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COLECÇÃO VIAGENS NA FICÇÃO

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COLECÇÃO

VIAGENS NA FICÇÃO

Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a Chiado Books procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.

Portugal | Brasil | Angola | Cabo VerdeEdifício Chiado – Rua de Cascais, 57, Alcântara – 1300-260 Lisboa, Portugal

Conjunto Nacional, cj. 205 e 206, Avenida Paulista 2073, Edifício Horsa 1, CEP 01311-300 São Paulo, Brasil

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ItáliaVia Sistina 121 – 00187 Roma

www.chiadobooks.com

© 2018, Francisco Penim e Chiado BooksE-mail: [email protected]

Título: Primeiro SendoEditor: Luís Fonseca Raimundo

Composição gráfica: Bruno CantanhedeCapa: Vasco DuarteRevisão: Luís Tiago

Impressão e acabamento: Chiado

P r i n t

1.ª edição: Maio, 20182.ª edição: Novembro, 2018ISBN: 978-989-52-3173-7

Depósito Legal n.º 448620/18

Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

FRANCISCO PENIM

PRIMEIRO

SENDO

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PREFÁCIO

Será que há pontes que se apresentam mais impossíveis de cruzar do que rios que não as têm? É esta a interpelação que percorre as páginas do primeiro romance de Francisco Penim.

O escritor, ele próprio homem capaz de grandes travessias que desafiaram as suas capacidades, mantém o pudor, e não se permite a imaginar na escrita o que o preconceito impede na vida.

As suas personagens vão e vêm numa ponte, cuja presença e até construção se detalha, mas que o coração da história não deixa que se atravesse.

Neste livro, o amor escreve-se em códigos nas suas declarações e impossibilidades. Umas e outras, entrecortadas, como na linguagem usada: o morse. Não há linhas que não se interrompam com pontos. Até ao final.

A tradição, o nome, o presuntivo estatuto são ainda mais definitivos do que a classe e o dinheiro que por si já

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arrumam os amantes, página após outra, num expectável lugar da estratificação social, mesmo vivendo o livro na década de oitenta, portanto, mais perto do que hoje das grandes rupturas próprias das revoluções políticas e de costumes que abalaram o Portugal e o mundo nos anos precedentes.

É proibido proibir, apesar de gritado quase vinte anos antes nas ruas de Paris, não ecoava ainda em Vila França de Xira, onde os futuros eram como marcas de água na vida de cada um, consoante a sua condição.

Ele, se alguma vez se atrevesse a ir viver para Bruxelas, seria porque emigrara. Ela foi. No entanto, apenas viajou e por lá se instalou. Como até o mesmo destino se soletra diferente para quem não é um igual!

Apesar do jardim, onde fazem juras de amor vicejar, eles como as andorinhas perdidas não conseguem viver a Primavera. Mesmo sentindo um amor capaz de despontar ternurentos sorrisos em estátuas. Só os apertos de coração e o sabor dos beijos ficariam para sempre floridos na eterna memória de um coreto.

Anos depois, estes amantes mostram-nos como quem não é capaz de determinar o seu fado também não consegue reviver o passado, porque não o construiu, embora tantas testemunhas lá permaneçam, provando-nos que houve uma vida que existiu.

Artur Albarran, 17 de Abril de 2018

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ÍNDICE DE PRIMEIRAS PALAVRAS PRIMEIRO SENDOPara benefício do leitor

ABRISAR, verbo intransitivo1. Haver brisa, soprar devagar o vento.2. (Figurado) Ser lento, suave, incerto.3. (Popular) Soltar brisas.4. Surgir, aparecer ou mostrar-se lentamente.5. Utilizado no capítulo “Luz”.

AJARDINANÇO, substantivo masculino1. Acção de trabalho esmerado num jardim ou quintal.2. (Figurado) Embelezamento, floreado, brio.3. (Música) Variação que o executante adiciona à peça

musical que interpreta.4. (Plural) AJARDINANÇOS.5. Utilizado no capítulo “Dúvida de vidro”.

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CAMPARIO, substantivo masculino (= CAMPARIA)1. Série ou aglomeração de campas habitualmente num

cemitério.2. (Plural) CAMPARIOS.3. Utilizado no capítulo “Pedra lançada”.

CAPAR A ÁGUA, expressão popular da região de Trás-os-Montes

1. Passatempo ou jogo típico de rapazes que consiste em atirar, com alguma velocidade, pedras ou seixos horizontalmente à água para que nela deem um ou mais saltos até se afundarem.

2. (Sinónimo) CAPAR A RIBEIRA.3. Utilizado no capítulo “Só água”.

COLO-DE-AR, substantivo masculino (= COLO-D’AR)1. O flutuar embalado, balançado, lento, suave, incerto

de uma folha a cair naturalmente da árvore, muitas vezes aos zigue-zagues.

2. (Plural) COLOS-DE-AR.3. Utilizado no capítulo “Vida fora”.

DESACOCORAR, verbo transitivo1. Levantar o corpo da posição de cócoras para a posição

de pé em sentido.2. O contrário de ACOCORAR ou pôr de cócoras.3. Mimar pouco.4. Utilizado no capítulo “Pasteleira”.

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DESCASCANÇO, substantivo masculino1. Área extensa do tronco de uma árvore sem casca.2. (Plural) DESCASCANÇOS.3. Utilizado no capítulo “Só água”.

ESPREITANÇO, substantivo masculino1. Acto ou efeito de olhar demoradamente, ou durante

um considerável período de tempo, por uma fresta ou assumidamente por entre um espaço diminuto rodeado de matéria sólida e opaca.

2. (Plural) ESPREITANÇOS.3. Utilizado no capítulo “Vida fora”.

INANIMIDADE, substantivo feminino1. Falta de vida.2. Faculdade desprovida de ânimo ou sentidos,

característica de algo dado como morto ou inanimado.3. Ausência, vazio latente.4. Utilizado no capítulo “Coisas inanimadas”.

MESMANÇA, substantivo feminino1. Acto de permanência.2. Imutabilidade, impotência.3. Constante, fixo, inalterável, parado no tempo.4. Inacção, sem reacção, apático.5. (Plural) MESMANÇAS.6. Utilizado no capítulo “A vida manda na gente”.

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PATRIMONIAR, verbo transitivo e intransitivo1. Juntar ao património = AMEALHAR, ACUMULAR,

SOMAR.2. Registar formalmente um bem ou pertence.3. Utilizado no capítulo “Ajustes alguns”.

PEDALANÇO, substantivo masculino (= PEDAL)1. Acção de pedalar rápido.2. Alta velocidade.3. (Plural) PEDALANÇOS.4. Utilizado no capítulo “Pasteleira”.

VENTESMA, substantivo de dois géneros1. Sensação assustadora de movimento provocada por

uma grande massa não uniforme, tipicamente uma montanha, um penhasco, um deserto, uma floresta ou um curso de água.

2. Utilizado no capítulo “Coisas inanimadas”.

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Para a minha querida Estefaninhae o meu querido Norberto.Para o meu querido Manuele a minha querida Janinha.

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Escrito por Francisco Penim

PRIMEIRO SENDO

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Primeiro Sendo

Completamente diferente

Àquela hora não haveria assim tantos carros a passar a ponte para o outro lado, o que faria com que não fosse difícil apanhar o dela. Valeria bem o esforço. Ponto, traço, ponto, ponto, uma pausa, traço, ponto, traço, traço. Duas letras apenas à velocidade da luz. Duas letras, para só ela perceber. Mesmo que, por acaso, mais alguém visse a luz da lanterna a piscar nunca descobriria o que era aquilo. Outra pessoa nunca perceberia o que aquilo queria dizer. Era impossível. Impossível e perfeito. A luz transportava o amor. Nada era mais perfeito.

O nascer do dia particularmente pontual ao fundo com a ponte de permeio. Pilares fundeados no rio que sabe correr lento no sentido descendente. Os arcos de ferro estáticos da estrutura a ondularem a estrada rasgavam de negro o fundo avermelhado do céu lá ao longe com algumas nuvens. Ia ficar quente mais tarde. No jardim municipal, Martim encostava-se a um pilar à cata do carro do pai da Rita. Ele que gostava de sair cedo para chegar a tempo ao Algarve e

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Francisco Penim

dar um mergulho. Olhos bem abertos na ponte e os faróis de um carro, a quase silhueta escura do automóvel e a lanterna grande, tirada da arrecadação do café na noite anterior, apontada certeira a partir da margem, seguindo o trajecto da esquerda para a direita, fez assim esganada: ponto, traço, ponto, ponto, uma pausa, traço, ponto, traço, traço, outra pausa maior e, de novo, ponto, traço, ponto, ponto, pausa, traço, ponto, traço, traço. Duas letras. Só duas e mais nada.

- Love you. Amo-te, Rita! – Assim baixinho, só para ele ouvir, como se a voz pudesse ser transportada pelo feixe de luz rumo ao carro em movimento que podia perfeitamente ser o dela. Se o dissesse mesmo baixo, a voz lá ia, louca, à boleia da luz para os ouvidos certos. Era só uma questão de pontaria. Pontaria e uma certa capacidade de planeamento.

Há duas semanas, ela tinha-lhe contado a custo. Martim começou por ouvir.

- Tenho uma coisa para te dizer… – disse-lhe cabisbaixa, vagarosa. Rita não sabia lidar com estas situações impossíveis. Tinha consciência disso mas ao mesmo tempo era mais forte que ela e não o conseguia evitar. Tinha sido assim criada. Criada a dizer “umas-coisas”, mais não. Manteve-se afastada com um sapato a raspar na gravilha.

- Diz… – respondeu Martim que havia adivinhado o que aí vinha. O calor já tinha começado, as aulas terminado há quase um mês, ele passava mais tempo a trabalhar e a Rita ainda não tinha ido de férias para baixo como todos os verões. Ela permanecia na mesma posição. Imóvel. Olhos a encontrarem o chão do jardim. E lá a boca abriu para dizer uma coisa, mais não, ou quase.

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Primeiro Sendo

- Vou de férias com os meus pais para o Algarve. Vamos já amanhã. – Disse-o envergonhada. Depois, ergueu-se e encontrou os olhos do Martim de modo a passar ainda mais verdade. – Mas, se eu pudesse, ficava aqui contigo.

- Eu sei. – E abraçou-a. - Quando voltas? – Procurou o Martim sem resignação, por entre os cabelos pretos de Rita, consciente de que as férias grandes eram inevitáveis. Se alguém lhe perguntasse mais tarde, poderia até jurar que tinha esboçado um sorriso.

- Daqui a um mês…Bolas, quatro semanas era muito pouco. Quatro

semanas para aproveitar ao máximo eram poucas. Muito poucas e difícil.

- E sais a que horas, amanhã?- Sabes como é… o meu pai quer sair cedo.- A que horas sais? Diz lá!- Antes das sete da manhã.Houve um instante em que nenhum dos dois disse

nada. O amor não se variava assim, por mais difícil que fosse. E pouco é que não era, o amor.

Os sapatos envergonhados voltaram a roçar na gravilha. Foi uma das lágrimas dela que os viram do alto do canto do olho esquerdo. E depois era para não olhar para ele mas olhou. Mais não.

- Está tudo bem – e debruçou-se para a beijar. – Olha, quando estiveres na ponte quero que olhes para o jardim. Tenho uma surpresa para ti. Tens de prestar atenção e não tirar os olhos do jardim. Não podes tirar os olhos do jardim,

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Francisco Penim

Rita. Percebeste?- Que surpresa? O que é que vais fazer?- Logo vês amanhã – disse com um sorriso e mais

um beijo suave nos lábios. Agora, sim. De certeza que tinha sorrido. – Eu amo-te!

- Eu também te amo, Martim.Dois sorrisos. Um beijo.Algumas horas mais tarde era amanhecer e lá vinha

um automóvel. A lanterna repetiu no mesmo ritmo: ponto, traço, ponto, ponto, uma pausa, traço, ponto, traço, traço, outra pausa maior e, de novo, ponto, traço, ponto, ponto, uma pausa, traço, ponto, traço, traço. Duas letras.

- Love you. Amo-te, Rita! – Outra vez baixinho como antes.

Alguma vez teria de acertar no raio do carro. Era só uma questão de tentar e insistir. Assim que vinha um, afinava a pontaria, apontava o facho de luz o melhor que conseguia. Língua de fora, ritmo certo, letra a letra sem falhar. Vontade de sair disparado da margem e lançar-se sobre a ponte. Uma esperança em acertar. Depois, a espaços, um carro. Era este! Tinha de ser este! E a luz apressava-se na sua viagem. Tanto se acelerou que acertou! Acertou em cheio! A Rita, alerta, viu tudo da janela do lado dela, atrás, no Mercedes do pai. Viu tudo com um sorriso que só o vidro da janela percebeu de soslaio no reflexo. A menina a sorrir para ele… há quanto tempo não via este sorriso? Mais tarde, teria de dar a volta ao automóvel e contar a história a todos os outros incluindo o pára-brisas que não ia acreditar numa só palavra.

Na margem a clarear, lá estava a surpresa prometida

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Primeiro Sendo

pelo Martim. Duas letras cintilantes a dizerem-lhe que a amava. Uma e outra vez. Rita entendeu a mensagem à primeira mesmo não sabendo pelo que era suposto esperar. Claro que não era a luz que comprovava que o Martim era o amor da sua vida, mas só ele seria capaz de se lembrar de uma coisa assim. Isto era mesmo dele.

- Só tu, Martim… - e outro sorriso. – Só tu!Podiam ter apenas, os dois, dezassete anos, mas ela

sabia que seria para a vida. E, no entanto, era a vida que estava presente naquele momento de uma margem para a ponte. Um instante de separação em início de viagem de férias para ela, de falta para ambos, de aflição por não saber um do outro, de calor pelo amor reafirmado. Os próximos dias seriam vazios com dois papéis a serem desempenhados. Ele voltaria ao café da família onde trabalhava, abriria as portas, lavaria chávenas, passaria panos molhados nos tampos das mesas, correria apressado entre os clientes, faria uns trocos mais, ouviria o pai a gritar ordens e olharia para a televisão sempre que alguém falava do Algarve onde a Rita estaria num mundo completamente diferente do dele em passeios de barco, a apanhar sol numa espreguiçadeira, a arranjar-se para jantares e festas, com pessoas que pouco lhe diziam e que a mandavam respeitar, em conversas prendadas sobre os estudos, as aspirações dos pais e o que lhe estava reservado para mais tarde.

O carro cruzou a ponte por completo seguido da luz da lanterna que latejava atrás do barulho do motor a distanciar-se estrada longe. Os vidros a contarem-se histórias, sem menosprezar um quilómetro, sobre a menina dos seus reflexos. A luz perdeu terreno e ficou-se ofegante

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pela margem a ganhar cor. O pai a conduzir com a mãe ao lado, meia a dormir. A Rita no banco de trás a aconchegar-se melhor, com o coração aos saltos. Saltos pequenos, para nada, nem ninguém ver.

No jardim parado:- Volta… - um sussurro interior com uma pausa. –

Volta... - outra pausa. - Volta…O dia de Julho começou ajustado, completamente

diferente com a luz da lanterna a desligar-se. Só a da lanterna… mais não.

Só com o decorrer do tempo é que Martim foi percebendo porque Rita não queria assumir o amor entre eles. Eram os dois da mesma terra, mas podiam ser de dois mundos distintos. Tinham a mesma idade, mas os anos prometiam separá-los mais à frente. Ela estudava numa escola toda chique de Lisboa e ele ia à secundária de Vila Franca de Xira. Ela vestia-se de propósito para ir à missa ao domingo. Ele queria lá saber da missa. A mãe dela esperava que a Rita fosse diplomata, colocada num destino importante como Paris ou Londres, ou que tirasse Direito, ou então, Medicina. Ele sabia que só com muita sorte é que não serviria cafés o resto da vida. Se a Rita tinha a vida dela planeada, o Martim podia dizer o mesmo.

