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GISELE JOANA GOBBETTI
INCESTO E SAÚDE MENTAL:
UMA COMPREENSÃO PSICANALÍTICA SOBRE
A DINÂMICA DAS FAMÍLIAS INCESTUOSAS
Dissertação apresentada à Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Mestre em
Ciências.
SÃO PAULO
2000
GISELE JOANA GOBBETTI
INCESTO E SAÚDE MENTAL:
UMA COMPREENSÃO PSICANALÍTICA SOBRE
A DINÂMICA DAS FAMÍLIAS INCESTUOSAS
Dissertação apresentada à Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Mestre em Ciências.
Área de concentração: Medicina Legal
Orientador: Prof. Dr. Claudio Cohen
SÃO PAULO
2000
A minha amada família:
Ao Maurício, ao Thales, ao Thomás, à Larissa e ao Gustavo.
AGRADECIMENTOS
Às famílias, com as quais dividi o espaço da terapia familiar, que
sempre me propuseram reflexões e permitiram a realização deste estudo.
Ao Prof. Dr. Claudio Cohen, por ter acreditado no meu trabalho,
sempre atencioso e dedicado na sua orientação e supervisão, que muito
contribuíram para a minha vida profissional e para a conclusão desta tarefa.
À equipe do CEARAS e aos estagiários, com quem compartilho
as dificuldades e gratificações deste trabalho.
Às supervisoras do CEARAS, Lucia Fuks e Isabel Kahn Marin,
que sempre se mostraram disponíveis a contribuir com suas experiências.
Aos colegas do Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e
Medicina Social e do Trabalho, de cuja convivência me transmitiram apoio.
À Maria e à Suely, pelo auxílio nas referências bibliográficas.
Ao meu marido Maurício, pelo amor e compreensão dedicados a
nossa relação, sempre companheiro às alegrias e às dificuldades, além do
inestimável auxílio e incentivo ao meu trabalho.
Aos meus filhos, Thales e Thomás, e enteados, Larissa e
Gustavo, pela alegria e estímulo que proporcionam à minha vida.
SUMÁRIO
Resumo
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................... 01
2 UMA COMPREENSÃO DE INCESTO ................................................. 14
3 OBJETIVOS ......................................................................................... 22
4 MATERIAL E MÉTODO ....................................................................... 24
CEARAS – Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao
Abuso Sexual ................................................................................ 29
5 RESULTADOS E DISCUSSÃO ........................................................... 32
Caracterização do Abuso Sexual Intrafamiliar através de
dados elaborados no CEARAS ..................................................... 33
Estudos de Casos Clínicos .......................................................... 60
6 CONCLUSÕES........................................................................................ 93
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................ 98
RESUMO
A possibilidade da transgressão da lei máxima que rege a nossa cultura é
um fator inquietante. O incesto, ao mesmo tempo em que atrai nossa
atenção, é um tema que causa resistência a reflexões por abarcar um desejo
presente em todo ser humano. Segundo os estruturalistas, a interdição do
incesto é um fator cultural e necessário para o desenvolvimento psico-social
do indivíduo. De acordo com a Psicanálise, a não atuação do incesto
favorece a estruturação do aparelho mental em Id, ego e superego. O
presente estudo tem como objetivo ampliar a compreensão sobre o tema,
visando a observação da dinâmica das famílias onde esta interdição não
ocorreu, já que o incesto abarca estes dois conceitos: família e abuso
sexual. A metodologia utilizada foi a avaliação de dados obtidos pela autora
no seu trabalho em um serviço de atendimento a famílias incestuosas
(CEARAS - Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual -
Faculdade de Medicina da USP). Estes dados referem-se a: grau de
parentesco entre as pessoas diretamente envolvidas na relação sexual, tipo
de relação incestuosa, duração da relação e por quem foi feita a denúncia.
Uma avaliação qualitativa destes dados foi completada por estudos de caso
com material clínico de quatro atendimentos familiares. A teoria utilizada
para a compreensão destes fenômenos foi a psicanalítica. Na relação
incestuosa, foi percebido que existe o envolvimento, direto ou indireto, de
todos os membros da família e que a violência do incesto não pode ser
traduzida apenas pela relação sexual, mas principalmente pela não
diferenciação das funções familiares.
1
1. INTRODUÇÃO
2
INTRODUÇÃO
A escolha da reflexão sobre o incesto foi motivada pela inquietação
que este tema provoca nos indivíduos das mais diversas culturas.
Condenável na nossa, não é explicitado em nossos Códigos. O
CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO limita o casamento entre parentes próximos
até terceiro grau e o CÓDIGO PENAL considera o grau de parentesco como
agravante dos crimes contra os costumes. Porém, estas limitações são
insuficientes para lidar com esta problemática.
Surge então a questão: o que legitima a proibição do incesto na nossa
cultura? Mais do que a proibição subjacente do ato em si, existe a proibição
de se falar no assunto de modo que este não pode nem ser explicitado.
Desta forma, pensar sobre a proibição do incesto numa tentativa de
compreensão torna-se uma tarefa difícil, já que a sociedade e a família tem a
mesma atitude de manter o segredo. A sociedade ainda tem dificuldade em
aceitar o fato de a família ser capaz de prejudicar suas próprias crianças.
Assim, o segredo é mantido dentro da família da mesma forma que a
sociedade tem dificuldade para “enxergá-lo” e mesmo lidar com o problema.
O próprio significado da palavra proibição sugere um processo ativo
de intervenção a algo que “pode ocorrer”. A proibição por si só pode ser
percebida como antinatural.
Decorre que, por detrás de tamanha proibição, só possa existir um
desejo universal equivalente. Para que, então, o incesto é proibido?
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Várias teorias têm sido utilizadas para explicar a finalidade desta
proibição. Estas podem ser divididas em biológicas, sociais e psicológicas.
As teorias biológicas concebem um “horror ao incesto inato” que seria
a proteção natural contra os malefícios resultantes do cruzamento
endogâmico. Sabe-se que o cruzamento endogâmico realmente causa uma
diminuição da variabilidade dos genes, e portanto, oferece uma maior
chance de expressão da recessividade. Mas esta pode ser manifestada
tanto em doenças hereditárias quanto em traços benéficos. Além disto,
semelhanças genéticas podem estender-se para além da família, como em
um grupo étnico ou de certa localização geográfica. Por exemplo, há alta
incidência de doença de Tay-Sachs entre judeus Ashkenazicos sem que
haja efetivamente cruzamentos dentro de uma mesma família (RENSHAW,
1984).
Esta explicação também não contempla a proibição entre parentes
por afinidade, como por exemplo um relacionamento sexual entre padrasto e
enteada. Nota-se que este tipo de proibição é reforçada em nosso próprio
CÓDIGO CIVIL, já que não permite o casamento entre:
I – Os ascendentes com descendentes, seja o parentesco legítimo, ilegítimo, natural ou civil;
II – Os afins em linha reta, seja o vínculo legítimo ou ilegítimo;
III – O adotante com o cônjuge do adotado e o adotado com o cônjuge do adotante;
IV – Os irmãos, legítimos ou ilegítimos, germanos ou não, e os colaterais, legítimos e ilegítimos, até terceiro grau inclusive;
V – O adotado com o filho superveniente ao pai ou à mãe adotiva.
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Ora, se a possibilidade de ocorrência de relações incestuosas fosse
biologicamente negada, estas não precisariam ser proibidas por leis sociais,
mostrando que a questão não passa pelos aspectos biológicos e sim por
aspectos sócio-culturais.
As ciências sociais priorizam a importância da exogamia. Dentro da
linha estruturalista, a proibição do incesto promove o processo de
“culturalização”, permitindo uma estruturação social.
Segundo as teorias psicológicas, a não atuação do incesto permite a
diferenciação de funções dentro da família, possibilitando o desenvolvimento
do indivíduo e da família. Nesta perspectiva, a proibição do incesto é um
fator organizador, demarcando limites (COHEN, 1993).
FREUD coloca a proibição do incesto como um estruturador mental,
pois é através da repressão dos desejos incestuosos que se estrutura o
aparelho mental em suas três instâncias: id, ego e superego. O superego é a
instância formada pela internalização da lei, sendo o ego responsável pela
intermediação entre as leis internas e as leis externas (FREUD, 1923).
Por outro ângulo, também não existem estudos que demonstrem que
o desejo sexual seja diminuído pelo parentesco ou pela proximidade física
entre as pessoas. Pelo contrário, a Psicanálise traz o aumento do desejo,
através da teoria do Complexo de Édipo. É o que demonstra esta citação
contida no artigo de FREUD, “O desenvolvimento da libido e as
organizações sexuais” (1917):
Mas, o que é mais importante, em vista dessas informações, que podem ser obtidas tão facilmente: os senhores não poderão recordar sem um sorriso os pronunciamentos da ciência ao
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explicar a proibição do incesto. Não tem fim o que já se inventou sobre o assunto. Tem sido dito que a tendência sexual é desviada de membros da mesma família pertencentes ao sexo oposto, pelo fato de terem vivido juntos desde a infância; ou ainda, que um propósito biológico de evitar a consanguinidade é representado psiquicamente por um inato horror ao incesto. Nisso tudo, deixa-se de atentar para o fato de que uma proibição tão peremptória não seria necessária nas leis e nos costumes, se houvesse barreiras naturais seguras contra a tentação do incesto. A verdade é justamente o oposto. A primeira escolha objetal de um ser humano é regularmente incestuosa, dirigida no caso do homem, à sua mãe e à sua irmã; e necessita das mais severas proibições para impedir que essa tendência infantil persistente se realize.
Disto, depreende-se que a proibição é justamente o sinal que marca a
existência do desejo incestuoso, sem o qual tornaria a primeira
completamente desnecessária.
No entanto, a proibição do incesto, representada através dos mitos,
religiões e códigos, é uma regra universal. Segundo LEVI-STRAUSS (1969),
a proibição do casamento entre parentes próximos pode ter um campo de
aplicação variável, de acordo com a definição de parentesco, mas a
proibição ou a limitação das relações sexuais está presente em qualquer
grupo. Desta forma, o incesto situa-se no limiar entre a natureza e a cultura.
Distinguirei algumas definições de incesto:
1 - “O incesto é a união ilícita entre parentes consanguíneos, afins ou
adotivos.” (NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO DA LÍNGUA PORTUGUESA)
2 - “a) Relação ou procriação sexual entre dois indivíduos
estreitamente aparentados, especialmente aqueles tidos como tais (como
em decorrência de sua afinidade ou participação num parentesco tribal, de
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grupo ou clã), dentro de graus em que o casamento é proibido pelas leis ou
costumes.
b) O crime estatutário de amasiamento, casamento ou
relacionamento sexual sem casamento, de partes vinculadas entre si dentro
de um grau de consanguinidade ou afinidade no qual o casamento é proibido
por lei (a consanguinidade é associada pelo sangue ou em decorrência de
um ancestral comum, enquanto a afinidade é associada ao casamento).”
(DICIONÁRIO WEBSTER)
3 - “a) Definição legal: relação sexual entre indivíduos com um grau
próximo de parentesco e que está proibida por algum código civil ou
religioso.
b) Definição psicológica: qualquer contato abertamente sexual
entre as pessoas que tenham um grau de parentesco, por consanguinidade
ou por afinidade, ou que acreditam tê-lo.” (FORWARD; BUCK, 1989)
4 - “Segundo o “The Nacional Center on Child Abuse and Neglect”,
o incesto é um abuso sexual intrafamiliar, o qual é perpetrado em uma
criança por um membro de um grupo familiar daquela criança e inclui não
somente a relação sexual, mas também qualquer ato que tenha por
finalidade estimular uma criança sexualmente ou usar uma criança para a
estimulação sexual, do perpetrador ou de qualquer outra pessoa.”
(RENSHAW, 1984)
Estas são algumas dentre várias definições utilizadas dentro da
nossa cultura, que nos servem para refletir sobre a ampliação do conceito e
a contextualização da proibição. Aqui apresento uma compreensão sobre o
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tema, que reúne algumas características comuns das definições citadas,
com algumas especificidades advindas do trabalho do Centro de Estudos e
Atendimento Relativos ao Abuso Sexual:
O incesto manifesta-se através do relacionamento sexual entre pessoas que são membros de uma mesma família (exceto os cônjuges), sendo que a “família” não é definida apenas pela consanguinidade ou mesmo afinidade, mas, principalmente, pela “função de parentesco social” exercida pelas pessoas dentro do grupo. (COHEN; GOBBETTI, 1998)
Entende-se que, de acordo com uma perspectiva estruturalista, que a
proibição do incesto é cultural, mas necessária para o desenvolvimento do
indivíduo na sociedade e sua própria individualização.
Os indivíduos que mantém relações sexuais dentro da própria família,
excetuando a relação entre os cônjuges, não configuram apenas uma
possibilidade de abuso sexual, mas principalmente uma quebra do pacto
social do qual depende a família, havendo a troca ou ausência de
determinadas funções. Assim, este tipo de relacionamento sexual aparece
como sinalizador de uma falta de estruturação dentro deste grupo de
pessoas.
De acordo com a perspectiva estruturalista, este dano é refletido na
sociedade, já que a civilização sobrevive às custas, primordialmente, da não
atuação dos impulsos incestuosos.
Segundo FREUD, existe um antagonismo entre as exigências dos
impulsos e a inserção do indivíduo na cultura. O desejo incestuoso, presente
em todos os seres humanos, deve ser reprimido para a sobrevivência da
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civilização: “O incesto é anti-social e a civilização consiste numa progressiva
renúncia a ele” (FREUD, 1930).
É difícil estabelecer uma estimativa dos casos de incesto, devido ao
estigma e ao segredo que envolvem estes casos.
Um fator de concordância em todos os estudos é a maior frequência
do abuso sexual intrafamiliar dentro dos casos de abuso sexual relatados.
Assim, contrariando os alertas de senso comum em relação às
crianças sobre o “contato com estranhos”, geralmente o abuso sexual é
praticado por pessoas próximas e conhecidas das crianças.
Estudos demonstram que 70 a 89% dos casos de abuso sexual
relatados são perpetrados por uma pessoa conhecida da criança
(FINKELHOR, 1979; GROTH, 1979; RUSSELL, 1983).
Um estudo realizado na Suíça (1990) demonstrou que a violência
sexual exercida contra crianças dentro de suas famílias representa 25% dos
casos, enquanto que 66% dos casos são exercidas por pessoas conhecidas
das crianças e apenas 10% por desconhecidos (SHALPERIN apud GABEL,
1997).
Em nosso meio, foi realizada uma pesquisa no Instituto Médico Legal,
onde as vítimas de violência sexual foram questionadas a respeito de sua
relação com o agressor. Da amostra, 49,64% relataram conhecer o agressor
e 22,55% foram vítimas de agressão sexual por parte de algum parente,
sendo que 18,75% delas convivem com o agressor na mesma casa
(COHEN; MATSUDA, 1991).
