como se fossem, filosofia... (ensaios e anotações, amadores)

Upload: frei-hermogenes-harada

Post on 08-Jan-2016

12 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

O que segue é coletânea de artigos, ensaios e anotações que querem ser da Filosofia. Querem, mas não podem, por serem diletantes e amadores. Daí o título e subtítulo desse trabalho.

TRANSCRIPT

Introduo I

Como se fossem, Filosofia...(ensaios e anotaes, amadores)IntroduoO que segue coletnea de artigos, ensaios e anotaes que querem ser da Filosofia. Querem, mas no podem, por serem diletantes e amadores. Da o ttulo e subttulo desse trabalho. O amador quem ama. O amante. Ocasionalmente. No oficial nem publicamente, mas s escondidas, sorrateiramente. Por isso, aqui os ensaios e as anotaes amadoras so reflexes avulsas e ocasionais. Apenas lambiscam a beira j fria do mingau quente, por no conseguir encarar diretamente o tema no fervor da sua coagitao, de modo adequado e competente, sistemtico, seriamente. Anotaes desse tipo so teis, quem sabe, somente para quem as rabiscou, e para quem, ao l-las, tem o mesmo tipo de complexo e paixo pela Filosofia. Complexo e paixo de busca da coisa ela mesma da Filosofia e do seu fascnio, sofridos pelo principiante e ou amador.De que complexo e de que paixo se trata? Trata-se do rolo oculto no anelo de fundo da busca amadora. O que h ali no fundo da busca amadora? H algo como medo de pouco saber, algo como complexo do aprendiz que no especialista, de ser apenas iniciante e diletante. Mas h tambm ali, ao mesmo tempo, algo como mpeto de inocncia ingnua de um grande desejo. Desejo e vontade de se adentrar, sim de estar por dentro, em casa, naquilo a que a alma do amador anela, a saber, naquilo que a Filosofia lhe tem de mais prprio e fascinante, sem conhecer bem a complexidade e exigncia de exatido objetiva e informativa que o empenho e o desempenho de tal empreendimento do saber exigem. E a tudo isso se acrescente o receio de iludir-se a si mesmo, contentando-se com o saber particular, subjetivo, trocando verdade, acuidade e claridade da teoria com paixo e sentimento. Trata-se de um humor perplexo, medroso. Humor que toma conta de todo e qualquer estudante de Filosofia que ama a Filosofia; de estudante e estudioso que se lana cata de informaes, cada vez mais numerosas, asseguradas, que lhe parecem proporcionar o poder do saber dominante, documentado. E ao mesmo tempo se sente inquieto, como que tocado por outro hlito de fascnio. Fascnio e prazer de concentrao no pouco essencial, de afundamento para a interioridade de uma intuio da verdade originria. Intuio que por instantes aparece como vislumbre de algo como vivncia aventureira e singularmente venturosa, sim altamente pessoal de uma dimenso inominvel. As exposies que se seguem sofrem da ambigidade desse humor angustiante do amador, um permanente iniciante, jamais iniciado; do estudante inacabado, sempre temeroso de estar expondo a sua ignorncia. Mas h ali, simultaneamente, esperana de que, mesmo tambm nessa perplexidade, possa estar atuando, talvez, por menor que seja, um hlito do pensamento da busca da verdade, o toque do vislumbre do sentido do ser, operante nas diversas problemticas tratadas nas reflexes, no desengono e na impreciso, caractersticos de trabalhos de amador.O inte-resse dos termos fenomenolgico e fenomenologia, aqui na nossa exposio, refere-se corrente filosfica que historicamente teve incio com Edmund Husserl sob a denominao de fenomenologia e que se manifestou em diversas escolas e inmeros movimentos de fenomenologia. Na infindvel srie de nomes de filsofos e pensadores, de tendncias filosfico-fenomenolgicas, o nosso interesse gostaria de achar-se, por pouco que seja, dentro do que pensaram Edmund Husserl, Martin Heidegger e Heinrich Rombach, que usualmente so classificados como pertencentes escola fenomenolgica de Freiburg i. Br. E isto sob a limitao: ao usarmos termos como fenomenologia ou fenomenolgico, no se fala tanto sobre esses autores e seus pensamentos, mas as seguintes reflexes gostariam de estar falando como que a partir do mdium em que se acha essa corrente fenomenolgica freiburguense, na medida em que, bem ou mal foi copiada, assimilada e compreendida por elas. Com outras palavras, os pensamentos vlidos que ocorrem nas nossas reflexes foram tirados desses autores, ou mesmo so resumos de seus textos, certamente quase sempre mal assimilados ou simplificados de modo diletante, ou mesmo falsificados por causa da ignorncia ou pouco volume do pensar. Por isso, as interpretaes de poucos e ocasionais citaes dos textos desses autores que por acaso se encontrem nessa apostila-caderno de anotaes devem ser controladas na sua exatido e na sua validade, pois so na sua maioria chutaes e simplificaes de um amador. Se, porm, nessas chutaes amadoras e amantes da causa da fenomenologia, houver alguns pensamentos vlidos, eles apenas acenam para o que jaz depositado nos textos clssicos da fenomenologia e podem, quem sabe, ser teis para os que sofrem das mesmas dificuldades e, no entanto, querem intuir, i. , ir para dentro daquilo que do fascnio e prazer da fenomenologia. Nessa perspectiva, em seus dados informativos, as reflexes limitam ao mnimo a exposio dos conhecimentos e do saber usual acadmico sobre a fenomenologia.Anotao I: Do Mito e da ArteO ttulo da nossa reflexo Mito e Arte. A reflexo quer falar do Mito e da Arte. O tema , porm, muito vasto. Por ser vasto, dificulta encaminhar a reflexo num determinado rumo. O tema Mito e Arte, na sua vastido, pertence ao modo de ser da imensido, profundidade e simplicidade da criatividade humana. Modo de ser esse, que perfaz a dimenso da experincia de fundo da existncia a que pertencem Mito e Arte. , pois, um tema ao qual se receia abordar. Assim, a nossa primeira reflexo acerca do receio e da dificuldade de nos acercarmos do Mito e da Arte como tema de uma reflexo.1. Da dificuldade de se acercar do Mito e da ArteA preposio de da reflexo que quer falar do Mito e da Arte pode significar sobre ou a partir de. Sobre significa acerca de. Acerca soa a cerca. Cerca se acerca, entra na cercania da coisa ela mesma, protegendo-a no seu lugar, para que ela possa surgir, crescer e se tornar ela mesma, na determinao da sua identidade. A cerca quando, porm, esquece a tarefa de ser guarda e proteo do que , se torna priso. Fecha e enquadra a coisa que cerca. A partir de significa ser a coisa ela mesma na sua autoidentidade. Para falar a partir da coisa ela mesma, mister ser a coisa ela mesma na soltura da sua liberdade. Para isso, quem deixa ser a coisa ela mesma chamada Mito e Arte deve ser Mito e Arte simplesmente, em pessoa. Como Mito e Arte se referem s coisas do fundo do ser humano, e isto uma coisa muito sria, a presente considerao gostaria de fugir da exigncia desse tema, tentando de antemo se eximir do engajamento causa, dizendo como entende a preposio de do ttulo num sentido prprio. Para isso, usemos uma estria chinesa. Naquele tempo um regente imperial, rico e poderoso, foi consultar aflito um velho mestre taosta desdentado: Mestre, o que devo fazer para sair de um impasse? H tempo, comprei um filhotinho de drago. Coloquei-o numa garrafa de jade. O drago cresceu e ficou entalado na garrafa. Para tir-lo, devo quebrar a garrafa. Mas ela preciosa e lembrana da minha falecida me. Mas se no a quebro, o drago morre. O que fao? O velho abriu a boca numa gargalhada sem dentes e lhe disse: Meu filho, jamais coloques drago em garrafa!A comparao manca, se no considerarmos a peculiaridade da nossa situao. No nosso caso, a fala garrafa e Mito e Arte, drago. Na estria, quem cresce e se entala o drago. Na fala sobre o Mito e a Arte, o que engrossa a garrafa, reduzindo cada vez mais o vazio, o espao do nada, e juntamente com o vazio mingua tambm o drago. Mas filhotinho de drago, drago . Por isso, por menor que ele seja, sempre drago, todo inteiro. Mas, se a garrafa se tornar macia, drago morre? No, morre a garrafa, pois deixa de ser garrafa para ser uma coisa grossa. Um bloco. que a garrafa merc do vazio do espao que forma e sustenta suas paredes. Mas e o drago? Transforma-se em mltiplos tomos infinitesimais e penetra em cada pedao da ex-garrafa para ver se ali no interior de pedaos, sub-pedaos e micro-pedaos no sobrou ainda um qu de vazio, para ento ali morar. Mas, e se tambm ali, de todo, se carecer do vazio? O drago que ama o vazio se volatiliza e volta a ser ele mesmo, como era antes de ter-se inserido como doador do ser da garrafa. O vazio-drago se retrai no prprio do seu ser, a saber, na sua imensido, profundidade e unicidade criativa, i., na soltura absoluta da liberdade do seu ser. E essa soltura se chama sim-ples. De modo que l onde h simplicidade h o ser da liberdade como realidade das realizaes. Como a palavra realidade e realizao vm da res, e res em latim significa coisa, podemos dizer: realidade-realizao coisa. Assim, a coisa ela mesma da fala acerca do Mito e da Arte enquanto livres na soltura absoluta da sua realidade-realizao, a liberdade de ser, a autonomia da autoidentidade. Isso significa que a garrafa a tornar-se um bloco de coisa perde a identidade e de repente se acha envolta, impregnada at ao mago de si mesma pelo drago que saltou para dentro de si, tornando-se ele mesmo na soltura da liberdade de ser, acolhendo a ex-garrafa como uma possibilidade da imensido da generosidade-drago. Assim a nossa reflexo estaria salva no bojo, ou melhor, no mdium do drago Mito e Arte. Mas tornar-se corpo macio de uma reflexo sria, a ponto de se transformar numa compacta impossibilidade de uma fala que nada diz, uma tarefa impossvel, para essa nossa fala. Esta no fundo tagarelice. Nem se quer uma garrafa , pois nem se acerca nem fecha na sua indeterminao. Mas, e se a nossa fala no fosse garrafa, mas apenas uma pele, to tnue, flexvel e difana, pele a pele com o drago, a crescer com ele e como ele? Para ser tal material precioso, to fino, to nada, a fala deveria sair da mo de quem afeito a Mito e Arte como seu genitor... O que no o nosso caso. Na impossibilidade de ser macia a ponto de fazer o drago saltar para a liberdade de si, mas tambm na impossibilidade de ser to tnue, pele a pele, colada ao drago, a presente reflexo na sua perplexidade, fala de Mito e Arte num sentido geral, um tanto vago, que insinua uma espcie de descompromisso de quem num tal assunto apenas sabe enfileirar consideraes ab-errantes e a-beirantes. Aberrantes, porque andam errantes, sem bom rumo, abeirantes, porque ficam beira, margem do assunto, sem penetrar na tematizao da essncia da coisa. Nesse sentido, a preposio de significa assim, mais ou menos. Trata-se, pois, da abordagem do tema na ronda, a modo de falatrio disperso ao redor de tema complexo, profundo, dificlimo de ser assimilado, por ser simples. Mito e Arte, mas tambm qualquer outro tema filosfico, um caso srio demasiadamente quente para quem diletante na causa chamada coisa da filosofia. O jeito rondar, i , circunvagar ao redor do tema, a modo de um gato acerca do mingau quente, a lamber beirada do assunto[footnoteRef:1]. Se descuidado no queimar a lngua e tiver sorte, saboreie talvez por pouco e tnue que seja um gosto j um tanto esfriado do tema. Em que consiste essa circulao abeirante e aberrante, no nosso caso? Consiste em considerar o tema Mito e Arte, interrogando-me a mim mesmo, de que se trata quando escuto os termos Mito e Arte. Mas para que a nossa ronda abeirante no fique inteiramente sem rumo, coloquemos no centro das nossas circunvagaes um texto. Trata-se de um texto, obra do Pensamento, que faz toar uma outra obra, de Artes Plsticas, de van Gogh, que pintou um par de sapatos da camponesa. O texto se encontra em A Origem da obra de Arte, de Martin Heidegger[footnoteRef:2]. [1: Usamos e abusamos das notas para fazer reflexes laterais como comentrios. Isto no adequado e e talvez nem permitido num artigo acadmico. Mas tomamos a liberdade de faz-lo, pois a nossa reflexo no reta, mas um tanto enrolada. ] [2: HEIDEGGER, Martin. Der Ursprung des Kunstwerkes. mit einer Einfhrung von Hans-Georg Gadamer, Stuttgart: Philipp Reclam jun. 1960, p. 29-31.]