A senhora Laura nunca permitiria que Rita casasse com o filho do sr. Araújo do café. E a Rita não contrariava

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Primeiro Sendo

a mãe. Pelo menos, era assim que tinha sido criada. A não contrariar.

Não foram precisos muitos fins-de-semana, muitas idas ao centro da vila com os pais, muitos inícios de tarde sentados na esplanada. Não foram muitos para ter chegado a atracção que se refinaria como insuportável de evitar. A Rita tinha até a impressão que reconhecera logo o Martim de camisa branca, calças pretas, de bandeja prateada equilibrada a andar desenvolto entre as mesas, a tomar nota dos pedidos dos clientes sem uma vez apontar nada, a fazer os trocos de cabeça, simpático com todos. A Rita Assunção nunca tinha passado despercebida. Não ao Martim ainda miúdo no café do pai. Tinha sido na esplanada a primeira vez que a Rita ouvira a voz do Martim. Talvez num feriado. E no sábado seguinte, no jardim à beira rio, trocaram directamente o primeiro olá.

Não foram precisos muitos olás para a Rita perceber que iria contrariar a mãe. Nem muitos quilómetros que os separassem fariam com que o amor parasse. Quer por perto, quer por longe, a Rita estava sempre dentro do Martim. Literalmente. De todas as maneiras, afirmar esse amor era como respirar, como viver. Ter esse amor era como ter uma aura, num contexto só dos dois. Perante a proximidade, às claras e às escondidas, era um amor que carecia de afirmação. Mesmo que apenas notória entre ambos, velada dos outros, seria vincada entre eles, marcada de luz, omnipresente.

- Eu amo-te, Rita. - Eu também te amo, Martim.Sem contenção. Sem contenção e de todas as formas

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por mais improváveis, ou não, que fossem. E Martim tinha sempre modo de fazer surgir as maneiras mais inventivas de passar a dizer à Rita que a amava. Como daquela vez que, no jardim, fez uma fila de duas pedras brancas de gravilha seguida de mais cinco com o pormenor de, no segundo grupo, separar as três primeiras das duas últimas com a cabeça vermelha de um fósforo partido posto deitado.

– Imagina, Rita. Imagina que as letras de “Eu amo-te” estão escritas, uma a uma, nestas pedras. – O dedo dela, segurado entre os dele, seguia com olhos em uníssono que passam na página de um livro da esquerda para a direita devagar.

- E-U… A-M-O… O hífen é o coração. O meu coração de ti, Rita… T-E… – e riscava de súbito outro fósforo aproximando-o do hífen. Uma chama. – Ele queima por ti, Rita. Vês? – Duas pedrinhas brancas, mais outras cinco, estas separadas pela antecipação e pela cabeça do fósforo a arder quente no chão. A Rita de boca aberta. Incrédula.

- Só tu, Martim. Mais ninguém se lembraria de uma coisa assim.

E, mais tarde, que tal a vez em que o Martim ensinou código morse à Rita? E nem foi preciso o alfabeto todo. As letras “L” e “Y” eram mais do que suficientes.

- L-Y… Love you! Só isto. Ponto, traço, ponto, ponto, espaço, traço, ponto, traço, traço. E podemos usá-los como entendermos. Mesmo que eventualmente alguém perceba o código, nunca perceberá o querem dizer o “L” e o “Y”.

- Mas vamos precisar de ter sempre um papel e uma caneta! Ou uma coisa para escrever.

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Primeiro Sendo

- Nada disso! Pode ser o que tu quiseres. O que quiseres! Podem ser saltos. Um salto pequeno é um ponto. Um salto grande é um traço. – Um sorriso da Rita. – Ou podem ser assobios. Silvos curtos e longos. – Outro sorriso da Rita que não estava a tentar fazer sorrisos pequenos e rasgados com segundos sentidos. Não se sentiria capaz de uma coisa assim. – Uma fila de copos e chávenas no balcão do café do meu pai. Os copos como traços, as chávenas como pontos. – Um grande sorriso do Martim. Um grande sorriso a descobrir coisas como primeiras.

Todos os inícios de tarde, logo a seguir ao almoço, depois disto, o balcão do café do Araújo ia ganhando umas aparentemente aleatórias fileiras de louça. Só uns copos e chávenas em fila indiana. Já para não falar de quando o Martim conseguia fazer uma fila – um “L” – em cima da bandeja que trazia à mesa da Rita com os pais mesmo ali ao lado. O coração do Martim a bater rápido das primeiras vezes, os olhos bem abertos da Rita a perceber o cuidado com que a fila não se desmanchava e se ia equilibrando. Nem nunca o irmão Daniel achou estranho. Uma chávena, um copo, mais duas chávenas. A louça alinhada, pousada na bandeja que o Martim ia passando à mão para a mesa orgulhosa e babada de tanto amor. Depois, quando toda a ostentação era posta em dia, a Rita pedia dois copos d’água e, sem erguer olhares desaprovadores da mãe, conseguia deixar a sua resposta mesmo antes de se levantarem os três. Um copo, uma chávena, mais dois copos em fila.

- Eu amo-te, Martim.- Eu também te amo, Rita.

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Sem contenção. Mais tarde seria da luz, a união antes das férias grandes.

Os saltos pequenos do coração de Rita foram ficando-se cada vez mais sonegados à medida que o Algarve se punha mais perto. Não que o sentimento que possuía pelo Martim fosse diminuindo. Acreditava ela que isso não iria passar. Os saltos foram menorizados de medo. Medo das expectativas da família, especialmente da mãe mas também do pai. Faltava um ano para deixar Vila Franca sem saber se voltaria como até agora. Um ano para dar a notícia ao Martim sem saber o que fazer, como o fazer, sem perceber o futuro dos dois, sem a luz que não podia ajudar. Era o que era aguardado dela, era o que a família esperava que fosse o seu próximo passo onde não haveria lugar para o filho do Araújo do café. Como filha única era essa a sua atribuição. Ela sabia-o, acreditava nisso como paradoxalmente sentia o seu amor pelo Martim que ficava. Sentia-o de dentro como de boa fonte. Sentia que a iluminava quando fechava os olhos. Foi a luz que viu ao fechar os dois e a viagem continuou.

Enquanto, a caminho do Algarve, os vidros do automóvel iam passando os quilómetros a falar entusiasmados sobre o sorriso da menina a cada curva da estrada, a cada guinada do volante, a cada dar de si da carroçaria e à medida que o aconchego da Rita se tornava mais dividido entre o faz e o querer fazer, o Martim já tinha virado costas, passado

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Primeiro Sendo

para o outro lado da linha de comboio em direcção a casa com a lanterna a baloiçar na mão depois de praticada a boa acção.

Tinha valido a pena ter cronometrado o tempo que levava a chegar a correr ao jardim para não perder a potencial hora de saída, compensou ter ido buscar a lanterna na noite anterior e não é que tinha escolhido bem o sítio na margem do rio? Fez bem em ter comprado pilhas novas para a lanterna, não fez? Tinha ido ao jardim, tinha escolhido o ponto certo, feito bem a pontaria para o meio da ponte. Ajustou a mira, prendeu aquilo tudo com fita isoladora, deitou a língua de fora e semicerrou o olho direito para refazer o acerto do alvo, deixou a lanterna ligada e apontada e foi a andar até à ponte sem olhar para trás. Não demorou mais de vinte minutos. Chegou a meio, virou-se para o jardim e topou logo a luz que acenava da margem. OK, a luz via-se. Via-se bem. Que grande plano, este!

Agora, de regresso a casa, ele sabia que não tinha sido nada em vão. Um daqueles carros era o do pai dela. A Rita tinha visto de certeza. Não tinha errado em nada. Era uma boa ajuda para as semanas que lhes tinham sido tiradas. E logo quatro.

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Primeiro Sendo

Coisas inanimadas

Pode dizer-se que é repetitivo. De manhã ou ao entardecer o homem vem até à margem, encosta-se à balaustrada, sente a brisa a atravessar o rio que os pescadores chamam de mar e respira fundo. O ar com que o seu peito se preenche vem carregado da largura entre as margens distintas mas orgulhosas. Deste lado, o cunho urbano atabalhoado dos homens ao longo dos anos, do outro a lezíria que alaga a vista em campos a perder a distância, com gado que percorre os labirintos de caminhos onde muitas vezes alguém se pode perder entre a lama e a falta de noção do percurso certo. Pouco importam as cheias que vão e vêm já que os tramos da ponte funcionam como bússola qual ponto de referência da paisagem plana. A ponte é farol, une e atravessa no caminho, faz obstáculo à correnteza. A água embate, corre, é vida e morte.

No jardim, as estátuas das Estações do Ano conhecem o Martim de ginjeira, desde miúdo de calções com os joelhos marcados pela terra de tanto jogar ao berlinde. Só

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Francisco Penim

não conseguem virar o pescoço por mais que se esforcem mas sabem o que ele está a fazer ali. É como se tivessem olhos na nuca, todas as três espertalhonas. Nota-se que falta uma. Elas percebem que ele vem aqui vez após vez. Quase repetitivo. Vêem-no chegar mais à direita assim na direcção do velho coreto agora pintado de fresco renovado. A Primavera, a primeira, de túnica dura a cobrir-lhe a cabeça de pedra, faz logo um alarido bem ao seu jeito, com pólen pelo ar a provocar espirros, o cheiro doce a flutuar, o som de grilos no galanteio, a temperatura que aumenta, a vida a chegar ainda que sorrateira como o homem. A estátua do Verão não está, pelo que salta-se de estação para chegar ao Inverno, sem ordem estabelecida. Este, mais gélido, mas igualmente forte, cumpre a função mais devagar, na certeza porém, com o sopro do vento que o caracteriza, avisa a última Estação com pingos de chuva mareada, ou o que parece ser, e acorda o Outono a resmungar. Sol de pouca dura com este a fazer nota do restolhar na gravilha à medida que o homem se aproxima.

Há folhas pelo chão. E lá ficam as três, para variar com os pés bem assentes na terra, como se tivessem olhos na nuca esperando que o Martim se lhes atravesse no caminho antes de parar à beira mar perto dos barcos. Um homem adulto, sozinho, parado na margem do Tejo. Onde é que já se viu isto?

De manhã ou ao entardecer lá está ele, imóvel. De costas, parece quietinho. Mão firme a abrir e a fechar-se na balaustrada, a brisa a bater-lhe na barba, pelo a pelo movida, ora pelo ofego da respiração, ora pela ventesma do rio. Os olhos apoiados na ponte passada de um lado ao outro. Olhos

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feitos. Olhos que escolhem os intervalos dos mastros dos barcos ancorados deste lado, desviam-se e fitam os cinco arcos da ponte antiga. Ondulam. Os arcos ondulam com o olhar. É fantástico!

O barulho do comboio a passar mesmo ao lado do jardim municipal, rápido, parece à velocidade da luz para o Norte. Luz… para Norte é o que Martim faz por sinalizar.

Em sentido contrário passam dois tipos coloridos em bicicletas de montanha. As folhas calcadas pelos pneus não desviam a atenção das Três Estações do Ano com os ouvidos à coca do Martim a amaldiçoar o não poderem olhar para trás. Um dia, talvez, quando lhes mudarem as fundações.

O toque frio dos pilares verdes da balaustrada. As mãos ressequidas de tantas horas de trabalho no café, vincadas pelo tempo. Há dias que os tocam só ao de leve e outros que os apertam para os deixar sem ar. Hoje é dia de apertar, pois. Fora isso, o Martim não desiste da marca. É naquele sítio da margem a mirar para a ponte onde passam os mesmos automóveis ao lusco-fusco e ao longe. A mesma vista de sempre. Anos depois, é a mesma vista de sempre. Não mudou nada. Não vem aqui todos os dias, mas vem muitos deles. Vem e vai ficando para marcar, reafirmando o tom que pauta o seu todo. Ele completa-se nesse todo. Vive com e através dele. Sente que é ele e inspira. Não pensa ou tenta não pensar. Sentir, é que nem lhe passa pela cabeça deixar de fazer. No jardim sente tudo. Até as estátuas parecem contar todos os pormenores. Contar e sentir. Este homem não é feito de pedra! Pelo contrário. Este homem é feito do que está entre a margem e a ponte, entre pedra e aço, dessa matéria que cimenta as coisas que parecem inanimadas,

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mas é claro que não são. Essas, as coisas inanimadas, são as mais importantes de todas. A inanimidade do que está entre aqui e ali. Entre margem e ponte. É aí que estão muitas das importantes coisas do Martim Araújo.

São visitas quase diárias que reafirmam o seu descaminho, o seu propósito que o faz sentir mais. Podem passar anos, mas ele sabe que haverá de voltar aqui muitas vezes. Tal como sabe que nunca poderá sair de Vila Franca de Xira. Foi aqui que acabou por ficar. Não é só o negócio, não são apenas as raízes, os dois filhos, a mulher que já não está e os amigos. Ele está neste sítio. É aqui na margem do rio que vai estar sempre. Se calhar, nem é uma questão de voltar. Não se pode voltar onde já se está, entre a margem e a ponte, de onde nunca se saiu. Este homem não é feito de aço. Agarra aquele estar como pode, repete sem contar o seu olhar em direcção à ponte. Não obstante, entre pedra e aço está o que une o Martim. É um homem unido. Ele percebe isso. Teve e tem que o viver na pele. Tem e teve de viver a sua própria realidade e respeitar a escolha da Rita que não ficou. Hoje, para ele, é uma escolha sem peso, sem lastro de dor e comiseração, sem lamento e, sobretudo, sem mentira. Mesmo que não tivesse sido assim todos os dias da sua vida.

A Rita tinha ido. Ela foi indo de todas as vezes em crescendo. Em miúda cada vez que ia para as aulas, ou de semana a semana, todos os domingos à noite para Lisboa. Quando chegavam as férias grandes lá ia com os pais para estar fora não menos de um mês. Depois, ao entrar para a Universidade, deixou de regressar. A seguir foi terminando o curso e não voltou a haver a seguir a isso. Foi indo a Rita. O tempo estava assim arrumado para o Martim, mais coisa

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menos coisa inanimada. Acontecendo sem controlo e sem crer. Ele nunca acreditou que ela deixaria de voltar, nunca se apercebeu no que é que esse não regresso faria da sua vida e nunca por nunca conseguiu, ele próprio, deixar-se ir embora.

Hoje tinham passado 26 anos e a tal coisa que é inanimada… que o faz estar nesta margem… ao alcance desta ponte… continua a ser percorrida, luz afora, nos olhos do Martim. Nos olhos bem abertos do Martim.

Falta, então, conhecer o que está por dentro. Se pudessem, as Três Estações do Ano, teriam batido palmas. Porque não há amores de vários tipos. Existe um.

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Primeiro Sendo

Sem menina

- A vossa mãe foi fazer quarenta e três anos debaixo da terra - era o que o pai contava normalmente quando o café já estava fechado, os clientes há muito tinham saído e só os irmãos lá estavam a certificar-se de que tudo estava limpo e pronto para abrir portas no dia seguinte. Contava, bebia e com o andar da coisa os seus modos alteravam-se fazendo com que, à tona, viessem ressentimentos de outro tempo que não escolhiam vítimas. As que estavam por perto que tomassem cuidado. Eram as mesmas. - A vossa mãe tinha muito orgulho nos filhos que tinha, coitada! E ela é que sabia o quanto custa ter um café como este. Ouviram? – E batia com a garrafa na mesa. O pai esperava sempre pelo fecho do café para beber umas cervejas. Tinha a consciência de que antes disso, era impensável. Até numa vila como esta tudo se sabia e se o café do Araújo tivesse um bêbado à frente do negócio, isso seria o fim do seu sustento. Do seu e da memória da Ana.

