mulheres pioneiras nas ciências: histórias de conquistas numa
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Mulheres Pioneiras nas Ciências: Histórias de Conquistas numa Cultura de Exclusão
Herivelto Moreira 1 Isabel Ribeiro Gravonski 2
Marilia Gomes de Carvalho3 Nádia V. J. Kovaleski 4
Resumo
Este artigo demonstra a relação das mulheres com o saber por meio de um estudo histórico. Primeiramente, analisam-se os discursos sobre a instrução feminina em diferentes momentos e sua influência nas relações de gênero até o século XXI. Esses discursos refletiram também na educação das mulheres no Brasil. Em seguida, apresentam-se histórias de algumas notáveis mulheres que se consagraram no estudo das ciências. Os dados resultam de uma pesquisa bibliográfica e demonstra que, embora as mulheres sempre tenham sido afastadas dos conhecimentos científicos e tecnológicos, com determinação e competência elas conquistaram posições que só eram permitidas aos homens. Palavras-chave: Instrução das Mulheres; Mulheres Cientistas; Gênero na História.
1 Doutor em Educação, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná(UTFPR), e-mail: [email protected]. 2 Mestre em Estudos Literários, aluna de doutorado do PPGTE- UTFPR, professora da UTFPR, e-mail: [email protected]. 3 Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, pós-doutora pela Universidade de Compiègne-França, professora da UTFPR, e-mail: mariliagdecarvalho@gmail. 4 Mestre em Ciências Sociais, aluna de doutorado do PPGTE- UTFPR, professora da UTFPR, e-mail: [email protected].
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Introdução
Ao estudar historicamente a relação das mulheres com a instrução, com os saberes produzidos
pelas sociedades, deparamo-nos com um conceito pré-estabelecido e repetidamente presente nos
discursos: a incapacidade intelectual das mulheres para entender as ciências mais abstratas,
como a matemática, a física, a filosofia.
Esse preconceito pode ser encontrado em todos os períodos da história da humanidade que
considerou a mulher um ser inferior ao homem e a ele submisso. Embora a sociedade tenha se
modificado em vários aspectos e as mulheres estejam presentes em diferentes áreas de trabalho,
ainda no século XXI a herança de determinados conceitos influencia tanto nas ações das
mulheres quanto nos julgamentos sofridos por ela. Um exemplo de como ainda não há abertura
para a aceitação da igualdade de direitos para ambos os sexos é encontrado na diferenciação de
salários pagos à mulher e ao homem (UNESCO, 2007).
Como a educação é formadora de cultura, faremos neste artigo a análise da relação da
mulher com os saberes permitidos a ela para em seguida demonstrar os saberes produzidos por
ela.
Para analisar as interferências sociais presentes na história das conquistas femininas,
apresentamos, num primeiro momento, o discurso dos filósofos iluministas, a respeito da
educação das mulheres e, em particular, de Jean Jacques Rousseau pela sua grande influência
no século XIX e, na sequência, descrevemos como se deu a implantação da educação feminina
no Brasil.
Em seguida, relacionamos várias mulheres cujas conquistas negam qualquer discurso que
desmereça a capacidade feminina e prova que mulheres cientistas não faltam na História, mas
que foram afastadas de propósito das ciências e do poder.
Mulheres e saberes na sociedade do final do século XVIII e século XIX
Segundo Berger et al. 1999, as sociedades que surgem depois da Revolução Francesa podem ser
definidas como sociedades pluralistas, cuja a característica principal é uma rápida mudança social.
Essas sociedades são ao mesmo tempo o produto e um dos fatores de aceleração: “O pluralismo
encoraja tanto o cepticismo quanto à inovação, sendo assim eminentemente subversivo da realidade
admitida como certa de statu quo tradicional” (BERGER,1999, p.169).
