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COLEÇÃO BIOS B O O K S

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Page 1: COLEÇÃO BIOS - CHIADO BOOKS · Portimão etc. Um litoral com praias de águas cristalinas, tranquilas ou agitadas, turquesas ou verdes, temperaturas amenas, algumas com grandes

COLEÇÃO

BIOS

B O O K S

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Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a Chiado Books procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.

Portugal | Brasil | Angola | Cabo VerdeEdifício Chiado – Rua de Cascais, 57, Alcântara – 1300-260 Lisboa, Portugal

Conjunto Nacional, cj. 205 e 206, Avenida Paulista 2073, Edifício Horsa 1, CEP 01311-300 São Paulo, Brasil

Espanha | América LatinaPaseo de la Castellana, 95, planta 16 – 28046 MadridPasseig de Gràcia, 12, 1.ª planta – 08007 Barcelona

Brickell Avenue 1221, Suite 900 – Miami 33131 Florida United States of America

U.K | U.S.A | Irlanda 180 Picaddilly, London – W1J 9HF

Brickell Avenue 1221, Suite 900 – Miami 33131 Florida United States of America630 Fifth Avenue – New York, NY 10111 – USA

ItáliaVia Sistina 121 – 00187 Roma

www.chiadobooks.com

© 2018, Li Azevedo e Chiado BooksE-mail: [email protected]

Título: En BlancEditor: Camila Figueiredo

Composição gráfica: Francisca SilvaCapa: Francisca SilvaRevisão: Li Azevedo

Impressão e acabamento: Chiado

P r i n t

1.ª edição: Maio, 2018ISBN: 978-989-52-2860-7

Depósito Legal n.º 438695/18

B O O K S

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Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

B O O K S

Li Azevedo

en BLAnc

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AGRADECIMENTOS

Quando escrevi Au Noir, o livro que antecede En Blanc, consegui terminá-lo em quinze dias. Levei bem mais tempo na construção de En Blanc, e um número quase in-findável de dias para aceitar e compreender que Au Noir é composto de urgências imediatas, enquanto En Blanc só poderia ser mesmo escrito no tempo e a tempo certo, sem qualquer inexatidão quanto ao ponteiro do relógio que nos rege a vida.

E assim foi, mas não teria sido, caso esse trabalho não fosse construído a várias mãos e braços estendidos para aju-dar-me, apoiar-me, levantar-me, abraçar-me.

Por isso o meu primeiro agradecimento aos meus lei-tores e leitoras, os quais principalmente a partir dos feedba-cks de Au Noir encorajaram-me a quebrar minhas algemas também agora expostas em En Blanc.

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Minha eterna gratidão à minha família e aos meus amigos, em especial à Sônia Alves, minha amiga-mãe-irmã de infância e meu porto seguro na Europa, e à Lu Albernaz, cúmplice das minhas viagens, físicas ou psicológicas.

À Andréia Septímio e Reyla Batalha, minhas “revisa-migas” (amigas e revisoras), minha incondicional admira-ção pelo trabalho que fizeram e fazem na lapidação não só dos meus escritos, mas também dos meus sentimentos.

Ao Hospital Araújo Jorge, em Goiânia/Goiás, nas pes-soas dos Oncologistas, Dr. Gabriel e Dr. Cláudio, meu mais profundo e sincero agradecimento por terem aceitado nos acompanhar em campo de batalha, ainda que a guerra já pa-recesse perdida.

Ao Dr. João Batista de Moraes, meu comovido obri-gada em razão de seu falecimento exatamente quando eu consegui dar voz ao que se encontrava em silêncio mortal.

À família Beer, muito obrigada pela paciência, amiza-de, crescimento e consideração.

À Chiado Editora, na pessoa da Camila Figueiredo, obri-gada mais uma vez por apostar nas “viagens” dessa autora.

E por fim, à Deus, à vida, e à alguém que se ocupa das minhas idas e vindas a tempo integral, a minha mais imprescindível e insuficiente homenagem por me permitir vivê-las. E eu as vivo, por isso estou viva, e nesse momento, agradecidamente, “En Blanc”!

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Ficção, mas qualquer semelhança com a realidade nunca foi, não é, e jamais será mera coincidência.

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“Por que eu gosto tanto de viajar?

Porque eu volto a ser aquela lá do início do na-moro, leve, apaixonada, vivaz, feliz... Aquela que você lamenta não ter conhecido antes...

Pois é.

As minhas fugas, quero dizer, viagens, são sem-pre planejadas para ME procurar. E eu ME en-contro, e ME namoro em minha melhor fase!”

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Li Azevedo

2016

- Caramba, Fernanda! Que lugar lindo! Quanta afron-ta aos meros trabalhadores mortais! – conclui, extasiada, ao passo que me encantava com os vários e luxuosos iates an-corados à Marina de Vilamoura, na região do Algarve, em Portugal.

O Algarve, ah o Algarve...O Algarve é um lugar paradisíaco, ao sul de Portugal,

onde, sobretudo no verão, estação que na Europa começa em junho e termina em setembro, é um dos lugares mais pro-curados por turistas, sejam britânicos, franceses, espanhóis, brasileiros, ou demais nacionalidades, para passarem férias.

Uma região de tirar o fôlego! Um pedaço do paraíso na terra que compreende algumas das cidades mais lindas de Portugal, tais como Faro, Lagos, Albufeira, Vilamoura, Portimão etc. Um litoral com praias de águas cristalinas, tranquilas ou agitadas, turquesas ou verdes, temperaturas amenas, algumas com grandes faixas de areia, outras com rochas, grutas e falésias que parecem terem sido esculpidas no auge do romantismo da natureza.

Uma vida noturna também capaz de causar o mesmo efeito: tirar o fôlego.

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En Blanc

E sim, esse foi o sonho de viagem que eu escolhi rea-lizar no verão do ano de 2016.

Então, na companhia de alguns amigos que haviam alugado um apartamento barato, mas confortável na cidade de Albufeira, programei dez dias para curtir o tão conhecido “segredo mais famoso da Europa”!

A grande maioria desses amigos eram casais. Fernan-da e eu éramos as únicas solteiras da turma, razão pela qual, com programações diferentes, eles sempre terminavam as noites em restaurantes, e nós duas, bom, nós duas...

E na última noite em que passaríamos no litoral algar-vio, decidimos conhecer a tão famosa noite de Vilamoura.

Sim, Vilamoura. Escrito mesmo assim, junto, e uma afronta ao olhar extasiado dos menos afortunados, diga-se mais uma vez.

As cidades eram sempre próximas umas das outras, e como o acesso era rápido, seguro e pouco dispendioso, deci-dimos dividir um táxi. O problema foi descer do veículo, já em nosso destino final.

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VILAMOURA

Eu que venero a liberdade das mulheres europeias no que diz respeito à alforria conquistada há tempos, especialmen-te quanto aos ditames da sociedade e regras da moda, que sem-pre as admirei por prezarem bem mais pelo conforto que pelas “possíveis recompensas” dos pés ao tentarem, a qualquer cus-to, se equilibrarem em saltos altíssimos, como no Brasil, agora sorria, de nervoso, ao passo que me culpava por não ter dado ouvidos à Fernanda, que antes de sairmos de casa disse:

- Vilamoura é diferente – divertia-se.Não que eu fosse feia, mas em um universo onde as

mulheres desfilavam altivas em seus saltos agulhas e seus vestidos brilhosos e colantes, alguém com um vestido sim-ples e uma sandália que não lhe acrescentava qualquer cen-tímetro à pouca altura, cabelos lavados pós-praia e maquia-gem discreta, provavelmente não seria sequer notada.

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En Blanc

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- Bom que eu posso beber, dançar, fazer o que eu quiser sem que ninguém me aponte, não é mesmo, Fê? – conclui, enquanto passeávamos, deslumbradas, pelas ruas cheias de turistas em Vilamoura.

Era mês de agosto.Auge do verão.Sempre em volta da Marina da cidade, passamos em

frente ao Cassino, lojas de roupas de praia, de souvenirs, hotéis luxuosíssimos, o bar do Figo - famoso jogador da se-leção portuguesa e o 19h Hole, um pub tipicamente britâni-co, local onde havia karaokê, um ambiente muito animado e muita gente bonita.

Claro, entramos.E esse também sempre foi um dos motivos pelos quais

há muito tempo sou encantada pela Europa. Éramos duas mulheres, sozinhas, brasileiras, bonitas, embora eu pareces-se, naquele momento, uma camponesa em meio à senhoras e senhores feudais, mas ainda assim, podíamos entrar em um bar nessas condições, e pedir uma bebida alcóolica, mesmo no balcão, sem qualquer desconforto ou assédio.

Pelo menos não assédios constrangedores.Foi o que fizemos, já que não encontramos mesas dis-

poníveis.Um pouco mais tarde, já com a coragem de aproxi-

madamente três cervejas (Leffe Brune), a minha preferida, decidi, mesmo contra a vontade de Fernanda, colocar-me na lista do karaokê.

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- Você vai pagar mico!- E é agora! Olhe o tamanho do gorila! – respondi, ao

me dirigir ao palco porque já era chamada.Fernanda fingiu que sairia do bar, mas voltou quando

todos começaram a cantar comigo:- “Nossa, nossa, assim você me mata! Ai se eu te pego,

Ai, ai, se eu te pego!”Então ela pediu mais duas cervejas.Uma seria para ela e outra para mim.Ambas precisaríamos quando eu terminasse de expor

meu lado “cantandoido”, como ela dizia.- Foi você que escolheu essa música? – perguntou-me

assim que me juntei a ela, depois dos aplausos recebidos.- Não. Quando eu disse que sou brasileira não aceita-

ram que eu cantasse outra. Ah, e foi bacana, não foi? – res-pondi, com a inevitável satisfação dos meus dias turísticos.

E assim seguimos madrugada adentro, aliás, em épocas de verão no algarve, bem como em toda a Europa, o deus Sol, tão aguardado e venerado nesse período, permite que os dias sejam bem mais longos, e se recolhe somente a partir das vin-te e uma horas ou até mais tarde. Como bônus, as madruga-das se estendem ao máximo, as esplanadas, calçadas de cafés e restaurantes ficam repletas de mesas, com turistas falantes, expansivos, e que não raro, apenas voltam aos hotéis ou outras hospedagens após testemunharem um espetáculo lindo, recor-rente no Brasil, todavia, bem mais aguardado por lá por sua inabitualidade: o nascer do rei, o rei sol.

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En Blanc

Bem informadas de que a cidade não dorme, um pou-co mais tarde decidimos deixar o 19th Hole, e continuar a desfrutar a noite de Vilamoura em outros lugares. Mas assim que saímos do local, ainda na Marina de Vilamoura, meus olhos pararam, encantados, extasiados, em um lugar no qual dois artistas de rua, cada um com uma tela, exalavam talento no que faziam.

Eram caricaturista e autorretratista.Trabalhavam um ao lado do outro.Enquanto em um banco improvisado um cliente pousa-

va para o caricaturista, outros já o aguardavam em fila. Noutro compasso o autorretratista, extremamente concentrado, pince-lava os traços de uma menina, loira, olhos pequenos e sorriso enigmático, tal qual como constava da fotografia ao lado de sua tela. E se comunicavam em uma língua que eu desconhecia, razão pela qual me aproximei do autorretratista.

- Do you like? – perguntou ele, já ciente da resposta.- Bien Sûr – respondi, automaticamente, em francês,

idioma que aprendi devido ao tempo que passei em Bruxelas. - Uma francesa? – continuou o autorretratista, agora

também em francês.Sorri.- Não, uma francesa não sorri assim, com os olhos –

ponderou o artista.- Brésilliene! Enchanté! – brinquei.- Uma brasileira que fala francês? Que curioso! Queres

te sentar ao lado de um artista que não é brasileiro, infelizmen-

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te, mas acho que vais te sentir bem próximo ao teu País?- Por que não? – respondi, ao passo que ele puxava um

banco, igualmente improvisado para mais perto dele.- Nós somos sérvios – prosseguiu o artista, já respon-

dendo à minha próxima pergunta. - Somos considerados os “brasileiros da Europa”. Gostamos de gente, gostamos de música, gostamos de arte, e sorrimos. Sorrimos com os olhos...Ah, e gostamos de bebidas também. A propósito, to-mas uma dose de macieira comigo? – perguntou o artista. – Mas em um copo sujo – acrescentou, já tomando posse de uma garrafa da bebida oferecida.

- Claro que sim! – respondi, já virando a primeira dose de macieira.

- E tu? O que fazes no Brasil? – perguntou-me, curioso.- Acho que preciso mais uma dose para te contar –

retruquei.Conversamos sobre o que era possível falar do meu

trabalho no Brasil, sobre minhas sempre impulsivas férias na Europa, sobre o governo situacional, que àquele momen-to passava por uma séria crise política, na qual a Presidente do Brasil enfrentava um provável impeachment, sobre cor-rupção, sobre livros, sobre arte, sobre futebol.

Menos sobre relacionamentos amorosos.- Espere-me aqui só um pouco. Vou lhe mostrar uma

coisa que sei que vais gostar – disse-me o artista, enquanto se dirigia a um container onde guardava suas telas, pincéis, etc.

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En Blanc

- Olhe aqui - entregou-me um folder retirado do con-tainer – Eu já pintei Ayrton Senna e Adriane Galisteu.

- Nossa, que bacana! – exclamei, reverenciando-o.– Aleksander ....Muito prazer – enfim se apresentou o

artista, e concluiu:- Formavam um lindo casal. Pareciam apaixonados.

Foi o que senti quando os pintei...E enquanto eu ainda olhava, silenciosa, o autorretrato

tão perfeitamente pintado por Aleksander, ele continuou:- É que o que fazemos não é apenas pintar, desenhar,

sabes? Nós sentimos, entendes? Sentimos a alma do que re-tratamos, sobretudo através dos olhos...- ponderou Aleksan-der, com um longo suspiro.

– E, por falar em olhos, o que é que tentas esconder por trás desse olhar tão enigmático? Nesse momento eu gas-taria todas as minhas tintas e não conseguiria transportá-lo para a tela...Parece mágoa, parece amor mal resolvido, pare-ce busca de alguma coisa que nem sabes onde encontrar...

Engoli em seco e procurei pela garrafa de macieira, mas ela já estava vazia.

- Tenho que ir embora...Acho que já bebi demais por hoje – disse-lhe, desvencilhando-me como podia da pergun-ta daquele artista bruxo.

Mas ele insistiu.- Só que eu posso tentar. Por favor, senta-te à minha

frente.- Não, não, obrigada.

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- Eu não vou cobrar. Eu quero fazer isso. Por favor! Mas vou fazer caricatura porque você personifica o exage-ro! – concluiu. – Em tudo! – acrescentou um tanto quanto constrangido quando se deparou com meu olhar inquisitório sobre esse tal “exagero”.

Foi impossível não me lembrar da minha mãe quando diz:

-“ Mas é exagerada, essa menina”!- Seja gentil, cabeça dura! Deixe que ele faça a carica-

tura – interveio Fê, com a torcida de várias pessoas que já se colocavam à espera daquele trabalho.

Olhei em volta, a fila que as pessoas enfrentavam para passarem por aquele momento, deixei-me convencer, e me sentei, ereta, em um pequeno banco, bem à frente do artista.

Todos se emudeceram, ao passo que o artista acabava de colocar no cavalete mais uma tela “En Blanc”!

De repente senti medo.E se Aleksander realmente conseguisse ler meus olhos?

Se ele conseguisse saber o que ia lá dentro, ainda que eu tivesse realmente vários momentos de sorrisos verdadeiros?

Mas fiz o que sempre faço quando sinto medo: desa-fiei-o, e fixei-lhe o olhar.

Ele fez o mesmo.Silêncio. Olhares. Mãos ágeis. Respiração ofegante.

Contração de mandíbula. Riscos no ar, na tela. Mais silên-cio, mais olhares, e após alguns minutos:

- Estás pronta?

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En Blanc

- Sim.- Não vais ficar brava comigo?- Por que eu ficaria?- Prometa-me que não ficarás!- Não prometo o que eu nem sei se tenho condição de

cumprir!- Pois esta caricatura é uma promessa.- Puta que pariu! Mostre-me logo isso! – retruquei,

impaciente.- Eu não fiz tua caricatura desse momento. Fi-la da

maneira como meus olhos a veem!- Fê, me segura senão...Aleksander sentiu o perigo e desvirou rapidamente o

cavalete com a minha tela.Sorri, e consegui respirar, profundamente.Sorri naquele exato momento, e na caricatura minu-

ciosamente desenhada por Aleksander. Trazia uma boca car-nuda, testa sobressalente, um “sorrisinho de canto”, acom-panhado por olhos grandes, vivos, mas enigmáticos.

- E por que esse sorrisinho aí? – perguntei-lhe visi-velmente agradecida. Tinha gostado exageradamente do que ele tinha feito.

- É o sorriso de quem sabe que encontrou o que pro-curava.

. No fundo, desejei muito que aquele artista bruxo realmente tivesse razão.

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2017

A VÁLVULA DE ESCAPE

Eu amo o Brasil, eu amo o meu trabalho, e eu amo muito mais a minha família e meus amigos. Mas infelizmen-te eu vivo em um País no qual esse amor não é correspon-dido a contento em razão dos inúmeros problemas sociais, frutos principalmente de um câncer chamado corrupção, tão antigo quanto endêmico e letal.

E enquanto esse filme se repete a todo o tempo, inde-pendentemente de trocas de governos, legítimos ou não, nós brasileiros, embora “donos” de um dos mais belos e ricos países do mundo, morremos à míngua, asfixiados pela falta de segurança, pela fome, pela ignorância, e a cova para nos-sa esperança também já nos espera.

Foi exatamente nesse ponto que a Europa entrou em minha vida.

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Não, eu não gostaria de viver em outro país senão o Brasil, mas eu gostaria muito de viver em um país no qual, por exemplo, ricos, pobres, negros, homossexuais, mulhe-res e portadores de necessidade especiais compartilhassem o mesmo vagão de metrô, sem que isso fosse considerado anormal.

Como eu sei que ainda percorreremos várias estações antes que meu País realmente entre nos trilhos certos, para continuar nesse relacionamento doentio, nessa “síndrome de Estocolmo” eu encontrei a minha válvula de escape: viajar, sobretudo para lugares nos quais eu respire sem a obrigação de carregar nas costas um balão de oxigênio.

Daí são vários meses de trabalho duro, inúmeros fe-riados não aproveitados junto à família e amigos para ir ali, a alguns milhares de quilômetros do Brasil, só para passar, a pé, em uma faixa de pedestre sem ter que apontar o dedo do meio ao motorista que não para, e ser mais mal educada que ele, só para ver pessoas com livros nas mãos em qualquer parte da cidade, nas praças, nos parques, nos ônibus, trens, só para pagar 30 euros, de avião, para ir de um país a outro, só para me distanciar um pouco, ainda que por pouco tempo, de números tais como “uma mulher violentada a cada onze minutos” - segundo estatística do Fórum Brasileiro de Segu-rança Pública -, dentre outros, que para mim são mais que estatísticas, é oxigênio jogado fora do cilindro.

E quando ele está vazio, eu tenho mesmo que viajar para reabastecê-lo.

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Não, a Europa não é um paraíso. Também tem inú-meros problemas sociais, tais como desemprego, mendigos, xenofobia em alguns lugares, homofobia ainda em outros, mas, por enquanto e enquanto um político brasileiro, nos moldes como são, na maioria das vezes os nossos, for im-pedido de ter acesso e meter a mão ao quinhão que não lhe compete por lá, será possível caminhar pela Europa, a pé, com uma mochila nas costas, e não com um cilindro de oxi-gênio, vazio, exatamente como já se encontrava o meu um ano depois da minha viagem ao Algarve.

E eu precisava urgentemente respirar.Para 2017, escolhi buscar oxigênio no verão, no litoral

do Sul da França, em Côte d’Azur, também conhecida como “Riviera Francesa”.

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Desta feita adentrei o continente europeu por Lisboa, lugar onde o meu coração resolveu pousar, mas mesmo as-sim segui meus planos de viagem.

Depois de alguns intensos dias em Lisboa, fui à Bruxe-las, local onde Fernanda residia. Eu ficaria hospedada em seu apartamento enquanto por lá estivesse. Como Fernanda sempre fora a fiel companheira das minhas fugas e tínhamos desejos em comum, como por exemplo conhecer Saint-Tropez, decidi-mos nos encontrar na cidade de Brigitte Bardot posteriormente, porque suas férias ainda não haviam começado.

A princípio, eu seguiria para a realização do meu “so-nho azul”, de carro, e sozinha, o que nunca fora sacrifício para mim. Muito ao contrário, dirigir na autoestrada sempre me serviu como terapia, “estradoterapia”. A mais eficiente de todas pelas quais passei. Em rodovias completamente du-plicadas, sem a sombra sequer de buracos na pista então!

Tinha certeza que ali renovaria meu fôlego!- Você vai mesmo escolher esse carro de obras? – per-

guntou-me ela quando eu escolhi uma Berlingo, da Citroen, para “voar” pelas autoestradas europeias.

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“Carro de obras” porque é o veículo mais utilizado por pessoas que trabalham na construção civil na Europa. Além do espaço para carregar as ferramentas, os emprega-dos, também apresentava um custo bem razoável em rela-ção ao gasto de combustível, o que era, para mim, naquele momento, uma grande preocupação. Eu tinha certeza que rodaria muitos quilômetros. Não poderia me dar ao luxo de gastar mais na autoestrada na Europa que com meu bilhete de avião para lá chegar. Ademais, o veículo também era con-fortável para longas distâncias, resguardadas suas limitações de luxo.

A berlingo deveria ser entregue também em Bruxelas, nas mesmas condições em que a loquei, e de igual forma, com o tanque de combustível cheio.

Estávamos na primeira semana do mês de agosto.

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Cinco horas da manhã de uma segunda-feira, e lá es-tava eu, dentro do apartamento de Fernanda, louca da vida, mas pé por pé, na tentativa de não acordá-la. Não queria me esquecer de nada, e pela milésima vez olhei a mochila, em-bora depois de tantas viagens, minha bagagem já havia sido reduzida drasticamente.

Fernanda fingia dormir. Era impossível dormir nestas condições.

- “Eu vou à Côte d’Azur! Vou conhecer Nice, Cannes, Mônaco!” – minha mente repetia baixinho, com receio de ter os planos interrompidos.

- “Eu vou pisar “Saint-Tropez” – Daí minha mente co-memorava, escandalosamente – Brigitte Bardot!

Entretanto eu não sabia quanto tempo ficaria por lá, se já me decepcionaria e voltaria no outro dia, ou se me apai-xonaria e ficaria o máximo que realmente eu poderia por lá ficar: dez dias.

Essa era a vantagem de ir de carro, e sozinha. A desvantagem era não saber exatamente o que levar,

e em que quantidade.

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No final, achei que a mochila ainda estava muito pesada e deixei nela apenas quatro shorts, curtos, bem curtos mesmo, porque era verão, e na Europa eu realmente conseguia usá-los sem ser constrangida com comentários deselegantes, tais como: “oh, gostosa”, ou “eh lá em casa”, quatro blusas, também da mesma estação, dois biquínis, chinelos, filtro solar, medica-mentos de primeiros socorros, e alguma maquiagem.

Obviamente diferentes combinações entre os shorts e blusas eram possíveis para os dez dias. Também levei um vestido, não tão curto, mas bem leve, caso fosse a algum restaurante, cassino, espetáculo, e uma “rasteirinha”, que, aliás, e exceto em Vilamoura até então, também era um luxo que eu poderia me dar na Europa, apesar da minha pequena estatura.

Enfim, tudo muito confortável e nada sexy.Ademais, o coração tinha pousado em Portugal, e con-

tinuava por lá. Mas já dentro do veículo, tive que voltar ao aparta-

mento de Fernanda e acordá-la de qualquer jeito: havia me esquecido da “Amora”.

- Normal – disse-me ela, bocejando, e já à porta, com o GPS em mãos! – Boa viagem, e veja se não leva três dias para chegar a Saint-Tropez! Mas aproveite! – concluiu, sor-rindo.

Dei-lhe uma piscadela e saí correndo escadas abaixo.Estava feliz.Já respirava mais livre, mais leve.

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ESTRADOTERAPIA

A realização do meu sonho de verão 2017 estava a aproximadamente mil e duzentos quilômetros de distância de Bruxelas. Se eu não parasse muito na autoestrada, con-seguiria chegar ao destino final depois de dirigir mais ou menos treze a catorze horas.

O problema era não conseguir parar para admirar a paisagem, tão linda, tão verde, tão limpa, sobretudo no tre-cho da autoestrada entre Bruxelas a Luxemburgo, esse um pequeno País, com aproximadamente e tão somente três mil quilômetros quadrados em extensão, que fazia limite entre a Bélgica e meu destino final, o sul da França.

Fernanda estava coberta de razão quando me advertiu dos três dias na estrada.

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Mas eu que já amava dirigir em rodovias no Brasil, ainda que a maioria delas não oportunizasse o deleite com-pleto na direção, devido principalmente, a sua má conserva-ção, a cada quilômetro rodado na autoestrada A31, jamais conseguiria não parar, sempre que possível, para aproveitar a chance de conduzir em autoestradas completamente dupli-cadas, com três, quatro e até mesmo cinco vias no mesmo sentido, todas muito bem sinalizadas.

E eu só não fazia isso a cada quilômetro porque para completar a comodidade, segurança e retorno dos pedágios e impostos pagos pelos cidadãos naquele continente, a cada quinze ou no máximo vinte quilômetros, “aires de repôs” (áreas de repouso), com banheiros, restaurantes, algumas com wi fi, áreas de jogos, sobretudo para crianças, outras com serviços de borracharia, mecânica e postos de combus-tíveis, aguardavam os motoristas, os quais durante toda a rodovia, já eram advertidos, por painéis e placas, de que um a cada três acidentes é causado em razão de cansaço e fatiga dos condutores, e nos convidava a descansar.

E foi assim que sem qualquer vestígio de cansaço em razão da alta qualidade das estradas e das paradas nas áreas de repouso, adentrei o território francês, deslumbrada com as rodovias, com a paisagem, com as placas indicativas, in-clusive uma delas, ainda na região de Luxemburgo, que foi lida seguida de um longo, inevitável e agonizante suspiro:

- “De 2010 a 2014: 19 acidentes graves!”.

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En Blanc

Só na BR 153, no Estado de Goiás, local onde digo que é meu segundo lar, esse número era superado, e em mui-to, até mesmo mensalmente.

Mas a minha agonia foi se arrefecendo ao passo que meus olhos avistavam, extasiados, outras placas:

- “Lyon: patrimônio da humanidade”;

- “Nancy: patrimônio da humanidade”; – “Dijon: gastronomia e vinho”;

– “Ardenne – região de Champagne”; – “PARIS”...Ah, Paris...

Enfim, quando já pude visualizar placas indicativas da autoestrada A7, o meu coração começou a bater proporcio-nalmente à aceleração do veículo, que naquela via poderia alcançar velocidade máxima de 130 quilômetros por hora, em tempo não chuvoso.

Depois, autoestrada A8, e quando me deparei com a placa indicativa “Marseille”, a respiração começou também a acompanhar o coração.

Já tinha conduzido aproximadamente catorze horas.

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Li Azevedo

E já na autoestrada A8, a placa “Sainte-Maxime e Sain-t-Tropez” me fez realmente parar em mais em mais uma “aire de repôs”, porque minhas pernas já não me obedeciam mais.

Aproveitei também para reabastecer o veículo.Cinquenta euros e o tanque novamente repleto de “ga-

zole”, combustível conhecido como diesel no Brasil, e abas-tecido no veículo pelo próprio motorista, o qual só depois de fazê-lo, dirige-se ao caixa para pagá-lo.

Simples assim, sem qualquer segurança ou barreira à saída.

O preço? Um euro e nove cêntimos, o litro, para um País no qual o salário mínimo girava em torno de 1.480,27 (Mil quatrocentos e oitenta euros e vinte e sete cêntimos). E eis a comprovação de que a Berlingo realmente me fora uma ótima escolha.

O preço do combustível no Brasil? Nem fiz questão em me lembrar. Não queria voltar a respirar com a ajuda de um cilindro de oxigênio.

Também não contei os pedágios pelos quais passei, to-dos na faixa de dois a quatro euros, no máximo. Não contei porque por mais que fossem numerosos, todo valor era visi-velmente reinvestido no conforto de quem utiliza e paga por esses serviços. Então, dinheiro gasto sem aquele sentimento tão conhecido de reabastecimento de bolsos alheios, alguns bolsos alheios.

“Sortie 36”, e eu a adentrei, em obediência ao sinal indicativo para Sainte-Maxime/Saint-Tropez.

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En Blanc

De repente a autoestrada começou a ficar mais íngre-me, mais curvilínea, e as vias, assim como a duplicidade das mesmas, mais escassas, embora a qualidade do asfalto continuasse impecável. Muitas montanhas à vista, e quando percebi, já estava chegando a uma rotatória, bem à entrada da cidade de Sainte-Maxime.

Saint-Tropez estava tão somente e apenas a quinze quilômetros dali.

E eu, em frente a mais uma placa “Centro de Sainte--Maxime/Saint-Tropez” – em direções opostas.

Meu coração, naquele momento, em um reflexo de segundos e em estrita submissão à minha mente, escolheu “Centro de Sainte-Maxime”.

Não obstante as ótimas condições de todo o percurso, estava muito cansada. Eu viajara quilômetros demais e pre-cisava aproveitar cada segundo da realização do meu sonho. E isso não seria possível naquele momento, com o meu cor-po a implorar por descanso.

Eu o obedeci e fui procurar um hotel para passar a noite.

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SAINTE-MAXIME

Embora fosse alta temporada, e as vagas, tanto em ho-téis, restaurantes, espetáculos, em qualquer uma das cidades componentes da Côte d'Azur tivessem que ser reservadas com bastante antecedência, acabei, por sorte, encontrando um quarto modesto, mas confortável, em um hotel que fica-va aproximadamente a quinhentos metros da praia, bem no coração de Sainte-Maxime.

Como cheguei por volta das vinte e uma horas na cidade, mas os dias de verão são bem mais longos que em qualquer outra estação, assim que abri a porta do quarto, observei que os meus aposentos, de muito bom gosto, ostentava a arte de um renomado e lúdico artista em gráficos e cores em uma das paredes. O detalhe de duas camas de solteiro em um quarto “single”, com lençóis brancos, que juntas formavam uma con-fortável cama de casal também não me passou despercebido.

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Li Azevedo

Gostei.Então me deixei jogar na cama por alguns minutos,

mas logo fui atormentada por uma voz que dizia:- Zuca, você tem apenas essa noite em Sainte-Maxi-

me. É melhor aproveitar!Dei um pulo da cama, abri o frigobar, tomei, com es-

pecial esmero e degustação uma cerveja que exibia no rótulo “Blonde of Saint Tropez”, liguei o ar condicionado, que nes-ta estação é condição de primeira necessidade e não luxo, e depois do meu momento “Blonde of Sainte-Maxime”, corri para o banheiro, antes que a cama percebesse o real cansaço do meu corpo, e o seduzisse.

Já mais desperta depois de um banho não tão demo-rado quanto o habitual, mas com o corpo um pouco mais descansado, coloquei um short jeans, uma blusa estampada, chinelos, e com os cabelos ainda molhados, decidi dar uma volta nas redondezas para fazer o reconhecimento da área.

Antes, enviei uma mensagem a Fernanda e a informei que eu os aguardaria em Sainte-Maxime, no hotel no qual eu me encontrava.

Eu a esperaria para realizarmos o sonho de conhecer Saint-Tropez juntas!

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En Blanc

O hotel, três estrelas, tinha três andares, e situava-se em uma esquina, que com uma vista privilegiada, sobretudo a partir do segundo andar, apresentava dois benefícios: em um lado dava direto para a piscina e o bucólico jardim do hotel, e do outro, para a praia no centro de Sainte-Maxime.

Do lado direito do hotel, um estacionamento, gratuito, até trinta minutos.

Mais alguns passos à frente do hotel, na esquina, uma adega com os mais variados vinhos, espumantes, champag-nes, cervejas, com grandes barris do lado de fora, onde os clientes se sentavam para a degustação. Bem em frente à adega, também em uma esquina, um restaurante com espe-cialidades provençais, gastronomia suculenta e ensolarada, com a presença marcante de azeite, azeitonas e ervas aro-máticas.

Ainda antes de chegar à praia, as ruas se mantinham em charmosos paralelepípedos, e assim permaneciam até uma área na qual os comerciantes, todas as noites de verão, faziam feiras para a venda de verduras, frutas, condimentos, especiarias, bijouterias, artesanatos e roupas. Bem à entra-

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Li Azevedo

da da feira, uma grande placa ao chão: “Bienvenue dans les commerces”! (Bem vindo ao comércio).

Nessa mesma paisagem intimista e acolhedora encon-trava-se o mais famoso mercado coberto de Sainte-Maxime, o “Marché Couvert”, bastante movimentado por turistas e residentes. Era o melhor local da cidade para se encontrar peixes, queijos, frutas, legumes frescos e livres de agrotóxi-cos, tudo acompanhado de um atendimento realmente cor-dial, bem característico da região.

E era mesmo surreal testemunhar a beleza e a tran-quilidade daquelas ruelas repletas de bons restaurantes, ca-fés charmosos e antigos, e pessoas, algumas também bem experientes. Era mesmo surreal olhar para os “velhinhos e velhinhas” naquela cidade, a maioria deles, juntos, casais, a sorrir um para o outro, elas com shorts do tamanho do meu, outras com roupas de ginásticas, cabelos impecáveis, postura ereta, carregando sacolas e sacolas de compras, com uma jovialidade tão latente que era impossível não querer a dignidade e a forma como eles envelheciam.

Ou melhor, não envelheciam.Era surreal eu estar ali, boquiaberta, como uma crian-

ça a desembrulhar um presente de natal, a admirar cada de-talhe daquela cena, a eternizá-los em imagens, memórias, a fotografar tudo...

De vez em quando alguém se assustava quando eu me esquecia de desligar o flash do aparelho celular.

Mas eu tinha que fotografar.