Alberto Araújo tinha nascido já com o pai e a mãe

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donos de uma casa de pasto que, mais tarde, transformaria com a mulher no negócio que acabaria por ficar para o Martim. Embora isso fosse uma incógnita. Depois de ficar sem pais, o Alberto casou e afirmou-se como pôde aqui em Vila Franca de Xira. O dinheiro ia dando para se viver e não se queixava. O Alberto tinha por hábito não se queixar de nada já que metia para dentro os assuntos meio desarrumados. Era um homem calejado na educação, contado no dinheiro poupado e desconfiado com empregados que, na verdade, preferia não contratar pois queria que fossem os filhos a trabalhar com ele no café como era sua obrigação. O último que por lá parara tinha sido um Álvaro qualquer coisa, não se lembrava do raio do apelido, antigo paraquedista que dizia ter estado na guerra do ultramar. Nunca mais lhe tinha posto a vista em cima e ainda bem! Foi logo no primeiro mês que o encontrou malandro a fumar na esquina do café ainda com a bandeja debaixo do braço enquanto namoriscava uma das empregadas da drogaria da Dona Luísa. Mandou-o de raspanete à vida dele quase sem abrir a boca. Ali à frente da rapariga meteu-lhe quinhentos escudos na mão, disse que hoje podia sair mais cedo e que no dia seguinte escusava de lá aparecer mais. O Álvaro ainda lhe respondeu das boas ali aos berros na rua, enquanto o Alberto olhava para ele impassível, para espanto da rapariga que esperava outra reacção do senhor dono do café. De um movimento só lançou a mão à bandeja, puxou-a do sovaco do homem, virou costas e regressou aos fregueses antes que se fizesse tarde. Chegou a bandeja ao nariz para confirmar o suficiente cheiro a suor, cuspiu-lhe com cuidado para ninguém ver e apressou-se a puxar-lhe o lustro. Antes perder um mau empregado do que

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uma boa bandeja. - Descansar? Ah… isso nem quando o rei fazia anos!

Quando fizemos aqui o café não se dormia, seus mandriões. Trabalhava-se! A vossa mãe só parou de trabalhar quando saiu para a morte aos quarenta e três anos! – O pai só falava da mãe assim mais pela noite quando o vento soprava vindo do rio.

Ana Maria, filha de avieiros, conheceu Alberto na missa e tinha-se decidido pelo moço ainda antes da epiclese. Já à sua avó isso tinha acontecido, o que só reafirmou a sua crença de que seria a mulher do Alberto até à morte chegar. Que foi o que aconteceu. Mas então, mais tarde em cinquenta, a Ana Maria foi pedida em namoro pelo Alberto Araújo quando estavam os dois no Cabo e vinham apanhados no gasolina com que se atravessava o rio por cinquenta centavos. O pequeno barco tinha do lado escrito as palavras “Luz da Lezíria” como nome próprio. Enquanto foi viva, a Ana Maria lembrar-se-ia de todos os pormenores ou lá ia achando ela. Nessa tarde usava um lenço atravessado na cabeça com as pontas ao alto, um casaco e uma saia em pregas miúdas, de xadrez castanho-amarelado. O casaco garrido de manga comprida, enfeitado com bordados. A cobrir parte da saia, um avental rodado com quadrados miudinhos. Chegara com outras raparigas aperaltadas de uma ida à Igreja orar à Nossa Senhora da Conceição a uma hora e meia de caminho na lezíria e deu de caras com o Alberto que regressava dos trabalhos rudes do campo. O sacrista estava à espera dela no cais e cumprimentou-a retirando a boina, mas não se importando nada com o mau aspecto e a sujidade entranhada nas suas roupas. O resto das moças a rirem entre si aos

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soluços. Enquanto o gasolina vinha a meio caminho, a Ana distanciava-se do grupo para chegar perto do Alberto que também tinha-se afastado dos homens que o acompanhavam depois de mais uma jorna.

- Boa tarde, menina Ana – disse-o de boina na mão e olhos nos dela. Alberto era daquele género de homem que modulava a voz com diferentes tons. Um tom acre para o mundo, outro tom para a Ana. Talvez não fosse suave mas lá que era diferente, lá isso era!

- Olá Alberto. Como foi o dia? – Foi de sorriso alargado que respondeu. A diferença nos tons era perceptível para ela. Gostava disso.

- Oh… foi comprido como de costume – com um gesto também comprido e directo para os campos ao largo do horizonte. – Já está de volta, a menina?

- Vou agora para casa, Alberto. A minha mãe espera-me.- E como está a mãe da menina? Espero que bem.Um pouco mais afastados, homens de um lado e

raparigas do outro segredavam, segregados, entre si.- Oh, Alberto… eu já não te tinha dito no outro dia que

não tens de me tratar por menina?Alberto acabrunhou-se a cerrar os punhos sobre

a boina com os olhos cravados nas pregas do tecido. Um vislumbre do seu outro tom.

- Isso já não se usa, rapaz! – Disse-o altiva mas suficientemente baixo para que mais ninguém escutasse. – Não se usa. – Agora, repetiu como que a transmitir confiança ao rapaz.

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- Está bem, menina – e apercebeu-se logo do que tinha feito. Ela à espera com um ar traquina bem mais novo do que os seus vinte e poucos anos. Ele parou, subiu a cabeça, fixou-a nos olhos. Segurou o instante e em resposta ao recorrente sorriso dela só foi capaz de dizer atrapalhado – Está bem, Ana…

O sem menina mudava tudo abertamente entre os dois. Era apenas uma questão de tempo até que mais pessoas soubessem. Se é que ainda não sabiam.

Passaram uns instantes.- Num destes dias, já vimos pr’aqui de carroça.

Quando a ponte estiver pronta, vai ser muito mais fácil. Vamos chegar é com calos no cu! – Foi um dos homens que o disse, irrompendo todos fartas gargalhadas que nem por momentos interromperam Ana e Alberto, cujos olhares se entrelaçavam.

Os risos não pararam e, no rio, o gasolina “Luz da Lezíria” chegava ao cais. Mais acima, dois arcos de aço já colocados no extremo da ponte avançavam para a margem esquerda, com um pedaço de ponte meia despida ainda sem arco à frente com uma grua agora parada contrastavam com o céu azul do fim de tarde. Um novo mundo estava a chegar a Vila Franca.

A ponte de Vila Franca de Xira era um desejo há muito formulado pelas gentes mais e menos oficiais das localidades

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circundantes. Até o Alberto percebia isso. Há mais de vinte e cinco anos o Município tinha deixado a aspiração muito clara numa exposição entregue no Ministério das Obras Públicas da altura. Podia lá ser ter de subir cinquenta quilómetros até Santarém para passar o Tejo para o outro lado? A travessia mais a Sul era clamada por todos mas principalmente pela voz do progresso. Ao brado do povo juntaram-se campanhas no jornal regional “Vida Ribatejana” pela pena do António Lúcio Baptista, então presidente da Câmara Municipal, que em artigos muito adjectivados deixava claras as suas opiniões sobre o que uma ponte podia fazer pela vila e seus habitantes. Mais tarde, os cordelinhos foram puxados também de outros modos mais habituais e eficazes. Algumas das maiores obras públicas dos governos de Salazar realizaram-se entre o final dos anos quarenta e o início dos cinquenta. Houve grandes investimentos e capacidade de concretização de obras planeadas por Duarte Pacheco que tinha morrido uns anos antes. Mas foi quando Pereira Palha, amigo próximo de Salazar, se pôs em campo que as fundações da futura ponte ganharam profundidade. O Alberto já o tinha visto na vila mais do que uma vez. Alto, de bigode aparado, bem vestido, de fato completo e gravata, corte fino, chapéu negro a cobrir-lhe a cabeça que já tinha pouco cabelo nas entradas evidentes. Com uns bons dias sonoros sempre prontos a aparecer, passasse por quem fosse. José Van Zeller Pereira Palha, filho da terra e de sólidas raízes familiares com passado e futuro, fez parte de várias comissões que se deslocaram a rigor à capital em prol da ponte dos seus. Também ele presidente do Município fez alarde da sua vontade missionária em construir em Vila

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Franca um importante ponto de travessia para as terras de Além Tejo e o Sul, até porque mesmo que um dia se construísse na capital uma ponte, esta nunca conseguiria dar vazão ao movimento de pessoas e mercadoria, especialmente para quem não precisava de passar por Lisboa e fazia o percurso longitudinal do país. Poupavam-se quilómetros e a vila ganhava dinheiro. Até o Alberto percebia isso.

Era esta a travessia que estava a crescer sobre o Tejo, à borda de Vila Franca de Xira. Muita coisa iria mudar na vida de Ana Maria e Alberto Araújo e a ponte e o rio que franqueavam serviriam de testemunhas silenciosas.

- Ouvistes, Alberto Manuel? – Alberto Manuel Araújo, o filho, era o mais velho dos três irmãos e ficava mais tempo atrás do balcão. Tinha o mesmo nome do pai por desejo da sua mãe. Era um costume da família. Ao filho primeiro era posto o mesmo nome de quem lhe tinha dado vida. Dás-lhe vida, dás-lhe nome! Era assim.

Alberto Manuel, tal como o irmão seguinte, Daniel, era muito mais velho que o Martim. Onze anos e meio distanciavam-nos, aos três, como se fossem afastados pela vontade expressa dos genes herdados do pai. Mas os laços que os uniam começaram a ser urdidos, repentinamente, semanas depois do nascimento do mais novo. Podiam ser mais de duas mãos cheias de anos de intervalo, mas os rapazes eram da mesma frágua. Ana tinha parido dois, um a

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seguir ao outro, e quando julgava que a vida já lhe roubara a abundância, do nada, surgiu o Martim. Aos quarenta e três anos, Ana daria a sua vida pela do seu terceiro e derradeiro filho, após duas semanas de internamento num hospital de Lisboa na sequência de complicações fatais provocadas pelo parto. Alberto assistira a tudo, sofrera impotente por não ter conseguido dar o amparo que a Ana queria usufruir, por não ter ido a tempo de o fazer, por ter ficado a menos de meio. Começou a fechar-se progressivamente numa viuvez que o gastava. O Alberto pai não facilitava nada e os tempos que se seguiram não foram graciosos para ninguém. O Martim ficava órfão de mãe dezasseis dias depois de nascer. Nesse punhado de dias, que se alargou para meses, anos e sempres, o Alberto Manuel e o Daniel substituíram a própria meninice pela criação do seu irmão mais novo. Aprenderam, entre lágrimas e outras agruras, a tratar do leite do menino, com as mudas das fraldas, as birras dos primeiros dentes, os tombos dos passos a medo, e as noites sem dormir em que se revezavam para que nada houvesse de menos ao Martim, já que a mãe que faltava ao bebé também lhes desamparava as vinte e quatro horas dos dias. O Alberto Manuel e o Daniel eram pai e mãe do pequeno irmão. O pai, por seu turno, carcomeu-se com o rastejar do tempo sem menina. Voltou a beber e a endurecer à vista.

- Ouvistes, Alberto Manuel?- Desculpa lá, pai, estava distraído. O que é que

disseste? – Havia aqui um enfado notório no tom da voz. Eram muitos anos com demasiados faltares que, como as marés, vinham ao de cima em ciclos previsíveis.

- Fostes ontem ao banco depositar o raio do dinheiro?

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- Não, pai. Eu tinha-te dito que só ia na próxima semana.

- PORRA, ALBERTO! – Gritou o pai, atirando a garrafa de cerveja ao chão, partindo-se em pedaços. O Daniel e o Martim, que esfregavam o chão do café, pararam de imediato. No antebraço do Martim, um pequeno e novo, surpreendente, risco vermelho contrastava com a sua pele morena – um estilhaço de garrafa tinha passado em fuga perto demais. Os dois Albertos olharam um para o outro. – Quantas vezes é que tenho de te dizer que o dinheiro do café tem de ser depositado no banco todas as semanas? – O pai levantou-se, a cadeira onde estava sentado caiu ao chão, passou o balcão para o lado de dentro e ficou frente a frente com o filho mais velho. – O dinheiro põe-se no banco, caralho!

- Não precisas de gritar comigo!- Eu vou gritar contigo sempre que tu não fizeres o que

eu mando!- Oh, pai. É igual depositar o dinheiro… - ele até

tentou explicar.- Não é igual depositar o dinheiro, porra nenhuma!

EU É QUE SEI O QUE É IGUAL OU NÃO! PERCEBES? – E levantou a mão direita para esbofetear o filho. Parou o movimento, até ver, a tempo.

O Daniel e o Martim permaneciam imóveis junto às mesas. Um pingo de sangue caiu em movimento lento até embater no chão. Brevemente, teria de ser limpo tal como o resto do café.

- Pai! ‘Teja quieto! – Soltou instintivo o Daniel, das

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poucas vezes que falava, na direcção do balcão.O Alberto pai baixou o braço, passou os olhos nos

seus dois mais novos a meio da sala, reparou no risco de sangue no braço do Martim e voltou-se a tempo de ver o que tomou sentido como um esgar no canto da boca do filho de fronte dele. De novo, subiu a mão para não parar.

A bofetada cambaleou-o para trás. O Alberto Manuel apoiou-se no tampo do balcão. O Martim lembrava-se desse dia assim como a situação se revê. Ele com o irmão Daniel por perto, parados a meio da faxina do café. O pai a perder as estribeiras, ele com o irmão a perder sangue. Irmãos até no sangue a poucos metros de distância.

- Foi a última vez, Alberto. – E de dedo em riste a apontar para o filho – Ouvistes? Foi a última vez que não me respeitastes.

O Alberto Manuel não reagiu, não demonstrou dor. Acatou a bofetada, as palavras e a humilhação. Nenhuma delas voltaria a criar mossa. Limpou o sangue com a palma da mão.

- Está descansado! – Entredentes.Ambos, Martim e Daniel, perceberam o alcance desta

última vez do irmão mais velho que partiria passados dias para regressar a casa depois de só haver um Alberto Araújo no mundo. O pai não entendeu assim. Nem estava para aí virado enquanto apertava as duas mãos juntas e de viés para a parede.

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O papel do Daniel junto do Martim foi de modelo paternal. O “meio-pai” – irmão do meio, pai para o mais novo. Depois de a mãe os ter deixado com o irmão nos braços, o Daniel fortificou a relação entre os dois ajudando-o na curiosidade das primeiras idades, espicaçando as suas perguntas de caso pensado e na escola desde cedo. Foi com o seu meio-pai que o Martim aprendeu as primeiras letras em brincadeiras de irmão, pontuadas com encostos de pai. Foi o Daniel que estava ao seu lado quando se iluminou com as letras que se juntavam para formar palavras e se tornavam ideias dentro da sua cabeça com jogos de descoberta sem nunca facilitar, estimulando o pequeno Martim para o prazer da descoberta insaciável de conhecimento. E das letras foram passando aos algarismos raciocinando com ainda mais jogos e brincadeiras sem fim que plantariam sementes de contas. Letras e números foram ingredientes feitos brinquedos na composição infantil de um começo de vida que bem poderia ter sido coxo, na verdade compensado em grande medida pelos dois irmãos que não descansavam no que dizia respeito ao crescimento e acompanhamento do mais novo dando mais do que tinham de original. Mais tarde viriam coisas que já brotavam do Martim e que nenhum dos irmãos, nem mesmo o Daniel, o inteligente da família, conseguia acompanhar. O gosto pelas línguas, pela ciência, por coisas que ia hesitando nos livros para além dos da escola.

Enquanto o Alberto Manuel passava os seus dias mais dentro do café, sempre de olho no que o miúdo buscava, foi desde muito cedo que o Martim se juntava ao irmão Daniel a atender às mesas. De calças pretas e camisa branca, pequeno uniforme no corpo de criança, deambulava fora e dentro

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com os trocos feitos de cabeça e boas maneiras no trato com os fregueses. Desde logo o Martim era uma versão mais pequena do Daniel. Funcionavam em equipa aos olhos de todos. Competiam a bem nas gorjetas. Levavam o negócio com o nome do pai.