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Pesquisas indicam que 4-12% de todas as mulheres tiveram uma
experiência sexual com um parente e que aproximadamente 1-4,5% de
todas as mulheres foram envolvidas em casos de incesto pai e filha
(FINKELHOR, 1979; FROMUTH, 1986; KERCHER & McSHANE, 1984;
RUSSELL, 1983)
A porcentagem de homens que relatam esta experiência é bem
menor, mas também se considera que estas são menos explícitas e,
portanto, que os homens tem mais dificuldade em lidar com o problema e
mesmo denunciá-lo (KLUFT, 1990). Em uma pesquisa, FINKELHOR apud
BRASSARD & MCNEILL (1987) apontou que 44% das mulheres e 17% dos
homens tiveram uma experiência sexual com um membro da família.
Outras considerações podem ser feitas referentes a relações
incestuosas entre mães e filhos, que dificilmente são consideradas
socialmente como abusivas. Isto ocorre, provavelmente, devido ao acesso
que as mães têm ao corpo dos filhos.
Tudo isto nos mostra que estamos longe de quantificarmos a
dimensão do problema e que as estatísticas, com as quais tomamos contato,
refletem ainda estudos de uma pequena parcela da realidade.
Em outra divergência de crenças populares, o incesto ocorre em
todas camadas sócio-econômicas (COHEN, 1993, GIARETTO, 1976). O que
se percebe é o maior número de denúncias ao Judiciário por pessoas
pertencentes às classes baixas. Estudos sobre incesto que utilizaram
amostras retiradas de Tribunais ou prisões apontaram uma prevalência nas
classes sócio-econômicas baixas (MRAZEC, 1987; SPENCER, 1978).
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Um dado importante a destacar é o grande número de pesquisas que
exploram a questão de indivíduos que foram vítimas de abuso sexual,
tornarem-se, na adolescência ou vida adulta, perpetradores deste tipo de
abuso (ALEXANDER, 1992; BARBAREE & MARSHALL, 1991; BURGESS,
HARTMAN & McCORMACK, 1987; FINKELHOR, 1984; KAHN &
CHAMBERS, 1991; LANE, 1991; MEISELMAN, 1990; WACHTEL & SCOTT,
1991).
Pesquisas indicam que a maioria dos pais “abusivos” tem na sua
própria história de vida experiências de abuso ou negligência na infância.
Estudos de caso indicam que pais que foram vítimas de incesto tem
inibições em relação a carinho e ternura, além de tender a repetir a
experiência incestuosa da infância com crianças da sua família (GOODWIN,
1989).
Além da percepção do ciclo “vítima-agressor”, nota-se uma dinâmica
específica nestas famílias onde se incluem todos os membros, tornando
inadequada a estigmatização nestes termos.
Ao levar em consideração a dinâmica familiar, desenfoca-se o
problema individual. Segundo BERENSTEIN (1988), a família é um “sistema
com uma estrutura inconsciente” e, de acordo com este, confecciona regras
para manter sua estabilidade. Estas regras definem o funcionamento do
grupo familiar (BERENSTEIN, 1989).
A partir da segunda metade deste século, muito tem sido escrito
sobre a questão do abuso sexual intrafamiliar, tentando-se caracterizar a
família em que ocorrem relações sexuais incestuosas. Dificuldades de
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percepção de limites, troca de papéis ou funções e baixo nível de
simbolização nestas famílias foram percebidos na prática clínica.
A reflexão sobre estas questões tem sido um dos objetivos do
CEARAS (Centro de Estudos e Atendimentos Relativos ao Abuso Sexual),
que tem um programa de prevenção secundária em saúde mental.
Desde 1993, o CEARAS vem trabalhando com o atendimento em
saúde mental a famílias em que houve a denúncia de um abuso sexual
praticado entre seus membros, abordando o fenômeno através do
referencial psicanalítico.
Considerando a concretização do incesto como a violação às leis
sociais que instituem o funcionamento da família, a equipe do CEARAS
acredita que a possibilidade de compreensão e tratamento esteja
estreitamente ligada à inserção de uma lei proporcionada pela cultura.
Assim, os pacientes do CEARAS são encaminhados do Fórum, local onde
existe um processo aberto referente à relação incestuosa, já que a Justiça
atua como representante das leis sociais.
Dentro da percepção de que a saúde não é mais apenas um
problema médico, o CEARAS conta com uma equipe multiprofissional que
realiza atendimento individual para quem cometeu abuso e para quem o
sofreu, e atendimento familiar para todos os membros da família.
A aproximação a estes casos é tarefa árdua pois mexe com as
motivações e percepções inconscientes de cada indivíduo. A dor emocional
causada pelo conflito entre os desejos do indivíduo e as proibições culturais
faz com que as pessoas tentem racionalizar a questão, depositando o
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problema no outro. A forma mais utilizada pela família e pela sociedade
(incluindo até os profissionais de saúde) é estigmatizar um “agressor” e uma
“vítima”, responsabilizando o primeiro pelo que aconteceu na família e
assumindo uma postura de pena em relação ao segundo por ter sofrido o
abuso.
Na experiência clínica, percebi que a problemática é muito mais
ampla e complexa, havendo o envolvimento de toda a família numa dinâmica
inconsciente que favorece a existência de uma relação sexual incestuosa.
O tema deste projeto de pesquisa para a dissertação de Mestrado
originou-se de questões surgidas no decorrer do meu trabalho no CEARAS,
principalmente da experiência dos atendimentos.
Neste estudo, através da experiência clínica, pretendo refletir sobre
estas questões envolvidas nas motivações para a atuação da relação sexual
incestuosa.
Percebi que, embora com uma estrutura familiar peculiar, onde não há
possibilidade de reprimir a atuação do desejo incestuoso, não eram todos os
membros das famílias incestuosas que mantinham relações sexuais genitais.
De alguma forma estabelece-se entre a família um pacto que permite este
tipo de relação diferenciada.
Parto do princípio da relação incestuosa como um sintoma, sendo que
a família possui uma “dinâmica incestuosa”, da qual fazem parte todos os
membros, sendo diferente apenas a forma de atuação.
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Através de uma avaliação qualitativa de dados retirados dos
atendimentos no CEARAS, exemplificada por estudos de casos clínicos,
procurei refletir sobre este tipo de dinâmica familiar .
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2 - UMA COMPREENSÃO SOBRE O INCESTO
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INCESTO: ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR
Procurarei, aqui, expor a minha compreensão de incesto, de acordo
com a perspectiva do trabalho em saúde mental, já que é esta que vai
permear este estudo. Tomo como conceito o incesto enquanto abuso sexual
intrafamiliar e o diferencio da definição do NACIONAL CENTER ON CHILD
ABUSE AND NEGLECT, que também utiliza esta definição, mas restringe ao
abuso sexual perpetrado a crianças.
O incesto, nesta visão, pode ser definido através de dois conceitos:
abuso sexual e família.
Inicialmente, tentarei caracterizar abuso sexual.
A sexualidade humana é um assunto complexo. A ampliação do
conceito de sexualidade formulado pela Psicanálise mostra o quanto é difícil
identificá-la, principalmente na observação de que a sexualidade não se
restringe aos genitais, mas sim de que ela tem uma pulsão com origem,
objeto e fim (FREUD, 1905). O desvio destes dois últimos, como no caso do
incesto, traz problemas sociais.
No fetichismo, por exemplo, pode ser tomada qualquer parte do corpo
como zona erógena ou mesmo um objeto como alvo de satisfação sexual.
Assim, pelas suas características subjetivas, que serão projetadas em algo
objetivo, a percepção do ato sexual dependerá de cada indivíduo, ou até
mesmo de seu momento de vida, e de sua condição na relação, como mero
observador ou como participante ativo ou passivo da relação sexual.
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Com este conceito ampliado de sexualidade, o abuso sexual não
pode ser definido pelo tipo de ato sexual realizado. Definir o que é um ato
abusivo no exercício da sexualidade de cada pessoa envolve vários fatores.
Para exemplificar, pode-se pensar numa relação sadomasoquista; esta não
pode ser considerada abusiva simplesmente por envolver violência física,
pois para os participantes esta relação consentida provoca prazer.
Será que o consentimento pode, então, determinar o abuso sexual?
Acredito que não, pois há relações nas quais se espera uma assimetria de
funções entre os participantes e o consentimento, nestes casos, não pode
ser considerado válido. Por exemplo, uma relação sexual dentro da família
pode ser consentida no grupo, mesmo quando há participação de crianças.
As crianças envolvidas em relações incestuosas muitas vezes não
são forçadas fisicamente ou ameaçadas a participar da relação. Em grande
parte dos casos, a criança pode perceber a relação abusiva sem violência
física só quando constatar a reprovação do meio externo. Ou quando
associar os pedidos de segredo a uma relação que pode ser considerada
prazerosa.
Mas é através dos pais que a criança inicia a aprendizagem do certo e
errado; é função destes impor os limites necessários ao desenvolvimento
sadio da criança, sendo assim criados parâmetros para ela.
Segundo COHEN (1999):
A função dos pais, enquanto educadores sociais, é a de estimular a confiança da criança, dando continência as suas angústias, estruturando sua mente. Desse modo, a função dos pais, além de transmitir a cultura, permite que a criança (ao longo do seu desenvolvimento) passe também a
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distinguir o certo do errado. Mas, para que isso ocorra, são necessárias evidentemente certas premissas, entre elas, a proibição do incesto.
Embora haja casos em que a relação sexual incestuosa ocorra
através de ameaça ou sob violência física, a sedução é o que caracteriza a
maioria destas relações, o que não torna suas consequências mais brandas,
muito pelo contrário, amplia muito a ambiguidade das relações.
A violência física pode facilmente ser discriminada como destrutiva
pela criança, enquanto a destruição proporcionada pela relação sexual
incestuosa mediante sedução fica mascarada por uma relação de “afeto”.
Muitas vezes, a criança nem conhece outro tipo de afeto, dessexualizado.
Acrescenta-se a isto os benefícios secundários como consequência da
participação nas relações sexuais, que podem variar desde presentes até a
aquisição de um status diferenciado dos outros membros da família.
A descoberta da reprovação social denuncia à criança a traição de
sua confiança. O desejo da criança envolvido nas relações sexuais
incestuosas atua como a principal causa do sentimento de culpa da criança.
Culpa não só pela relação sexual, mas pela situação instalada na família.
Muitas vezes são responsabilizadas, pela própria família, pelas
consequências legais após a descoberta social.
Mas, o que acontece em relação à estrutura mental? O desejo
existente entre a criança e seus pais ou correspondentes apontados pela
Psicanálise é atuado. A fantasia não é permitida, não havendo possibilidade
de simbolização. Os desejos da criança são desmascarados pela
concretização da relação incestuosa (BOLLAS, 1992).
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O CÓDIGO PENAL BRASILEIRO define os crimes sexuais cometidos
com indivíduos menores de idade com “violência presumida”, ou seja, uma
relação sexual com uma criança ou adolescente, com ou sem
consentimento, vai ser tipificada pelo nosso Código por “estupro” ou
“atentado violento ao pudor”.
Assim, é claro e explícito em nossa cultura que uma criança seja
incapaz de optar por uma relação sexual e que a relação sexual incestuosa
é extremamente prejudicial a ela. Mas e para o adulto? Será que apenas a
idade cronológica, como a lei determina, define esta possibilidade de
escolha? Pode-se considerar válido o consentimento de um adulto para uma
relação sexual incestuosa?
“O exercício da autonomia mostra-se, dentro de uma certa medida,
condicionado, em primeiro lugar pelo reconhecimento da sua existência e
em segundo pela necessidade de uma capacidade para exercê-la; e
finalmente, pela possibilidade de existirem elementos para permitir uma
opção” (COHEN; MARCOLINO, 1995). O consentimento válido seria,
portanto, reservado ao sujeito autônomo e entendendo que a autonomia
pressupõe a liberdade de opção do indivíduo e a capacidade de fazer uso de
sua escolha, reconheço que a relação incestuosa não se deve a uma
escolha autônoma, já que parece não haver, por parte destes indivíduos,
uma consciência do conflito.
Quando se trata do abuso sexual intrafamiliar, que se constitui no
nosso objeto de estudo, questiono o consentimento até mesmo nos
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indivíduos adultos, por tratar-se da transgressão da lei mais primitiva entre
os seres humanos: o tabu do incesto.
Para os estruturalistas, a interdição do incesto é a primeira lei
conhecida pelo ser humano e é ela que permite ao indivíduo o acesso ao
mundo simbólico, iniciando a capacidade de reconhecimento de limites e
regras, necessária à sobrevivência da sociedade.
Entendo que, neste sentido, a proibição do incesto funciona como um
fator organizador mental e social quando propõe limites às pulsões inerentes
a todo ser humano, permitindo que o mesmo se relacione de outra forma
com o mundo, deixando de ser um indivíduo dominado pelos seus impulsos
e passando a ser um sujeito organizador de suas próprias ações. De um
lado, permitindo a exogamia e por outro, permitindo a formação de uma
estrutura mental com Id, ego e superego.
Desta forma, um relacionamento sexual entre dois ou mais indivíduos
da mesma família (com exceção da relação com consentimento entre os
cônjuges) pode ser considerado um ato limítrofe tangenciando a cultura.
Assim sendo, fica difícil delimitar a capacidade de opção dos indivíduos
envolvidos em relações incestuosas.
A questão é bastante pertinente quando se pensa na atuação
incestuosa como uma falha na estruturação do aparelho psíquico e,
portanto, uma ineficácia no controle pulsional, além do conhecido ciclo
"vítima-agressor".
A problemática do abuso sexual intrafamiliar é bem mais complexa e
deve-se ter o cuidado de, a nível mental, estar tratando-se das mesmas
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pessoas, vítimas ou agressores, pois na verdade ambos são participantes de
um ciclo de violência física, social e psíquica.
Assim, tomo como conceito de abuso uma de suas definições
presentes no NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO DA LÍNGUA PORTUGUESA:
“mau uso, uso errado, excessivo ou injusto”, ressaltando que a família faz
um “uso errado” da sexualidade, excedendo a capacidade de elaboração de
todos os seus membros, não havendo, necessariamente um “culpado” pelo
abuso.
Quanto ao conceito de família, utilizo este levando-se em conta a
“função de parentesco social” entre as pessoas, não importando apenas se
entre elas existe um laço de consanguinidade ou afinidade, mas sim se há a
existência de um laço emocional que justifique uma relação da qual se
esperam funções psico-afetivas relativas a membros de uma família.
É importante citar aqui o conceito de “incesto polimorfo”, no qual
COHEN (1992) qualifica como “incestuosas” outras relações que não
familiares, como exemplos: relação médico-paciente, professor-aluno,
patrão-empregado, etc. Nestas, existe uma assimetria funcional na relação,
sendo a perversão das funções através da atuação dos desejos incestuosos
neste relacionamento sexual genital, o que caracteriza um equivalente
incestuoso.
Destes conceitos, depreende-se que a relação sexual incestuosa é
totalmente subjetiva pelos aspectos que a caracterizam: tanto o vínculo
familiar quanto o abuso sexual. Assim, uma melhor compreensão da
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dinâmica emocional que envolve estes grupos de pessoas pode auxiliar na
abordagem desta complexa questão.