Diz Heidegger: Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato est sedimentada a tenacidade do andar lento atravs dos sulcos extensos e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do cho. Debaixo das solas se arrasta a solido do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doao de si do gro maduro e o inexplicvel fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Atravs desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurana do po cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigncia premente, a vibrao na chegada do nascimento, o frmito na iminncia da morte. Terra pertence este artefato e ao mundo da camponesa est ele protegido. dessa pertena protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistncia[footnoteRef:3]. Mas tudo isso, talvez, ns possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente cala sapatos. Oxal que esse simplesmente calar sapatos fosse to s,imples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansao, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa ento sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato est qui na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Ns o denominamos de confiabilidade.[footnoteRef:4] graas vigncia da confiabilidade que a camponesa iniciada no apelo silencioso da Terra, graas vigncia da confiabilidade do artefato que ela est segura e ciente do seu mundo. Mundo e Terra esto assim ali camponesa e aos que com ela esto no seu modo: apenas no artefato. Dizemos apenas e nisso erramos, pois somente a confiabilidade do artefato que d, em princpio, ao Mundo simples a proteo segura e assegura Terra a liberdade da impulso permanente. [3: Insistncia sugere substncia, i. , o in se da escolstica medieval. Talvez a compreenso moderna do fato como substncia-bloco, pontual, seja um modo deficiente da captao da insistncia concreta e viva do assentamento do mundo na terra: hypokemenon.] [4: Verlsslichkeit a palavra do texto alemo. A traduo por confiabilidade no est bem correta. A tentao foi de traduzir por serenidade que em alemo Gelassenheit. que tanto na Verlsslichkeit como na Gelassenheit est a palavra lassen que significa deixar. Deixar como lassen sugere deixar ser, abandonar algo a ele mesmo, se abandonar, digamos serena imensido, serenidade como plenitude da quietude profunda, abissal, assentada em si. algo como deixar se ser na, e a partir da imensido, profundidade e do vigor abissal de possibilidade inesgotvel e assim tornar-se uma presena totalmente confivel, por ser plenamente consumada em si e por si, idntica a si. Verlsslichkeit tem a conotao do inteiramente confivel p. ex. num artefato que cumpre totalmente o que promete e deve ser e ao mesmo tempo ali jaz sereno, assentado e inteirio na sua identidade.]

O ser-artefato do artefato, a confiabilidade, mantm recolhidas todas as coisas, cada vez, segundo seu modo e amplitude, em si. A serventia do artefato, no entanto, apenas a conseqncia essencial da confiabilidade. A serventia se embala na confiabilidade e seria, sem esta, nada. O artefato em particular se torna usado e desgastado; mas, ao mesmo tempo, tambm o uso cai no desgaste, se desfaz e se torna usual. Assim o artefato entra na desertificao, decai a apenas artefato-coisa. Tal desertificao do artefato o sumio da confiabilidade. O sumio, ao qual a coisa do uso deve ento cada vez a sua montona e persistente rotina vazia, , porm, um testemunho a mais que acena essncia originria do artefato. A desgastada rotina usual do artefato ento se impe como o nico e exclusivo modo de ser[footnoteRef:5] a ele prprio. [5: A reduo de-cadente do artefato entificao factual como sendo ele apenas uma coisa ali dada simplesmente, pressupe que antes de algo estar ali simplesmente dado como fato, h toda uma presena viva de uma estruturao da manualidade, onde se acena uma dimenso mais profunda e subterrnea da existencialidade, l onde algo como realidade humana ou vida humana ou existncia se torna possvel.]

Para no haver equvoco, nessa presente reflexo no se trata de expor os pensamentos do opsculo A origem da obra de Arte, de Heidegger, nem de comentar o seu texto acima mencionado. Trata-se apenas de ter o texto como ponto de referncia das nossas circunvagaes diletantes acerca do tema Mito e Arte[footnoteRef:6]. [6: Embora na reflexo, o que houver ali de vlido, tenha sido todo ele, de alguma forma assimilado de modo certamente facilitado e imperfeito , da mencionada obra de Heidegger, no citamos cada vez de onde foi tirado. ]

primeira vista, o que aparece no quadro de van Gogh simplesmente uma coisa, chamada sapatos. O que, porm, aparece na descrio de Heidegger do par de sapatos, pintado por van Gogh, no mais apenas uma coisa, um utenslio, mas sim todo um mundo, uma paisagem humana, que mais tarde vamos chamar de existncia camponesa. Isto significa que aquela coisa pintada por van Gogh, enquanto obra de arte, nos abre uma realidade toda prpria da paisagem humana, o mundo da existncia camponesa? Vamos a seguir examinar como de uma coisa como sapato, uma vez tocada pela Arte, pode surgir algo como paisagem da existncia humana. Para isso, falemos primeiro da coisa chamada obra de Arte.2. A CoisaO ttulo desse trabalho Do Mito e da Arte. A seguir, falemos primeiramente da Arte.O que hoje, de imediato e na maioria dos casos, entendemos, quando ouvimos as palavras mito e arte, est assinalado nos dicionrios. Simplificando ao mximo essas informaes, podemos dizer: Mito : narrao dos tempos antiqssimos no incio da nossa civilizao, onde os homens conviviam com os deuses e efetuavam atos extraordinrios como heris, em contnuo contacto com a interveno dos deuses para dominar e cultivar a Terra. E Arte : expresso esttica de idias, vivncias e sensaes.Mito como narrao e Arte como expresso esttica so produtos da realizao humana. O Mito e a Arte como produtos da realizao humana nos remetem ao homem, que atravs do ato de realizao de si produz coisas da sua causa como narrao e expresso. Temos assim o esquema expresso no modelo: sujeito ato objeto, nomeadamente, artista ao criadora artstica obra de arte. Vamos chamar todo esse conjunto simplesmente de Arte. O conjunto esquemtico sujeito-ato-objeto vale para toda e qualquer produo cultural. O que distingue em concreto a produo artstica de outras produes culturais, portanto, a sua diferena, i. , a sua identidade enquanto produo artstica o que vige, impera como carter todo prprio no conjunto Arte. Convenhamos chamar essa vigncia toda prpria de essncia da Arte. O verbo esse do latim e significa ser (verbo). Assim, essncia diz ncia, i. a dinmica do verbo esse, do ser. A dinmica de ser no nenhuma coisa. No pode ser, pois, captada no modo como captamos coisa, isso e aquilo. Trata-se, pois daquela presena, daquela pregnncia, da tonncia que determina o ser da Arte ou a Arte na dinmica de ser: o prprio da Arte, ou o evento (Ereignis) da Arte[footnoteRef:7]. Mas se dizemos que a essncia da Arte no pode ser captada como captamos coisa, referimos essncia de algum modo coisa. Que realidade essa, a coisa, para podermos dizer que a essncia da Arte no nenhuma coisa? [7: Informaes sobre o evento, o acontecer, Ereignis, ereignen, em alemo (cf. INWOOD, Michel. Dicionrio Heidegger. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro, 1944, p. 2).]

Essa pergunta aqui j antecipada pressupe que, dentro do conjunto Arte, focalizemos o prprio, a essncia da Arte em primeiro lugar, coisificada naquela coisa que denominamos obra de Arte. Perguntemos, pois, que coisa, ou melhor, que tipo de coisa essa, a obra de Arte?Entrementes para ns hoje, h coisa e coisa. Coisa, usualmente objeto. Coisa como Objeto, em diferentes nveis, est, de alguma forma, referida ao projeto da ao e do saber do sujeto-homem. Coisa como Coisa se refere mais a um fato da natureza virgem, ainda intacta pela indstria humana. E em vez de objeto e coisa dizemos de um modo inteiramente geral algo. A coisa objeto e a sua coisalidade, e o fato natural, e o algo e suas coisalidades, o que ? H algo anterior coisa objeto (produto do homem) e coisa fato natural (produto da natureza)? Algo comum a todas as coisas? Em alemo existem vrios termos referidos ao que denominamos coisa, a res, a realidade e suas realizaes: por exemplo, etwas (algo), das Seiende (o ente), das Sein (o Ser),[footnoteRef:8] der Gegenstand (objeto), das Objekt (objeto), e principalmente das Ding (coisa) e die Sache (coisa). [8: O ente (das Seiende) e o ser (das Sein) so termos que dizem tudo e nada, indicando a imensa, profunda e a mais criativa questo do sentido do ser. Assim sendo, podem indicar o significado, o mais abstrato e geral e, ao mesmo tempo, o mais concreto, singular, denso e universal de toda a realidade das realidades.]

O ponto nevrlgico, a observar aqui, est nisso: ns usualmente pensamos que esses termos indicam coisa no sentido desse ente ou daquele ente. Sem dvida, os termos mencionados o fazem, mas ao mesmo tempo, obliquamente nos remetem ao modo de ser da classe da coisalidade, a que pertencem os entes, esses ou aqueles entes. De que se trata, pois? Tentemos dizer de que se trata, atravs de uma explicao. Com algo posso predicar tudo, at mesmo o nada. Esse tipo de classificao contm sob a extenso da sua coisalidade todas as coisas, mas sem nenhum contedo, a no ser o de ser um qu, totalmente indeterminado, abstrato e geral. Objeto j uma classificao da coisalidade que subsume sob a sua extenso as coisas feitas pelo Homem[footnoteRef:9]. coisalidade da classe Coisa pertencem primeiramente s coisas produzidas pela Natureza e tambm os objetos acima mencionados[footnoteRef:10]. O ente e o ser indicam as coisas numa indeterminao ou inteiramente vazios de contedo ou prenhes de possibilidades concretas de contedo. Isso em portugus. Como acima mencionamos, em alemo, alm de etwas (algo), Objekt (objeto), Sache (coisa) temos Gegenstand (objeto), Ding (coisa). Alis, em portugus popular do Brasil, temos p. ex. troo, trem. Quando entram em cena termos do uso popular, a gente fica um tanto abalado, pois nos soam to concretos e vivos que se tem a sensao de se ter a coisa ela mesma diante da gente, e no entanto quando se pergunta de que se trata, nada dizem, a no ser um vago indeterminado algo, embora diferente do algo, pois vago e indeterminado a modo todo e bem concreto. Sem muita preciso nem certeza, possamos talvez dizer que o termo alemo Objekt indica as coisas que so casos na coisalidade das cincias naturais na sua formalidade abstrata; ao passo que Gegenstand se refere s coisas consideradas de modo menos formal e abstrato, e tomadas das consideraes mais abrangentes, estendidas sobre todas as coisas, numa captao mais imediata da vida; Ding tambm indicaria coisas no sentido parecido com Gegenstand, mas mais referidas s coisas produzidas pelo Homem, coisas que se aproximam do modo de ser de uma obra artesanal, feita mo[footnoteRef:11]; e Sache, a coisa no sentido de causa, entendida talvez como aquilo que atinge o mago do interesse como a coisa ela mesma. Sache possui a mesma radical da Sage (do verbo sagen = dizer, falar), e significa tambm saga, lenda, narrativa herica, mito, indicando as coisas todo prprias, referidas tradio antiga, primitiva e originria no incio da Histria. [9: Mas objeto pode tambm ser usado com a mesma funo de algo.] [10: Mas coisa aqui pode ser tambm um termo usado com a mesma funo de algo.] [11: Cf. nota 16. Aqui trata-se de artefato cuja densidade de ser no a de um simples utensilio.]