Quando algum finório lá tomava o seu café e apreciava um cigarro, o Martim agarrava sempre as rédeas da conversa com frases vindas de outras noções que apanhavam não poucas vezes os clientes de surpresa. Um miúdo esperto a servir às mesas do café do Araújo merecia, pelo menos, dois dedos de palavreado. Quando era preciso o Daniel pedia desculpa educadamente pelo incómodo do irmão perante fregueses que genuinamente gostavam da pertinência das observações do rapaz independentemente do seu âmbito. O Daniel percebia que quando o Martim crescesse podia ser alguém se estudasse, se saísse de Vila Franca e fosse para Lisboa para ganhar mundo. Ou, pelo menos, país. A escola da vida ali do café seria sempre limitada e o miúdo prometia. Só tinha de levar umas achegas por enquanto.

- As pessoas são todas muito diferentes, Martim. Até aqui na esplanada se topa quem se sente e quem se senta.

- O que queres dizer com isso?- O que quero dizer é que sentir e sentar são verbos

bem diferentes. Todos os clientes chegam e sentam-se. Sentam-se para tomar o café, ler o jornal, conversar com amigos, falam da bola ou da política ou então não falam. Ficam sentados um bocado. Depois pagam e vão-se embora.

- E…?- Depois há os que sentem. Esses sentam-se, fazem

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as suas coisinhas, levantam-se, vão mas voltam. Voltam, Martim. E se voltam é porque sentem.

- Sentem? Sentem o quê? - Sentem porque houve alguma coisa que os fez

voltar. O sabor do café que os fez lembrar coisas boas. Uma conversa qualquer que tiveram com amigos. Uma notícia do jornal. A brisa que vem do rio naqueles dias em que sabe bem estar aqui fora. A maneira que tu tens de os atender. O que tu dizes a um cliente, a maneira como falas com ele, pode ser o suficiente para ele sentir que pode voltar a sentar-se numa mesa destas. O que a gente quer é que eles sintam e voltem. Percebes?

Mais tarde, Martim juraria que tinha sido a primeira vez que pensou em coisas inanimadas.

- Bolas, Daniel. Tu és um poeta – riram-se os dois à farta. Se o era, vinha da mãe.

No café do Araújo, de fraca figura mas honesto, sem pretensões de sair de Vila Franca de Xira para nenhum lado mais rentável ou mesmo chique, de horizontes parcos sobre a lezíria a estender-se de conivência com o rio, também ele, conformado à sombra parada dos arrabaldes da ponte de aço Marechal Carmona, com memórias pessoais de maior dor que remoem dos tempos do Alberto pai a beber com o adiantado da hora e da mãe Ana a amar como se da primeira vez, dos irmãos juntos em prol de um dever desvanecido e

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abandonado, da Rita cujo cheiro permanecia entranhado na vizinhança, por todo o lado, da Ana Maria que veio depois e foi cedo demais a toda a brida, com uns pedaços de tinta branca a deslizar numa das paredes mais antigas atrás do balcão que, no entanto, amparava, vá-se lá saber como, um pequeno quadro centrado a regra e esquadro entre garrafas que não deixava a mínima margem de manobra a vivalma se, por ventura, estivesse determinada a perdê-lo de vista. Pendurado à altura dos olhos fazia parte da atracção que muitos sentiam quando entravam no café, mas o autêntico fascínio estava dentro da fronteira delimitada pela moldura branca simples, escrito a azul sobre fundo branco, letras mágicas bordadas do Cancioneiro de Escaroupim pela mãe Ana. Lia-se devagar a olhar ao alto:

“Não molhes os pés arregaça a saiaQue o mar tem ciúmes de ter ver na praia

Deixa o mar ralhar que o mar é traidorVamos navegar com o nosso amor”

Como é que é possível ter algo de tão lindo a enfeitar um café e mais ninguém saber?

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Dúvida de vidro

O Feijão-verde era o encarregado da Câmara Municipal que tinha por emprego zelar pelo jardim. O homem que, aos olhos da pequenada, era velho, não devia ter mais de uns quarenta anos talvez. Nenhum dos miúdos parecia saber o seu nome verdadeiro e todos se contentavam em chamar-lhe assim devido à cor do seu uniforme dos pés à cabeça mas não só. O Feijão-verde era um tipo de poucas falas, a um género grosseiro, de figura alta e magra sem jeito, braços longos, constantemente de chapéu verde mais escuro, olhos de coruja debaixo de sobrancelhas grossas. O Feijão-verde batia ali os caminhos do parque e, pois, que arfava ao mesmo tempo. Entrava no jardim duas vezes ao dia, às tantas. Cuidava das árvores e da relva, podava os arbustos, arrebanhava as folhas caídas no chão, aprumava o funcionamento do bebedouro, limpava o coreto e assegurava que os candeeiros de rua não estavam fundidos. Andava tanto no ajardinanço que cultivar relações com pessoas de carne e osso era algo que lhe passava ao longe. Nenhum

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dos rapazes trocava mais de meia dúzia de palavras com ele pois o homem, quando dizia qualquer coisa, era para os enxotar dali pr’a fora. Rais parta o fulano! Distância era o que mais se podia querer do Feijão-verde até porque brincar à vontade dava trabalho. Era preciso estar à cata das horas, saber os hábitos do homem e ir improvisando algumas fugas estratégicas sempre que ele aparecia vindo sabe-se lá de onde. Nem se conhecia propriamente onde era a casa do tipo, embora vivesse com certeza em Vila Franca e havia até alguém que contava que os seus dois tios tinham morrido envenenados. Mas teria acontecido semelhante coisa?

- Já te disse como foi, pá! – Largava o Jaime à espera da sua vez de jogar.

- Ninguém morre assim, oh Jaime! – Respondia o Luís Pequeno. O Martim concordou com a cabeça.

- Sabes lá tu, Canina! – Voltou o Jaime. O Pequeno era Canina para os demais.

- Sei lá eu, o quê? Não se morre assim a cair p’ró lado na adega do Almeida sem mais nem menos. Não tem sentido nenhum. Morrer com uma piela, ainda vá que não vá… Há p’raí muitos… e mesmo assim…

- Foi o meu pai que me disse… Ouviu contar a uns homens.

- Oh…- Oh, o quê?- Oh… e lá por te ter contado o teu pai, queres ver que

é verdade? – Mais uma resposta do Canina.- É pá, olha que eu também já tinha ouvido uma coisa

parecida. – Juntou o Rafael à conversa com ar de quem sabia

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mais do que os outros todos juntos. O rapaz era, assim como assim, o chefe do grupo.

- A th-ério? – Gaguejou o Raúl que era o mais novo com uma espécie de cicio no fim da língua que se desprendia mais rapidamente de todas as vezes que se entusiasmava. Era giro!

Estavam os cinco que se juntavam quase todos os dias, umas horas depois de almoço no Jardim Municipal para jogar “ao ganhas” ali mais perto do fresco do rio. O Jaime, filho do Costa dos Correios, era o mais falador, mas perdia mais bilas do que o contrário. O Luís Pequeno, o Canina, tinha boa pontaria, andava sempre de chapéu de pala e não se ficava atrás numa resposta como se provava. O Rafael, lá está, era o que todos seguiam ainda que tivessem sensivelmente a mesma idade. Os quinze anos são assim. O Raúl era o mais novo, só tinha treze e ciciava “eth-enth-ial-mente nos eth-es” do início das palavras. Tinha mais piada porque não era como os outros. O Martim já se conhece aqui a meio de um jogo de berlinde interrompido pela conversa afiada, de joelhos arranhados pela terra, brilho nos olhos de descobridor, virado um pouco para si mas vivo e alerta.

O jogo das covinhas parou um bocado para se ouvir o resto da história da boca do Rafael.

- O meu pai contou-me que dois tios do Feijão-verde, acho que os mais novos, morreram envenenados na Adega do Almeida, sim senhor. Estavam a lavar um depósito de vinho com mais de mil e tal litros e caíram que nem tordos. Pumba! – E o Jaime, do lado, fez um gesto com o braço assim como se fosse um corpo a tombar, fora as penas.

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- Desmaiaram? – Perguntou o Canina com o seu olho-de-boi na mão e os dois da cara muito abertos. – Desmaiaram do quê, pá?

- Foi dos vapores! – Disse o Rafael numa voz, uma oitava abaixo.

- É! Foi dos vapores! – Confirmou o Jaime mantendo a bola baixa e arrastando as palavras perante a atenção impaciente de todos ao redor.

- Dos vapores? – Outra vez o Canina.- Os vapores! – Voltou agora o Rafael. Olhou em volta

certificando-se que os olhares de todos estavam sobre ele. – Os vapores… da peida do Almeida!

E desataram todos a rir a rebolar no chão. Riram a bom rir, agarrados à barriga, a bater com as mãos no chão, empurrando-se uns aos outros, até às lágrimas como amigos que eram sem se aperceberem do estardalhaço que faziam desse modo.

Tão depressa o riso amainava como o som tinha atraído o próprio do Feijão-verde que se aproximou sorrateiro e, austero para todos ouvirem, exclamou soberbo em tom de ordem a clamar por silêncio:

- Então?Em tal caso foi mais do que suficiente para que a

algazarra se detivesse logo ali e os olhos dos cinco rapazes parassem no homem agora bem perto deles. Por instantes, ninguém se atreveu a falar e foi o intestino às voltas do pequeno Raúl que, com o susto, deu o tiro de partida.

- Pum!

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O flato sonoro foi o pretexto para partirem todos a correr para bem longe. Visto de cima o Feijão-verde no centro tentava esboçar uma reacção suspensa em várias direcções ao mesmo tempo, como se isso fosse possível. Que nem flechas, o grupo dispersou-se sem pensar em mais nada do que fosse escapar deixando para trás três covinhas na terra, mas com todos os berlindes safados dentro dos respectivos bolsos. Fugir dali p’ra fora era o único impulso possível. Uns, para o lado, outros, para outro, para aqui e para ali sem perceber onde iriam parar. Correram desenfreados, isso sim! Atravessaram os caminhos de gravilha, pisaram a relva, saltaram sobre as sebes baixinhas que desenhavam partes do jardim, deixaram famílias inteiras de cara à banda. O Rafael e o Canina não perderam tempo e foram em frente. Atravessaram para o outro lado da linha do comboio a correr sem olhar para nenhum dos lados. Um perigo! O Jaime correu lá para trás para passar na passagem de peões mais abaixo. O Feijão-verde, a correr pesado, tentava seguir o Martim e o Raúl que foram para cima, dispararam a deslizar pelo coreto e por algumas pessoas que passeavam àquela hora. O avanço da correria permitiu que parassem os dois ao pé do muro da estação, por agora fora da vista do encarregado do jardim, com o barulho de um comboio que vinha a chegar de Lisboa.

- Anda pr’aqui! – Gritou o Martim ofegante, puxando o mais novo para o pé dele, escondido. Os travões accionados do comboio encheram o ar. Espalmaram-se no muro o mais que conseguiram.

- Eu ia-me borrando, Martim! Th-acana do Feijão-verde ia-me borrando os calções todos.

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O Martim nem teve tempo para sorrir mesmo que aquilo tivesse muita piada, porque tinha! Voltou a agarrar o Raúl pela manga, saltaram o muro que dava para os carris do comboio e, enquanto as carruagens estavam imobilizadas, atravessaram para o lado da Vila. Subiram a pulso para o cais e seguiram a correr. Meteram-se os dois na estação e sentaram-se nos bancos a um canto.

Passaram uns breves momentos.Lá fora, o revisor veio vigiar a uma das portas. Olhou

para os dois lados. O maquinista apitou e o comboio reiniciou a sua marcha para Norte. Martim esperou que o barulho das carruagens em movimento passasse e depois esperou mais um pouco. Pôs-se de joelhos no banco. Espreitou pela janela da estação que dava primeiro para o cais de embarque deste lado e, mais ao fundo, para o muro do jardim. Havia umas pessoas paradas no cais e teve de se posicionar mais de lado a partir de dentro da estação. Lá mais ao longe vislumbrou o boné preto do Feijão-verde a espiar por cima do muro. Agachou-se logo.

- Vamos ficar aqui um bocado. O gajo, do jardim, não vai sair.

- ‘Tá bem. – Respondeu o Raúl, ainda à procura de mais um bocado de ar.

O Martim fez um compasso de espera e voltou por querer espreitar lá para fora. Já se deviam ter safado. Respirou fundo, como se fosse saltar para dentro de água. Olhos no vazio, para já, pulmões a encherem-se de ar roubado ao Raúl sentado quietinho ali no banco a fazer o seu melhor por não se mexer. O Martim virou-se, mãos nas costas da parede

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a subir devagar, como se estivesse a agarrar-se à caliça na vertical até chegar ao bordo do parapeito da janela. Veio à tona de joelhos, devagar à espera de confirmar que a costa estava livre sem haver sinal do Feijão-verde. Nem teve de ajustar o foco pois foi aí, de joelhos, que a viu a descoberto. Estava mesmo ali, ela.

Do outro lado do vidro, de pé no cais, já depois do comboio a ter deixado e mesmo ali junto ao edifício da estação, estava uma rapariga virada para ele de olhos para baixo. Parecia ter a idade dele ou muito perto disso. Estava parada.

O rapaz não se lembrou de respirar.Na rapariga havia uma lágrima a escorrer-lhe pela

cara, do lado direito de quem via. Só uma e só desse lado. Porque nunca ninguém está sozinho no mundo, existiam algumas pessoas com ela. Mais tarde, haveria tempo para o Martim saber de cor os nomes de cada uma. Esses nomes da mãe e do pai que nesse dia também lá estavam mas que, para o que se passou logo após, pouco importavam nesse instante. Pouco interessava que, de facto, viessem de perto para ficar. Pouca utilidade teria essa informação para já.

Dentro da estação, de joelhos e com o Raúl sentado ao lado a postos talvez para mais uma corrida, o Martim esqueceu-se de tudo o resto com o Feijão-verde no topo da lista.

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A rapariga melancólica limpou a lágrima ainda antes de levantar o olhar. Quando o fez cruzou-se com o Martim e ficou por lá no aspecto dos olhos. Tinha longos cabelos castanhos-escuros e ondulados, olhos ao que parecia azuis, pele branca, umas sardas dos lados quase imperceptíveis não fosse o Martim ser um bom observador. Vestia como a mãe queria (lá estava uma informação que o rapaz ainda não fazia a mínima ideia que seria, um dia, pertinente), uma fita violeta no cabelo, bem arranjadinha, saída de uma viagem seguramente de Lisboa agora já meio da tarde no final de Setembro. Seriam umas cinco da tarde.

Martim lá se lembrou de respirar. Primeiro para dentro e logo de seguida para fora.

O vidro que os separava embaciou-se de vergonha e com a mesma mão que tinha agarrado a lágrima, a Rita tentou limpá-lo. Do lado de dentro, Martim repetiu o movimento com a mão contrária e uma diferença de escassos milésimos de segundo porque desconfiava que o embaraço causado na condensação era dele. O vidro sabia melhor pois tinha a certeza. E do polimento desajeitado da transparência voltou a surgir o mesmo rosto assim que a mão passou por lá. Visto de fora era o de Martim. Visto de dentro o de Rita. Haveria um fora? Haveria um dentro? Dúvida de vidro, decerto.

O não ter feito nada para limpar o seu lado resultou num sorriso ligeiro nos lábios da Rita. Não sendo o primeiro, o vidro como que ficou sem palavras e mais cristalino. Não seria só nesse dia.

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Primeiro Sendo

PRIMEIRO SENDOPois de igual modo se conta esta história.

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Primeiro Sendo

Ajustes alguns

O Francisco Assunção acabara de chegar pontualmente de Lisboa no comboio das quatro e meia de Santa Apolónia com a sua mulher Laura, a filha Rita. O percurso fechado, ainda que curto, tinha sido feito com altas temperaturas e isso deixava-o, no limite, desconfortável. Viajaram sentados em bancos corridos, marido e mulher com a filha de frente para eles e a janela esguelhada para o Tejo. Os barulhos compassados do caminho-de-ferro a acompanhar o movimento que parecia sugar os lugares e todas as outras coisas sem controlo, mas na direcção de Lisboa. Nenhum dos três abriu a boca o tempo inteiro. Assim como que não havia nada que fosse importante de se dizer. A razão de se mudarem era a primazia para a nova vida em perspectiva mesmo que fosse só por alguns anos, para a Rita era como se o comboio a carregasse para longe do que a confortava. Já a mãe tinha outra maneira de pôr as coisas em nome do que lhe era certo e vinha de trás.