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3. OBJETIVOS
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OBJETIVOS
1 - Fazer uma reflexão sobre a atuação do incesto para a família, de
acordo com o referencial psicanalítico, através da análise de dados
retirados dos atendimentos no CEARAS. Pretendo analisar a dinâmica
familiar expressada nas relações incestuosas das famílias que
chegaram ao CEARAS.
2 –Aprofundar a compreensão deste tema através de quatro estudos de
casos clínicos, visualizando a dinâmica destas famílias, ou seja,
observando todos os vínculos formados entre os membros da família,
dando atenção também aos que não participam da relação sexual em
si.
24
4. MATERIAL E MÉTODO
25
MATERIAL E MÉTODO
Na tentativa de alcançar o objetivo deste estudo, a pesquisa foi
estruturada da seguinte forma:
Inicialmente, realizei um quadro geral de todos os casos atendidos
pelo CEARAS desde o início de seu funcionamento em junho de 1993 a
dezembro de 1999.
Este quadro foi composto por dados dos prontuários dos pacientes,
dos quais constam as entrevistas de triagem e relatórios dos atendimentos e
referem-se aos seguintes itens:
- Quais são as pessoas envolvidas diretamente na relação sexual
incestuosa, ou seja, quem são as pessoas que foram denunciadas por terem
cometido abuso sexual e quem são as pessoas que sofreram abuso.
- Duração do relacionamento incestuoso.
-Caracterização do tipo da relação sexual incestuosa; se esta foi
configurada por conjunção carnal ou por atos libidinosos diversos da
conjunção carnal.
Cabe aqui destacar que quadro semelhante a este já foi feito com uma
amostra dos cinco primeiros anos do serviço e está presente no artigo
“Abuso sexual intrafamiliar” (COHEN; GOBBETTI, 1998). Devido ao grande
aumento de encaminhamento de famílias ao CEARAS, coletei os novos
dados para que estes pudessem confirmar ou não as hipóteses levantadas
anteriormente no trabalho citado e abrir a possibilidade de novas
26
observações. Portanto, devido a semelhança das informações, haverá
algumas transcrições deste trabalho na avaliação das tabelas e gráficos.
Estes dados foram apresentados em quatro tabelas e foram
abarcados de forma a dar subsídio a uma avaliação qualitativa, sem a
pretensão de serem números significativos estatisticamente, pois a proposta
deste estudo girou em torno da compreensão da dinâmica presente nas
relações incestuosas e também na possibilidade de demonstrar como este
fenômeno ocorre em nossa sociedade.
A avaliação destes dados permitiu qualificar as relações incestuosas e
estas características foram analisadas através de estudos de caso. Assim,
procurei confirmar algumas hipóteses apresentadas na avaliação destes
resultados através de quatro estudos de casos clínicos.
Por considerar a relação sexual incestuosa como parte de uma
dinâmica familiar, o material clínico foi retirado da terapia familiar, momento
em que a família pode ser observada enquanto grupo.
Os dados foram obtidos da prática clínica, portanto não utilizei
nenhum tipo de intervenção fora da terapia. O material clínico apresentado
foi retirado dos atendimentos familiares nos quais participei como terapeuta.
A base teórica subjacente à terapia realizada no CEARAS é a
Psicanálise, levando em conta, portanto, a existência do inconsciente e do
Complexo de Édipo. Este tipo de trabalho está baseado na tentativa de
compreensão dos fenômenos emocionais ocorridos durante a sessão e a
verbalização destes.
27
Entendendo esta relação terapêutica como um lugar em que
interagem terapeutas e pacientes, a observação isenta torna-se impossível.
Tomei, portanto, a transferência e a contratransferência como elementos
norteadores da pesquisa clínica.
A transferência e a contratransferência fazem parte da essência da
relação terapêutica. A transferência é definida como “o processo pelo qual
os desejos inconscientes se actualizam sobre determinados objetos no
quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente,
no quadro da relação analítica” e a contratransferência como “o conjunto das
reações inconscientes do analista à pessoa do analisando e mais
particularmente à transferência dele”. (VOCABULÁRIO DE PSICANÁLISE)
A atenção aos fenômenos transferenciais é o que permite ao
terapeuta a observação do tipo de relação que os pacientes estabelecem
com o outro. A contratransferência serve de instrumento ao terapeuta para
guiá-lo para as interpretações de acordo com suas próprias reações.
O referencial teórico escolhido da Psicanálise para a compreensão
dos fenômenos da dinâmica familiar centra-se nos conceitos de FREUD e
seus seguidores da linha inglesa: KLEIN, BION e WINNICOTT.
BION (1970), em seu trabalho com grupos, pode perceber que a
observação dos grupos sob a perspectiva psicanalítica permite detectar
situações que, de outra forma, poderiam passar despercebidas. BION
aborda o estudo dos grupos de acordo com a “intuição psicanaliticamente
desenvolvida” que permite fazer observações levando em consideração as
reações emocionais do observador na compreensão e interpretação dos
28
fenômenos, já que o mesmo participa do processo. (GRINBERG; SOR;
BIANCHEDI, 1973)
Além disto, BION salienta a importância de se considerar o
funcionamento do grupo como uma unidade social, sendo que a observação
não deve perder-se na atenção apenas nos indivíduos que a compõem
(BION, 1970).
Considerei o material clínico por si só como dado relevante, pois a
finalidade deste tipo de trabalho não é o resgate da totalidade da evolução
psíquica das pessoas ou criação de normas gerais para o funcionamento
das famílias, mas sim ilustrar e reforçar, com este material, aspectos
interessantes para uma reflexão teórica.
A apresentação dos casos clínicos limitou-se aos dados necessários
para entendimento das questões a serem estudadas, excluindo informações
desnecessárias à reflexão proposta.
O cuidado em relação aos pacientes quanto ao material clínico foi
feito com a exclusão de qualquer dado que poderia vir a identificar os
pacientes e os mesmos foram referidos através de iniciais que não
necessariamente coincidem com as iniciais dos verdadeiros nomes.
Para melhor caracterização deste estudo, seguem informações sobre
o CEARAS, já que foi o trabalho nesta instituição que forneceu os elementos
para a pesquisa.
29
CEARAS
Centro de Estudos e Atendimentos Relativos ao Abuso Sexual
O CEARAS é um centro de estudos e atendimento que lida com
questões referentes ao abuso sexual intrafamiliar. Ele faz parte do
Departamento de Medicina Legal, Ética Médica, Medicina Social e do
Trabalho da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Atualmente o CEARAS conta com uma equipe multiprofissional
composta por 3 (três) psicólogas, 1 (uma) assistente social e 1 (um)
psiquiatra e psicanalista , que é o coordenador .
O CEARAS oferece atendimento em saúde mental a famílias
incestuosas encaminhadas pelo Fórum, onde houve uma denúncia e
abertura de um processo. As principais vias de encaminhamento são as
Varas da Infância e Juventude da cidade de São Paulo e, portanto, a maioria
das “vítimas” são crianças e adolescentes.
As famílias que chegam ao CEARAS nem sempre vem buscando
atendimento; são encaminhadas pelo setor técnico (psicólogos e assistentes
sociais judiciários) e, muitas vezes, desconhecem a função de um
atendimento terapêutico em saúde mental.
Inicialmente, as famílias passam por uma triagem, realizada por duas
psicólogas, onde se tenta compreender a situação da família em relação à
queixa que motivou a denúncia, para viabilizar o atendimento. Neste
momento é esclarecido à família o tipo de atendimento realizado pelo
CEARAS.
30
O atendimento se dá em dois níveis: o individual, para quem cometeu
o abuso e para quem o sofreu, e o familiar, dirigido a todos os membros da
família que estão envolvidos afetivamente, não obrigatoriamente a família
biológica. A frequência dos atendimentos é semanal em todos os níveis,
sendo que os mesmos tem uma duração média de um ano. Cada
atendimento é realizado por um membro da equipe e o familiar por uma
dupla de terapeutas.
A equipe tem supervisões e reuniões, nas quais são discutidos os
atendimentos. Isto implica no fato de todos os membros da equipe terem
conhecimento do andamento de todos os casos. Este fato é explicitado
também às famílias no momento da triagem.
O vínculo com o Fórum é baseado na importância da lei social quando
as leis familiares são transgredidas. A denúncia como pré-requisito ao
atendimento deve-se ao fato de que, por um lado, representa, em algum
nível, a possibilidade de busca de limite externo e a quebra do segredo
familiar; este tipo de mudança é uma forma de viabilizar o processo
terapêutico. Por outro lado, na ausência de uma denúncia judicial, esta
deveria ser feita pelos terapeutas que tomam contato com este tipo de caso
envolvendo crianças e adolescentes (como determina o ESTATUTO DA
CRIANÇA E DO ADOLECENTE), comprometendo a formação dos vínculos
de confiança necessários ao atendimento.
A relação prática do CEARAS com o Fórum, a partir do início dos
atendimentos, resume-se na confecção de relatórios sobre a disponibilidade
31
e necessidade dos atendimentos para o Juiz responsável pelo caso, se
houver um pedido do último.
A implicação do Sistema Judiciário no contexto destes atendimentos é
levada em conta tanto em relação à fantasia provocada nos pacientes do
atendimento no CEARAS ser a salvação contra a prisão dos “agressores”,
como no fato de ser um trabalho conjunto, sendo a atividade do Fórum um
suporte concreto de imposição de limites que a família não tem.
32
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO
33
CARACTERIZAÇÃO DO ABUSO SEXUAL INTRAFAMILIAR
ATRAVÉS DE DADOS ELABORADOS NO CEARAS
Aqui estão apresentadas as quatro tabelas e os respectivos gráficos
de barras com a pesquisa no CEARAS através dos dados coletados nos
prontuários dos pacientes e da própria experiência dos atendimentos. As
tabelas 1, 2 e 4 já foram feitas com dados de pacientes atendidos nos cinco
primeiros anos de funcionamento do CEARAS (COHEN; GOBBETTI, 1998)
e os resultados apresentados agora são muito semelhantes ao estudo
anterior, o que colabora na validação desta pesquisa. Pequenas diferenças
ou novas observações estarão apontadas na discussão.
Os dados utilizados no atual estudo referem-se ao período de junho
de 1993 (início das atividades do CEARAS) a dezembro de 1999. No
período considerado, este Serviço atendeu 84 casos de abuso sexual
intrafamiliar, realizando 39 atendimentos familiares e 82 atendimentos
individuais. A duração média dos atendimentos é de um ano.
Os encaminhamentos destas pessoas foram feitos, principalmente,
pelas Varas da Infância e Juventude de São Paulo (86,90% dos casos),
sendo que o restante dos casos foi encaminhado por outras vias, como SOS
Criança, Secretaria do Menor e algumas Organizações Não Governamentais
(ONG’S).
A Tabela 1 foi elaborada com o objetivo de caracterizar o tipo de
abuso sexual e o grau de parentesco entre as pessoas. Os dados foram
34
apresentados na forma de “relação”, para demonstrar que na compreensão
do CEARAS é inadequado estigmatizar os indivíduos envolvidos diretamente
na relação sexual genital em “vítimas” e “agressores”. Para mostrar como os
casos chegaram ao CEARAS da Justiça, as pessoas contra quem foram
feitas as denúncias foram colocados do lado esquerdo da dupla dos
relacionamentos incestuosos.
O tempo de duração dos relacionamentos sexuais e a qualificação
destes foram relacionados na Tabela 2. Considero que o tempo de duração
das relações é muito importante e deveria ser um fator levado em conta pela
Justiça, pois, às vezes, o tempo de relação é mais traumático do que o tipo
de relação.
A Tabela 3 mostra a relação da duração das relações incestuosas
com o grau de parentesco entre as pessoas envolvidas diretamente na
relação sexual genital. Esta pretende avaliar se a proximidade de parentesco
entre as pessoas envolvidas influencia a duração das relações.
As pessoas que fizeram a denúncia nos diversos relacionamentos
incestuosos manifestos aparecem na Tabela 4. Estas realizaram a quebra
do pacto familiar, que se constitui no grande problema em se trabalhar com
as famílias incestuosas.
A experiência do trabalho com pessoas que passam por situações de
abuso sexual intrafamiliar mostra que, em muitos casos a relação sexual
abusiva é desmentida pela criança ou adolescente após a denúncia e
algumas de suas consequências, fenômeno descrito por FURNISS (1993)
como “negação secundária”, resultante da intervenção de profissionais da
35
Justiça e da Saúde e da pressão consequente da própria família. Isto pode
ser verificado no trabalho do CEARAS através de cinco casos que, por tal
motivo, ficaram fora das tabelas e das apreciações, mas cabe uma
observação: o não encerramento dos casos quanto a atendimento, tanto
judicial quanto na área de saúde, por causa da negação do abuso, permite
uma melhor observação das famílias e, em alguns casos, a posterior
confirmação do abuso verbalizada pela família ou manifestada de outra
forma nas sessões terapêuticas e, assim, a possibilidade de tratamento.
Para exemplificar, em uma família atendida pelo CEARAS, após um
tempo da negação da criança, a mesma fugiu de casa para escapar da
situação abusiva, surgindo uma nova denúncia ao Fórum.