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En Blanc

Eu tinha que acreditar que aquilo não era um sonho.Eu tinha que levar isso comigo quando eu fosse em-

bora...

E como eu precisava aproveitar somente uma noite naquela cidade, já era hora de sair de conhecer a orla de Sainte-Maxime.

Eu e o meu telefone curioso.

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O calçadão, com vista para a praia central da cidade, apresentava um porto absolutamente propício para passeios de fins de tarde. Calmo, com barcos bonitos, ancorados um ao lado do outro, formavam uma cena que por si só aprisio-nava e libertava a imaginação, mas talvez, nada comparado ao que eu poderia encontrar em Saint-Tropez.

A Avenida Charles de Gaulle, local da “badalação”, sobretudo para turistas, apresentava esplanadas repletas de mesas e um refinado lounge de restaurantes e cafés, todavia ainda considerados modestos se também comparados ao seu primo rico, como diziam de Saint-Tropez.

Mesmo assim, muita gente bonita, muitas famílias a se divertirem, muitas crianças tendo a rara oportunidade de sê-lo nos parque infantis do local. Ou seja, uma vida noturna agra-dável, requintada, mas bem diferente das noitadas regadas a álcool, e um tanto quanto desinteressante e cara a esse público.

O mar? Azul. Azul não da cor do céu, um pouquinho mais es-

curo, e que em sintonia, formavam uma das imagens mais lindas que meus olhos já viram. Mas àquela altura, calmo.

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En Blanc

Calmo demais para meus olhos que ansiavam por mais alguma coisa.

Por esse motivo, comecei a caminhar pela orla de Sainte-Maxime, a contemplar e a admirar um universo de praias, todas bem próximas umas das outras, separadas por rochas que me remetiam às imagens de cartões postais, mas sem grandes extensões de areia, tais como exibem as nossas praias brasileiras.

À medida que caminhava, era impossível não reparar o requinte dos restaurantes que eram vistos sempre à entrada das praias. Um deles me chamou ainda mais atenção: “Res-taurant La Reine Victoire”, estabelecido em uma praia um pouco mais próximo a Saint-Raphael, uma cidade pratica-mente conurbada à Sainte-Maxime.

Não resisti àquele cenário de jantar e pés na areia, com mesas em madeira, guarda sóis coloridos em vermelho e amarelo, embora naquele momento estivessem fechados, mas que mesmo assim ainda contrastavam com o azul tur-quesa do mar logo à frente, e decidi parar por ali mesmo.

- Bonsoir! Tem reserva? – Fui logo recebida à porta por um funcionário.

Eu respondi que não, e ele, com a cordialidade que até o momento só encontrei em Côte d’azur, respondeu-me que o restaurante, naquela noite não se encontrava com a lotação alcançada, logo me teriam um lugar.

Mas o meu olhar encontrava-se hipnotizado pelo mar...

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Li Azevedo

- Posso antes ter uma taça de vinho rosé e apreciar um pouco mais a paisagem? – devolvi-lhe a gentileza no trato.

- Bien sûr, mademoiselle! Até uma hora da manhã es-taremos aqui para servi-la.

- Merci Beaucoup. C’est gentil!Uma taça de minuty rosé me foi servida pelo garçom,

e eu decidi corresponder à sedução daquelas águas azuis, com seu balançar calmo, suave, hipnotizante, razão pela qual me sentei descalça na areia da praia, fiz questão de me deixar envolver pelo frescor e a leveza tanto da brisa quanto do vinho, e tendo a lua como testemunha, namorei, flertei, seduzi e fui seduzida pelo mar, até que...

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En Blanc

Eu não sabia direito de onde ele aparecera, mas um sinal de alerta logo me foi acionado, quando o vi, a passos lentos e um tanto quanto indeciso, adentrar o azul do mar, o azul que tanto me entorpecera.

Olhei em volta, o restaurante já havia se fechado.Não havia mais nenhum cliente com os pés na areia.Não se ouvia mais o som de nenhuma nacionalidade.Quanto a mim, eu continuava sentada na areia, agora a

olhar aquele homem, e ele continuava a avançar em direção ao mar, como se a profundidade daquele local fosse apenas um mero detalhe.

E avançou, avançou, até desaparecer, calmamente por entre aquelas águas que continuavam o seu balançar como se nada houvesse acontecido.

- Putzgrila! O que está a acontecer? – perguntei à mi-nha taça vazia, antes de sair em disparada e me jogar, rapi-damente, no azul daquelas águas, àquela hora, bem geladas.

Não sabia nadar direito, mas quando realmente enten-di o que se passava, meu corpo se imbuiu de vontade pró-pria e eu mergulhei, por várias vezes seguidas, no mesmo

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local no qual aquele homem desaparecera, sempre buscando ar à superfície, e gritando alguma coisa entre “monsieur”, “hello”.

Não havia mais ninguém naquele local. Por todos os lados, areia e rocha, e à frente, um infinito de água, mas não poderia permitir que uma pessoa se fosse assim, diante de meus olhos, sem ao menos tentar salvá-la.

O eco da minha voz desesperada contrastava com o silêncio daquele homem, que não emitia nenhum som, que em nenhum momento pedira socorro, mas se deixava afun-dar. Quando finalmente consegui encontrá-lo, sem qualquer técnica de salvamento ou nado, apenas passei um dos meus braços por seu pescoço, e o conduzi à terra firme.

Depois de arrastá-lo, deitá-lo à areia, e de verificar que ele mantinha a respiração, aproximando-me de sua boca e nariz, deixei-me cair ao lado dele, ofegante.

Ainda de olhos fechados, e tentando respirar profun-da e pausadamente para me acalmar, lágrimas começaram a correr copiosamente pelos meus olhos, e terminavam em minha boca, como se eu, literalmente, bebesse água do mar, um gosto bem diferente do vinho que acabara de tomar.

Mas era um choro bom, um misto de alívio e cansaço.- Você viu que quase me matou! – disse-me ele, em

um francês impecável.Não. Eu não estava ouvindo aquilo.- Pardon? – fiz a pergunta que fazem quando querem

que alguém repita alguma coisa.

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En Blanc

- Não se salva uma pessoa enforcando-a! – concluiu, ao passo que tentava, com muito esforço, levantar-se da areia.

- Merci Beaucoup, não é mesmo? – retruquei. A minha indignação me fez alternar entre francês e

português, o que ao final, sobretudo pelo nó à garganta e o tom e da minha voz, deu origem a um novo idioma: o “sar-camez”.

Eu me levantei mais rápido que ele e o deixei ali, na tentativa de fazer o mesmo.

No caminho de volta para o hotel eu só conseguia pen-sar:

- Só contigo mesmo!Já no meu quarto tomei um banho bem mais rápido

que o anterior, só para tirar a água salgada do corpo, e mais uma vez me joguei na cama, nua e com os cabelos molha-dos. Estava exausta, física e psicologicamente, e adormeci com uma voz bem ao fundo:.

- “Vai valer a pena, Zuca. Não se preocupe!”Mas antes do sono, a última imagem que me passou

pela cabeça foi ainda aquele homem, literalmente se deixan-do levar pelo mar.

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Li Azevedo

- Serviço de quarto, Mademoiselle!Acordei com um toque suave à porta.“Mas eu não pedi nada” – pensei, já procurando o re-

lógio, para me certificar das horas, com a triste certeza de que já havia perdido o horário do café da manhã.

Outro toque suave à porta.- Attendez, s’il vous plait! – respondi, para que ele se

certificasse de que eu já me encontrava acordada.Onze e trinta da manhã.- Caramba! Dormi demais – resmunguei, ao passo que

tentava me vestir o mais rápido possível para atender a porta.- O que é isto? – perguntei, curiosa, ao me deparar com

o funcionário do hotel, devidamente uniformizado, com uma bandeja em inox, formato redondo, tampada, em um carrinho.

- Serviço de quarto, mademoiselle! Café da manhã! – respondeu-me, já a adentrar o quarto.

- Mas eu não solicitei esse serviço! – respondi, enquanto ele fingia que não me ouvia, e continuei estática, à porta.

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Ele, já dentro do quarto, dirigiu-se até uma mesa de cor branca, depositou a bandeja sobre ela, e a abriu.

Croissants simples, croissants com chocolate, um pão baguete pequeno, geleia de framboesa e outras frutas que na hora eu não sabia quais eram, manteiga, queijo fresco, iogurte natural, morangos, pêssegos, café, leite, suco de la-ranja natural, suco de manga, ovos mexidos, torradas, gra-nola e outros grãos, e um envelope, que ele cuidadosamente colocou ao lado de um vaso de flores. Depois me lançou um olhar com uma pequena interrogação e um arqueado de sobrancelha.

- Café primeiro, por favor. Preciso realmente me des-pertar para entender o que está acontecendo.

Ele inclinou, delicadamente, um bule, em cerâmica e nas cores e estilo do famoso artista que o nome do hotel levava.

O cheiro de café impregnou o ambiente.- Bon petit déjeuner, mademoiselle! – e retirou-se do

quarto sem maiores explicações.Como ainda me encontrava estática no mesmo lugar,

nem gorjetas tive tempo para oferecê-lo.Só recobrei a consciência quando percebi que o café

poderia se esfriar caso eu me demorasse naquele transe.Antes, ainda abri a porta novamente, olhei o corredor

do hotel, para um lado e outro, só para me certificar de que não tinha ninguém lá fora, que depois adentraria o quarto, a sorrir e a se desculpar:

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- Erro de quarto, mademoiselle! Mas realmente não havia ninguém.

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En Blanc

E agora? Comer ou abrir o envelope primeiro?A questão foi decidida pelo meu estômago, que já fa-

lava línguas completamente desconhecidas ao meu corpo.- “Seja o que for, pode esperar”! – pensei em voz alta,

enquanto me sentei à cadeira, coloquei uma das pernas sobre ela, vi minha mãe a balançar a cabeça, dizendo –“caramba, não toma jeito de menina nem na Riviera Francesa” – e co-mecei a devorar aquele banquete à minha disposição.

Descobri que uma das outras geleias era de morango, e não consegui descobrir do que eram feitas as outras duas, uma na cor laranja e outra um pouco mais vermelho escuro. Logo após aquele café da manhã Fernanda chegaria, e já seguiríamos para Saint-Tropez. Então, na condição de turista sem muitos recursos financeiros, comi como se aquela fosse a minha última refeição do dia.

Aliás, decidi por uma diária em um hotel três estrelas porque passaria apenas uma noite em Sainte-Maxime e já tinha conduzido por mais de catorze horas. Achei que merecia uma noite bem dormida, até para me repousar melhor e realizar o meu grande sonho de conhecer Saint-Tropez em plena forma.

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Mas o dinheiro era sempre contado, planejado. Na grande maioria das minhas vezes na Europa, sempre fui hos-pedada por amigos e parentes. Gastos com hotéis raramente faziam parte dos meus planos.

Fez ali, em Sainte-Maxime, e faria em Saint-Tropez porque eu não conhecia ninguém nessa parte paradisíaca do sul da França. E toda essa explanação é somente para dizer que sim, eu viajo com pouco dinheiro, bilhetes parcelados, enfim...

Era o caso.E ao pensar nisso, comi mais um pouco e voltei meus

olhos para o envelope que fazia companhia ao vaso de tuli-pas no meu quarto.

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“Mademoiselle, creio não ter sido suficientemente elegante diante de vossa tamanha gentileza para comigo essa madrugada. Gostaria muito de pedir-vos desculpas em um jantar, hoje à noite. Caso aceite este convite, estarei à vossa espera, às vinte e uma horas, em um restaurante já reservado, bem próximo à marina de Sainte-Maxime.

Atenciosamente,Raphael D.

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- Putzgrila! Só comigo mesmo! – resmunguei em voz alta, ao passo que contatava a recepção para maiores deta-lhes acerca daquele envelope.

- Como assim? – não estava acreditando no que ouvia do outro lado da linha.

- Pode acreditar, Mademoiselle! Passou um homem aqui ainda na madrugada, pediu informações a vosso respeito, e deixou esse envelope, acompanhado de mais uma diária paga. Então, se for do vosso interesse, seria um prazer tê-la conosco mais um dia com todas as despesas já pagas – respondeu-me, como se aquilo fosse uma situação absolutamente normal.

- Ele sabe que sou brasileira? – perguntei um tanto quanto indignada com a proposta.

- Não nos pareceu. Ele perguntava por uma loira, ca-belos compridos, e que provavelmente havia chegado ao hotel, essa madrugada, toda molhada. Prezamos pela discri-ção, mas pela descrição, só poderia ser mesmo a senhorita. E apesar dele ter meios para tanto, ele ainda não sabe sequer o vosso nome. – concluiu, ao passo que atiçou ainda mais a minha curiosidade.

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Por que esse homem teria meios para descobrir o meu nome?

Por que fora tão grosseiro comigo?Por que não parecia estar bem antes de ter se deixado

levar pelo mar?Por que queria agora pedir desculpas?Por que justamente comigo?Nenhuma mulher conseguiria virar as costas para tan-

tas perguntas sem respostas, e ir embora.E eu não era exceção.Nunca fui.

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Depois de já ter experimentado emoções em excesso em poucas horas na cidade de Sainte-Maxime, decidi no-vamente caminhar pelas ruelas da cidade, mas agora, sob um calor escaldante de aproximadamente trinta e oito graus, preferi voltar ao hotel e passar o final da tarde por ali mesmo.

Tomei um pouco de sol, pouco mesmo, bem diferente dos demais hóspedes do hotel, que incrivelmente iam para a piscina ao meio-dia, desde crianças a idosos, e lá permane-ciam, até mesmo sem se abrigarem junto ao guarda sol por toda a tarde.

Essa corrida desenfreada em busca do sol também se repetia em todas as praias em épocas de verão europeu. Era como se quisessem aproveitar cada minuto, cada segundo de sua passageira aparição pela estação que também findaria em no máximo três meses.

Como sempre corri dos raios solares, razão pela qual muitas vezes não percebiam que sou brasileira, decidi ir para a piscina um pouco mais tarde. Coincidentemente, era a hora do “l’apéro”.

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Torradas com patês, canapés, amendoins, pistaches, mais queijos, azeitonas, vinho, espumantes, essa era a hora do aperi-tivo, servido à beira da piscina. Uma tradição em Côte d’azur, apresentada com tanto esmero e uma simplicidade tão requin-tada, que às vezes dava pena retirar sequer uma torradinha do lugar na bandeja em que era servida, esteticamente perfeita.

Tudo parecia estar no lugar certo, exceto eu, que ainda me encontrava dentro da piscina, mas já deveria estar no banho a me preparar para o tão misterioso jantar, afinal, já tinha conhecimento da pontualidade europeia, fossem britâ-nicos ou não.

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Dezenove horas e eu ainda não tinha certeza se com-pareceria ou não àquele jantar.

O sol ainda estava alto, sem sinais de que iria se re-pousar tão cedo.

Mas na dúvida, saí da piscina e voltei ao quarto.Enchi a banheira de água, despi-me do biquíni que

usava, e mergulhei, de cabeça e tudo dentro dela. Prendi a respiração por algum tempo. Queria escutar apenas o meu coração. Queria ver se ele me gritava a resposta.

- Tudo bem, eu vou – respirei.Coloquei o único vestido que levara, agradeci aos

céus o fato de poder usar, mais uma vez uma sandália des-provida de salto alto e ainda assim me sentir bonita, e dessa vez sequei os cabelos.

Embora turista, não seria de bom tom aparecer em um restaurante com os cabelos molhados.

Ao passar pelo hall do hotel, recebi uma piscadela do funcionário à porta. Eu sabia que era uma forma de dizer:

- Boa escolha!

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Já fora do hotel, fiz questão de percorrer outra vez a Avenida Charles de Gaulle, de início por uma rotatória na qual ficava o Cassino da cidade, o “Casino Barrière”. Tam-bém passei em frente a uma sorveteria, a “Aux Parfums de D’Italie”, que ainda se encontrava aberta, e me prometi lá voltar assim que pudesse.

Mais adiante, passei, pela segunda vez em frente ao “Le Café de France”, com o “Depuis 1852...” em sua fachada, a dizer a idade do estabelecimento. Por sinal, era muito bem frequentado. Era um dos que exibiam esplanadas com maior número de pes-soas, e de lá, eu já conseguia avistar a marina da cidade, razão pela qual comecei a diminuir ainda mais meus passos.

Eu sabia qual era o restaurante, e que ele ficava em frente ao porto de Sainte-Maxime, mas fiz questão de fazer o caminho inverso na vã esperança que aquela caminhada acalmasse a minha ansiedade.

Ledo engano.Quanto mais me aproximava do restaurante, mais mi-

nhas mãos transpiravam, mais meu coração acelerava, e mais minhas pernas queriam correr para o lado oposto do mesmo.

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Não o fiz, afinal, desafio é desafio.E um tanto quanto desconfiada se aquilo tudo real-

mente estava a acontecer ou não, aproximei-me do local marcado para o encontro.

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- Bonsoir! A senhorita é a convidada do Monsieur Ra-phael? - interpelou-me um funcionário do restaurante à por-ta, quando percebeu que eu dava um passo à frente e outros dois atrás.

- Bonsoir. Creio que sim – ainda na dúvida se aquele convite era fruto da minha imaginação.

- Seja bem vinda! Ele já a aguarda. Por favor – e o mesmo funcionário pediu-me que eu o seguisse.

O restaurante, clássico, com mesas e cadeiras na cor madeira, mas com almofadas brancas nestas, forros de me-sas igualmente brancos, uma taça menor acompanhada de uma maior, garfo à esquerda, faca à direita e guardanapo ao meio, era a imagem do requinte despretensioso, tão caracte-rístico naquela cidade.

Na verdade, todas as mesas estavam ocupadas por vá-rias pessoas, exceto uma, estrategicamente em frente à rua, de onde se podia ver a movimentação das pessoas, o porto, a praia, o mar...

Um senhor, magro, com alguns cabelos grisalhos, em-bora não aparentasse ter mais de quarenta anos de idade,

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Li Azevedo

encontrava-se sentado, com uma taça de vinho nas mãos. Do outro lado da mesa, uma cadeira vazia.

- Monsieur, Raphael! – enfim, disse o garçom.Ele se levantou, curvou-se, e um tanto quanto ainda

desconfiada, ofereci-lhe minha mão direita.- Enchanté, mademoiselle! - e não encostou os lábios

na minha mão. O mesmo garçom afastou um pouco a cadeira vazia,

e eu, literalmente, deixei-me cair sobre ela.Era verdade.Aquilo era realmente verdade.

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En Blanc

- Quer beber alguma coisa?- Rapidamente, por favor – respondi mais ligeira ainda.- O que você quer?- O mesmo que o seu!Ele sorriu e percebeu meu nervosismo. Mas educada-

mente chamou o garçom, e logo fui servida com uma taça de vinho branco.

Bebi toda a taça de uma vez, enquanto ele, visivel-mente constrangido, levou as mãos à boca para tossir.

- Mais uma? – perguntou-me, já aparentemente a se divertir com a situação.

Eu fiquei um tanto quanto também envergonhada, mas precisava me acalmar.

- Claro! – respondi, já um pouquinho mais calma porque percebi que ele também não estava assim tão seguro, e suas tos-ses continuavam. Talvez não tivessem sido em razão da minha ansiedade, e, consequentemente, minha primeira gafe.

Fui servida mais uma vez pelo mesmo garçom, e desta vez, degustei o vinho, gole a gole.

- Com fome?

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- Sim!Ele sorriu mais uma vez. Parecia estar diante de al-

guém completamente diferente de seu meio.- O que você quer? Aliás, desculpe-me a indelicadeza,

mas posso chamá-la de você? (em francês “você” corres-ponde ao pronome “Tu”, e, claro, é bem menos formal que “Vous”!).

- Por favor, eu gostaria deste menu: entrada, “tartare de saumon”, prato principal “salmão grelhado”, e sobreme-sa, “Tiramissu”. E sim, pode me chamar de “você”!

- Você gosta mesmo de salmão! – observou.- Sim, gosto. Cru, defumado, assado, grelhado, na sa-

lada, salmão de água salgada, salmão de água doce...- res-pondi, já com a leveza de duas taças de vinho.

- Vou anotar, e hoje não vou perder a fome com essa chateação de escolher o menu – respondeu, sem retirar a pia-da do cardápio.

- O mesmo, por favor – disse ao garçom, que pacien-temente aguardava o seu comando.

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Você nunca vai pedir um salmão grelhado na Europa e receber um prato apenas do que pediu. Da mesma forma, você nunca vai pedir um tiramissu como sobremesa, e rece-ber tão somente uma bola de sorvete.

Então, à medida que nossos pratos chegavam, primei-ro eu os devorava com os olhos, e isso era facilmente obser-vado por Raphael, pelo garçom, ou por quem estivesse ao nosso lado.

É que eu realmente me encanto com a apresentação na gastronomia europeia, seja portuguesa, francesa, belga, enfim...

Degustar um tartare de salmão decorado com creme de abacate e cebolinha verde era bem diferente de receber um mexido de salmão cru. Saborear um salmão grelhado, acompanhado de batatas da terra, pequeninas, estrategica-mente colocadas no prato, em total harmonização com fo-lhas de espinafre e a parte de um limão ao lado, com ervas em cima, também era muito diferente do que comer um sal-mão grelhado, solitário e triste no prato. Da mesma forma, um tiramissu acompanhado de morangos e creme de choco-

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late era muito mais prazeroso ao paladar, se o fosse, primei-ro, aos olhos.

- E sim, eu gosto mesmo de comer. – já o respondi, an-tes que ele também, já com a leveza de ter perdido as contas das taças de vinho, fizesse qualquer outra piada a respeito.

- Faça isso sempre que puder – respondeu-me um tan-to quanto melancólico.

- O que? Comer?- Sim, comer com prazer, como você o faz. – e dessa

vez as tosses foram mais insistentes.Preocupei-me.- Por que tudo o que você diz soa um tanto quanto

triste, saudosista?- Coma primeiro. Satisfaça seu desejo porque talvez

a sobremesa não seja assim tão fácil de digerir. – retrucou, pragmático.

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Prato principal vazio e recolhido pelo garçom, mas a minha curiosidade continuava faminta.

A sobremesa acabava de me ser servida.- Então, você vai responder a minha pergunta agora?

Depois de tanto mistério, acho que tenho o direito de saber se vou conseguir ou não digerir a sobremesa, não é mesmo?

- Sim. Por que soa melancólico o que eu digo? Porque você não me deixou interromper uma luta que travo sozinho. E, sinceramente, não sei se vale a pena.

Dessa vez quem tossiu fui eu, e por vários minutos.

O tiramissu ficou ali, intacto, e meu estômago revi-rou-se, como se eu pressentisse o que a mim seria revelado.

No fundo eu sabia que a partir dali a conversa seria realmente um tanto quanto indigesta. A fisionomia de Ra-phael voltara a ser exatamente igual a do homem que tentei salvar naquela madrugada, e que na ocasião, sequer me dis-sera “obrigado”.

Muito pelo contrário.

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E pelo visto, só tentei mesmo, porque nada ainda es-tava a salvo ali.

Nem ele.Nem eu.

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- Você quer falar sobre o assunto? – tentei quebrar o silêncio sepulcral que se instalou naquela mesa da forma mais polida que conhecia.

- Eu estou doente. Muito doente – recomeçou Ra-phael, sem me olhar nos olhos.

- Doente? Que tipo de doença? – perguntei, agoniada como se eu não o tivesse conhecido apenas a menos de vinte e quatro horas atrás.

Talvez por culpa do álcool, que afasta algumas pes-soas, mas também aproxima outras, às vezes até demasiado rapidamente.

- Uma doença que mata. – concluiu, ele.- Que doença, Raphael?- Câncer.Foi como se tivesse recebido um tapa na cara.Ofereci a outra face:- Nem todo câncer mata – respondi, como se tentasse

convencer a mim mesma disso.- De pulmão, estágio quatro.Um soco no estômago teria sido menos doloroso.

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- Posso ter mais uma taça de vinho? – interrompi-o, e fiz como da minha primeira taça.

Mas ele não mais se divertia com a situação.Eu também não.- Descobri há pouco tempo, e como o tumor não res-

pondeu à quimioterapia, minha última esperança era um me-dicamento ainda em teste para esses casos...

Não, eu não queria ouvir o nome desse medicamento.- “Zactima...” – finalizou o golpe, e eu, que fazia um

esforço enorme para não demonstrar fraqueza a uma pessoa que visivelmente buscava forças, engoli a seco, pedi licença, e me levantei da mesa antes que ele percebesse meus olhos marejados de lágrimas, e a minha completa ineficiência em represá-las.

Oh banheiro longe!Mas ainda que meus pés parecessem carregar corren-

tes, consegui, enfim, adentrá-lo. Do outro lado da porta, não consegui mais me manter em pé, e me ajoelhei, tentando, desesperadamente falar com Deus, e pedindo-LHE para que não me permitisse passar por todo aquele sofrimento mais uma vez.

“Não era possível” – era tudo o que eu conseguia re-petir a mim mesma. – “Não era possível” - um filme rebobi-nou em minha mente, e ali, dez anos depois, no banheiro de um restaurante em Côte d’azur, eu chorei como uma crian-ça, e mais uma vez, por um motivo que eu já havia tanto implorado a Deus para nunca mais chorar...

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E agora?O que eu deveria fazer?Sair à francesa?Pular a janela do banheiro?Fingir que aquela conversa nunca existira?Voltar à mesa?Como consolar alguém com espinhos idênticos crava-

dos na carne?Que merda de vida era essa que andava em círculos, e

que agora, me colocava, mais uma vez, entre a cruz e a espa-da. E o pior é que eu já tinha conhecimento do final daquela história. No último capítulo do livro, o paciente com câncer, a família, os amigos, os médicos, enfim, todos eram feridos tanto pela cruz quanto pela espada.

Ninguém se livraria das cicatrizes.

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Depois que as lágrimas desobstruíram a minha respi-ração, consegui me levantar. Nem sei quanto tempo fiquei ali, a questionar a vida, a fazer perguntas a Deus, a remoer uma dor antiga, a olhar a minha cicatriz deixada por ela.

Mas já que tudo aquilo estava a acontecer comigo – e só aconteceria realmente comigo, sobretudo mais de uma vez – tomei água do lavatório mesmo, lavei o rosto na in-sana tentativa de que o revelado a mim não transpareces-se tão imediatamente em minha face, tampouco revelasse o terremoto causado em minha alma, e voltei à mesa, com um esforço sobre humano para entender o porquê daquilo tudo.

Ele continuava, cabisbaixo, ainda à mesa.E com um cigarro aceso à boca.

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- Como assim? Você está com essa maldita doença, e ainda ousa fumar cigarros? - repreendi-o sem sequer imagi-nar a avalanche de mágoa camuflada entre as tosses e sorri-sos contidos daquele homem.

- Não foi porque você tentou me salvar que isso a tor-na dona da minha vida. Eu não queria ser salvo. Eu não a pedi para fazer isso. Você nem tinha o direito de interferir nessa minha decisão! – respondeu, com o coração a exalar rancor.

- Aliás, de que nacionalidade é mesmo você? Só me falta dizer que é brasileira – continuou, visivelmente trans-tornado com essa possibilidade.

O meu silêncio foi a resposta.- Eu tinha certeza disso desde quando abri os meus

olhos naquela praia e senti a sua presença ao meu lado. Eu tinha certeza disso quando você, apenas com uma taça de vinho, conseguiu se soltar e se divertir com um cara que co-nhecera apenas há vinte e quatro horas atrás. Essa leveza, só as brasileiras tem. Esse olhar, só as brasileiras tem. Somen-te vocês conseguem atingir o nível máximo de crueldade, e

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vão embora quando querem, abandonando o que for preciso, sem fazer a mínima questão de olhar para trás.

Minhas pernas simplesmente não mais me obedeciam depois de tudo que ouvira, quando ele, depois de me ter punido por alguma coisa que nem fora eu quem fizera, por obrigação, pediu-me licença, e tentou se levantar da mesa.

Eu ainda consegui observar que seu nariz sangrava, e me deixei novamente cair na cadeira, enquanto o mesmo garçom veio ao seu encontro e o ajudou a sair da minha frente.

- Meu Deus, que loucura! – eu repetia, enquanto mais lágrimas caíam dos meus olhos. - Que merda de viagem! O que é que eu estou a fazer aqui? – Só o que me faltava: en-louquecer em Côte d’azur!

Por alguns minutos ainda fiquei ali, estática, a ruminar e a tentar entender o que acontecera, se eu falara alguma coi-sa errada, se o desrespeitara, se o havia magoado.

Felizmente ou não, na Europa você pode chorar em uma mesa, sozinha, e não ser perturbada por nenhum curio-so. Ninguém ali parecia se interessar pela minha dor.

- Não, não foi você quem o magoou – adivinhou meus pensamentos o mesmo garçom que nos atendera, e que na-quele momento voltava à minha mesa com um guardanapo em mãos para que eu enxugasse minhas lágrimas. – É que ele foi casado com uma brasileira. Era, e acho que ainda é apaixonado por ela. Tiveram uma filha, e a brasileira foi embora com ela. Estão desaparecidas até hoje. Depois disso, ele adoeceu. Câncer, mágoa. Entende? Ele mesmo suspen-

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deu os medicamentos que tomava, tem poucos dias de vida, e vai morrer sem rever a criança – tentou justificar a grosse-ria, o garçom.

- Mas ele pagou a conta e já foi para a casa – concluiu, como se o fato dele ter pagado ou não a conta naquele mo-mento tivesse alguma relevância.

- Onde é que ele mora? – perguntei ao garçom.- Não posso lhe dizer. Ele disse que não quer mais

vê-la. – respondeu, constrangido.Incorporei minha profissão nesse momento, e revidei:- Passe-me agora o endereço do Monsieur Raphael! –

finalizei, a saltar fogo pelos olhos.- “Domaine du roi de sable” (Domínio do rei de areia)

– respondeu, automaticamente, sem tempo para ou possi-bilidade de ter qualquer outra reação, exceto me passar a informação que eu queria.

- Obrigada.Eu já sabia o que fazer no dia seguinte, mas adormeci

tentando, em vão, calar a minha mente. Durante toda aquela noite um filme me atormentou e foi rebobinado mais de um milhão de vezes:

- “câncer de pulmão! Zactima”!- “Zactima! Câncer de pulmão”!

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Sainte-Maxime, apesar de um tanto quanto modesta quanto se tomava por parâmetro Saint-Tropez, também tinha o seu lado “milhões de euros”, sobretudo quando se subia uma rua bem à entrada da cidade, íngreme, com uma subida estonteante, e que durante todo o trajeto, desde o pé daquela montanha até o seu cume, exibia propriedades milionárias, magníficas, arrebatadoras.

Todas eram identificadas à entrada: “Le Mas de Lapin”, “Le Mas d’Olive”, “Domaine du Soleil”, e segun-do o garçom na noite anterior, logo eu me depararia com o “Domaine du roi de sable”.

Assim que amanhecera, fui a primeira hóspede do ho-tel a tomar o café da manhã, e segui em direção àquela rua montanhosa e extremamente curvilínea da cidade.

Fernanda ainda não havia chegado, mas eu só seguiria para Saint-Tropez depois de visitar Raphael e lhe falar algu-mas verdades, ainda que ele fosse portador de câncer.

Decidida, passei por vários “Domaines” e “Le Mas”, mas em nenhuma identificação, encontrei “Domaine du roi de sable”.

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- O jeito é subir mais, “Zuca”– pensava.A segunda marcha da Berlingo já não mais respondia,

tamanha subida, e eu engatei rapidamente uma primeira, e continuei, em zigue-zague, até passar pelo penúltimo “Le Mas”, e dar de cara, bem no cume daquela montanha, com uma propriedade paradisíaca, sem mais ruas para seguir.

- “Domaine du roi de sable”! – enfim, li à entrada.- Então é nesse paraíso que você esconde a sua dor, rei

de areia! – pensei comigo.Parei o veículo, puxei o freio de mão com todas as for-

ças que tinha, afinal a propriedade estava localizada em um local muito alto, e olhei em volta. Ninguém por ali, nenhum outro veículo, e embaixo, bem abaixo, só verde, só árvores, só sol, só silêncio.

Mas era lindo. Era realmente lindo...Respirei profundamente aquele ar puro de montanha,

enchi os meus pulmões de coragem, e fui até a porta princi-pal daquela imensidão de casa.

A campainha da porta era um mármore pesado, que eu levantei e soltei, e fiquei com o ouvido à porta, para sa-ber o que acontecia lá dentro. Nada demais, só o barulho do mármore à madeira mesmo, mas naquele silêncio todo, o barulho ecoava quase que montanha abaixo.

Ninguém me atendeu.Bati uma segunda vez.Nada de resposta ainda.Insisti.

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Na sétima vez, o mármore bateu à porta junto à sua abertura.

Meus braços ainda estavam para cima, e assim con-tinuaram, como se eu estivesse sendo abordada pela po-lícia. É que eles não me obedeciam, quando me deparei com a porta aberta, e ao lado dela, a imagem de um ho-mem, magro, abatido, sofrido, olhos fundos, olhar inex-pressivo e esgotado.

- O que você faz aqui? – perguntou-me, visivelmente sem forças para acreditar realmente na minha presença ali.

- É mesmo ele – pensei.A voz daquele homem era praticamente o único in-

dício de que ele era a mesma pessoa que jantara comigo na noite anterior, mas foi o suficiente para me fazer, mesmo que atônita, abaixar os braços.

Institivamente meu olhar, ainda à porta, adentrou aquela casa.

Não se podia enxergar os móveis porque todos es-tavam cobertos com forros empoeirados. Várias caixas, de igual forma, cobertas de poeira espalhadas pela sala, teias de aranha por todo o lado, piso de madeira sujo, cortinas e janelas fechadas.

Principalmente o cheiro de cigarro me trouxe um meio sorriso de desaprovação aos lábios. Mas dessa vez consegui ser mais cautelosa. Ele percebeu isso, e inclusive a minha surpresa com o estado crítico do local.

- Esse não é mais o lugar onde moro. Só vim morrer aqui.

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- Pois você vai morrer em um lugar limpo, pelo me-nos. – e adentrei aquele lugar, sem lhe dar a chance de dizer qualquer outra palavra imbecil.