A Laura Assunção foi sempre com o olhar, ora cravado

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em Rita procurando detalhes indelicados, menos próprios ou desfeitos, ora no corredor da carruagem procurando não se distrair demasiado com a indigência de modos e costumes alheios de outros passageiros. Pela sua parte, a rapariga por nunca olhou a mãe nos olhos preferindo, como o pai, outras paragens encontradas no rio ou ainda mais além.

O Francisco acompanhou a viagem para Vila Franca de Xira com pensamentos horizontados na lezíria, mas que não se confinavam a minúcias geográficas. Havia questões importantes a resolver e responsabilidades a assumir. As suas preocupações seriam outras a partir deste momento, já que se tinha mudado de Lisboa para Vila Franca nos anos mais próximos e ainda, por cima, trazido a família.

No caderno preto no colo seguro de mãos fechadas, o Francisco, apontava todos os fragmentos importantes para mais tarde utilizar em momento oportuno: os deveres e haveres dos negócios e da vida racional, resquícios dos ensinamentos do seu pai que se colavam ao hábito como lacre quente a deixar marca, notas rabiscadas feitas de algarismos alinhados à inglesa, precisos e meticulosos que serviam só o seu propósito pessoal de controlar o que tinha de ser vigiado sem descanso. O homem rigoroso sabia e escolhia assentar centavos para poupar escudos e patrimoniar contos. Assim iria longe e sem precisar de nenhuma locomotiva.

Desde a morte do pai do Francisco, tinham escapado dez meses, que era a primeira vez que trazia a família até Vila Franca de Xira para, não só, uma visita às coudelarias recentemente passadas para o seu nome mas também para se instalarem numa nova morada permanente. O negócio de família revertia agora para responsabilidade

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Primeiro Sendo

própria e o Francisco possuía certezas relativamente às empresas agrícolas do pai que estavam sob a sua alçada e que necessitariam de atenção pessoal diária nos próximos tempos. Havia muito para tratar, mas manteria a casa na Avenida da Igreja, em Lisboa, e mudar-se-ia com a família para Vila Franca de armas e bagagens. Seria a partir daqui que dirigiria os empreendimentos Assunção que precisavam da sua atenção imediata e exaustiva. Eram estes os seus negócios!

Ao seu lado, a Laura sabia bem de todas as implicações de terem de sair de Lisboa em prol do negócio de família. Tinha sido o destino a escolher, era certo, mas o lugar desta mulher era do lado do marido. Cuidaria da nova casa, receberia os convidados que o Francisco decidisse entreter, organizaria almoços e jantares, tentaria fingir que as comodidades da capital se fariam sentir presença no dia-a-dia e, acima de tudo, asseguraria que a educação da Rita seguiria o rumo definido desde logo. A tarefa iria implicar alguns ajustes na vida de ambas a começar pela Laura. Tinha sido a mãe a fazer convencer o pai da necessidade imperativa da Rita se inscrever num curso que lhe trouxesse o respeito que o sangue lhe impunha, o nível que a posição na sociedade exigia e a irrepreensível preeminência da sua estirpe estampada no porte. A advocacia que a filha ignorava por completo tinha sido assim a primeira opção escolhida como o seu futuro nos estudos e na carreira que lhes seguia. Tirar Direito em Lisboa era apenas o próximo esforço e não era por passarem a viver em Vila Franca de Xira que esse plano ficaria por completar. Era suposto que Rita continuasse a estudar em Lisboa apesar da distância. A Laura nunca aceitaria que a filha ficasse na

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casa que agora deixavam, já que ela tinha forçosamente de estar com o Francisco. Portanto, a solução era a presente. Mudar-se-iam todos e a Rita teria de ir e voltar para Lisboa no comboio. Poderia ter de mandar vir o explicador algumas vezes por semana. Talvez fosse sensato perceber primeiro se haveria algum professor de renome por aquelas bandas, algo que mais tarde teria de perguntar ao Dr. Ferreira. E era preciso ter a certeza de que a Enciclopédia Luso Brasileira tinha chegado inteira nos camiões das mudanças três dias antes. Todos os volumes.

À frente dos pais veio sentada a Rita, de costas para Vila Franca, o tempo todo a olhar pela janela para a paisagem a fugir-lhe para trás quando, na verdade, a rapariga chegava sem a mais pequena noção de tudo o que estava prestes a ter como sentimento e lhe mudaria a vida de mais maneiras do que poderia memorizar. Embora, com o passar do tempo, tivesse tentado com algum sucesso.

Tinha desistido rapidamente de convencer a mãe a deixá-la em Lisboa com a Maria do Céu que bem podia tratar da casa, da roupa, da comida e dela, até. Bem podia ter ficado lá enquanto os pais se mudavam para Vila Franca de Xira mas não. A mãe queria lá discutir isso! E nem pensar que o pai ficaria a saber da vontade da Rita. Nem pensar que a mãe lhe iria contar, não o fosse decepcionar. Os desejos dos pais eram para merecer respeito e nunca para permitir alternativas. O plano paterno era assim estabelecido sem ser preciso falar mais sobre os assuntos que diziam respeito à forma de educar a menina. Às escondidas, farta de o ser, a Rita seguia à risca o manual de instruções dos Assunção que continha o que lhe era dito ser melhor e mais correcto

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Primeiro Sendo

para si. Viajava junto com os pais num comboio destinado a parar numa vila que não conhecia, resignada a ir e vir de Lisboa todos os dias para fazer, um dia, o curso com o qual nada tinha em comum a não ser a tradição férrea de outros familiares. Passaria agora a ir para trás e para diante neste mesmo percurso. Hoje era apenas o início de repetidas viagens ao longo de cinco anos.

Era mais ou menos nisso que pensava, sentada de frente para o pai e a mãe, sem expressão, a olhar longe pela janela do comboio sem conseguir parar de adivinhar que não estava a deixar nada para trás e que rumava, de novo, ao que era esperado dela, sem desvios e principalmente sem opinião que tivesse valor junto da mãe. Iria viver para Vila Franca, apanharia o comboio para continuar os estudos em Lisboa, voltaria para este sítio atrasado num vai-e-vem sem sentido. Uma repetição.

Ao chegarem ao cais da estação de Vila Franca de Xira estaria o Dr. Ferreira, advogado, o homem que os tinha ido buscar. Que bom prenúncio… mais um advogado!

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Primeiro Sendo

Só água

Era segunda-feira no jardim. No rio estava quase sempre outro dia com o passar da água. Sentia-se como que o tempo fosse sendo carregado e lavado sem cessar. Umas quantas lágrimas e muitas demoras a deslizar por entre os dedos da ponte parada a ver o tempo escoar, entrecortado por aquela embarcação ou a seguinte e o espelho dos alagadiços a fugir ao horizonte a partir da margem a correr de língua de fora.

Era segunda-feira, folga do café para o Martim que se pendia sobre a água como quem espreita, sentado na borda, pernas a baloiçar para frente e para trás a bater no cais com os calcanhares das botas. Numa delas, os atacadores suspensos. Tronco inclinado para a frente. Mãos dos lados a amparar. Da garganta fez menção de um inspirar sonoro de modo a soltar um escarro que caiu a bater de chapa no rio. Flutuou devagar, espalhou-se, asqueroso, para ocupar mais área, esvoaçou como que ao ritmo da ondulação. De cima, o Martim repetiu a graçola de rapaz e fez mais uma escarreta

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que se foi acercando da primeira. Alcançou o braço para trás, procurou ajudado pelo tacto e arrebanhou duas ou três pedras do monte no chão.

Era a mesma segunda-feira repetida. O cais do Cabo, ali ao alcance do outro lado do rio, testemunho de tempos quando era usado como ponto de chegada e de partida, de cá e para lá a marcar linhas paralelas rascunhadas ligeiramente mais a Sul do percurso definitivo da ponte de aço.

Era segunda-feira e Martim escolheu uma pedra espalmada sem desviar o olhar do rio. Esfregou os dedos para lhe tirar as partículas de terra e ajeitou-a entre o polegar e o indicador, o dedo do meio a amparar por baixo, calculou as distâncias, ajustou o ângulo do pulso, olhou para baixo de novo, para a mão a segurar a pedra. Susteve a respiração. Atravessou-se um rasgo de vento aos ouvidos e passaram uns instantes talvez. Levou o braço atrás à procura de balanço e separou os dedos de chicote, com um movimento rápido de soltura. A pedra lançou-se esbaforida da mão, bateu falhando o cuspo, e desapareceu na água com um borbulhar justo e atravessado. Ricocheteou a primeira vez e, na segunda, mergulhou de cabeça.

- Bolas! Só duas! – Saiu-lhe assim, ofendido.Era segunda-feira nalguma parte de 1986. Final

de Verão neste lugar da história primeira, não segunda. Primeira! Em sussurro pelo que ainda vem aí, pé ante pé…

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Primeiro Sendo

A Rita saía do comboio pousado na estação e, em vez de ir para casa, dirigiu-se ao jardim para comprar um gelado. Chegava das aulas que tinham começado há uma semana. Tinha quase uma hora antes da explicação em casa, dava mais que tempo.

O jardim antecipava a mudança de cor nos plátanos que mantinham os cheiros de todo o verde forte com alguns castanhos sobrepostos e alongavam a avenida de terra batida por onde passavam as pessoas a meio. Hoje, a esta hora, havia pouca gente. Dos lados, a acompanhar com intervalos plantados, a superfície dos troncos a adivinhar o descascanço aos retalhos que se seguiria inevitável, os frutos globosos pendurados mais acima que esperavam o Inverno para caírem mas que ia demorar bastante. A cobertura dos mesmos plátanos, bem como a dos carvalhos, quase que tapava o céu e impedia o sol, a espaços por entre a folhagem, de acertar-lhe nos olhos semicerrados com a pontaria.

A Rita foi a comer o gelado pelo caminho, a pisar as poucas folhas no chão, aqui e mais ao longe. Sentou-se sem pensar num dos bancos de ripas alongadas de madeira ali depois das Estátuas das Estações do Ano, alinhadas. Pousou a mala com os livros da escola. Hoje tinha trabalhos de inglês para fazer com o Dr. Passos. Vanilla era o último dos dois sabores. Ainda sobrava calor para aquela hora do dia. Se tivesse tempo, queria esticar o cabelo antes de jantar. Não se lembrava do que dava na televisão nesse dia à noite. A presença do rio mesmo ali.

Ainda não se tinha acomodado a viver em Vila Franca mas entendia bem que isso ia acontecer. Acabaria por ter de se habituar aos modos dos dias fazendo jus à maneira

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muito particular que tinha em se adaptar às vontades da mãe que tomava como decisões próprias. Uma resignação que não tardava a fincar terreno. Não valia o esforço pensar de outro modo se as coisas eram mesmo assim e tendo em consideração que a ideia de ficar sozinha em Lisboa era realmente descabida. Onde é que tinha a cabeça? A viagem de comboio ia-se fazendo e nem perdia muito tempo. Era uma maneira de ver a situação.

Chegou ao fim da bolacha, voltou a agarrar na mala, levantou-se e tomou o caminho de regresso mais junto à margem virada para a ponte. De mão pousada, vai-não-vai, na balaustrada de ferro a marcar o limite do jardim. A água mais em baixo.

À frente alguém atirava pedras ao rio como que a tentar afugentá-lo sem pingo de sucesso. Era o mesmo rapaz daquele dia, não era? Aproximou-se para verificar, ainda que tivesse a certeza.

Depois do vidro da estação ainda não se tinham visto outra vez mas a lembrança nos olhos tinha, por certo, ficado em cada um, tal como a memória das mãos espalmadas de um lado e de outro. A Rita não se esquecera.

Aproximou-se atrás do Martim que continuava miúdo a atirar pedras ao rio sem ter conseguido ultrapassar as duas vezes. Depois da segunda é que era o problema.

Ainda antes de algum deles dizer qualquer coisa,

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Primeiro Sendo

a pedra na mão do Martim, ao ser apontada para a água entre o indicador e o polegar, teve tempo para perceber de relance quem lá vinha. Distraída por um instante, foi de um só ímpeto de mergulhou para dentro de água. Afundou-se, agora em câmara lenta, até atingir o leito para se estender e esgueirar-se o melhor que conseguiu para, através da refracção, espreitar o que se passava em terra firme. Por entre o ondular voltou a topar a Rita atrás do rapaz. O Martim mais perto, aparentemente, sem noção de que alguém estava nas suas costas. As pedras amontoadas no chão a acotovelarem-se umas às outras.

- Olá! – Foi a Rita, primeiro.O Martim virou-se para trás e respondeu. - Olá! –

Percebeu quem era a rapariga quase por instinto. Tinha a mesma idade que ele.

– Eras tu que estavas dentro da estação!- Era…A Rita recordou o dia da sua chegada a Vila Franca.

Veio com os pais, de Lisboa, para ficar a viver aqui neste fim do mundo nos próximos tempos. Segurou-se durante toda a viagem, olhando a paisagem que a ajudou, mas assim que pôs os pés no cais da estação uma lágrima escapou do controlo e desceu-se pela cara abaixo. Enquanto o pai apresentava a mãe ao Dr. Ferreira, a Rita tinha escondido a lágrima virando costas aos três para limpá-la. Quando a enxugou, o seu olhar levantado tinha apanhado os olhos de Martim do lado de dentro da estação ainda meio ofegante.

Não se sabe se, por isso, agora na segunda vez que se encontravam cara a cara, havia algo na respiração do

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Martim que não era habitual. Não tinha corrido antes, não vinha a fugir, só tinha lançado algumas pedras ao rio e nada era aparente de modo a justificar a arritmia que teimava em se disfarçar dentro do peito do rapaz. Tinha reconhecido a rapariga, não sentiu mais nada.

- O que estavas a fazer nesse dia?- Nada. ‘Tava escondido?- Escondido de quê?- ‘Tava a brincar com uns amigos – e voltou-se para

atirar mais uma pedra ao rio.- E tu, tens idade para brincar às escondidas?O Martim não respondeu. A Rita posou a mala da

escola no chão não muito longe das pedras.- O que estás a fazer? Estás a acertar nalguma coisa? - ‘Tou a capar a água, não se vê?- O quê?- A capar a água! É como eu digo. Pegas numa pedra

assim e atiras com força a rasar à tona d’água. Não podes atirar nem muito largo, nem directamente para a água, senão, não dá. É preciso jeito.

- Posso experimentar? – Perguntou a Rita enquanto agarrava uma das pedras mais escuras que o Martim tinha no chão.

Imitou o rapaz mal imitado pois a pedra fez um salto alongado batendo de chofre na superfície da água a poucos metros de distância. A pedra não se importou demasiado. O rio nem notou as rugas a mais. Não era a pedra certa e lisa que, por acaso, tinha ficado agora no topo do monte. Ou,

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Primeiro Sendo

pelo menos, em posição privilegiada para ser a escolhida. E porque não já a seguir…

- Tens de fazer assim. Apanhas uma das mais lisinhas. Pões o lado mais chato p’ra baixo. Apertas bem entre estes dois dedos, assim.

A Rita acompanhava com o olhar a explicação.- Mas antes tens de esfregar nas calças… assim com a

parte debaixo – e esfregou a pedra expectante a toda a brida, para cima e para baixo nas calças pretas. – Fazes assim! – Virou a pedra e cuspiu-lhe em cima. – Cospes na pedra. Voltas a esfregar mais um bocado. E ‘tás pronta!

- Mas isso é nojento!- Qual nojento! É só água… ela até voa! Vais ver como

vai saltar umas quatro ou cinco vezes! – Era um exagero mas foi o que lhe saiu. – Cinco arcos perfeitinhos!

