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COMPREENDENDO A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA A
CRIANÇA: REFLEXÕES SOBRE ATUAÇÃO E FORMAÇÃO
Leila Rute Oliveira Gurgel do Amaral – UFT - [email protected]
O presente artigo tem como objetivo traçar um panorama geral sobre a violência
intrafamiliar contra a criança na contemporaneidade, proporcionando reflexão sobre a
formação e atuação profissional. Para melhor compreensão destes fatores, apropriamo-
nos de uma pesquisa, realizada pela autora deste artigo, em que discute as questões
referentes à formação de pediatras, sendo possível, mesmo em áreas distintas, refletir
sobre a formação dos profissionais. Dessa forma, é apresentado um panorama geral da
pesquisa realizada, que subsidiará a análise referente à formação do educador. A
pesquisa foi descritiva de abordagem qualitativa. O principal objetivo foi o de conhecer
concepções e práticas de pediatras relacionadas à violência física intrafamiliar contra a
criança, à luz de sua história de vida e formação.
A parte inicial do artigo está dedicada à visão geral sobre violência intrafamiliar,
apresentando inclusive a relação entre práticas disciplinares e violência contra a criança.
Num segundo momento é descrito os procedimentos da pesquisa. O artigo é finalizado
considerando importantes aspectos relacionados à formação e atuação do educador no
contexto escolar.
A violência contra a criança pode ocorrer em diferentes lugares, desde os
espaços públicos até os privados; entretanto, as pesquisas apontam que é no lar, é na
família, que sua incidência é mais freqüente e sua gravidade maior (REICHENHEIM;
HASSELMANN; MORAES, 1999; ALMEIDA, 2002; BRITO et al., 2005). Embora a
família tenha como função proporcionar o desenvolvimento físico e emocional da
criança, as estatísticas mostram que é neste espaço privado que a criança mais sofre
violência e tem seus direitos subtraídos.
De acordo com a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância
e à Adolescência (ABRAPIA), por não haver pesquisas nacionais, os dados são obtidos
por analogia com países como os Estados Unidos. Por ano, 600 mil crianças e
adolescentes são vítimas de violência intrafamiliar. Ou seja: 68 por hora ou 1 por
2
minuto. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) estima que,
diariamente, 18 mil crianças e adolescentes são espancados no país.
A Sociedade Internacional de Prevenção ao Abuso e Negligência na Infância
(Sipani) afirma que, anualmente, 12% das 55,6 milhões de crianças brasileiras menores
de 14 anos são vítimas de alguma forma de violência dentro do lar (FUNDO DAS
NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA; ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE;
WORLD HEALTH ORGANIZATION; LABORATÓRIO DE ESTUDOS DA
CRIANÇA; ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA MULTIPROFISSIONAL DE PROTEÇÃO
À INFÂNCIA E À ADOLESCÊNCIA; SOCIEDADE INTERNACIONAL DE
PREVENÇÃO AO ABUSO E NEGLIGÊNCIA NA INFÂNCIA).
A terminologia violência doméstica tem sido usada para definir atos violentos
acontecidos no seio familiar. A palavra doméstica está relacionada ao meio familiar,
àquilo que é rotineiro. O termo sugere, ainda, que este tipo de violência manifesta-se
num lugar restrito e que os acontecimentos e segredos estão guardados sob o pacto do
silêncio.
Em função do caráter privado implícito no termo violência doméstica, optamos
neste trabalho pela alteração conceitual proposta pela literatura, denominando violência
intrafamiliar. Tal conceito possibilita que a violência seja vista para além do íntimo,
para além do restrito, alcançando o público, mobilizando, assim, políticas e ações de
enfrentamento (KOLLER; ANTONI, 2004).
Ao pensarmos na violência intrafamiliar, chama-nos a atenção para o fato
conhecido na literatura por “pacto do silêncio”, o vínculo entre agressor e agredido,
presente nesta modalidade de violência; tornando, desse modo, seu estudo mais
intrigante e complexo, complexidade tal capaz de mobilizar diferentes emoções àquele
que se depara com este tipo de violência.