Sendo assim, nas concepções democráticas que começam a nascer, não existem mais
autoridades que teriam o privilégio do saber e de determinar o que era certo ou o errado, como
acontecia antes da Revolução Francesa. Agora cada indivíduo tem o poder singular de falar, de
conhecer e de seguir o seu próprio julgamento. Por isso, para compreender os acontecimentos dos
séculos XIX, XX e XXI e em particular a relação mulheres/saberes/instrução é imprescindível discutir
este momento chave na história do mundo ocidental: A Revolução Francesa. Assistiu-se neste
momento ao nascimento das democracias ocidentais cuja essência é a igualdade (igualdade jurídica
e não social e econômica). Por mais que a verdadeira igualdade seja uma utopia, a potência
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ideológica e moral que ela detém permitiram e permitem ainda mudar substancialmente a relação dos
homens entre eles.
É verdadeiramente um momento chave para as mulheres.
Uma das conquistas da Revolução Francesa foi, em 1789, a aprovação da “Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão” na qual se declara que “todos os seres humanos são livres e iguais
de direito ( BADINTER, p. 190, 1986). Em 1791, Olympe de Gouges redigiu a “Declaração dos
Direitos da Mulher e da Cidadã” e, em 1792, Mary Wollstonecraft escreveu “Vindication of the Rights
of Woman”.
Por que será que, respectivamente a dois e três anos da “Declaração do Direito do Homem e do
cidadão”, estas duas mulheres sentiram a necessidade de criarem outra Declaração? O “Homem” da
Declaração de 1789 não tinha um sentido universal? Não se referiu a todos os seres humanos,
homens e mulheres?
Ao analisar os discursos presentes no século das luzes, constata-se que as mulheres são
consideradas a metade do gênero humano que vive em função da outra metade. Na alocução à
República de Genebra, Rousseau, (1999, p. 41) escreve: “Poderia esquecer essa preciosa metade da
República que faz a felicidade da outra, e cuja doçura e sabedoria mantêm nesta a paz e as boas
maneiras?”. O mesmo autor, em seu livro “Emile ou de l’éducation” publicado em 1762, descreve
como deveria ser a educação para os homens e para as mulheres. Para ele, as diferenças de sexo
deveriam nortear todos os comportamentos:
Pela lei da natureza as mulheres, para seu próprio bem e o bem de seus filhos, estão à mercê do julgamento dos homens. Mérito em si, não será suficiente, uma mulher deve ser julgada digna; nem pela beleza, ela deve ser admirada; nem pela sabedoria, ela deve ser respeitada. A sua honra não está apenas na conduta, mas em sua reputação, e não é possível que aquela que se deixa ver como desonrada, possa, algum dia ser boa. Quando um homem age certo, ele só depende de si e pode desafiar o julgamento público, mas quando uma mulher age certo, ela terá feito apenas a metade de sua obrigação, e o que os outros pensam dela não é menos importante do que ela na verdade é. Sendo assim, sua educação deve neste aspecto, ser o oposto da nossa (ROUSSEAU, 1966, p. 475)
Dessa forma, Rousseau descreve como seria a educação de Emile, o homem tal qual o autor
sonhava e, no quinto capítulo, descreve Sophie (sabedoria em grego), a companheira ideal do Emile.
Para o autor, a educação da mulher deve ser diferente do homem. Rousseau (1966, p.479) nos
adverte que Sophie não será educada na ignorância de tudo: “Deverá aprender muitas coisas, mas
apenas aquelas que lhe convêm saber”. Naturalmente, coquete e amante dos belos trajes, a pequena
Sophie aprenderá de bom grado, ainda jovem, a usar a agulha e a desenhar, mas não já a escrever e
a ler: “De fato, quase todas as meninas aprendem com repugnância a ler e escrever” (ROUSSEAU,
1966, p. 479).
No entanto, o que percebemos também em seu discurso é a necessidade de ocultar a mulher da
educação para que a mesma não se torne uma ameaça ao próprio homem:
Preferirei ainda cem vezes mais uma mulher simples e pouca instruída a uma mulher culta e pedante que viesse estabelecer em minha casa um tribunal de literatura do qual se faria a presidente. Uma mulher pedante é o flagelo do marido, dos filhos, dos criados, de todo mundo. Da sublima altura de seu gênio, ela desdenha todos os seus deveres de mulher” (ROUSSEAU, 1966, p.536).
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Rousseau reconhece que existe desigualdade entre homens e mulheres, mas, a seu ver, ela é
justificada: “Essa desigualdade não é o fato de uma instituição humana ou ao menos ela não é o fruto
de um preconceito, mas da razão: é ela [a mulher] que foi encarregada pela Natureza de procriar e
ela deva responder dessa responsabilidade frente ao homem” (ROUSSEAU 1966, p. 470).