Sem perder tempo a pedra afastou-se rápido dos dedos do Martim pronta para capar a água como o avô dele, que era de Chaves, lhe tinha ensinado a dizer e a fazer também. Atingiu o rio no ângulo certo para ressaltar na horizontal a primeira vez, alongou-se para o segundo ricochete e corrigiu o voo. Bateu uma segunda vez mais inclinada, pronunciou uma longa curva e repetidamente capou a água depois em saltos mais pequenos em sequência acelerada.

- Uma… duas… - ia enumerando o Martim. E de seguida, de supetão, como que inesperadamente impelida pela contagem em voz alta. – Três, quatro, cinco, seis, sete…

- E oito! – Exclamou a Rita a bater palmas. O Martim de boca aberta. As outras pedras, no chão, orgulhosas.

- Oito vezes! – O Martim incrédulo. – Oito vezes…

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como é possível? Eu nunca tinha feito mais de três. Houve um dia que fiz quatro mas nunca faço mais de três. Para passar da segunda é preciso muita fruta.

A Rita escolheu outra pedra contente, estendeu a mão e pediu:

- Cospe! – Um sorriso largo e brilhante que contrastava com os seus cabelos longos castanhos que pendiam dos dois lados da cara. O Martim relutante. Ela a desmistificar. – É só água!

Mas é que nem pensar. Martim tirou-lhe a pedra da mão, virou o lado mais liso para cima, cuspiu-lhe e esfregou-a nas calças até secar num ápice. Pronto.

- Agora já podes. – Ofereceu a vez à Rita. – Como é que te chamas?

Para já, ia atirar a pedra. Depois, logo diria ao rapaz o seu nome nesta segunda vez que se viam, a primeira que se falavam numa segunda-feira, a primeira de muitas. E esta foi deste modo.

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Certos sítios

Tinha de descer. De se despachar e de descer. Era só mais um pouco. Com os joelhos nos ladrilhos brancos, frios, a raspar o congelados. As calças atrapalhadas num rolo, puxadas para baixo pelos tornozelos. Pontas dos sapatos pretos firmadas no chão. A camisa pendurada na parte detrás da porta. A tampa da sanita levantada, o assento de igual modo, para não correr o risco de sujar alguma coisa e ser mais fácil de limpar a seguir, se fosse preciso. A mão esquerda a segurar a imagem de papel a cores que chegava todas as semanas juntamente com o jornal de domingo. A revista aberta a meio na vertical, com os agrafos a verem-se e a deformarem a fotografia, entalada com a parede atrás, a mão a empurrá-la com alguns solavancos. A mulher imóvel, bem mais velha do que ele, loura de cabelos compridos ao vento, nua, numa praia algures noutro país de certeza, fitava-o nos olhos sem que os dele se desviassem dos seus peitos com os mamilos espetados. A outra mão movimentando-se ritmada. Os sons do café, desconcentrando-o por momentos, a entrar

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pela janela basculante e minúscula à direita mais acima. Tinha de descer. Não havia distracção que o

demovesse e continuou na revista até espirrar em laivos quentes que atingiram o alvo de porcelana perto da água sem sujar nada que não pudessem. Conseguiu suster o alívio sonoro, suspirou fundo e esqueceu a mulher fotografada, pousando a revista no chão com cuidado para não a molhar. Ainda de joelhos rasgou umas tiras de papel higiénico e limpou-se. Deixou escorrer os últimos pingos para dentro da sanita enquanto olhava em volta, atento em busca de algum vestígio comprometedor. Passou mais um pouco de papel nas várias superfícies brancas mais próximas. Puxou o autoclismo. Levantou-se, apanhou as calças para cima e espreitou de queixo levantado pela janela.

Passaram só uns instantes enquanto a água escorria a levar tudo como se fosse a prova de um crime.

Lá mais abaixo havia clientes sentados a conversar. Outros bebiam café pelo meio das palavras. O silvo parou de correr. Acabrunhou-se para apanhar a revista. Largou-a em cima da sanita agora com o tampo fechado. Ao lavatório, passou as mãos pelo sabonete, debaixo nos sovacos. Levou água à cara. Enxugou-se à toalha, olhou-se nos olhos, ajeitou o cabelo, inspirou o suficiente para perceber que ainda cheirava mal e pôs um pouco de desodorizante. Vestiu a camisa branca de serviço, abotoou os botões até ao segundo, abriu mais um pouco a janela para entrar ar. Olhou o espelho de relance. Pegou na revista, enrolou-a num canudo e tapou-a com o pano branco. Tinha de descer já. Dali por uns momentos estava de regresso a servir às mesas com o Daniel e o Alberto pai e já a revista teria passado por uns quantos

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Primeiro Sendo

fregueses que a folheariam como se nada chocasse e fosse completamente comum. E logo no domingo, dia do Senhor.

Nem nunca mais, nesse dia, o Martim pensou nisso.

- Já te disse que, este ano, o gajo não joga mais. ‘Tá lesionado! – O Sr. Acácio era um cliente regular do café do Araújo. Um regular chato que só sabia falar de futebol. Especialmente se fosse mal do Benfica. Gostava de ficar numa das mesas ali mesmo à porta do café. Cruzava a perna e ficava a balouçar o pé enquanto abria a goela para reclamar com o clube que, ainda assim, apoiava como tantos. O pai do Martim também era lampião.

- Não diga isso, bolas! A falta que ele nos faz cá no Glorioso, Sr. Acácio… - soltou o Alberto pai enquanto pousava, noutra das mesas da parte de fora, um café cheio e um copo d’água.

- O Benfica vendeu-o na hora certa, Alberto. Foi na hora certa! Fez uma fortuna que até deu para pagar o 3ºanel! – E riu-se enquanto mexia o seu café com a colher.

- E, por acaso, vai-me dizer c’aquilo não é uma ganda obra, não?

O Acácio passou a língua no céu-da-boca e depois pelo meio dos dentes amarelos do café para fazer um estalo e dizer. - O Chalana só volta para o Benfica no dia em que o Fernando Martins deixar de cagar cimento, homem!

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Ci-men-to! – O freguês instalado na cadeira riu-se tanto que outras pessoas sentadas por ali viraram-se na sua direcção.

-Você ‘tá semp’e a reinar… - e, virando-se para o Daniel, que ia a passar com uma bandeja cheia de copos e garrafas. – Um cinzeirinho p’ráqui, vá. – Sorriu para o Sr. Acácio e arrastou-se devagar, de novo de tabuleiro vazio, para dentro do estabelecimento.

Já não era cedo no serviço, faltavam poucos minutos para as duas da tarde e a esplanada já tinha vários clientes. A tarde era de sol e as pessoas tinham aqui o local onde punham a conversa em dia enquanto tomavam café, fumavam um cigarro, passavam os olhos pelo jornal. Os fins-de-semana, em geral, eram de muito movimento e o Martim sabia que quanto mais depressa atendesse os fregueses, menos tinha de ouvir das ordens do pai. Nos dias de semana, com a escola, só conseguia ajudar à noite depois do jantar mas nos sábados e domingos estava no café todo o santo dia desde que acordava. O Daniel e o Alberto Manuel já não estudavam e estavam sempre lá sem pensar na sua jorna.

Foi o Martim que voltou para deixar o cinzeiro na mesa do Sr. Acácio que nem reparou no rapaz. Duas mesas ao lado chegavam o pai e a mãe da Rita. Martim sabia quem eram e dirigiu-se para lá afastando umas cadeiras pelo caminho.

- Boa tarde, como estão? O que desejam? – Passou o pano em cima da mesa ainda as cadeiras se punham certas por cima do empedrado.

O Francisco Assunção sentava-se ainda quando respondeu.

- Duas italianas em chávena escaldada. Uma

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aguardente velha.Estas vindas ao café eram habituais. O Martim tirou

um suporte com guardanapos brancos de papel que tinha na bandeja e pousou-o na mesa dos Assunção.

- Uma broa de azeite p’rá senhora? – Sugeriu o rapaz. Uma tentativa natural para ser simpático.

- Queres?- Pode ser… - acabou por dizer a Laura.O Francisco recostou-se para acender um cigarro.

Puxou do isqueiro. – A Rita?- Vem aí atrás. Não demora, querido.Durante o fim-de-semana vinham à esplanada por

hábito, especialmente depois de almoço e se não chovesse. Era uma boa oportunidade para a Rita contar em maior detalhe ao pai, que pouco via durante a semana, como estavam a decorrer os estudos em Lisboa. As refeições em Vila Franca eram pontuadas com frases curtas da mãe dirigidas aos criados e silêncio por parte do pai que detestava ser importunado com uma conversa durante a refeição.

- À mesa só fica quem mastiga e não quem tagarela! – Exclamava em surdina quando a regra era quebrada. Olhos reprovadores. Sempre. Fosse para quem fosse.

Fora de casa, em particular na esplanada, era uma maneira que a Laura tinha de mostrar ao marido como ela própria tinha sabido manter as rédeas no que dizia respeito ao modo como a filha estava a cumprir o que estava delineado. Mas também uma maneira de se validar como tradicional boa esposa. As aulas tinham começado, a Rita não estava a estranhar as constantes viagens de e para Lisboa, as

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explicações iam bem lá em casa, o primeiro período iria correr de feição, sem nenhum inconveniente. O 11º ano da filha era absolutamente primordial para a média de entrada na faculdade escolhida. E essa meta, daqui a dois anos, não ia deixar de ser cumprida. Não ia, não!

Um bocado de cinza pendeu do cigarro e caiu no chão de empedrado. Talvez uma maneira implícita de se estabelecer que era hora de ouvir. E a Laura legitimou-se a dar início ao matraqueio.

A Rita vinha lá ao fundo, naquele instante.Para o Martim, ela raramente chegava ao mesmo

tempo que os pais. Havia alguma coisa que se deixava ficar para trás ao mesmo tempo que ela não aparecia ao virar da esquina. Era impossível de perceber do que se tratava tal era o toldar do rapaz mas no íntimo da Rita ela sabia a razão. Porque para ser digna de nota, já a mãe lhe ensinara desde cedo, era preciso escolher o momento de maior impacto. E quando o fazia, quando a Rita aparecia por fim, a ocasião era mais forte que ele. O Martim tinha de a ver. Entre o atender dos fregueses, entrar e sair do café, passar um recado ao Daniel, receber dinheiro e fazer trocos, ser apressado à bruta pelo pai e o arrumar das cadeiras, o Martim fazia sempre por procurar a Rita sabendo que acabaria por a descobrir a querer ser descoberta.

Lá do fundo. Verificando onde se sentam os pais,

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a Rita aproximava-se para se sentar em quadros de movimento lento na maneira particular do Martim em apoderar-se daqueles fragmentos de tarde, com o sol a bater, e como eles permaneciam a latejar no seu espírito com a característica forte de voltar em forma aquecida de uma recordação enternecedora que prometia não esmorecer e ficar. Uns quantos, fartos quadros de movimento guardados em todo o tempo. Vagarosamente a atravessar a esplanada, a Rita acabava por vê-lo distintamente e o Martim repetia o sentimento que naquele outro dia na estação teve consciência de reconhecer, abrindo os olhos para deixar entrar a menina. A Rita, a menina dentro dele.

- Os primeiros testes são agora e ela está bem preparada. Vais ver. – Era o que a mãe Laura fazia questão de pontuar no momento em que a Rita se lhes juntou na esplanada.

- Os vossos cafés ainda não chegaram? – E sem esperar a resposta, a Rita levantou o braço a chamar na direcção conhecida… - Martim!

Foi porque se esgueirou depressa que o rapaz chegou onde a voz repetia o seu nome. Fácil… já estava à espera há muito tempo.

- Boa tarde, Rita. – Bolas, o sorriso estava demasiado rasgado. Toca de corrigir reagiu o reflexo da bandeja demasiado polida que tomou por sua a alegria do rapaz apressando-se a pedir mais trabalho por parte do pano de serviço.

- Olá… trazes-me um… - era um café cheio que ela queria mas sabia das vontades censoras de ambos os pais, pelo que optou por mudar o pedido a tempo – … carioca.

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Pode ser um carioca?- Claro que sim, menina. Um carioca vem já a seguir.

– E afastou-se mais solto, com a compostura mais colocada, não pelo pedido mas sim pela proximidade. Quem se afastou agora foram as cadeiras da esplanada, joviais e atenciosas. O Martim nem teve de lhes tocar. Elas foram-se afastando porque sim.

A Laura pôs o olhar mais longe para dizer. - Rita, diz ao teu pai se estás ou não preparada para os primeiros testes na escola, filha.

- Claro que estou, mamã. – E para o pai com ar de cumpridora. - Estou mais do que pronta, pai.

O Francisco soltou uma baforada de fumo e com o indicador desprendeu mais um pedaço de cinza para o chão. A Rita voltou-se para a entrada do café a tempo.

- Depois quero ver essas notas, Rita. – Depois das palavras, mais fumo.

- Claro, pai.O Alberto pai regressou com os cafés, um copo vazio,

a garrafa de aguardente que deixaria na mesa, mais a broa de azeite para a senhora. Pousou-os à vez sem “ai nem ui”, serviu a aguardente acima do risco do copo mas acrescentou. - Eu já trago um cinzeiro para o Doutor.

- Falta o carioca da minha filha, senhor Araújo.- Vem já, senhora. – E foi-se buscar.

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Assim de viés da porta de entrada do café do Araújo, o Martim nem deu atenção que o pai de Rita, sentado de perna traçada, folheava sem pressa a revista do jornal de domingo. Aberta no seu colo rodeada de fumo a esvoaçar com as folhas todas impressas a cores. Enquanto o Francisco lambia o dedo do meio da mão direita pronto a facilitar a passagem de mais uma página. Quiçá, a imediatamente antes da central, com os agrafos bem à vista. Naquela ocasião não dava nem para perceber, e muito menos para ter a certeza que assim estava para ser. O homem cruzou-se com as duas páginas ligeiramente pegadas uma à outra a precisar de atrevimento, mas isso, já o Martim não atestou. Pois com a bandeja entusiasmada, apertada na vertical contra a sua camisa branca, como se a abraçasse por necessidade maior, o pano humedecido em círculos lentos e dissimulados sobre a zona do coração mas do lado de fora, a mão crispada a sentir o molhado, ele em sentido de costas para o balcão. Os círculos como que a formarem sorrisos que se evaporavam de vergonha. Só sobrava alento no Martim para se afligir o suficiente pelo querer estar de novo perto dela ainda que estudasse longe demais para Lisboa. É que se apertasse ainda mais a bandeja nos sítios certos era o que poderia acontecer mais à frente. Eram só mais uns diazitos. Só uns.

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Primeiro Sendo

Mãos

Quando era pequeno, antes de sair de casa, colocava-se, vestido e pronto, em frente à tia Mercedes. Fosse ou não fosse domingo, a tia acompanhava, com a mão a fazer gestos tradicionais, a bênção cristã directamente na cara do filho emprestado, franzino. Às vezes os movimentos mais lentos que as palavras, de um lado para o outro, ora subindo, ora descendo. Outras vezes ao invés na ligeireza. Os gestos coreografados ao redor dele como se o cobrissem com um manto materno matraqueado.

E a tia Mercedes, a fazer de mãe, fazia a voz.- Que Deus te abençoe e te guarde, a ti. Que Deus te

encha de luz e te favoreça, a ti. Que a Glória do Senhor ao iluminar-se no seu rosto se reflicta no teu, em ti. Que Deus te proteja, a ti. Que o Sangue de Jesus e o Espírito Santo te rodeiem e te acompanhem, a ti. – Um sorriso. E um instante. A terminar, uma palavra mais grave num suspiro. - Sempre. – E mais coisas nenhumas.