- Putzgrila! – olhei em volta.- Por onde mesmo eu começo? – perguntei-me, ao

passo que olhava, pela última vez, minhas unhas tão lindas, tão grandes, tão bem pintadas de rosa.

Rosa choque.Eu que sempre odiei faxina, que, aliás, nem sabia fa-

zê-lo direito, que sempre estudei, me formei, passei em um concurso público justamente para fugir das vasilhas e ba-nheiros alheios, agora estava ali, de férias, em Côte d’azur, a fazer o que ninguém acreditaria se eu contasse.

Mas como abandonar aquele homem naquele estado?Como deixar uma pessoa morrer, sozinha, em um lu-

gar tão insalubre como aquele?Como dar as costas a alguém que vivia um filme de

terror tão, coincidentemente, parecido com um que eu já co-nhecia até os bastidores?

- Eh, meu pai...Só você mesmo – pensei, enquanto, visivelmente emocionada, prendi meus cabelos em um co-que e comecei por abrir as janelas e cortinas empoeiradas daquela casa.

Uma onda de pó, cisco, fuligem, invadiu a sala, e am-bos tossimos. Mas rapidamente o sol tomou conta daquele am-biente com cheiro de abandono, iluminando-o, e eu fiquei mais apavorada ainda com a missão que acabara de me auto impor!

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O PRIMEIRO DIA

Aquilo realmente não seria fácil.Não para mim.Ele continuou estático à porta, e quando percebeu que

não adiantaria se opor à minha decisão, subiu para um dos quartos do andar de cima, sem nada mais dizer.

Na verdade, ao vê-lo, tão resignado, a subir, devagar, um a um os degraus daquela escada, tive a impressão de que as cartas daquele jogo não estavam exatamente em minhas mãos.

De toda forma, o botão “start” já havia sido acionado. Oito horas da manhã.Saint-Tropez ficaria para depois.

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Próximo passo: levantar todos os forros que cobriam aqueles móveis. Comecei pelas duas salas enormes, uma com uma mesa de jantar para oito pessoas, e a outra com dois jogos de sofá, um branco, de couro, e outro marrom, também clássico, tudo em harmonia com as quatro, confor-táveis e grandes poltronas espalhadas pelos dois ambientes, da mesma forma, cobertas.

À parede da sala de jantar, pinturas de Matisse, e so-bre um aparador de madeira maciça, um conjunto, na cor preta de pequenos porta-velas. Dentro deles, só o indício de que algum dia elas estiveram ali.

Do outro lado da parede da mesma sala, um armário embutido, também de madeira, no qual uma infinidade de copos e taças encontrava-se, da mesma forma, empoeirados.

A sala de estar, além dos sofás, comportava uma la-reira, uma estante também em uma das paredes com vários nichos, todos preenchidos, com esculturas e outros objetos de arte.

Em ambos os ambientes, quando se pisavam os carpe-tes, nuvens de poeira brotavam do chão.

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Só para saber o que exatamente me aguardava no de-sempenho do papel de “cinderela”, subi uma escada que saía da sala de jantar. Lá em cima, quatro quartos com as portas abertas, todas suítes, com banheiras.

O quinto quarto encontrava-se com a porta fechada.Não me atrevi a entrar. Não o toquei.Todos os quartos apresentavam grandes armários, ar

condicionado, dois deles com camas de casal, e os outros dois com duas camas de solteiro, juntas.

- “Já é hábito deles mesmo”! – pensei, quando me lembrei de que o quarto do hotel no qual me hospedara era do mesmo jeito.

Desci as escadas, tentando me apoiar em um corrimão também de madeira, no mesmo tom dos móveis daquela casa. Desisti quando percebi que, por causa da poeira, era muito menos arriscado descer aqueles muitos degraus sem me amparar em nada.

Já a cozinha era completamente preenchida de armá-rios na cor branca, do teto ao chão. Em um dos nichos, uma geladeira, enorme, em inox, dividida em quatro partes de tamanho considerável.

Ao centro, uma mesa, em madeira, todavia com ca-deiras estofadas, para oito pessoas, igualmente coberta por um forro. Um fogão cooktop, duas pias, ambas também em inox, e ao lado de uma delas, uma máquina para lavar louças completava o ambiente.

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- “Graças a Deus”! - comemorei, ao me deparar com este último eletrodoméstico.

Atravessei mais uma vez as duas salas, e do outro lado, uma área de convivência, com poltronas coloridas, confortáveis. Ao centro, uma pequena e rústica mesa confe-ria àquele lugar, charme, aconchego e elegância, embora as cortinas dali ainda estivessem fechadas.

Depois de também retirar os forros que cobriam aque-les móveis, segui em direção às janelas do local. Assim que afastei a primeira cortina, percebi que eram de vidro, e de lá, meus olhos, estáticos, encantados, arrebatados, tiveram a oportunidade de reverenciar a mais bela paisagem jamais vista, jamais sequer imaginada por mim.

A piscina, grande, mas também coberta, perdera im-portância diante do cartão postal que se descortinara à minha frente.

Abri a porta de vidro da área de convivência, e em passos lentos, dirigi-me para fora da casa. Cuidadosamente pisando em gramas ainda verdes, e com o coração acelera-do, avistei, do alto daquela montanha e como paisagem de fundo da casa, o azul do mar, em sua maior imensidão, e a completar aquele cenário paradisíaco, uma cidade inteira a abraçá-lo.

E meus olhos se deliciaram com o verde da mata, o azul do mar repleto de barcos, iates, que àquela distância pareciam tão pequeninos, o azul do céu, e ao centro, Saint-Tropez, toda faceira, toda charmosa, tão exibicionista que escolheu o seu

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melhor ângulo para a nossa apresentação, já ciente que o nosso encontro, por força maior, seria um pouquinho adiado.

- “Olá, Saint-Tropez! Encantada...– e me sentei à gra-ma, a repetir, automaticamente e baixinho:

- “Encantada, Saint-Tropez, encantada...

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Eu só percebi que passara muito tempo a admirar a cereja do meu bolo quando minha pele começou a arder sob um sol tão escaldante que a marca da minha blusa me ficou como uma segunda pele.

Meio dia.- “Caramba” – não fiz nada ainda. – pensei, e voltei,

rapidamente para dentro da casa, sem sequer olhar para os lados.

Já era hora do almoço, mas se eu me auto propusera a cuidar daquele homem, eu o faria da melhor maneira pos-sível, ainda que eu apresentasse limitações consideradas tão banais.

- “Como assim? Você não sabe cozinhar?” - espanta-va-se qualquer um que tomasse conhecimento desse fato.

- “Não, não sei. E não é culpa da minha mãe”! - já respondia logo.

Mas e agora?O que ele almoçava?O que nós iríamos almoçar, se meus dotes culinários

não iam além de saber fazer um café, o que ali era completa-

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mente inútil, visto que todas as pessoas, independentemente de classe social ou quaisquer outros critérios de segregação, tinham cafeteiras elétricas?

- “Um dia você vai se arrepender de não se interessar pela cozinha”! – dizia sempre a minha mãe.

Talvez fosse o caso.De toda forma, fome não passaríamos.Abri a geladeira: vazia.Abri todas as portas dos armários: apenas vasilhas, e

felizmente, cápsulas de café.Mas nada de comida.- “ a despensa” – pensei, e me lembrei que na primeira

sala havia uma porta que eu ainda não abrira. Quando a abri, me deparei com mais uma escada, para o sótão.

Desci.Lá embaixo ficavam mais dois quartos, a lavanderia

e uma garagem, com um veículo também coberto por uma capa empoeirada. Não resisti à curiosidade e levantei um pouco a capa: ela escondia um veículo claramente de luxo, na cor branca, conversível, com estofados de couro na cor marrom, e em algum lugar escrito “bentley”. Mas mesmo hipnotizada por todo aquele glamour, rapidamente abaixei a capa, e fui realmente procurar a despensa da casa.

Ainda no sótão, deparei-me com mais duas portas, a segunda trancada.

Abri a primeira: era a despensa, enorme, dividida em prateleiras, e compartimentos, e exceto pela presença de

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algumas garrafas de vinho branco e tinto, aquele local se encontrava completamente vazio, tal qual o meu estômago.

O jeito era voltar à cidade para comprar algumas coisas.

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Temendo que ele não me abrisse a porta quando voltasse, levei as chaves comigo. Se ele precisasse sair, conseguiria.

Abriria a porta por dentro. Tinha algum dinheiro, sobretudo para gastar em Sain-

t-Tropez, mas já que o destino adiou apenas o meu sonho e não os meus gastos, e Raphael continuava trancado no quar-to, decidi, eu mesma, comprar algumas coisas.

Desci aquela montanha com a mesma cautela em que a subi. Curvas e mais curvas e novamente nenhum veículo ou sinal de pessoas na via. Mas percebi que em certo ponto da estrada, local onde havia um grande container de lixo, alguns carros encontravam-se estacionados.

Segui adiante, e menos de um quilômetro depois, a mesma placa “Centro de Sainte-Maxime”. Virei à esquerda e decidi segui-la, depois que um motorista que iria para a mesma direção, gentilmente me cedeu a passagem.

Agora sim, vários carros, várias pessoas, todas com a face estampada: “Turistas”, “Férias”, e como nas minhas andanças pela cidade já havia encontrado um hipermercado bem no centro da cidade, decidi fazer minhas compras lá.

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Os carrinhos do supermercado estavam todos acorren-tados um ao outro. Coloquei uma moeda de um euro no local indicado para isso, ele se desvencilhou, e comecei a andar pelos corredores do estabelecimento comercial.

Enchi o carrinho de salada, mas prontas, em saqui-nhos, pão integral, leite, iogurte, algumas latas pequenas de atum, um pacote de salmão defumado, frutas, e artigos para limpeza da casa.

Aproveitei e fui até o “marché couvert” da cidade, agora como cliente.

Ao deixar a Berlingo no estacionamento em frente ao hotel no qual havia me hospedado, pensei:

-”Quem diria, hein, monsieur renomado pintor!”Já no marché, comprei presunto, e pedi para o fatia-

rem, em finos pedaços. Também comprei queijo de cabra fresco, e na tentativa de agradá-lo, um camembert.

Pronto, era tudo. Teríamos que sobreviver assim. Também não poderia gastar todas as minhas reservas em um supermercado, principalmente naquele caso.

Na volta para o carro passei bem em frente a uma es-pécie de livraria/papelaria, lugar onde a imagem de um con-terrâneo me chamou a atenção.

Cheguei um pouco mais perto, e estampado na capa do jornal Var-Matin: Sainte-Maxime/Saint-Tropez, lá estava ele, Neymar, com o passe recém-adquirido pelo Paris Saint Germain, a aproveitar suas férias com alguns amigos a pou-cos quilômetros de mim, em Saint-Tropez.

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Fiz questão de registrar aquela notícia em meu telefo-ne, com uma foto.

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Ao voltar pela mesma rua montanhosa, percebi que os veículos estacionados que eu vira não mais se encontravam no local, e na estrada, manchas de sangue.

Grandes manchas de sangue.Na dúvida do que seriam, e em razão do local ermo,

acelerei o veículo ainda mais, e logo cheguei ao “Domaine du roi de sable”.

Abri a porta, as janelas e cortinas continuavam como eu as havia deixado, e Raphael, ainda no quarto.

O cheiro de cigarro já havia se dissipado do ambiente.Lavei um pacote de salada, misturei com atum, e a

dividi em duas.Subi as escadas, dei alguns toques na porta, no quarto

dele, e como não fui atendida, deixei a salada ao chão.Respirei fundo, voltei para a cozinha, comi a minha

parte da salada, e me enchi de coragem para começar a arru-mar toda aquela bagunça.

Ela veio. Não sei de onde, mas ela veio: a coragem.

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Como ele não me atendera à porta, e a salada con-tinuava no mesmo lugar, decidi começar a arrumação pela parte debaixo, salas, cozinha, área de convivência, terraço, quintal, etc.

Já sabia que na Europa as faxinas não eram realizadas como no Brasil. Como, principalmente os pisos, ou são em madeira ou carpetes, um bom aspirador de pó resolveria o problema.

Da mesma forma os móveis. Nada de desperdícios de água a lavá-los. Um tecido, de preferência seco, era o ideal.

Mas aquele lugar estava muito silencioso, e eu come-cei a ficar entediada com aquilo. Então liguei a televisão, que imediatamente começou a tocar a música “Despacito”, e eu não consegui conter o riso.

Não, não acreditava naquilo. Sair do Brasil para ou-vir, em Côte D’Azur, a música “despacito”. Por curiosidade, olhei o canal: 17, e o nome do programa, CSTAR.

E só músicas.Depois da “Despacito”, começaram algumas músicas

em francês e outras em inglês. Como eu não tinha pressa,

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muito menos ele, e aquele canal apresentava os clips das músicas, a partir daquele momento, a maioria do tempo eu passei em frente à televisão, e assim ouvi praticamente todas as músicas que marcariam o verão 2017, e que eram suces-so, ali, e em todo o mundo.

“On écrit sur les murs”, “J’en suis lá”, “Coeur-donnier”, “Quiero sexo”, “Ok”, uma música linda de James Blunt, “On était beau”, de Louane Emera, e “Issues”, de Ju-lia Michaels, duas cantoras que nunca ouvira falar, mas que ao início dessas duas músicas, deixei o que fazia e fiquei ali, estática, encantada, a ouvi-las cantar.

E assim anoiteceu aquele longo dia em razão do ve-rão. Dia cansativo, mas produtivo na medida do possível. Toda a parte debaixo daquela enorme casa encontrava-se limpa, inclusive todos os vidros das muitas janelas e portas.

Faltavam ainda a parte exterior e a parte superior. Mas já era muita coisa para se fazer em uma tarde apenas. Então, com o corpo moído de cansaço, decidi me recolher, já que até sol também havia feito o mesmo.

Antes namorei uma Saint-Tropez completamente ilu-minada, e o mar ao centro.

Sinceramente, não sei qual imagem era mais bonita, se a luz do sol, todo imponente e autossuficiente, ou a luz da lua, com toda sua falsa modéstia em aceitar partilhar seu espetáculo com as luzes daquela cidade.

- Até amanhã, Saint-Tropez! – despedi-me.Até tentei descobrir um pouco mais do que aquela

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casa ostentava, mas como me encontrava demasiadamente cansada, decidi-me por subir as escadas e escolher um quar-to para me repousar.

Ao passar pelo quarto de Raphael, o prato com salada encontrava-se no mesmo lugar.

Recolhi-o, joguei a salada no lixo, lavei-o e o guardei.Antes de adentrar o quarto por mim escolhido, colo-

quei os ouvidos à porta, e de lá consegui ouvir sua respira-ção cansada.

- Precisa de alguma coisa? – perguntei, solícita.Também não obtive respostas.- Meu quarto é esse ao lado do seu. Se precisar de

mim, pode chamar! – conclui, já arrastando corpo e mente, tamanho o cansaço, físico e emocional, para aquele dia com-pletamente atípico.

Mas nada me tirava a sensação de que eu fora, à todo tempo, observada.

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O quarto que escolhi era absolutamente confortável, mas não era o mais luxoso. De toda forma escolhi, de pro-pósito, um ao lado do quarto de Raphael, caso ele precisasse de algum cuidado durante a noite.

Uma cama de casal, um grande armário, um banheiro com banheira, uma escrivaninha acompanhada de uma ca-deira confortável e uma televisão, era mais do que eu real-mente precisava para me recompor.

Eu só queria descansar.Como as roupas de cama não se encontravam em um

estado tão adequado para o uso, abri o armário, por sorte en-contrei outras limpas, mas as deixei ao lado porque um deta-lhe dentro daquele roupeiro tão grande também me chamou a atenção: um quadro, com tamanho razoavelmente grande, coberto por um lençol branco.

Mais uma vez não resisti à curiosidade, e tomei aquele quadro nos braços, colocando-o sobre a cama. Ao retirar o lençol que o cobria, deparei-me com uma tela, em preto e branco, preenchida por um rosto bonito, boca carnuda, e um olhar tão marcante, que pela impossibili-

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dade de se distinguir se era exatamente sedução ou ino-cência, hipnotizava.

Era Brigitte Bardot.No canto esquerdo da tela, em letras bem pequenas,

duas iniciais: I.D.E não, eu não o colocaria de volta ao lugar.Troquei o lençol, as duas almofadas, e quando passei

para o edredom, que tinha uma capa como cobertura, apenas a tirei facilmente, porque quando fui recolocar uma limpa, desisti.

Eu não sabia como fazer aquilo.O edredom era muito grande, e quando eu tentava co-

locar um lado, o outro saía, colocava o outro, o oposto fazia o mesmo. Parecia que eu estava a fazer algo que demandava estudos, físicos, químicos, matemáticos, etc. Sem mais ne-nhuma paciência, dobrei-o e o deixei em um canto. Além do mais, fazia muito calor. Mesmo com o ar condicionado ligado, não precisaria mesmo dele.

O banheiro também não se encontrava em condições perfeitas para uso, mas como eu estava demasiadamente cansada, tomei um rápido banho, em pé mesmo dentro da banheira, e depois, sem mais olhar qualquer detalhe à volta, deixei-me cair, de costas, e como se um precipício fosse, sobre a aquele colchão macio.

Antes dei uma piscadela à Brigitte Bardot, que eu ha-via colocado sobre a escrivaninha, bem em frente à cama, e adormeci, profundamente.

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O SEGUNDO DIA

Seis horas da manhã, e o sol já havia se despertado.Eu também.Desci as escadas, coloquei outra vez os ouvidos à

porta do quarto de Raphael, e de novo ouvi sua respiração, ofegante.

Não sei se estava a dormir ou acordado, mas respira-va. Para aquela ocasião, ainda era um bom sinal.

Cozinha limpa, lancei mão do pão integral, iogurte, cortei algumas fatias de melão, que por lá são na cor laran-ja, uma xícara de café de máquina, coloquei tudo em uma bandeja, subi as escadas, e novamente chamei por Raphael.

Igualmente sem respostas, deixei a bandeja ao chão.Como o dia já se encontrava claro, mas ainda era mui-

to cedo, decidi aproveitar a temperatura amena da manhã para desbravar um pouco mais aquele local.

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Já no exterior daquela casa, fiquei, por alguns minu-tos, de frente a Saint-Topez, a reverenciar, mais uma vez, a cereja do meu bolo.

Ainda sem entender o motivo pelo qual e para que a vida me colocara ali, no alto daquela montanha, inspirei e respirei, por várias vezes, e tentei silenciar os insistentes porquês da minha mente barulhenta.

Depois de um pouco mais serena, afinal, estar ali, inse-rida naquela paisagem de cartão postal já era, por si só, motivo para agradecer, decidi descer um pouco mais a grama, e me deparei com uma espécie de “bangalô”, um lugar pequeno, de forma quadrada, mas muito aconchegante, coberto por folhas de palmeiras e bambus, dos três lados ao teto.

A parte da frente encontrava-se estrategicamente sem qualquer cobertura, justamente para que a visão de Saint--Tropez não fosse prejudicada. Dentro dele dois sofás con-fortáveis, um em frente ao outro, e uma mesa pequena, rús-tica, ao meio.

Do lado direito do bangalô, e depois da piscina, uma escada, em pedra. Instintivamente a desci, e antes mesmo de descer todos o degraus, dei de cara com um quadrado, minuciosamente desmatado, com indicações para pousos de aeronaves, helicópteros, etc.

-“Uau”! – minha mente não conseguiu evitar.Minutos depois voltei para o meu miradouro de Sain-

t-Tropez, mas guiada pelas mãos por minha curiosidade, di-rigi-me mais uma vez para o lado esquerdo daquela casa. Ao

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passar novamente em frente ao bangalô, adentrei por detrás de algumas árvores que à primeira vista fingiam ser mera paisagem.

Comecei cumprimentando uma figueira, que instinti-vamente me fez sorrir em razão de uma lembrança da minha avó materna. Mas quando me veio à mente a imagem dela, doente, e o motivo pelo qual ela também partira, o meu sor-riso foi regado por uma lágrima, que teimosa, fez com que ele desaparecesse.

Mesmo assim, continuei a caminhar, e um pouco mais adiante da figueira, o meu “uau” soltou suas amarras, e correu para fora da minha boca, em estilo “slow motion”: uuuuaaaaaauuuuu...

Aquelas árvores protegiam, como se protege a um te-souro, o lugar mais bonito da casa: o jardim, um lugar que composto por mosaicos naturais, abrigava, orgulhoso e im-ponente, roseiras, tulipas, lavanda e azaleias por entre arcos geometricamente perfeitos e floridos.

Por todos os lados, canteiros com cores e formatos ar-rebatadores, e para completar o charme do ambiente, bancos em ferro fundido, em forma de curvas, espalhados pela gra-ma, que mesmo aparentemente abandonada e a necessitar de maiores cuidados, resistia verde e vivaz, em contraste com o ambiente interno daquela casa.

- “Putz, que arrepio! E nesse sol!” – resmunguei, ao passo que meus olhos se depararam com alguma coisa muito colorida, debaixo de um dos bancos do jardim.

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Era um triciclo infantil, na cor rosa.-”Deve pertencer à filha de Raphael” - pensei, embora

por lá não se fizesse tanta distinção assim com relação às cores: rosa, para meninas, e azul, para meninos.

Até me lembrei de um episódio que acontecera com a irmã de Fernanda, que se encontrava, naquele momento, grávida.

Ela não queria saber o sexo do bebê. Queria surpresa. Mas um dia, sucumbida à curiosidade feminina, e sobretudo materna, decidiu abrir o envelope no qual o médico havia dado a resposta: se menina ou menino.

Só me lembro da ligação que ela fizera à Fernanda, e na tentativa de não demonstrar decepção com relação ao resultado da ultrassonografia, enfim disse:

- “É um menino, mana...”Fernanda, também ávida para que fosse uma menina:- “Que venha com saúde...” - respondeu, no mesmo

tom da irmã, e pediu para que ela lhe enviasse a foto da res-posta, por whatsapp.

A resposta era uma espécie de cartão, dobrado, uma parte rosa e outra azul. Sobre a parte rosa o médico escre-vera: “fille”, que em francês significa filha, mas havia colo-cado um “X”, bem na parte azul. Foi o suficiente pra toda confusão, e ela somente comemorou que teria mesmo uma filha, quando o médico, sem entender o motivo da pergunta, se limitou a escrever novamente, agora em uma mensagem de texto ao telefone, “fille”.

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- É a Luísa, mana! - Retornou a ligação à Fernanda, agora aos gritos de felicidade.

- “Convenções” - pensei a sorrir, ao passo que decidi tirar o triciclo daquele lugar, exposto, naquele momento, a tanto sol.

Mas não era fácil se quebrar convenções comporta-mentais enraizadas tão profundamente ao solo.

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Já com o triciclo à sombra, segui para parte de cima daquela casa. Agora eu arrumaria os quartos.

Um a um, retirei todos os lençóis, capas de edredons, capas de almofadas, tapetes, e os amontoei em um canto, para depois levá-los à lavanderia.

Em uma dessas idas e vindas entre os quartos, percebi que a bandeja com o café da manhã de Raphael não mais se encontrava no chão, em frente ao quarto dele.

Fiquei feliz.- “Estamos evoluindo” - pensei, e continuei meus afazeres.Da mesma forma que fiz no quarto que escolhi para

me repousar, troquei todos os lençóis, todas as almofadas, todos os tapetes, limpei todos os vidros, banheiros, mas quando chegava na parte de recolocar as capas dos edre-dons, o mesmo suplício da noite anterior.

Depois das muitas horas naquela arrumação, toda des-cabelada, unhas quebradas em razão do uso de produtos for-tes, sem nenhuma maquiagem, e já chateada com a minha incompetência em recolocar as benditas capas de endredons, decidi descansar um pouco.

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Ao passar em frente ao quarto de Raphael, deparei-me com ele em pé, apoiado à porta, que se encontrava entrea-berta.

Eu tentei, mas não consegui visualizar nada dentro da-quele ambiente.

- Não se corta melão tão fino assim! – e me entregou a bandeja.

Sorri, respirei o mais profundo que conseguia, e desci as escadas, degrau a degrau e pensei:

- “Que raios mesmo eu estou a fazer aqui?”E já era de novo o horário do almoço. Aliás, ao veri-

ficar as horas, percebi que havia passado muito mais tempo que o previsto na arrumação dos quartos.

Já passava das catorze horas.Com a consciência pesada por não ter prestado a de-

vida atenção ao horário, decidi fazer um sanduíche rápido, mas melhor, e voltar ao centro da cidade para comprar algo um pouco mais decente.

Rapidamente preparei o lanche para ele, agora com queijo e presunto, providenciei um suco, cortei um kiwi em vários pedaços, novamente subi as escadas, bati à porta, e deixei a bandeja ao chão, com a ausência, mais um vez, de qualquer resposta dele.

- “Volto logo” - deixei escrito em um bilhete, embaixo do copo de suco.

Mais rápido ainda voltei ao hipermercado, agora fa-zendo aquelas curvas e curvas em alta velocidade e torcendo

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para que nenhum veículo estivesse também transitando por ali, naquele momento.

No hipermercado, como estava com muita pressa, comprei uma salada marroquina, pré-preparada com carne de frango, maçã, uvas passas, e decidi também levar um filé de frango e creme de leite.

Eu iria me aventurar na cozinha. Não tinha outro jeito.Subi aquela rua montanhosa na mesma velocidade

em que a desci, troquei o prato da salada por um mais apresentável, e como já tinha colocado algumas garrafas de vinho encontradas na despensa para refrigerar, enchi uma taça de vinho branco, e novamente bati à porta de Raphael.

- “Não se corta kiwi tão grosso assim”! - Foi tudo que ele me disse ao trocar a bandeja com o lanche pela da salada. E antes que eu saísse da mira de seu olhar reprovador, tocou na taça de vinho, e a devolveu.

- Não é porque se trata de uma salada que o vinho deve ser branco! – fuzilou-me, eivado de grosseria e auto-ritarismo.

Engoli a seco mais uma vez, agarrei a taça de vinho, segurei a respiração, desci rapidamente as escadas, e a soltei do lado de fora da casa, acompanhada de um grito.

De desespero.

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Como já me encontrava no exterior da casa, e me re-cusava, terminantemente a voltar para seu interior, decidi fazer a limpeza daquela área mesmo, mas logo me lembrei das roupas sujas que havia deixado em frente aos quartos, para depois levá-las à lavanderia.

Tomada ainda pela decepção, decidi buscá-las o mais rápido que conseguisse, sem sequer ouvir a respiração ofe-gante de Raphael.

Já no alto da escada, não tive outra opção senão as juntar, todas de uma vez, e as jogar, lá de cima abaixo, isso tudo para não ter o desprazer de cruzar com ele.

Ao pé da escada eu me viraria para novamente reco-lhê-las.

O importante era sair daquele andar.E foi roupa a voar para tudo quanto é lado!Depois, um pouco mais calma e já no andar debaixo,

pouco a pouco as levei para a cave da casa, local onde as má-quinas de lavar roupas, como monstros com suas respectivas bocas abertas, já me aguardavam.

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Seguindo minha pouca ou quase inexperiência tam-bém em lavar roupas, as escuras deveriam ser separadas das claras.

Foi o que fiz. À minha disposição encontravam-se duas máquinas para

lavar, uma ao lado da outra, e em cima, uma outra para secar.Abri o compartimento de sabão e amaciante de am-

bas, escolhi um programa com uma temperatura maior para as cores claras, porque imaginei que deveriam ficar mais al-vas ainda, e acionei o start das duas.

Duas horas e cinquenta minutos (02:50), mostrou-me o ponteiro da máquina.

- “Deve estar certo! Pelo menos está a girar! Vou arru-mar lá fora enquanto isso” – pensei.

Já do lado de fora da casa, nos fundos, com uma espé-cie de rastelo retirei todas as folhas da grama, desde o inicio da casa, passando pelo heliporto, bangalô e jardim.

Depois troquei o rastelo por uma vassoura grande e tentei juntar todas as olivas que caíam de algumas árvores. As que obedeciam ao movimento da vassoura, porque quan-do teimavam em ficar entre o vão das madeiras do solo pró-ximo à piscina...

Tudo isso tendo ainda Saint-Tropez, como testemu-nha, ao fundo.

De vez em quando até pensava que a cidade estava a se divertir com aquela cena de conto de fadas: a Cinderela de Côte D’Azur!.

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Duas horas e cinquenta minutos depois, retornei à la-vanderia e coloquei a primeira máquina de roupas limpas para secar. Como as duas máquinas de lavar ficaram vazias, reabasteci-as com mais uma infinidade de lençóis, toalhas, etc. O que não coube na secadora, mas ainda se encontrava úmido, estendi pelo local, na tentativa de também os fazer secar, e voltei para terminar o que fazia lá fora.

Mais duas horas e cinquenta minutos se passaram, e mais duas máquinas estariam prontas para serem desocupadas.

Era muita roupa para lavar, secar e passar.Novamente descabelada, suada, cansada, ainda tive

forças para retirar a proteção da piscina: a água estava lim-pa, mas como me encontrava mais cansada ainda que no dia anterior, depois de me certificar de que tudo estava na mais perfeita ordem, tudo impecavelmente limpo também do lado de fora da casa, decidi verificar como Raphael estava.

As roupas poderiam ficar para o dia seguinte, e com a mente absolutamente vazia, por excesso de esforço físi-co, comecei a subir os degraus daquela escada, lentamente e dessa vez com o apoio imprescindível do corrimão.

Estava realmente exausta. Mas antes mesmo de chegar ao quarto de Raphael, depa-

rei-me com um par de sapatos masculinos, sujos, à porta.Parei onde estava, sentei-me no chão, e comecei a cho-

rar, copiosamente. Já não suportava mais não entender o porquê do que estava a acontecer. Já não tinha mais forças para supor-tar, com tamanha resiliência, a indiferença de Raphael.

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Já não tinha mais forças nem para revidá-lo.Completamente derrotada, apossei-me daqueles sapa-

tos, desci as escadas, fui até o sótão, e os limpei, com os olhos já fixos no nada, imóveis, estáticos.

No dia seguinte seria comemorado o dia dos pais no Brasil.

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O TERCEIRO DIA

Eu testemunhei o nascer do sol daquele segundo do-mingo de agosto porque, ainda que esgotada física e psicolo-gicamente, não consegui fechar os olhos para dormir.

Passei a noite a remoer o porquê daquilo tudo, e pro-meti a mim mesma que se as coisas não melhorassem, eu iria embora.

Eu queria muito ficar e ajudá-lo, nem que fosse apenas com a minha companhia, já que para os afazeres domésticos eu me sentia um cubo mágico completamente desmontado.

Mas se ele não mudasse o comportamento, eu o aban-donaria.

Com o coração partido, mas o faria.Já completamente angustiada pela ausência de respos-

tas às minhas perguntas, ao deixar a bandeja com o café da manhã para Raphael, não bati à porta. Não queria que ele

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testemunhasse meus olhos inchados, tanto pela noite não dormida, quanto pelas lágrimas que insistiam em cair, toda vez que eu me lembrava que eu não tinha mais o que come-morar naquele segundo domingo do mês de agosto.

Ainda assim, eu não conseguia me esquecer desse triste fato um minuto sequer.

Assim que cumprira minha missão matinal, sem mais forças e motivação, voltei para o quarto e tranquei a porta.

Com o aparelho celular em mãos percorri algumas re-des sociais e me deparei com várias homenagens prestadas ao dia dos pais no Brasil. E eu descobri que meu estoque de lágrimas ainda se encontrava devidamente abastecido.

O meu pai sempre foi o meu “pairâmetro” de amor, aquele realmente incondicional, que tantas vezes eu vi errar, mas mais vezes ainda eu vi tentar consertar os próprios erros.

- “Pena que eu não havia herdado dele essa capacida-de de perdoar e pedir perdão” - pensei.

Oito anos se passaram desde que ele partira, mas era unicamente por ele que eu ainda continuava ali.

- “Não vou te decepcionar, meu pai!” – falei, como se ele estivesse ali.

Já próximo do meio dia, lavei o rosto, inspirei e res-pirei mais algumas vezes, desci as escadas, e, ao chegar à cozinha, encarei o fogão, olho a olho:

- “Vamos ver quem vence essa batalha, Sr. Fogão!” – desafiei, e comecei a preparar o meu primeiro estrogonofe na vida.

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Com dicas conseguidas junto à internet, descongelei o filé de frango, cortei-o em cubos pequenos, e depois que já tinha refogado a cebola por alguns minutos, misturei –o, e o deixei fritar até dourar. Depois daquela carne já frita, acres-centei o creme de leite, e deixei aquecer, tomando bastante cuidado para que não fervesse.

Também preferi não colocar outros ingredientes. Não sabia se ele gostaria ou se poderia comer, pimen-

ta, por exemplo.Como na maioria das vezes não é hábito na Europa se

servir arroz, optei por uma salada.Quando já cortava os tomates, ouvi alguns passos, ar-

rastados, a se aproximarem da cozinha: era Raphael, a de-volver a bandeja na qual eu havia lhe levado o seu café da manhã.

Foi o primeiro “Merci” que sorrateiramente saiu de sua boca.

Quase não acreditei no que ouvia, mas comemorei, escolhendo, com especial esmero, a mesa próxima à piscina para aquela refeição, e a ornamentando com um bonito forro

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azul, em total sintonia aos guardanapos de tecido que eu ha-via encontrado junto ao armário de um dos quartos.

O cenário se auto complementava com o azul da pisci-na, o mesmo tom no céu, e Saint-Tropez ao fundo.

Raphael se manteve todo o tempo a aguardar, em si-lêncio, no sofá da sala de televisão, enquanto assistia aos noticiários.

Pouco tempo depois a mesa estava posta. Dois pratos, garfo e faca, os dele, garfo na mão es-

querda e faca na direita, e os meus, o contrário, duas taças, uma para água e outra para o vinho, e no centro da mesa, a minha grande conquista: um estrogonofe de frango, uma salada de tomate e alface, e uma garrafa de vinho rosé, mer-gulhada em gelo e água, dentro de um recipiente de acrílico.

