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PUC Minas – Programa de Pós-graduação em Letras Disciplina: Seminário de Estudos Avançados: Cognição I – Fundamentos Professor: Hugo Mari Seminário 1 Complexidade e mente 1. Introdução O título desta intervenção aponta simultaneamente para três dimensões que merecem ser destacadas: mente, sistema, (sistema) complexo, porque se inserem de modo efetivo na proposta do curso. Intuitivamente, temos a idéia de que a mente é algo complexo (e também confuso), tal o número desafios e de incertezas que podemos enumerar para a sua compreensão. Como veremos, na sequência, os padrões conceituais usados para descrevê-la, como um objeto de conhecimento, convergem em alguns pontos, como também discrepam em outros. Aqui estamos interessados em apontar alguns desses padrões, sobretudo naquilo que eles podem avançar para sua compreensão em termos de um sistema complexo, na extensão do que foi apontado no texto de Larsen-Freeman & Cameron. 2. MENTE COMO UM SISTEMA COMPLEXO Larsen-Freeman & Cameron - Uma maneira através da qual sistemas complexos, com frequência, diferem de sistemas simples deve-se ao fato de possuírem aqueles diferentes tipos de elementos ou agentes, isto é, eles são heterogêneos. O presente conceito apresenta um dos aspectos que podemos identificar no campo da complexidade: o fato de se apontar que os elementos de um sistema complexo são heterogêneos. A heterogeneidade por si mesma é responsável também para mostrar outras perspectivas para a complexidade, já que a interação global 1

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Análise sobre a maneira como sistemas complexos, com frequência, diferem de sistemas simples.

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Page 1: Complexidade e Mente

PUC Minas – Programa de Pós-graduação em LetrasDisciplina: Seminário de Estudos Avançados: Cognição I – FundamentosProfessor: Hugo MariSeminário 1

Complexidade e mente

1. Introdução

O título desta intervenção aponta simultaneamente para três dimensões que merecem ser destacadas: mente, sistema, (sistema) complexo, porque se inserem de modo efetivo na proposta do curso.

Intuitivamente, temos a idéia de que a mente é algo complexo (e também confuso), tal o número desafios e de incertezas que podemos enumerar para a sua compreensão. Como veremos, na sequência, os padrões conceituais usados para descrevê-la, como um objeto de conhecimento, convergem em alguns pontos, como também discrepam em outros.

Aqui estamos interessados em apontar alguns desses padrões, sobretudo naquilo que eles podem avançar para sua compreensão em termos de um sistema complexo, na extensão do que foi apontado no texto de Larsen-Freeman & Cameron.

2. MENTE COMO UM SISTEMA COMPLEXO

Larsen-Freeman & Cameron -Uma maneira através da qual sistemas complexos, com frequência, diferem de sistemas simples deve-se ao fato de possuírem aqueles diferentes tipos de elementos ou agentes, isto é, eles são heterogêneos.

O presente conceito apresenta um dos aspectos que podemos identificar no campo da complexidade: o fato de se apontar que os elementos de um sistema complexo são heterogêneos. A heterogeneidade por si mesma é responsável também para mostrar outras perspectivas para a complexidade, já que a interação global

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entre diversos aspectos é também uma característica dos sistemas complexos.

Inicialmente, conceber a MENTE como um sistema complexo, demarcado pelo heterogêneo, implica admitir que os processos mentais nos levem a transpor os limites de convenções para alcançar intenções, os fatos de realidade para construir a ficção, os dados da experiência para supor o imaginado e finalmente fazer de nossa atividade mental uma ‘gangorra’ entre crenças e desejo.

O partilhamento de elementos de natureza tão diverso permite fazer com que os sistemas complexos sejam essencialmente dinâmicos: as dicotomias que acabamos de apontar se refazem continuamente para alcançar outros aspectos. O que configuramos hoje como um sistema de crenças que nos leva a tomar certas decisões pode ser alterado continuamente, sem que exista um script pré-determinado para isso. As manifestações do nosso desejo se ajustam para alcançar novos objetos, novos fatos.

A heterogeneidade conduz os sistemas complexos para outra direção fundamental: a de fazê-los propensos à absorção de novos objetos, novos elementos, novos sistemas. É esse teor de abertura que possibilita fazer dos sistemas complexos sensíveis ao imprevisto, à emergência do novo, a conviver com uma nova ordem de objetos que não seja aquela gerada pelo determinismo.

Todos estes fatores que culminam para a percepção de um sistema complexo produzem, de imediato, um desafio fundamental para a compreensão da MENTE como um sistema complexo. Aqui resumimos o nosso desafio com três questões básicas:

A mente processa? O que processa? A partir de que princípios esse processamento acontece?

Todas estas questões, com maior ou menor especificidade, podem comportar formulações diversas e sempre estiveram presentes dentro da tradição filosófica de discussão sobre o seu conceito, a sua funcionalidade nos processos da vida.

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3. A MENTE COMO UM SISTEMA DE PROCESSAMENTO

Selecionei para ilustrar essa preocupação processual da mente, na tradição filosófica, quatro autores no período da modernidade e com filiações relativamente diferenciadas, mas com alguma convergência na concepção básica daquilo que funcionalmente podemos atribuir à mente.

