempre colocávamos também um médico para

78 Fundo de Assistência ao Desenvolvimento Social

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ajudar. Eu levava a lista dos melhores classificados no curso para serem nomeadospelo Prefeito, que não recusava nenhum nome na época.

Para nós o aspecto mais importante era que os auxiliares de saúde conhecessema comunidade em que viviam e trabalhavam. Era mais importante a presençadesse pessoal nas unidades do que propriamente o pessoal de nível superior,que era geralmente importado.

Não havia médico clínico geral nas unidades de saúde, porque a universidadenão estava formando esse profissional. Trabalhávamos com três profissionais denível superior: gineco-obstetra, pediatra e clínico. Tínhamos também enfermeirae pessoal auxiliar, a quem delegávamos muitas funções.”

Gilson O’Dwyer complementa esse relato, lembrando que a organização darede local de saúde, num trabalho conjunto com a comunidade, se constituiu comoum instrumento de dinamização dos movimentos sociais no município:

“A discussão com a comunidade foi algo fundamental. Tanto se fazia no próprioposto de saúde, como na associação de moradores ou numa igreja. Também sefazia nas reuniões com representantes de cada posto de saúde. Nessas reuniõessemanais, havia sempre um representante de nível superior e um de nível médio,dentro daquela visão do Arouca de ocupar espaço na saúde para fazer a oposiçãoà ditadura de forma democrática.”

A experiência da implantação de serviços locais de saúde em Niterói gerouinstrumentos de gestão, como relata Tomassini:

“À medida que os serviços iam sendo instalados, tínhamos de ter um controle decomo os serviços eram feitos. Precisávamos ter uma medição desses serviços:quantas consultas de enfermagem, quantas consultas médicas, quantas consultasem cada especialidade. A necessidade de colher esse dados, nos levou a montarum sistema de relatórios. Esses relatórios eram elaborados por cada unidadepara que fosse feito, no nível central da Secretaria, um condensado. Isso serviuaté para uma divulgação do que se fazia na Secretaria. A questão do controle dosprofissionais de saúde no centro de saúde, por exemplo, era claro para nós que,à medida que as comunidades locais participavam da formação da unidade, ocontrole estava resolvido. Não era preocupação nossa, no nível central, controlaros profissionais no nível do centro de saúde. Tínhamos a certeza de que o serviçoestava sendo bem prestado dentro daquela estrutura e das dificuldades quetinham.”

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Embora tenha havido momentos de oscilação na relação entre a Universidadee os serviços de saúde em Niterói, um fator significativo na construção dos serviçoslocais de saúde no município foi a articulação da Secretaria Municipal de Saúdecom setores da UFF. Destaca Tomassini em seu depoimento:

“A UFF era na época uma universidade conservadora, que mantinha uma aliançamuito acentuada com o Governo federal, encarnando o processo da ditaduramilitar. Mas ela tinha também focos extremamente interessantes de resistência,a exemplo das faculdades de Economia, História e Educação. O nossodepartamento, o Departamento de Medicina Preventiva, já discutia o perfil doprofissional que estávamos formando e para que realidade o estávamos formando.Essa discussão, que durou dez a doze anos, fundou as bases para a mudançade currículo de Medicina na UFF.

Entendo que a UFF lucrou muito nesse sentido, porque o Departamento deMedicina Preventiva, que se chamava Saúde da Comunidade, depois virouInstituto de Saúde da Comunidade, teve uma projeção muito maior dentro daUFF, muito na base do que foi implantado na Secretaria de Saúde de Niterói. Oque vejo de positivo, pessoalmente, foi que consegui formar uma escola de gente.O que caracteriza, hoje, a UFF? Ela é fundamentalmente, talvez, das escolasmédicas do Rio de Janeiro, aquela em que a parte prática é muito maior, otrabalho de campo é seu principal eixo e não a questão teórica.”