A natureza dos vínculos entre agressor e agredido e o pacto do silêncio que se
estabelece entre ambos independem de classe social, tornando-se uma característica
mais forte da propagação da violência do que os indícios de sua classe socioeconômica.
Assim sendo, o caráter privado da violência intrafamiliar consistem em um dos entraves
para a proteção da criança em casos de violência acontecidos no seio familiar.
Constitui-se como um tipo de difícil identificação, haja vista sua característica
de ser produzida na vida privada. Segundo Tardivo, Pinto Júnior e Santos (2005, p. 63),
o desvelamento “representa romper o complô do silêncio e deparar-se com a vítima, o
3
agressor e a família em um mesmo e único núcleo com uma dinâmica perigosa e
destrutiva.”
O agressor geralmente faz parte do convívio da criança ou, pelo menos, é
conhecido por ela, e a vítima, em geral, nutre sentimentos de amor e ódio (GUERRA,
1985; AZEVEDO; GUERRA, 1998). Assim sendo, profissionais, vizinhos ou parentes
receiam invadir o espaço privado para apontar a existência de violência no lar.
No mês de abril do ano de 2008, a Áustria foi palco de um terrível caso em que o
pai manteve a filha por 24 anos em cativeiro, sendo gerados 7 filhos, frutos do incesto.
Durante 24 anos, enquanto o pacto do silêncio imperava, crianças nasciam dessa
relação, sendo tolhidas de ver a luz solar, de conhecer o mundo. Manteve-se, assim, o
segredo familiar por pelo menos 24 anos.
Na maioria das vezes, a violência intrafamiliar só é descoberta quando atinge um
nível de extremo sofrimento para a criança, ou até mesmo sua morte. Outro exemplo
que chocou a população brasileira, acontecido recentemente, foi o caso da menina
Isabella: classe média, cinco anos de idade, brutalmente espancada, asfixiada e
arremessada do sexto andar do prédio em que moravam seu pai e sua madrasta.
Assassinato infantil, violência física, sexual e psicológica, abandono,
negligências – casos parecidos com o da menina Isabella – têm acontecido
constantemente no mundo e, em especial, em nosso país, em todas as classes sociais.
Porém, não alcançam a visibilidade necessária nem mobilidade pessoal, política e social
suficiente para ações mais incisivas, constituindo, dessa forma, em grande desafio tanto
para a pesquisa quanto para a atuação profissional de tal problemática.
Como fato produzido histórica e socialmente, a violência intrafamiliar é
universal, não circunscrita a países subdesenvolvidos e nem ligada exclusivamente às
condições socioeconômicas, embora fatores ligados às privações financeiras e à falta de
perspectivas são fontes de estresse e podem levar ao aumento da incidência deste tipo de
violência (PANÚNCIO-PINTO, 2006).
Na compreensão deste fenômeno multicausal, há que se considerar também que
a notificação da violência parece ser mais comum nas classes desfavorecidas, onde as
famílias, por serem mais carentes, geralmente necessitam receber auxílio dos programas
sociais e comunitários e, por conseguinte, encontram-se mais expostas às intervenções
do poder público (DESLANDES, 1994). As famílias que têm maior independência do
poder público para sua manutenção podem manter mais encobertas as práticas
familiares violentas, o que não significa, necessariamente, menor incidência de
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violência intrafamiliar nestas camadas sociais, quando comparadas às de baixo poder
econômico.
Outro aspecto a ser considerado, ao tratarmos da violência intrafamiliar, é a
“síndrome do pequeno poder” (SAFFIOTI, 1989). Ela está relacionada com a questão
de oprimir e ser oprimido. O pai que, humilhado em seu serviço, ao chegar à sua casa
espanca seu filho, está exercendo tal poder. O indivíduo, ao ser oprimido pelo
macropoder, acaba por exercer de forma desproporcional e exagerada sua pequena
autoridade. Forma-se um ciclo: de violentado para violentador.