Em cada “ti”, a mão fugia-lhe para os olhos do miúdo

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Francisco Penim

que se fechavam por acto reflexo do Martim. Cada “ti” acompanhado por uma leve exageração no tom de voz e no toque repousado nas pálpebras. A bênção que nascia dela por pudor de pedir para si seguia-lhe por amor, impelia a vontade e o medo sem freio, trespassava-lhe o coração, procurava rumo ao percorrer os braços, chegava-lhe até às pontas dos dedos quase dormentes mas com a mensagem bem expressa e vistosa, a fazer ricochete do seu lado físico transpondo o pequeno salto para o corpo do filho concedido compensando o espaço entre os dois com um elo forte que perduraria para lá do tempo. As frases escolhidas por longos anos de repetições, ladainhas e revelações realmente interiorizadas. Quando assentavam, o Martim nem registava as palavras. Antes soprava para longe as bênçãos pedidas pela mulher e bufava de pressa, inquieto como é da idade, imune ao que lhe era passado de todas estas vezes. Todos estes tempos. Todos estes “ti-ti-tis”.

- Já posso ir, agora?Ela soltava-o para as coisas dele. Sempre com um

sorriso. E ficava pousada como são as mães. Até as que só o são por dever, como era o caso da Mercedes, irmã da Ana.

Visto de perto e de cima sustenido, o aglomerado de gente fazia uma disposição segregada de preconceitos que se descobria até junto ao chão, perto da poeira e da gravilha, nos sapatos. O que conseguisse pairar por essas alturas

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rasteiras teria bem noção da discriminação latente que estava instalada nos restantes estratos superiores. Mas nem sequer era preciso subir acima da canela. Especialmente em dia de concerto no coreto do jardim. E logo ao domingo.

Atrás começavam maltrapilhos, sujos de desleixo e falta de meios, atacadores desatados e esfarelados, botas cardadas, meias rotas, solas a descoberto descoladas e gastas, manchas de água, lama até. Pés inquietos que não se paravam muito tempo no mesmo sítio, a raspar. Um pontapé ocasional ou um pisar de calos. Mais chegados à frente o cuidado começava a aparecer com o brio possível que a carteira permitia. Lá se acotovelavam os botins e o salto um pouco mais alto das mulheres. A cera de polir sem demora e meio escovados. O castanho a dar lugar ao mais escuro até chegar ao preto. E na multidão de preto se ficava, visto de cima, a rasar o chão, à medida que o coreto ficava mais perto. O cano alto acetinado. O cabedal fino comprado em Lisboa. O calçado de senhora cuidado, caro de pedido com jeitinho aos maridos. Uns sapatos com berloques. A fivela reluzente. No conjunto mais alinhados numa prontidão quase militar mesmo que fossem apenas sapatos na mesma gravilha, a mesma poeira, só que na fila da frente, mais certos.

O Martim não tinha sapatos de domingo, pelo que os dele se iam acomodando, a começar por trás à medida que se esgueirava pelo meio dos outros até parar junto do Canina que tinha chegado primeiro e ainda não tinha furado até ao fim para conseguir melhor lugar.

- Ainda falta muito para começar?O Canina ajeitou o chapéu.

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Francisco Penim

- Sei lá! Os gajos de Alhandra chegam sempre atrasados.

- Hum… - respondeu o Martim. É claro que os gajos de Alhandra eram atrasados. E olhava por entre os ombros dos homens. – Vamos lá mais prá frente!

O jardim tinha muita gente que era o mais habitual sempre que lá ia uma banda para tocar. As pessoas também apareciam sempre, fosse para o que fosse, mesmo que a banda não mudasse quase nada. Hoje eram os de Alhandra fardados de calça preta e camisa branca mas amanhã vinham outros quaisquer e a malta de Vila Franca lá ia ouvir aquilo tocar. Os rapazes não estavam lá pela música, preferindo a animação natural por ver mais gente por ali. E neste dia, veio o Presidente da Câmara e tudo, o Engenheiro Branco. Ia ser um fartote de cumprimentos e simpatias. Tudo o que o Feijão-verde não gostava, mas que não tinha remédio. Desde ontem que tinha estado com ainda mais zelo com os preparativos e tudo pronto para o concerto. Tinham vindo auxiliares da Câmara Municipal ajudar, e o jardim fora varrido. Folhas nem as ver! E sempre que uma criança pisava a relva dos lados das veredas, lá estava o Feijão-verde para enxotar. É claro que se o sapato que calcasse a relva fosse mais elegante, já outra mordomia no gesto se fazia aparecer nos modos do homem. Em dias como aquele era vê-lo a alternar entre o raspanete e o cumprimento. Parecia um polícia sinaleiro dos antigos.

Vistos de cima, rasteiros aos calcanhares, os sapatos do Canina e do Martim iam avançando rumo ao coreto no meio do jardim pelo meio da multidão. Ora empurrando mais aqui, ora passando pelos intervalos das pernas, sem

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grandes pedidos de licenças. Passaram por todos até chegar aos mais agradáveis da frente, mais alinhados, mais pretos e bem engraxados.

Lá estava o Presidente da Câmara, rodeado da gente do Partido e outros presidentes e chefes doutras coisas ali a dois passos do sopé das escadas gémeas que subiam para o coreto, à espera que a filarmónica começasse a tocar. A base de cimento mais pesada com os tocantes da fanfarra a pisá-la, pelo meio da armação verde-escuro em ferro forjado com cornucópias e umas parras à mistura e ferrugem disfarçada, as ripas de madeira branca do telhado a ameaçar despencar, as pessoas todas cá em baixo de queixo subido a rodear a construção. Irromperam as palmas e os rapazes foram atrás, com gestos apressados, olhando um para o outro a sorrir como se a competir para ver quem batia as mãos mais depressa. O Canina com o boné de lado quase a cair. É verdade!

Começou a música aos silvos e pontapés na gramática, estridente a acompanhar os estertores do maestro numa arrancada triunfal que terá espantado alguns pássaros que não tinham sobrevoado o folheto que anunciara a tocaria dos de Alhandra no jardim. Sol de pouca dura pois aquilo amainou-se para prosseguir numa toada mais condizente com as expectativas dos Vilafranquenses. Entraram os sopros e as coisas melhoraram. Seguiram-se as cordas dos violinos e mudou de figura a partitura. Para melhor. Outro bem melhor. É só ouvir um bocado para perceber.

Foi aí que, no meio das filas de sapatos pretos brilhantes na gravilha, o Martim viu uma cor a destoar na frente do coreto. De seguida de todos os pretos havia dois

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pés brancos, com meias brancas mais próximas da cor de pele. Deteve-se enquanto ao seu lado o Canina baixava a cabeça para olhar de esguelha para debaixo das saias de uma rapariga de Alhandra que tocava flauta mais acima.

E quando subiu mais o olhar, passando pelo vestido igualmente branco, o Martim viu que a Rita também tinha vindo ao concerto de domingo. Num instante, a cara dela virou-se da banda para a dele, os olhares tocaram-se e o sorriso dela apareceu-se. Levantou uma mão e disse-lhe adeus durante um Dó em clave de Sol. O Martim respondeu acenando de igual forma a tentar sorrir. A mão sustenida. Era um olá e não um adeus.

Não havia forma do Martim guardar o que via, nem da Rita, mais tarde, recordar o que ouviam nesse momento. Pelo meio das cores monótonas, o branco tingia a memória dos dois. A surpresa nos olhos do Martim não seria disfarçada, nem demovida pelo reconhecimento da Rita que desviou o olhar para baixo. Ela sem reparar que, no chão, o branco dos seus sapatos destoava dos outros perfilados aos seus. À direita o par do pai. Do outro lado, os sapatos tingidos do primo Tiago que estava de visita. O sapato direito de menina a fazer uma força medonha para conseguir arrastar o calcanhar que o calçava, tocar com o salto no seu semelhante à esquerda para que, talvez, a Rita subisse depressa os olhos e fosse a tempo de confirmar que, à frente, o Martim continuava a olhar para ela. A gravilha não deixava por muito que o sapato ficasse sem folego de tanto esforço mas lá dentro os dedos dos pés da Rita distenderam-se, qual tiro de partida, e ela voltou a olhar em confirmação. O Martim continuava a olhar para ela e o Canina de olhos

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bem perto das sobrancelhas a descobrir mais centímetros de um tornozelo tocador de flauta. O Martim subiu o braço e fingiu um bafo quente nos dedos que seguravam uma pedra invisível mas boa para repicar na água com a Rita a seguir a mensagem cheia de música. A mão dele desceu junto à algibeira das calças e esfregou-se para cima e para baixo no tecido. A Rita percebeu tudo ainda antes do Martim ter feito uma tenaz com o polegar e o indicador que seguravam o vazio e lançado um pedaço de ar que atingiu a rapariga no vestido branco.

Um gesto com a cabeça para o lado foi o que bastou para que, ao convite, a Rita respondesse que sim com a cabeça sem o pai ou o primo verem, é claro. Um franzir de olhos que não engana e o Canina já quase de joelhos a pedir aos santinhos por só mais bocadinho de vista da rapariga flautista.

- O que é? – Foi o que o Canina chateado disse quando o Martim lhe bateu no braço.

- Eu já volto. – E lá foi o Martim pelo emaranhado de gente.

- Ãh?A Rita viu tudo e iria ter com ele daqui a pouco. O

primo Tiago, dois anos mais velho que ela, ficou a revirar os olhos.

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No tempo que a Rita e o Martim tomaram vezes alternadas para atirar pedras ao rio, não muito longe, no coreto, houve coisas que não viram só porque a distância não o permitia ou porque a atenção não era dividida.

No tempo que intervalou uma das músicas com a próxima, no meio dos aplausos, a flautista trocou de lugar com o parceiro do lado até porque o Canina se tinha posto de joelhos no canteiro que dava a volta ao coreto partindo uns ramos das trepadeiras sem se dar conta. A gaja da flauta era mesmo boa!

Pelo meio das palmas e desviando com o olhar os ombros dos que enchiam a parte central do jardim o Feijão-Verde amaldiçoou o miúdo prometendo um tabefe bem dado assim que tivesse oportunidade para isso.

Entre uma e a próxima dos de Alhandra, o Engenheiro, presidente da Câmara acenou um cumprimento que parou nos ouvidos moucos do pai da Rita que acusou o toque com um suficientemente perceptível movimento da cabeça. O que baste para que a autarquia soubesse quem é que mandava ali. E quanto menos conversa, melhor.

A orquestra atacou mais uma obra aos gritos e apitos, perante as mudanças do campo de visão do Canina que seguia a maltratar o canteiro e o Francisco, que agora se tinha apercebido que lhe faltava a filha do lado. O Tiago, a mascar uma pastilha, olhou-o enfadado.

Passou um comboio na estação com o apito característico que destoou da marcha a tocar. Voou a partitura de um dos músicos com o inesperado silvo. O Canina levantou-se, deu meia-volta frustrado, ajeitou o

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chapéu, voltou costas, passou por entre dois ilustres e seguiu pelo meio da multidão.

Ao fundo, longe de tudo, mais uns atirares de pedras e uma atenção latente da Rita para não esquecer de estar à coca para quando as palmas lhe parecessem mais altas do que o costume assinalando o fim do concerto. Os cabelos castanhos, longos, ondulados, a fazer a sua magia nas recordações futuras do rapaz.

- Fica com esta. É mesmo boa!E a Rita apanhou a pedra da mão do Martim

agradecendo mas ainda sem demorar mais tempo com o toque.

- Nunca conheci uma miúda que gostasse de fazer isto!

- Achas que sou uma miúda?- É uma maneira de dizer. – Isto enquanto esfregava a

próxima pedra nas calças e fazia um meio sorriso.- ‘Tava a ver que uma miúda como eu não podia capar

a água contigo. – E sorriu, como ela fazia antes de lançar a pedra que saltava bem para fora do alcance da música que se soltava do coreto. – Costumas vir ao jardim sempre que há concerto?

- A gente ‘tá sempre por aqui mas quando há banda é mais giro. – E largou mais uma pedra à agua.

- Lá isso é!

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Quando finalmente o concerto terminara, no meio dos aplausos feitos alarme, o Francisco ainda teve de levar com um aperto de mão mole do Presidente da Câmara. Como é que tanta gente votava num tipo com um aperto de mão frouxo?

E três dedos de conversa também, com o Tiago por perto a estoirar os balões que lhe saiam da boca.

Por perto, outra mão, a direita do Feijão-verde, ainda conseguiu dar um safanão na cabeça do Canina entortando-lhe ainda mais o chapéu.

- Oh, merda! – Segurou-o a tempo.- Já te disse para teres cuidado com as plantas, pá! –

Foi a gritar que a voz lhe ia falhando.O Canina cuspiu para o chão.O Martim, que já tinha voltado, ainda o viu agarrado

ao chapéu a fugir do Feijão-verde. Chocou com ele.- O que é que andaste a fazer?- Isso pergunto-te eu! – Foram os dois dali para fora.Quando a Rita chegou perto do pai, que a procurava

pelo meio do dispersar das pessoas todas, deu-lhe logo a mão para voltarem para casa a pé. A água deu o alerta.

- Estás com as mãos molhadas. Onde foste?- Fui beber água ao bebedouro, pai.O balão rebentado pelo Tiago fez um barulho parvo.- Ah! – E foram andando mais depressa ao ritmo

militar dele. - Gostaste da banda?- Claro.

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Pasteleira

Ela tinha-lhe contado, um dia, que era uma pasteleira antiga que tinha sido da avó da Rita. Toda preta, o selim com umas molas prateadas à vista assim por baixo. Atrás, perto da matricula amarela, outra mola, esta preta, que supostamente prendia à bicicleta um casaco, uma mala ou o que quer que se lá pusesse preso. Tinha uns guarda-lamas muito gastos e ferrugentos. Sem luz na parte da frente e atrás apenas um insignificante reflector vermelho todo corroído do tempo. Com rodas altas e pneus muito finos que ameaçavam furar a todo o instante. Os travões não eram daquelas bichas de borracha mas sim umas varas prateadas que iam do guiador aos calços perto dos raios, a modos que grossas que faziam todo o percurso. Uma espécie de tendões de metal da máquina de pedalar. Nunca tinha visto nada assim. Os travões não estavam à frente dos puxadores mas sim debaixo como se fossem canalizações antigas. Travavam a fazer barulho quando era preciso! E também tinha uma campainha de lado. Sim, das antigas.

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A olhar para baixo o Martim via o guiador com as mãos bem vincadas, os nós dos dedos a tornarem-se brancos, a barra com uma curva pronunciada no meio das pernas, a ponta do selim preto, de tão rija que era, magoava-lhe o rabo, o pé direito em cima do pedal em posição de avançar e o esquerdo no chão para apoiar. Aquilo era desconfortável. Bem que já era a terceira ou quarta lição mas continuava a ser desconfortável.

- Oh, Martim, quantos anos tens? – Perguntou a Rita a fazer-se de incrédula. Deu um jeito ao descanso para o abrir e endireitar a bicicleta com o Martim em cima.

- 15! Não sabes que tenho 15 anos? – Foi em jeito de desafio. Ela chegou-se mais perto e a bicicleta encostou-se ao descanso para escutar melhor. A gravilha até cedeu um pouco com o peso e tudo.

- 15, e não sabes andar de bicicleta? – A campainha quase que tocou de espanto e corou embaciada de tão convexa que estava.

- Há pessoas com essa idade que não sabem nadar e há outros que não sabem andar de bicicleta… - mas na verdade ele gostava de já ter aprendido há mais tempo. Ela, idem.

- Estavas à minha espera para aprender? – Com um sorriso de menina.

- Qual quê! Eu aprendia um dia.- Sim, sim… estavas era à minha espera.O Martim tirou o descanso com o calcanhar e

encheu-se de coragem. Soltou a mão do travão da frente. Os dois pés no chão.

- Vamos lá até ali.

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Lado a lado, foram andando pela parte de cima do jardim por entre os plátanos em direcção ao parque de estacionamento da estação de comboios, onde havia muito espaço para falhar. O Martim a andar à parvo, sentado na pasteleira da avó da Rita, mãos no guiador, pernas bem esticadas com o pés a tocar no chão a, de vez em quando, dar um pequeno balanço que lá ia testando o equilíbrio do rapaz. A Rita a ver se a coisa funcionava.