necessrio no esquecer que essas palavras indicam grupos de coisas, mas que, em indicando coisas, conotam tipos de coisas, ou a tipicidade dos modos de ser das coisas, i. , o cunho, o carter prprio de ser. o que acima denominamos de coisalidade. So portanto cada vez conceitos classificatrios dos diversos modos de ser das coisas. S que, quando se trata de modo de ser, no de preciso a gente chamar esses termos de classificatrios. Pois classe indica regio, rea, setor de um modo de ser, mas no tematiza o modo de ser caracterstico de cada modo de ser. que ser indica no isso ou aquilo, mesmo que isso ou aquilo seja regio, classe, grupo de coisas, mas sim o que impregna as coisas de todo, de cabo a rabo plena e completamente, de tal maneira que se identifica inteiramente com isso e aquilo, com a coisa, e no entanto no se iguala a ela. Por isso aqui em vez de classe, usemos a palavra horizonte. Assim, algo, objeto, coisa, vulgo troo, trem, em alemo, etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, Sache, so horizontes, totalidades dos entes de certo modo de ser, no seu todo, na sua coisalidade. Mas, ento, o que Horizonte? De modo bastante imperfeito e desajeitado podemos talvez dizer que Horizonte espao de abertura, a partir e dentro da qual as coisas vm ao nosso encontro, se nos apresentam, i. , aparecem numa certa, cada vez diferenciada determinao de ser. Quanto menor a determinao na sua diferenciao, quanto mais geral a determinao, tanto mais vagos, indeterminados, vazios de contedo se nos apresentam os entes que aparecem a partir de e em um horizonte. o caso do horizonte algo e os seus entes. Assim, entre algo, objeto, e coisa, em alemo, entre etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, e Sache, h uma espcie de escalao de adensamento qualificativo na determinao diferencial dos horizontes. E isto de tal modo que, na medida desse adensamento horizontal, a identificao ou a coincidncia entre horizonte e os seus entes se intensifica. Assim, no caso da coisa ela mesma, em alemo Sache, o horizonte no propriamente espao dentro do qual se acham os entes, mas o horizonte se torna por assim dizer a dinmica da estruturao da presena do ente ele mesmo no que h de prprio. Em vez de horizonte podemos tambm usar com maior concreo e propriedade a palavra mundo (Welt) na acepo do uso quando dizemos isso contm todo um mundo de implicncias. S que, se usamos o termo mundo em vez de horizonte, pode acontecer que no caso do horizonte algo, haja o mnimo ou nada de implicncia, a tal ponto de a mundidade se apresentar como um espao vazio e ali dentro o ente, ao passo que no Ding, as estruturaes e texturas das implicncias, constitutivas da mundidade se tornam bem complexas e densas, e na Sache se adensam, a ponto de aqui, se no tivermos boa sensibilidade prpria de captao, a mundidade se apresentar como o oposto do horizonte algo (= espao vazio), a saber, como um bloco macio ali ocorrente em si. No entanto, se conseguirmos ver bem, o que parece um bloco macio, na realidade, como o sumo, a concentrao de todas as estruturas e implicncias de um mundo numa coeso plena, densa, a tal ponto que essa autoidentidade de concentrao monadolgica inclui todos os mundos, digamos numa perfilao nica e singular do abismo insondvel de ser. provavelmente o caso da obra de Arte. Assim, radicalmente diferente um bloco de cimento macio opaco na sua coisalidade do ocorrer e a presena de uma obra de Arte na mundidade da sua densidade de ser. No entanto, pode-se dar em ns uma espcie de miopia, em relao clareira do horizonte ou do mundo na sua mundidade. Nessa miopia, vemos tudo como coisas-bloco, uma ao lado da outra. Trata-se de uma impostao do nosso ver. Esse ver, ao ver os entes, inclusive a ns mesmos, v tudo como essa coisa macia, esse bloco em si, e o faz sem nenhuma referncia s estruturas e s texturas das estruturaes do ente na sua mundidade, portanto apenas como isto e aquilo isolado ou ilhado em si. E isso de tal modo que a mtua relao entre os entes se estabelece a partir de fora, como relaes acidentais que no dizem respeito interioridade da coisa. Dito de outro modo, esse ver no v a coisa na sua essncia. E quem o agente dessa impostao e dessa mtua relao entre os entes, que cria concatenaes entre os entes-bloco? O sujeito homem que est dentro do horizonte p. ex. acima mencionado de algo (etwas) ou objeto (Objekt), a partir e dentro do qual capta o ente como ente-bloco, inclusive a si, portanto como este sujeito[footnoteRef:12] (ou este grupo, este conjunto ns, vs, eles e elas como bloco), no qual reside um centro, um ncleo espiritual eu[footnoteRef:13]. Assim, nessa impostao o que captamos da coisa ela mesma depende na ltima instncia do interesse do sujeito que v esta coisa, aquela coisa, este grupo e aquele grupo de coisas, conforme a perspectiva do interesse do eu. O horizonte, o mundo na sua mundidade se transforma no interesse, entendido como instncia do eu subjetivo. Este se separa do ente que aparece como realidade em si objetiva diante dele e os atos do sujeito se tornam fio de ligao entre o objeto e o sujeito. Nessa impostao, o que denominamos obra de arte uma coisa, produto da atuao do Homem, enquanto expresso do seu interesse subjetivo denominado interesse artstico-esttico. O que comanda e d o carter todo prprio denominado artstico-esttico o interesse subjetivo do sujeito-homem. Por ser expresso do sujeito-homem, para compreender a obra de arte necessrio conhecer no sujeito artista coisas como a hereditariedade fsico-anmica, as suas experincias, suas ideias e vivncias, as influncias recebidas do meio ambiente sociocultural, socioeconmico etc., expressas e exteriorizadas no produto-obra de Arte, tendo como meios dessa exteriorizao diversos materiais, conforme as modalidades da expresso artstica, como p. ex. na msica, literatura, nas artes plsticas, no teatro, cinema etc. [12: Sujeito aqui, embora diferenciado do objeto, no fundo, participa da mesma coisalidade. A diferena do ser entre sujeito e objeto encoberta debaixo de uma compreenso prefixada do ser, comum a dois, de modo que o prprio sujeito (Homem) considerado como um caso do objeto.] [13: Se eu aqui entendido como eu emprico ou como eu transcendental, no fundo parece no haver muita diferena no que se refere ao sentido do ser dominante no horizonte algo ou objeto.]

Recordemos. Acima dissemos que a essncia da Arte no nenhuma coisa. Por isso no pode ser captada como usualmente captamos as coisas. Mas observando que h coisa e coisa, diferentes tipos de horizontes na sua coisalidade, tentamos ver que os termos como algo, objeto e coisa, em alemo etwas, Objekt, Gegenstand, Ding e Sache, no indicam direta e propriamente isso ou aquilo, mas sim horizonte, mundo, ou melhor, mundidade dos mundos. Com isso, comeamos a ver em concreto que necessrio olhar a essncia de modo diferente ao do modo usual de ver isso ou aquilo. Comeamos assim a perceber que a essncia da Arte, a saber, do conjunto artista (sujeito) ao criadora artstica (ato) obra de arte (objeto) , por assim dizer, envolvido no seu todo pela dinmica da abertura da possibilidade de ser que denominamos horizonte, ou melhor, mundo. E, no entanto, apesar de sabermos de tudo isso, ao falarmos da essncia da Arte, nos inclinamos a colocar a presena da essncia na obra da arte. Mas quando falamos da essncia da Arte como presena de uma dinmica de ser, que envolve tanto o artista, a ao criadora como a obra de arte, portanto, como o inter-esse, i., como o mdium no qual se acha o todo do conjunto Arte, nos inclinamos a colocar o inter-esse dentro do sujeito-artista, como uma realidade subjetiva existente nele e dizemos: a obra de Arte depende do interesse, daquilo que o interior do sujeito, i. , do agente da produo da obra de Arte. 3. O interesseO que acima denominamos de interesse, se o olharmos bem, no nem subjetivo nem objetivo. Pois os adjetivos subjetivo e objertivo se referem ao sujeito homem (subjetivo) e a coisa-objeto (objetivo) como ente-bloco, algo, como um qu em si. Pois o interesse, considerado na Arte, i. , no conjunto artista-ato criativo-obra de arte o que acima denominamos de essncia.Interesse se l inter-esse. Inter se pode interpretar ora como entre, mas tambm como dentro. O dentro, porm, do inter no dentro de uma coisa-bloco, mas sim dentro do entre-meio, no mdium. O nosso problema que sempre ainda representamos o mdium como um bloco liquidificado ou rarefeito a modo de um espao vazio, semi-vazio, ou cheio de uma substncia sublimada etrea. E no como a dinmica de estruturao do vir-a-ser-mundo como acontece p. ex. no mdium denominado, musicalidade. Aqui, a tonncia impregna toda a sinfonia a se estruturar em e como mil e mil diferentes composies e constelaes de composies, cujos elementos constitutivos no so tomos-blocos, mas sim concrees de modalidades e modulaes tonais em percusses e repercusses. Esse conjunto, essa syn-phnica ora se abre, ora se fecha, na expanso e no recolhimento sucessivos e simultneos, cada vez todo, de todo, no movimento vivo e concreto de determinaes em infindas possibilidades de repeties moduladas. Esse estar no, esse ser-em o inter-esse. Essa maneira de descrever parece s se referir obra, aqui execuo. Mas para que haja execuo da sinfonia temos a partitura da msica, os compositores e tudo que a eles se refere enquanto compositores e msicos, diversos instrumentos; os membros da orquestra, maestro e os instrumentistas, o coro e seus componentes, a sala de concerto, os ouvintes; todo o processo que em contnuos e repetidos ensaios e exerccios forma tanto o maestro como os componentes da orquestra, os prprios instrumentos que foram artesanalmente confeccionados; o sistema de microfones, o sistema de gravao da msica, da sua transmisso no rdio e televiso etc. Tentemos ter tudo isso presente bem concretamente, quando aqui dizemos de modo esquemtico e formal: o conjunto artista-ato de produo artstica da obra de arte. E isso no como fila ou amontoado de entes ajuntados e enfileirados como ente-blocos, um ao lado do outro, mas na dinmica do seu tornar-se, consumar-se em diversos e variegados modos de ser em concreo, que no seu todo e em cada momento da dinmica da expanso e do recolhimento, est impregnado da mesma causa, ou melhor, do mesmo princpio, da mesmidade no ser, formando todo um mundo no seu ser. A esse movimento denominamos realizaes ou estruturaes da realidade e realidade das estruturaes.Para perceber como o inter-esse o que possibilita, faz surgir, sustenta tanto a obra de Arte como o artista e sua ao criadora, vamos dar um outro exemplo, j usado numa outra ocasio, num outro artigo[footnoteRef:14]. Esse exemplo, mais do que o exemplo anterior tenta conduzir a considerao do interesse, do setor subjetivo dentro do sujeito-eu para o inter-esse anterior e mais fundamental, a partir e dentro do qual se constituem tanto o sujeito como o objeto[footnoteRef:15] de uma determinada ao. Um artista. Digamos um organista. Toca fuga de Bach. O livro com as notas musicais diante de si. Os dedos transmitem a leitura das notas ao rgo. Dali surge a fuga. E o organista ouve a fuga produzida. Posso considerar a produo da msica como uma sucesso linear de causa e efeito: o livro de notas musicais, o olho-leitura, o movimento dos dedos, o rgo, o som, o ouvido-ausculta. Vamos suspender essa considerao que enfoca o aspecto produtivo causal da fuga. Examinemos o fenmeno de imediato, diretamente: Um homem debruado sobre o rgo. Todo o seu ser concentrao. Para onde se concentra o seu ser? Para a produo da fuga? Para pr em obra as normas tcnicas da execuo musical? Digamos que o nosso organista domina a tcnica de execuo. Os dedos obedecem espontaneamente aos mnimos detalhes do seu comando. O movimento do dedilhado lhe flui do querer sem resistncia, de tal sorte que o organista no precisa mais se concentrar na execuo. [14: HARADA, Hermgenes. Reflexes de quem no sabe o que orao, in: coleo de artigos de vrios autores, no livro intitulado A orao no mundo secular, 2 ed. Petrpolis: Vozes, 1972.] [15: Se no ficarmos atentos, podemos estar entendendo tanto sujeito como objeto como uma determinada coisa-bloco. Aqui devemos entender, cada vez, tanto sujeito como objeto como mundo na sua complexa textura da dinmica das suas implicaes.]