Saffioti (1989), na introdução do livro Crianças vitimizadas: a síndrome do
pequeno poder (AZEVEDO; GUERRA, 1989) diferencia a vitimação da vitimização,
conceituando vitimação como a violência expressa entre as classes sociais, no
macropoder, em que a classe que detém maior poder subjuga aquela menos favorecida,
produzindo diferentes tipos de vítimas, como as de alimento, educação, emprego, entre
outros. A vitimização relaciona-se também com a questão do poder, porém não mais de
um macropoder, mas do poder limitado, dentro de uma determinada classe social,
dentro do ambiente familiar, em que aquele que tem mais poder (pais ou cuidadores)
subjuga o menos favorecido (criança).
Por muitos séculos, a violência intrafamiliar foi entendida como um fenômeno
que ocorre no âmbito privado e somente diz respeito às pessoas que a vivenciam.
O homem exercia sem questionamentos o seu domínio sobre as mulheres e as
crianças, e cabia aos outros a aceitação e submissão. [...] a partir da evolução
histórica e social, iniciou-se a conscientização desse processo e, por conseguinte,
através do Movimento dos Direitos Humanos, a consolidação de leis que
impedem os maus-tratos a outros seres humanos (KOLLER; ANTONI, 2004, p.
296).
Embora seja difícil estabelecer relações causais, pesquisas evidenciam que
crianças de pais alcoólicos, abusadores, violentos, negligentes sofrem impactos
negativos mesmo quando não sofrem diretamente a violência, mas a testemunham. A
literatura relata a presença de dificuldades emocionais, como depressão, ansiedade,
incontinência urinária, pesadelos, problemas de comportamento como delinqüência,
5
pouco controle dos impulsos, dificuldades de ajustamento social, atrasos cognitivos e
sociais (GUILLE, 2004; BAIR-MERRITT, 2006).
Ferrari e Vecina (2002) apontam para conseqüências em curto e longo prazo,
salientando que, em curto, prazo a criança poderá desenvolver problemas físicos,
dificuldades no desenvolvimento das relações de apego e alterações no desenvolvimento
cognitivo, na linguagem e rendimento escolar. Em longo prazo, pode tornar-se pai
abusador, pode apresentar seqüelas físicas, conduta delinqüencial e comportamentos
suicidas.
O objetivo da exposição de algumas conseqüências da violência sobre a criança
é o de oportunizar reflexões relacionadas ao desenvolvimento infantil, ao ciclo familiar,
contexto social e instituições de apoio, buscando compreender aspectos individuais,
sociais, econômicos e políticos, que possibilitem a criação de estratégias para superação
e a busca pela prevenção da violência contra a criança.
Importante compreender que o conceito de violência é construído, e esta
construção está ancorada no contexto social, econômico e político, como aponta
Wieviorka (2006). Um exemplo dessa questão é o bater nos filhos. Se retrocedêssemos
para as décadas de 1960 ou 1970, o que poderíamos dizer sobre um pai que batia num
filho? Seria considerado um violentador? Mesmo que houvesse excessos? Pouco se
falava sobre a prática do bater, sendo esta considerada necessária à educação e
demonstração de amor. Com as mudanças sociais e o surgimento das leis de proteção à
criança, a mesma conduta, atualmente, tem sido cada vez mais questionada. O ato que
outrora era interpretado como importante para a “boa educação” passa a ser
compreendido como ações prejudiciais ao desenvolvimento infantil.
A preocupação dos cientistas em saber qual a melhor forma de educar os filhos
não é atual e remete à década de 1930. O modelo teórico proposto por Baumrind (1966)
exemplifica, neste período, a intencionalidade dos estudos voltados às práticas
educativas para a infância e estilos parentais utilizados na educação.
Outras pesquisas enfatizando os estilos parentais podem ser apontadas para
referendar a preocupação quanto à educação de crianças (GLASGOW et al., 1987;
STEINBERG; ELMEN; MOUNTS, 1989; LAMBORN et al., 1991; STEINBERG,
1991; STEINBERG et al., 1994; ALVARENGA; PICCININI, 2001; BAUMRIND,
2001; WEBER; BRANDENBURG; VIEZZER, 2003; WEBER, 2004; WEBER et al.,
2004; WEBER et al., 2006).