- “Monsieur, s’il vous plaît”! – Convidei-o a se sentar à mesa.

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A cada garfo de comida que ele levava à boca, eu o olhava, interrogativa.

De cabeça baixa, ele comeu todo o estrogonofe, belis-cou a salada, e ao experimentar o vinho, limitou-se a dizer:

- Não está na temperatura ideal.A comida parou em minha garganta, e para não me

engasgar, visivelmente derrotada e em completo silêncio, levantei-me da mesa.

Não o olhei e não fiz questão de dizer absolutamen-te nada. Só me levantei, subi as escadas e fui direto para o quarto. Eu precisava vomitar. Estava sem ar, sufocada pela comida que não conseguia descer.

Quando senti que nada mais se encontrava em meu estômago, juntei todas as minhas coisas, coloquei-as na mo-chila, mas juntamente com o barulho do zíper, ouvi também os passos arrastados de Raphael a adentrar o quarto.

Fingi que não o vi, coloquei a mochila nas costas, res-pirei, e ao conseguir dar o primeiro passo para sair dali, senti suas mãos a tocar meu braço.

Desvencilhei-me dele e dei o segundo passo.

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- Eu quero que você fique! – balbuciou ele, com a voz embargada.

Em segundos, o filme da indiferença de Raphael foi rebobinado em minha mente um milhão de vezes, e eu, sem olhar para trás, dei o terceiro passo para ir embora.

- Por favor, fique! – agora quem estava com o nó à garganta era ele.

Na tentativa de acalmar a minha respiração ofegan-te de tanta raiva, olhei para trás, mas me deparei com suas mãos estendidas a me oferecem figos.

- São prá você! – balbuciou. - Eu mesmo os colhi no Jardim! – continuou.

Sem tocar no que ele me oferecera, e ainda visivel-mente magoada:

- Por que? Por que quer que agora eu fique?- Porque precisamos um do outro.- Ah, precisamos? – respondi, irônica, mas na inútil

tentativa de, pela milionésima vez, represar as lágrimas no olhar.

- Sim. Precisamos. – retrucou em um tom bem mais amável que o meu.

- Até quando, Raphael? – e a minha voz ainda conti-nuava embargada.

- Até você se tornar uma página “En Blanc”. – respon-deu completamente convicto do que dizia. - E podemos selar as nossas pazes com esses figos! Podemos? – sugeriu, agora já com uma leveza no olhar.

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Não consegui mais represar as lágrimas dos meus olhos, e desabei em choro. Um choro sentido, um misto de alívio e lembranças boas, as quais me invadiram a mente, e eu fui remetida, em pensamento, para alguns anos atrás, para os anos em que tive a oportunidade de ser criança.

De repente senti um cheiro familiar, e me vi a adentrar um portão conhecido, em uma pequena cidade do interior do Estado de Goiás. À porta da casa, uma senhora, com o sorri-so de sempre, independente das lutas, dos muitos problemas, a me esperar atravessá-lo, com os braços abertos.

Corri para aquele abraço, e senti todo o conforto do seu abraço, todo o amor que emanava de seu peito, todo o carinho em sua voz, quando disse:

- “A vovó fez seu doce preferido, doce de figo, minha neta amada!”.

E esse foi o ritual de todas as muitas vezes em que fui visitá-la naquela cidade, até ela nos deixar, pelo mesmo mo-tivo que meu pai nos deixara, e pelo qual Raphael também nos deixaria em pouco tempo.

- Figo é covardia, Raphael! – consegui, enfim, pro-nunciar.

- Por que? – perguntou ele, como se parecesse outra pessoa.

- Porque me remete à infância, às minhas melhores lembranças, à minha avó! – respondi, ainda visivelmente magoada. - Ela sempre fazia questão de me esperar à porta de casa com meu doce preferido em mãos, de figo – inspirei,

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saudosista, e continuei - Mas ela também sempre o mistura-va a talos de mamão. Então, todas as vezes em que eu ia vi-sitá-la, de forma que ela não percebesse, eu retirava os talos de mamão e sempre comia apenas os figos! Mas ela insistia em fazê-lo do mesmo jeito, com os tais talos! – acalmei-me, e a lembrança da insistência dela para que eu comesse figo com talos de mamão, me fez sorrir, levemente.

Mas eu continuava com a mochila às costas.Ele deu três passos em minha direção, retirou a mo-

chila das minhas costas, e a colocou na cama.- Você entendeu agora o motivo pelo qual nós precisa-

mos um do outro? Como eu não esboçava qualquer reação:- Eu preciso de você por motivos também apenas

meus, e eu espero fazê-la entender, principalmente para o seu bem, que ninguém é obrigado a ficar na vida de ninguém, independente da situação, da circunstância, da doença...

Eu ainda estava no início do caminho do raciocínio.- Na vida é necessário reconhecer que a gente precisa

de quem a gente quer por perto, entendeu?Eu continuava muda.- Reconhecer com palavras, com atitudes, com lem-

branças, com figos...E eu ainda paralisada.- E de vez em quando deixar o orgulho de lado, pedir

para que a pessoa fique, ao invés de dar-lhe motivos para, mesmo que queira ficar, ir embora. E prá te dizer a verdade,

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eu me arrisco a dizer que você me parece a típica orgulhosa que abre a porta da saída quando você imagina – e frisou bem o - “imagina” - que alguém não está ou pode vir a não estar confortável em sua vida. – concluiu ele. Em seguida deixou os figos na escrivaninha, saiu do quarto e fechou a porta, comigo lá dentro. Eu e os meus pensamentos, agora mais que nunca, efervescentes.

Quem era aquele homem?Por que me conhecia tanto assim?Será que ele mantinha uma bola de cristal em seu

quarto, já que não me permitia lá entrar?

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A partir do momento em que Raphael me tirara a mochila das costas, ele não me retirou apenas o peso dela. Quando fiquei sozinha no quarto, parecia que ele havia me retirado um elefante dos ombros.

Antes da nossa última e quase única conversa, já não sabia mesmo mais como agir, não sabia se a minha presença realmente o ajudaria, e, mesmo contra a minha vontade, a única coisa que eu poderia fazer era mesmo ir embora da vida dele, mas quando ele me disse a frase “fique, por favor”...

Na ânsia de realmente entender o que se passava, ten-tei dar replay a toda aquela conversa, ao passo que também me apoderei de um dos figos, deitei-me na cama, toquei a casca macia daquele fruto, na cor roxa por fora, e senti-lhe o cheiro. Ao abri-lo, deparei-me com uma polpa carnuda, consistente, avermelhada, e com várias sementes pequenas.

Sem mais delongas, levei uma das partes à boca: doce, doce na medida certa, e acompanhado das minhas lembran-ças da infância, recompensador.

- Você já pediu para alguém ficar em sua vida, Brigitte Bardot? Assim, em um momento difícil, aquele que você

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sabe que será o divisor de águas? Você já pediu para que não fossem embora, para que não a deixassem sozinha? – Per-guntei ao quadro sobre a escrivaninha, que, inclusive, teste-munhara toda a minha conversa com Raphael, e ofereci-lhe uma parte daquela fruta em minhas mãos.

Mas de repente o mundo foi se silenciando, assim como minha mente, sem qualquer possibilidade de resistên-cia da minha parte.

Nem terminei de degustar o segundo figo, e já estava no mais profundo sono, aquele que parecia impossível, sere-no, calmo, sem sobressaltos, sem pesadelos.

Adormeci sem sequer ouvir a resposta ou me despedir de Brigitte Bardot.

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Depois dos meus muitos momentos “Cinderela”, a minha versão “Bela Adormecida” foi despertada com alguns toques suaves à porta do quarto.

Ainda sonolenta, procurei as horas.- Putzgrila, já são vinte e uma horas! – e pulei da cama

para atender ao chamado.Do outro lado se encontrava Raphael.- À table, mademoiselle, s’il vous plaît! – disse-me,

gentilmente.Esfreguei os olhos por várias vezes, fitei-o por mais

vezes ainda, olhei o interior do quarto, a metade de um figo sobre a cama, fechei a porta, e voltei para cama.

- É só um sonho! – conclui.Novas batidas à porta.Dessa vez me levantei mais devagar, e pé por pé, apro-

ximei-me mais uma vez da porta, e mais lentamente ainda a abri.

Raphael continuava no mesmo lugar.- À table, mademoiselle, s’il vous plaît! – repetiu, ago-

ra com um pequeno sorriso no rosto.

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- Eu preciso tomar um banho primeiro – respondi au-tomaticamente.

- Tudo bem, eu a aguardo lá embaixo.Na verdade eu precisava do banho mais para acreditar

que aquilo realmente não se tratava de apenas um sonho. Para isso, optei por água fria, e quando ela caiu, rapidamente a deixei envolver meu corpo, a começar pela cabeça, e pren-di minha respiração.

Quase me sufoquei para me certificar de que aquela cena era vida real.

Depois de ter engolido um pouco d’água da ducha, e tossido para expeli-la, enxuguei meu corpo, coloquei um dos meus shorts, uma blusa simples, minha sandália sem saltos, e comecei a descer as escadas, lentamente, degrau a degrau, a tentar ouvir uma melodia que vinha do andar debaixo.

Era uma voz conhecida, pelo menos para mim, numa canção que eu ouvira tantas vezes, sobretudo quando eu me encontrava a dirigir na estrada.

Era Duffy.Raphael se encontrava com uma taça de vinho nas

mãos, sentado no sofá a me aguardar, e em um aparelho pe-queno, mas potente, embora o volume do som estivesse ab-solutamente em som ambiente, Duffy sussurrava:

(...)“EndlesslyI’m looking for you everywhere that I goIn all of the things I do

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Still I’ll keep looking‘Till I find you‘Till I find you”.(...)

Foi inevitável não abrir um sorriso, e me sentei à es-cada. Eu queria ouvir toda aquela música, sem interrupções. Quando Duffy pronunciou o último “‘Till I find you”, Ra-phael, que até o momento encontrava-se absorto pela música que também ouvia, percebeu a minha presença.

- Você já encontrou, não é mesmo? – quebrou os mi-nutos de silêncio após o fim daquela canção.

- Não sei do que você está a falar. – respondi, ao passo que ele, como um verdadeiro cavalheiro, curvou-se, e apon-tou para a área externa da casa.

Agradeci a gentileza e fui à frente.

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O relógio já indicava vinte e duas horas, mas o sol tinha acabado de se repousar.

Saint-Tropez continuava do outro lado, linda, ilumina-da, a abraçar o mar. Mas encantada fiquei mesmo ao olhar para a mesma mesa em frente à piscina.

Sem conseguir reagir, hesitei em continuar a caminhar ou não.

Raphael, ao perceber meu embaraço, tomou-me uma das mãos, puxou um pouco uma das cadeiras da mesa que se localizava bem em frente à cereja do meu bolo, e convi-dou-me a sentar.

Obedeci, e agradeci.A mesa exibia um forro branco, em linho, guardana-

pos também em tom idêntico, e em cada uma das pontas da mesa, duas espécies de castiçais, cada um ostentando velas já acesas. Ao centro, uma jarra de água, um pedaço de pão, e um vinho branco, dentro do mesmo recipiente de acrílico que eu usara anteriormente, e da mesma forma, com gelo e água. Dois lugares à mesa, com talheres e taças completa-vam aquela cena de cartão postal.

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Sem conseguir me mover, continuei sentada no local no qual Raphael me indicara, enquanto ele pediu-me licença e se dirigiu à cozinha.

Poucos minutos depois, saiu de lá, com dois pratos em suas mãos.

Depositou um deles à minha frente, pelo lado direito, e depois se sentou na outra cadeira, colocando o segundo prato à sua disposição.

- O que significa isso, Raphael?- É um peixe chamado Sandre, de água doce, e bem

difícil de se pescar! Não adianta aguardá-lo, sentado, com a vara em mãos. Parece até algumas pessoas. Só vem quando querem, e só se vão da mesma forma. Para serem apanhados então... – gracejou, com uma piscadela.

- Não me refiro ao peixe. Por que isso agora? – insisti, sem adentrar o mérito da explanação que ele acabara de dar.

- Será que você pode aproveitar o jantar sem tantos questionamentos à mesa. Isso não é muito educado.

- Só vou permanecer aqui porque esta é a primeira refeição decente que eu saboreio desde...

E o perfume que ali exalava me fez desistir de com-pletar a frase. Então degustei, “com um olho no peixe e ou-tro em Raphael”, o sandre, segundo ele, tão difícil de pescar. Entre um garfo e outro de peixe, comi também as batatas da terra, pequeninas, mas cozidas exatamente ao ponto, co-bertas com azeite e outros temperos, tudo harmoniosamente acompanhada de feijão verde, e vinho branco.

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– Não se preocupe porque não me sentirei humilhada por esses seus dotes culinários! – consegui, enfim, balbuciar alguma coisa, também seguido de uma piscadela.

- E nem precisa, até porque seus dotes domésticos são uma maravilha! As máquinas na lavanderia que o diga! – respondeu, com um sarcasmo bem mais leve do que o que eu testemunhara todos os outros dias.

- Putzgrila! Realmente me esqueci! – respondi, sem saber exatamente o que fazer, ou o que falar porque uma crise de riso me impedia de dizer qualquer coisa.

Na verdade eu gostava disso. De pessoas que con-seguiam se divertir com meu sarcasmo, às vezes um tanto quanto hostil, e me devolviam à mesma maneira. Ademais, eu também não iria me levantar daquela mesa, àquela altura, com aquele banquete, simples, mas muito gostoso e de mui-to bom gosto, para tirar roupas das máquinas de lavar!

Jamais!- Coma tranquila! Não falei prá te confundir. Achei até

que você desistiria de mim no primeiro dia, lá no...Ele também não terminou a frase.- Não é muito educado se lavar roupa suja à mesa, não

é mesmo? – revidei o quesito “educação”.- Então, nesse caso, você está coberta de razão.Sorri, instintivamente a menear a cabeça.- Ok. Nesse caso! Obrigada pelo reconhecimento! –

conclui, espetando vários favos de feijão verde. Por que nada que Raphael falava não parecia única e

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exclusivamente o que havia saído da sua boca? Por que tudo o que ele dizia sempre tinha algum outro motivo ali, oculto, a equilibrar-se nas entrelinhas?

- Coma – ordenou ele, ao farejar meus pensamentos.- Você terá bastante tempo para me explicar porque

continuou aqui. – concluiu.“Eu só espero que você também tenha tempo para res-

ponder minhas indagações!” – pensei, mas imediatamente sacudi a cabeça, a expulsar da minha mente o que acabara de pensar.

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Depois que eu, sem aceitar a ajuda de Raphael, retirei a mesa e levei os pratos e talheres para a cozinha, lá do lado de fora, ouvi-o me pedir, ainda que com certa dificuldade na voz, para que eu, por favor, levasse-lhe um café.

Como não encontrei nenhuma cápsula de café próxi-mo à cafeteira, desci as escadas para buscá-las à cave. Mas quando abri a porta da despensa, por vários minutos, fiquei ali, estática, neutralizada, paralisada, só imaginando a cara de Raphael lá em cima.

O local estava repleto de mantimentos, desde tempe-ros, os mais variados, muita água mineral, caixas com to-mates, frutas como mangas, melões, ameixas, damascos, bananas, laranjas, abacates e outras que eu nem conhecia, dentre elas, umas pequeninas, nas cores amarela e verde, e outras, que pareciam de outra espécie, menores ainda, na cor roxa, além de sacos com folhas verdes, alface, rúculas, hortelãs, etc.

Para completar minha curiosidade, abri uma geladei-ra, que antes vazia, agora ostentava as mais variadas bebi-das, inclusive uma, minha preferida, bem à frente de todas:

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Baileys, um licor irlandês, em uma garrafa robusta, negra, a espera de ser alcançado, e degustado.

Rapidamente me apossei do licor, coloquei algumas pedras de gelo em um recipiente transparente, encontrei dois copos pequenos, mas robustos, e já a imaginar a degustação daquele líquido com aroma e sabor tão únicos, subi de volta as escadas, agora a pular os degraus, dois a dois.

Quando já me encontrava bem próximo ao local onde Raphael permanecia, só o ouvi falar:

- Eu não queria mesmo o café! – sorriu, quando se deparou com o meu sorriso, claramente encantado, como se acabasse de receber um presente.

E tinha.- Que bom, porque eu não saio mais daqui enquanto

essa garrafa me fizer companhia. Sinta-se convidado a nos acompanhar! Agora até posso contar o motivo pelo qual su-portei todas as suas grosserias!

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Como aquele momento já exibia todos os sinais de que teríamos uma longa conversa, saímos da mesa em que estávamos e fomos para o bangalô. Confortavelmente me sentei/deitei em um dos sofás daquele local tão aconchegan-te, e Raphael, se sentou/deitou no outro, bem em frente a mim.

Na pequena mesa ao centro, colocamos as bebidas.Raphael, que até poucos dias parecia mesmo ter pou-

cos dias de vida, de repente teve uma melhora tão relevante que até cozinhar ele conseguiu, e sozinho.

Essa melhora, embora eu a quisesse e a desejasse prá ele, na verdade, preocupava-me de certa maneira. Eu já ha-via testemunhado fato idêntico há alguns anos atrás.

E não havia gostado do desfecho dessa história. Ele não se movimentava, tampouco falava ainda com

facilidade, mas parecia outra pessoa, outro Raphael. Agora cavalheiro, serviu-me uma pequena dose de

Baileys, misturada a uma pedra de gelo, e antes que eu a degustasse, pediu-me desculpas por não me acompanhar, naquela noite, na bebida alcóolica.

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- Sem problemas! Eu posso compreender! – respondi, dando ênfase ao compreender, que “dessa vez eu poderia compreender”.

- Mas espere um pouco! Que você não queira ou não possa ingerir bebida alcoólica eu até compreendo, mas e tudo que eu encontrei na despensa agora, quando, propo-sitadamente, você me pediu para lhe fazer um café? – per-guntei-lhe enquanto enchia uma taça de água e o convidava a brindar.

- Brindaremos à que? – perguntou-me ele.- Às minhas dúvidas. Pode ser? – retruquei.- Claro! Só que nesse caso uma garrafa de Baileys não

será suficiente! - Absolutamente! Nunca o vi, nunca ouvi falar de você,

você me aparece do nada, me faz tomar uma atitude que eu nem habituada estava a fazer, me maltrata, depois me chama para jantar como pedido de desculpas, me diz que está com câncer de pulmão, que fez uso do medicamento zactima, que tem pou-co tempo de vida, me maltrata outra vez simplesmente porque sou brasileira, se esconde do mundo em um momento no qual você mais precisa de pessoas, família, amigos, me maltrata ain-da mais quando eu sou a única pessoa que tenta permanecer ao seu lado nesse momento difícil, quando percebe que eu vou-me embora, me convence a ficar, e para isso não se vale apenas de figos, mas de memórias da minha infância! Depois melhora de saúde de forma considerável, muda completamente de atitude, me faz um jantar com uma música da Duffy como aperitivo, e

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até sabe que a minha bebida preferida é baileys!! Ah, Baileys e outra que eu vi no “frigô” também, a minha cerveja favorita, a leffe brune. Sem contar no quadro da Brigitte Bardot no quarto, não é mesmo? Quem é você, Raphael? – disparei a metralha-dora falatória.

- Alguém que vai ser obrigado a comprar todas as garrafas de Baileys do mundo para você, pelo visto! – res-pondeu, depois que cada pergunta feita por mim a ele, foi seguida de um gole desse licor, automaticamente.

- Talvez eu não tenha respostas para todas essas per-guntas, até porque algumas delas você terá que busca-las dentro de você mesma. Eu sou apenas o fio condutor para que você as encontre. Talvez um fio descascado, mas você me parece ser o tipo de pessoa que choca as outras pessoas, e às vezes só encontra respostas para seus questionamentos quando também recebe descargas de choques. Cá prá nós, algumas descargas altíssimas de choques.

- Não se esqueça de que eu já tomei muito Baileys. Pe-gue leve comigo. – retruquei, já um tanto quanto impaciente com as escapadas filosóficas de Raphael.

Na verdade, eu sabia que para tirar alguma coisa de Ra-phael, para fazer com que ele se abrisse, eu deveria deixá-lo confortável. E eu sabia que ele realmente queria e nós tínhamos muito que conversar. Por isso os goles sucessivos de Baileys, mas bem menos embriagantes do que aparentavam ser.

“Quem sabe se ele achar que estou um pouquinho “alta” ele não se abre mais fácil...” – Pensei.

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- Par ou ímpar! – propus.- Par – respondeu ele.- Ok. Ímpar, então – e joguei dois dedos da mão di-

reita. Se eu quisesse ganhar o jogo, teria jogado três dedos.

Bom, pelo menos até hoje tem funcionado. No jogo do par ou ímpar, o jogador tem tendência a colocar números pares, se assim escolheu, e vice-versa.

Ele também jogou dois, comprovando a minha teoria descoberta ainda na infância, por sobrevivência, diga-se de passagem.

- Você ganhou – respondi. – Sua vez de me fazer al-guma pergunta realmente relevante – conclui, ao tropeçar propositalmente na pronuncia da palavra “relevante”.

- Ok – concordou ele e terminou a taça de água.Na verdade eu já sabia qual seria a primeira pergunta

dele. E eu queria que ele a fizesse. Aquele jogo das desco-bertas cobertas só realmente faria sentido, pelo menos para mim, se ele soubesse o motivo pelo qual eu estava ali.

- Qual o motivo que te fez me procurar e permanecer ao meu lado, ainda que eu, “na sua cabeça”, - e frisou isso - tenha te dado todos os motivos para ir embora, mesmo a precisar e gostar da sua ajuda. – perguntou, com o cuidado de pronunciar as palavras devagarzinho, tanto pela sua res-piração sempre entrecortada, quanto pelo estado de embria-guez que ele pensava que eu me encontrava.

- É uma longa história! – respondi.

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- Não tenho todo o tempo do mundo mais, mas sou todo ouvidos.

- Como quiser – conclui, deixando claro que realmen-te era uma longa história.

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2007

- Onde você está? – perguntou-me uma voz conhecida ao telefone.

- Estou em uma agência de viagens. Vou comprar mi-nha passagem de volta para Europa – respondi, já a reconhe-cer a voz de uma tia.

- Se eu fosse você esperaria um pouco mais para fazer isso. Seu pai foi internado às pressas, e o médico quer falar com você! – concluiu ela, com a voz já embargada.

Eu havia sofrido uma triste experiência de deportação de Bruxelas há um mês. Mas seguindo o mesmo comporta-mento da grande maioria dos brasileiros protagonistas dessa mesma história, eu voltaria para a Bélgica, e já com data marcada. Entretanto eu não conseguiria fazê-lo conscien-

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te de que meu pai ficaria no Brasil com a saúde debilitada. Então, sem mais qualquer resposta ao telefone, dali mesmo entrei no carro e viajei para o interior do Estado de Goiás.

Fiz trezentos quilômetros em duas horas, e os meus pensamentos giravam em minha mente proporcionalmente ao velocímetro do veículo.

Ela não quis me adiantar nada, mas o “se eu fosse você esperaria um pouco mais para fazer isso” parecia-me um mantra, repetido a cada metro, cada quilômetro daquela estrada, que naquela viagem me pareceu muito mais longa que o normal.

No hospital, parte da minha família já me aguardava do lado de fora.

Minha tia Melina me deu um abraço, e comovida, dis-se-me que eu precisaria ser forte.

E quem é que é forte quando alguém o diz para sê-lo?- O que aconteceu, tia? – foi só o que consegui pro-

nunciar.- Vamos lá dentro. O médico também já a espera –

e ainda me envolvendo em um abraço, conduziu-me pelos corredores daquele hospital.

- Então, seu pai teve uma crise respiratória aguda e vai precisar de internação por alguns dias. – começou o médico.

Eu o deixei continuar.- Agora ele respira melhor, mas para isso foi necessá-

ria uma drenagem pulmonar. E saiu muito líquido. Muito... – respirou o médico, talvez à espera de algum questionamento

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da minha parte, mas eu não estava a entender muita coisa do que ele falava, e nem sabia onde ele queria chegar.

Só sentia eu não era coisa boa, embora não soubesse o que. E eu o deixei, mais uma vez, continuar.

- Já tomamos a liberdade de enviar esse líquido para biópsia...

Aí a conversa começou a tomar sentido para mim, e eu senti uma dor tão grande no peito, que minha tia, outra vez, imediatamente, envolveu-me em seu abraço.

- Biópsia, Dr.? – perguntei, já com as lágrimas a des-cerem dos meus olhos, torrencialmente.

- Eu sinto muito, mas o caso dele é grave, requer ur-gência e não vou te enganar com relação a qualquer outra possibilidade de resultado.

- Câncer, tia? – perguntei-a desesperada.- Sim, minha filha – respondeu-me ela, à medida que ten-

tava encontrar forças para não me deixar ainda mais abalada.- Câncer de pulmão, menina – interveio o médico – e

infelizmente, em estágio avançadíssimo – acrescentou, mes-mo sem ter o resultado da biópsia em mãos.

- Eu preciso vê-lo, Dr.! – pedi, com as lágrimas ainda a correrem sobre o meu rosto.

- Tente se recompor, minha filha. Não vamos preocu-pá-lo agora. – sugeriu minha tia.

Eu concordei. O meu pai não tinha plano de saúde. Como a grande

maioria dos brasileiros, que apesar de trabalharem de sol a

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sol, dia após dia, noite após noite, não tinha condições finan-ceiras suficientes para arcar com os altos e cruéis custos dos planos de saúde particulares. Por isso encontrava-se na en-fermaria, como paciente do Sistema Único de Saúde (SUS).

Ao avistar-me à porta da enfermaria, um tanto quanto resistente em adentrar o quarto, principalmente por medo de me desabar na frente dele, ele estendeu-me a mão:

- Benção, pai! – enfim, a voz me saiu.- Deus te abençoe, minha filha! – respondeu, com a

voz bem debilitada, e me puxou para um abraço.Ficamos por alguns minutos assim, um nos braços do

outro, a sentir o coração do outro, mas quando ele começou a acariciar meus cabelos, não consegui mais conter as lágri-mas, e mais uma vez elas rolaram, tendo como destino o seu ombro.

- Vai ficar tudo bem, minha filha. Vai ficar tudo bem. Não se preocupe! – quem precisava receber forças me doou o pouco que ainda tinha.

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A partir daquele momento a minha vida entrou, mais uma vez, no modo automático. Eu precisava encontrar for-ças, independentemente de onde viessem. Eu precisava me manter de pé para que ele também continuasse assim. E eu sabia que naquelas condições, o peso da dor que ele sentia era bem maior que o peso do seu corpo.

O resultado da biópsia saiu já no dia seguinte, e con-firmaram as informações que eu havia recebido do médico no dia anterior.

O diagnóstico: Adenocarcinoma, estágio IV. Tempo de vida: aproximadamente seis meses, ainda

segundo o médico.Meu pai era mesmo portador dessa maldita doença.

Tinha todo o pulmão esquerdo tomado por ela, e o direito com apenas 40% incólume. Ficaram todos atônitos com o resultado, e principalmente com o fato dele ainda se encon-trar vivo!

E a partir daí os por quês? Por que? Por que meu pai? Por que ele, que nunca havia colocado um cigarro na boca agora seria massacrado pelo câncer de pulmão? Por que ele que, ape-

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sar da separação recente da minha mãe, sempre foi um homem íntegro, generoso, viveu para os filhos, para o trabalho?

Por que? Por que?Seis meses?Como assim, seis meses?- E nenhum tratamento será eficaz – ouvi, bem mais de

uma vez, da boca de vários médicos, a sentença de condenação do meu pai, quando procurávamos, desesperadamente em ou-tras opiniões, qualquer saída que fosse, menos a morte.

Não, não aceito. Não aceito de maneira alguma.- Vai ficar tudo bem – e ele me repetia toda vez que

me encontrava com o olhar perdido no nada, com os olhos vermelhos, inchados de tanto chorar...

Talvez Raphael pensasse que agora as lágrimas que caíam do meu rosto fossem consequência da bebida, mas não eram. Já fazia alguns anos, mas todas as vezes nas quais eu era condenada a reenfrentar essa história, era como se eu fosse também obrigada a revivê-la.

- Você quer continuar – Perguntou-me ele, cavalheiro.- Já começamos, não é mesmo? Vamos até o fim.

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Assim que nos cientificaram do diagnóstico, recusei--me a começar o tratamento do meu pai no hospital Araújo Jorge, em Goiânia, e o levei para a Santa Casa de Miseri-córdia.

Na Santa Casa, malgrado todas as dificuldades do sis-tema único de saúde, falido e na maioria das vezes inefi-ciente, sobretudo em razão da corrupção no Brasil, meu pai começou, ainda que à custa de muito choro e humilhação em razão da urgência que o caso requeria, um ciclo de seis meses de tratamento quimioterápico.

Com doses longas e mensais de quimioterapia, duran-te todo esse tempo, já sem cabelos e muito mais magro, ele se mantinha firme, e por vários momentos ainda precisou compartilhar comigo transfusão de suas forças.

Depois de cento e oitenta dias, e o primeiro ciclo de tratamento completo, fui novamente solicitada para conver-sar, dessa vez, a sós, com o médico da Santa Casa.

- Não, Dr. Não posso levar meu pai para a casa e dizer a ele para esperar a morte. Não vou fazer isso, não posso! Por favor, faça alguma coisa por ele! - implorei.

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O médico ficou longos minutos em silêncio, e eu o acom-panhei, tentando não importuná-lo com meu choro angustiado.

Eu não conseguiria deixar um homem como o meu pai morrer inerte. No fundo eu sabia que isso, mais cedo ou mais tarde, aconteceria, mas eu não deixaria que isso ocorresse enquanto ele ainda estivesse, como um guerrei-ro, imbatível e de espada em punho, dentro do campo de batalha.

E se ele queria lutar, eu lutaria com ele até o fim.- Você já ouviu falar alguma coisa sobre um medi-

camento chamado Zactima? – enfim o médico interrompeu aquele silêncio sepulcral.

- O Zactima é um medicamento em teste, experimen-tado para tratamento de câncer de pulmão, em uma pesquisa que envolve pacientes do mundo inteiro, mas a experiência somente é realizada no hospital Araújo Jorge. – explicou ele.

Respirei fundo para tentar estancar minhas lágrimas e para me preparar para mais uma etapa daquela luta inglória, e no hospital Araújo Jorge, local que para mim, era um lu-gar que abrigava as mais tristes histórias cancerígenas. Eis a razão pela qual aderimos ao tratamento na Santa Casa de Misericórdia inicialmente.

Mas àquela altura, eu também queria muito o meu pai vivo! E ele também lutava contra o câncer como um touro, ainda que em virtude de muito sofrimento, muitos vômitos, muitas dores, muita morfina, muita fé, muita espera, espera da primeira neta, inclusive, filha do meu irmão caçula...

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Os termos da pesquisa eram bem claros: se houvesse redução no tumor, o paciente continuaria o tratamento. Caso contrário, ou na pior das hipóteses, se houvesse metástase, o paciente era automaticamente excluído da pesquisa.

Eu assinei um contrato, e contrariando todas as pes-simistas expectativas médicas, e a minha deturpada visão daquele hospital, o meu pai, muito bem acolhido no Hospi-tal Araújo Jorge, seguiu firme no tratamento por mais três ciclos de seis meses.

A cada ciclo o tumor reduzia dez por cento, e toda me-lhora, cada avanço do tratamento, cada passo atrás da doença, cada passo à frente da morte, era comemorada, tanto por meu pai, pela família quanto por toda a equipe daquele hospital.

Mas infelizmente, ao final do terceiro ciclo, mais uma vez, fui chamada para uma conversa a sós com o médico. E mesmo com todos os resultados positivos do medicamento, eu já sabia do que se tratava aquele “fechar de portas”.

- Infelizmente, metástase, menina...Eu sinto muito – disse o médico, que durante todo o tratamento do meu pai junto ao Hospital Araújo Jorge, fez-me acreditar e testemu-nhar a cura de vários cânceres, fez-me acreditar em anjos, embora aquele local abrigue corredores da morte e alguns condenados que carregam a sentença cravada no próprio corpo, na própria carne.

Na face, nos pulmões, no fígado, no pâncreas, na prós-tata, nas pernas, nos braços, enfim, onde o veredicto imposto pela cruel e desumana caneta da vida consegue alcançar.

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E os olhos, na maioria das vezes marejados de lágri-mas se perdem no espaço e, em silêncio, fazem perguntas, a maioria delas, sem respostas.

Será culpa minha? Será um castigo? Será que sobrevivo? Será...Será...Será...E dor...Dor que faz questionar a própria essência, caráter...Os anjos? Os anjos são aqueles que acompanham a absolvição

de muitos ou a condenação de outros por entre os corredo-res da morte. São aqueles que já conseguiram remissão se algum dia foram expulsos do céu pelo Criador. São aqueles para os quais não existe mais pecado, simplesmente por se-rem anjos. Anjos em momento de dor...

Para estes, para os absolvidos ou mesmo condenados, a vida não é somente vida, é presente, é perdão, é amor...

E o Criador, por amor, desenha e redesenha o destino dos condenados...Somente por amor...

E foi com muita dor, mas também com muito amor e gratidão a toda equipe do Hospital Araújo Jorge, em Goiâ-nia, desde os médicos aos ambulantes do lado de fora do hospital, que eu, ainda que com o coração aos pedaços, se-gui com o meu pai para o interior do Estado de Goiás, para aguardar, em um lugar no qual ele se sentia mais confortá-vel, a indesejável visita da morte.

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Ao chegar a casa, o meu amado pai, como que por um milagre, apresentou uma súbita melhora. Agradecidos mais uma vez, fomos à igreja, saímos para almoçar fora de casa, contamos piadas, recebemos amigos, parentes, e comemora-mos cada hora, cada minuto, cada segundo, até amanhecer um dia no qual ele se deitou em uma cama e não mais con-seguiu se levantar.

Esse fato coincidiu com a volta da minha mãe ao Brasil. À época, eles se encontravam separados e ela morava

no exterior.

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Definitivamente aquele domingo não amanhecera como um domingo qualquer. Embora meu pai continuasse imóvel na cama, havia alguma coisa diferente no seu olhar.