Mas, ento, para onde se recolhe o vigor da sua concentrao? Para a ausculta. Ele todo ouvido na concentrao. Mas para a ausculta de qu? Para a ausculta da fuga de Bach que sai dos tubos sonoros do instrumento-rgo? Certamente o organista ouve a fuga de Bach como msica por ele produzida atravs do instrumento. Mas esse ouvir, assim explicado, no coincide com a ausculta aberta no recolhimento da concentrao. Pois ele, ao ouvir a msica produzida, percebe nela, por exemplo, a ausncia do vigor, do colorido, do frescor; sente como a sua msica no tem ressonncia, no se sustenta, no se liberta para o jbilo da festa, no consegue dizer a profundidade da dor, no vibra, no tona, no saltita. Com outras palavras, o artista percebe que a sua fuga no est no ponto. Por conseguinte, o organista, ao ouvir a msica produzida, mede-a simultaneamente a partir de... Mas a partir de qu? Onde est, em que consiste esta medida, o ponto da plenitude? A nossa representao objetiva essa medida no interior do artista. Mas onde est? O que essa interioridade? A pergunta no tem resposta, pois a interioridade no est no espao-onde extensional fsico, anmico nem espiritual. Antes, ela a fonte, a nascividade do tempo e espao da ressonncia toda prpria, da musicalidade das msicas, do mundo da msica. Em outras palavras, a pergunta-onde e a sua resposta, por operarem a partir e dentro do espao objetivado da re-presentao algo ou objeto, esto fora da dimenso da interioridade aqui em questo. Mas o que essa interioridade? Essa interioridade est na obra da Arte? Na ao criadora da execuo da obra? No artista? Ela est em toda a parte. o inter-esse que impregna, penetra todos os poros, todos os momentos do conjunto Arte, artista, ao criadora e obra da Arte e tudo que se refere Arte em diversas implicaes como prolongamento de estruturaes do mundo da msica. E isto desde a ausculta, a mais pura e sublime de um artista inteiramente doado limpidez da criatividade da Msica-Arte, at mesmo s implicaes j bastante desfocadas e desafinadas da venda e do lucro, provenientes do comrcio dos produtos de Arte.. Essa interioridade no nem dentro, nem fora, mas sim um ser em como vigncia de uma presena onipresente, em cada momento do conjunto, a fazer surgir, crescer e se consumar a percusso e a repercusso da realizao e realizaes da realidade: a musicalidade, o ser da musica, o inter-esse do mundo-Msica. Essa vigncia se chama essncia. Portanto, observemos onde se localiza o que acima denominamos essncia, o inter-mdio in-pregnante, onipresente em todos os momentos, em todas as articulaes, em todos os movimentos estruturantes do todo, envolvendo, inundando e irrigando tanto o artista, como a ao criadora, como tambm e principalmente a obra de Arte. E perguntemos o que , quem esse inter-esse?4. ExistnciaQuem , pois, esse inter-esse? o prprio homem. Apenas, em assim respondendo, sempre de novo representamos o interesse como algo no ou do homem. Algo que vem dele, nele est. Mas que o homem, ele mesmo, seja o inter-esse, isso nos um tanto estranho. O mais bvio , aqui, instintivamente localizar o inter-esse p. ex. da musicalidade, no interior do homem, na sua interioridade. Quando, porm, dizemos ser ou essncia, ns a pensamos no interior do objeto ou da coisa. Esse dentro de mim como do ente homem e esse dentro do objeto como do ente extra-humano, portanto esse inter-esse, no est nem dentro nem fora do ente homem, pois no se trata de local fsico-material. Sabemos disso muito bem, mas... na perplexidade, tornamos a localiz-lo na sensibilidade humana, na alma, no esprito, se que no o colocamos simplesmente numa determinada parte do crebro, na reao dos nossos nervos aos estmulos, provenientes do ambiente que nos circundam.Entrementes, quando pomos o inter-esse, a essncia na sensibilidade humana, na alma, no esprito, no crebro, na reao dos nervos etc., no o estamos propriamente percebendo, no o estamos vendo a ele mesmo, pura e diretamente, mas sim o estamos reduzindo a um objeto de um outro horizonte que lhe alheio no sentido do seu ser. Sem depender de todas as nossas colocaes e anterior a elas, pode-se p. ex. na situao acima mencionada do organista que executa a fuga de Bach, ou na execuo sinfnica da orquestra, perceber nitidamente uma presena, uma vigncia, um ser (dinmica do verbo) que se nos apresenta como ele mesmo, todo prprio e nada mais, impregnando o conjunto todo, e cada um dos seus componentes e sub-componentes, sustentando-o, vivificando-o, fazendo-o perfilao do seu prprio ser. A pregnncia dessa presena aparece na vitalidade, na unidade, na vivacidade e simplicidade do todo. algo como atmosfera, mdium que o envolve e o perpassa como tonncia, como colorido de fundo, dando ao todo e a seus componentes um carter todo prprio de ser. E ao mesmo tempo em que assim se estende por sobre e atravs de toda a dimenso do conjunto, na largura, na altura, na profundidade de suas perspectivas, concentra-se de modo intenso, como que a convergir num centro, na obra que surge como fruto da ao criadora. Assim, a essncia, o ser da Arte, aparece na plasticidade e concreta singularidade da obra de Arte. Mas como que colocamos dentro, na interioridade do homem artista a causa de todo esse conjunto, sintetizado na obra de Arte? O que significa, de que se trata, portanto, quando usamos o termo interioridade, ao querer ver dentro do homem artista na sua ao criadora, e dentro da obra da arte, o que denominamos de inter-esse como essncia que envolve o conjunto Arte, toda e inteiramente, inter-esse que o prprio homem?Talvez esse tipo de localizao da essncia como interioridade ou interesse no sujeito-artista, e dentro na obra de Arte como ncleo, oculto sob as aparncias de cor, volume, forma etc., seja uma espcie de projeo coisificada da experincia viva que fazemos, em ns e na coisa chamada obra de Arte, quando a essncia da Arte nos pega.O que e como essa experincia que nos afeta como essncia da Arte? Talvez possamos qualificar o qu e o como dessa experincia como um carter todo especial presente no conjunto Arte, a saber, uma espcie de densidade, de intensidade na pregnncia de ser. Essa densidade de ser aparece no assentamento que uma obra de Arte tem na mundidade do seu prprio ser. , pois, to marcante a diferena existente na densidade da mundidade p. ex. nos sapatos da camponesa da obra de van Gogh e na mundidade do artefato-sapato, fabricado em srie ou mesmo artesanalmente. Aqui numa obra de pintura do quilate de van Gogh, dizer que ela algo ou objeto no diz nada. Nesse tipo de horizonte algo ou objeto, jamais aparece a mundidade prpria da singularidade uni-versal da obra de Arte. O termo alemo Ding p. ex. parece indicar melhor e com mais preciso a coisalidade de uma tal densidade da mundidade[footnoteRef:16]. Aqui na obra de arte no h nada de indiferente, neutro, de indeterminado vo, no h generalidade nem generalizao. Ela toda ela prpria, sem ser um caso individual ou particular de uma srie de coisas de uma classe, universal no sentido de concentrao e densidade no uno, como nico, contendo em si a medida optimal de tudo quanto quer participar de tal singularidade universal. E isso, de tal modo que, ela cria um estilo e pode fundar uma escola de Arte. [16: Cf. HEIDEGGER, Martin. Das Ding, in: Vortrge und Aufstze. Pfullingen: Gnter Neske, 1954, pp. 163-181. Ding diz mais do que um objeto, manufaturado artesanalmente, entendo a manufatura artesanal a partir da fabricao de um utensilio. Por Ding deve-se entender uma obra, na qual est presente a perfilao coesa de todo um mundo da existncia humana. ]

O marcante da diferena no est aqui propriamente nem na celebridade, nem na utilidade, nem na excelncia de venda etc., mas sim naquele carter todo prprio da Arte que, conforme as explicaes dadas pelas teorias estticas, chamamos de belo, esttico, sublime, nobre, para encobrir a nossa impossibilidade de diz-lo, embora o possamos ver nitidamente.A acima mencionada intensidade da pregnncia de ser aparece tambm no artista, quando observamos o seu modo de ser na profisso de artista. E possvel ele, como sujeito-homem, ser de uma moralidade duvidosa, ser egosta, ser viciado no lcool, mas quando se trata do seu metier artstico, sua vida possui sinceridade, honradez e pureza toda prpria, intensidade de engajamento e compromisso todo prprio com a coisa da Arte. Aqui, para alm, ou melhor, aqum da sua inteno moral ou sinceridade, se d uma autenticidade que no um dado espontneo a modo de um produto da Natureza, mas sim dom de um rduo e generoso trabalho[footnoteRef:17], que nasce, cresce e se consuma como Histria. E isso aparece principalmente no seu trabalho artesanal[footnoteRef:18] de compromisso corpo a corpo com a obra. Toda a sua vida est como que doada obra, a tal ponto de no se poder saber se o artista que perfaz a obra ou a obra que perfaz o artista. nesse sentido que, embora dois entes fisicamente separados como algos, como objetos, enquanto artista (existncia artstica) e enquanto obra (essncia artstica), artista e obra so um na presena criadora. E isso a tal ponto de podermos afirmar que, quanto mais obra na sua grandeza e singularidade especfico-universal como Arte, tanto mais annimas[footnoteRef:19] so as obras. por isso que, mesmo quando o autor de uma obra prima conhecido, o nome do artista recebe o esplendor e a notoriedade da obra e no a obra, do artista[footnoteRef:20]. [17: Cf. a compreenso antiga dos termos ars e tchne, no V. Arte e Mito.] [18: Artesanal aqui significa antes um modo de ser e trabalhar do que propriamente o estilo de confeco. ] [19: Anonimidade aqui no precisa ser no sentido estrito de desconhecermos totalmente o autor. Pode tambm significar que o autor, enquanto sujeito e agente do produto, no im-porta.] [20: L onde, porm, se d a badalao esttica, a obra valorizada pela celebridade do autor.]