36
TABELA 1 - NÚMEROS E TIPOS DE RELACIONAMENTOS INCES TUOSOS
Relações
Incestuosas
Atos
Libidinosos
Conjunção
Carnal
TOTAL
N
TOTAL
%
Pai-filha 25 11 36 32,73
Padrasto-enteada 12 08 20 18,18
Irmão-irmã 06 07 13 11,32
Tio-sobrinha 05 05 10 9,03
Pai-filho 06 -- 06 5,45
Tio-sobrinho 04 -- 04 3,64
Avô-neta 04 00 04 3,64
Padrasto-enteado 03 -- 03 2,73
Primo-prima 02 01 03 2,73
Mãe-filha 01 -- 01 0,91
Mãe-filho 01 00 01 0,91
Irmão-irmão 01 -- 01 0,91
Irmã-irmã 01 -- 01 0,91
Primo-primo 01 -- 01 0,91
Cunhado-cunhada 00 01 01 0,91
Cunhado-cunhado 01 -- 01 0,91
Padrinho-afilhada 01 00 01 0,91
Padrinho-afilhado 01 -- 01 0,91
Companheiro da avó-neta 01 00 01 0,91
Educador-criança 01 00 01 0,91
TOTAL N 77 33 110 --
TOTAL % 70 30 -- 100
37
38
TABELA 2 - DURAÇÃO E TIPO DE RELAÇÕES
Tipo
Duração
Atos
Libidinosos
Conjunção
Carnal
TOTAL
N
TOTAL
%
Ocasional (1 a 5 episódios) 14 08 22 20,00
Até 6 meses 04 02 06 05,45
6 meses a 11 meses 01 01 02 01,82
1 ano a 1ano e 11 meses 10 05 15 13,64
2 anos a 2 anos e 11 meses 02 03 05 04,55
3 anos ou mais 21 04 25 22,73
Dados desconhecidos 25 10 35 31,82
TOTAL N
77 33 110 __
TOTAL %
70,00 30,00
__ 100,00
39
40
TABELA 3 - GRAU DE PARENTESCO E DURAÇÃO DAS RELAÇÕE S INCESTUOSAS
Duração
Grau de
Parentesco
De 1 a 5
episódios
N %
Até 6
meses
N %
De 6 a
11
meses
N %
De 1 ano a
1 ano e 11
meses
N %
De 2 anos
a 2 anos e
11 meses
N %
3 anos ou
mais
N %
Dados
desco-
nhecidos
N %
TOTAL
N
Pai-filha 6 16,67 1 2,78 0 0 4 11,11 4 11,11 6 16,67 15 41,67 36
Padrasto -
enteada 5 25 2 10 2 10 2 10 0 0 5 25 4 20 20
Irmão-irmã 3 23,08 2 15,38 0 0 2 15,38 0 0 3 23,08 3 23,08 13
Tio-sobrinha 3 30 0 0 0 0 1 10 1 10 2 10 3 30 10
Pai-filho 0 0 0 0 0 0 1 16,67 0 0 5 83,33 0 0 6
Avô-neta 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 2 0 2 0 4
Tio-sobrinho 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 4 100 4
Padrasto -
enteado 0 0 0 0 0 0 1 33,33 0 0 1 33,33 1 33,33 3
Primo-prima 1 33,33 1 33,33 0 0 1 33,33 0 0 0 0 0 0 3
Irmão-irmão 1 100 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1
Mãe-filha 0 0 0 0 0 0 1 100 0 0 0 0 0 0 1
Mãe-filho 0 0 0 0 0 0 1 100 0 0 0 0 0 0 1
Irmã-irmã 1 100 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1
Primo-primo 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 100 1
Cunhado -
cunhada 1 100 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1
Cunhado -
cunhado 0 0 0 0 0 0 1 100 0 0 0 0 0 0 1
Padrinh o-
afilhada 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 100 1
Padrinho -
afilhado 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 100 1
Companheiro
da avó-neta 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 100 0 0 1
Educador -
criança 1 100 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1
41
42
TABELA 4 - DENÚNCIA DAS RELAÇÕES INCESTUOSAS
Denúncia
Relações
Incestuosas
Própria
Mãe
Pai
Terceiros
Outros
Parentes
Total
N
Total
%
Pai-filha 10 11 0 10 2 33 34,74
Pai-filho 0 4 0 1 0 5 5,27
Mãe-filha 0 0 0 0 1 1 1,05
Mãe-filho 0 0 1 0 0 1 1,05
Padrasto-enteada 6 5 0 5 0 16 16,84
Padrasto-enteado 0 0 0 1 1 2 2,11
Irmão-irmã 1 7 1 1 0 10 10,57
Irmão-irmão 0 1 0 0 0 1 1,05
Irmã-irmã 0 0 0 1 0 1 1,05
Avô-neta 1 2 0 0 1 4 4,21
Tio-sobrinha 0 6 2 0 0 8 8,42
Tio-sobrinho 0 4 0 0 0 4 4,21
Primo-prima 1 2 1 0 0 4 4,21
Primo-primo 0 1 0 0 0 1 1,05
Cunhado-cunhada 1 0 0 0 0 1 1,05
Padrinho-afilhada 0 1 0 0 0 1 1,05
Padrinho-afilhado 0 1 0 0 0 1 1,05
Educador-criança 1 0 0 0 0 1 1,05
TOTAL N 21 45 5 19 5 95 --
TOTAL % 22,11 47,37 5,26 20 5,26 -- 100
43
44
Agora procurarei analisar os resultados apresentados na Tabela 1 e
respectivo gráfico. Destes casos atendidos pelo CEARAS, há uma
diversidade de relações de parentesco entre as pessoas envolvidas em
relacionamentos incestuosos, demonstrando que eles aparecem de diversas
formas. Apesar disto, podemos observar a predominância da relação pai e
filha (32,73% dos casos), sendo seguida, embora com uma porcentagem
bem menor (18,18%), da relação padrasto-enteada.
A diversidade das relações incestuosas e os dados percentuais
apresentados na tabela quanto ao grau de parentesco nas relações
incestuosas em muito tem em comum com outra pesquisa realizada em
nosso país, no serviço de Sexologia Forense do Instituto Médico Legal de
São Paulo (COHEN; MATSUDA, 1991). Embora sendo um universo distinto
do apresentado aqui, devido a diferenciação da demanda deste serviço ao
do CEARAS, existem resultados bastante semelhantes. Destacarei aqui as
pessoas que foram denunciadas por cometer abuso que apareceram com
maior frequência na pesquisa, contrastando com as porcentagens obtidas na
amostra do CEARAS:
Grau de Parentesco do Denunciado % - IML % - CEARAS
Pai 41,60 38,13
Padrasto 20,59 20,91
Tio 13,86 12,67
Primo 10,93 03,64
Irmão 03,78 12,23
45
Nesta comparação, observa-se a semelhança nos três primeiros
casos de maior frequência na pesquisa realizada no IML de São Paulo e
uma diferença nas relações incestuosas em que estão envolvidos primos e
irmãos; o percentual aparece invertido, tendo, as relações incestuosas
envolvendo irmãos, uma porcentagem bem maior no CEARAS. Uma
hipótese talvez seja que as relações entre irmãos tendem mais a ser
compreendidas como consentidas, além de, na maior parte dos casos, os
dois envolvidos serem menores de idade e, portanto, ter um menor número
de encaminhamento para exame de corpo de delito.
Voltando aos dados da presente pesquisa, observa-se, além da alta
porcentagem de relações pai e filha, a porcentagem de relacionamentos
entre pai e filho em quinto lugar (5,45%), sendo portanto o pai biológico
envolvido em 38,53% das relações incestuosas. Assim, a relação incestuosa
entre padrasto e enteados parece não ser explicada pela falta de laços
consanguíneos, mas justamente pelo oposto: o padrasto cumpre a função
social de pai.
Nota-se, em terceiro lugar, as relações heterossexuais entre irmãos
(11,32%). Observamos também, embora em pequeno número, relações
entre mães e filhos. Estes dados divergem da crença popular que considera
“famílias em risco” para relações abusivas, as famílias reconstituídas, ou
seja, aquelas formadas por novas uniões, onde a relação entre as pessoas
não é confirmada pela consanguinidade. A maioria dos relacionamentos
incestuosos ocorreu entre parentes próximos e consanguíneos, ou seja,
entre pais e filhos e entre irmãos (53,14%).
46
A referida tabela também foi dividida pelo tipo de relação estabelecida
segundo as definições utilizadas pelo Código Penal Brasileiro: conjunção
carnal e atos libidinosos diversos da conjunção carnal.
Por conjunção carnal entende-se “o ajuntamento do órgão genital do
homem com o da mulher, a intromissão do pênis na cavidade vaginal”
(Hungria, N.; 1963), sendo qualquer outra prática sexual conceituada como
ato libidinoso. A nossa cultura atribui maior gravidade aos crimes
configurados por conjunção carnal (como o estupro, por exemplo). Até na
proposta do novo Código Penal, estas tipificações já aparecem com penas
diferenciadas. Pode-se pensar que isto se deva a uma valorização da
virgindade feminina ou da possibilidade de gravidez como consequência do
ato.
A maioria das relações incestuosas foram permeadas por atos
libidinosos diversos da conjunção carnal (70,64%). Mesmo isolando as
relações homossexuais, que contam como 17,28% da amostra, por não
poderem ser configuradas como conjunção carnal pela definição do Código
Penal Brasileiro, a porcentagem de relacionamentos caracterizados por atos
libidinosos continua maior (63,74% de atos libidinosos contra 36,26% de
conjunção carnal).
47
Gráfico 5 - DISTRIBUIÇÃO RELAÇÔES INCESTUOSAS HETEROSSEXUAIS PELO TIPO DA RELAÇÃO
63,74%
36,26%
Atos Libidinosos
Conjunção carnal
Outro fator a salientar é o menor índice de relações abusivas envolvendo
crianças ou adolescentes do sexo masculino como “vítimas” (apenas 16,36%
do número de relacionamentos incestuosos), conforme mostra o gráfico
abaixo:
Gráfico 6 - DISTRIBUIÇÃO DAS "VÍTIMAS" DE ABUSO SEXUA L INTRAFAMILIAR POR SEXO
16,36%
83,64%
Masculino
Feminino
Acredita-se que os meninos tenham mais dificuldade em discriminar
e, principalmente, denunciar as relações sexuais abusivas. Uma hipótese
para a maior dificuldade da denúncia por parte dos meninos pode ser o fato
da maioria das relações sexualmente abusivas percebidas serem relações
homossexuais, o que implica em mais um fator discriminatório, o que pode
levar a uma estigmatização com o rótulo de homossexuais. Segundo RITA e
48
BLAIR JUSTICE (1979), a vergonha e o estigma social associados à
homossexualidade contribuem para a não notificação dos abusos. KNOPP
(1982) reforça o fato das vítimas de abuso do sexo masculino terem medo
de prejudicar sua reputação entre os companheiros.
Na verdade, questiono aqui a definição de uma relação sexualmente
abusiva, principalmente nas qualificadas por atos libidinosos diversos da
conjunção carnal, pois acredito que muitas relações “abusivas” ocorram nas
famílias com uma frequência maior, mas que também ofereçam mais
dificuldades de serem percebidas como tal. É o caso, por exemplo, de
determinados “cuidados maternos” que se estendem aos filhos a um período
maior do que o necessário, como mães que amamentam filhos de 3 anos de
idade ou dão banho em filhos praticamente adolescentes. Esse acesso da
mãe ao corpo dos filhos talvez ajude a mascarar uma relação abusiva, o que
pode sugerir uma explicação ao fato de mulheres aparecerem em um índice
muito baixo como “abusadoras” em vários estudos e mesmo em nossa
amostra do CEARAS (2,73%). Neste Serviço, apenas duas mães e uma irmã
foram denunciadas por abuso sexual, enquanto o restante das pessoas
denunciadas por cometer abuso sexual é inteiramente masculino, conforme
podemos visualizar melhor no gráfico a seguir:
49
Gráfico 7 - DISTRIBUIÇÃO DE PESSOAS DENUNCIADAS QUA NTO AO SEXO
97,27%
2,73%
Masculino
Feminino
Neste sentido, quando o Código Penal diferencia atos libidinosos e
conjunção carnal para caracterizar o tipo de crime no capítulo dos Crimes
Contra os Costumes, atribuindo penas diferenciadas para os dois tipos de
interação corporal, leva em conta apenas dados concretos. Além disto, é
atribuída menor gravidade a um crime sexual cometido contra uma criança
do sexo masculino, já que a possibilidade de pena referente ao Atentado
Violento ao Pudor é menor do que nos casos de Estupro, que é um crime
contra a mulher.
Isto significa que a maioria destas relações, quando denunciadas,
dificilmente obterão provas objetivas da ocorrência através de um exame de
corpo de delito no Instituto Médico Legal. A maioria destes relacionamentos
são efetivados através de carícias e toques, não culminando em uma
relação sexual completa, sendo que isto não diminui necessariamente a
gravidade das consequências a seus participantes, pois não é a agressão
física que define o abuso e sim a violência emocional que pode estar por trás
do fato.
50
Embora os crimes sexuais tenham penas agravadas quando
cometidos por “pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou curador, preceptor ou
empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela”,
conforme nosso Código Penal, tal consideração ainda não reflete as
verdadeiras consequências de uma relação incestuosa.
Apontarei agora as observações referentes à Tabela 2. Neste estudo,
quanto à duração de uma relação incestuosa, na maioria das vezes, a
relação é duradoura, não se resumindo a alguns episódios. Das relações
incestuosas que foram, de alguma forma, discriminadas pelos pacientes por
um determinado período de ocorrência, ou seja, com exceção das
classificadas como dados desconhecidos (31,82% das relações), 60%
tiveram uma duração maior do que 1 ano, sendo que 33,33%, uma duração
maior do que 3 anos. Cabe aqui destacar que, embora agrupadas em um
item, dentro das relações com duração maior de 3 anos, encontramos
relações com durações de 5, 6 e 8 anos. Uma relação com duração superior
a 3 anos foi considerada suficiente para se concluir que a relação fazia parte
do cotidiano da família em questão.
Gráfico 8 - DISTRIBUIÇÃO DA DURAÇÃO DAS RELAÇÕES INCESTUOSAS
40,00%
60,00%
Até 1 ano
1 ano ou mais
51
Dados sobre a extensão da duração das relações incestuosas
aparecem em outras pesquisas, como a mostrada no artigo de BARRY
(1985), onde o autor estima que apenas ¼ dos casos de incesto fica limitado
a um único ato sexual, tendo, 70% das relações incestuosas duração maior
do que um ano e 10%, duração maior do que 3 anos.
A duração das relações incestuosas talvez seja uma característica
específica que diferencie o abuso sexual intrafamiliar do abuso sexual
perpetrado por estranhos. Resta pensar se esta duração é promovida
apenas pela proximidade física entre as pessoas ou se existem outros
fatores envolvidos.
Da mesma forma, a duração já sugere um envolvimento dos outros
membros da família, pois torna-se quase impossível não haver uma
percepção destes, seja em qualquer nível, de uma relação que ocorre
durante períodos superiores a um ano. A prática clínica confere esta
hipótese, sugerindo que há um consentimento implícito (senão explícito) de
todos os membros da família para a relação.
O índice de imprecisão dos dados quanto à duração, qualificados
como dados desconhecidos (31,82%) revela a dificuldade das pessoas
envolvidas em lidar com a situação. Este item da tabela foi constituído por
relações em que os participantes ou não verbalizaram diretamente a relação
incestuosa, ou verbalizaram várias versões, na maioria das vezes mais
minimizadas no momento de chegada ao CEARAS, sendo incapazes de
precisar uma duração específica. Nestes casos, a informação da duração é
consciente ou inconscientemente “sonegada” pelos pacientes.
52
A hipótese de que a informação da duração é minimizada, ou que
apenas os episódios ocorridos em momentos de crise, principalmente na
revelação do abuso, são verbalizados foi confirmada em muitos casos
durante o atendimento no CEARAS, quando se percebeu que a relação
sexual incestuosa já estava anteriormente instalada na família. Destaca-se
aqui que um fator na avaliação da duração das relações incestuosas que
diferiu da primeira avaliação feita deste tipo de dados foi justamente o
aumento do número de relacionamentos incestuosos ocasionais
principalmente nas relações pai e filha (COHEN; GOBBETTI, 1998). Isto
pareceu ser resultado do seguinte processo: os dados obtidos através dos
prontuários dos pacientes de que a relação foi apenas ocasional pareceram
distorcidos na maioria dos atendimentos, espaço onde há a possibilidade de
uma maior percepção da situação vivida pelas pessoas. Na maioria dos
casos, pareceu que só era levado em consideração o episódio que detonou
a denúncia.
O encaminhamento dos pacientes pelas Varas de Infância e
Juventude pode gerar a fantasia de que o CEARAS faz parte do sistema
judiciário e que, portanto, as verbalizações sobre a relação incestuosa
possam comprometê-los legalmente. Isto causa muitas vezes a negação da
relação abusiva tanto por parte das pessoas que são denunciadas, quanto
por parte das crianças e adolescentes envolvidos que temem as
consequências da punição dos pais ou responsáveis recebidas através do
sistema judiciário.