Para a maior parte dos filósofos iluministas, que à mulher falte a razão ou tenha uma razão
inferior é de uma evidência tranqüilizadora, mas que, no entanto, pretende apoiar-se em fatos. Entre
esses fatos, o mais freqüentemente citado é que não existem mulheres capazes de invenções, elas
estão excluídas do gênio. Segundo Crampe-Casnabet (1993), essa incapacidade é baseada numa
psicologia natural: a mulher é o ser da paixão e da imaginação, não do conceito.
Rousseau (1966) afirma que a mulher mantém-se perpetuamente na infância: ela é incapaz de
ver tudo o que é exterior ao mundo fechado da domesticidade, e daí resulta que ela não pode praticar
as ciências exatas.
Esse posicionamento compartilhado por muitos defende que “a diferença biológica sexual dá
origem a conseqüências sociais inevitáveis e irremediáveis e que um manual modificado da Idade da
Pedra sobre as melhores práticas para a divisão do trabalho, entre outras facetas da sociedade,
ainda vale para o século XXI.” (MARINOFF, 2008, p. 326)
O que teria pensado Rousseau de mulheres tal qual Olympe de Gouges ou Mary Wollstonecraft?
A respeito das mulheres escritoras diz ele:
Todas essas mulheres de grandes talentos só impressionam os imbecis. Sabemos sempre qual é o artista ou o amigo que segura a pena ou o pincel quando elas trabalham; sabemos qual é o discreto homem de letra que lhe dita em segredo. Todas essas charlatonas são indignas das mulheres honestas. Mesmo tendo verdadeiros talentos a sua pretensão os tornariam vis. A sua dignidade é de ser ignorada; a sua glória está na estima do seu marido: os seus prazeres estão na felicidade da sua família” (ROUSSEAU, 1966, p.536).
No entanto, Rousseau (1966) fica muito aquém do pensamento de Poullain de la Barre que em
De l’Egalité des Sexes (1673) e em De l’Education des Dames (1673), defende a igualdade entre as
mulheres e os homens, à maneira cartesiana5, em nomes das idéias claras e distintas, da evidência
racional, em luta contra todos os preconceitos ( CRAMPE-CASNABET, 1993).
Um dos impulsionadores da Enciclopédia, Claude Adrien Helvetius (1715-71), citado por
Crampe-Casnabet (1993) tem também um ponto de vista diferente de Rousseau. Em seu livro De
l’Esprit, o autor afirma que a desigualdade feminina e as diferenças de “natureza” e de
“comportamento” que tantos filósofos salientaram, não são senão os efeitos da educação viciosa que
as mulheres receberam. No entanto, o seu livro foi condenado, em 1759, pelo Papa Clemente XIII,
queimado, solenemente, por decreto do Parlamento de Paris e, inclusive, pela Faculdade de
Teologia, a Sorbonne (CRAMPE-CASNABET, 1993).
Outro autor importante a ser citado é o marquês de Condorcet (1743-94). Para ele, o talento
feminino não se limitava à maternidade, a mulher poderia ter acesso a todas as posições, pois só a
5 Na opinião dos cartesianos, o espírito é livre com relação ao corpo, em razão da sua anterioridade ontológica, e isso é verdade para todo ser humano, qualquer que seja o seu sexo. A originalidade do pensamento cartesiano está aí: ao fazer prevalecer a razão sobre qualquer determinação reúne homem e mulher no conceito de humanidade, e torna secundária a diferença sexual. BADINTER, E. O que é uma mulher? Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991.
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injustiça e não a natureza proíbe a mulher do acesso ao saber e ao poder (BADINTER, 1986). Ele foi
um dos únicos que, durante a Revolução Francesa, empenhou-se em mostrar a igualdade natural e
política entre o homem e a mulher.