Repetindo, aqui o dentro do homem, a sua interioridade o que acima enunciamos como sendo toda a vida, a vida inteira doada obra. Mas de que se trata aqui quando dizemos toda a vida, a vida inteira do ente chamado homem? Seus afazeres, compromissos, atitudes, os fatos da sua passagem no espao e tempo do globo terrestre, seus ideais e projetos? De alguma forma tudo isso tambm, mas mais do que tudo isso. Em que sentido mais? No quantitativamente nem qualitativamente, ...mas existencialmente. Vida aqui na vida artstica significa existncia. Temos assim as expresses: existncia artstica, existncia religiosa, existncia humanitria etc. Trata-se de um modo de ser humano que advm ao homem e determina de modo prprio todo o seu viver, em todas as suas implicaes, a tal ponto de aqui desaparecer toda e qualquer neutralidade indiferente e geral de uma considerao panormica, padronizante do ser-homem. O ser-homem aqui como existncia se aperta na finitude da estreiteza do historiar-se de si mesmo, toda a possibilidade de ser se torna nica[footnoteRef:21]. Nada aqui feito, simplesmente dado, mas cada qual com todas as coisas implcitas no seu ser tem que ser, tem que se tornar, a partir de e dentro de si mesmo, como que na ausculta atenta do toque por e para ser que lhe possa advir, no dele, e tambm no do outro constitudo como um ente dentro do mbito da sua possibilidade, mas de um salto primeiro e nico para dentro da espera do inesperado e para dentro do impossvel incio. Impossvel, porque no est ali dado de antemo na existncia como um algo j ocorrente, mas deve saltar como dom de um labutar constante, fiel e cordial, como ecloso, crescimento e consumao de todo um novo mundo. E essa abertura para a impossibilidade possvel a ex-sistncia, a pre-sena, em alemo Da-sein[footnoteRef:22]. Da-sein a essncia da Arte. Arte s possvel ser compreendida, portanto, como e na existncia artstica, no pensar o seu ser em sendo, em da-seiend no inter-esse, na essncia da Arte. [21: O nico ou o singular aqui no igual ao individual ou ao particular, oposto ao geral, mas densidade de ser convergido no uno, uni-versal.] [22: Da-sein, traduzido na verso de Ser e Tempo, da Editora Vozes, por Pr-sena, mais apropriado aqui para a nossa reflexo do que Existncia. Pois existncia alm de conotar de um lado a acepo tradicional da existncia como ocorrncia, por outro lado traz insinuao de que se trata de um modo de ser a la Subjetividade Transcendental, embora mais concreta e elementar do que a de Husserl. Ns usamos o termo alemo Dasein. S que Dasein pode nos levar a impreciso de o entendermos como sendo, de alguma forma, ntico-antropolgico (cf. HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. parte I, traduo de Mrcia de S Cavalcati, Petrpolis: Vozes, 1988, notas explicativas, verbete Pr-sena = Dasein, p. 309).]

Isto significa que o modo de ser caracterizado como densidade da pragnncia de ser para indicar o modo de ser todo prprio do ser-humano, agora denominado existncia ou Da-sein, o que antes no captulo II e III percebamos como essncia e inter-esse, e que se projetava materialmente como que localizado na interioridade do homem ou no fundo da obra de Arte. Toda e qualquer obra de Arte, se realmente uma obra de Arte, toda e qualquer vida humana inteiramente doada Arte e toda e qualquer ao feita enquanto doao Arte no trabalho de criao da obra de Arte, nos conduz para dentro do modo de ser do ser prprio do Homem, para dentro da existncia ou do Dasein, para dentro do seu mundo. No s nos conduz para o pas da imensido, profundidade e densidade do fundo do ser-humano, mas tambm o revela, traz luz na perfilao singular e nica desse modo de ser, na obra de Arte. Tudo isso nos leva constatao de que a Arte na sua essncia s pode ser compreendida a partir dela mesma, dentro do mdium, do inter-esse dela mesma como o modo de ser da imensido, profundidade e criatividade da vida humana, portanto como existncia ou Dasein e nada mais. , pois, necessrio que ela fale, que deixemos que ela venha a se manifestar, que a deixemos ser, ela, a coisa ela mesma. Mas basta s isso? Na Arte h tantos aspectos, tantas perspectivas, tantos pontos de vista a serem considerados!?... No a deveramos enfocar sob aspecto psicolgico, sociolgico, sob o ponto de vista da crtica da arte, examinar a historiografia da arte, as influncias das diferentes pocas, estilos, escolas, biografias dos autores, as suas peculiaridades no uso do pincel, na escolha das cores etc., a sua vida particular e ntima, os seus amigos, seus parentes, vcios e virtudes, suas ideias filosficas, religiosas, polticas etc., etc.? Tudo isso necessrio levar em considerao, pois o que acima foi dito como existncia, como Da-sein artstico, no propriamente um aspecto ao lado de todos esses aspectos, certamente importante e principal; no jamais tambm um aspecto. Existncia, Da-sein ou Pr-sena impregna e subsume todos esses aspectos ao destinar-se como se perfazer Histria na apropriao do seu viver. Esse levar em conta os aspectos acima mencionados, no como critrios de abordagem da Arte, mas sim como elementos subsumidos pela existncia artstica, deixar ser Arte ela mesma e no a colocar sob a mira proveniente de um outro horizonte que no seja a dela. Deixar a essncia da Arte ser ela mesma significa um ingente esforo de continuamente no deixar que ela se des-loque para dentro de uma dimenso, de um inter-esse que no o dela e que no venha dela mesma. E se constatamos a enxurrada de pontos de vista, a partir e dentro dos quais mirada a Arte, ento ao estar dentro de e no prospecto desses interesses, no considerar esses pontos de vistas como explicaes e esclarecimento da essncia da Arte, mas antes considerar tudo isso como possveis vicissitudes da prpria Arte como existncia artstica, portanto como historiar-se do destino da possibilidade radical da existncia humana; e tentar interpretar, no atravs dos pontos de vista e por meio deles a essncia da Arte, mas pelo contrrio, mirar todos esses esquecimentos, encurtamentos da essncia da Arte, a partir do lmpido toque da coisa ela mesma chamada Arte; e examinar em todas essas defasagens, em todos esses deslocamentos da essncia da arte, se no h de algum modo tambm ali eco longnquo ou repercusso tnue e quase imperceptvel da vigncia da Arte. Pois se Arte como drago da nossa estria, ela penetra em todos os recantos da garrafa, por mais bruta e grossa que ela tenha ficado, para ver se no restou ali, em qualquer canto, ainda um vazio da caixa de ressonncia, que repercuta o toque-drago. Pois a Arte to drago, que se uma vez solta na sua liberdade de ser, capaz de fazer artes com todo esse esquecimento da essncia da Arte; capaz de fazer de sucatas e pedaos descartados de todo e qualquer sentido do ser uma obra de Arte na medida em que traz luz, na inominvel e inaudita desolao do sentido do ser e da sua perda, um vislumbre do abismo que se oculta sob a insensvel e opaca superfcie de tal desolao... Talvez seja isso que est expresso na primeira frase da Confisso criativa de Paul Klee, quando diz: Arte no reproduz o visvel, mas faz visvel[footnoteRef:23]. [23: Kunst gibt nicht das Sichtbare wieder, sondern macht sichtbar (KLEE, Paul. Schpferische Konfession, em: Das bildnerische Denken, Schriften zur Form- und Gestaltungslehre. Herausgegeben und bearbeitet von Jrg Spiller, 2 edio, Basel/Stuttgart: Schwabe & Co. Verlag, 1964, p. 76). Por isso, no h situaes, por mais banais e piores que sejam, que no se transformem em obras de Arte, sob o toque da essncia da Arte.]

5. Arte e mito O nosso tema Mito e Arte. Mito, como se entende usualmente, narrao acerca dos heris e mistrios da mais longnqua Antiguidade. Outrora, no antanho da nossa civilizao europeu-ocidental, a arte se dizia em latim ars, e em grego tchne. Arte como ars, tchne em concreto indica a habilidade, o poder de quem pode e sabe fazer. Mas essa acepo da Arte no tanto um agir como fazer[footnoteRef:24], mas sim um fazer-se, um perfazer-se no se saber poder[footnoteRef:25]. No Nordeste, p. ex. no interior do Cear, ao se apreciar algum que faz bem o que o seu, na fidelidade e alegria, na aptido do conhecimento perfeito do seu metier, se diz: ele um artista. Artista nesse sentido no tem a conotao esttica[footnoteRef:26], mas sim de algum que pode o que sabe e sabe o que pode e est bem assentado, integrado na finitude, na determinao concreta do seu ser ao executar o seu trabalho. Assim, o que hoje entendemos como habilidade de produo, de um fazer, no modo de manufatura, o que na Arte muitos artistas chamam de tcnica, pode esconder uma acepo do que acima chamamos de existncia ou Dasein na sua densidade, quando o trabalho artesanal se transforma no exerccio de uma existncia e cunha a pessoa como perfil da existncia humana. Aqui surge uma diferena que muitas vezes no possvel ver sem mais nem menos. [24: Fazer significa, aqui, a ao tecnolgica de transformao da realidade na realizao do saber. Do saber como poder de dominao da subjetividade do sujeito-eu-homem, dentro do projeto de asseguramento da certeza, no processamento de tudo como dados de clculo projetivo. ] [25: Poder aqui deve ser entendido no como dominao do projeto da subjetividade, mas sim como jovialidade da potncia do prprio da autoidentidade como finitude.] [26: A compreenso da Arte como a Esttica um modo deficiente da compreenso da essncia da Arte.]