53
Tudo o que foi dito retrata o lado consciente responsável pela
imprecisão dos dados. Por outro lado, a dificuldade em lidar com a situação,
mesmo de discriminar o que é abusivo e o sentimento de culpa provocado
pela participação, muitas vezes consentida, destas crianças e adolescentes
na relação incestuosa podem ser outros fatores que contribuem para a
omissão ou imprecisão dos dados. Assim, talvez exista a ação de algum
mecanismo de defesa do indivíduo que iniba e/ou distorça as lembranças
dos fatos, sendo de qualquer forma muito subjetivas as vivências dos fatos e
até mesmo da duração.
Quanto à duração da relação frente à categoria de interação, se é
permeada por atos libidinosos ou por conjunção carnal, pode-se fazer a
observação de que nas relações incestuosas mais duradouras (mais de 3
anos), as relações caracterizadas por atos libidinosos aparecem com uma
frequência bem mais alta. Tal fato sugere que o reconhecimento da situação
abusiva nos casos em que ocorre a conjunção carnal é facilitado, impedindo
que ela se prolongue por muitos anos.
Assim, a duração da relação incestuosa assume uma importância
qualitativa, pois significa não apenas um abuso sexual intrafamiliar
prolongado, mas, principalmente, uma mudança no tipo de relacionamentos
existentes dentro do grupo familiar. Uma relação sexual incestuosa que dura
por mais de um ano significa que as pessoas diretamente envolvidas
apresentam praticamente uma relação “conjugal”, seja entre pai e filha ou
entre irmãos, por exemplo; é a demonstração concreta da troca de papéis
dentro do grupo familiar.
54
Farei mais algumas observações sobre a duração das relações
incestuosas através da apresentação dos resultados da tabela 3, que analisa
este dado em relação ao grau de parentesco dos participantes da relação
sexual em si.
Em uma visão geral, parece não haver diferenças quanto à duração
das relações incestuosas e o grau de parentesco entre as pessoas. Este
dado pode conferir a hipótese de que a relação incestuosa, embora apareça
com mais frequência em alguns tipos de interação, não depende dos laços
consanguíneos de família para conferir-lhe gravidade, já que o fundamental
é o papel social exercido pelos membros do grupo familiar, dado que escapa
a estas tabelas.
Nota-se também, que, exceto em uma relação incestuosa entre
irmãos, todas as demais relações incestuosas homossexuais entre pessoas
do sexo masculino não foram discriminadas por um período de ocorrência de
poucos episódios (1 a 5 episódios). Talvez isto se deva ao fato, já discutido
anteriormente, da dificuldade de meninos denunciarem a situação abusiva,
pela estigmatização do homossexualismo. E, neste caso, nem o episódio
que acarretou a denúncia pode ser falado.
Agora analisarei os dados da tabela 4, onde foram agrupadas as
denúncias que se referem à busca de auxílio externo na própria Vara de
Infância e Juventude ou em qualquer outra Instituição que encaminharia
para a abertura de um processo, significando a quebra do segredo familiar
(por exemplo, delegacia ou SOS Criança). O total das denúncias é inferior
ao total de relações incestuosas, pois, em algumas famílias, existe mais de
55
uma relação incestuosa e só houve procura de denúncia para um membro
da família, sendo descoberto outro abuso no Fórum, através das entrevistas
da equipe técnica (psicólogos e assistentes sociais judiciários) ou no próprio
atendimento do CEARAS. Além destes, em alguns casos foi impossível
resgatar este dado, provavelmente perdido pela desistência de algumas
famílias logo no início dos atendimentos. Parece haver um envolvimento
familiar, onde todos os membros do grupo procuram agir de forma a manter
o funcionamento da família.
Verifica-se que a denúncia dos casos encaminhados ao CEARAS foi
feita em menor número por terceiros (apenas 20,22% das denúncias) ou por
outros parentes, que foram considerados aqui por parentes não envolvidos
na relação incestuosa e que não moravam junto com a família em questão
(4,49% das denúncias). Este dado pode significar que as famílias
conseguem manter o segredo ou que as pessoas ainda mantém o conceito
da “sagrada família”, procurando não se envolver em conflitos percebidos
em outras famílias.
A porcentagem maior de denúncias foi efetuada pela mãe (48,31%
das denúncias), sendo seguida pela denúncia da própria criança ou
adolescente abusada (23,60%). O pai efetuou a denúncia em apenas 3
casos (3,37%), sendo um de relação incestuosa da filha com um tio, outro de
relação entre irmãos; neste, o pai fez a denúncia após ter sido acusado
também de abuso e o terceiro, da relação incestuosa mãe e filho, sendo que
os pais já estavam separados e havia uma disputa de guarda anterior ao
56
abuso. Sendo assim, parece que o pai tem dificuldade em exercer sua
função de colocar limites dentro de sua família.
É importante destacar um dado não contido na tabela: das denúncias
realizadas contra o pai ou padrasto, 35,18% delas foram feitas pelas mães,
sendo que 18,52% das denúncias foram feitas por mães que estavam
separadas do companheiro. Nas famílias em que ocorreu relação incestuosa
pai-filha(o) ou padrasto-enteada(o), quando o casal morava junto, a maioria
das denúncias apareceu ou por uma demanda da própria da
criança/adolescente que vivenciou a situação ou por pessoas que não
moravam na casa (terceiros ou outros parentes). Já, como se pode notar,
grande parte das relações incestuosas entre irmãos foram denunciadas, com
exceção de duas, pela mãe (66,67%).
A dificuldade da denúncia do companheiro pelas mães de crianças ou
adolescentes abusados parece ser o indício de uma complexa relação, onde
há uma impossibilidade de proteção ou cuidado materno aliado à relação
incestuosa.
FORWARD e BUCK (1989) nomearam as mães, nos casos de incesto
entre seus companheiros e as filhas, de “cúmplices silenciosas”, pois
acreditam na participação das mães na maioria dos casos, sendo que as
relações são marcadas não pelo que as mães fazem, mas pelo que deixam
de fazer.
Este dado confirma-se no atendimento clínico do CEARAS; nestes
casos, percebe-se uma grande ambivalência de sentimentos destas crianças
e adolescentes em relação a seus pais (biológicos ou substitutos). Mas se
57
revelam, muito mais nítidos, sentimentos de raiva ou desprezo em relação
às mães do que aos pais ou padrastos. Na verdade, a criança ou
adolescente parece responsabilizar a mãe pela relação sexual, sentindo
mais raiva pela não interdição do que pelo ato em si.
58
QUALIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES INCESTUOSAS
Num quadro geral dos atendimentos do CEARAS, concluindo através
dos dados apresentados, complementados pela possibilidade de
interpretação através da experiência do trabalho no CEARAS, posso citar
algumas características percebidas das famílias incestuosas:
1 – Na maioria das vezes, a relação sexual incestuosa ocorre durante um
período extenso; durante meses ou anos, sendo exceção a ocorrência
de apenas um episódio, o que sugere ser o relacionamento sexual
característica do funcionamento da família .
2 – A relação incestuosa não envolve na maior parte dos casos uma
relação sexual completa e nem mesmo violência física, o que significa
que não deixa marcas concretas visíveis, sendo de difícil comprovação.
3 – A relação sexual denunciada geralmente não é a única que ocorre,
sendo que outros relacionamentos sexuais dentro da família são
percebidos no decorrer do processo terapêutico. Muitas vezes, estes
não são percebidos pela família como relações abusivas.
4 - Nem todos os membros do grupo familiar participam da relação sexual
genital, sugerindo que há uma escolha para este tipo de atuação e que,
para que esta ocorra, devem existir outros tipos de atuação pelos
outros membros da família.
59
5 – Na prática clínica, podemos observar características como
dificuldades de percepção de limites, troca de papéis ou funções e
baixo nível de simbolização em todos os membros da família.
Todas estas características citadas parecem levar a um quadro que
dificulta a percepção em torno da relação incestuosa, sua consequente
denúncia e a quebra da dinâmica familiar que contribui para manter a
situação abusiva; são estas características que poderão ser mais bem
observadas e exemplificadas com quatro estudos de casos, que
demonstrarão em quatro situações como estas ocorrem.
60
Exemplo Clínico 1: “DEFINIÇÃO DE FAMÍLIA”
Uma das grandes dificuldades do trabalho do CEARAS é definir as
famílias que vão ser atendidas, ou seja, qual é o grupo de pessoas a quem
vai ser proposto o atendimento familiar.
Como já foi esclarecido, a definição que o CEARAS utiliza não leva
em conta a consanguinidade, mas sim a “função social de parentesco”
exercida pelos membros do grupo familiar. Às vezes, estas funções não são
tão claras e escapam de uma visão tradicional de família: casal e filhos.
A discussão proposta a seguir é sobre uma família que tem uma
formação incomum e exigiu bastante investimento da equipe para que fosse
decidido quem seria o grupo familiar atendido.
A família chegou ao CEARAS com a queixa de que a filha de 8 anos,
L., havia sido abusada sexualmente por um vizinho. Na tentativa de
compreender melhor a queixa e o motivo do encaminhamento para a
instituição, foram realizadas entrevistas de triagem e chegou-se à conclusão
de que se tratava de um caso que deveria ser atendido pelo CEARAS, já
que este vizinho tinha uma relação muito próxima às pessoas da família,
cumprindo muitas vezes o papel de “cuidar” da família e das crianças.
Um outro vizinho, Sr. A., também passou a ajudar a família,
assumindo um papel importante dentro da mesma e foi este quem,
juntamente com a mãe, fez a denúncia. O atendimento familiar foi proposto
para o casal, os quatro filhos e para este vizinho que tinha uma participação
ativa no grupo familiar.
61
Histórico Familiar Referente à Relação Incestuosa
Sra. N., mulher que formava o casal da referida família, teve um
companheiro com o qual teve uma filha. Após o falecimento deste, quando
sua filha contava com 1 ou 2 anos de idade, Sra. N. inicia um novo
relacionamento, do qual também engravidou de E. Na ocasião em que
estava na maternidade, seu companheiro, segundo ela, “deu” a sua filha a
outra família. Mais tarde, com ajuda judicial, conseguiu descobrir com quem
estava sua filha, mas resolveu deixá-la na sua outra família, pois, no seu
discurso, acreditava que seria o melhor para a criança.
Após a separação do pai de E., Sra. N. conheceu Sr. R., com quem
se uniu e teve mais três filhos: primeiro um menino e depois duas meninas,
que tinham as respectivas idades na chegada ao CEARAS: 9, 7 e 3.
A história sobre a união do casal foi trazida pela família de uma forma
confusa. Sra. N., de certa forma, pareceu atribuir a seu filho E. o rumo de
sua vida, quando decidiu morar com Sr. R. Contou o episódio, relatando que
o detonador de sua decisão tinha sido o fato de E. jogar-se no colo do futuro
padrasto. Sr. R. concorda com o relato, parecendo não haver desejo entre
eles, ou, pelo menos, a consciência deste.
A história das famílias de origem do casal era obscura. Sr. R. nada
relatou sobre a sua e a única coisa trazida pela Sra. N. foi a sua fuga de
casa aos dezoito anos após constantes episódios de abuso físico e sexual
por parte do pai.
62
A inserção de Sr. A. nesta família também foi estranha; Sr. R.
trabalhou muitos anos com o pai de Sr. A. e quando, em determinada época,
Sr. R. adoeceu e ficou internado, Sr. A. conheceu sua família e passou a
“ajudá-los”. No momento da chegada ao CEARAS, Sr. A. cumpria um papel
social de “pai” para esta família, apoiando-a financeiramente e socialmente:
levava as crianças para passear e para compromissos como consultas
médicas e audiências no Fórum. Além disto, era ele quem trazia a família
para o atendimento. Em relação a sua própria família, Sr. A. era solteiro e
morava com sua mãe, seu pai era falecido e relatava ter uma relação muito
ruim com o irmão, da qual nunca se aprofundou com mais detalhes nas
sessões.
Observações do processo terapêutico
A queixa do abuso sexual apareceu apenas no início do atendimento
e no discurso da Sra. N. e do Sr. A. A filha, L., a favor da qual foi feita a
denúncia, nunca falou na terapia familiar sobre o relacionamento abusivo.
Embora também tenha sido convocado a realizar o exame de corpo de delito
na ocasião da denúncia, por uma suspeita de algum profissional da Justiça,
o filho mais velho, E., sempre defendeu seu “candidato a padrinho”,
demonstrando muita raiva em relação à irmã por causa da denúncia. Após a
denúncia, o “padrinho” das crianças e de Sra. N., com exceção de E.,
passou a ser Sr. A. (durante todo o atendimento, a idéia do batismo das
pessoas desta família e a escolha do “padrinho” foram assuntos constantes).
63
O grupo familiar, com exceção de Sr. A., parecia, todo o tempo, buscar
alguém que pudesse cuidar dos membros do grupo: era como se fosse um
grupo de irmãos em busca de pais.
A terapia girava em torno da dinâmica familiar do grupo em questão.
Nesta dinâmica, além da aparente negligência em relação aos filhos por
parte do casal, apareciam vários relacionamentos abusivos, como por
exemplo, a mãe castigar os filhos apertando seus órgãos genitais ou mesmo
a pressão de Sr. A. a L., que apareceu nas primeiras sessões, incentivando-
a, sem nenhum efeito, a contar detalhadamente a relação sexual abusiva.
Acredito no caráter perverso deste comportamento, pois a descrição da
relação sexual abusiva parecia causar-lhe prazer.
O relacionamento sexual abusivo não era novo nesta família, já que a
mãe também carregava um histórico de abuso sexual pelo pai, saindo de
casa aos 18 anos. Relatou nunca mais ter tido contato com nenhum parente.
Segundo Sra. N., a mãe nunca pode fazer nada por ela e este fato não
apareceu como uma cobrança em relação à mãe, mas sim como algo
esperado e natural. Pareceu haver, no seu grupo familiar constituído, uma
repetição da dinâmica envolvida na sua família de origem, tanto no
relacionamento sexual abusivo, quanto na dificuldade da mãe em “cuidar” de
seus filhos.
As sessões eram bastante confusas e havia muitas discussões entre
os membros da família. A principal incompatibilidade parecia ser entre Sr. A.
e E., mostrando o primeiro muita agressividade em relação ao adolescente.
Sr. A., segundo ele próprio, “tentava colocar uma ordem” dentro da família,
64
mas esta era almejada através de muita agressividade e falta de respeito,
características dos relacionamentos de Sr. A. com os membros da família, a
exceção de sua relação com L., com quem demonstrava ter um vínculo
carinhoso e um certo conluio; em vários momentos do atendimento, parecia
tratar-se de um casal.
Havia uma aparente “cegueira” ou “encantamento”, por parte de Sr.