No final dos anos 70, houve um retrocesso na Secretaria Municipal de Saúdede Niterói: as propostas que vinham sendo desenvolvidas foram inviabilizadas em1979, quando o então Prefeito Moreira Franco aderiu ao PDS e demitiu os secretáriosmunicipais ligados às posições progressistas, dentre eles Tomassini, que relata:

“Voltei para a universidade e comecei a trabalhar na reformulação do currículo,que leva aproximadamente 15 anos para ser aceita. Quando o Gilson [O’Dwyer]assume a Secretaria de Saúde, o relacionamento entre a Universidade e aSecretaria fica mais fácil. Houve a possibilidade de levarmos os alunos paratrabalhar nas unidades municipais de saúde desde seu primeiro ano de formação,na visão de que o ensino de medicina deve começar pela área da saúde e nãopela doença. Hoje, o currículo de medicina da UFF foi um dos grandes fatoresque levaram a Universidade a ser premiada com o PROMED. E nosso grupo,egresso da Secretaria, vai depois para o Projeto Niterói.”

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A influência do trabalho desenvolvido na SMS de Niterói no currículo demedicina da UFF e no Projeto Niterói a que se refere Tomassini é destacada porO’Dwyer em seu depoimento:

“O Projeto Niterói surge dentro de um acordo entre a Secretaria Municipal de Saúde,a Universidade, o INAMPS e a Secretaria de Estado de Saúde. Ele se institucionalizaem dezembro de 1982. A proposta dele começa na gestão de Tomassini, com aproposta de avançar na articulação do trabalho isolado de cada uma dessasinstituições. Por que a Universidade? Não era só pela questão de ser aparelhoformador, pois a UFF tem um hospital universitário fortíssimo na cidade, que é oHospital Antônio Pedro. A própria reforma curricular começa por iniciativa de umgrupo de trabalho do Projeto Niterói e alcança seu sucesso quando o representantedesse grupo de trabalho se torna diretor da Faculdade de Medicina da UFF, e eu,Secretário de Saúde de Niterói. Esses atores começam a crescer nas suas instituições,formando quadros. Então, o Projeto Niterói começa assim, depois passa pelainstitucionalização, com a questão das AIS. O Projeto começa a ser pensado nagestão do Tomassini, depois o INAMPS passa a ser um ator importante, até porqueteve o poder do repasse financeiro e, por isso, fazia o secretário executivo do Projetonum primeiro momento, abrindo depois isso. Termina exatamente em 1989, apósa Lei Orgânica da Saúde. Não tinha mais por que existir. Surgiu então o ConselhoMunicipal de Saúde. Nesse caso, esse segundo Projeto Niterói volta para a Secretariacomigo Secretário, com a vitória de outro candidato de esquerda. Quer dizer, houveum momento Tomassini com Moreira, na época como Prefeito de esquerda; depoisa Prefeitura vai para a mão do PDS, depois vai para a mão do PDT, com o candidatoJorge Roberto, e o grupo do Projeto Niterói volta para a Secretaria de Saúde, comigosecretário, quando começo na rede a experiência do médico de família, mas tendocomo base o sistema.”

O’Dwyer destaca ainda em seu depoimento a importância da gestão deTomassini, que iniciou no município a implantação de uma rede de serviços locaisde saúde, o que gerou as condições para uma efetiva mudança da realidade sanitáriaem Niterói:

“Tomassini montou uma estrutura modelo de organização de sistema, que foifundamental, caracterizada por uma regionalização do sistema. Aquilo que foimontado na Secretaria de Saúde como estrutura de rede de organização deserviços ficou. O que houve depois foi a incorporação das unidades estaduais,em um outro momento. Hoje, as unidades que o Tomassini implantou, que eramunidades de clínicas básicas, viraram centros policlínicos, transformaram-se emcentros policlínicos de referência de médicos de família.”