6
A categorização dos estilos parentais auxilia na compreensão geral do cuidado
com a criança; porém, o caráter dinâmico da educação não permite enquadramentos
rígidos, demonstrando que fatores biológicos, sociais e culturais promovem a criação e
re-criação de novos estilos parentais, conforme demonstrado pelas pesquisas. Há fatores
intergeracionais (WEBER, 2006) na transmissão de estilos parentais. Isto está
relacionado à condição de educar a partir de suas próprias experiências e crenças. Nesse
contexto, são observáveis diferentes estilos, que vão desde o abandono, a rejeição e a
negligência até o amor desmedido, tal como denomina Calligaris (1994). Cabe ressaltar,
entretanto, que os fatores intergeracionais não são dominantes na produção do estilo
parental dos pais. Sobre eles incidem outras influências, tais como: mídia, cultura,
história de vida e interações sociais. A ciência de um modo geral, e mais
especificamente educação, psicologia e medicina, também interferem na prática
educativa dos pais.
A partir de discussões contemporâneas sobre o bater em filhos surge a
necessidade de estruturar, conforme discutido por Oliveira (2006), a integração entre
práticas e concepções de educadores, possibilitando o surgimento de novos modelos
menos coercitivos.
A prática do bater, ao ser constituída social e culturalmente, receberá diferentes
interpretações “conforme se entenda ou não o bater nos filhos como violência”
(AZEVEDO; GUERRA, 2001, p. 27). Convivemos, em nossa sociedade, com a punição
física conferida aos filhos como ato disciplinar, sendo o limite entre disciplina e
violência tênue.
No Brasil, a utilização da força física como medida disciplinar é parte integrante
dos costumes pedagógicos, transmitidos nas famílias de geração a geração. O
limite entre disciplina e violência é definido pelos padrões comunitários de
tolerância ao uso da força física contra crianças (DAVOLI et al., 1994, p. 93).
No Brasil, a prática disciplinar de punição física tem sido perpetuada nas
diferentes gerações. Aceita como forma de educar, faz parte das práticas pedagógicas.
Castigos e repressões impostos às crianças respondem ao ideário dos pais de torná-la
submissa à autoridade paterna, estando intimamente relacionados às crenças culturais,
sociais e religiosas.
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Uma pesquisa realizada por McCormick (1992) ilustra a visão que a maioria dos
profissionais tem sobre o bater em filhos. O trabalho teve como objetivo analisar se
médicos de família e pediatras apoiavam o uso de punição corporal. O apoio a esta
prática foi considerado quando os médicos, em sua atuação, falavam para um pai que
bater era uma resposta apropriada a qualquer um de uma série de comportamentos
infantis apresentados pela pesquisa, como agressividade da criança, desafio da
autoridade parental, desobediência ou, ainda, ataque de cólera (birra).
Cerca de setenta por cento (70%) dos médicos de família e cinqüenta e nove por
cento (59%) dos pediatras afirmaram bater em seus filhos. Setenta e um por cento
(71%) dos entrevistados não consideravam que esta prática pudesse proporcionar outros
tipos de violências mais graves. Os resultados da pesquisa demonstraram que a maioria
dos médicos apoiou o uso de castigos corporais.
Azevedo e Guerra (2001, p. 376) afirmam que os defensores desta prática
especificam como e quando ela tem que ser utilizada, enfatizando que os pais, ao bater,
devem ter a intenção de corrigir e ensinar, nunca agir dentro de um contexto de raiva,
frustração ou desejo de ferir, limitar-se sempre em termos de intensidade a uma ou duas
palmadas no bumbum ou nas coxas somente e que, ainda, esta prática não deve ser a
única e a mais comum forma de disciplina.
Este mapeamento auxilia a compreendermos a complexidade que envolve o ato
de educar e o quanto o bater em filhos ainda é entendido como prática importante para a
boa formação da criança. As punições físicas podem ser compreendidas como práticas
violentas ou disciplinares, de acordo com o contexto sociocultural e crenças sociais
sobre as formas de corrigir e educar uma criança. Qualquer intervenção neste campo
deve considerar os contextos sociais e culturais como fontes de atuação.