Assim as declarações de Olympe de Gouges (1791) e de Mary Wollstonecraft (1792) são
justificadas. De fato, o pensamento iluminista que preparou em grande parte a Revolução Francesa
de 1789 tem uma âncora na Natureza, vista como unidade do gênero humano, preconceito
necessário a sua igualdade jurídica e política que seria instaurada no Contrato Social. Ao mesmo
tempo, os sábios do século XVIII (filósofos, médicos, etc...) inventam uma natureza feminina definida
com base em suas necessidades da espécie e das leis da reprodução. Assim, é por essa função,
determinada pela natureza, que a mulher pode, de algum modo, ser cidadã. Salvo por Condorcet, não
foi reconhecido à mulher um estatuto político. Pode-se dizer que a ideologia mais representada no
século XVIII consiste em considerar que o homem é a causa final da mulher.
2.1 As mulheres e a sua educação nos séculos XIX no brasil.
Ao observar os discursos presentes na história, podemos constatar o quanto a atual realidade vivida
pela mulher no século XXI é consequência das desigualdades herdadas de muitos anos e que ainda
tem influência na cultura atual. E a educação nos diversos países reflete diretamente os tratamentos
diferenciados oferecidos às mulheres e aos homens,
A educação é um dos maiores indicadores da parcialidade ou da imparcialidade de uma cultura. (...) E lastimavelmente, as mulheres no mundo em desenvolvimento foram excluídas em massa da oportunidade de serem alfabetizadas, sendo, por conseguinte, excluídas de todas as oportunidades que a educação confere (MARINOFF, 2008, p353).
Por a educação ser um tema bastante amplo, e por ela se diversificar de acordo com a cultura de
cada país, abordaremos a influência dos discursos iluministas na educação feminina no Brasil como
exemplo das dificuldades que as mulheres tiveram para o acesso ao saber.
Os historiadores da educação brasileira que abordaram o tema da educação feminina
demonstram que a escolaridade para as mulheres não tinha sido uma preocupação da sociedade
patriarcal brasileira até meados dos séculos XIX. O patriarcalimo brasileiro caracterizou-se por uma
severa clausura doméstica das mulheres, costume herdado da Península Ibérica e
conseqüentemente dos árabes (MAURO, 1980). Essa clausura doméstica, esse afastamento do
mundo e a ignorância que marcaram o espaço de vivência feminina durante o período colonial,
adentraram o próprio período do Império.
No entanto, os acontecimentos do final do século XVIII na Europa trouxeram novos ares que
impregnaram a sociedade brasileira. Segundo Manoel (1996), a sociedade (a oligarquia, sobretudo)
percebeu que não era mais possível manter suas filhas no mesmo grau de ignorância e isolamento
em que viviam, estado incompatível com a sociedade brasileira que se urbanizava, abria-se ao
contato com a cultura e o mundo moderno.
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Assim, a sociedade brasileira no final do Império/República sentia que era necessário dar um
pouco mais de instrução às mulheres em vista das mudanças do mundo moderno. Mas que tipo de
instrução?
Na verdade, a grande questão era: como educar, conforme as exigências do mundo moderno,
sem deixar o lado subversivo dessa modernidade corromper a alma feminina? Porque se a palavra
“moderna” significava máquinas, eletricidade, bancos, ferrovias, significava também extensão de
direitos civis para todos, inclusive às mulheres. E dos fantasmas da modernidade “o que mais
assombrava a oligarquia brasileira (...) eram justamente essas primeiras manifestações de um
movimento feminista” (MANOEL, 1996, p.30).
Intelectuais de extração liberal e positivista, como Teixeira Mendes, Tito Lívio de Castro e José
Veríssimo, embora aceitassem a educação feminina, recomendavam que ela não ultrapassasse os
limites da formação de donas-de-casa e mães de família. José Veríssimo ia mais longe, aceitava, e
mesmo recomendava a educação feminina, para que as mulheres pudessem ser boas mães, mas
dado serem as mulheres menos inteligentes do que os homens, elas não deviam receber instrução
em matemática e outras disciplinas científicas (MANOEL, 1996).