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Os movimentos desencadeados na década de 70 em vários locais do país,que envolveram um conjunto significativo de pessoas e instituições, contribuírampara a construção das bases teóricas e conceituais que sustentaram o projeto dereforma sanitária brasileira e que estabeleceram os princípios norteadores do SistemaÚnico de Saúde – SUS.

O resgate dessa história, relatada detalhadamente por Arouca em seudepoimento, evidencia a gênese do movimento sanitário brasileiro num cenário deluta contra a ditadura. Revela ainda a importância das modificações ocorridas nocampo das ciências sociais em saúde; o envolvimento dos departamentos demedicina preventiva nas universidades brasileiras na perspectiva de mudança darealidade sanitária e politica do país; a emergência da proposta de medicinacomunitária e a institucionalização das propostas daí advindas nas secretariasmunicipais de saúde.

A importância das experiências de organização de sistemas públicos locais desaúde vivenciadas pelos municípios de Campinas, Londrina e Niterói na década de 70expressa-se no fato de que essas experiências institucionalizaram nas respectivasSMS a discussão teórica que vinha se desenvolvendo nas universidades. Um outroaspecto que pode ser destacado em relação a essas experiências diz respeito àaproximação com outros movimentos da sociedade civil, em particular com asassociações de moradores, sindicatos e comunidades eclesiais de base, propiciandoa emergência de novos atores nos espaços públicos de gestão da saúde.

Esses municípios acabaram se tornando referência para as questões técnicase políticas constitutivas da agenda dos movimentos pela transformação da saúdena década de 70. Ao defender a descentralização do setor e a adoção da atençãointegral a saúde, esses projetos favoreceram, por meio de práticas consistentes, aconsolidação das concepções centrais do movimento sanitário brasileiro. Nessesentido, transformaram as SMS num espaço efetivo de implementação de mudançasno setor saúde.

A historia vivenciada por esses municípios evidenciam ainda que, nonascedouro do movimento pela reforma sanitária, a organização dos serviços desaúde afigura-se como uma contribuição significativa, por viabilizar uma relaçãofecunda entre a academia, os serviços de saúde e a comunidade, e por ampliar adiscussão sobre a estratégia da municipalização nos processos de implantação domodelo descentralizado de atenção à saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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MOVIMENTO SANITÁRIO BRASILEIRO NA DÉCADA DE 70:... 91

LISTA DE SIGLAS

ABRASCO Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde ColetivaABEM Associação Brasileira de Educação MédicaAIS Ações Integradas de SaúdeAP Ação PopularARENA Aliança Renovadora NacionalCEBs Comunidades Eclesiais de BaseCEBES Centro Brasileiro de Estudos de SaúdeENSP Escola Nacional de Saúde PúblicaFAS Fundo de Apoio ao Desenvolvimento SocialFINEP Financiadora de Estudos e ProjetosFIOCRUZ Fundação Osvaldo CruzINAMPS Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência SocialINAN Instituto Nacional de Alimentação e NutriçãoINPS Instituto Nacional de Previdência SocialMDB Movimento Democrático BrasileiroOPAS Organização Pan-Americana de SaúdePCB Partido Comunista BrasileiroPC do B Partido Comunista do BrasilPDS Partido Democrático SocialPDT Partido Democrático TrabalhistaPESES Programa de Estudos Sociais e Econômicos de SaúdePESPES Programa de Estudos Sociais e Pesquisas EpidemiológicasPIDAS Programa de Integração Docente AssistencialPIASS Programa de Interiorização de Ações de Saúde e SaneamentoPMDB Partido do Movimento Democrático BrasileiroPT Partido dos TrabalhadoresPPREPS Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de SaúdeSESAC Semana de Estudos sobre Saúde ComunitáriaSMS Secretaria Municipal de SaúdeSUS Sistema Único de SaúdeUEL Universidade Estadual de LondrinaUERJ Universidade Estadual do Rio de JaneiroUFF Universidade Federal FluminenseUNICAMP Universidade Estadual de CampinasUSP Universidade de São Paulo

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