Com o objetivo de melhor compreender esta temática, a autora do presente
artigo realizou-se no ano de 2008, uma pesquisa descritiva de abordagem qualitativa,
tendo como participantes pediatras. O modelo de entrevista utilizado foi o da história de
vida temática, tendo como característica dois momentos: relato espontâneo sobre sua
história de vida e complementação através de tópicos previamente definidos pelo
pesquisador. O objetivo desta pesquisa foi o de conhecer concepções e práticas de
pediatras relacionadas à violência física intrafamiliar contra a criança, à luz de sua
história de vida e formação. O número de participantes foi definido utilizando-se o
próprio universo do hospital e o ponto de saturação. A análise apoiou-se na
contraposição de sentidos construídos no processo de pesquisa e interpretação a partir
8
da familiarização com o campo de estudo e os princípios teóricos básicos. Os resultados
apontam para a diferenciação feita pelos profissionais entre bater como forma de
disciplina, reconhecido como palmada educativa, e a ação violenta. Evidencio-se a
preocupação dos profissionais com a educação contemporânea, indicando a falta de
suporte educacional e de orientação aos pais. Os dados revelaram, ainda, que a
ineficiente formação recebida e a precária estrutura de apoio aos profissionais provocam
incertezas e apreensões quanto ao ato de notificar. Em se tratando de serviços de apoio,
os profissionais vêem na psicologia a oportunidade de amparo emocional. Sugere-se
que, aos profissionais, devem ser dadas oportunidades de escuta, proporcionando
reflexões, mudanças de postura e possibilidades de criação de novas estratégias de
enfrentamento.
A partir dos dados acima mencionados e das considerações teóricas
apresentadas, passaremos a discutir sobre a formação e atuação do professor
relacionando ao contexto da violência intrafamiliar contra a criança.
O educador, ao receber diferentes alunos advindos de diversos contextos sociais;
crianças submetidas ao silenciamento e em situação de risco, necessita de bagagem
teórica para lidar com questões referentes à violência como a identificação, o manejo
familiar e encaminhamentos.
Denunciar maus-tratos infligidos à criança é dever de todo aquele que toma
conhecimento ou simplesmente suspeita que a criança esteja sob violência. O ECA
(BRASIL, 1990), no artigo 245, descreve a obrigatoriedade de denúncia pelo
profissional, afirmando:
Art. 245. Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de
atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à
autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita
ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente:
Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso
de reincidência.
O professor, deve identificar ou suspeitar casos de violência contra a criança,
para que os encaminhamentos aconteçam e, desse modo, a violência passe a ser
“enxergada” e combatida (FONSECA et al., 2002; TAQUETTE et al., 2003; DOWD,
9
2004). De sua atuação também dependem as estatísticas, que auxiliam nas pesquisas,
estudos e elaboração de estratégias de superação. E, com certeza, identificação,
notificação e manejo deveriam ser objetos focalizados na sua formação.
O primeiro passo em uma atuação é o reconhecimento da violência. O professor
precisa estar informado e sensibilizado para identificar o tipo de violência e os
encaminhamentos necessários. Em se tratando da violência física, há maior facilidade
em distingui-la de outros ferimentos (SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA et
al. (2001), porém, quando circunscrita ao ambiente doméstico, torna-se difícil seu
reconhecimento, pois, além de ser confundida com prática educativa, ainda acontece no
âmbito privado.
O castigo corporal, a forma mais freqüente de agravo contra o menor, é
entendido como recurso disciplinar válido para crianças; o que implica em um
percentual de ‘excessos’ aceitos como acidentais ou até justificados. Dentro
desta visão, as lesões decorrentes da violência física não necessitam tratamento,
ou são medicados no domicílio (MENEZES et al., 1996, p.79).
Dessa forma, os números relativos a crianças violentadas acabam sendo de
menor incidência nas estatísticas do que acontece na realidade. E nessa direção apontam
os depoimentos: confirma-se, aqui, o indicado em pesquisas mundiais, a partir da
subestimação das estatísticas sobre crianças violentadas e a necessidade de
planejamentos que visem a proporcionar maior visibilidade a este fenômeno
(CHADWICK, 1990; FERREIRA, 2005; TARDIVO; PANÚNCIO-PINTO, 2006).