Paranhos, o barão de Rio Branco, citado por Manoel (1996) definiu um projeto de “revolução
dentro da ordem” para a educação feminina cujas disciplinas seriam prendas domésticas para formar
damas prendadas e boas donas de casa. Em defesa dessa proposta dizia ele: “Nada de reviver as
loucas e funestas tentativas de Catharina Teot e Olympia de Gouges, fundadoras das Mulheres
Livres, e outras notabilidades femininas, que pretendem emancipar-se da tutela dos homens e
aspiram aos mesmos empregos e direitos que eles” (MANOEL,1996, p. 31 ). A respeito da concessão
de direitos políticos às mulheres, continuava ele: “Deus nos livre de um mulherio eivado dessa lepra.
Onde iríamos parar com essa república de publicistas de saias, quem iria resistir à sedução dessas
varoas?” (PARANHOS, 1972 citado por MANOEL, 1996, p.31).
Além disso, não bastava desejar a educação para as filhas, era preciso escolas, e no Brasil do
Império era o que mais faltava. O sistema escolar existente era muito precário (RODRIGUES, 1962).
O fracasso foi ainda mais retumbante da instrução pública feminina, porque embora a oligarquia
precisasse que suas filhas tivessem um pouco mais de instrução, os pais das classes desfavorecidas
não entendiam o porquê da instrução feminina.
Entre as disciplinas ensinadas, leitura, escrita, quatro operações, gramáticas, moral cristã,
doutrina católica e prendas domésticas, a última era a mais requisitada pelos pais das estudantes.
Percebe-se assim que a educação permitida à mulher veio ainda carregada de determinações
preconceituosas. Citamos aqui o filósofo, Condorcet e sua defesa pela igualdade:
Em primeiro lugar é em nome da igualdade dos direitos da espécie humana que a mulher deve ser instruída como o homem. Depois, essa instrução igual para as mulheres corresponde à utilidade pública. A mulher poderá velar pela instrução dos filhos e igual ao marido pelos seus conhecimentos, aumentará a felicidade da família; permitirá que o marido não esqueça os conhecimentos adquiridos na sua juventude. (...) O orgulho do forte leva-o facilmente a acreditar que o fraco foi feito para ele; mas isso não é nem a filosofia da razão e nem da justiça (CONDORCET,1791, citado por CRAMPE-CASBANET, 1993).
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Portanto, a realidade brasileira é um exemplo de como todas as mulheres foram privadas do
direito de aprender. E, dessa forma, só algumas mulheres notáveis e persistentes puderam
consagrar-se ao estudo das ciências.
Pioneiras na Europa e na América Latina: uma outra história das ciências era possível?
A história de exclusão das mulheres do direito de igualdade de oportunidades pode ser descrita em
estudos de diversas áreas, tais como na escolha de profissões, no trabalho, na política, na ciência e
tecnologia e outras. E em todos os estudos poderá ser percebido que os homens dominam a maioria
dos setores chegando ao ponto de classificar-se determinadas áreas como masculina ou feminina
(MARINOFF, 2008).
Neste artigo, optamos por relatar a história de algumas mulheres que se destacaram num campo
ainda de predomínio masculino. Lembramos aqui a questão polêmica de Larry Summers, quando
presidente da Universidade de Harvard, feita em 2005: porque a discrepância do número de mulheres
e de homens na ciência. O mesmo afirmou que essa discrepância estaria relacionada a capacidades
inatas ao homem e não à mulher.
Contrapondo essa afirmação, na época, a psicóloga Leda Cosmides, citada por Nogueira (2005)
afirmou que as influências culturais do desenvolvimento humano podem fazer com que as mulheres
desenvolvam interesses diferentes dos interesses dos homens, mas que quando a mulher opta por
uma ou por outra não há fator inato que possa prejudicá-la no seu desempenho.
Marinoff (2008) também afirma que desde que as mulheres conquistaram seu espaço, elas
“demonstraram rapidamente todos os tipos de excelência em ciências aplicadas e experimentais,
como a medicina e a engenharia” assim como em outras diversas áreas, mostrando igualdade de
competências e de desempenho nos mais altos níveis e “que a ausência histórica da mulher em
contribuições nessas áreas foi um resultado de preconceitos culturais contra elas, e não qualquer
déficit natural de talento ou de genialidade (MARINOFF, 2008, p. 358). Mesmo que os iluministas
tenham afirmado que as mulheres tinham dificuldade para entender as ciências exatas, elas
demonstraram seu talento tanto na aprendizagem quanto no ensino e desenvolvimento destas
ciências.