Um pedido, não exatamente de socorro, mas um pedido.- Eu vou trazer minha mãe aqui para se despedir dele

– comuniquei à minha madrasta à época.Diante da situação, ela não se opôs. Eu busquei minha mãe, ela adentrou a casa, o quarto, e

com o olhar, meu pai me pediu para que eu os deixasse a sós.Foi o que fiz.Os dois ficaram a tarde inteira juntos, trancados no

quarto.E eu nunca tive conhecimento do que tanto conversa-

ram, a portas fechadas.

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O dia seguinte também não amanheceu uma segunda--feira como as outras. Mas o olhar do meu pai, ao contrário do meu, era o mais tranquilo de todos os outros que eu já havia testemunhado, desde que recebera a notícia da doença.

Um nó à garganta me formava todas as vezes em que eu o olhava naquela cama, e alguma coisa me dizia que sua hora estava próxima.

Eu fui testemunha de todo o sofrimento de meu pai, e de toda a tranquilidade que ele exibia no olhar naquele momento, mas era muito difícil aceitar que aquela segunda--feira seria o último dia que eu o teria por perto.

Sem saber o que fazer, e a me sentir a mais impotente dos seres humanos, permaneci ao seu lado na cama, momen-to em que alguns amigos chegaram para visitá-lo.

Como de praxe, fizemos uma oração por ele, enquanto ele, no meio daquele prece, claramente de despedida, dessa vez, conseguiu levantar o braço e tocar as minhas mãos.

Eu as segurei firmemente, abri os meus olhos, e me encontrei com o olhar do meu pai, amorosamente, agradeci-damente, fixos em mim.

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Daí foi impossível conter o desespero de sua partida. Meu pai segurou as minhas mãos com mais força ain-

da, conseguiu me alcançar a alma, e disse a ela:- Eu te amo, minha filha! E eu jamais a abandonarei.As lágrimas continuaram a rolar pelos meus olhos,

agora mais insistentes que nunca, mas o meu pai, lentamen-te soltou as minhas mãos, e se foi, livre, leve, sem qualquer resquício de mágoa no olhar, no coração.

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Quando voltei os olhos para Raphael, eles brilhavam, e faziam, desesperadamente, o mesmo pedido que meu pai me fizera um dia antes de partir.

Então era isso!Era mágoa.Era dessa maldita doença que ele queria se livrar: a

mágoa!Mas como eu poderia ajudá-lo?- Então, Raphael, satisfeito com a resposta? – pergun-

tei, agora claramente embriagada, até porque reviver toda essa história demandava altas doses de morfina nas dores que eu ainda sentia na alma.

E eu tentei substituí-las por doses de álcool. O resultado não poderia ser outro.- Absolutamente! Resposta completíssima e o motivo

pelo qual você ficou é muito nobre. Aliás, o embate contigo é bem mais prazeroso quando você está sob efeito de álcool. Você abaixa as armas nesse caso. – disse, a fazer uma mira

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com o dedo, atirar no ar, e a fingir um movimento de col-dreamento de arma.

- “É, meu tiro saiu pela culatra” – conclui. Eu que pen-sava que ao fingir embriaguez ele se abriria comigo, na ver-dade, eu precisei não fingir para me abrir com ele.

- Ponto prá você! – retruquei, sem nenhum tipo de defesa ou ataque na minha voz.

Mas eu realmente me sentia em paz. Falar sobre o cân-cer que vitimou meu pai a alguém, mesmo tendo que revivê--lo, lágrima a lágrima, começava a despertar em mim outro olhar sobre tudo o que nos aconteceu. Eu nem imaginava o quanto engolir toda essa história, calada, sufocada, asfixiada pela revolta dos insistentes por quês, ainda me fazia mal...

“- Vai ficar tudo melhor, minha filha!” – ouvi meu coração a dizer, enquanto uma brisa suave tomou conta do ambiente.

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- Podemos nos recolher agora? – perguntou-me Raphael. Já passava das três horas da manhã.- De maneira alguma, engraçadinho – retruquei! Eu nem precisava, naquele momento, das respostas a

todas as perguntas que eu o fizera no início a conversa. Mas eu tinha que descobrir como eu realmente poderia ajudar aquele homem, agora, muito ao contrário de outrora, tão dis-ponível a aceitar meu apoio.

Eu não poderia deixá-lo dormir e se fechar novamente naquele quarto sombrio, e obviamente repleto de memórias. Vai que no outro dia Raphael era possuído, mais uma vez, pelo espírito da arrogância, da mágoa.

Nós tínhamos ido longe demais para voltarmos tantos passos assim atrás. Ademais, alguma coisa me dizia que as coincidências da historia de Raphael à do meu pai iam muito além do mesmo tipo de câncer, e do fato de terem partici-pado, ainda que em pontos extremamente opostos do mapa mundial, da mesma pesquisa no experimento do Zactima.

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Então toquei diretamente na ferida, sem anestesia.- Sua vez de realmente me responder, Raphael, e da

mesma forma, satisfatoriamente. Por que todo esse ódio com relação às brasileiras? – golpeei-o.

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Ao ouvir essa pergunta, Raphael mudou completa-mente o semblante, e voltou a ser o mesmo indivíduo hostil do fatídico dia em que nos conhecemos.

Mas se manteve algum tempo em silêncio.- Foi você quem me disse que precisávamos um do

outro – insisti.- Então me responda só mais uma pergunta: Durante

todo o tratamento do seu pai você teve alguém em quem se apoiar, com quem você dividiu as dores, as lágrimas, o so-frimento, não teve?

- Tive várias pessoas. Sou muito abençoada com relação a isso. Mas acho mesmo melhor nos recolhermos. Você já sabe demasiado a meu respeito – respondi, na tentativa de estabe-lecer, mais uma vez, um abismo de hostilidade entre nós dois.

No fundo eu sabia exatamente do que ele falava. E eu, definitivamente, não queria falar sobre isso.- Viu só como precisamos um do outro? – ele me in-

terrompeu, quando eu já me levantava, mesmo um tanto quanto ziguezagueando.

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– É que você fala só do que quer. – concluiu.- E você não fala nem o que quer! – respondi, comple-

tamente furiosa com aquele jogo.- É sempre assim que você age quando contrariada?

Levanta-se e vai embora? Você nunca experimentou voltar atrás, deixar o orgulho de lado e tentar conversar? Ou me-lhor, ainda, eu vou repetir a pergunta que te fiz mais cedo: você já ofereceu figos para que alguém ficasse em sua vida? Alguém que já quisesse mesmo ficar, mas você, por algum motivo que existia só na sua cabeça – na sua cabeça – insis-tiu - fez questão de expulsar? Tudo o que conversamos antes desse episódio de fúria não serviu prá nada?

- Isso agora não é mais sobre mim, Raphael! Eu abri o meu coração e te contei uma história que ainda me ma-chuca como se eu a vivesse hoje. E Você? Você continua a fazer esse jogo de gato e rato, com respostas evasivas, que me obrigam a reviver coisas que eu quero e tento, há muito tempo esquecer. E não me obrigue a falar qual o destino que nesse momento eu quero para os seus figos, porque você ainda não me viu furiosa! – retruquei, com os olhos já em brasas.

- Sente-se aqui! – ordenou-me ele. – Quanta grosseria com meus figos! – divertiu-se ele, e continuou:

- Você ainda precisa me contar exatamente essa histó-ria que você quer e tenta se esquecer, mas prá satisfazer essa sua cabeça dura, vou-lhe contar a minha primeiro.

Sentei-me, e o fuzilei com o olhar.

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Tomei mais duas doses de Baileys, ambas de uma vez.- Vamos ver se com essas doses você abaixa suas ar-

mas de novo. Sinceramente não dá para falar com essa mira verde a me ameaçar! Aliás, quer se olhar ao espelho para sa-ber o tamanho das suas retinas agora? – disse, já a se utilizar de seu sarcasmo habitual.

- Não, não quero! E você quer saber exatamente o tama-nho da mágoa que vai no seu olhar nesse momento? – revidei.

- Eu já sei que é enorme. E é por isso que você está aqui. – concluiu.

Eu me calei. E parei de imediato com o campeonato de hostilidades.

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ISABELLA

- Eu nasci e vivi toda a minha infância e juventude em Bruxelas. Quando comecei a trabalhar, fui destacado para exercer meu ofício em Paris! – começou ele. – mas esse meu mau humor não tem nada a ver com a tão famosa hostilidade dos parisienses.

- Não amenize seu mau humor – respondi – Tá tudo bem, senhor belga, continue – conclui, antes que ele desis-tisse de me contar o que estava disposto a fazê-lo.

- E prá deixar bem claro, eu não tenho ódio de bra-sileiras. Confesso que já fui vítima desse sentimento ruim durante algum tempo, mas hoje...- e não terminou o ra-ciocínio.

Até para o meu bem, porque também sou brasileira, tentei acreditar e me mantive em silêncio.

E ele continuou:

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- Eu sempre viajei muito em missões diplomáticas, políticas, de guerras e o que me fosse designado. Hoje eu posso dizer que talvez não se tratasse exatamente um rol de amigos, mas o meu círculo de trabalho sempre envolveu pessoas influentes, consideradas respeitáveis pela socieda-de, pelo mundo. E há alguns anos atrás, um desses meus importantes colegas de trabalho foi, honrosamente, desta-cado para uma missão no Iraque. Claro, tão nobre desígnio merecia uma comemoração à altura. E tudo isso coincidiu com a realização do festival de Cannes, um dos mais famo-sos festivais de cinema do mundo! – explicou.

- Sei disso – respondi, de ímpeto.- Eu sei que você sabe. Mas continuando, aprovei-

tando toda a aura festiva e a agitação da cidade, esse meu colega, que residia em Paris, decidiu celebrar sua honraria dentro de um imponente iate, luxuosamente ancorado junto à Baía de Cannes. Eu fui convidado, e não seria muito gentil não comparecer.

Essa casa, essa que nós estamos hoje – e apontou para toda aquela imensidão de propriedade - pertence à minha família há gerações. Mas sou filho único, e infe-lizmente perdi meu pai, vítima de câncer, e minha mãe, vítima da mágoa que a doença a deixou, talvez. E eu de-cidi comparecer a esse grande evento porque à época eu me encontrava solteiro, e sozinho em todos os sentidos. Aproveitaria depois para passar alguns dias aqui em Sain-te-Maxime, mesmo solitário.

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Eu já estava habituado a esse tipo de festa, no qual se ostenta iates, bebidas, e principalmente mulheres. Mas eu não sabia que aquela festa mudaria toda a minha vida...- ten-tou respirar mais profundamente Raphael.

Eu aguardei que ele conseguisse alcançar todo o oxi-gênio que aquela história parecia requerer. Quando, enfim, conseguiu, ele continuou:

- É que dentre tantas pernas torneadas, taças de cham-panhe, sorrisos fáceis e arrebatadores, fui hipnotizado por um balançar de quadril tão sedutor, que eu sequer cheguei a cumprimentar o anfitrião daquela festa.

Uma grande gafe, eu sei – salientou Raphael, e pros-seguiu:

- Mas era a mulher mais linda que eu já vira na minha vida! Altiva, elegante e misteriosa, ela desceu as escadas do iate e se posicionou à proa de embarcação, mas solitária, com uma taça de champanhe nas mãos, a olhar para o infi-nito, para o nada...

Não resisti, e segui, inclusive o seu cheiro.Tentando aparentar naturalidade naquela aproxima-

ção, e também para não me tornar inconveniente ou inva-sivo, deixei que ela iniciasse qualquer coisa parecida com diálogo.

E torci muito para que ela fizesse isso!

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- Você pode me tirar daqui! – surpreendeu-me ela – e eu percebi que seus olhos estavam marejados de lágrimas, embora fosse também nítido o seu esforço em deixá-las represadas.

- Sem dúvida alguma! – respondi, um tanto quanto sem jeito, mas deslumbrado e completamente agradecido com a proposta.

Quando saímos do iate, ela deixou a taça de champanhe em um alambrado, tirou seus sapatos de salto alto, e seguiu, a pé, maravilhosamente livre, descalça, pela Croisette de Cannes.

Eu não tive e não queria qualquer outra opção senão se-gui-la, e segurar-lhe os sapatos, claro – divertiu-se Raphael, ao passo que durante alguns poucos segundos esboçou um sorriso saudosista antes de prosseguir com sua história.

- Eu sequer tive olhos para o movimento frenético de pessoas, artistas famosos, atores, atrizes, diretores, que cru-zavam conosco a todo tempo, todos elegantemente vestidos, exatamente como mandava o protocolo do festival de cine-ma de Cannes, e seu carpete vermelho.

Ela também parecia não se importar com aquele fre-nesi de ostentação, e simplesmente caminhava, absorta em

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um mundo que eu não sabia como adentrar. Mas eu conti-nuaria ali, ao lado dela, carregando-lhe os sapatos, o tempo que fosse necessário.

Ficamos assim, em silêncio, até que adentramos um aglomerado de pessoas, curiosas, falantes, algumas a passos lentos, outras mais rápidas, e de ambos os lados daquela rua, vendedores.

Era uma feira. Uma feira em Cannes, e ela parecia se divertir com aquilo, enquanto eu fazia o máximo e prazeroso esforço de não a perder no meio daquela multidão. E isso só foi possível porque alguma coisa a havia chamado ainda mais a atenção, e a havia feito parar: um quadro, uma pintu-ra, que fazia com que seus olhos brilhassem ainda mais que o habitual:

Era Brigitte Bardot, faceira e sorridente.- Bom, eu já sabia alguma coisa sobre ela – pensei,

mas continuamos a caminhar, depois que ela decidiu que era hora de assim fazê-lo.

Voltamos pela mesma Croisette, mas percebi quando ela, na tentativa de evitar tomar a direção do iate em que estávamos, adentrou uma charmosa rua, a Félix Faure, e se deparou com um café, pequenino, mas aconchegante, char-mosamente denominado “Café Poët”.

Foi o segundo sorriso que vi aventurar-se sair daque-les lábios lindos.

Escolhemos uma mesa mais ao fundo, ela pediu uma cerveja Guinness, e eu a acompanhei na escolha.

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- Você gosta de acompanhar as mulheres nas escolhas de cardápio! – não consegui evitar o comentário, mas logo me calei diante da cara que Raphael fizera.

- “Que mulher trocaria uma festa regada a Dom Périg-non por cerveja guinness”? – pensei.

- Isabella – respondeu-me ela, como se tivesse acaba-do de ler meus pensamentos – enchanté! – e levantou o copo de cerveja para que brindássemos.

- Raphael! Encantado! – foi tudo o que consegui pro-nunciar.

A partir daquele momento, o semblante de Isabella foi pouco a pouco se suavizando, e ao fim de uma noite inteira regada tão somente à cerveja guinness, agora com sorrisos leves e conversa agradável, eu descobri uma mulher Inteli-gente, sagaz, enigmática, sedutora, divertida, contagiante, e brasileira...- e aquele homem, outrora tão seguro de si, foi se fragilizando à minha frente até pronunciar:

- E eu me apaixonei perdidamente por ela e pelos seus se-gredos inconfessáveis desde a primeira vez que a vi – concluiu.

Eu não o interrompi, e ele prosseguiu:- Refutando qualquer possibilidade de nunca mais ter

a oportunidade de vê-la, convidei-a para passar o final de semana comigo aqui, em Sainte-Maxime. Eu já tinha certeza que ela era a mulher da minha vida. Eu tinha certeza que a partir dali, a minha vida de pobre homem rico, não mais seria a mesma – e tentou, mais uma vez, respirar fundo, na medida de sua capacidade, para continuar a história.

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- Viemos para Sainte-Maxime, mas antes, voltei sozi-nho à feira que ainda não havia acabado, e comprei o quadro que ela tanto venerara no início do nosso encontro. E eu me lembro até hoje o brilho no olhar de Isabella quando tomou Brigitte Bardot nos braços, deu-lhe um beijo na face, e outro em mim. Brigitte não se enrubesceu. Eu, muito pelo contrá-rio. – sorriu com a lembrança, e continuou:

- Eu não me lembro de ter voltado tão feliz de uma festa como o fiz quando percebi que Isabella realmente se encontrava no banco do passageiro. O dia já havia amanhe-cido, mas ela ficava ainda mais linda com a luz do sol. E eu a queria, eu a desejava! Sinceramente, foi a volta mais longa e mais prazerosa que eu já fizera em toda a minha vida, de Cannes até Sainte-Maxime! E se você quer saber mais, foi exatamente aqui, nesse bangalô, que fizemos amor pela pri-meira vez! Eu nem tentei colocar o meu quarto no páreo da competição com Saint-Tropez, quando ela, até mesmo hip-notizada pela imagem que acabara de ver, começou a me beijar, agora não mais apenas no rosto.

- Ok, ok, sem mais detalhes, por favor! – supliquei, já que agora quem se encontrava ruborizada era eu.

Raphael se desculpou, não sem antes se divertir com a situação, e prosseguiu:

- Na semana seguinte já estávamos a morar juntos, pouco tempo depois de nos casarmos em Paris, e eu vivi os melhores cinco anos da minha vida. Nunca falamos sobre o passado dela, e esse silêncio se tornou, ainda que impli-

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citamente, um pacto entre nós dois. Era como se ele nunca tivesse existido, embora eu fosse testemunha do quanto isso lhe pesava aos ombros.

Eu continuava imóvel, olhos fixos nele.- Ela logo se tornou fluente em francês! Tinha uma

inteligência acima da média, aliás, tinha não, tem, eu es-pero, e um talento para pintura inigualável! É uma artista nata... Viajamos por quase todo o mundo, até mesmo quan-do ela engravidou! Construímos uma família com a chegada de Victoire, consolidamos um círculo de amigos, na França, Bélgica, em outros países, mas principalmente em Saint--Tropez e aqui em Sainte-Maxime. Isabella e Vic amavam passar as férias de verão nessa casa, sobretudo com a pro-ximidade de Saint-Tropez, que de barco, fica a menos de 15 minutos, sabia? – perguntou-me, para meu desespero.

- É sério isso?- Claro que sim. Eu não brincaria com o seu sonho! –

respondeu-me, um tanto quanto enigmático demais para o meu gosto. Mas já que eu não teria a oportunidade de realizá-lo na-quele momento, decidimos voltar à história de Raphael.

. - E o que aconteceu? – perguntei, na tentativa de manter-lhe o interesse em se abrir comigo.

Raphael balançou a cabeça, e com a voz extremamen-te embargada respondeu:

- Até hoje eu não sei ao certo o que aconteceu. A única coisa que eu me lembro é que uma noite oferecemos uma festa, aqui em Sainte-Maxime, para os nossos amigos mais

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próximos. Isabella sempre foi muito comunicativa, aliás, como quase todas as brasileiras. Muito bonita, com um cor-po invejável, despertava olhares por onde quer que passasse.

- E você, nada de ciúme? - Sim, absolutamente! Mas havíamos construído uma

relação em base sólida, e eu confiava nela, apesar de me sentir incomodado com os olhares que ela, até mesmo in-conscientemente, atraía.

- E então?- Nessa festa, vi quando adentrou minha casa, ainda

que sem convite, aquele meu colega da festa do iate, em Cannes! – Lembra-se?

Fiz sinal que sim.- Ele não percebeu a minha presença, ou se percebeu fin-

giu que não, e foi direto à Isabella. Foi a primeira vez que vi minha mulher transtornada, mas ela também não percebeu que eu havia testemunhado todo esse episódio, ainda que de longe. Quando a vi naquela situação, tentei me aproximar dela, mas ela recusou minha companhia, tomou Victoire nos braços e se trancou no quarto com a menina. Eu fui atrás dela, mas nada que eu dissesse fazia com que Isabella abrisse a porta do quar-to! Furioso, desci as escadas atrás do autor desse descontrole da minha mulher, porém ele também já tinha ido embora.

Todos os convidados foram embora, e ficamos apenas os três por aqui. Ainda que com a porta do quarto trancada, do lado de fora, percebi que ela chorava, enquanto minha filha tentava consolá-la, inocentemente: “Ça va, maman? Ça va?.

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Eu amanheci ao pé da porta do nosso quarto, mas no outro dia, Isabella colocou um maiô em Victoire, e ambas desceram para a piscina.

Ao passarem por mim, ignoraram-me. Os olhos de Isabella estavam inchados de tanto chorar.E a partir dessa noite a mulher que eu...Bom, ela mu-

dou completamente o comportamento. Não mais aceitou re-ceber convidados em casa, não mais aceitou viajar comigo, não mais sorriu, não mais se maquiou, e começou a viver em função apenas de Victoire, e das telas de Brigitte Bardot, as quais pintava, solitariamente, em seu ateliê improvisado, também nesse bangalô.

- E o que você fez? – perguntei.- Eu precisava saber o que havia acontecido, mas não

sabia por onde começar, até que consegui encontrar esse meu colega de trabalho - o que causou todo esse transtorno - e o procurei. Com cinismo e deboche, ele apenas me res-pondeu que a tinha tratado como ela merecia.

Em minha mente, uma infinidade de histórias, das mais brandas às piores, começou a rodar, como filmes, mu-dos, em preto e branco, inacabados, ininterruptos.

O passado de Isabela era um fardo para ela, e assim que decidimos viver juntos, fizemos a promessa de enterrá--lo, como se ele nunca tivesse existido. Mas o que faria um castelo se desmoronar assim, apenas com um sopro de um lobo mau?

E será que esse colega realmente era o lobo mau?

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De toda forma, lobo mau ou não, ele também não era exatamente o tipo de homem que suscitava admiração dos mais próximos, daqueles que realmente o conhecia, então não valia mais a pena confrontá-lo. Mas infelizmente aquele “couchon” havia conseguido plantar a semente da discór-dia em nosso relacionamento, da desconfiança...– concluiu, exausto, e tentou, mais uma vez, respirar, mesmo que agora isso ainda fosse mais difícil, mas continuou:

- Passados poucos dias, Isabella, ainda triste, disse-me que queria passar algum tempo no Brasil.

- E você?- Eu sabia ou imaginei, sei lá, que aquilo fosse uma

separação implícita. Na minha cabeça, ela não voltaria mais com a minha filha para a Europa.

- E o que você fez?- Tentei reverter a situação. Voltamos para Paris, e ainda

que ela se recusasse a conversar sobre o que havia acontecido naquela noite, tentei, ainda que eu realmente conhecesse a mu-lher que eu tinha, compensar essa falta de diálogo a presentear--lhe com mais joias caríssimas, bolsas, roupas, sapatos, carros. Nada disso adiantou, mas o fiz por desespero, por não saber mais como agir diante daquele buraco que se formara entre nós dois. Eu de um lado, ela e nossa filha do outro.

- E?- Certo dia, ao voltar do trabalho, chamei por Vic.

Como não obtive resposta, procurei por Isabella. Nem sei quantas vezes subi e desci aquelas várias escadas da nossa

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cobertura. tudo em vão. O closet dela estava intocável, e o de Vic também. Ela tinha se ido embora com Victoire, levan-do apenas uma bagagem de mão, mesmo diante da minha veemente recusa em assinar-lhe uma procuração para que saísse do País com a nossa filha. Tinha deixado para trás tudo o que vivemos, todos os presentes, todas as fotos, toda a nossa história, como se realmente quisesse apagar-me de sua memória. E isso doeu muito. – e continuou:

- A partir de então a minha vida ficou sem sentido. Eu ainda a esperei voltar, mas nunca tive uma notícia, um tele-fonema sequer. Sem alternativa, denunciei-a junto às auto-ridades internacionais, e espalhei fotos das duas, sobretudo pelo Brasil, na cidade na qual a mãe dela morava à época, uma cidade lá do seu Estado, que eu não me lembro exata-mente qual é, mas me lembro bem da história que Isabela me contava sobre o seu nome. Envolvia a morte de um índio que se apaixonou por uma índia de uma tribo inimiga, alguma coisa terminada em “tu”...Eu precisava encontrá-las. Eu pre-cisava saber o que tinha acontecido, ainda que àquela altura o meu coração já houvesse se tornado um poço de amargura.

- Porangatu, da estória do índio que se apaixonou por uma índia chamada Angatu, e na hora de sua morte ele disse que morreria “Por Angatu”? – respondi, na tentativa de fazer desvanecer-se qualquer peso extra àquela história, por si só, sobrecarregada.

- Sim, isso. É uma bonita estória, não é? A família dela ainda mora nessa cidade. Existe um mandado de busca,

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apreensão e restituição da minha filha, mas até o momento não foi cumprido porque ninguém consegue encontrá-las... – e nesse momento eu vi sim, lágrimas nos olhos daquele homem tão autossuficiente.

- Quando você descobriu...- A doença? – ele me interrompeu, e novamente sa-

cudiu a cabeça, inconformado – logo depois que a minha esperança em tê-las de volta já tinha sido levada ao caixão. Nada mais me importava. Não cuidava mais da alimentação, dos negócios, dos amigos, e me isolei por vários meses den-tro daquele apartamento, gigante e solitário, na companhia incansável de milhares de cigarros.

Um dia, bem mais magro, sujo, com a barba sem fa-zer por não sei quanto tempo, percebi que me encontrava em um lugar diferente da minha casa. Ao abrir meus olhos, constatei que estava em um hospital. Assim como seu pai, eu tive uma crise respiratória, mas ao contrário dele, eu estava sozinho em casa, e desmaiei.

Nem sei quem acionou socorro...Despertei já com o meu médico de família a prolatar a minha sentença de morte...- e tentou, mais uma vez, desviar o olhar para que eu não percebesse seus olhos, novamente, marejados de lágrimas.

- Como nenhum tratamento mais me traria a cura, meu médico decidiu, contra a minha vontade, incluir-me na pes-quisa do Zactima. Mas a mim também não interessava mais viver, então abandonei o tratamento, e decidi passar meus

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últimos dias na casa em que mais fomos felizes: Eu, Isabella e a nossa filha.

Apesar daquela fatídica noite, as melhores lembranças que eu tenho de Isabella são exatamente daqui, de quando ela ficava como você, sentada bem aí na grama, a admirar Saint-Tropez, ou de quando ela, no ateliê, toda suja de tinta, mostrava-me, encantada com o próprio trabalho, uma nova versão de Brigitte Bardot...

Eu a admirava por isso, pela sensibilidade no olhar, no cuidado com a família, na leveza da companhia, na fortaleza das horas difíceis... Mas aquele abandono repentino e princi-palmente silencioso, fez com que logo depois da separação, eu também experimentasse um sentimento muito diferente de tudo eu já havia sentido com relação à Isabella: raiva, ódio, mágoa, que eu alimentei dia após dia, até que eles se agigantaram dentro de mim e tomaram conta de todo o meu pulmão, claro muito mal acompanhados por meu estilo de vida, que há muito tempo já não era mais saudável, sem-pre com cigarros a me calar a boca...- ressaltou, e mais uma vez meneou a cabeça como se não estivesse a acreditar que havia deixado tudo aquilo acontecer. – Bom, é isso que eu quero corrigir, ou amenizar, se ainda houver tempo...- res-mungou por entre os dentes, e completou:

- Sinceramente eu não acredito que mágoas sejam, por si só, causadoras de câncer, mas quando você se vê obrigado a en-frentar um momento tão difícil como esse, alguma coisa muda dentro de você, além, claro de suas células...Você, inevitavel-

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mente, se torna outra pessoa. A maiorira, penso eu, repensa a vida e muda a forma como a enxerga...Eu sempre fui aberto ao diálogo, mas tive uma criação muito rígida e nunca consegui al-cançar o patamar de desprendimento de vocês, brasileiros, que são calorosos, requerem contato físico e não se amedrontam com isso...Talvez isso também tenha pesado na decisão de ir embora de Isabella. Hoje acho que sou outra pessoa, e como tenho pouco tempo de vida, também creio que tenho o direito de levar para o túmulo as lembranças que quero. E eu quero coisas simples...Eu quero levar comigo o sorriso brasileiro da mulher que eu amo, independente do seu passado, independen-te do seu presente...E da minha filha...- engasgou-se Raphael, levando alguns segundos para se recuperar...

- Da minha filha eu quero me lembrar de suas brinca-deiras no triciclo, exatamente aquele ali, que você recolheu do jardim, na tentativa em escondê-lo de mim, eu sei...- e eu nem sabia que ele havia visto o triciclo ainda.

- Mas mais que lembranças, eu gostaria muito de não ir embora sem vê-las pela última vez. Eu nunca soube o que realmente causou o fim do nosso relacionamento e essa fuga de Isabella...- e relutou um pouco em terminar o raciocínio, entretanto seguiu – Mas eu estou pronto para pedir perdão à ela, e perdoá-la, ainda que tudo isso tenha acontecido em razão de silêncios assassinos. Se a gente tivesse realmente conversado...Se tivéssemos destruído a barreira do orgulho, do medo... – desmoronou Raphael, agora não mais se preo-cupando com as lágrimas que, insistentemente corriam dos

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seus olhos tristes e se misturavam à sua respiração ofegante e soluços sentidos.

E agora, o que eu deveria fazer?Como agir diante de um homem como aquele, orgu-

lhoso, aparentemente autossuficiente, mas naquele momen-to vulnerável, tentando, desesperadamente, consertar algu-ma coisa absolutamente imune à sua fortuna!

Mas eu não o interrompi.Apenas deixei que ele chorasse tudo o que provavel-

mente se encontrava represado às margens daquela sua his-tória triste, e com um final que eu já conhecia tão bem.

Quando percebi que os seus soluços diminuíam, to-mei-o pelo braço e o levei ao seu quarto, adentrando aquele local pela primeira vez.

Como Raphael encontrava-se com dificuldade para respirar, ele mesmo lançou mão de um pequeno cilindro de oxigênio, deitou-se à cama, colocou sobre o nariz uma espé-cie de tubo flexível, inspirou e respirou por várias vezes, e, enfim, adormeceu.

Antes de sair do quarto, dei uma olhada em volta e me deparei com um porta-retrato no qual Raphael, Isabella e Victoire apareciam, sorridentes, dentro de um iate enorme.

- “Engraçado, não há cheiro de cigarros por aqui...” – pensei.

Mas antes que Raphael acordasse, retirei meu celular do bolso, tirei uma foto daquela foto, e retornei ao bangalô, no exterior da casa.

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Ao examinar mais minuciosamente a foto, percebi que o iate levava o mesmo nome da casa de Raphael: “Roi de Sable”.

Isabella realmente era de uma beleza ímpar, e a alegria que ela demonstrava na companhia da família era tão evidente que somente alguma coisa muito grave, e que colocasse em risco essa felicidade, faria-a tomar a decisão que tomara.

Mas eu faria o impossível para encontrá-las, e propor-cionar a Raphael a tranquilidade da partida que teve o meu pai.

Independentemente de todos os maus entendidos, er-ros cometidos, de toda mágoa envolvida, eu já havia sido testemunha uma vez de que o perdão é o único tratamento realmente eficiente para a cura, sobretudo da alma.

- “Tá vendo só, Zuca! O silêncio às vezes cura, ou-tras, é matéria irmã da mágoa. Adoece, mata!” – uma voz sussurrou junto com a brisa da manhã, que àquela hora já se incumbia de apresentar os primeiros raios do astro rei.

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O QUARTO DIA

Já que eu realmente não conseguiria ainda dormir, mesmo tendo passado toda a noite no divã com Raphael, uma vez ele como terapeuta, e outra vez com os papeis in-vertidos, decidi continuar no bangalô até o sono realmente dar o ar de sua graça.

Nada mal dormir toda a manhã tendo Saint-Tropez como guardiã do meu sono.

Mas ele não veio, o sono. No Brasil ainda era madrugada, mas eu poderia aprovei-

tar esse tempo para já coletar informações a respeito de Isabella. Isabella Dubois. O sobrenome eu também consegui descobrir ainda

dentro do quarto de Raphael, em uma moldura, muito bem

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En Blanc

protegida, na qual se exibia, dentre outras medalhas, uma que dizia:

“Médaille d’honneur à Raphael Dubois”Ministère de la Justice.

A minha pesquisa então começaria pelo nome da mi-nha investigada.

E assim o fiz, já que mesmo fora do País ainda man-tinha acesso a alguns sistemas de informação do meu traba-lho. Ademais, eu poderia também considerar aquela busca como trabalho, investigação: uma criança de apenas três anos de idade fora levada por sua mãe para longe do pai, sem a autorização deste, já há algum tempo. Inclusive, man-dado de busca, apreensão e restituição da menor já havia até sido expedido pelas autoridades judiciárias.

Eu realmente me encontrava de férias, mas o trabalho, como um apaixonado obsessivo, conseguiu um jeitinho de se encontrar comigo, ainda que fora do País.

-“C’est La vie”! Faire quoi? – pensei.

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- Bom dia! Te acordei?- Sabe que me levanto com as galinhas, menina! – res-

pondeu-me do outro lado um amigo, um ex-colega de traba-lho, e para mim, um dos melhores investigadores do Estado de Goiás, João E.

- Então bom dia de novo! Um dia com “QRU”! – brinquei.- Na Europa, de férias, e se envolvendo em proble-

mas? – respondeu-me ele, ao passo que levava uma xícara de café à boca.

- Está tomando café, não está? Quase sinto o cheiro da-qui! – inspirei e senti mesmo o cheirinho de café fresco, sobre-tudo de onde eu sabia que ele se encontrava, em sua chácara.

- Bons tempos aqueles, não é menina cafecólatra? – e sorriu, uma risada distante, mais ainda assim, amiga. – Você sabe que agora sou um mero trabalhador rural, devidamente aposentado da polícia, não sabe?

- Sei sim. Por isso tenho certeza que você não terá como reclamar de acúmulo de trabalho nesse caso! – respon-di, já aguardando do outro lado, mais uma vez, sua risada como quem dizia:

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- Eita, menina...- Pelos velhos tempos, João. Não tão velhos assim,

mas rápidos, não é mesmo? É que não consigo me lembrar de mais ninguém que consiga se passar de despercebido e percebido, dependendo de como o caso requer, com a maes-tria com que você o faz. Ou você pensa que eu me esqueci das várias vezes nas quais, mesmo no plantão, quando al-gum caso lhe era atribuído para investigação, eu o ajudava a desenhar o cronograma do crime, com autoria, partícipes, dinâmica, motivo, enfim, só não com a condenação porque você não era o juiz?