A., quanto às características, qualidades e defeitos da menina, sendo a
mesma colocada em posição de destaque e os irmãos sempre com uma
imagem denegrida. L. parecia aproveitar-se desta preferência, utilizando
esta relação para ganhos secundários, o que causava ciúmes e raiva dos
irmãos e, às vezes, até da própria mãe. O fato de Sr. A. depositar apenas
em L. características boas e o seu cuidado em relação a ela, no sentido de
preservá-la, em contraposição à agressividade dirigida aos outros membros
do grupo pareciam representar os processos de cisão e projeção que ele
fazia de seus próprios conteúdos, provavelmente, a maneira encontrada de
lidar com suas próprias ansiedades.
Este tipo de organização familiar parecia baseado numa perversão de
funções, onde o pai não assumia sua função de colocar limites, nem a mãe,
sua função de continência e proteção. Os irmãos também não apresentavam
um envolvimento fraternal; diante da relação instalada, calavam-se e muitas
vezes sentiam raiva da criança que era colocada numa “posição
diferenciada” (benefícios secundários).
65
Depois de um tempo de atendimento, a família, parecendo motivada
pela angústia gerada por uma maior percepção do conflito, desistiu do
atendimento.
Após poucos meses, a família retornou solicitando a continuidade dos
atendimentos, trazendo uma nova queixa: a mãe havia descoberto que a
filha não sofria abusos apenas pelo suposto vizinho “padrinho”, mas também
pelo pai. Tal fato mostra-nos que os modelos de vínculos vivenciados dentro
de casa foram transpostos para uma outra relação e que a família não teve
condições de exercer a função de proteção para esta criança, seja em
relação ao próprio pai, seja em relação a outra pessoa não pertencente à
família.
Poucas sessões depois do retorno da família, o pai foi “excluído” pela
família na terapia. Excluído nas sessões e até de um suposto papel de pai;
foi neste retorno que surgiu uma novidade no histórico da família: surgiu a
revelação de que o outro filho de Sra. N., J., também não era filho de Sr. R.
Mais uma atuação perversa da família apareceu com esta revelação: a
criança sabia sobre seu pai verdadeiro, inclusive conhecendo a família do
mesmo (o fato só fora revelado a J. após a morte do pai) e era obrigado a
dissimular, fingindo não conhecer o fato. Esta criança parecia ser a que mais
sofria com a “falta de cuidados”, aspecto notado até em sua aparência física.
Inicialmente, fora colocado como “o que não dá trabalho”, que parecia ser
uma justificativa para a falta de atenção a ele. Depois de um tempo da
terapia, a figura de “bom menino” foi alterando-se para a de “garoto rebelde”,
para a qual recebia atenção. Este comportamento, embora tendo aparecido
66
como queixa da família, pareceu a nós, terapeutas, como algo positivo e
favorável para o seu desenvolvimento.
A exclusão de Sr. R. foi enfim manifestada por sua desistência
pessoal. Neste momento, todas as dificuldades da família foram projetadas
no membro ausente, não aparecendo nenhum tipo de conflito durante as
sessões. Este período passou rapidamente e os problemas da família
passaram a ser depositados no filho mais velho. Este último “desistiu”
também do atendimento. Nas últimas sessões em que participou, E. falava
de seu “emprego”, começou a trabalhar para um senhor, que empregava
adolescentes, e passou a dormir na casa do mesmo; parecendo ter
arrumado outro “padrinho”. Retornou um período de aparente “tranquilidade”.
Notou-se, nesta família, a necessidade de eleger um “indivíduo
problema” que carregava os conflitos e dificuldades próprias e do restante da
família, que, neste sentido, mostrou uma semelhança no funcionamento do
Sr. A. e do restante do grupo familiar.
No processo terapêutico, observou-se que a mãe assumia papel
centralizador dentro da família direcionando o comportamento e as escolhas
dos demais membros. A única pessoa que se opunha a ela era este vizinho,
que começou também a ser excluído. Ao mesmo tempo que esta pessoa era
sentida como invasiva pela família por tentar exercer uma postura de
dominação, era difícil para a família romper por completo esta relação. A
compreensão da existência e persistência deste tipo de vinculação
constituiu-se num importante foco da terapia.
67
Para a família, pareceu que conseguiram obter um “pai”, embora
hostil e ameaçador, era uma figura que impunha “limites”. Já para o Sr. A., o
“cuidar” da família parecia ser a forma encontrada para o mesmo sentir-se
“potente” e mais valorizado. Por detrás de sua aparente força, parecia haver
uma grande fragilidade e baixa auto-estima, parecendo ter encontrado a
solução de suas dificuldades na inserção nesta família “necessitada”.
Assim, como qualquer união de casal é mobilizada por motivações e
necessidades inconscientes, considero a união deste indivíduo com a família
baseada no mesmo jogo de necessidades, formando, assim, um grupo
familiar, no qual as interações precisam ser compreendidas para que estes
indivíduos possam se organizar e se relacionar de uma forma mais
saudável.
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Exemplo clínico 2: “DIFICULDADE DE SIMBOLIZAÇÃO”
O que caracteriza as famílias incestuosas é a atuação das fantasias
edípicas pela não capacidade de simbolização.
Entende-se que a característica que diferencia o ser humano do
animal é justamente a capacidade de simbolização. Segundo PIAGET
(1968), a simbolização, que consiste na evocação representativa de objetos
e acontecimentos, possibilita reciprocamente o pensamento, aumentando o
campo de ação do indivíduo.
Desta forma, surgiu uma questão: será que as famílias que chegam
ao CEARAS não simbolizam? Num sentido geral, a resposta não pode ser
negativa. A questão tornou-se então: já que existe um nível de simbolização,
como ocorre este processo?
Para KLEIN (1930), o “simbolismo não constitui apenas o fundamento
de toda a fantasia e sublimação, mas também sobre ele se constrói a
relação do sujeito com o mundo exterior e com a realidade em geral”; desta
forma, a autora destaca a importância da simbolização para o
desenvolvimento do ego e, consequentemente, para a estruturação mental
do indivíduo. Entendo que BION (1985) fala desta outra possibilidade de
simbolização mais elaborada quando se utiliza do conceito de “capacidade
de pensar”. Para BION, o “pensar” vai além do pensamento comum, ele
significa outra possibilidade de “lidar com os pensamentos”. A não atuação
direta sobre os desejos edípicos possibilita o pensar e a assimilação das
69
funções sociais, e parece ser esta simbolização que falta nas famílias
atendidas pelo CEARAS. Através deste exemplo clínico a seguir, procurarei
falar desta dificuldade de simbolização.
O atendimento que selecionei foi de uma família que marcou pela sua
dificuldade de relacionamento interpessoal. A queixa que trouxe a família ao
CEARAS foi de abuso sexual praticado pelo padrasto contra sua única
enteada.
A denúncia surgiu através da própria adolescente envolvida, V.,
quando contou sua situação de abuso para uma colega; esta aconselhou-a a
contar para uma profissional da escola e o abuso foi relatado para uma
policial feminina que fazia ronda no local. A mãe, Sra. M., foi chamada na
escola e convocada a participar da denúncia judicial, ou seja, acompanhar a
filha no encaminhamento para a Vara de Infância e Juventude. Houve a
decisão, por parte da Justiça, do afastamento do padrasto, Sr. L., do
restante da família, sendo que este tinha o direito de receber a visita
semanal de seus dois filhos com a Sra. M..
Histórico Familiar Referente à Relação Incestuosa
A composição da família era a seguinte: os membros do casal vinham
de famílias de culturas bem diferentes. Quando Sra. M. conheceu Sr. L., já
tinha uma filha de 2 anos, V., resultante de um relacionamento passageiro
anterior (citação breve da mãe, que procurava não comentar sobre sua
relação com o pai de V.). Sra. M. engravidou novamente, agora do Sr. L., e
70
teve outra filha, N.; após algum tempo, os dois casaram-se e tiveram outro
filho, G.
V. nunca conheceu o pai e nunca demonstrou o desejo de conhecê-lo
ou saber sobre ele.
Um dado importante a destacar é o fato de Sra. M. e Sr. L. passarem
grande parte da vida de casados morando com uma das mães.
Quando a família chegou ao CEARAS, os filhos V., N. e G. estavam
com as respectivas idades: 16, 14 e 12
Observações do processo terapêutico
No atendimento do CEARAS, Sr. L. negava o abuso sexual e Sra. M.
esquivava-se, evitando assumir uma posição, dizendo: “eu não vi nada, não
sei, trabalho fora o dia todo” (sic). V. só conseguiu falar do abuso quando
veio em uma sessão só com a mãe. Contou que o padrasto a assediava,
passava a mão em seu corpo e “tentava” abusar dela; nesta sessão, a mãe
também conseguiu apoiá-la, dizendo que a denúncia foi necessária “para
que não acontecesse o pior” (sic). Tanto a mãe quanto a filha deixaram claro
que os toques foram uma “tentativa de abuso” (sic), demonstrando que,
também em senso comum, outros atos que não a conjunção carnal são
considerados como menos graves e, às vezes, nem abusivos. Os dois
irmãos nunca falaram sobre o assunto.
No início, a família demonstrava uma marcante dificuldade de
comunicação, tanto entre seus membros, quanto entre o grupo familiar e os
71
terapeutas. Parecia que não conversavam sobre seus problemas e
interesses fora das sessões e esta falta de interação era repetida na sessão;
os diálogos eram entre os terapeutas e algum membro do grupo familiar,
sendo que entre eles, praticamente não havia comunicação verbal. Apesar
disto, entre os filhos aparecia um outro tipo de comunicação: os irmãos
comunicavam-se com olhares, toques e sorrisos, demonstrando a existência
de um nível de interação.
Logo, distinguiu-se a queixa da família em relação às consequências
do abuso sexual; o que surgia como problema para a família no atendimento
não era a situação abusiva vivenciada por V., mas sim o afastamento do Sr.
L. do lar. Sra. M. queixava-se da falta do marido, principalmente utilizando a
educação dos filhos como argumento. As principais queixas eram em
relação ao filho, considerando-se incapaz de educá-lo sozinha, de assumir
uma postura de autoridade e dar a ele os limites necessários, ou seja,
mentalmente, cumprir a função paterna.
O filho, G., muitas vezes parecia assumir a postura de “pai”,
controlando as irmãs e a mãe, não se submetendo a nenhum tipo de limite
ou autoridade. Em muitos momentos, G., embora fosse o depositário do
problema familiar, parecia ser o membro com mais recursos e possibilidade
de simbolização. Os pais confirmavam: “G. faz o que quer” e a mãe
ressentia-se de não conseguir controlá-lo. De certa forma, os pais o
autorizavam a assumir este papel e esta confusão de papéis em nada é
estranha nas famílias incestuosas.
72
Já Sr. L. reclamava muito do fato de não poder vigiar seus dois filhos
e, na ausência dele, estes poderem ficar “na rua” o tempo todo. Sr. L.
atribuía grande perigo a esta situação, de ficar fora de casa, como se o
perigo estivesse apenas na rua, que na verdade, é o que se acredita ainda
na nossa sociedade, que mantém o conceito de sagrada família, tendo a
mesma sempre a imagem de protetora. A dificuldade de “olhar” dentro da
família, atribuindo o perigo aos “estranhos” parece ser mais uma defesa da
angústia gerada pelos desejos oriundos das fantasias edípicas, ou seja, uma
projeção dos próprios desejos.
Assim, esta atribuição de todo o perigo para fora de casa, feita por Sr.
L., pareceu ser uma projeção de seus desejos, que resultaria em possíveis
riscos que ele mesmo poderia oferecer a seus filhos. Assim, ele anulava
estes sentimentos, depositando fora de casa tudo o que ele considerava
ruim.
O questionamento feito pelos terapeutas sobre as “situações
perigosas” dentro e fora de casa foi recebido com muita raiva pelo Sr. L., só
demonstrada na sessão seguinte. Nesta, Sr. L. apresentou agressividade em
relação a um dos terapeutas, dizendo que ele estava mandando os filhos
para fora de casa. Esta atitude de desagrado em relação a um dos
terapeutas permaneceu, demonstrando que, nas sessões, Sr. L. repetia sua
atitude de projetar em uma pessoa ou objeto todos os conteúdos ruins ou
ameaçadores, transformada em uma transferência hostil em relação ao
terapeuta. Este processo foi denominada por Melanie Klein (1946) como
identificação projetiva, que é um mecanismo de defesa representado por
73
uma relação de objeto, onde este último é sentido como um prolongamento
do ego e as partes boas ou más do ego são nele projetadas. Este
mecanismo de defesa, embora persistindo em algum nível por toda a vida do
indivíduo, é característico da fase inicial da vida do bebê (do ego primitivo),
sendo sua primeira forma de comunicação. Esta fase inicial é denominada
por KLEIN de "posição esquizoparanóide". A identificação projetiva pode ser
considerada patológica se for a única ou predominante forma do indivíduo
relacionar-se com o mundo.
Embora a exclusão física tenha sido a do pai (através da Justiça), a
exclusão emocional nas relações era a da adolescente. V. era excluída do
grupo familiar: excluída muitas vezes nas sessões e depois, concretamente,
quando a família decidiu morar junto novamente, deixando V. aos cuidados
da avó materna. Esta pareceu ser a solução do problema da família,
parecendo não haver nenhuma implicação dos outros membros da família
com o possível sofrimento de V. A mãe negava claramente esta
possibilidade de sofrimento, justificando qualquer falta que a família podia
causar a V.: “eu trabalho com a minha mãe e eu fico sabendo tudo o que a
V. faz” (sic).
V. mostrou seu sofrimento quando trouxe à sessão o seguinte fato: na
primeira semana em que ficou afastada do convívio com a família, acordou
no meio da noite com muita dor de ouvido e chamou sua mãe. Quando se
deu conta de que a mãe não estava ali para ampará-la, começou a chorar.
Ela demonstrou claramente que o choro e o desespero não foram em
74
consequência da dor física, mas sim da dor sentida pela falta da mãe e,
consequentemente, por sentir-se sozinha.
A mãe não conseguiu simbolizar este choro; pareceu não perceber
que o choro era decorrente de um sofrimento emocional e não físico. Este
sofrimento emocional da filha, embora negado pela mãe, é dela conhecido,
pois tal como foi assinalado, Sra. M. sempre morou com alguma “mãe” (mãe
ou sogra) e chegou a verbalizar que era importante morar com elas, pois
“necessitava de algum adulto para tomar conta dela” (sic). Mostrou-se clara
a busca de uma “mãe” pela Sra. M., mas, ao mesmo tempo, ela pareceu ter
suas tentativas frustradas quando se uniu a um marido que não conseguiu
ocupar esta função. Talvez a negação do sofrimento de V. se deveu à
dificuldade de lidar com seu próprio sentimento de desamparo.
Se a dor de V. era negada pela mãe, já para o padrasto, a existência
de V. era ignorada nas sessões. Para os irmãos, as verbalizações em
relação a V., na maioria das vezes, tinham um conteúdo pejorativo. Seu
irmão já havia trazido que V. sempre “ficava com os homens”, discurso muito
semelhante ao do pai, parecendo haver uma nítida identificação entre eles.
Seu irmão, G., contou certa vez que V. queria ficar morando uns tempos
com a tia, porque lá estaria mais perto do namorado e este era seu primo,
portanto, “não era certo”. Este julgamento de valor feito por G. pareceu mais
uma racionalização do “pai possessivo” do que uma verdadeira apreensão
de um relacionamento incestuoso, já que todos os relacionamentos de V.
para ele eram errados.