Sartori (2006) em seu livro “Histoire des femmes scientifiques de l Antiquite au XX siecle resgata
a história das mulheres cientificas da antiguidade até nossos dias a fim de que elas não sejam
esquecidas e mostra a grande participação das mulheres na ciência e na tecnologia em diferentes
épocas. A partir dessa obra e de outros autores, selecionamos algumas mulheres que se destacaram
nas diferentes ciências nos dois últimos séculos, a fim de melhor representar as dificuldades delas de
alcançar sucesso. Descreveremos a seguir a trajetória de algumas astrônomas, matemáticas, físicas,
químicas que fizeram grandes descobertas e contribuíram para diversas áreas. Algumas delas,
inclusive, trabalharam na sombra de um irmão, um marido e muitas vezes é o nome desses que
passou para a posteridade.
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De acordo com Sartori (2006) nos séculos XVIII e XIX a astronomia foi uma das ciências mais
praticadas pelas mulheres; entre 1650 e 1750, 14% dos astrônomos alemães eram mulheres, na
maioria oriunda de família fabricante de ótica. Marie Cunitz (1610-1664) retomou, simplificou e
recalculou as famosas mesas astronômicas de Kepler. Outra mulher importante citada pelo autor foi
Marie Winckelmann Kirch (1670-1720) que, em 1702, descobriu um cometa e escreveu importantes
tratados. Durante dez anos, Marie e seu marido desenvolveram o observatório de Berlim. Na morte
dele, a Academia de Berlim lhe recusou um cargo oficial de astrônoma. Alguns anos mais tarde este
mesmo cargo foi oferecido para seu filho e ela então pode se tornar sua assistente. Também Reine
Lepaute (1723-1788) teve um papel considerável na predição da volta do cometa Halley e Maria
Mitchell (1818-1889) descobriu um cometa e se tornou a primeira acadêmica americana a ocupar
durante dezenove anos um cargo de astrônoma profissional. No entanto, o seu salário era três vezes
inferior ao dos homens.
Sartori (2006) apresenta que, privada por seus pais de freqüentar escolas, Sophie Germain
(1776-1831) aprendeu sozinha a matemática e no início da sua carreira usou um pseudônimo
masculino para se corresponder com outros matemáticos. Suas contribuições à teoria dos números,
da acústica e da elasticidade são notáveis e além de ela ter tido coragem de explorar áreas ainda não
exploradas pela matemática. No entanto, no seu certificado de óbito, na rubrica profissão em vez de
estar escrito “matemática”, está escrito “rentière”6. O autor também salienta a particularidade das
universidades italianas que desde a sua fundação admitiram mulheres como alunas e, embora mais
raramente, como professoras que ensinavam matemática e física, como Laura Bassi (1711-1778) e
Maria Agnesi (1718-1799).
Ainda nas ciências exatas, onde há predominância masculina, Emilie du Châtelet (1706-1749),
foi a primeira mulher física reconhecida pela comunidade cientifica que deixou vários tratados
(BADINTER, 1986). Ada Byron (1815-1852) participou da elaboração da ciência que se tornou a
informática e antecipou mais de um século a informática moderna (SCHWARTZ, 2006).
O ingresso das mulheres nas ciências exatas sempre foi mais difícil e pouco divulgado. Um
exemplo do não reconhecimento da mulher pela comunidade científica é o caso de Emmy Noether.
Sabe-se que Einstein trabalhou durante dez anos na elaboração da teoria da relatividade ajudado,
entre outros cientistas, por Emmy Noether (1882-1935). Ela realizou durante 15 anos um trabalho
considerável e chegou à formulação de novos conceitos. No entanto, ela teve que esperar até 1921
para atingir o primeiro grau dos níveis na universidade e sem salário. Emmy emigrou dos Estados-
Unidos onde ensinou matemática num colégio de moças já que o Institute For Advanced Studies de
Princeton,que tinha recebido Einstein, lhe fechou as portas (SARTORI, 2006). Também Maric Mileva
(1875-1948) primeira esposa de Albert Einstein, matemática e física brilhante, participou ativamente
da elaboração da teoria da relatividade, mas só Einstein recebeu o prêmio Nobel. Einstein dizia dela
“Sem ela eu nunca teria começado minhas pesquisas e com certeza nunca as teria terminado”
(SARTORI, 2006).