Descartes (1641)Mas o que sou eu, portanto? Eu sou a rigor apenas uma coisa que pensa, isto é, sou uma mente, ou inteligência, ou intelecto ou razão. (...) Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. (Descartes: Meditações, II, 7-9, p. 93-95)

Locke (1690)Posto que as qualidades que impressionam nossos sentidos estão, nas próprias coisas, tão unidas e misturadas que não há separação, nenhuma distância entre elas, é claro que as idéias, produzidas na mente, entram pelos sentidos, simples e sem mistura. (Locke: Ensaio acerca do entendimento, p.166).

Berkeley (1710)2. Mas ao lado da infinita variedade de idéias ou objetos do conhecimento há alguma coisa que os conhece ou percebe, e realiza diversas operações como querer, imaginar, recordar a respeito deles. Este percipiente, ser ativo, é o que chamo mente, espírito, alma ou eu. (Berkeley: Tratado sobre os princípios do conhecimento humano, p. 13)

Hume (1739)13... todo poder criador da mente se reduz à simples faculdade de combinar, transpor, aumentar ou diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e pela experiência. (...) Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam da sensação interna ou externa;

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só a mistura e composição destas dependem da mente e da vontade. (Hume: Investigação sobre o entendimento humano, p. 139)

Os quatro excertos não traduzem a problemática desenvolvida por estes autores em relação ao conceito de MENTE e nem vamos aqui trabalhar este conceito a partir de cada um deles. Interessa neste recorte aquilo que cada um mostra em termos de categorias que aponta aspectos do que estamos denominando de processamento mental.

É possível organizar estas manifestações a base das operações da mente, os operadores de que ela faz uso e o resultado do processamento, conforme expressamos no esquema seguinte:

Mente → Base das operações

↓Sentidos simples

Experiência sensível

Operadores

↓duvidar, conceber, afirmar, negar, querer, não querer,

imaginar, sentir (Descartes)conhecer, perceber, querer,

imaginar, recordar (Berkeley)combinar, transpor, aumentar

ou diminuir(Hume)↓

Ideias produzidas

(Locke)

4. Cenários históricos do conceito de mente

Os interesses por esse quadro processual, representado pela mente e pelo conjunto das operações a ela associadas, têm levado a uma busca de justificativa para o que, de fato, representa a mente

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humana e também uma tentativa de sua aplicação em outros campos.

Grande parte desta busca pautou-se por uma aproximação entre mente-cérebro e os conhecimentos desenvolvidos a partir do cérebro nas últimas décadas instrumentalizaram mais efetivamente a compreensão da mente na dimensão seu processamento.

Por outro lado, grande parte das tentativas de aplicação trilhou dois caminhos fundamentais: aquele que busca mostrar como funcionamos e aquele que busca uma extensão desse conhecimento aplicado às máquinas.

Esquema geral

Correlações

Correlação 1 Correlação 2 Correlação 3

Mente/corpo Mente/cérebro Mente/máquina

Síntese da tradição cartesiana

Avanços sobre o processamento neurocognitivo

Avanços sobre o processamento

algorítmico

Doutrina oficial (Ryle)

Atividade neuronalProcessos

neurofisiológicos

Máquinas pensantesInteligência

artificial

((corpo (mente) →(((corpo) cérebro) mente) →

((((corpo) cérebro) mente) máquinas)

MENTE E CORPO > superação do dualismo

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Nos comentários que Ryle (doutrina ou teoria oficial da mente) desenvolve sobre Descartes, ele contrapõe alguns elementos para tratar de modo sintético dessa dicotomia. De um lado, aponta-se que o corpo está em um espaço e, por essa razão, como todos os corpos, é governado por leis mecânicas; a mente não está em espaço algum, logo não está sujeita a leis mecânicas. Outras contraposições são lembradas pelo autor: externo/interno, observável/não-observável etc.

Essa concepção teve ampla influência sobre a maioria dos estudos sobre a mente, mas foi também criticada por colocar em evidência o dualismo mente/corpo. O argumento que justificou o dualismo costuma ser apresentado da seguinte forma:

MENTE E CÉREBRO > avanços sobre o conhecimento do cérebro

A tradição sobre o estudo da mente tem um traçado histórico mais amplo, mas esse histórico foi amplamente enriquecido a partir do século XIX. Estudos decisivos sobre a neurofisiologia do cérebro começam a apontar para outra compreensão dos fenômenos mentais. A partir desata época, inicia-se uma aproximação: a mente aparecia como um complemento para estudos sobre o cérebro (Thomas Young e Hermann von Helmholt, Edwald Hering – neurofisiologia da visão; Wundt, Broca/Wernicke – neurofisiologia da fala; Freud - Projeto).

Um dos aspectos que sustentam a diferença pode ser espelhado na questão da atribuição de significado: a informação que um fóton traz para o organismo é decodificada por procedimentos cerebrais; grande parte desta decodificação precisa ser reinterpretada por procedimentos que transcendem operações neuronais específicas, pois integram uma rede ampla de inferências pessoais, sociais etc.