Tentemos a seguir mo do texto de A Origem da obra de Arte de Heidegger citado bem no incio da reflexo, nos acercar do Mito, apenas como que a sugerir uma compreenso do Mito, a partir da compreenso da Arte como existncia artstica. No texto de Heidegger, temos duas obras, a saber: a obra de pintura do par de sapatos da camponesa, de Vicente van Gogh e a obra filosfica, na leitura de Heidegger feita da obra de pintura de van Gogh. Aqui no se trata de um par de sapatos, confeccionado artesanalmente de couro, usado anos a fio pela camponesa, ali jogado num canto e visto sob dois pontos de vista: do ponto de vista do artista plstico van Gogh e do ponto de vista do filsofo Heidegger, de tal modo que tenhamos aqui uma realidade objetiva chamada um par de sapatos e dois aspectos subjetivos, um de um pintor, e outro de um filsofo. Aqui, o que temos simplesmente uma obra de arte, uma coisa nova criada por artista chamado van Gogh. Esse par de sapatos pintado uma coisa toda prpria, nova, mesmo que de fato van Gogh tenha tido diante de si como modelo um par de sapatos semelhante ao da pintura. Pois nesse quadro no se trata de uma reproduo fotogrfica de uma coisa visvel ali na frente. Trata-se de sedimentao, de cristalizao de uma ao criativa que abre todo um mundo, no objetivo, no subjetivo; mas sim, realidade, toda prpria, prenhe da existncia camponesa. Assim, a obra de van Gogh, por ser Arte, no reproduz o visvel, faz visvel. como se a obra de van Gogh fosse uma fenda, atravs da qual se nos descortinasse toda uma paisagem sui generis da existncia camponesa, na dinmica e na vitalidade, na prenhez de uma realidade to real na sua densidade de ser, que aqui perguntar se ela existe de fato ou no, ou se algo objetivo ou subjetivo, ir para um outro mundo, cujo sentido do ser o do horizonte algo j mencionado bem no comeo da reflexo. Chamemos tal paisagem que se descortina em leques de implicaes das realidades existenciais, i. , que trazem obra a existncia, de possibilidade. Mas no possibilidade como um estado de coisa a modo de um espao geomtrico, neutro, escancarado, onde no h nenhuma predeterminao, vazio de deciso, infinito a modo indefinido, mas sim possibilidade no sentido da plenitude da potncia. Potncia ou poder do pode quem pode, no no sentido de um talento recebido de graa, um privilgio de nascena, mas sim do dom de uma conquista, enquanto com-crescido, concreto, bem determinado na deciso de ser, bem assentado no perfazer-se do nascer, crescer e se consumar; poder como realizao do historiar-se, como perfazer-se no destino do prprio no ser da existncia humana. essa possibilidade que est dita com maravilhosa maestria na descrio de Heidegger dos sapatos da camponesa de van Gogh. o que o texto de Heidegger chama de Verlsslichkeit, i. , a confiabilidade Terra, o estar entregue ao abismo insondvel da vitalidade da imensido, profundidade e criatividade de ser, que Antoine de Saint xupry denominou de Terra dos homens. , pois, isso a existncia, o inter-esse. Ou melhor, pr-sena, ou melhor, ainda o Da-sein, a essncia, o ser do Homem: a Vida Humana. Na obra de van Gogh e na captao do vislumbre da paisagem nasciva que ali se torna visvel, descrita por Heidegger, tudo isso vem ao nosso encontro com beleza, fascnio, a nos seduzir para dentro desse abismo da Vida Humana, para a interioridade e profundidade dessa aventura e ventura radical do eclodir do mundo a partir do enraizamento na Terra dos Homens. a facticidade e sua densidade existencial levada perfilao pela e na obra de Arte. Mas se tudo isso que foi dito de modo sem jeito e desengonado de alguma forma o conjunto Arte, o que o Mito? A hiptese dessa presente reflexo a suspeita, expressa na seguinte pergunta: o que, no texto acima mencionado de A Origem da obra de Arte denominado de confiabilidade Terra no seria o mundo do Mito, que no dizer de Heidegger aparece na sua seguinte observao? Diz, pois, Heidegger: Mas, tudo isso talvez, ns possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente cala sapatos. Oxal, que esse simplesmente calar sapatos fosse to simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansao, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa ento sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. No isso a existncia cotidiana dos nossos afazeres e corre-corre? No isso a aparente indeterminao que jamais uma vacuidade vaga, vazia de sentido do ser, mas antes um saber tudo isso sem observar e sem refletir, esse simplesmente em sendo? E to em sendo simplesmente, i. , no uno de todas as coisas, a ponto de se ser hn:pnta? L onde todas as coisas falam, so gente por e para ser pr-sena, claridade-superfcie da obscura profundidade oculta do ser-em simplicidade? Mas, ento, o que foi mostrado como paisagem, vista atravs da acima mencionada fenda, pela qual e na qual vimos o mundo to bem exposto na descrio de Heidegger, o mundo de vigncia da vida extraordinria na sua fascinao e beleza, arrancada pela Arte, do esquecimento, da opacidade do banal cotidiano da rotina claridade existencial? Ou no seria justamente o contrrio, a saber, o que, na mira admirvel da ao criadora artstica, a vitalidade da vigncia existencial da paisagem, implcita e aberta na obra sapatos da camponesa de van Gogh, quer conservar na continncia da sua densidade no precisamente o pudor no seu ocultamento desse ser campons que sabe, pode, conhece, i., conasce com tudo isso sem observar, sem refletir, diramos, sim, sem saber, apenas em sendo limpidamente tosco seco e sbrio na alegria do pouco saber[footnoteRef:27], portanto, contendo no seu bojo, a plenitude do Mito, do Mistrio do ser, i. , a confiabilidade Terra? qual a superfcie da Terra l onde todos os dias, a todo momento, todos os entes a pisam sem mais nem menos, sobre a qual andam de l para c e de c para l que oculta a humilde profundidade abissal do ser humano; da Terra dos Homens? Se tudo isso e apenas isso, a saber, a rotina da cordialidade-superfcie enraizada na conteno de um abismo profundo no seu silenciar imenso, profundo e sereno Mito, ento a compreenso usual do mito como narrativa herica dos fatos nobres, e extraordinrios e maravilhosos dos homens naturais e espontneos na vitalidade inicial antes uma arte menor do que Mito; , antes, um modo deficiente da Arte Maior que vive do fascnio e da beleza da simplicidade inominvel do syn plex, i. , do uno, sem dobras de multiplicaes e detalhes extraordinrios e transcendentais, do muito sentir, muito viver, do muito querer na excelncia de tudo. No momento em que, nesse fascnio e amor simplicidade, a quer mais viva, mais maravilhosa e se deixa seduzir por esse eflvio das vivncias do maravilhar-se, a Arte comece ela talvez a se inclinar e proliferar como Esttica da Subjetividade. A Arte como amor ao Mito no maravilhosa, rara[footnoteRef:28]. [27: Hlderlin (IV, 240): Zu wissen wenig, aber der Freude viel, Ist Sterblichen gegeben.] [28: Raridade, ao mesmo tempo, que significa pouco comum, diz tambm rarefeito. Cfr. Heidegger, Martin, Der Lehrer trifft den Trmer, in: Martin Heidegger Gesamtausgabe, III. Abteilung: Unverffentlichte Abhandlungen, Band 77 Feldweg-Gesprche, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1995, p. 165ss.]

6. O mito, abismo insondvel do mistrio do ser? Dissemos acima, citando Paul Klee, que a obra de Arte no reproduz o visvel, mas faz visvel. Ela como uma fenda. Rasga a rotina da vida usual e nos descortina toda uma paisagem sui generis da existncia, na prenhez da mundidade mais profundamente real. Quando a paisagem do ser assim desvelada como mundo est integrada num per-feito assentamento no fundo abissal do ser da existncia humana, se d o Mito. a entrega confiante do mundo Terra do abismo insondvel do mistrio de ser[footnoteRef:29]. Repetindo com outras palavras o que foi dito: a Arte como o conjunto Arte (artista ao criadora obra de arte) a manifestao da estruturao que se abre como um leque de implicaes e explicaes, e forma uma totalidade sui generis, o mundo, cujo vigor e pulsaes diversificadas da sua vitalidade se fundam no que se denominou inter-esse, ou existncia (Dasein) ou essncia da Arte. Como o artista em todo esse processo? Aqui a essa altura da reflexo, entendemos a pergunta no mais referida ao sujeito homem, mas sim ao ser da existncia, ao Dasein. Portanto: como o Dasein, no abrir-se do vislumbre da nova paisagem-mundo, e na entrega do mundo confiabilidade da Terra? Que fora essa que toca o Dasein e o faz lugar de ecloso, crescimento e consumao do mundo? Usualmente chamamos essa fora de inspirao artstica. E invariavelmente nos vem a pergunta: quem inspira o artista? Uma fora alheia, anterior a ele? Uma divindade, um esprito? Klee fala aqui de criao. Ao explicar porque o artista no reproduz o visvel, mas faz visvel, Klee mostra que aquilo que aparece diante do artista como este ente ou aquele ente so formas terminais da Criao. O artista, ao ver o visvel, o v como uma determinada forma terminal de um fluxo de uma das possibilidades da fora criadora. Assim, a sua mira penetra, atravs de uma determinada forma terminal, no fluxo criativo que a constitui, para nele rastrear aquela possibilidade das possibilidades da inesgotvel vigncia do ser, e assim se expor disposto, aberto ao toque da origem do ser, tornando-se passagem da gnese de outra nova possibilidade do fluxo criativo que ento constitui outra forma terminal, at ento inteiramente desconhecida[footnoteRef:30]. A seguir tentemos examinar o que at agora dissemos da essncia da Arte sob esse termo usado por Klee, a Criao. Pois esta parece ser uma das caractersticas bastante constantes na determinao do que seja propriamente a Arte, a criatividade. [29: O Mundo (Da-sein = ser-no-mundo) se assenta no fundo abissal da existncia humana (Da-sein), atravs do qual se abre e se oculta o abismo insondvel do mistrio do ser. Terra na medida em que o Mundo confiado a partir de e dentro da aberta do ser ( = o Da do Da-sein). Aberta significa clareira, abertura; nesga do cu que as nuvens, abrindo-se por instante, deixam ver, atravs da qual vislumbramos a imensido do cu aberto.] [30: Ao falar do inter-esse da vigncia criativa, tanto na existncia artstica como na obra de arte, diz Klee: Gostaria, pois, de considerar a dimenso do objeto, num sentido novo para si, e com isso, tentar mostrar como o artista chega muitas vezes a uma tal deformao aparentemente arbitrria da forma natural de aparecimento. Alis, ele no d a importncia obrigatria s formas naturais de aparecimento, como o fazem muitos realistas crticos. O artista no se sente to ligado a essas realidades porque no v nessas formas-terminais a essncia do processo natural de Criao. Pois lhe interessam mais as foras formadoras do que as formas-terminais. Ele talvez, sem o querer, exatamente filsofo. Embora no declare, como o fazem os otimistas, que este mundo o melhor de todos os mundos e tambm no queira dizer que este mundo, que nos cerca, ruim a ponto de no se poder tom-lo como exemplo, embora, pois, no diga nada disso, diz para si: O mundo nesta forma prefigurada no o nico de todos os mundos! Assim mira as coisas que a natureza lhe faz perfilar diante dos olhos com um olhar penetrante. Quanto mais profundamente olha, tanto mais facilmente consegue estender os pontos de vista de hoje para ontem. Tanto mais se lhe cunha nele, no lugar de uma figura pronta da natureza, a figurao unicamente essencial da Criao como Gnesis. Ele permite tambm, ento, o pensamento de que a Criao hoje, ainda mal pode estar concluda, e assim estende aquela ao criadora do universo de trs para frente, dando durao Gnesis. E vai mais alm. Permanecendo aqum, se diz: Este mundo tinha aspecto diferente e este mundo h de ter aspecto diferente. Mas, tendendo para alm, pensa: Nas outras estrelas pode-se ter vindo de novo a outras formas bem diferentes, KLEE, Paul, op. cit. p. 92: bersicht und Orientierung auf dem Gebiet der bildnerischen Mittel und ihre rumliche Ordnung. Deixemos suspensa a pergunta: como em tudo isso o artista, enquanto interioridade disposio do nascimento da forma-terminal como obra de arte? ]