75
Nas sessões, eram claros três grupos: os terapeutas, V. e o restante
da família. Quando o assunto girava em torno de pais e filhos, que foi um
tema central durante muitas sessões, V. ficava de fora; quando V. começava
a falar sobre qualquer assunto de sua vida, era ignorada pela mãe e
padrasto, e, além disto, os irmãos começavam a falar junto, formando duas
conversas paralelas, que pareciam ter a intenção (provavelmente
inconsciente) de não escutar o que V. tinha a dizer.
Parecia realmente não haver espaço para V. nesta família, que a
sentia como alguém que causava incômodo. Uma hipótese para esta
situação instalada na família pode ser a carga assumida por V. ao reavivar
para este casal e para os irmãos, a todo momento, o relacionamento anterior
de Sra M.
Embora Sr. L. negasse o abuso sexual, ele, em uma sessão, pareceu
ter traduzido a violência da situação abusiva em outro fato:
Sr. L. falava sobre jogos, disse que gostava de jogar cartas. Falou que
a esposa não conseguia aprender a jogar e que jogava de vez em quando
com amigos ou parentes. Foi falado de “trapacear” nos jogos, através dos
filhos e das suas brincadeiras. Sr. L. disse que já foi trapaceado duas vezes;
em uma, por conhecidos e considerou sem importância, mas em outra, por
pessoas da sua família, que o deixou muito chateado. Segundo ele, o
problema não era perder o jogo, mas sim perder a confiança nas pessoas de
quem gostava. Pareceu-me que V. entendeu a relação entre este discurso e
a situação incestuosa pois, neste momento, chorou. Entendo que aí houve
uma possibilidade de simbolizar o evento a nível emocional.
76
Enfim, as dificuldades de simbolização e as interações caóticas
apresentadas por esta família, sem funções de pai e de mãe estabelecidas,
representam um aspecto da dinâmica das famílias incestuosas.
77
Exemplo Clínico 3: “A FALTA DA FUNÇÃO DE MÃE”
Os trabalhos de MELANIE KLEIN, principalmente através das
formulações de hipóteses como as primeiras relações objetais, as
ansiedades psicóticas e os mecanismos de defesa primitivos, mostraram a
importância dos primeiros contatos do bebê com a mãe no desenvolvimento
do indivíduo. WINNICOTT, em seguida, também ressaltou a importância do
papel da mãe na relação mãe-bebê e de como esta relação direciona todos
os outros relacionamentos da vida posterior. Segundo este autor, um meio
ambiente satisfatório para o desenvolvimento do indivíduo inicia com um alto
grau de adaptação às necessidades individuais da criança e esta adaptação
seria, para as “mães”, um processo natural. Este estado de adaptação foi
denominado de “preocupação materna primária”. A adaptação vai
diminuindo conforme o bebê vai apresentando condições de reagir à
frustração. Junto com esta função de continência da mãe, juntam-se as
funções paternas e a função da família, que, de uma certa forma, introduz o
princípio da realidade (WINNICOTT, 1996).
A importância fundamental da função da mãe, que pode ser exercida
por qualquer pessoa, não necessariamente a mãe biológica, não se esgota
no início da vida. A falta desta “função materna” de continência parece ser
um fator comum nas famílias incestuosas. Descreverei, a seguir, um
atendimento familiar no qual a “ausência” da mãe foi bem demarcada em
mais de uma geração.
78
A família chegou ao CEARAS após uma denúncia anônima de abuso
sexual de uma criança e uma adolescente pelo pai a uma instituição e a
consequente denúncia à Vara de Infância e Juventude, que incluía mais uma
criança, neta do referido autor. Durante o atendimento, soube que a
denúncia havia sido feita pela adolescente citada, conforme toda família
acreditava.
O atendimento familiar foi oferecido a toda família inclusive às
pessoas que abrigaram as crianças após a denúncia, pois estas foram
afastadas da própria residência por ordem do Juiz da Vara da Infância e
Juventude. A adolescente que fez a denúncia já morava na casa de uma
vizinha, local onde trabalhava.
No início, participaram do atendimento familiar, além dos quatro
envolvidos no processo, a mãe/avó, Sra. S., e mais três de seus filhos (um
destes é a filha a quem coube a guarda das duas crianças após a denúncia).
Depois de alguns meses, passaram a frequentar o atendimento apenas os
quatro envolvidos e a mãe/avó, que, depois, ficou afastada do atendimento
por vários meses.
Histórico Familiar Referente à Relação Incestuosa
Em primeiro lugar, vou expor os dados sobre a história do casal que
compõe a família.
Os pais de Sr. J. separaram-se pouco após o nascimento do seu
irmão mais novo, sendo que o pai abandonou a família para unir-se à irmã
79
de sua mãe. Por este fato, Sr. J., aos 12 anos, foi sobrecarregado de
responsabilidade por ser o mais velho, tendo que cuidar da mãe, assumindo
a função de pai.
Segundo J., seu pai era bastante rígido com os filhos e estes, com
exceção do mais novo, sofriam bastante com seus castigos físicos. A própria
mãe não concordava com as surras, mas quando tentava impedi-las,
acabava apanhando do marido também. Trazia a queixa de que não tinha
tempo para brincar, pois tinha que trabalhar na roça.
Sra. M. relembrava sua infância como uma fase muito difícil, contava
que sua mãe batia muito nos filhos quando se encontrava sozinha com eles
e que seu pai não era muito presente para a família, pois frequentemente
chegava em casa alcoolizado e ia dormir.
Os dois genitores não tinham nenhum contato com a família original.
A mãe não tinha contato com irmãos e pais há mais de trinta anos: “nem sei
se estão vivos”. Segundo ela, os pais haviam mudado e não informado novo
endereço para que ela pudesse corresponder-se com eles (no início, após a
sua mudança para São Paulo, ela ainda escrevia para eles). O Sr. J. dizia
não ter dinheiro para viajar a fim de visitar sua mãe, mas sua esposa já
havia visitado, inclusive durante o período em que estavam em atendimento.
Agora, apresentarei os dados relevantes sobre os filhos do casal.
A terceira filha do casal, mãe de uma das crianças envolvidas,
engravidou aos dezessete anos e não teve mais contato com o pai da
criança. Após o nascimento, a criança foi deixada na maternidade, sendo
80
buscada depois por sua tia materna, passando a morar com a mãe na casa
dos avós.
A mãe de V. saiu da casa dos pais, mas ela foi deixada lá. Segundo a
criança, a relação com o avô iniciou nesta época, aos seis anos de idade.
Este relato apareceu na triagem, sendo que sua mãe, presente, também
relatou uma tentativa de abuso sexual por parte do pai quando tinha 12
anos; tentativa interrompida por ela e nunca mais repetida.
No final do atendimento, a mãe de V. morava com um novo
companheiro na casa dos pais (há muitos anos morava também na
residência uma amiga sua, que engravidou na mesma época e também
deixou o filho aos cuidados de sua própria mãe).
V. só conheceu o pai mais tarde, motivada por interesse próprio e
sem ajuda da mãe. Apesar disso, ela não relatava ter contato com o pai.
Contava que a mãe não a procurava e que ela própria só ia visitá-la quando
precisava de dinheiro. Em contraste com isto, verbalizava saudades da mãe
durante as sessões e queixava-se de sua ausência e esquecimento em
relação a ela.
A mais velha das duas filhas envolvidas, I., que denunciou o abuso,
começou a trabalhar na casa de uma vizinha ainda no início da
adolescência, passando a morar com ela aos dezesseis anos, quando
descobriu que o pai estava mantendo um relacionamento com a irmã mais
nova. Segundo ela, o pai sempre a procurava para saber o que estava
fazendo. Ela contou que quando esse comportamento do pai cessou,
desconfiou de que ele estaria substituindo-a por outra pessoa; foi investigar
81
e descobriu a relação com sua irmã mais nova. Neste momento, passou a
morar na casa em que trabalhava e logo depois, fez a denúncia num
telefone público juntamente com a irmã mais nova, não se identificando de
início. Ela disse nunca ter desconfiado que o mesmo ocorria também com a
sobrinha, denúncia ocorrida durante a visita dos profissionais da justiça.
Segundo ela, sua relação com o pai durou dos 8 aos 16 anos, quando
saiu de casa. Dizia que todos sabiam da relação incestuosa e que o único
que tentou falar sobre isso, seu irmão, foi afastado da casa (a mãe teria dito
para ele “não se meter”).
A obesidade é uma característica física sua marcante.
A filha mais nova, E., também afastada da casa dos pais, era a única
que sempre expressava o desejo de voltar a morar com eles. Chegou a
voltar a morar com eles, mas nos últimos atendimentos, verbalizou o desejo
de sair da casa dos pais.
Observações do processo terapêutico
No atendimento familiar, a dificuldade da percepção de limites parecia
estender-se à situação da sessão. Geralmente os diálogos eram paralelos,
sendo raros os momentos em que todas as pessoas estavam envolvidas em
uma única conversa, além da família ter um código próprio. A confusão do
incesto era característica do funcionamento da sessão.
82
A comunicação não verbal era muito presente entre esta família,
onde, principalmente a filha mais nova, e a neta, pareciam buscar dos
pais/avós e da irmã mais velha, autorização para falar através do olhar.
A própria família discriminava alguns membros como responsáveis
pelo incesto e portadores do problema. Os vários membros da família que
iniciaram o atendimento familiar reduziram-se aos envolvidos diretamente
com o processo de abuso sexual, como é bem colocado por um outro filho
do casal que desistiu do atendimento; segundo os pais, ele dizia que não
viria mais porque não era louco (depreendi não abusado ou abusador) e,
portanto, não precisava do atendimento.
Na própria disposição das pessoas na sala durante o atendimento,
verificava-se uma separação clara entre os pais/avós e as filhas/neta,
formando três grupos diferentes; os dois citados mais o grupo dos
terapeutas.
Cada grupo tinha uma visão diferente do problema; os dois primeiros
sentiam-se prejudicados um pelo outro e pela Instituição representada pelo
grupo dos terapeutas. Para os pais, havia uma inversão dos títulos de vítima
e agressor; o casal sentia-se vitimizado pela situação configurada pelas
consequências sociais do abuso sexual . Entendo que se devia à dificuldade
de simbolização, esta impossibilidade de percepção da ligação do fato com
suas consequências e da visão do atendimento também como uma punição.
A visão dos terapeutas era a de que a relação incestuosa em si era
prejudicial para toda a família.
83
Quando se colocava em relação à situação de abuso sexual na sua
família, a mãe, Sra. S., demonstrava extrema agressividade em relação à
filha mais velha envolvida e à neta, principalmente à primeira, que era quem
mais falava sobre isso. Culpava-as pelo ocorrido, dizendo que isto não teria
acontecido se “elas não ficassem pela casa dando sopa e fossem trabalhar
desde cedo, como fizeram outras filhas”. Embora a filha mais nova fosse a
mais poupada das acusações, também era englobada na rotulação de
culpada proposta pela mãe. Percebi claramente no seu discurso que ela
fazia uma distinção pejorativa entre as três envolvidas e as outras filhas do
casal.
O pai, Sr. J., evitava colocar-se em relação ao abuso; durante as
sessões, falava bastante sobre assuntos corriqueiros, ignorando,
verbalmente, o assunto das relações incestuosas. Quando este aparecia em
seu discurso, percebi a mesma distinção feita pela mãe: verbalizava que
nunca ocorreu nada com as outras “porque se davam o respeito”. Ele
negava o abuso contra a filha mais nova, falando apenas sobre a filha mais
velha (o abuso contra a neta é negado, mas nunca esta verbalização
aparece espontaneamente, ficando a mesma completamente ignorada).
Mesmo assim, dizia que não havia acontecido nada: “das minhas mãos elas
saíram virgens”. Entendo haver neste comportamento uma inversão de
papéis, sendo atribuída às filhas, a responsabilidade de conter os impulsos
sexuais paternos, cabendo a elas o limite. Outra maneira de não se sentir
responsabilizado era acreditar que não fez nada para as filhas, pois não lhes
84
retirou a virgindade. Essa verbalização constata a falta de simbolização do
pai, onde há a relevância apenas do concreto.
Acrescentado a isto, o pai trazia a “falta de respeito” que elas tinham
em relação a ele, o que o fazia sentir-se autorizado a sair do "papel de pai".
Percebi que a relação sexual incestuosa aparecia mais claramente como
uma agressão, demonstrando que o ato incestuoso pode ser uma maneira
de viabilizar a destruição através de uma manifestação da sexualidade, já
que é, realmente, uma relação que promove a destruição do indivíduo e da
família.
Sr. J. mostrava-se sempre simpático e controlado. Sempre estava
desculpando-se dos atrasos e das faltas dele próprio e dos outros membros
da família. Agia como se tivesse o conhecimento de tudo o que ocorria na
família, mas várias vezes era desmentido pelas filhas e neta, demonstrando
que as últimas menosprezavam-no como pai ou como alguma autoridade em
relação a elas, tratando-no com uma certa zombaria.
A filha mais velha é quem fazia questão de denunciar a situação
vivida, incitando sempre as outras para que falassem também. Ela criticava
bastante a instituição judiciária pela falta de medidas contra os pais. Parecia
trazer mais incômodo em relação à falta de punição aos pais do que à falta
de cuidado em relação à irmã e à sobrinha, embora verbalizasse o contrário.
A própria denúncia de abuso sexual só foi feita quando ela percebeu
que fora substituída pela irmã na relação com o pai e sua saída de casa
pareceu mais uma reação de punição ao pai pelo abandono do que uma
85
medida de autopreservação, já que esta mudança poderia ter sido realizada
antes.
As verbalizações do pai pareciam confirmar o sentimento de punição
pois ele se queixava muito durante as sessões do fato da filha morar em
outra casa. Aliás, ele demonstrava bastante satisfação em comentar que as
pessoas da sua família moravam, praticamente todos, muito perto e que os
mesmos estavam sempre juntos nos finais de semana. Segundo ele, o
melhor lugar para morar é sempre a própria casa, mesmo apresentando a
contradição de ter uma pessoa de fora da sua família morando com eles.
Contrastando a raiva que demonstrava ao pai através de suas
atitudes, em alguns momentos, I. relatava que manteve um relacionamento
especial com o pai; dizia que conversavam muito e que este a
sobrecarregava com assuntos que não deveriam ser tratados com ela, como
a desconfiança deste em relação à paternidade de um de seus filhos. Parece
que I. fora mesmo colocada no papel de companheira do pai.
A longa duração destas relações incestuosas e a possibilidade de
outras saídas por parte das crianças e adolescentes envolvidas pressupõem
um consentimento e um desejo por trás delas. A denúncia, que parece ser
uma tentativa de encerrar este tipo de relação, mesmo vinda de algum dos
membros da família pode não demonstrar que este esteja mais preservado
em sua estrutura mental, pois muitas vezes a denúncia, como neste caso,
parece ser mais uma atuação dos desejos incestuosos.