- Realmente bons tempos aqueles, menina...- respon-deu-me, agora com uma risada um pouco mais contida.

- Saudade do trampo, João?- Um pouco, menina...- Vou resolver isso já então! - Você sabe que pode contar comigo para o que preci-

sar! – respondeu-me João, com a mesma amabilidade e dis-ponibilidade de sempre, desde os nossos não tão longínquos plantões.

- Muito obrigada, meu amigo. Eu sei disso.

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João era o tipo de policial, confiável, discreto, quieto, calado, mas tão observador que podia se sentar em um bar, tomar uma cerveja sozinho, escutar a conversa do lado, e sem ser percebido, sair do local com um crime desvendado.

Diplomático, nunca o vi alterar com ninguém, em ne-nhuma hipótese, ainda que sob tensão, e independentemente das piores circunstâncias.

E eu, ainda recém-chegada à profissão, apenas o ouvia dizer:

- Calma, menina, calma...E eu me acalmava.Trabalhamos juntos por quase um ano, mas logo de-

pois fui removida para outro lugar, e ele teve a merecida aposentadoria deferida. Então se mudou para o campo, lon-ge da rotina árdua do trabalho como policial, e, sobretudo da violência urbana.

- Eu só quero paz, menina...- ele me dizia sempre.Bom, talvez eu fosse interferir um pouquinho nessa

paz do meu amigo João, mas eu sabia que ele era o melhor agente para encontrar Isabella e Victoire, caso elas realmen-

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te estivessem no Brasil. E como se a vida já não houvesse me destinado coincidências suficientes, Porangatu era exata-mente a cidade em que tínhamos trabalhado juntos, embora agora ele, aposentado, vivesse com a família em uma cháca-ra próxima dali.

Na verdade, a intenção de busca à criança e à mãe se tratava de um ato de generosidade na qual me propus a ajudar em razão da doença de Raphael, seu pouco tempo de vida, e o pedido que me fizera.

O real objetivo da busca nem era, nesse caso, a apreen-são e restituição da menor. Se isso acontecesse, ótimo, mas se não, eu queria apenas que João, com sua inquestionável competência, localizasse algum parente próximo, que pu-desse fazer a ponte entre elas e Raphael.

A princípio, uma simples investigação.Como policial, fui obrigada a aprender que ter acesso

a apenas um lado da história não elucida nenhum caso. Al-gumas vezes a verdade não estará nas versões contadas pelas partes, mas sim em uma terceira versão, ocultada por ambas, ainda que nenhuma delas justifique a prática de crimes.

E eu sequer conhecia a versão de Isabella.Eu não sabia exatamente o motivo pelo qual ela fugira

com a filha daquela vida confortável que levava. Logo, não poderia julgá-la a tomar como premissa apenas a aflição de Raphael, embora eu fosse testemunha ocular de seu real so-frimento.

Mas eu o ajudaria mesmo assim.

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Eu só queria que meu novo amigo não fosse embora com aquela tristeza no olhar.

E na posse da qualificação de Isabella Dubois, inclu-sive da filiação daquela mulher tão misteriosa, João, como sempre, prestativo, informou-me que se deslocaria, naquele mesmo dia, mas um pouco mais tarde, até Porangatu, a cida-de do índio que morreu de amor por Angatu! – repetiu ele, divertindo-se!

Eu o agradeci mais uma vez, e depois disso Saint-Tro-pez foi cada vez ficando menor dentro do meu ângulo de visão, até se desaparecer por completo.

Adormeci ali mesmo, no conforto do bangalô, em Côte d’Azur!

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Ainda sonolenta, senti um cheiro bom a invadir o ban-galô.

Espreguicei-me, e quando abri os olhos, deparei-me com Raphael, com duas taças nas mãos, um vinho branco no recipiente em acrílico com gelo e água, e sobre a pequena mesa na qual na noite anterior deixei uma garrafa de Bai-leys, vazia, estavam dois pratos com risoto de camarão, tudo devidamente acompanhado do respectivo sousplat, guarda-napos, talheres, etc.

- Acorde, bela adormecida! – brincou ele. – Já passa das dezoito horas!

- Fala sério, Raphael! Dormi todo esse tempo?- E seu sono parecia tão reparador que sinceramente

não ousei te acordar. Exceto agora, não é mesmo? Afinal, nem só de sono vive o homem, ou a mulher! – gracejou.

- Desculpe-me! O que você almoçou? – perguntei preocupada.

- Você acha mesmo que um expert na cozinha como eu passaria fome algum dia? – respondeu arqueando uma das sobrancelhas.

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- Claro que não! Mais fácil isso acontecer comigo, não é mesmo? – e já me posicionei, faceira, para o jantar.

- On va manger, alors? – já com o meu garfo à mão direita.

- Oui, mademoiselle! S’il tu plaît! – e tomou seu garfo na mão esquerda.

- Mas espere aí um momento – disse de repente, com o garfo cheio de risoto no camarão no ar.

- Isso é um sonho ou você me disse “Desculpe-me”? – divertiu-se ele.

Eu já estava com a boca cheia. Só a apontei como for-ma de dizer que naquele momento eu me encontrava im-possibilitada de respondê-lo, e era melhor que ele não me atrapalhasse, afinal, corria sérios riscos ao fazê-lo – e dei-lhe uma piscadela faceira.

- Tudo bem! Coma! Hoje temos um programa especial para mais a noite! – atiçou minha curiosidade.

- Hummmmm...- respondi ainda com a boca cheia, para a comida saborosa e para o programa de mais a noite.

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Ao terminarmos de comer, como ele já havia prepa-rado o nosso jantar sozinho, mais uma vez não o deixei que me ajudasse na arrumação da cozinha. Também era apenas colocar nossos pratos, talheres e taças na máquina de lavar. Nada que demandasse mais tantos esforços físicos como quando cheguei àquela casa.

- Vou me arrumar, e você faça o mesmo também. Temos concerto às vinte e duas horas. – informou-me, animado.

- Oui, monsieur! – respondi, fazendo-lhe continência.Sem mais tardar, deixei a máquina de lavar louças em

seu ofício, e subi para o quarto para me arrumar.Quando abri a porta, deparei-me com dois vestidos

sobre a cama: um longo, em renda branca, leve, com um decote às costas, e o outro, mais curto, estilo bonequinha de luxo, também em renda, mas em tom de rosa seco, ambos simples, mas de muito bom gosto.

- Putzgrila! – sussurrei. – Por que dois? – perguntei, pensando estar sozinha.

- Para que você escolha o que quer vestir hoje, em-bora ambos sejam seus! – respondeu-me Raphael, à porta

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do quarto, a se divertir com o meu encantamento com os vestidos.

- Não posso aceitar, Raphael...- Olhe-os mais perto! – sugeriu ele.Obedeci-o, e tomei em mãos os meus presentes. Em

ambas as etiquetas, vi delineados duas letras BB, claro, de Brigitte Bardot.

- E são de Saint-Tropez – nocauteou-me, Raphael.- Covardia, Raphael! – e segurei ambos os vestidos,

abraçando-os, cheirando-os, namorando-os.- Deixe-me arrumar então! – Ah, e merci beaucoup,

Raphael! Raphael? Mas ele não se encontrava mais lá.

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Eu continuava sem sandálias de salto alto, mas a que eu levara, de cor nude, iria bem com qualquer um dos dois vestidos.

Para aquela noite, preferi o vestido cor de rosa seco, que me caiu como uma luva, em todos os sentidos.

Eu me sentia leve, mas no fundo ainda não estava to-talmente em paz. Tinha muita esperança que isso aconteces-se quando recebesse alguma resposta de João.

Até aquele momento, ainda nada.Lavei os cabelos, sequei-os, fiz uma maquiagem leve,

vesti o vestido, coloquei a sandália, um pouco de perfume, um brinco simples, e sai do quarto.

Raphael já me esperava embaixo, ao lado da escada. Usava uma calça leve de cor azul claro, uma camisa

branca de cambraia de linho, e sapatos mocassins, cor marron. Parecia bem mais jovem, saudável, e bastante confor-

tável.- Você está muito bonita, com todo respeito! – enfim

conseguiu pronunciar, quando eu já me encontrava quase no último degrau da escada.

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- Obrigada! – respondi, tentando ao máximo ser femi-nina no agradecimento.

- Por aqui, mademoiselle! – mostrou-me as escadas para o sótão.

- Por que no sótão? – respondi, já na defensiva.- Por favor! – insistiu.

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Quando chegamos ao sótão, a proteção que cobria o bentley havia sido retirada.

Raphael abriu a porta do motorista, e eu fiquei estática próxima àquele veículo luxuoso.

- Você não vem? – perguntou.- Ah, sim, sim! – respondi, ao mesmo tempo em que

tentava retornar do transe que a surpresa me impusera – e dei a volta para o lado do passageiro.

Raphael continuou com a porta do motorista aberta e não esboçava qualquer intenção de adentrar o veículo.

- Por aqui, mademoiselle! – disse-me apontando o banco do motorista.

- O que? Eu que vou dirigir? Não, não, vá você!Ele continuou parado, com a porta ainda aberta.- “Mon Dieu”! – pensei! Como ficou evidente que ele não se moveria do lugar,

dei novamente a volta, e me sentei, pela primeira vez no banco do motorista de um bentley.

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Ele fechou a porta, sentou-se no banco do passageiro, e nem percebeu que as minhas pernas quase se encontravam uma na outra, de tanto nervosismo.

- Prepare-se! Você vai dirigir um carro utilizado pela realeza britânica! E tenha cuidado: tente não ultrapassar tre-zentos quilômetros por hora!

- Não se preocupe! A letra B, com essas asas aber-tas, está bem aqui, luxuosamente gravada por todos os lados, no câmbio automático, no volante, nos dois bancos traseiros, nos dianteiros, ou seja, em nenhum momento vou me esquecer que estou dentro de um bentley! E que voa! Mas muito obrigada por me lembrar desse detalhe banal, Raphael! Era tudo o que eu precisava ouvir para me acalmar. – respondi, agora com os joelhos a tocar, li-teralmente um ao outro.

- Para onde vamos? – perguntei, encantada com cada detalhe do veículo, o painel elevado, digital, o banco rebai-xado, as cores personalizadas, a partida do veiculo apenas com o acionamento de um botão...Só o cheiro do veículo é que me incomodava um pouco. Parecia que ninguém o utili-zava há algum tempo...

- Start! – comandou ele.- Comme vous voulez, monsieur!- Ao Cassino Barrière, em Sainte-Maxime! Tenho certe-

za que você vai adorar o espetáculo! – concluiu, entusiasmado!- Já estou, Raphael – e saí, literalmente ladeira abaixo,

conduzindo um veículo que eu pensava jamais ir além de

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uma foto, do lado de fora, dessas que você tira e sai em dis-parada! E depois posta nas redes sociais!

A tentação era realmente impulsionar o acelerador até deixar Raphael assustado com a velocidade, mas como ele pouco se importava quando eu fazia menção de assim fazê--lo, e em razão das muitas curvas daquela estrada montanho-sa, decidi maneirar o pé, e aproveitar o conforto que aquele carro proporcionava.

Parecia que eu conduzia rente ao chão, mas parecia que o chão era nuvem, tamanha sensação de leveza na dire-ção daquele veículo, que mesmo com o tamanho que tinha, deslizava, majestoso, por aquela estrada sinuosa.

Como eu já sabia o trajeto, nem precisamos do GPS do veículo.

Menos de vinte minutos depois, adentrei o estaciona-mento do cassino barrière, situado junto a uma rotatória no centro de Sainte-Maxime, e de frente para o mar.

Um manobrista do cassino se aproximou, e solícito, ofereceu-se para estacionar o veículo, enquanto eu fui dire-cionada para o interior do Cassino. Raphael acompanhou--me, claro.

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Subi o carpete vermelho de uma escada, e já no pri-meiro andar, deparei-me com mesas de pôker, blackjackt, roleta inglesa. Bem ao lado, um lounge com várias slot ma-chines, as quais, como canto de sereia, também seduziam quem delas se aproximasse.

Eu resisti, até porque já se aproximava o horário do tão esperado espetáculo para o qual fui convidada por Raphael.

Caminhei mais um pouco e me deparei com uma grande e bela sala de espetáculos, com acesso ao terraço. Mas não tínhamos tempo para apreciarmos a vista de lá.

- “Depois do espetáculo” – pensei.As luzes se apagaram, o palco central foi ilumina-

do, as cortinas foram abertas, e uma figura feminina foi se emergindo daquele cenário de encantamento, ao passo que interpretava, com uma voz potente e apaixonante, um estilo de música, que desde o primeiro acorde da guitarra, e desde a primeira noite em que ouvi, atravessou, sem qualquer di-ficuldade, um território já há algum tempo fechado, o meu coração.

O fado.

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Foi inevitável não olhar para Raphael e agradecê-lo!Como assim, fado?Como ele sabia que eu sou apaixonada pelas emoções

que o fado consegue me despertar? Como ele sabia que eu iria adorar ouvir notas musicais capazes de me fazer revirar baú de memórias, e ainda que tristes, encantar-me pelo so-frimento necessário e tão bem representado na voz daquela fadista, que realmente parecia sentir tudo o que melodiosa-mente lhe saía da boca, palavra por palavra.

Não demorou muito para que as lágrimas voltassem a tomar conta dos meus olhos.

Não, não era exatamente tristeza, era fascínio, venera-ção, sentimento, emoção, sobretudo ao final do espetáculo, quando eu reconheci a entrada de um fado de Amália, cuja letra me empurrava ao espelho, e sinceramente, o meu refle-xo nele incomodava-me.

“Não queiras gostar de mim, sem que eu te peçaNem me dês nada que ao fim, eu não mereçaVê se me deitas depois culpas no rostoIsto é sincero porque não quero dar-te um desgosto

De quem eu gosto nem às paredes confessoE até aposto que não gosto de ninguémPodes sorrir, podes mentir, podes chorar tambémDe quem eu gosto, nem às paredes confesso

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Quem sabe se te esqueci ou se te queroQuem sabe até se é por ti por quem eu esperoSe eu gosto ou não afinal, isso é comigoMesmo que penses que me convences nada te digo

De quem eu gosto nem às paredes confessoE até aposto que não gosto de ninguémPodes sorrir, podes mentir, podes chorar tambémDe quem eu gosto, nem às paredes confesso

Podes sorrir, podes mentir, podes chorar tambémDe quem eu gosto, nem às paredes confesso!”

Composição: Artur Ribeiro / Ferrer Trindade

Depois do fechar das cortinas ainda permaneci senta-da na poltrona por alguns minutos.

Raphael fez o mesmo, mas antes, ofereceu-me um lenço para que eu enxugasse minhas lágrimas.

- Então, gostou? – visivelmente sem saber como ini-ciar aquele diálogo.

- Vamos para o terraço? Preciso respirar! – respon-di, enquanto ele imediatamente se levantou, e com as mãos, ofereceu-me passagem.

- Você quer beber alguma coisa?- Já que você me fez voltar à Portugal, pode me trazer

um Porto ruby, por favor! – respondi, já no terraço do Cas-

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sino, a admirar a vista do mar, iluminado em alguns pon-tos. Lá na frente, do outro lado daquela imensidão de águas, Saint-Tropez continuava, silenciosa, a testemunhar tudo o que eu vivia.

- Mademoiselle! – entregou-me uma taça, um garçom. Logo em seguida Raphael se sentou ao meu lado e

também começou a admirar a vista.- Por que você se emocionou tanto com o último fado?

– perguntou-me, depois de longos minutos em silêncio.Eu nada respondi.- Eu vou reformular a pergunta então? Do que é que

você tem medo?Eu o olhei bem no fundo dos seus olhos e a resposta

me saiu instantaneamente.- Do amor. Eu tenho pavor do amor, Raphael!Ele ficou imóvel, voltou os olhos para a vista do mar,

e insistiu:- E você já o encontrou? O amor?- Já! E todas as vezes eu o empurrei para a porta de

saída, e a abri, para que ele fosse embora.- Como você está fazendo com alguém agora?- Sim, exatamente como eu fiz com alguém agora.- E ele foi embora?- Sim, sem olhar para trás.- E você tentou evitar isso? Você disse, com todas as

palavras que queria que ele ficasse? Você o fez reviver boas lembranças, com figos, por exemplo?

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Em silêncio, lancei-lhe meu único olhar disponível àquele momento.

- Nem precisa responder que você o deixou ir embora por orgulho, e ainda pensando que era exatamente isso que você queria.

- Quem foi que falou com você sobre mim? Por que você acha que me conhece tanto?

- Por que você tem pavor do amor? – desconversou ele, sem responder minha pergunta anterior.

- Porque o meu amor machuca.- A você ou ao outro?- Ambos.- Me deixa entender a lógica disso: você ama alguém

e o machuca?- Na maioria das vezes.- Por que?- Para antecipar partidas. Eu lido bem melhor com

elas quando eu decido o momento de partir.- E se a pessoa não quiser partir?- Eu o faço por ele. – respondi, visivelmente magoada.Raphael mais uma vez balançou a cabeça como se dis-

sesse “tá difícil”. Então se silenciou e foi até a borda daquele terraço, olhar fixo no mar, e em Saint-Tropez.

Eu continuei a irrigar minhas feridas com o porto ruby.Minutos depois ele voltou, e ainda em pé, tentou, a

seu modo e com todas as suas dificuldades, respirar fundo. Em seguida me disse para fazer o mesmo.

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Eu o obedeci.- Pronto, já sei que quando você gosta, você maltrata,

e quando você ama, maltrata mais ainda! Mas o que real-mente acionou esse seu botão “pavor do amor”? Agora me conte o que falta contar!

- Então se sente aqui! Eu vou lhe contar mais uma história, já que você insiste.

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Três horas da manhã.Ao som do tambor, tamborim, reco-reco, violão e cuí-

ca, cada instrumento nas mãos de um amigo, vez ou outra ele se esquecia do samba, e ia ao meu encontro, só para me dizer baixinho, ao pé do ouvido:

- Obrigado por estar comigo...Um barril de Chopp abastecia o ânimo dos presentes,

e fazia rodopiar até mesmo quem achava que o samba era apenas colocar um pé à frente, outro atrás, e vice-versa.

Ele não.Dançava muito bem.Dançava para si e para os outros.Dançava acariciando e abraçando o mundo.Dançava com os pés ágeis e com o coração quente.

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E eu ali, apaixonada, de plateia.- Você sabe que eu te amo, não sabe? – perguntou ele.- Sim, eu sei. E é justamente por isso que agora, eu

dirijo. Preciso manter vivo alguém que diz que me ama – respondi, faceira, já com as mãos estendidas para que ele me entregasse a chave de seu carro.

Sob os olhares de aprovação dos amigos, ele não teve alternativa senão me deixar dirigir para casa, pois já havia ingerido muita bebida alcóolica, e eu não. Então, passou-me as chaves do veículo e acomodou-se no banco do carona.

Dispensamos o cinto de segurança.Queríamos estar livres para nos tocar e nos acariciar

durante o trajeto que não seria tão longe assim.Semáforo fechado, um beijo apaixonado.Semáforo abria, carro seguia.E assim foi até chegarmos à rua Benjamim Constant,

do Setor Campinas, no cruzamento com a Avenida Castelo Branco, em Goiânia.

O semáforo era de fases, o que favorecia bons minutos de loucuras. E era o que fazíamos, independente dos olhares curiosos que por vezes nos eram dados. Uns sorriam, outros fechavam os vidros do carro, outras tapavam os olhos dos namorados, maridos, etc...

Mas o sinal ficara verde.Eu era obrigada, ressalte-se, contra a minha vontade,

a seguir.

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Exatamente nesse momento, ninguém na rua, ne-nhum outro veículo por perto, e sinal aberto. Coloquei a primeira marcha, e antes que eu completasse a travessia da Avenida Castelo Branco, uma caminhonete apareceu, do nada, a se agigantar, com seus grandes e faróis acesos, a “engolir” o lado do motorista, o local no qual eu me encontrava.

Eu apenas senti o baque dos meus seios contra o vo-lante do carro, e nada mais.

Desacordei.Após alguns minutos, ainda na direção do veículo, e

este em movimento, comecei a ouvir uma voz, ao longe:- Meu anjo, por favor, acorde!!!Eu queria desesperadamente acordar, mas não conse-

guia. Ouvia, mas não conseguia reagir...Queria chorar, gritar, pedir desculpas, bater em al-

guém, entretanto nenhum dos meus movimentos me obe-decia. Estava imóvel! Até que passados alguns séculos de minutos, quando já achava que não recobraria mais os sen-tidos, consegui abrir os olhos e identificar um container de lixo, enorme, amarelo, bem à nossa frente, e o veículo indo ao encontro dele!

- Freio, meu bem. Freio!Num impulso, e sem saber de onde surgira minha for-

ça, pisei, desesperadamente, o freio.Frenei. Frenei, e ele, após se certificar de que eu es-

tava aparentemente bem, saiu do veículo, dizendo que bus-

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caria ajuda. Foi nesse momento que percebi que a boca dele sangrava, e acompanhei-o com olhar para trás.

Algumas pessoas já se aglomeravam no local, curio-sos pelo acontecido, por feridos, por desgraça, sabe-se lá! Não se tinha ideia de onde vieram, nem se haviam “brotado do chão”, mas, fato é que a multidão se aglomerava, sem ao menos prestar qualquer tipo de socorro ou sequer chamar a polícia. Às vezes nem se era permitido identificar os respec-tivos rostos, pois que os aparelhos celulares encontravam-se à frente.

Por falar em Polícia, éramos dois policiais. Ele e eu. E, ainda no carro, também percebi quando ele agarrou, pelo colarinho, o motorista, que completa e visivelmente embria-gado, causara o acidente, e já tentava evadir-se do local.

Os ânimos estavam exaltados.Eu era obrigada, a qualquer custo, a me manter des-

perta.Na tentativa de se apaziguar a situação, também con-

segui me levantar do veículo e ir ao encontro dele, para que algo pior não acontecesse, afinal, estávamos vivos.

De repente, várias viaturas de polícia chegaram ao local.Àquela data, o teor alcóolico do motorista deveria,

obrigatoriamente, ser comprovado pelo teste de bafômetro, e tal requisito legal ainda era condição “sine qua non” para a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante. Aos bêbados ao volante sempre lhes era facultado a condescendência do princípio constitucional de “não se produzir provas contra si

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mesmo”. Assim como em outros vários casos, sob o manto da impunidade, aquele indivíduo se recusou a se submeter ao teste de etilômetro, ainda que claramente apresentas-se sinais visíveis de embriaguez, tais como fala arrastada, olhos vermelhos, descoordenação motora, odor etílico, e para completar o quadro, um colar que denunciava o local de onde ele viera: uma festa havaiana.

Mais sirenes. Corpo de Bombeiros, acionado por um amigo nosso, que também havia se aproximado do local nes-se intervalo.

Minutos depois, que pareceram horas, um pouco mais tranquila, pois que a situação já se encontrava “sob contro-le”, levei minhas mãos à cabeça, por detrás.

Senti algo molhado, frio e as voltei para frente, a fim de certificar-me o que seria aquilo. Para minha surpresa, mi-nhas mãos voltaram completamente ensanguentadas.

Perdi o chão, aliás, fui ao encontro dele, perdendo, mais uma vez, os meus sentidos.

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- Olá! Oi! Acorde! Você está me ouvindo?Abri os olhos.Encontrava-me deitada em uma maca, já dentro da

Unidade de Resgate do Corpo de Bombeiros.- Onde está Maurício? – perguntei-lhes, completa-

mente fragilizada.- Ele foi à Delegacia de Polícia para acompanhar o

procedimento que será aberto contra o filho de uma puta que provocou isso - respondeu-me Fábio, um amigo de Maurí-cio, o qual permaneceu no local do acidente - Você quer que eu te acompanhe até o Hospital de Urgências? – perguntou--me, um tanto quanto constrangido.

Foi a primeira vez que senti uma pontada diferente no peito, e uma lágrima silenciosa caiu-me dos olhos.

- Está doendo? – perguntou-me um dos bombeiros.- Você nem imagina o quanto... – respondi, disfarçan-

do o verdadeiro motivo da dor.E ali, enquanto o bombeiro, cumprindo o procedimen-

to de primeiros socorros, rasgava-me as calças, o mesmo acontecia em meu coração.

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- Não foi por falta de aviso – uma voz perturbou-me o pensamento.

- Eu te falei que mais cedo ou mais tarde você perce-beria que isso não era amor...- outra voz atormentava-me.

- Cadê sua vida “en rose”? – dizia-me outra voz, sar-casticamente...

- Você não tem um remédio que me faça dormir? – perguntei ao socorrista, aos prantos.

- Você não pode dormir. É necessário que você se mantenha acordada, por favor. – respondeu-me, impassível e profissional, o bombeiro.

Maurício apareceu ao Hospital de Urgências assim que amanheceu o dia. Eu continuava lá, com uma parte de cabelos da cabeça raspada em razão dos pontos no corte que até o momento eu nem sabia de que tamanho era.

- Tudo bem, meu anjo?- Sim, tudo bem.Por fora, aparentemente, eu me encontrava bem.

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CORAÇÃO FERIDO

- Caramba, que pontada é essa no meu peito!! – assus-tei-me certo dia, passados aproximadamente seis meses do acidente sofrido.

- Talvez seja estresse – retrucou-me um colega.- Pode ser que esteja próximo à sua menstruação – es-

peculou outra.- Talvez você tenha rompido o silicone no acidente.

Você me disse que estava sem cinto de segurança e bateu o peito contra o volante – diagnosticou outra.

Como praticamente todos os exames haviam sido feitos na madrugada do acidente, dentre radiografias e outros, respirei fundo e pausadamente, acalmei-me e continuei meus afazeres:

- Não deve ser nada grave – conclui.Mas os dias passaram-se e as pontadas em meu peito,

antes leves e descontinuas, agora, tornaram-se fortes, diu-

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turnas, e seguidas de dormências e formigamentos no meu braço esquerdo.

- Vou ao ginecologista – decidi, depois de ter sido por várias vezes advertida pelos colegas de trabalho de que sen-tir dores no peito todos os dias não era nada normal.

No mesmo compasso, se arrastava o meu relaciona-mento com Maurício.

- Você é muito “melindrosa, rancorosa” – criticava-me uma colega, testemunha do meu sofrimento silencioso em não permitir com que aqueles poucos minutos de abando-no de Maurício, dentro da Unidade de Resgate do Corpo de Bombeiros, na ocasião do acidente, não se tornasse séculos de mágoa enraizada.

- Mágoa é o pior câncer da humanidade – repetia-me sempre, ela. – Leva a óbito sentimentos que não são passí-veis sequer de outras reencarnações – concluía.

E eu tentava inspirar, respirar, profunda e pausada-mente, mas a dor continuava ali no peito. E a mágoa tam-bém, razão pela qual, não comuniquei a Maurício o que se passava comigo, a princípio.

- Então, suas taxas hormonais estão absolutamente em ordem, e suas próteses mamárias intactas – observou o gineco-logista, ao passo que avaliava minha ressonância magnética das mamas e demais resultados de exames que eu lhe apresentara.

- Mas e as dores, Dr. Eduardo?- Vamos fazer o seguinte: vou te sugerir um check up

cardíaco, mas não apenas eletrocardiograma. Na sua idade

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é pouco provável que você tenha algum problema dessa ordem, e se for psicológico, saberemos o que fazer poste-riormente. Faça, sobretudo, um ecocardiograma – pontuou o médico.

- Tudo bem – respondi-lhe, tranquila, enquanto já mar-cava os exames junto ao Hospital do Coração, em Goiânia.

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Na manhã do dia seguinte, bem cedo, lá estava eu, sozi-nha, no Hospital do Coração, para me submeter ao ecocardio-grama, que nada mais era que uma ultrassonografia do coração, todavia, um tanto quanto mais profunda que o habitual eletro-cardiograma. Eu nunca gostara de expor meus problemas emo-cionais ou de saúde a ninguém, então mantive segredo sobre a sugestão do ginecologista, e apenas o obedeci.

Vários eletrodos, com gel embaixo dos mesmos foram colocados em meu corpo, dos pés ao tronco. Mesmo con-fiante, meu coração batia aceleradamente. Tive que respirar profunda e repetidamente por várias vezes, na tentativa de me acalmar.

- Essa é a primeira vez que você se submete a esse tipo de exame?

- Sim.- E você vai ao médico, mesmo que esporadicamente?- Sim, ginecologistas, clínicos gerais de vez em quando...- E na sua infância, ninguém nunca te disse nada?Meu coração novamente se acelerou. Aquela conversa

não estava com sinais de que acabaria bem.

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- Dra., não me enrole – retruquei, com total impaciên-cia para meias palavras.

- Você tem um buraco no coração – devolveu-me a médica, ciente que a sua pancada seria mais intensa.

E foi..- Como assim? Buraco? O que é isso? Como assim?- Você é portadora de uma doença congênita que se

chama comunicação Interatrial (CIA) – tentou explicar-me a cardiologista

Não. Isso não poderia estar acontecendo. Era mais um trote desses que vida estava acostumada a me passar, e pare-cia se divertir com isso.

Tentei desesperadamente encontrar ar para reabaste-cer meus pulmões, que àquela altura, e reagindo à notícia, pareciam estar me punindo de alguma coisa que eu nem imaginava o que seria, mas minha respiração estava tão ofe-gante, que pouco a pouco fui ouvindo a explicação da médi-ca em slow motion, bem devagarinho...

- A CIA é vulgarmente conhecida como sopro. Os por-tadores da CIA geralmente são pessoas com pouca resistên-cia física, sobretudo na infância...- continuou a médica.

Tarde demais.Eu já havia acionado o botão “foda-se”, “saia desse

mundo”, “Vá para outro lugar”, e saí de lá.Mas ela não desistiu de tentar explicar ao meu corpo o

que significava o palavrão Comunicação Interatrial.

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- Par ou ímpar?- Par.-Ímpar.Um, dois, três e...já!- Ganhei! Eu começo a escolher, falou, imponente,

Drica.O jogo se chamava “rouba bandeira”, mas aquela tur-

ma de crianças, entre meninas e meninos, todos com aproxi-madamente sete a oito anos de idade, o conhecia como “lalá bandeira”. Era o jogo mais praticado naquela pequena vila do interior de Goiás, onde a molecada não tinha muita opção para o lazer, exceto correr descalça pelas ruas, que à época, nem asfalto tinham.

Independente do número de crianças a participar da brincadeira, formavam-se duas equipes, divididas bem ao meio. Havia dois líderes, que inicialmente disputavam no par ou ímpar, a escolha do lado da rua, assim como os seus parceiros.

- Eu quero o João - disse Drica, fazendo algazarra.- Eu quero o Pedro – revidou Jana, da mesma forma.

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Sim, a brincadeira englobava meninos e meninas. O campo era dividido ao meio e duas bandeiras, fossem de tecido ou de papel, eram colocadas afastadas da divisão do território. Geralmente algum menino tirava a camiseta e a colocava como bandeira. Ganhava a equipe que con-seguisse ir até o campo adversário, “roubar a bandeira”, e a trazer para seu próprio campo, sem ser tocado pela equi-pe contrária. Como resistência física e corrida era sempre o divisor de águas para a brincadeira, os meninos eram disputados à tapa.

- Dani, comigo – sentenciou, mais uma vez, Drica.Ao lado de Dani, encontrava-se uma menina peque-

nina, sempre a menor da turma, com longos cabelos loiros e encaracolados, cheia de sardas no rosto e olhinhos verdes vidrados à espera que alguém a escolhesse. Era mais conhe-cida como a “boneca chorona”.

Era eu.E depois que faltava apenas um componente, aquele

mesmo só prá fechar, em número, uma das equipes:- Ok, você sobrou de novo, não é? – desdenhou Jana,

enquanto todos foram para seus postos.Eu sobrei para o time de Jana.- Você fica um pouco atrás. Não consegue correr mes-

mo. E veja se não chora dessa vez!Toda vez era isso.Toda vez eu não era escolhida porque não tinha a mes-

ma resistência física das demais crianças.

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Toda vez a equipe em que eu estava ou perdia por mi-nha causa, porque na minha vez eu não conseguia às vezes nem sequer tocar a bandeira do campo adversário, ou ga-nhava, com esforço redobrado dos demais participantes da brincadeira.

Toda vez eu tinha que engolir o choro mesmo antes da brincadeira começar...

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- Por favor, acalme-se...Ainda veremos qual será o tratamento para seu caso, se cirúrgico ou não... – pontuou aquela médica, crédula de que o que ela acabara de dizer realmente pudesse me trazer algum alento.

A palavra “cirúrgico” me obrigara a voltar à sala de exames.

Eu e o meu choro.Chorava como uma criança a procurar o colo da mãe...Chorava sentida, derrotada, apontada, como quando não

conseguia ser uma boa parceira no jogo “lalá bandeira”...- Cirúrgico? Cirurgia? Do coração? Não! De jeito ne-

nhum. Com essa idade? Nem pensar! Não faço! Morro, mas não faço – mais soluços que palavras foram ouvidos.

- Escute, o seu coração, de um lado já se encontra bem inchado pelo fato de ter sido obrigado a trabalhar em dobro todo esse tempo sem diagnóstico. Você precisa se submeter ao tratamento, mesmo que cirúrgico. Caso contrário, poderá não passar dos quarenta anos de idade – sentenciou aquela médica, como se um buraco no coração fosse uma espinha no rosto.

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- Ok. Eu vivo até os quarenta anos de idade. Não preciso mesmo viver mais que isso – retruquei-lhe, e saí da sala de exames, limpando, freneticamente e inutilmen-te os olhos.

Quarenta anos, quarenta anos...- Quarenta anos? Como assim? Não faltavam tantos

anos assim! E os meus sonhos? E tudo que eu ainda não vivi? Como assim? Quarenta anos é muito pouco! Não, não!

Daí em diante o botão “Caia na real” entrou em ação e começou a fazer um barulho insuportável em minha mente já tão atordoada!