Na nossa reflexo, esse quem, esse qu fundante e originante de todo o processo criativo artstico, que culmina na realizao da obra de arte, o prprio homem ele mesmo. Mas no mais considerado como sujeito e agente do ato criativo, mas como existncia, como pr-sena, como Da-sein. Da-sein no nenhum ente dentro do sujeito homem, nem algum momento do seu ser, mas sim modo de ser prprio do homem que no homem considerado como sujeito e agente do ato no pode aparecer. Pois, nessa considerao, o homem, j de antemo, posto, colocado como um ente, cujo modo de ser do objeto ao lado de outros objetos no-humanos. Mas podemos perceber em ns mesmos, em sendo, como esse modo de ser prprio do homem, pois ns mesmos somos Dasein[footnoteRef:31]. [31: Pressupomos como j conhecido esse modo de ser que se encontra exposto detalhada e exaustivamente no que se chama analtica do Dasein no livro clssico da Filosofia Ser e Tempo de Martin Heidegger. Aqui, somente algumas consideraes no que diz respeito ao nosso tema Mito e Arte. Da-sein como modo de ser prprio do homem deve ser entendido com preciso na oscilao da sua ambigidade. Pois, uma vez pode ser entendido como o modo diferencial que distingue o homem dos entes no-humanos. Assim entendido, no jargo filosfico, dizemos que o Dasein uma diferena ntica que distingue o homem de outros entes no-humanos. Nesse caso teramos duas grandes regies do ente como: a regio do ente humano e a regio do ente-no humano. o que no incio pressupomos, quando falamos da classificao do Mito e da Arte como sendo produtos do homem, distinguindo-os de outros entes como produtos da natureza. Embora nessa diviso entre o modo de ser prprio do homem e o modo de ser do ente no-humano haja grande diferena, o sentido do ser que abrange essas duas regies numa generalidade maior e mais vasta o ser num sentido bem determinado. Pois tanto os entes humanos como tambm os entes no-humanos so entes. O sentido do ser aqui comum, geral a ambas as regies. A expresso o modo de ser prprio do homem, entendido como diferencial diante do ente no-humano, debaixo do igual sentido do ser, comum a ambos, diferena ntica. O modo de ser prprio do homem, porm, ao ser entendido como diferena ntica, pode ao mesmo tempo ser entendido tambm como diferena ontolgica. Na diferena ontolgica, a diferena existente no entre este ente e outro, nem entre ente e ente num sentido mais geral, mas entre o ser e ser, ou melhor, entre o sentido do ser e o sentido do ser. Mas de que se trata? Em vez do ser ou sentido do ser, usemos os termos horizonte, ou melhor, mundo, que no incio da nossa reflexo, ao falarmos das diversas acepes dos termos algo, objeto, coisa, troo, trem, ou em alemo etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, e Sache, mencionamos como indicadores do modo de ser caracterstico de cada modo de ser. Nesse sentido, ento, a diferena ontolgica diz respeito diferena existente entre horizonte e horizonte, entre mundo e mundo. S que aqui necessrio no entender o horizonte (ou o mundo) de modo vago e abstrato como se fosse um grupo, uma classe ou uma regio diferente de entes. Pois horizonte ou mundo diz respeito totalidade, de tal modo que no se trata de objetivar a totalidade como ente e coloc-las uma ao lado da outra a modo de conjunto de coisas. O horizonte ou o mundo como cada vez totalidade abrange todos os entes atuais e possveis sob o sentido do ser ali operante, de tal modo que uma vez dentro, no h nada que possa ficar fora e, a partir de dentro no se pode perceber que possvel uma outra totalidade. Surge a pergunta, possvel pensar o mundo o mais geral que abrangesse todos os mundos na sua mundidade? No seria possvel um mundo assim geral, pois o mundo no um gnero, nem espcie, nem isso ou aquilo, mas ... cada vez mundo, cada vez seu, na total autoidentidade de e consigo mesmo, sem se trancar em si, pois a partir de dentro se expande indefinidamente, mas na sua identidade diferencial, se perfaz radicalmente fechado ou oculto a si mesmo, pois no se pode sair do mundo e tomar p numa posio extra ou alm-mundo, para adquirir uma viso panormica geral dos mundos na sua mundidade. Uma tal viso panormica fruto de um bem determinado horizonte, cujo modo de ser caracterizado pelo termo algo (etwas) e mesmo ente (Das Seiende) ou tambm objeto (Objekt), cujo grau de mundidade to baixo que o ente no aparece aqui a no ser como um qu-bloco totalmente abstrato e indeterminado. O modo de ser da mundidade caracteriza o modo de ser ntico do Homem que ambiguamente se pode chamar tambm Da-sein, mas precisamente nesse modo de ser onticamente diferencial que aparece a possibilidade de recolocar a busca, i. , a questo do sentido do ser, na sua diferena ontolgica, pois somente no Homem, agora entendido como Dasein que se abre a compreenso de que se trata quando dizemos ser como horizonte, como mundidade do ente na sua totalidade. Esse modo de ser que ao mesmo tempo ntico e ontolgico, ou melhor, o modo de ser ntico, que na sua diferena ntica, ao se distinguir do ente no-humano, traz nessa diferena identificadora do ser do Homem a revelao, a abertura que mostra a mundidade como a diferena que caracteriza a identidade de cada ente no seu ser, (diferena ontolgica) se diz no Ser e Tempo ser-no-mundo e se refere finitude essencial do Homem como Da-sein. ]

Como seria se nos aproximssemos da compreenso do que seja o Da do Da-sein atravs da dinmica da criao? o que vamos tentar a seguir. Usualmente, quando usamos a palavra criar, pensamos na efetivao, produo, causao ou fabricao. Criar efetivar, produzir, causar ou fabricar. Nesse sentido, a criao artstica seria produo das obras de Arte. Estas, porm, como viemos refletindo, tm um qu todo prprio que as diferencia de outros tipos de produo. Tentamos caracterizar esse qu diferente, dizendo que uma obra de arte como uma fenda, como uma aberta que nos conduz para dentro de toda uma nova paisagem, at ento nunca vista. Ou formulando-se de modo um pouco diferente, uma obra de arte uma fenda, a partir e atravs da qual eclode todo um mundo de estruturaes da possibilidade humana. O que aqui denominamos possibilidade humana o que anteriormente de vrios modos tentamos expor como sendo existncia, ou inter-esse ou Da-sein. Dasein a interioridade do Homem, donde vem luz, vem fala a obra de Arte, que desvela toda uma nova paisagem da possibilidade de ser. Usualmente interpretamos essa interioridade como um ncleo, dentro do homem, como sujeito e agente da ao de produzir a coisa chamada, obra de arte. E perguntamos: e esse sujeito homem, quando faz a ao de produzir o objeto obra de arte, donde tira a inspirao? H algo anterior a esse sujeito-homem que o toca, o move para ao criadora? Com isso voltamos a repetir o que h pouco apresentamos. E se aqui respondermos que h um outro anterior que inspira o sujeito-homem para a produo artstica, a pergunta agora passa a ser aplicada a esse algo ou algum que toca e move o sujeito-homem: quem move aquele que move o sujeito-homem? Desencadeia-se um regresso para o sujeito e agente cada vez mais anterior, a perder-se na repetio interminvel de pergunta. Todo esse regresso s possvel, porque entendemos o Da-sein sempre ainda como sujeito-qu, i. , algo, objeto, coisa chamado homem. Esse impasse no fundo algo parecido com o movimento das rodas de uma locomotiva antiga que ao puxar numa subida os vages pesados no d conta do recado e fica a marcar passo, girando vazio, parado num mesmo lugar. para evitar esse tipo de impasse, no qual sempre de novo ficamos girando vazio no esquema fixo sujeito-ato-objeto, que reconduzimos a estrutura (artista ao criadora obra de arte) ao seu fundo dinmico, ao Da-sein artstico. Esse fundo sem fundo, no sentido de no haver nada de algo, nada de objeto, nada de coisa, portanto nada de sujeito em si, anterior. O que se d aqui no Da-sein apenas o ser do Da[footnoteRef:32]. Para de algum modo ver como esse ponto nevrlgico do carter artstico da estrutura (artista ao criadora obra de arte), usemos um conceito tirado da doutrina da Criao do universo na mundividncia medieval crist. O conceito aseidade e se refere anterioridade de todas as coisas criadas. Como a aseidade exclusivamente s atribuda ao Ente Supremo, Deus, corremos o risco de fazer uso inteiramente inadequado desse conceito medieval, se o usarmos para se referir ao ser do Homem, que na mundividncia medieval denominado de ente finito. O nosso interesse aqui, porm, apenas o de tentar mo do conceito da aseidade[footnoteRef:33] ilustrar de que se trata, quando dizemos que o ser do Homem Dasein, e colocamos o Da-sein como o ponto de salto do surgimento do mundo. Aseidade vem da expresso latina a se. Significa: Deus na sua essncia, no que lhe prprio, a se, i. , a partir de si, em si, para e por si[footnoteRef:34]. A expresso a se foi criada para evitar o uso da expresso causa de si (causa sui). Pois causa sempre nos remete a uma causa superior que se torna causa do efeito que produz. Causa pressupe o esquema sujeito-ato-objeto. A se porm no supe nada, nem a si, nem o ato em si, nem o objeto produzido. ento nada? nada de tudo isso que dizemos assim predicando disso e daquilo, que , seja o que for[footnoteRef:35]. Trata-se, pois, de no determinar a partir de fora o que . Ento se trata de que? deixar ser a coisa ela mesma no seu ser. O modo de ser do a se no portanto causa sui? No. Mas ento o que ? No um qu, mas sim simplesmente ser, i. , a se, a partir de si, em si, para e por ser, a soltura de si, liberdade de e em si, a partir de si por e para o deixar-se ser. O deixar-se ser na liberdade, a soltura de si, a se deixar ser todas as coisas nelas mesmas, tambm na soltura de si, a se. Mas deixar-ser j no supe que algo seja, se no em ato, mas sim, ao menos, em potncia? possvel deixar ser nada, sem cair totalmente no vazio do nihilismo, nada nadificado, um vcuo, to vcuo que nem sequer se pode dizer que vazio? No entanto, esse nihil o Da do Dasein, a essncia, i. , o ser do Homem na sua interioridade, a mais prpria, mais ntima do que ele a si mesmo, a possibilidade de ser ab-soluto na concreo do seu ser. essa ab-soluta concreo, o sentido prprio do que se chama finitude humana[footnoteRef:36]. assim que alma do Homem, a psych, que traduziramos mais adequadamente como Dasein, todas as coisas[footnoteRef:37]. O in, a interioridade do Homem enquanto Da-sein esse nada que , na medida em que deixa ser o abismo de imensido, profundidade e originariedade fontal da potncia de ser ser na jovialidade gratuita da doao de si, na liberdade de ser. Essa liberdade de ser aparece sempre nova e de novo contrada, de-finida como simplicidade da finitude[footnoteRef:38] no ser, i. , no uno, cada vez seu, cada vez novo no surgir, crescer e consumar-se do mundo. nesse sentido que o Da do Da-sein passagem, no passagem de uma margem outra[footnoteRef:39], mas o entre-meio de cada coisa, que a deixa-ser, que a deixa eclodir como mundo. Da-sein a merc de, afim de, a afinao gratuidade livre do abrir-se que no seu fundo a recepo gratuita livre do ocultamento silencioso, humilde e contida da insondvel potncia de ser. Potncia de ser que somente no instante do abrir-se do mundo na sua finitude. Esse desvelar-se no e como ocultamento do estar-em casa em toda parte, no resguardo do aconchego do que sempre, a cada instante, como presena modesta, sem nome, annima do ocultamento, se chama em grego antigo lthe (a-ltheia), e na descrio do quadro de van Gogh acima mencionado se chama Terra, e a ptria, a matriz do mito, que em grego-se diz: mythos[footnoteRef:40], cuja raiz significa toar, soar. Assim sendo, mythos no poderia ser a ressonncia do assentamento do mundo na confiabilidade da Terra, que aparece, digamos onticamente, nos afazeres e nas vicissitudes dos homens, de imediato, na maioria dos casos como annima e silenciosa ocorrncia de todos os dias? Seria o realismo bem seguro da serenidade do fundo de todas as coisas? No seria, pois, a positividade da gratido e gratuidade de ser, sob cuja tenaz e resistente pele, se oculta a finura e a sensibilidade da tnue vibrao de uma dynamis que irriga todas as coisas na sua raiz, protege e conserva o sopro de Vida do Uni-verso? [32: Da em alemo significa abertura prvia tanto espacial (ali, ai) como temporal (pr, anterior). Significa tambm j que, por que, em sendo assim.] [33: Usar o termo aseidade que s atribudo a Deus para caracterizar a finitude parece ser absurdo, para no dizer uma ignorantia elenchi. Aqui a pressuposio a seguinte: o ponto nevrlgico da identificao no modo de ser a se, do ente finito e ente Infinito, reside no fundo na doutrina da mundividncia crist denominada Filiao divina e Mistrio da Encarnao. O pretenso pantesmo que poderia surgir da atribuio da aseidade ao ente finito, no fundo um problema da colocao mal feita e defasada da questo do sentido do ser. que colocamos Deus e criatura numa igualdade. Igualdade no idntica com a mesmidade. O termo mesmo dessa mesmidade no est sendo usado como igual ( = ), que uma categoria adequada para a quantidade nas coisas fsicas. Quando o sentido do ser horizonte de e para o ente qualitativamente mais rico, profundo e diferenciado do que um objeto fsico, portanto mais e diferente do que o ente do horizonte algo (etwas) e objeto (Objekt), o termo igualdade no serve mais. Usamos, ento, de preferncia o termo identidade para determinar o relacionamento entre os entes no tipo do horizonte Gegenstand, Ding, Sache e a fortiori Pessoa (Person), que no deve ser entendido como Sujeito (Subjekt).] [34: I. , ab-soluto, i. , solto, inteiramente espontneo na sua identidade: jovialidade da graa. ] [35: O que segue no est mais falando da aseidade como ela atribuda a Deus infinito da doutrina crist. Aqui est se falando somente do Dasein, do ser da essncia do Homem, na tentativa de ilustr-lo mo da aseidade, mesmo no seu uso inadequado. O a se, i. , a partir de si, em si, para e por si como se a gente quisesse dizer: o Da do Da-sein a gratuita liberdade ab-soluta da pura recepo, na qual o doador e o receptor so simultnea e mutuamente lmpido nada, i. , nada a no ser pura dinmica de ser, no dar e receber. A saber, pura dinmica de puro receber no puro dar e puro dar no puro receber, de tal modo que o dar recebido e o receber recebido na mtua doao de ser a no ser apenas o puro deixar ser. Esse aberto o lugar do salto originrio e originante da gnese do mundo novo. Essa mtua implicao no nada ser a no ser como a lmpida dis-posio de doao na recepo da possibilidade do abismo inesgotvel de ser a essncia do Homem, ] [36: Finitude vem do finito. Finito oposto do infinito. Finito usualmente compreendido como privao do infinito. O que o infinito em plenitude o finito em parte. Finito carece da infinitude. No cristianismo a palavra finitude cai bem criatura. Pois os entes na sua criaturidade so finitos, i. , so criados por um ente supremo, cujo ser o prprio ser, de tal modo que fora dele no h ser propriamente dito, portanto, por um ser supremo denominado Deus, cujo ser absoluto e infinito. No fundo a criaturidade nada, ao passo que a increabilidade e increaturidade tudo. Essa doutrina geralmente nos foi transmitida, j um tanto defasada e reduzida a uma compreenso de pouca preciso, na qual a finitude acaba virando sinnimo de privao. Mas, como seria essa doutrina da Criao se levssemos a srio a doutrina, na qual ser criatura no significa ser privado do Ser Infinito, mas sim participar Dele como filho? No assim que o filho de drago drago ? Filhotinho de drago, quando encontra na estrada solitria um tigre adulto que feroz avana sobre ele, abre instintivamente a pequena guela e lana-se sobre o inimigo, emitindo o chiado-drago. Pois ser pequeno ou grande, finito ou infinito, no lhe critrio para a sua identidade. Ele, o filhotinho, no seu ser-drago o mesmo com o pai drago...] [37: Cf. ... a alma , num determinado sentido, a totalidade dos seres (ARISTTELES, Da Alma, (De anima), introduo, traduo e notas por Carlos Humberto Gomes, Lisboa: Edies 70, 2001; cf. ARISTTELES, Peri Psych, 431b 20).] [38: O finito, a finitude nesse sentido no privao, carncia do infinito. antes positividade do infinito encarnado como esta obra aqui concreta na perfilao optimal da sua vigncia assumida.] [39: Portanto, no meta-fsica.] [40: Mythos, m- toar, soar.]