6 Quem vive das suas rendas próprias.
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Também, segundo Sartori (2006) a maioria dos químicos e das químicas de hoje não sabem que
deve o nome de um dos métodos mais simples da química, o banho-maria, a Maria a Profetisa,
celebre química de Alexandria. Desde a Pré-História, as mulheres aprendem a reconhecer, tratar e
preparar as plantas para transformá-las em alimentos, tecidos, remédios. Marie Meurdrac (1610-
1680) escreveu uma verdadeira enciclopédia de química e Elisabeth Fulham (1760-1794) foi a
primeira pesquisadora profissional em química que fez três descobertas primordiais: as reduções
metálicas, a catálise e a foto redução: primeiro passo rumo a fotografia. Podemos nos surpreender
que seu nome seja ignorado.
Outra história interessante apresentada pelo autor é a de Marie-Anne Paulze (1758-1836),
mulher do famoso Antoine-Laurent Lavoisier, que traduziu obras dos químicos ingleses. Suas “notas
de tradução” eram, na verdade, críticas acirradas que permitiram avanços consideráveis na química.
Também Marie Curie ficará para sempre na história das vitórias femininas, pois foi a primeira mulher
a receber dois prêmios Nobel, um em física, em 1903, e outro em química, em 1911. Ela é mãe
também de um prêmio Nobel: sua filha Joliot-Curie recebeu o prêmio em química em 1935
(SARTORI, 2006). No entanto, sua candidatura à associação dos químicos foi recusada duas vezes.
No México, a antropóloga americana Zélia Nutall (1857-1923) e a antropóloga mexicana Isabel
Ramirez (1881-1943) foram marginalizadas pela comunidade científica e somente hoje as suas
pesquisas tiveram reconhecimento (MARTINEZ, 2006).
A questão de gênero também teve influência na carreira de Juana Miguela Petrocchi (1893-
1925), especialista argentina em entomologia. Ela descreveu onze espécies de mosquitos até então
desconhecidos. No entanto, apesar de ser altamente recomendada pelo seu professor, não foi aceita
na cátedra em zoologia, na Faculdade de Ciências exatas e Naturais da Universidade de Córdoba,
pois o conselho universitário decidiu que o sexo seria inconveniente para desempenhar tal cargo
(GARCIA, 2006). O mesmo aconteceu com a zoóloga Maria Isabel Hilton Scott (1889-1990) que
apesar de possuir uma trajetória universitária invejável, viu sua candidatura ao concurso de
professora de zoologia recusada porque sua condição de mulher não lhe permitiria sair em pesquisa
de campo (GARCIA, 2006).
No Brasil, Amélia Pedroso Benebien (1860-?), Rita Lobato Lopes (1867-1954), Antonia Dias
(XIX) foram as três primeiras mulheres a se formarem médicas. O decreto que autorizava as
mulheres a se matricular em curso superior datava de 1881. Essas mulheres foram muito corajosas e
tiveram um papel decisório na desmistificação de que os espaços universitários deveriam ser
vedados à presença feminina (SCHUMAHER et al.,2000).
As conquistas de algumas profissionais trouxeram ganhos para todas as mulheres. Bertha Lutz
(1894-1976), considerada profissional exemplar que descobriu várias espécies na zoologia, foi
pioneira nas lutas feministas. Ela representou o Brasil, em 1919, no Conselho Feminino Internacional,
órgão da Organização Internacional do Trabalho onde foram aprovados os princípios de salário igual
para ambos os sexos. No mesmo ano criou a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher. Em
1922 participou como delegada da I conferência Pan-Americana de Mulheres. De 1920 até 1932
travou uma luta incessante para a obtenção do voto das mulheres. Graduou-se advogada em 1933
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para poder participar plenamente na vida política. Em 1951 foi premiada com o título de Mulher das
Américas. Já doente, representou o Brasil no I Congresso Internacional da Mulher em 1975
(SCHUMAHER et al.,2000).