Considero importante relembrar aqui como eram as relações do casal
com as respectivas famílias, já que o modo de relação destas tem
86
influências na dinâmica da família atual. O discurso do casal sobre a família
de origem era trazido sem nenhuma carga afetiva aparente. Nota-se na
família de Sr. J. uma relação incestuosa entre seu pai e a irmã de sua mãe,
demonstrando que os limites em sua família de origem também eram muito
tênues. Além disso, este fato fez com que ele também assumisse outra
função, a paterna, tornando confusos os papéis na família.
Sra. M. também não falava sobre a sua família, parecendo haver um
corte mais severo nestas relações; há uma falta de memória sobre a família
original, ficando apenas aparente a agressividade da sua mãe em relação
aos filhos e a ausência de seu pai.
A relação afetiva desta mãe com as próprias filhas era muito precária.
A única carga afetiva forte que parecia vir da mãe era a agressividade que
ela manifestava, principalmente em relação à filha mais velha (pareceu-me a
repetição do comportamento vivido na infância através da relação com sua
mãe), denotando sentir-se traída pela mesma. Pelas suas verbalizações, a
traição pareceu ser configurada pela revelação do segredo, a ruptura da
relação sexual incestuosa, e não pela relação do marido com a filha. A maior
queixa da mãe era a denúncia.
A questão do consentimento, aspecto básico muito discutido para a
definição de abuso sexual nem apareceu verbalizado nesta família. A
comunicação verbal pareceu não ter muita importância. Os pais alegavam
que “nada aconteceu” ou que “elas ficavam em casa à toa”, mas nunca que
elas permitiram ou quiseram manter este tipo de relacionamento com o pai.
Aliás o desejo não aparecia nem para as filhas, nem para o pai.
87
Por outro lado, no discurso da mãe de V., ela relatou claramente que
impediu o abuso porque estabeleceu limites, verbalizando o não
consentimento. Segundo ela, isto foi o bastante para que nenhuma outra
tentativa viesse a ocorrer.
Apesar de não ter sofrido abuso sexual, a mãe de V. abandonou a
filha, deixando-a com os pais, apesar de saber “do que ele é capaz”,
repetindo um comportamento de abandono enquanto mãe.
Logo na triagem, a filha mais nova E. trouxe junto com a negação da
relação incestuosa, o dado de que recebia presentes do pai. Esta
verbalização espontânea pareceu caracterizar estes presentes como um
benefício secundário recebido por ela em troca da relação com o pai e do
seu silêncio. Nas sessões, negava-se a falar do assunto.
Aliás, seu principal assunto nas sessões era alimentação; ela falava
bastante sobre comida. Percebi que ela vinha engordando muito, tornando-
se cada vez mais parecida com sua irmã mais velha, sugerindo a hipótese
de haver uma identificação nesta relação.
Nas últimas sessões, ela demonstrou mais agressividade em relação
ao pai e, além disso, manifestou no Fórum, o desejo de sair de casa. A partir
daí, pensei ter iniciado uma percepção de conflito na relação incestuosa por
parte dela.
Nesta família, os afetos ligados à relação incestuosa apareceram
claramente com mais intensidade em relação às mães, parecendo ser o
maior sofrimento, nestas meninas/adolescentes/mulheres, o abandono
afetivo representado pela não continência das mães.
88
Exemplo Clínico 4: “ABUSO SEXUAL ENQUANTO SINTOMA”
Através da experiência de atendimentos familiares no CEARAS, fui
percebendo que, com o desenrolar da terapia, a relação sexual denunciada
em muitas vezes perdia importância para outros fatores, que eram
considerados como problema para a família. Na verdade, a família não
parecia desestruturar-se pela ocorrência de um abuso sexual entre os seus
membros, mas, pelo contrário, o abuso sexual aparecia num contexto
familiar desestruturado entre vários outros relacionamentos não saudáveis.
De alguma forma, a relação sexual parecia denunciar um problema, que
nem sempre estava representado pela relação sexual genital em si.
Utilizarei aqui uma citação de MINUCHIN (1995), terapeuta familiar,
que me pareceu esclarecedora para esta questão:
Abuso da criança, abuso sexual, violência familiar, mulheres espancadas, o abandono dos idosos – esses são os sintomas dos relacionamentos que se perderam. Mas a maneira pela qual caracterizamos e tratamos esses problemas depende da nossa tendência a perceber os relacionamentos como unilaterais. Atribuir tragédias familiares à crueldade e a negligência de uma pessoa é uma super-simplificação de uma sociedade preocupada com a individualidade – e dos profissionais que usam vendas.
Assim, a relação sexual é apenas o sintoma de uma disfunção
familiar, sendo que a falta da função de família é expressada em todas
relações do grupo, não se levando em conta apenas a questão sexual, pelo
89
contrário, como no caso clínico citado abaixo, apresentando outras questões
como fundamentais e anteriores no relacionamento familiar.
Esta família chegou ao CEARAS após a denúncia na Vara de Infância
e Juventude de abuso sexual da menina de 8 anos pela sua mãe. A
denúncia foi feita pela sua tia materna, que, após a mesma, recebeu a
guarda provisória da criança.
Frequentavam inicialmente o atendimento familiar: a criança, sua mãe
e sua tia, além de seus companheiros. Após um tempo de atendimento,
houve a desistência do marido de Sra. L., que tinha a guarda da criança e o
companheiro da mãe veio em apenas duas sessões. A equipe do CEARAS
decidiu então pelo atendimento das duas irmãs por algum tempo, pois
verificou que o atendimento centrava-se mais nas questões entre elas.
Histórico Familiar Referente à Relação Incestuosa
As duas irmãs que disputavam a guarda de K. vinham de uma família
de nove irmãs. A disputa entre as duas irmãs parecia ser anterior ao
nascimento da menina.
A tia que detinha a sua guarda não podia ter filhos e tinha adotado um
menino, que na época do atendimento tinha um pouco mais de um ano de
idade. Seu marido estava prestes a viajar para outro país para trabalhar por
um ano.
A mãe de K. teve uma filha de seu primeiro casamento (seu ex-
marido, segundo ela alcoólatra, havia morrido após terem se separado) e
90
esta morava com a avó paterna. K. nasceu de seu relacionamento com um
homem casado, que não chegou a assumir a filha. Este homem foi morar em
outro país com a esposa. Na época do atendimento, a mãe de K. mantinha
um relacionamento com um outro companheiro.
As duas irmãs relataram sempre ter mantido um bom relacionamento
até pouco depois do nascimento de K. A tia de K. dispos-se a cuidar da
menina enquanto sua irmã trabalhava. Houve uma interrupção deste
relacionamento e K. ficou algum tempo sem contato com a tia até a denúncia
de abuso, quando passou a morar com ela.
Segundo a tia, a criança havia contado ter presenciado cenas do
relacionamento sexual da mãe com o namorado e também da empregada da
mãe com seu companheiro e que este teria passado batom em sua vagina.
Além disto, a mãe levava a filha numa casa noturna onde trabalhava e
oferecia bebida alcoólica à mesma.
Observações do processo terapêutico
No início do atendimento, apareciam duas famílias nas sessões: K. e
seus tios de um lado e do outro Sra. M, às vezes acompanhada de seu
companheiro, Sr. F.
O abuso sexual foi sempre trazido apenas no discurso de Sra. L.,
enquanto a mãe de K. negava-o. Logo de início, outros comportamentos
advindos das relações entre K. e as duas irmãs foram identificados pelo
91
CEARAS como abusivos e, portanto, o atendimento não dependia da
veracidade dos fatos citados na denúncia.
Os terapeutas serviam, na visão da família, para intermediar as
questões entre as duas irmãs, muitas vezes resolver problemas, como por
exemplo, dias e horários de visitação. Sendo o único lugar em que se
encontravam, tentavam “aproveitar o espaço” para resolver estes assuntos,
com um claro apelo para que os terapeutas tomassem as decisões diante
dos impasses. Os terapeutas e o espaço das sessões eram percebidos
pelos grupos familiares como juízes e o Tribunal.
O assunto central nas sessões era a competição entre as irmãs,
sendo manifestada por intensas discussões entre elas. K. apenas ganhava
voz para confirmar ou negar algo falado por uma delas. Em uma sessão, K.
verbalizou a sua inquietação e sua confusão quanto a isso: dirigindo-se a L.,
disse: “o que mesmo eu tenho que falar?”. A competição no CEARAS
chegou a tal ponto que Sra. L. reivindicou seu atendimento individual, já que
a sua irmã o realizava. O atendimento individual também foi oferecido a ela,
já que foi considerada como uma pessoa que expunha K. a situações
abusivas.
K. parecia sentir-se muito pressionada por ambas. Em uma sessão, é
contado um episódio que pareceu demonstrar o sentimento da criança: K.
estava passeando com os tios e disse que ia jogar-se de um lugar alto, por
onde estavam passando, para “acabar com a briga”. Quando perguntada
como sentia isso, K. respondeu: “eu não sei para quem dar meu coração”.
92
K. era completamente esquecida no discurso tanto da mãe quanto da
tia; parecia não haver qualquer tipo de preocupação com a criança, tanto
que a mesma era colocada várias vezes em situações constrangedoras de
escolhas entre as duas, despertando nela visível angústia.
A criança parecia também funcionar desta forma, quando utilizava sua
situação para conseguir as coisas que desejava. A tia reclamou que K. fazia
chantagens com sua mãe do tipo: “se não fizer isto, eu conto para o juiz”.
Apesar disto, durante o atendimento no CEARAS, K. passou a dormir no
mesmo quarto com os tios, que pareceram querer fazer as suas “vontades”
neste momento crítico. Segundo a tia: “Ela sempre quis dormir no nosso
quarto”.
A única pessoa que parecia manter um contato afetivo com K. era Sr.
M. A ida dele para outro país alterou bastante a dinâmica da família,
parecendo que, de alguma forma, a ausência do mesmo reforçou o
isolamento de K.
No momento em que ficou clara a situação de disputa entre as irmãs
e a despreocupação em relação à K., além do afastamento de Sr. M. e da
desistência de Sr. F., ficou decidido pela equipe do CEARAS que as duas
seriam atendidas sozinhas na terapia familiar, já que o problema entre elas
era anterior à K.: K. era mais um objeto de competição na vida das duas
mulheres.
O atendimento familiar terminou com a desistência da família, a partir
da resolução do Fórum em relação à guarda da criança, que confirmou a
hipótese do objetivo da terapia para as duas irmãs.
93
6. CONCLUSÕES
94
CONCLUSÕES
O trabalho de atendimento em saúde mental a famílias com
referencial psicanalítico permite a observação das interações afetivas entre
os membros do grupo e possibilita a interpretação destas interações através
das motivações inconscientes. São os indivíduos e os complexos modos de
se relacionarem que estabelecem a chamada dinâmica familiar .
A relação incestuosa, enquanto um abuso sexual intrafamiliar, é
totalmente subjetiva, já que leva em conta estes dois conceitos sociais:
sexualidade e família.
O que denuncia socialmente uma família incestuosa é um
relacionamento sexual entre alguns de seus membros, com exceção dos
cônjuges, o que não significa que o incesto seja resumido por esta
característica.
Dar a atenção preconceituosa apenas à relação sexual em si e aos
membros do grupo familiar nela envolvidos diretamente parece o mesmo
que realizar uma análise ingênua dos dados quantitativos apresentados
neste trabalho: por exemplo, encarar o pai como o principal “agressor” e a
mãe como a pessoa que mais denuncia a relação incestuosa não mostra a
verdadeira dimensão familiar do problema e, portanto, não auxilia no seu
tratamento.
95
Não considero possível encarar a atuação do incesto como obra de
uma ou de outra pessoa, afinal, como em qualquer outra situação na qual
seres humanos estejam envolvidos, é resultado de interações de todo o
grupo. Encarar alguns indivíduos como “agressores” e outros como
“vítimas”, na tentativa de excluir socialmente os primeiros, nada mais é do
que o reflexo de uma sociedade paternalista que atua de um modo
“esquizoparanóide”, fazendo esta cisão entre “bom” e “mau” e projetando os
aspectos "maus" nos rotulados "agressores".
Olhar para esta questão de um modo mais amplo é um trabalho árduo
e sofrido, pois aproxima a todos de seus próprios desejos e conflitos.
Através deste estudo, que buscou analisar a dinâmica familiar das
famílias incestuosas, pude formular algumas considerações:
1. A preocupação de qualificar as relações incestuosas por marcas
concretas, como, por exemplo, as marcas de violência física, afasta-se do
verdadeiro significado do incesto para o indivíduo. Neste caso específico, a
falta de marcas físicas não minimiza as consequências para o grupo familiar
em termos de sua estruturação psico-social. Ou seja, a gravidade das
relações não é determinada pelo tipo de relação estabelecida, ou pelos atos
concretos, mas sim pela maneira como o ato é vivenciado por cada
indivíduo.
2. A compreensão da família incestuosa deve levar em conta não só o
abuso sexual genital relatado, mas a dinâmica afetiva da família como um
todo, pois os dados apresentados neste estudo, como a longa duração dos
96
relacionamentos sexuais incestuosos e as dificuldades de denúncia,
decorrem do envolvimento de toda a família para a relação.
3. Há uma diversidade de relacionamentos incestuosos denunciados,
mas estes não são os únicos existentes nas famílias; em grande parte dos
casos, há outros relacionamentos incestuosos que não são denunciados ou
não são nem percebidos como abusivos. Portanto, a definição de abuso
sexual, utilizada na nossa cultura através da Justiça, é uma definição moral
que, por vezes, distancia-se das preocupações da área de saúde mental,
que caminham num âmbito ético.
4. Os desejos incestuosos são atuados pela falta das funções
estruturantes dentro da família. A simbolização é importante para esta
estruturação e para o desenvolvimento do ego. A atuação dos desejos
incestuosos não permite a simbolização destes desejos e a assimilação das
funções sociais para o desenvolvimento mental do indivíduo.
5. Por se tratar de uma questão de estruturação psico-social, a
resolução do problema não passa apenas pelo âmbito “educativo”, ou seja,
deve basear-se na tentativa de auxílio na estruturação do ego destes
indivíduos, demarcando-lhes limites e buscando estabelecer a capacidade
de simbolização, que, como foi vista neste estudo, não se encontra
totalmente estruturada nestas famílias.
6. O relacionamento sexual incestuoso denunciado é apenas o sintoma
de uma família incestuosa que é portadora de uma dinâmica complexa, que
tem como principais características a confusão e a perversão de funções. A
97
violência do incesto não pode ser traduzida apenas pela relação sexual
genital, mas principalmente pela não diferenciação das funções familiares.
Para finalizar, vou utilizar o conceito de saúde de WINNICOTT, que é
“a maturidade relativa à idade do indivíduo”, especificando que saudável
nada tem a ver com processos fáceis e sem conflito, vide o período da
adolescência (WINNICOTT, 1967). Assim, entendo que saudável e não
saudável não tem uma relação direta respectivamente com prazer e
desprazer, portanto, mesmo podendo ser aparentemente prazerosas as
relações incestuosas, estas não promovem o crescimento do indivíduo e, por
isso, justificam uma intervenção social: a da justiça e a da saúde.
98
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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