Todavia, é importante lembrar a contraposição à proposta de que os avanços do conhecimento sobre o cérebro possam anular a importância da mente. Em outras palavras, todos os fenômenos mentais seriam redutíveis a fenômenos cerebrais, o que permitiu o surgimento paralelo de uma discussão sobre uma redescoberta da mente, centralizada, sobretudo, na questão dos estados mentais.

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MENTE E MÁQUINA > fronteiras entre mente e algoritmos

As máquinas podem pensar? Essa é uma pergunta que tornou-se corrente no campo das especulações que procuram extrair algum resultado da relação entre máquinas e mentes. Talvez esta seja uma questão ainda em aberto, quando comparamos cérebros naturais com ‘cérebros’ artificiais, considerando-se os avanços obtidos na funcionalidade destes últimos. Por que a questão deve ser mantida em aberto?

Qualquer predição que arriscamos fazer será muito provisória e precipitada. Pelos operadores que foram listados, como parâmetros de desempenho para a mente, alguns já habitam a máquina, ainda que numa dimensão qualitativamente diferenciada. Diferenciação sempre haverá e qualificação diferenciada parece ser vista ainda como uma das barreiras.

O problema formulado por alguns críticos resume-se ao fato de que, nenhum programa de computador até hoje criado, foi capaz de causar uma mente para o computador, da mesma forma que o cérebro causa a mente para os homens, ou para os animais.

5. Ciências da mente: alguns processos

O ponto alto que propiciou uma redescoberta da mente propiciou também a criação de uma problemática voltada para as ciências da mente – termo que ocupa decisivamente os espaços reservados à discussão de seu estudo, sobretudo aqueles diretamente associados aos processos cerebrais.

A novidade que incendeia os estudos da mente, associados ao cérebro e na direção da máquina, tem propiciado a indagação da verdadeira extensão que devemos atribuir à mente nos nossos dias.

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Esquema geral:

A mente OPERA, em parte ou em especial, de modoIntenc / sional – recursivo – algorítmico – contrafatual - imagético ...

A mente SE FAZ REPRESENTAR, em parte ou em especial, por umconjunto de procedimentos que processa/interpreta os dados sensíveis captados por sensores físicos (olho, ouvido, mão, nariz, boca);conjunto de procedimentos que (re)compõe informações simples em informações complexas;conjunto de estados mentais/modelos mentais mais simples responsáveis pela produção/percepção de objetos complexos;conjunto de estados mentais complexos, produzidos por combinações de desejo e de crença (desejo, medo, insegurança, raiva...);conjunto de procedimentos para construir representações (imagens, construtos, conceitos) das coisas que conhecemos;

A mente FUNCIONA, em parte ou em especial, como umarede complexa de categorias que possibilita a emergência de objetos não-físicos (ou que são desfisicalizados)rede complexa de relações entre objetos (comparação, oposição, integração, semelhança, diferença, implicação ...)

A mente É... tudo isso... nada disso

Desafio a mente processa? o que processa? a partir de que princípios?

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6. Visão teórica sobre os processos mentais

TEORIA DUALISTA: mente e corpo são duas entidades, definidas em campos diferentes, por categorias contrapostas;

TEORIA DA IDENTIDADE: estados mentais são correlatos de estados cerebrais, sem que isso represente um nível simétrico de complexidade;

TEORIA FUNCIONALISTA: estados mentais são estados funcionais – que produzem certos objetos, certos fatos, certos efeitos - que integram o processo cognitivo;

TEORIA DO EMERGENCIONISMO: o mental é uma propriedade emergente dos substratos neurofisiológicos;

TEORIA CAUSAL: a mente determina comportamentos sobre o mundo físico (e vice-versa?)

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7.Referências básicas

1. BERKELEY, G. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano. In: Pensadores, Abril Cultural, 1984.

2. CHALMERS, D.J (org.) Philosophy of mind. Classical and contemporary readings. New York: Oxford University Press, 2002.

3. DESCARTES, R. Meditações. In: Os pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1979.

4. GREGORY, R. L. (ed.) The oxford companion to the mind. Oxford: Oxford Univesity Press, 1987.

5. GUTTENPLAN, S. A companion to the philosophy of mind. Malden, Mass: Blackwell, 1995.

6. HEIL, J. & MELE, A. Mental causation. Oxford: Oxford University Press, 1993.

7. HUME, D. Investigação sobre o entendimento humano. In: Pensadores, Abril Cultural, 1984.

8. LOCKE, J. Ensaio acerca do entendimento humano. In: Pensadores, Abril Cultural, 1978.

9. PRIGOGINE, I. & STENGERS, I. Simples/complexo. In: Enciclopédia Einaudi. Porto: Casa da Moeda, 1993. (V. 26: Sistema).

10. PUTNAM, H. The theefold cord - mind, body and world. New York: Columbia University Press. 1999. (há tradução em português).

11. SEARLE, J. R. A redescoberta da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

12. SEARLE, J. R. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

13. RYLE, G. Descartes’ Myth. In: The concept of mind. Chicago: University of Chicago Press, 1984.

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