A academia é um importante espaço para que este olhar sobre a infância seja
ampliado. Infelizmente, poucas têm sido as oportunidades de discussão desta temática
nos cursos de formação dos professores. A falta de estágio, temas e teorias relacionados
a esta temática trazem insegurança ao profissional com relação à melhor forma de
abordar a violência; aliadas a isso, outras questões somam-se, como a história de vida
de cada professor.
Essa possível insegurança emocional pode ocorrer por conta de não haver um
preparo específico na formação (...) Por outro lado, não pode ser descartada a
dificuldade para se lidar com essa questão devido a aspectos de ordem subjetiva,
10
tais como: tipos de personalidade, história de vida e defesas psicológicas
(GOMES et al., 2002a, p. 4).
Isto nos faz pensar que a atuação dos professores1 está intimamente relacionada
com sua história de vida; suas experiências passadas e atuais têm guiado suas condutas
e orientações. Como ponderou um dos participantes da pesquisa, ao explicar sua atuação
afirmou: “[...] a gente vai na carga pessoal que você adquiriu, e muito da sua vida”!
E, com efeito, a maioria dos currículos de licenciatura e formação de
professores, não têm incorporado a violência como tema em suas discussões, ficando o
profissional à mercê do que acredita ser mais correto fazer, em situações de violência
doméstica contra a criança (ALMEIDA, 1998; GONÇALVES; FERREIRA, 2002).
Embora haja significativos avanços quanto às práticas de ensino e saúde infantil,
estudos demonstram que a adequação de tal realidade no contexto acadêmico ainda tem
sido lento se considerada a urgência no sentido de que estes profissionais adquiram uma
visão ético-humanista sobre sua prática (WESTPHAL; CARVALHO, 1984; PEREIRA;
ALMEIDA 2005).
[...] as técnicas de ensino inovadas, embora importantes, têm um valor relativo
quando adotadas isoladamente por um ou outro docente, pois não têm força de
expressão suficiente para ruptura do ‘status quo’ (WESTPHAL; CARVALHO,
1984, p. 93).
Assim sendo, é possível compreender que, embora existam ações no sentido de
proporcionar ao aluno novas práticas de ensino, se estas se constituírem como práticas
isoladas, pouco resultado será obtido, trazendo insatisfação ao docente e descrédito à
forma inovadora de ensino. “Desnaturalizar” as experiências vividas dentro das
academias deve ser a meta ao formar o professor que estará atuando num contexto
social pós-moderno:
Em relação à notificação, ainda, alguns fatores podem contribuir para que o
professor não a faça, como a exposição do profissional, o sentimento de despreparo, a
1 A autora, está realizando uma pesquisa relacionada às concepções dos professores sobre
violência. Os dados, ainda que parciais, serão apresentados no X CONPE, 2010.
11
vulnerabilidade, o risco físico e moral a que ficam sujeitos, a descrédito no
encaminhamento, precariedade dos serviços, entre outros. Pires et al. (2005) apontam
que a ausência de um suporte institucional aumenta a probabilidade de os profissionais
escolherem a omissão ao invés da notificação. Isto foi observado em nosso estudo
quando os participantes afirmaram que a denúncia no hospital-escola é facilitada pela
rede de apoio que possuem; contudo, ainda assim há receios, incertezas e omissões.
O encaminhamento pode ser entendido com uma das ações pró-ativas, em que o
professor, consciente da complexidade e gravidade da violência, solicita outros olhares
para a compreensão do fenômeno. Por outro lado, o mesmo procedimento pode
significar a dificuldade do profissional em se envolver com a questão da violência,
preferindo transferir para outro profissional a responsabilidade.
Diante desse conflito a responsabilidade no encaminhamento dos ‘casos de
violência’ se dicotomiza e o enfrentamento da questão é, no setor público,
considerado mais seguro. Nele nunca se está sozinho. Há uma instituição
municipal, estadual ou federal funcionando como âncora e o indivíduo transita
sua intervenção mediado pela esfera pública (BRAZ; CARDOSO, 2000).