E agora?Ir para onde?Por que eu?De novo uma porrada da vida?Nocaute?De novo, porra?Ligar para quem?Brigar com quem?Descontar em quem?Pedir ajuda a quem? A Deus? E onde estaria Ele, na-

quele momento, mais uma vez a se divertir e a brincar de Playstation com a minha vida?

Sozinha.Eu estava sozinha.Eu me sentia sozinha, invisível, minúscula, impoten-

te, carente, doente.

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Eu e eu, dentro de um buraco enorme, não apenas do meu coração, mas o que acabara de se formar sob meus pés, e me engolia, sem ninguém por perto para me socorrer...

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Ainda com a notícia a martelar-me a mente, come-cei a andar, aos prantos e sempre a me perguntar “por que, por que, por que eu?”, mesmo sob o risco de ser rotulada como “louca, histérica”, pelas pessoas, que alheias ao meu sofrimento, e impassíveis, testemunhavam aquela cena de-primente.

Como não recebera nenhuma resposta, decidi voltar e pegar meu carro.

Antes de sair com o veículo:- Mãe! – sussurrei, com a voz embargada...- O que foi minha filha? Fale pelo amor de Deus –

respondeu-me, aflita, do outro lado da linha, a minha mãe.- Você acha que a minha vida é fácil? Você acha que

eu sou uma pessoa ruim? Você acha que eu realmente mere-ço sofrer, mãe? – desabei.

- De jeito nenhum, minha filha! Sua vida nunca foi fácil, mas você sempre soube que tudo o que acontece é para seu bem, e tem um propósito, não sabe?

- Não sei não, mãe. Estou cansada disso tudo...- Disso tudo o que, minha filha? O que aconteceu?

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- Sabe aquelas dores que eu ando sentindo no cora-ção? As pontadas? Então, não é uma gripe, uma virose, uma dor de cabeça, mãe...É um problema cardíaco, e eu preciso me submeter a uma cirurgia...

- O que, minha filha? Como assim? Alô, alô! Minha filha, pelo amor de Deus, consegue me ouvir????

Não consegui falar mais nada, mas com a minha mãe eu não precisava parecer uma rocha, com ela eu não precisava sentir vergonha de chorar já com a boca no chão, acabada, nocauteada. Com a minha mãe seria dor realmente sentida, mas dividida, dolorosamente compar-tilhada...

Eu nem sabia para onde dirigia, mas conduzia. Dirigia pela cidade de Goiânia sem querer chegar a lugar nenhum, sem querer parar em canto algum, e sem conseguir secar as lágrimas que me embaçavam o para-brisa.

Do outro lado do telefone, uma mãe, desesperada-mente, continuava a ouvir o choro angustiado da filha, sem nada poder fazer, exceto pedir clemência Àquele que permi-tiu que ela fosse gerada em seu ventre...

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Li Azevedo

Goiânia apresentava um sol escaldante.Era mês de julho.Eu me recusava a voltar para casa, então continuei a

dirigir pela cidade.De repente, chuva. Chuva e lágrimas, águas que me

fizeram estacionar em um dos shoppings da cidade, depois de ter rodado sabe-se lá quanto tempo.

Pelo menos no shopping várias pessoas também an-davam de um lado ao outro, a correrem, a comprarem, com-penetrados em seu próprio mundo, e não perceberiam a pre-sença de uma pessoa massacrada pela vida, sozinha, a sorver seu café em uma mesa propositadamente mais distante de toda aquela movimentação.

Café.Café com sal, sal de lágrimas.- Nossa, quanta coincidência! Você por aqui? – tocou-

-me alguém, ao passo que eu me encolhia e a minha vontade era me esconder debaixo daquela mesa.

Era Fábio, um colega que cuidava da parte de Infor-mática do meu local de trabalho.

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En Blanc

Não pude ignorá-lo. Não consegui, até porque ele logo se sentou à minha frente.

E emudeceu-se.Por alguns minutos assim ficou, enquanto fui obrigada

a encará-lo.As lágrimas continuavam a cair, torrencialmente, dos

meus olhos.- Que merda! Isso não vai estancar – esbravejei, na

ânsia de, pela milésima vez, enxugá-las.- Bom, agora eu te reconheço – conseguiu, enfim, bal-

buciar alguma coisa, e colocou suas mãos sobre as minhas, em um gesto nítido de solidariedade.

Eu as retirei.Estava ferida demais.Tudo me doía, inclusive minhas mãos.- Ok. Você quer me contar o que aconteceu? Logo

você, sempre tão de bem com a vida...Me assusta muito vê--la assim, tão...

- Tão acabada – conclui.- Não, acabada não. Só se você já tiver feito tudo para

mudar a situação que te incomoda e não tiver resultado em nada. E mesmo assim, se você o fez, não está acabada. Cá prá mim, acho que está só no princípio...

- É que algumas coisas acontecem na vida da gente que...

- Que a gente não entende, não é mesmo? Não conse-guimos entender agora, mas pode ter certeza que depois sim.

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Li Azevedo

Eu já tinha chorado demais, reclamado demais, revol-tado demais, e estava, da mesma forma, cansada demais...Então respirei fundo, e fui direto ao ponto:

- Eu tenho que fazer uma cirurgia do coração, Fábio.Ele não esboçou nenhum indício de que estaria espan-

tado com a notícia.- Ok. Tão jovem, mas ok – concluiu, após um longo e

sentido suspiro.Meus olhos já estavam secos.Secos e imóveis.- Qual cirurgia cardíaca?- CIA, mais conhecida como sopro.- Então, bem menos complicada do que a que eu fiz

aos trinta e poucos anos – animou-se ele.- Você?Ele abriu um pouco os botões da camisa e mostrou-me

um elevado na pele, local onde ele fora obrigado a inserir um marca passo.

- A notícia realmente quase nos mata, não é mesmo? Eu acho que Deus deve olhar bastante por esses portadores de problemas cardíacos, caso contrário, todos nós morrería-mos já ao recebermos o diagnóstico, sem qualquer tratamen-to, sem qualquer cirugia!! – tentou amenizar o clima.

- Você já foi a algum cirurgião cardíaco?- Não, ainda não. Recebi a notícia hoje. – conclui, vi-

sivelmente esgotada.- Seu dia de sorte!

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En Blanc

- O que? – disparei, atônita!- Calma! Sorte por ter me encontrado hoje! Fiz a mi-

nha cirurgia com o melhor médico de Goiânia, Dr. João Ba-tista de Moraes. Já ouviu falar?

- Não, Fábio. Sou muito jovem para me inteirar de assuntos cardíacos e seus respectivos médicos!

- Pelo menos você já voltou ao normal...Bom, quase, não é? – respondeu-me ele, com uma piscadela - Vou entrar em contato com ele e marcar uma consulta para você - concluiu.

- Obrigada, Fábio! – respondi, sem qualquer entusias-mo na voz.

Despedimo-nos, depois que ele teve a certeza que eu realmente estava melhor e poderia conduzir para casa.

Eu continuei em Goiânia, e ele foi embora para o interior de Goiás.

Estávamos em uma segunda-feira.No dia seguinte:- Sua consulta foi marcada para depois de amanhã. Ele

atende muitos pacientes ao longo do dia, então chegue cedo ao consultório, e o principal, seja paciente, não no sentido hospitalar, mas pa-ci-en-te! – soletrou ele.

- Ok, Fábio! Vou tentar! Muito obrigada!Mas um dia antes da consulta com o Dr. João Batista

de Moraes, por uma questão de consciência, ainda fui a uma consulta indicada pela médica que me fizera o exame.

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Li Azevedo

Pode entrar a próxima paciente.Era eu.Já me sentia um pouco mais forte, embora ainda ame-

drontada com o que poderia me aguardar.O médico, na altura de seus cinquenta anos de idade,

tomou em mãos os meus exames, analisou-os, virou-os de cabeça para baixo, revirou-os, e enfim:

- Seu caso é mesmo cirúrgico.Não me assustei mais com a notícia.Respirei fundo.- Cicatriz no meio do tronco, Dr.?- Sim, entre os seios.Engoli a seco.- Você tem plano de saúde, não é mesmo?- Sim, tenho.- Há quanto tempo?- Seis meses.- Eles não vão cobrir. Trata-se de doença congênita. A

carência é de dois anos – concluiu ele.

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Tentei engolir a seco mais uma vez, mas não consegui engolir nada porque nem a seco consegui.

- E? – foi a única letra que saiu da minha boca.- Particular? Sugeriu-me ele, tranquilamente.E eu continuei com o “-E?” estampado na cara, imó-

vel.- Sim, eu sei que a cirurgia é bastante onerosa. Como

a sua situação requer urgência e não permite que se aguar-de a carência do plano, se você achar que está fora do seu orçamento, sugiro que você procure um cirurgião cardíaco conveniado com o Sistema Único de Saúde.

- Obrigada, Dr. Vou morrer então antes dos quarenta anos, mas na fila do SUS, não é mesmo? – retruquei, en-quanto ele sequer moveu o supercílio.

Orçamento! Como se o Brasil nos permitisse trabalhar e poupar o suficiente para orçamentos dessa magnitude.

No dia seguinte a consulta com o Dr. João Batista de Moraes estava marcada para as dezessete horas.

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Li Azevedo

Quinze horas e eu já me encontrava na clínica, mais uma vez, sozinha, para a respectiva consulta. Ainda que duas horas de antecedência, não havia sequer um banco para me sentar, tamanho o movimento de pacientes, todos, abso-lutamente todos, bem mais velhos que eu.

Dezoito horas:- Moça, por favor, minha consulta está marcada para

as dezessete horas. Já tem um atraso de uma hora!- Você tem, no máximo, um terço da idade da grande

maioria desses idosos! E eles também estão a aguardar.A resposta me fez sentar na primeira poltrona vaga,

sem nada dizer. Sempre respeitei muito os mais velhos. Ja-mais me oporia que passassem à minha frente.

Dezenove horas: Mais dez pacientes atendidos, me-nos eu. Vinte e uma horas: Mais quinze pacientes atendidos, menos eu.

Meia noite e meia:- Não quer passar mais alguém à minha frente! Pode pas-

sar! Chame lá na rua, já que aqui estamos somente nós duas!

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En Blanc

A essa altura eu já havia perdido há muito tempo a educação e a solidariedade para com a terceira idade, com os funcionários da clínica, com a vida.

- Agora é a sua vez! – Chamou-me a atendente, com-pletamente alheia à minha indignação por ter esperado tanto tempo!

Para piorar, durante todo esse intervalo recebi liga-ções de Maurício, que irritado, apenas gritava do outro lado da linha:

- Mas que porra de consulta de rotina é essa? Meia noite? Quer enganar a quem?

Eu só esperava que o meu coração não estivesse enga-nado em relação ao Dr. João Batista de Moraes.

Antes de abrir a porta do consultório, respirei fundo, uma, duas, três, quatro, e na décima vez, como eu ainda não havia me acalmado, abri-a com minha fúria a saltar aos olhos.

O cirurgião cardiovascular encontrava-se de costas para a porta, sentado, calmo e confortavelmente em sua ca-deira giratória, e a rodá-la, de um lado ao outro. Essa ima-gem deixou-me inerte, por alguns segundos, à porta do con-sultório.

- Sente-se aí, minha querida! – disse-me amavelmente.Consegui o último suspiro fundo e, automaticamente,

obedeci.- Então você é policial?- Isso faz diferença?

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Li Azevedo

- Só se você estiver armada agora! – sorriu.- Então não fará diferença hoje. – retruquei, ainda a

tentar não ser “desarmada” tão facilmente.- Já fico mais tranquilo – continuou, com o mesmo

bom humor.- A que horas o senhor começou a atender?- Às treze horas. Isso é um interrogatório?- Quantos pacientes o senhor atendeu?- Só hoje?- Hoje foi o dia no qual eu fiquei esperando até meia

noite e meia para ser atendida, não é mesmo?- Só hoje, em torno de quarenta a cinquenta pacientes,

todos com problemas bem mais graves que o seu. Eu atendo consultório das treze horas até o último paciente, no caso, hoje, você. Quando saio do consultório faço uma hora de na-tação, durmo em torno de duas a três horas por noite, e a par-tir das sete horas da manhã começo as cirurgias. Na maioria dos dias não tenho tempo para almoçar porque meus pacien-tes, a grande maioria velhinhos, já me aguardam aqui, onde você é exceção pela idade.- concluiu, sem esboçar qualquer resquício de cansaço.

Eu me cansei por ele. - Mas você é a amiga do Fábio, não é mesmo? – quan-

do viu que a explicação que me dera me fizera voltar dez casas na indignação, afinal, se ele que levava essa vida tão conturbada ainda se encontrava ali, tão receptivo para me atender, que direito eu tinha de ainda me sentir negligen-

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En Blanc

ciada? Aliás, direito eu tinha, mas naquela situação a espera havia sido recíproca.

- Sim, sou...Eu o encontrei logo após o meu diagnóstico...- Deixe-me ver os exames.Mais uma vez meu ecocardiograma, assim como o resul-

tado de um holter e outros exames foram minuciosamente ve-rificados por mãos e olhos que os viravam e reviravam, coloca-va-os sob as luzes, retirava, pontuava qualquer coisa aqui, ali...

- Bom, o seu caso é realmente cirúrgico, mas eu vou te explicar direitinho o que acontece. Você realmente tem esse “buraco” entre os átrios do seu coração. Esse buraco faz com que o sangue rico em oxigênio se misture no ou-tro átrio com o sangue pobre em oxigênio. Em resumo, o sangue que é levado para seus pulmões fica prejudicado em oxigênio, e faz com que você sinta falta de ar, palpitações, pouca resistência física etc. Algumas pessoas podem convi-ver com a CIA, vulgarmente conhecida como sopro, para o resto da vida, sem qualquer prejuízo. Entretanto outras tem a necessidade de passarem passar por correções, ainda que cirúrgicas, como é o seu caso.

- E a cicatriz, Dr? No meio do peito? – perguntei agoniada.Ele sorriu.- Pois é, menina! Vi que você tem próteses de silico-

ne, e nem tem cicatrizes porque as incisões foram feitas por vias axilares, não é mesmo? Pensa você agora com uma bela cicatriz entre os seios? – arrematou, arregalando os olhos.

Os meus estavam ainda mais arregalados.

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- Fique tranquila. No seu caso é possível uma inter-venção cirúrgica por baixo de um dos seios, o seio direito.

- Sério? – ainda perguntei quase incrédula.- Mas o coração não fica do lado esquerdo do peito? –

ainda o questionei, leigamente.- O coração, minha querida, fica entre o centro e o

lado esquerdo do peito. E não é à toa que ele é o centro de tudo, não é mesmo? Aliás, por que mesmo continuou a me aguardar todo esse tempo?

Ele tinha razão.Eu sempre segui meu coração e não teria aguardado

tantas horas naquele consultório se ele não tivesse sinaliza-do a todo tempo que aquele médico, desde o primeiro mo-mento, desde o meu encontro com o Fábio, já era o escolhi-do para “consertá-lo”.

- Mas o seu caso é ainda mais especial, continuou ele. - Infelizmente você tem esse buraco entre os átrios, e vários outros buraquinhos ao redor, como uma rede, entende?

- É, eu sou mesmo muito especial, Dr.- Calma...Se não fosse essa rede de buraquinhos, tal-

vez conseguiríamos resolver via catéter, sem a necessidade de intervenção cirúrgica com cortes. Se você decidir fazer a cirurgia comigo, podemos tentar essa via antes. Caso não resulte, será mesmo necessária a incisão debaixo do seio. Mas seu coração vai ficar zerado!

Talvez esse tenha sido o primeiro sorriso que dei a partir do diagnóstico...

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En Blanc

Zerar o coração talvez não fosse assim tão má ideia...- Vamos às coisas práticas então, Dr. Meu plano de

saúde não cobre essa cirurgia em razão da carência. Eu teria que impetrar mandado de segurança para tanto. E seria mais um desgaste...

- Faço pelo Sistema Único de Saúde, caso você queira.Um misto de alívio e preocupação passou pelo meu olhar.Ele percebeu.- Vamos lá: Seu plano é enfermaria, então de toda

forma você, após a cirurgia, se não pagar o excedente para apartamento, ficaria nessas instalações.

- Sim, continue, por favor...- Se o seu plano cobrisse a cirurgia, o médico seria

eu e a cirurgia seria feita no Hospital São Francisco, não é mesmo?

Eu não poderia negar. Eu não havia encontrado Fábio, logo após todo desespero, à toa.

O meu cirurgião cardiovascular estava mesmo ali, à minha frente.

- É que pelo SUS ou por seu plano particular, o proce-dimento será o mesmo, assim como o médico e o hospital. E prá você eu faço pelo SUS. É só conseguir a autorização.

- Acho que tomei seu horário para a natação, não é mesmo? – perguntei, um tanto quanto constrangida pela for-ma como a consulta se iniciara.

- Não se preocupe. Tudo o que eu faço, faço com prazer, seja nadar, atender pacientes, operá-los, ou mesmo

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acalmá-los – sorriu, como se o seu turno de trabalho estives-se apenas a começar.

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Você já contou ao Maurício? - perguntava um.- E o Maurício, o que ele diz disso tudo? Ele vai te

acompanhar à cirurgia? – questionava outro.Como morávamos em cidades distantes, bem que eu

tentei não falar sobre o assunto com ele, e durante os dias que se seguiram, executei, com especial esmero, o plano de afastá-lo de mim. Desligava, mesmo que aos prantos, a cha-mada “amor”, toda vez que essa insistentemente aparecia em meu telefone, não respondia as suas mensagens, e nas redes sociais ostentava o sorriso de quem realmente levava uma vida “en rose”.

Das cirurgias cardíacas, a que eu seria submetida era a mais simples, mas ainda assim eu ainda poderia ficar com sequelas.

Não queria pena. Não queria um amor pesado.Não queria ser esse peso.Não queria dúvidas, principalmente com relação ao

“amor” que Maurício dizia sentir por mim, mas a possível ideia de que ele ficaria ao meu lado por obrigação me apavorava.

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E eu tinha muito medo que isso acontecesse.Mas o dia da cirurgia se aproximava.

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En Blanc

A autorização do meu procedimento cirúrgico pelo Sistema Único de Saúde (SUS) foi relativamente rápida em razão da urgência que meu caso requeria. A data, inclusive, já se encontrava marcada.

Então, um dia antes da cirurgia, já demasiadamente fragilizada e cansada da execução do meu infalível plano de “como perder um namorado de cinco anos em poucos dias”, decidi, enfim, atender a ligação de Maurício.

- Por que isso agora, meu anjo? Por que não atende ao telefone, não responde minhas mensagens e age como se eu não existisse?

- Nada não...- Claro que tem alguma coisa aí. O que foi que eu fiz

dessa vez?- Você? Dessa vez, nada...- E então?Ok. Uma hora ou outra eu seria mesmo obrigada a

colocar à prova aquele amor que, no fundo, eu não gostaria que fosse de vidro! Se ele se quebrasse, eu não me livraria tão cedo de seus estilhaços, independentemente do lugar do

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mundo em que eu me encontrasse...- Tudo bem, vamos lá! – respirei, fundo. – Sabe

aquelas dores no peito que eu comecei a sentir depois do nosso acidente, lembra-se? – continuei, em um nítido es-forço em arrastar as sílabas de cada palavra que escolhia pronunciar.

- Sim. E?- Eu fiz alguns exames, e...- O que foi, meu anjo? Fale...- O meu caso é mesmo cirúrgico, Maurício.- O que?- É uma cirurgia cardíaca, a mais simples, segundo os

cirurgiões. Eu preciso fechar um buraco que tenho no cora-ção...E será amanhã – conclui, enquanto tentava, em vão, engolir os soluços.

- Mas que notícia é essa? Como assim? Você pode ficar com sequelas? Como assim? Por que não dividiu isso comigo? Por que se acha tão acima do bem e do mal? Por que se acha tão autossuficiente? Mas você sempre foi assim, não é? Orgulhosa do caralho! Você decide tudo! Você decide quando quer me ver, você decide quando eu devo te ver, você decide quando e como eu posso participar da sua vida, você esconde o que quer escon-der, você não se importa...Você não se importa...Você não se importa...- Concluiu, Mauricio, ofegante, cansado, mas agora com uma faca empunhada às suas palavras.

Um longo e quase interminável silêncio interrompeu as perguntas, naquele momento, erradas de Maurício.

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Tudo o que eu queria ouvir, mesmo quando tentei afastá--lo de todo aquele sofrimento, era um simples “estou aqui”, “eu estarei contigo”, mas ele sequer perguntou como eu realmente estava me sentindo no meio de todo esse furacão.

E foi em silêncio, algemada pela dor da decepção, que eu aguardei a sentença de morte do nosso amor.

- Quer saber? Eu te amo muito, e você sabe disso, mas já que você terá a chance de morrer, por favor, aproveite-a! Faça isso por nós! Só assim nos separamos, não é mesmo?

Foi ali que se estilhaçou o vidro.Não revidei.Não chorei.Não esbravejei. Não relutei...- Eu te avisei...- disse-me mais uma vez a voz intro-

metida.Mas eu não ouvia mais.Não via mais.Não sentia mais.E nem precisei me submeter à cirurgia para morrer. Não para Maurício.E eu nem sei quem retirou o telefone das minhas mãos.

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O dia da cirurgia chegara, mas o telefonema de Maurí-cio matou muito mais que um amor, um grande amor. Aque-le “eu te amo” seguido de ”mas faça-nos o favor de morrer” tirou-me o elo com o mundo, e dos dias que se seguiram à cirurgia eu não me lembro de nada.

Absolutamente nada.É como se fosse uma grande página “En blanc” em

minha vida.E o que agora sei foi o que me contaram:Minha mãe veio do interior para me acompanhar, e

quem nos levou ao Hospital São Francisco, em Goiânia, foi minha tia Eva.

A cirurgia começou às sete horas da manhã, e de-pois de várias horas no centro cirúrgico, o buraco do meu coração foi fechado com um pericárdio bovino tratado, isso mesmo, bovino. Após o procedimento, fui encami-nhada à Unidade de Terapia Intensiva, onde fiquei por alguns dias.

Fora da UTI, comecei a receber visitas, ainda interna-da na enfermaria do Hospital São Francisco.

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- Tia, eu acabei de chegar do Rio de Janeiro. Ainda não consegui desfazer minhas malas, acredita?...dizia eu, completamente inconsciente, à tia Eva, que todos os dias ia visitar-me, desde que me deixara no hospital no dia da cirurgia.

Ainda segundo o que me contaram, por vários dias tia Eva saíra entre soluços do hospital, com receio de que a sobrinha não fosse voltar ao normal.

Essa era também a reação de vários amigos que não acreditavam no que viam, e ouviam de minhas alucinações, pessoalmente ou ao telefone.

Até que...- Dr. O Senhor realmente fechou o buraco do meu co-

ração ou ainda corro o risco de qualquer um adentrá-lo? – sussurrei, com a voz fragilizada, mas visivelmente dona de minhas palavras.

- Que bom que você voltou, minha filha! – comemo-rou minha mãe, acompanhada do cirurgião cardiovascular.

Ambos abraçaram-me.- Fique tranquila. Agora só entra em seu coração quem

você permitir, quem você deixar. E eu tomei a liberdade de retirar algumas pessoas que ainda teimavam em permane-cer dentro dele. Gente insistente, não é mesmo? Espero que você não se importe – e deu-me uma piscadela o Dr. João Batista - Mas já que agora cérebro e coração se entenderam, amanhã você poderá voltar para a casa – continuou o médi-co, com um evidente e grande sorriso nos lábios.

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- Não, ele não te visitou, minha filha, e nem ligou. A mãe dele sim, mas ele não... Eu sinto muito.

Apenas sorri. Um sorriso de canto. Mas tinha alguma coisa diferente naquele sorriso.

Definitivamente, tinha.

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Raphael me ouviu contar toda aquela história sem uma interrupção sequer, mas ao final me fez apenas uma pergunta:

- Eu estou com câncer – começou ele – eu vou morrer em poucos dias, eu sei disso, e você também – continuou – Mas mesmo assim você já estava com a mochila nas costas para me abandonar quando eu te pedi – eu pedi – repetiu ele – para que você ficasse ao meu lado nesse momento difícil. Por acaso, você, depois que o afastou, ainda que por “moti-vos nobres”, deixou-o escolher se ele queria ou não ficar ao seu lado nesse seu momento difícil também?

- Não, eu não pedi. Ele não tinha o direito de me aban-donar, não naquele momento. – repliquei.

- E você tinha o direito de me abandonar, mesmo com toda dor que eu também carregava nos ombros?

Eu emudeci, e o porto ruby me parou à garganta. Eu tive que fazer um esforço enorme para que aquele gole me descesse, a rasgar-me por dentro, assim como a última per-gunta de Raphael.

Ele continuou:

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- Ninguém é obrigado a ficar na vida de alguém, in-dependente da situação, independente do amor, da doença, se não há qualquer reciprocidade, pelo menos no que de-veria haver. Isso não é egoísmo...Algumas pessoas, mais altruístas, quem sabe, realmente permanecem ao lado de quem só as maltrate, por generosidade, por piedade, por culpa, talvez, e a vida, claro, trata de recompensá-las de uma forma ou de outra! Mas você não aceitaria alguém ao seu lado por esses motivos, ainda que eles tenham sua nobreza. O grande problema é que naquela sua situação, por orgulho, você também não o deixou decidir se ficaria ou não por amor. Só por amor.

Eu continuava emudecida.- Daí você precisa da pessoa que a ame, mas a pune

até ela provar que merece estar ao seu lado em um momento difícil seu? É isso mesmo? É uma prova muito difícil, ché-rie...Você não passaria nesse teste, talvez...

Foi inevitável não procurar nos olhos de Raphael al-guma coisa familiar, então cravei meus olhos verdes naquele olhar castanho.

Ele fez o mesmo, e de repente eu me senti, mais uma vez dentro de uma sala de cirurgia. Mas dessa vez não fiquei inconsciente durante o procedimento, e acompanhei, passo a passo, da minha segunda cirurgia do coração, quando ele foi novamente tocado por mãos milagrosas.

As primeiras o havia aberto, retirado-lhe os buracos, e o suturado.

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En Blanc

As segundas o cicatrizou, sobretudo das mágoas.E foi a primeira vez que recebi um abraço de Raphael,

que ao me ver aos prantos, a soluçar como uma criança, le-vantou-se, e me envolveu em seus braços, carinhosamente, afetuosamente.

- Como você está se sentindo, chérie?- “En Blanc” – respondi, a inspirar e a expirar, e, aos

poucos, a me refazer daquele pós-operatório.- Vamos para casa? – perguntou-me, com um olhar

tão paternal que eu não tive mais nenhuma dúvida de como aquele homem conhecia as minhas mais íntimas mágoas, e o porquê dele insistir em saná-las.

Dessa vez fui eu quem balancei a cabeça e disse:- Só contigo mesmo, Zuca! - Exatamente isso, Zuca – e frisou bem o apelido que

alguém muito especial me havia colocado lá em Portugal.- “En Blanc, Zuca”! – ainda repetiu, ao passo que me

mostrava as escadas para irmos embora daquele lugar.

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Li Azevedo

O QUINTO DIA

Àquela hora, embora ainda menos que seis horas da manhã, o sol já começava a mostrar a que viera. Teríamos mais um lindo e quente dia de verão em Côte d’azur, mas eu queria tomar café da manhã em casa.

Eu ainda aguardava, ansiosamente, uma resposta de João.

Ainda no desfrute de belos momentos de conforto na direção do bentley de Raphael, como me sentia muito mais leve, e com o lindo dia de sol a se descortinar à nossa frente, seguimos para o Domaine Du Roi de Sable, agora com meus cabelos ao vento, e com o veiculo, imponente e luxuosamen-te descapotado.

Com um controle remoto ele abriu a garagem, eu es-tacionei o veículo e o cobrimos novamente com a proteção que antes tinha.

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En Blanc

Achei estranho, mas “estranho por estranho”, pensei.Antes de subirmos as escadas, fomos à despensa, local

onde ele pegou algumas frutas, dentre elas, as pequeninas de cor roxa e outras que variavam entre verde e amarelo. Também levamos melão, damasco, kiwui, e um pacote de croissant pequeninos.

Ambos fomos para a cozinha.- Vamos ver o que você pode fazer – brincou com o

fato da minha relação com a cozinha ser inexplicavelmente desastrada.

- Posso cortar as frutas! – sugeri.- O melão mais grosso e o kiwi mais fino – lembrou-

-me ele, agora em tom de brincadeira, e continuou:- Eu fui rude contigo na forma de dizer, mas tudo o

que eu lhe disse, eram mesmo ensinamentos. Simples, mas ensinamentos. O melão, por exemplo, não deve ser cortado tão fino porque deve ser servido em doses substanciais. A fruta já é leve por si só. Da mesma forma o kiwi, o contrário. O gosto do kiwi também já tem personalidade suficiente prá ser oferecido em cortes espessos. Queijos, por exemplo – e pegou o chèvre frais – para o café da manhã, sempre queijos em pasta, também consistentes. O camembert vai bem ao al-moço ou jantar. Vinho? Rosés e brancos, sempre mais refri-gerados, e os tintos, exceto se o calor estiver insuportável, à temperatura ambiente...Ah, e nem sempre o simples fato do prato principal ser uma salada significa que vai bem apenas com vinho branco. A marroquina, por exemplo, vai melhor

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Li Azevedo

com um tinto... – disse-me enquanto, com uma maestria invejável na cozinha, fazia várias coisas ao mesmo tempo, como colocar os croissants no forno, e enquanto me ensina-va, lembrar-se dos mesmos antes que queimassem.

- E os sapatos sujos? – perguntei.- O suco! Acabei de me lembrar! O suco você pode

fazer – disse-me sorridente, tentando se esquivar da minha última pergunta!

Também era só colocar as frutas no triturador.- Oui, monsieur! – respondi, já me dirigindo àquele

monstrinho giratório que transformava em líquido tudo o que engolia.

E o meu telefone, enfim, tocou.Era João.Arrumei um pretexto e fui para fora da casa.Ele continuou a preparar o nosso café da manhã.

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En Blanc

- João? – respondi ao telefone, mas assim que cheguei próximo à piscina, fui surpreendida por um animal, grande, que parecia um porco, entretanto um pouco maior e peludo.

E aquele bicho caminhava em minha direção.- Raphael! – gritei, e nem me lembrei mais que João

se encontrava do outro lado da linha.- Corra, corra! Vá até o sótão e pegue uma arma! – or-

denou-me ele – de de grosso calibre - completou.- Como assim? Arma? Onde?- Na sala que está trancada! Você tem mais agilidade

que eu nesse momento! A chave está dentro da gaveta da cômoda do meu quarto.

Num ímpeto fiz o que ele me pediu. Em total desespero subi as escadas, peguei a chave

na cômoda dentro do quarto dele, e na tentação de ficar por ali mais tempo para descobrir mais sobre ele ou obedecê-lo, decidi pelo segundo.

Desci as escadas mais rápido ainda, e ao destrancar aquela porta somente uma pergunta me veio à mente, repeti-da e inúmeras vezes em questão de segundos.

- Quem era aquele homem?

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A sala, de cima abaixo, nas quatro paredes e em um balcão ao meio, dentro de compartimentos, exibia armas de fogo de todos os tipos, todos os calibres, .22, .32, .38, .40, .380, dentre outros, organizadas em fileiras, dentre pistolas, rifles de longo e curto alcance, revólveres, ca-rabinas, metralhadoras, armas automáticas, semiautomá-ticas, de guerra, de gás comprimido, silenciadores, car-regadores, lunetas, miras, um verdadeiro arsenal bem ali, debaixo dos meus pés.

- Quem era esse homem? – minha mente repetia, en-quanto tentava escolher alguma que pudesse abater o perigo que aquele grande porco traria a Raphael.

Como os compartimentos encontravam-se trancados, e o molho de chaves em minhas mãos pareciam mais labi-rintos, decidi por um rifle que se encontrava em cima do balcão, no meio da sala. Nem ao menos verifiquei se estava municiado ou não, tamanho o nervosismo da situação.

Subi os degraus da escada dois a dois, empunhei a arma junto ao ombro, Raphael, claro, saiu da minha frente, mirei aquele enorme animal, que ainda permanecia no mes-

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En Blanc

mo local, inerte, e com a visada diretamente nos olhos do bicho, fiz o primeiro disparo!

Para cima.- Mas o que é isso? – perguntou, indignado, Raphael.- Eu não tinha motivo para matá-lo. Ele estava indefe-

so, inerte! – respondi, ao passo que descansava a arma.Foi a primeira vez que vi Raphael sorrir em alto e

bom som! Não sei se era de nervoso, se realmente estava se divertir com a situação, ou ambos os casos. O fato é que ele virou as costas e voltou para a cozinha resmun-gando alguma coisa que eu não entendi em razão ainda das gargalhadas.

Eu continuei no mesmo local completamente estáti-ca. Quando decidi agir, percebi alguma coisa diferente no gramado. Era o cartucho do meu disparo. Nele se lia: .243 Winchester.

O animal, àquela altura, já se encontrava bem longe.Cuidadosamente guardei a arma no mesmo lugar, per-

corri, mais uma vez, com os olhos todo aquele arsenal, mas ciente de que Raphael não responderia os meus mais novos questionamentos, tranquei a sala e voltei para a cozinha.

- Era um sanglier! – disse-me Raphael assim que adentrei, desconfiada, a cozinha.

- É um animal de caça! Nós fazemos isso, inclusive em grupos, principalmente nessa época do ano! Mas tive-mos sorte! Ele não nos atacou! Deve ter se sensibilizado com a sua beleza! – e disparou mais uma vez a sorrir.

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Eu não sabia o que significava sanglier, então fui ao tradutor no telefone e descobri ser o javali. Também nunca havia estado cara a cara com um.

- Eu comi carne de Javali em Portugal! Mas de toda for-ma eu não gostaria mesmo de tê-lo matado! – resmunguei.

Raphael apenas me olhou um tanto quanto admirado pelo comentário, e complementou:

- Nessas suas descidas e subidas da montanha aí você deve ter visto sangue na estrada, não é mesmo? – e arqueou uma das sobrancelhas.

- Sim, vi! Inclusive até me assustei porque não sabia do que se tratava. – respondi.