Além delas, Carmen Portinho (1903-) a terceira mulher a se tornar engenheira no Brasil, tem
também um percurso expressivo. Ainda no último ano do curso, começou a dar aulas no Colégio Dom
Pedro II e o fato de uma mulher lecionar num colégio masculino foi considerado um escândalo, tanto
que até o ministro da Justiça tentou interferir. Mesmo assim, ela ingressou em 1926 no quadro de
engenheiros da Diretoria de Obras e Viação da prefeitura do distrito Federal Rio de Janeiro. Em 1930
fez o primeiro curso de urbanismo do país, recebeu uma bolsa do Conselho Britânico para estagiar na
Inglaterra nas comissões de reconstrução e remodelação das cidades destruídas pela guerra. De
volta ao Brasil, foi responsável pela introdução do conceito de habitação popular. Em 1962, pediu a
aposentadoria do serviço público e, em 1966, criou a Escola Superior de Desenho Industrial, a qual
dirigiu durante vinte anos (SCHUMAHER et al.,2000).
Quando olhamos para a história de todas essas mulheres, podemos nos perguntar como seria a
ciência se houvesse igualdade de acesso ao conhecimento tanto para os homens quanto para as
mulheres. Maria Mitchell, citada por Sartori, 2006, disse “Na minha juventude eu achava que as
mulheres precisavam das ciências exatas, hoje eu acho que são as ciências exatas que precisam das
mulheres”
Pelo que a história nos apresenta, vemos que a natureza não fez as mulheres inferiores aos
homens, e que assim como eles as mulheres possuem capacidade e talento para participar
ativamente no campo científico. Podemos afirmar que as disparidades de gênero são decorrentes da
repressão cultural sofrida pelas mulheres.
Além da repressão cultural, outra dificuldade encontrada pelas mulheres está naquilo que os
próprios iluministas defendiam: a natureza da mulher. E a única lei inquestionável que é da natureza
da mulher é a maternidade. Assim, como nos lembra Fouque (2004, p.44-45):
deveremos chegar ao dia em que a procriação tem que ser vista como uma contribuição considerável de riqueza à comunidade humana pelas mulheres. Igualdade e diferença não poderiam ir uma sem a outra ou serem sacrificadas uma a outra. Se sacrificamos a igualdade à diferença, voltamos às posições reacionárias das sociedades tradicionais, se sacrificamos a diferença, com toda a riqueza de vida que ela carrega, à igualdade, esterilizamos as mulheres e empobrecemos a comunidade humana inteira.
Portanto, permitir que a mulher tenha direitos iguais aos homens e não oportunizar condições
diferenciadas para que mulher possa se adaptar às diversas situações é obrigar a mulher a se igualar
aos homens e não oportunizar que a mulher possa garantir seu próprio espaço.
Considerações finais
Em vez de perguntarmos “Porque tão poucas mulheres foram grandes cientistas?” poderíamos
perguntar “Por que se conhece tão pouco as mulheres cientistas?”
Pelas biografias das mulheres cientistas, independente das descobertas feitas, constata-se que
raramente não encontraram dificuldades, preconceitos, mesquinharia, e até perseguição devido ao
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seu sexo. Constata-se também que, proporcionalmente aos obstáculos encontrados, o número de
mulheres cientistas em todas as épocas é relativamente grande e seria totalmente errôneo achar que
o progresso científico e tecnológico aconteceu sem elas.
O maior dos obstáculos para as mulheres foi certamente a instrução que lhes foi negada durante
séculos, já que tiveram acesso às universidades somente mil anos após a criação da primeira
universidade. E hoje, segundo Hulin (2008), a desafetação por estudos científicos pela mulheres
provem de blocagens devidos ao atavismo das gerações as quais eram negada qualquer
capacidades para as ciências.
Concordamos com Marinoff (2008) quando ele afirma que a igualdade de direitos não significa
igualdade nos resultados, pois assim como há diferença nas escolhas entre os homens, as mulheres
também não são uniformes. Mesmo que se abram as portas da cultura para que a mulher possa se
desenvolver nas diferentes áreas, não serão todas que migrarão para o desenvolvimento das
ciências, mas isso lhes dará a chance de fazer escolhas, livres de conceitos pré-concebidos.
Referências
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