Um ponto ainda a ser explorado é relacionado aos sentimentos dos professores
gerados a partir do contato com a criança vitimizada. A busca pela informação e a
compreensão dos próprios sentimentos poderá aproximar o profissional de práticas mais
assertivas. Os participantes trouxeram falas que expressaram angústias e impotências
geradas ao atender casos de violência.
O temor do desconhecido, associado ao sentimento de solidão e à falta de apoio,
pode evocar apatia diante da conduta que, racionalmente, deveria ser tomada. A escolha
por se abster acaba sendo uma defesa contra incertezas e receios. Conforme afirma
Ferreira (2005), a notificação acaba se tornando uma tarefa árdua para quem, em sua
formação, não teve subsídios para reflexão e compreensão desta temática.
Entender as dificuldades pelas quais o profissional passa no seu dia-a-dia é
fundamental. As considerações de muitos trabalhos têm sido no sentido de enumerar as
obrigações dos profissionais e chamá-los para a responsabilidade de suas práticas.
Acreditamos ser necessário ir além da responsabilização, alcançando a compreensão dos
12
sentidos dados por estes profissionais às suas ações. E a apropriação desta compreensão
por parte dos próprios professores possibilita maior segurança quanto ao ato de notificar
e maior assertividade nas práticas efetuadas.
Ao depararem-se com a violência intrafamiliar contra a criança, os entrevistados
expressaram sentimentos de indignação. A tentativa de encontrar culpados pode ser
expressa pelas verbalizações ou pelas condutas muitas vezes inadequadas,
demonstrando sentimentos de revolta e indignação pelo fato de os pais não terem
protegido o filho ou por serem eles mesmos os agressores (FERREIRA, 2005). Esta
atitude impede o profissional de pensar estratégias que possibilitem a mudança de
comportamento dos responsáveis.
Os rompantes emocionais nem sempre conduzem a atitudes acertadas. A
maturidade, a ponderação e a análise da situação pelo profissional proporcionam uma
avaliação mais sensata e equilibrada. Porém, isso exige que o profissional adquira este
preparo ao longo de sua formação; não um preparo intelectual apenas, mas
possibilidades reflexivas e análise crítica. A incapacidade dos professores em
reconhecer o problema e entendê-lo de forma ampla pode provocar furores emocionais
que impossibilitarão a execução de uma conduta apropriada que vise ao bem-estar da
criança e da família (FERREIRA, 2005).
A discussão sobre o tema da violência contra a criança ainda carece de espaços
na academia, nas práticas cotidianas e, sobretudo, no desejo pessoal de poder contribuir
para o seu decréscimo.
O avanço na questão da notificação é descrito na literatura como atrelado à
condição em que o profissional esteja inserido em oportunidades sistemáticas de
discussão, sensibilização e reflexão (FERREIRA, 2005). Entretanto, acreditamos que
estas ações podem ser mais bem incorporadas se o profissional puder ser ouvido e
acolhido em suas angústias e incertezas.
Consideramos que os resultados do presente estudo são elucidativos para indicar
a importância de um destaque à questão da violência contra a criança que ultrapassa o
âmbito da divulgação e alerta e atinja o nível sócio-educativo da população em geral e,
principalmente, o formativo dos profissionais que atuam diretamente com criança.
Nossas informações apontaram, ainda, para a necessidade de interlocução entre áreas de
conhecimento, a fim de que o profissional possa atuar proporcionando situações que
levem à reparação e atuando, também, de forma preventiva, obtendo apoio e estando
integrado a outros órgãos de atendimento a crianças vítimas de violência doméstica.
13
. Acreditamos que estas iniciativas promovem crescimento profissional e
conseqüente profilaxia em casos de violência doméstica contra a criança. Apontamos,
ainda, para a necessidade de pesquisas que envolvam a temática estudada, podendo
ampliar e melhorar o acervo de discussões da literatura especializada sobre a violência
doméstica contra a criança, uma vez que ainda é escassa a produção de materiais que
buscam compreender a atuação do professor frente ao atendimento à criança e à família
vitimizada.
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