- Pois é. Mistério desvendado! – retrucou ele.- Pelo menos esse, não é Monsieur? – revidei.- Touché, Zuca! Vamos ao café da manhã?Mas o meu telefone, mais uma vez, tocou, e eu nem

olhei o número de origem da chamada. Do outro lado uma voz infantil, emocionada, dizia:

- Papá!- É para você, Raphael! - A felicidade dos meus olhos

nem me deixavam esconder o que estava a acontecer!Como se Raphael não estivesse acometido de qual-

quer mal, com a agilidade de um jovem de 20 anos de idade, ele agarrou meu telefone, subiu as escadas e se trancou den-tro do seu quarto.

A minha única opção era mesmo tomar aquele mara-vilhoso café da manhã, ainda que já estivéssemos no horário

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do almoço, sozinha. Então degustei todas aquelas frutinhas pequeninas, que mais tarde eu soube se chamar mirtille e mirabelle, e ambas fazem muito bem à saúde, sobretudo as primeiras, na prevenção de cânceres.

Da mesma forma tomei o suco de laranja com damas-co e hortelã, acompanhado dos croissants quentinhos, pois que acabaram de sair do forno, fatiei um pequeno pedaço de queijo de cabra fresco, e permaneci ali, sentada, tendo ainda ao fundo a imagem de Saint-Tropez, e com um pressenti-mento de que a minha missão fora absolutamente cumprida.

Como ainda não tínhamos descansado da noite no Cassino, depois do meu “almoço da manhã”, para não inco-modar Raphael, dirigi-me ao bangalô, local onde mais uma vez, adormeci, tranquilamente.

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- Conseguiu descansar? – perguntou-me Raphael, ao passo que estendia uma das mãos para me devolver o telefone.

- Sim, consegui. Obrigada! – respondi, automaticamente.- Obrigado, eu, Zuca! – Posso te dar um abraço?- Sim, claro que sim! – eu já sabia do que se tratava

aquele gesto.Raphael, pela segunda vez, carinhosamente, abraçou-

-me, e eu não senti qualquer falha em sua respiração, nem qualquer indício de febre ou fraqueza em seu corpo.

Parecia outro homem. Um homem completamente livre do câncer, livre de

mágoas...- Você irá entender tudo isso em breve! – retrucou, quan-

do me viu novamente rodeada de perguntas, e continuou:- Eu pude ver a minha filha, eu conversei com Isa-

bella. Eu sei que nos amamos, e agora elas sabem que serão cuidadas por mim para sempre! – e uma lágrima furtiva des-ceu daqueles olhos agora, evidentemente, não mais tristes.

- Fico mesmo muito feliz, Raphael! E pode ficar tran-quilo que não vou lhe perguntar sobre o que conversaram

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todo esse tempo. Não o fiz com meu pai. Não o farei conti-go. – no fundo eu queria saber, mas...

- Talvez algum dia você tome conhecimento de tudo que foi dito naquele quarto, mas hoje não. Hoje você tem uma exposição no Paris Hotel, em Saint-Tropez. Você é con-vidada de honra! E eu não aceito não como resposta!

Meu coração de repente se acelerou, minha respiração foi ficando cada vez mais ofegante, minhas mãos tremiam e eu só não caí por terra porque Raphael, rapidamente, deu-me um terceiro abraço.

- Sim, conforme-se! Sonhos são feitos para serem rea-lizados! Você vai, enfim, conhecer Saint-Tropez! – disse-me enquanto eu tentava recobrar os meus sentidos.

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- Alô! João? Eu vou conhecer Saint-Tropez! – gri-tei, de ímpeto, quando o meu telefone tocou pela segunda vez.

- O que é Saint-Tropez, menina?- É a cereja do meu bolo, é a cidade dos meus sonhos,

João!- Então se você vai realizar mais um sonho, parabéns!

Você merece, menina!- Obrigada, meu amigo! Mas me diga aí! Como você

conseguiu achá-las?- Eu não as achei, menina! E para segurança delas, eu

espero que também ninguém consiga isso! Pelo menos não por enquanto...

- Conseguir o que, João?- Achá-las!- Por que?- Porque elas não estão foram procuradas apenas por

mim ou pela Justiça! Há mais alguém interessado no para-deiro delas!

- Como assim, João?

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- Então, você sabe que eu conheço a grande maioria das pessoas em Porangatu, e quando aparece por aqui al-guém estranho, a notícia logo corre!

- Sim, sei! Por isso lhe pedi ajuda!- É que de posse do nome da mãe de Isabella, consegui

localizar a casa e fazer campana por esses dois dias. Mas al-guém também tem feito a mesma coisa. Não sei ainda quem é, nem se me perceberam. Fato é que existe mais alguém, além de você, e claro, um oficial de Justiça, que com certeza teria batido à porta, à procura de Isabella. E prá te dizer a verdade, não tenho bom pressentimento com relação a isso...

- Pior que eu sei o feeling que você tem para essas coisas...

- Às vezes não gostaria de tê-lo, mas também já nos tirou de poucas e boas, não é mesmo?

- E como, João!- Então, exatamente para segurança delas, preferi não

aprofundar, nesse momento, a investigação. Como você dis-se que queria apenas que entrassem em contato com esse senhor, apresentei-me à mãe dela, à princípio, como agente de saúde, aproveitei para realmente verificar as condições da casa com relação ao mosquito da dengue, e de quebra, me tornei amigo da família. Você também sabe como as pessoas do interior são hospitaleiras, generosas.

- Sim, sei! Infelizmente correm até riscos por serem assim, não é mesmo? Onde já se viu, João? Correr riscos por causa de generosidade? Que mundo é esse que vivemos?

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- É verdade, menina...É verdade...Mas então, conver-sa vai, conversa vem, começamos a falar sobre filhos, netos, e a mãe de Isabella acabou por me dizer que tem filha e neta na Europa, mas que tiveram que fugir da casa onde viviam, e abandonar, inclusive, seu esposo, por causa de ameaças que colocavam em risco, principalmente a vida dele e da filha. Você também sabe que sei quando alguém está a me esconder alguma coisa...

- Absolutamente, João!- Mas ela me falou a verdade, menina! A família real-

mente não sabe o paradeiro de Isabella e da filha, inclusi-ve, para segurança de todos! A senhora está sofrendo muito porque também não sabe o teor das ameaças, o que não foi lhe contado também para não colocá-los em risco! Mas a situação é preocupante...

- Entendo...E essa outra pessoa que também está a fa-zer campana na casa?

- São dois indivíduos, e um deles não me parece brasi-leiro! É muito branco, loiro! Bem diferente dos nossos com-patriotas! Trocam de carro às vezes, mas durante esses dias, passaram em frente à casa muito mais vezes que o normal.

- E você disse alguma coisa sobre isso à família?- Não, apenas orientei a não mais caírem em golpes

de agentes de saúde, recenseamento, pessoas que oferecem empréstimos consignados, que pedem um copo d’água à porta, etc...Isso é muito triste, mas infelizmente é a nossa realidade.

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En Blanc

- Até porque você se utilizou desses artifícios, não é mesmo?

- E eu espero que aquela senhora tenha entendido os riscos do que eu lhe falei. Felizmente sou policial, e a inten-ção é nobre. Mas imagina se essa outra pessoa também se utiliza do mesmo expediente?

- E como ela reagiu quando você realmente se apre-sentou?

- Ela ficou muito preocupada. Tive pena. Achava que eu estava lá para efetuar a prisão de alguém. Até ela entender que a minha intenção era apenas colocar Isabella e a filha em contato com vocês...Então passei a ela o seu número de telefone como combinamos, e disse que poderiam ligar de onde estivessem, com número privado, inclusive. Quando eu disse que Raphael está com câncer e em estágio terminal, eu já sabia que a mãe daria um jeito de contatar a filha.

- Elas ligaram hoje mais cedo. Raphael está radiante de felicidade, e creio que ele sabe o teor das ameaças. Mas está muito sereno e disse que inclusive as protegerá para sempre...

- Credo, menina! Isso me deu um arrepio estranho...- Eu também já senti esses arrepios várias vezes aqui,

mas pelo menos parte da missão então foi cumprida.- É sim, porque agora temos que descobrir no que con-

sistem essas ameaças, não é mesmo?- Boa, João! Gosto muito de não precisar sequer ter-

minar o raciocínio para ser compreendida!

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- Isso também me dá arrepios, menina! Mas bons arre-pios! – concluiu João, já se despedindo.

O próximo passo agora era fazer campana para vigiar a campana que faziam à casa da mãe de Isabella. Com João à frente da investigação, logo eu saberia quem eram aqueles dois indivíduos, principalmente o loiro que não parecia ser brasileiro.

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SAINT-TROPEZ

Para não preocupar Raphael, mas com a intuição de que ele realmente já tinha conhecimento de tudo que conversei com João, decidi não falar nada sobre o assunto com ele.

Aquela noite eu conheceria Saint-Tropez.Aquela noite eu realizaria mais um sonho.Mas e Fernanda? Eu havia combinado de conhecer

Saint-Tropez com ela! - “Eu sinto muito, Fê! Quando você chegar eu posso

ser a guia turística da turma!” – tentei justificar a quebra de acordo, e corri para o quarto para me arrumar para irmos à exposição!

Eu também não sabia do que se tratava!- “Raphael e suas surpresas!” – não me preocupei. Ele

havia acertado em cheio da última vez.

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E dessa vez tomei um belo e reconfortante banho de banheira, com direito a sais de banho e óleos essenciais. Completamente revigorada e com uma pele de seda, colo-quei o vestido branco, longo, de renda.

Era exatamente assim que eu me sentia: em paz!A exposição teria abertura às vinte horas.

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En Blanc

- Como assim, você não vai? – questionei Raphael, quando o vi ainda com a mesma roupa, completamente dis-traído, com uma taça de vinho tinto em mãos, a ouvir uma música que também jamais me saiu da cabeça.

- Ouça, aprecie! – disse-me ainda de olhos fechados.Eu obedeci, já que a canção e a voz de Julien Clerc,

àquele momento já havia também me abduzido:

Quelquefois Si douces

Quand la vie me touche Comme nous tous

Alors si douces.Quelquefois

Si dures Que chaque blessure Longtemps me dure Longtemps me dure.

Femmes, je vous aime Femmes, je vous aime

Je n’en connais pas de faciles

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Je n’en connais que de fragiles Et difficiles

Oui, difficilesQuelquefois

Si drôles Sur un coin d’épaule

Oh oui, si drôles Regard qui frôle.

Quelquefois Si seules

Parfois elles le veulent Oui mais, si seules Oui mais si seules.

Femmes, je vous aime Femmes, je vous aime

Vous êtes ma mère, je vous ressemble Et tout ensemble mon enfant

Mon impatience Et ma souffrance.

Femmes, je vous aime Femmes, je vous aime

Si parfois ces mots se déchirent C’est que je n’ose pas vous dire

Je vous désire Ou même pire

Oh, femmes.Compositores: Jean Loup Dabadie / Julien Clerc

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En Blanc

- Define-te? – perguntou-me Raphael, tirando-me do transe.

- Peut-être! Mas é uma bela tentativa de fazê-lo! – res-pondi. – Você não vai? Como assim? Vou sozinha?

- Sim, chérie! Dessa vez eu não irei, mas você nunca esteve, não está e jamais estará sozinha! Não se esqueça disso!

- Isso me parece despedida! - resmunguei.- E se for? Como você se sente nesse momento?- “En Blanc”! Realmente em branco! – respondi, sen-

tindo uma calma tão profunda, como há muito tempo eu não sentia.

- Então está no momento certo de começar a escrever uma nova história! – concluiu ele, tão enigmático quanto certeiro – e você pode começar hoje, em Saint-Tropez! Vá com seu carro até embaixo! O “Roi de Sable” estará à sua espera!

- Você está bem? Ficará bem sem mim até que eu vol-te? – perguntei, preocupada.

- Aproveite o programa. Eu estou melhor que nunca! Muito obrigado por tudo! – respondeu tão convicto do que dizia que eu não questionei mais nada.

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Antes de sair, ele me deu o quarto abraço. Eu não sa-bia exatamente para onde eu ou ele iríamos, mas eu sabia que aquele abraço era mesmo de despedida.

- Quanta diferença, hein, Dona Berlingo? – brinquei ao estacionar o veículo em um pátio bem ao pé do porto de Sainte-Maxime.

Andei por alguns metros sobre a orla, e mesmo se eu não quisesse avistá-lo seria impossível: o “Roi de Sable” era exatamente como na foto que eu vira no quarto de Raphael. Grande, imponente, altivo, o mais belo iate que eu já vira em toda minha vida, e se encontrava ancorado, à minha espera.

Assim que me aproximei do iate, um senhor, na altura de seus quarenta e cinco anos, apresentou-se como capitão do barco e me conduziu ao seu interior.

Quando realmente adentrei o “Roi de Sable”, fui obriga-da a me beliscar por várias vezes para me certificar de que não me encontrava em um sonho. Eu nem imaginava que algum dia meus olhos testemunhariam tanto luxo, tanta riqueza.

Com aproximadamente cento e sessenta metros de comprimento e capacidade para mais de 100 convidados, o

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iate apresentava a base do navio, convés e escadas comple-tamente personalizados, em tons areia, com mosaicos arte-sanais, e detalhes que a princípio nem acreditei serem ouro! O convés do barco era composto por dois níveis. Embaixo se encontrava uma luxuosa sala de jantar e um aconchegante espaço de convivência, e no nível de cima, suítes para con-vidados, muitas.

Mas como eu levaria bem mais de trinta minutos para apreciar todo aquele luxo, decidi subir uma escada em vidro, que levava exatamente à proa de embarcação, lugar no qual permaneci, com o vento a tocar meu rosto, a avistar Saint--Tropez, e a esperar o nosso tão sonhado encontro.

- Muito obrigada! – agradeci a taça de champanhe que uma jovem, também uniformizada me ofereceu. Sincera-mente, não vi de onde ela veio.

Mais alguns minutos a bordo, Port de Saint-Tropez, e o iate se misturou aos vários outros iates tão luxuosos quan-to o Roi de Sable, todos ancorados bem junto à marina da cereja do meu bolo.

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Mais uma vez com a ajuda do capitão do barco, desci as escadas que davam exatamente para a rua principal de Saint-Tropez, e deixei o Roi de Sable.

- Putzgrila! – pensei, sem resistir em olhar para trás e venerar o meu meio de transporte tão singelo até àquela cidade.

- Putzgrila! – foi o que também pensei, à medida que caminhando sobre orla de Saint-Tropez, vários outros ia-tes também se encontravam aportados, todos com nomes tão imponentes quantos os barcos, tais como “Alexandre, o grande”, “Veni, Vidi, Vici”, “Imperador”.

Outros sugestivos de uma vida Dolce Far Niente, des-sas reservadas a um número tão pequeno de indivíduos que eu mesma, durante muitas vezes, questionei o critério pelo qual foram escolhidos para serem destinatários de tão mag-níficos presentes!

“Dream”, “Dolce Vita”, “Sweet Doll”, dentre outros, todos os iates pareciam estar devidamente vigiados pela estátua do Bailli de Suffren, conhecido como - Suffren de Saint-Tropez -, o célebre vice-almirante da Provença, com-batente de todos os mares do mundo, mas que agora se en-

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contra ali, inerte, a tutelar tamanho acúmulo de riqueza em um ínfimo espaço de mar.

Logo à frente dos iates, do outro lado da rua, encontra-va-se o “point” da cidade, composto por antigos e luxuosos cafés e restaurantes, um ao lado do outro, como o “Le Quai”, o “Senequier”, o “Café de Paris”...

E por falar em Paris, a exposição já iria começar. Eu precisava encontrar o Paris Hotel.Apressei um pouco o passo, não tanto porque real-

mente não conseguiria passar em branco diante de coisas que eu nunca vira na vida, mas menos de dez minutos de-pois, deparei-me em uma esquina, com um luxuoso edifício à minha frente: Paris Hotel, em tom terracota.

Vários carros de luxo, dentre ferraris, porsches, lambor-ghinis, e até bentleys, já se encontravam estacionados junto ao hotel. Aliás, não apenas junto ao hotel, mas desde que desci o Roi de Sable, tive que fazer um esforço enorme em não me vislumbrar com cada porsche que passava à minha frente, sob pena de logo denunciar a minha estadia naquele paraíso luxuo-so pela primeira vez. Logo, consegui fingir que se tratava de mais uma noite qualquer na minha tumultuada vida de turista que já tinha até levado café da manhã do hotel porque não tinha dinheiro para arcar com as demais refeições.

As mulheres?Jesusssssssssss!!Lembrei-me de Vilamoura, mas elevado exponencial-

mente ao cubo! Saltos altíssimos a desfilarem pela orla, ves-

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tidos colantes, luxuosos, provocantes, em corpos esguios, finalizados com maquiagens que só não deixariam para trás Brigitte Bardot!

Eu? Eu estava com um vestido de renda, branco, lon-go, com todas as curvas do meu corpo devidamente valori-zadas, cabelos loiros soltos, maquiagem simples, sandália simples, mas eu era convidada de honra de uma exposição no Paris Hotel.

Todas aquelas mulheres, a grande maioria delas ha-viam se vestido como tal apenas para passarem, a pé, pela rua principal de Saint-Tropez.

E sem mais delongas, decidi adentrar ao recinto da exposição.

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Logo à entrada, fui cordialmente recebida por um maître, que já ciente de que eu era convidada do Monsieur Raphael, imediatamente me ofereceu uma taça de Veuve Cli-cquot, o que, sem dúvida aceitei.

Aceitei, agradeci, e tendo-o como companhia, fui le-vada ao luxuoso Hall do hotel, completamente personaliza-do, desde o teto até os carpetes ao estilo anos 60, momento em que a cidade, que era apenas uma vila de pescadores, alçou ares de turismo de luxo em razão da vinda de Brigitte Bardot para o local, para viver.

O restaurante “L’Espace Blanc” também me foi apre-sentado pelo maître, local no qual músicos famosos se apre-sentavam ao som de um luxuoso piano estrategicamente po-sicionado no salão.

Mais um pouco adiante, fui levada a uma piscina a céu aberto, onde vários quadros, milimétrica e esteticamente dis-tribuídos, arrebataram-me os olhos de tal forma que nem mais percebi que o maître ainda, gentilmente, acompanhava-me.

Era Brigitte Bardot, em todas as suas versões. Loira, sorridente, sedutora, com perucas negras, introspectiva, des-

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confiada, de biquínis, de tailleurs, tomando café da manhã de roupão, despenteada, livre, linda, e com imagens do filme que finalmente a consagrou como atriz e símbolo sexual “E Deus Criou a Mulher!”, inclusive com a cena que ela, livre-mente, dança descalça em cima de uma mesa, e que chocou, à época, a Liga Da Decência Católica!

E eram muitos quadros.Muitas histórias.Muitas Brigittes! E eu queria vê-los, apreciá-los, um a um.Ao perceber isso, o maître me deixou à vontade por lon-

gas horas de veneração àquelas obras. Mas um detalhe me fez, por várias vezes, ir do início ao fim da exposição, e do fim ao início, a conferir cada uma daquelas pinturas, sobretudo, ao ro-dapé da tela, lado esquerdo: Todas eram assinadas por “I.D.”

- Por favor! – Chamei o maître, que mesmo à distân-cia, encontrava-se à minha disposição.

- Oui, mademoiselle!- I.D., são as iniciais de qual artista?- Isabella Dubois, mademoiselle! – respondeu, com

naturalidade.- Como assim? Mas ela não se encontra desaparecida

com a filha?- Sim, infelizmente! Mas Isabella tinha, ou melhor, espe-

ro que ainda tenha, uma sensibilidade e uma conexão tão mara-vilhosa com a essência de Brigitte Bardot, que ninguém melhor que ela para executar uma exposição dessa magnitude.

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- Pois...Devem ser bem contraditórias as emoções de uma lenda, viva...Não se pode falhar, não se pode errar, não se pode decepcionar, não se pode viver...

O Maître ficou um tempo a pensar e retrucou:- Era exatamente isso que o Monsieur Raphael dizia

quando se referia a sua tão amada esposa. Ela também pen-sava como a mademoiselle, embora isso nunca tenha preju-dicado o encanto de suas telas.

- Bom, algumas lendas nunca se vão, não é mesmo? Brigitte Bardot será uma delas - conclui.

- Eu espero que isso também aconteça ao Monsieur Raphael, que também é uma lenda em toda Côte D’Azur, mas acabou por nos deixar há alguns poucos meses. Entre-tanto, antes fez questão de manter a exposição de Isabella Dubois como está, ainda que sem a presença de qualquer um dos dois. – concluiu aquele maître, visivelmente abalado.

De repente o chão se abriu sobre os meus pés, a taça de champanhe caiu das minhas mãos, e mais uma vez fui socorrida por braços alheios para que eu não viesse a tombar diante de tantos convidados ilustres.

Desacordada, fui levada a uma suíte luxuosa daquele hotel, e quando recobrei minha consciência, estava sendo examinada por um médico ao pé daquela cama que mais parecia um apartamento inteiro.

- Como você se sente?- Não sei, um tanto quanto atordoada. Preciso falar com

o maître que me atendeu à entrada, por favor! – implorei.

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Li Azevedo

- Agora você precisa descansar um pouco. Não sabe-mos qual foi o motivo de tamanho choque quando foi in-formada que Monsieur Raphael já não mais se encontra em nós, mas de toda forma, você precisa recuperar o equilíbrio. Não está liberada para sair, tudo bem?

Eu nada respondi.Não era possível que aquela informação fosse real-

mente verídica.Eu tive contato físico com Raphael, saímos para luga-

res públicos, ele cozinhou para mim, nós brigamos mais de uma vez, e ele sabia demasiado coisas a meu respeito...

De repente uma ideia maluca começou a passar pela minha cabeça!

- Não, você não está maluca! Isso não é possível! – outra voz tentava me dissuadir do pensamento.

Mas a ideia maluca insistia.Eu preciso sair daqui, agora. Vou voltar ao “Domaine

du Roi de Sable”, e ele vai me pagar caro por essa pegadinha de mau gosto.

Com alguma dificuldade me levantei da cama, vesti novamente meu vestido branco, de renda, cuidadosamente saí daquele hotel, sempre me precavendo para que ninguém notasse minha “fuga”, e fui direto para o iate “Roi de Sable”, para que fizéssemos novamente a travessia até Sainte-Maxi-me.

Mas ao chegar à Marina de Saint-Tropez, nenhum “Roi de Sable” se encontrava mais ancorado.

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En Blanc

Desaparecera fazendo jus exatamente ao seu nome: Rei de areia.

Evaporou-se.Desfez-se no ar.

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Li Azevedo

- Tá tudo bem com você? – perguntou-me Fernanda.- Mais uma taça de rosé, mademoiselle? – aproveitou

a piada o garçom.- Como assim? Onde estou, Fê? – assustei-me, ao pas-

so que sentia a pele arder como brasa.- Você está em Sainte-Maxime, oras! E pelo visto teve

uma noitada boa, não é mesmo? Só espero que não me es-conda nada! – brincou ela.

- Nada! – interrompeu o garçom – ela chegou ao res-taurante na noite passada, pediu uma taça de vinho rosé, mas disse que a tomaria aqui, à beira do mar, enquanto aguardava se iria comer ou não. Quando senti sua falta, vim até aqui, e ela dormia tão tranquilamente ao lado de um senhor, que eu não ousei acordá-la! – explicou.

- O que? Que senhor? – desesperei! - Um senhor que me prometeu que a levaria para o hotel

assim que a senhorita descansasse! E para que eu não tivesse dúvidas, até me passou o telefone e eu confirmei vossa estadia em Sainte-Maxime! Eu jamais a deixaria aqui com um estra-nho. Mas ele não me pareceu ser um. Muito ao contrário, aliás.

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- Muito obrigada por mais essa história maluca! – agradeci ao garçom – Mas Fê, por favor, leve-me para o ho-tel! – implorei.

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Li Azevedo

Como Fernanda se encontrava na companhia de mais quatro amigos, decidimos voltar ao hotel apenas para buscar minhas coisas. Logo em seguida, já iríamos à Saint-Tropez.

- Oi, pessoal! – cumprimentei-os, tão perdida quanto confusa. – carro de obras, não é mesmo, Fê! – ainda tive forças para zoar com ela, quando constatei que ela também conduzia uma berlingo.

- No hotel conversamos. E é bom viajar, mas viajar pagando menos é melhor ainda – e deu-me uma piscadela.

Eu adentrei o veículo, sentei-me no banco da frente, e fechei os olhos.

Não sentia mais sono, e não conseguia colocar os pen-samentos em ordem. Mas estranhamente me sentia bem.

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En Blanc

Quando adentramos o hotel, o mesmo funcionário que me entregara o café da manhã ainda se encontrava no local. E eu fui direto em sua direção.

- Bom dia! Então, eu não sei muito bem o que acon-teceu comigo essa noite, mas me lembro que você me levou um café da manhã completo, acompanhado de um envelope!

- Pardon, mademoiselle! – respondeu-me ele, comple-tamente alheio ao que eu estava dizendo.

- Meu Deus do céu! Eu estou ficando louca, Fê! E ela, fazendo-lhe sinais de que eu estava mesmo lou-

ca, levou-me para o meu quarto.- Tome um banho relaxante. Logo você se recuperará!

Mas você ainda vai me contar o que andou aprontando essa noite! – ainda brincou.

Eu obedeci.Ela mesma encheu a banheira de água não muito

quente para mim, aproveitou os sais de banho que o hotel também disponibilizava, e fez uma enorme espuma subir.

Eu me despi, adentrei a banheira, e me afoguei, per-manecendo assim por alguns minutos.

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- Oh, maluca! Quer me matar de susto?E eu só saí quando ouvi a voz de Fernanda já a se

preocupar com a situação.- Eu já conheci Saint-Tropez... – enfim falei, em um

misto de dúvida e pedido de desculpas, ao mesmo tempo em que tentava retirar o sabão dos meus olhos.

- Eu sabia! Eu sabia que você não me esperaria! En-tão essa noitada que terminou na praia é efeito de Saint-Tro-pez, não é mesmo? Um senhor com você na praia, e você a dormir! Eu não caí nessa não, viu? Pode me contar tudo, tudo, entendeu? – impôs-me ela completamente alheia ao que tinha me acontecido, e bem longe, muito longe de se-quer chegar perto do que realmente se passou.

Eu me afoguei mais uma vez na banheira, fiquei imó-vel e sem respiração por alguns segundos, tudo na tentativa de ouvir o que o meu coração dizia.

- Você não acreditaria de qualquer forma, Fernanda! – comecei.

Experimente! – disse-me ela, curiosa.Eu pensei, repensei, pensei mais uma vez, mas achei

mesmo melhor partirmos para Saint-Tropez, como havíamos combinado!

Talvez algum dia Fernanda tomasse conhecimento de tudo o que se passou comigo naquela noite, que se transfor-mou em mais noites, dias, várias histórias, vários persona-gens, várias curas, vários mistérios...

- Vamos para Saint-Tropez então! – insisti.

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- Sabonete! Vamos, já que não vai me contar mesmo! – concordou ela.

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DÉJÀ-VU

Fiz o check-out do hotel, mas como na berlingo de Fernanda cabia mais um passageiro, decidimos chegar a Saint-Tropez em apenas em um veículo. Ademais, vagas para estacionamento, em férias de verão, assim como a cida-de, eram artigo de luxo.

Adentramos mais uma vez a autoestrada A8, passamos por belas paisagens, castelos magníficos, como os Chateaux Minuty e Barbeyrolles, povoados magníficos como Congo-lin e Port de Grimaud, e logo depois de uma cidadezinha muito charmosa por nome Ramatuelle, já avistamos a praia de pampelonne, local onde decidimos parar para aproveitar-mos uma das praias mais lindas a caminho de Saint-Tropez.

Água do mar em tom deslumbrantemente esverdea-do e temperatura amena, uma passarela em madeira so-

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En Blanc

bre o mar, iates espalhados por todos os lados, areia fina e branca, cenário do filme de Brigitte Bardot, “E Deus criou a mulher”, e bem em frente ao o mar, o Le Club 55, um lugar extremamente aconchegante, rústico, prati-camente todo em madeira, com grande área verde, agra-dável, e com o lema “ Ici le client n’est pas le roi, parce qu’il est un ami”! (Aqui o cliente não é o rei porque ele é um amigo).

Conseguimos fazer parte dos amigos do Le Club 55 por alguns minutos, até terminarmos nossas últimas e únicas cervejas heineken, a oito euros cada uma. Exce-to Fernanda que conduzia e não ingeriu bebida alcóoli-ca, depois de as degustarmos, lentamente, partimos para Saint-Tropez, que já se encontrava a pouquíssimos quilô-metros dali.

Assim que Fernanda conseguiu, enfim, encontrar uma vaga para estacionamento, comecei a procurar pelo Paris Hotel.

A minha cabeça estava tão confusa que nem cumpri-mentei Saint-Tropez à chegada.

Espero ser perdoada.Passamos, a pé, pela mesma orla, e seguimos a rua,

que à direita continuava a exibir restaurantes e cafés luxuo-sos, com cardápios que enchiam os olhos e esvaziavam os bolsos, e à esquerda, a mesma paisagem com iates deslum-brantes ancorados um ao lado do outro.

Fizemos esse percurso mais de uma vez, e como em um deles fomos até um pouco mais à frente, coincidente-

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mente e para minha surpresa, em uma esquina, deparei-me com o Paris Hotel.

Para não me passar por louca sozinha, intimei Fernan-da a adentrar comigo o hotel. Mas antes que isso aconteces-se, o mesmo maître que havia me recebido na noite anterior, completamente eufórico, já foi ao meu encontro, comemo-rando a minha volta ao local.

- Não, eu não voltei para ficar no hotel!- Mademoiselle, por favor, não faças mais isso! Fica-

mos muito preocupados. – desabafou o maître.Eu engoli a seco, arregalei os olhos, e encontrei Fer-

nanda do mesmo jeito.- Me desculpe pela fuga, mas foi necessária. – tentei

explicar ao maître – mas a exposição ontem aqui foi sobre Brigitte Bardot, não foi?

- Claro que sim! E a equipe do Monsieur Raphael fez questão que a senhorita viesse porque sabia exatamente do fascínio que a nossa musa também exerce sobre ti...- con-cluiu ele.

- Mais uma vez, perdão! Eu já sei tudo o que eu preci-sava saber! – e me despedi daquele homem tão gentil.

- Você não vai mesmo me contar? – ameaçou Fernanda.- Talvez algum dia, mas antes vamos tomar o melhor

sorvete do mundo, o barbarac. O meu preferido é iogurte framboesa. E o seu?

Já de encontro com a turma, começamos a explorar Saint-Tropez.

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Caminhamos pela Vieille Ville, o centro histórico da cidade, repleta de vielas e ruazinhas charmosíssimas, flori-das, com casas em tons de ocre e terracota, harmonizando o ambiente rústico e confortável.

Visitamos a Citadelle, no alto da Vieille Ville, local onde se pode ver praticamente toda a imponência e mágica de Saint-Tropez. Passamos pelo Vieux-Port, por esculturas lindíssimas espalhadas pela cidade, voltamos à orla, e fomos até a charmosa Place des Lices, com vários cafés e bistrôs.

Foi exatamente dessa praça que eu avistei a boutique Brigitte Bardot.

Pronto. Não conseguia mais sair de lá. O lugar tem o cheiro, a jovialidade, a aura, a liberdade, e no fundo, certa necessidade de isolamento, assim como a Brigitte Bardot fi-zera.

E Saint-Tropez é linda, tanto de perto quanto do alto da montanha. Mas mais que isso, sempre apresenta uma saí-da que nos leva a algum lugar conhecido, desde que não fiquemos parados.

- Olhe aquilo ali! “Roi de Sable”! – Fernanda, encan-tada, apontava para um iate que partia de Saint-Tropez exa-tamente naquele momento.

- Deve ter sido um rei que percebeu que independente de dinheiro, títulos reais, bens materiais, não somos absolu-tamente nada. Apenas areia...- respirei, sem nem mais tentar entender absolutamente nada.

- Vamos embora? – sugeri.

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- Sim, vamos! Acho que eu já conheci o meu bolo e você a cereja do seu, não é mesmo?

- Absolutamente! Tem o gosto bom de Déjà-Vu...

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Voltamos ao hotel em Sainte-Maxime, peguei a minha Berlingo, e fui acompanhando Fernanda pela estrada afora, fazendo exatamente o mesmo caminho que fizemos quando da vinda, mas agora ao contrário.

Adentramos a autoestrada A8, depois A7, seguimos as placas indicativas Barcelone, Lyon, Marseille, mas quando Paris me foi sinalizada pela primeira vez naquela autoes-trada, meu coração acelerou de tal maneira que eu parei na primeira “aire de repôs” à frente.

Fernanda já se encontrava há alguns quilômetros dis-tantes de mim, e eu não tive outra opção senão chamá-la ao telefone.

- Eu não vou para Bruxelas, Fê!- Como assim, sua maluca! Você vai para onde?- Primeiro vou passar em outro País. Vão com Deus e

me desejem sorte!- Sempre! Muita sorte! E eu sei para onde você vai!

Por conhecê-la como eu a conheço, eu sabia que você não deixaria o amor passar. Não sem antes decidir o momento que ele deve partir, não é mesmo?

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- Mas agora eu quero que ele realmente fique. E eu só quero dizer isso a ele.

Terminei de tomar o meu café, e fui em direção ao meu veículo, estacionado próximo a uma área verde. Já do lado de fora da cafeteria, uma brisa suave tocou novamente o meu rosto, como se o acarinhasse, e meu coração foi se acalmando, pouco a pouco, claramente uma anuência para a decisão que eu acabara de tomar.

Antes de arrancar com o veículo ainda consegui ouvir o diálogo:

- Você merece o óscar celestial, anjo Raphael!- Não foi fácil...Cabeça dura, orgulhosa, mas mesmo

ferida, ainda é muito generosa. E você sabe que não menti em nada. Só utilizei a nossa tão parecida história porque nós dois queremos o mesmo resultado no que se refere a sua tão amada filha: que ela seja muito feliz!

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