Isto significa: a opacidade da nossa existncia cotidiana, na qual se d a fenda da criatividade artstica, no asfixia, decadncia, ou modus deficiente da beleza, da originariedade ou da vivncia do carisma criativa da Arte. , pois, tnue superfcie da imensido, profundidade e simplicidade da jazida bem assentada no abismo inesgotvel da presena do ser, a se desvelar e se ocultar, atravs da aberta e na clareira do Da-sein, onde toda e qualquer estruturao do ser como mundo enraizada e entregue insondvel confiabilidade do mistrio[footnoteRef:41] de ser, i. , do em-casa da morada abissal da possibilidade inesgotvel de ser. [41: Mistrio em alemo se diz Ge-heimnis. Ge indica densidade, ajuntamento. Heim, o lar, o ser em casa. ]

Concluso a modo de uma retrataoAo terminar essa srie de afirmaes mal formuladas, sem nada dizer, quais fascas apenas a piscar de algumas intuies mal elaboradas, para de alguma forma no deixar nas pessoas que tiverem a pacincia de ler um bl bl do presente discurso, o mau gosto de uma comida semicru, destemperada e mal ajeitada, gostaria apenas de citar um texto do pensador oriental do caminho do ser: O texto do pensador chins Chuang-Tzu, na verso adaptada de Thomas Merton[footnoteRef:42] e se intitula: Onde est o Tao?: [42: MERTON, Tomas. A via de Chuang Tzu. 4 edio, Petrpolis: Vozes, 1984, p. 158-160. Chuang-Tzu significa Mestre Chuang. Seu nome Chuang Chou. Pouco se sabe da sua vida. um dos maiores pensadores chineses do Taosmo, do sculo III/IV antes de Cristo. Natural de Sung, viveu pouco depois de Mng-Tzu. Seus escritos esto reunidos no livro intitulado Chuang-Tzu, nei, wai pien (Escritas internas e externas de Chuang-Tzu). A Tradio atribui a autoria de nei pien a Chuang-Tzu e de wai-pien a seus discpulos. Cf. FEIFFEL, Eugen. Geschichte der chinesischen Literatur. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1959. p. 47.]

Mestre Tung Kwo perguntou a Chuang: Mostre-me onde pode o Tao ser encontrado. Respondeu Chuang Tzu: No h lugar onde ele no possa ser encontrado. O primeiro insistiu: Mostre-me, pelo menos, algum lugar precioso onde o Tao possa ser encontrado. Est na formiga, disse Chuang. Est ele em algum dos seres inferiores? Est na vegetao do pntano. Pode voc prosseguir na escala das coisas? Est no pedao de taco. E onde mais? Est no excremento. Com isto, Tung Kwo nada mais podia dizer.Mas Chuang continuou: Nenhuma de suas perguntas pertinente. So como perguntas de fiscais no mercado, controlando o peso dos porcos, espetando-os nas suas partes mais tenras. Por que procurar o Tao examinando toda escala do ser, como se o que chamssemos mnimo possusse quantidade inferior do Tao? O Tao grande em tudo, completo em tudo, universal em tudo, integral em tudo. Estes trs aspectos so distintos, mas a Realidade o Uno. Portanto, vem comigo ao palcio do Nenhures, onde todas as muitas coisas so uma s: L, finalmente, poderamos falar do que no tem limites nem fim. Vem comigo terra do No-Agir: O que diremos l que o Tao a simplicidade, a paz, a indiferena, a pureza, a harmonia e a tranqilidade? Todos esses nomes deixam-me indiferente, pois suas distines desapareceram. L minha vontade no tem alvo. Se no est em parte nenhuma, como me aperceberei dela? Se ela vai e volta, no sei onde repousa. Se vagueia, ora aqui, ora ali, no sei onde terminar. A mente permanece instvel no grande vcuo. Aqui, o saber mais elevado ilimitado. O que concede s coisas sua razo de ser, no pode limitar-se pelas coisas. Assim, quando falamos em limites, ficamos presos s coisas delimitadas. O limite do ilimitado chama-se plenitude. O ilimitado do limitado chama-se vazio. O Tao a fonte de ambos. Mas no , em si, nem a plenitude, nem o vazio. O Tao produz tanto a renovao quanto o desgaste, mas no nem um, nem outro. O Tao congrega e destroi. Mas no nem a Totalidade, nem o Vcuo.

Anotao II:Fenmeno, fenomenologia e seu lgos1. Fenmeno e sua implicao Usualmente entendemos por fenmeno algo ou algum, cujo ser ou atuao aparece num aspecto extraordinrio. A esse aspecto, gostamos de chamar de fantstico[footnoteRef:43]. Nas palavras fenmeno e fantstico aparece o verbo grego phainsthai, que significa aparecer. Aparecer mostrar-se, vir luz. [43: E interessante talvez observar que, para ns hoje, o fenmeno entendido como luz da ribalta, no esplendor de um show ou na publicidade!]

1.1. Fenmeno comum representar o aparecer como movimento de algo que estava escondido, atrs ou dentro de uma outra coisa, dela sair e vir para frente ou para fora.O aparecer do fenmeno, no entanto, no diz respeito ao relacionamento entre duas coisas: entre a fachada e o que se oculta atrs dela. Refere-se antes autoapresentao ou autopresentao ou intensificao de uma presena. Nesse sentido algo como luzir, incandescer. tomar corpo, crescer no sentido da expresso cresa e aparea. , pois, surgir, crescer e consumar-se, vindo a si, tornando-se presena. Para podermos ver melhor de que se trata quando falamos do fenmeno como autopresena ou intensificao de uma presena, examinemos brevemente o que Ser e Tempo nos diz da expresso grega phainmenon:A expresso grega phainmenon, qual remonta o termo fenmeno, vem do verbo phanesthai, que significa: mostrar-se; assim, phainmenon quer dizer: o que se mostra, o se mostrando, o aberto; o prprio phanesthai uma forma medial do phano, trazer ao dia, colocar s claras; phano pertence raiz pha- como phs, a luz, a claridade, a saber, isto, no qual algo pode se abrir, tornar-se nele mesmo visvel. Portanto, devemos constatar como a significao da expresso fenmeno: o em se mostrando a ele mesmo, o aberto. Os phainmena, fenmenos so ento a totalidade disso que jaz ao dia ou pode ser trazido luz, o que os gregos entrementes identificavam simplesmente com ta nta (o ente)[footnoteRef:44]. [44: HEIDEGGER, Martin. Sein und Zeit. 8 ed., Tbingen: Max Niemeyer, 1957, p. 28.]

O verbo do qual deriva a expresso fenmeno medial. Como em portugus no h a forma medial; phainmenon traduzido ou no sentido passivo ou reflexivo: o mostrado, ou o que se mostra ou o em se mostrando. O modo de ser da ao do verbo medial no nem ativo nem passivo. No seria, porm, um meio termo, uma mistura meio a meio, neutra. Seria