Depois de passar o portão do jardim, logo a seguir a umas quantas tentativas com algum sucesso, seria no parque de estacionamento com alguns carros que faziam montinhos todos juntos que o Martim deu as primeiras pedaladas sozinho já sem a Rita com a mão no selim a empurrar e também a assegurar que ele não caía. Foram umas voltas ainda titubeantes aos gestos socalcados com o cuidado possível para não esbarrar em nenhum automóvel parado. O guiador aos solavancos. A Rita, à entrada do jardim, a bater palmas e a saltar de encorajamento. O Martim contente a pedalar pela primeira vez, a desviar-se dos carros, sem rumo, ali às voltas com um olho no guiador e outro na rapariga. Os automóveis tontos de tanta curva, meu Deus!

- Estás a conseguir! – Gritava a Rita.- ‘Tou!A bicicleta regressou ao portão do jardim com o

passageiro feito condutor. A Rita deu uns passos ao seu encontro. Uma travagem mais abrupta com a rapariga de lado. As duas mãos dela a pousarem-se em cima da mão direita do Martim que travara a marcha ao lado da campainha a antecipar ser tocada.

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- Boa! – Disse a sorrir, linda como sempre – Agora, tens de me ensinar a nadar um dia.

Era uma segunda-feira.

Agora já era sábado. E logo o seguinte.Mesmo nos dias mais atarefados de trabalho no

café, sempre que havia uma nesga de tempo, o Martim e a Rita conseguiam combinar encontrarem-se no jardim. Era o centro do mundo dos dois onde os estudos dela e as expectativas da família Assunção pareciam pausar e as ordens do Alberto pai não chegavam a alcançar os ouvidos.

A tia Mercedes tinha vindo da terra para ajudar na cozinha depois que o irmão Alberto se abalou. Não se sabia se voltaria pois virara costas a tudo mas principalmente ao pai com o mesmo nome, deixando os dois irmãos para trás com receio de que fossem os próximos.

O Alberto pai continuava a beber em demasia e nem a proximidade da irmã lhe evitava a boca no gargalo. Não por falta de lembrança ou de insistência. Só à frente dos fregueses é que nunca.

À tia chamou-a o pai já que o celibato não a preenchia sendo que deste modo distraia-se e fazia algo de útil para com a família. Era importante para o Daniel e para o Martim terem uma figura maternal que lhes faltava desde a morte da mãe Ana. E atrás do balcão toda a ajuda era pouca mesmo

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que o jeito para a culinária não lhe tivesse saído na rifa. Talvez da próxima vez que fosse à missa pudesse pedir essa bênção ao Cristo. Bem que isso lhes fazia falta derivado do negócio que se podia fazer a mais.

- Mercedes, ainda temos broas? – O Alberto pai a preparar o estabelecimento pela manhã ainda antes de chegar mais gente.

- Pedi ao Martim para ir buscar mais.- E o miúdo ainda não voltou, porra? – Agora, com

mais força no pano, a fazer círculos húmidos nas mesas do café.

- Só saiu há bocado. – A proteção natural de quem ama.

- Ai dele que chegue depois do meio-dia!O Daniel atendia alguns fregueses enquanto o Alberto

pai orientava as operações. Atrás do balcão a tia Mercedes ajeitava o avental enquanto tirava mais duas bicas. Sobre o ombro, dentro do quadro centrado, a primeira frase ia dizendo: “Não molhes os pés arregaça a saia”.

Às vezes, as palavras olham para lá do que pode acontecer.

A perna direita da Rita foi descoberta depois de ter arregaçado as calças. Não as duas, só esta. Era a que ficava do mesmo lado da corrente para não sujar. Três voltas

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bastavam nas calças de bombazina castanha.- Já podemos ir? – Perguntava do cimo da pasteleira

a Rita na direcção do Tiago, enquanto apanhava os cabelos escuros numa fita branca grossa. Ele a empurrar a Puch da garagem pelo guiador. Os pés a arrastar.

- Que remédio… – o ar de enfado de quem fora obrigado pela tia Laura. Ainda há bocado lhes estavam a dizer que a Rita só podia dar uma volta à vila se o primo fosse com ela. Mas isso era há bocado como atrás foi escrito. Agora, tinha de pedalar na mota para fazer pegar o motor e seguir atrás da miúda dois anos mais nova que ele. E era para estar de volta antes de almoço.

- Anda lá, vá! – Para ver se se despachavam enquanto o motor de arranque da moto não fazia o seu serviço apesar das tentativas. Uma. Mais outra. – Olha, eu vou andando! – E a Rita disparou pelo portão fora montada na bicicleta.

- Espera! – Gritou o Tiago a esforçar-se em cima da moto a pedalar – Pega, puta… - um ronco mecânico e um alívio para o rapaz. Parou de pedalar, baixou o descanso, acelerou a fundo para apanhar a prima rua fora.

Ar.O que valia é que a viagem até ao jardim demorava

pouco tempo. O vento nos cabelos presos não era suficiente para os descompor e a pasteleira da avó tinha um guiar duro mas certo como se soubesse o que aí vinha. A destoar, o aproximar do motor da Puch, numa guarda imposta pela educação e protecção maternas com o Tiago a galope, cheio dele próprio, a vencer terreno. A Rita acelerava, esforçando-se por ganhar velocidade e a distância possível. O pé direito fez

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força, impeliu-se e resvalou no pedal com a canela a bater na corrente num raspão desconfortável. Escorreu sangue e escureceu a pele com óleo. Laivos de vermelho e preto. Dor momentânea aguda e antecipação grave à mistura pelo que o jardim já lá estava mais perto à espreita. Cada vez mais próximo. O Tiago atracado, mal-humorado. A Rita a nem ligar à ferida superficial. Mais umas voltas de pedais e já estaria com o Martim que aos sábados por esta hora arranjava sempre modo de sair do café. O portão ao fundo. Sempre em frente ali perto da estação de comboios. Não deixaria que a presença do Tiago lhe alterasse os modos para poder estar uns minutos junto do Martim que já lá brincava com uns amigos.

- Vem aí a tua professora! – Foi o que o Rafael disse, já que tinha sido alertado pelo trabalhar da mota. – E vem acompanhada.

O Raúl e o Martim desacocoraram-se para ver melhor. A Rita e o Tiago aproximavam-se do portão.

- Quem é aquele?O Martim já o tinha visto, no dia da banda, ao lado

do pai da Rita mas não sabia quem era. Aqui, ela chegaria primeiro.

- Então rapazes?- Tudo th-peta? – perguntou o Raúl.- Como?- Th-im. Garfo-th na-th batata-th, prego-th na-th

parede-th…- Ele está a perguntar se está tudo bem. – Traduziu o

Martim empurrando o malandro do Raúl. A mota chegou-se

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ao lado da bicicleta da Rita e o motor parou.- Estes tipos são teus amigos, prima?- Sim. – E para os rapazes - É o Tiago. Veio passar uns

dias lá em casa.- Tudo th-peta?- Oh, Raúl… já chega! – Avisou o Rafael. - Eu sou o Martim. Este é o Rafael e o aqui brincalhão

é o Raúl.- Vamos demorar muito tempo, Rita? – Perguntou o

Tiago a olhar para o relógio sem prestar muita atenção aos três amigos.

- Eh, pá! – Exclamou o Raúl, puxando o Tiago pelo braço. – Que relógio é e-th-e?

- É um Timex digital. É novo.- Deve th-er muita caro.- Claro que é caro. Veio do estrangeiro.- Como é que funth-iona? – O Raúl chegou-se mais

para perto do primo da Rita que agora estava mais inchado.- Carregas aqui e mostra a data em inglês, ‘tás a ver?

Depois, aqui podes pôr um alarme para te acordar. – E lá ia mexendo naquilo. – Tem uma luzinha para veres as horas à noite. E em baixo é o cronómetro.

- Cronómetro? I-th-o tem um cronómetro?- Claro que tem. – E foi demonstrando a coisa perante

o entusiasmo geral.- Vamos fazer uma corrida! – Desafiou o Rafael. –

Duas voltas aqui ao parque de estacionamento a ver quem é

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o mais rápido.E logo, lá foram brincar às corridas.O Tiago ficou em cima da mota enquanto os quatro

iam revezando-se na pasteleira, aos círculos por entre os carros, tontos de tanta voltinha. Dedos no cronómetro, anunciando os tempos dos corredores, um a um. O Martim a imitar o arregaçar das calças como a Rita. Não as duas, uma apenas, é claro.

O melhor tempo foi o do Martim.- Aposto que nem o Tiago consegue fazer melhor com

a mota! – Mais um desafio do Rafael.- O quê? – Virou-se o Tiago para o rapaz. – És parvo?

Isto é muito mais rápido do que uma bicicleta de menina.- Prova-o!- Isto é uma mota, pá. Anda muito mais depressa,

percebes? – Aquilo irritava-o.- Então, se anda mais depressa, dá lá duas voltas, pá!

– Voltou à carga o Rafael. – Eu marco o tempo! – Estendeu a mão para apanhar o relógio. Pouca sorte, rapazola.

- Rita, conta tu o tempo. – Ia lá agora confiar o relógio àquele tipo.

A Rita desmontou da bicicleta para segurar no relógio do primo, deu o guiador ao Martim que subiu para o selim.

A mota começou a engasgar-se com os pedalares do Tiago para a pôr a funcionar. A primeira, a segunda, depois a terceira. Só para aí à sexta volta foi de vez com o motor a começar a funcionar.

- ‘Pera lá, isso assim não vale! – Disse o Martim.

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- O quê? – Questionou o piloto Tiago.- O tempo tem de começar a contar com a mota

desligada.- Ãh?- Isso era como se nós todos tivéssemos começado a

pedalar sem sair do sítio antes de começar a contar o tempo. – Explicou o Martim.

- O Martim tem razão. – Ajudou a Rita. – Não é justo.- Não é justo como? Isto é uma mota. Não é uma

bicicleta!- Th-e fo-th-e uma mota não tinha pedai-th. – Observou

o Raúl com os restantes a concordarem pois bem entendido.O Tiago calou-se a cerrar os dentes. Mesmo que a

mota demorasse uns segundos a pegar, ia de certeza fazer um tempo melhor. Não corria nenhum risco.

- Quanto vale? - Quanto vale, o quê? – Questionou o Martim.- Quanto vale a aposta?- Oh Tiago, não estamos a apostar nada. É só uma

brincadeira. – Fez por bem a Rita pedir ao primo.- Vocês estão para aí com regras parvas, então eu

quero saber quanto vale. – Insistiu.- Duzentos escudos! – Viraram-se todos para o Martim

que tinha dito aquilo quase sem pensar. – Se fizeres melhor que eu dou-te duzentos escudos.

- Duzentos e-th-cudo-th é muito. – Saiu do Raúl entre os th-s.

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- Miúdo… quando perderes, vais ter de pagar duzentos escudos, ouviste?

- Já disse: duzentos escudos, se fizeres melhor tempo que eu. – Quase todos, sim… só praticamente a Rita é que não estava confiante.

- Martim, duzentos escudos é muito dinheiro. – Os olhos da Rita tinham uma visão preocupada da aposta.

- Vamos a isso! – E o Tiago cuspiu na palma da mão direita, esfregou-a na outra, cravou as mãos no guiador da mota, levantou os cotovelos, olhou para o lado para a prima. – Estás pronta?

O Timex digital nas mãos da Rita começou a contar o tempo feito de dígitos num ecrã acinzentado enquanto que o Tiago dava aos pedais impelido pelo tiro de partida e pela meta dos duzentos escudos que o dia lhe ia proporcionar mais daqui a pouco. À medida que o tempo ia decorrendo sem se ouvir o trabalhar da mota mais se alegrava o Martim por dentro. Os outros mais por fora. Ainda foram algumas voltas dos pedais, as suficientes para acalentar a esperança, mas poucas, para que o fogo das pernas do Tiago se extinguisse. A Puch roncou, acordou os espectadores e foi veloz iniciar o percurso ao redor dos carros parados. A língua de fora, os pés a raspar na estrada para cortar as curvas a deslizar no alcatrão, o corpo meio levantado, os olhos abertos à fossanguice, sempre a recuperar tempo inexorável com oito olhos cravados no cronómetro a ver se os segundos se gastavam só um bocadinho mais depressa. Mais velozes a andarem do que a mota às voltas no parque de estacionamento.

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Quando chegou o momento de se parar o cronómetro, a Rita mal queria acreditar no que via: era o mesmo tempo!

- Não pode ser! – Gritava o Tiago a regressar para junto de todos com a Puch ainda a trabalhar. O Rafael e o Raúl já tinham atirado os foguetes. A Rita estava só incrédula depois de ter anunciado o número de segundos. Tal como o Martim.

- Empataram! – Sorria a dizer – Foi igual, Martim!- Não pode ser. Tu não estás a ver bem. – Voltava o

primo. A mota foi-se abaixo. – Dá cá!- Não tenhas mau perder. Fizeste o mesmo tempo do

Martim e pronto.O Rafael e o Raúl a apanhar as canas.- O dobro ou nada! – Zangado, o rapaz.Uma cana caiu do colo do Raúl. – O dobro ou nada, como? – Perguntou ainda à procura

da cana no chão.O Tiago voltou a colocar o relógio no pulso e fechou

a bracelete.- Tiramos as teimas com mais uma corrida. – Em

desafio constante, depois de perceber que se a distância fosse maior, as probabilidades de vitória penderiam bem mais para o seu lado. – Daqui até ao coreto e voltar.

- Vais arranjar problemas com o Feijão-verde. Ele não gosta de ver bicicletas no jardim. Quanto mais uma mota. – Foi uma reflexão e peras do Rafael.

- Cala-te Tiago! Admite a derrota e baixa as orelhas. – Era preocupação que se levantava no peito da Rita.

- Eu não perdi, fizemos os dois o mesmo tempo!

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Primeiro Sendo

Quatrocentos escudos eram quatrocentos escudos. Quatrocentos a mais do que o Martim tinha agora nos bolsos.

- E começas à mesma com o motor parado – uma confirmação do Martim que esperava pela resposta do Tiago.

- Combinado!Pelo lado do Martim era certo que a mota não iria

pegar à primeira. Se tivesse sorte chegaria ao coreto com avanço antes de o motor começar a trabalhar. E, se assim fosse, ia-se esbaforir todo para cruzar o portão em primeiro lugar e embaraçar o primo da Rita.

Ao contrário, o Tiago estava confiante que a distância jogaria a seu favor mesmo que a mota demorasse o mesmo tempo de há pouco a pegar. Os quatrocentos escudos pouco importavam. Ele é que não se podia ficar.

Nestas alturas acontece quase sempre assim: sucedem-se tantas coisas que é impossível lembrar todos os pormenores, há tanto a acontecer que é preciso tomar atenção e nunca fechar os olhos com medo de escaparem detalhes determinantes, pois nem todos os pontos de vista possíveis chegariam para descrever mais tarde o que se teria passado e, no entanto, as coisas em si não se padecem dessas velocidades dos humanos que dificilmente conseguem reter toda a informação só porque há uma precipitação de acontecimentos. Mas, ainda assim, vai-se tentar enquanto longe a tia Mercedes, atrás do balcão do café, acaba de

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verificar se os bolos estão alinhados nos seus tabuleiros e ainda mais longe, na casa dos Assunção, a Laura joga crapô consigo mesma na sala antes da criada perguntar-lhe se pode chamar para almoçar. Está quase. Sente-se pelo cheiro que vem do fogão. Resta saber se vem da cozinha lá de casa ou se do café do Araújo.

Foi o Rafael que decidiu dar a partida a meio dos dois, de frente para eles, como tinha visto no cinema. O Tiago à esquerda, na sua mota. O Martim à direita. A rapariga de lado, em pulgas. O Raúl ao seu lado, a torcer pelo amigo.

Veio uma rabanada de vento com sabor a rio. A ponte mais lá à frente.

- Aos vossos lugares! – Olhou para trás, em direcção ao coreto, ao fundo, só para ver se havia, ou não, pessoas na pista de corrida. A costa estava livre.

- Prontos! – O Tiago pôs os pés em cima dos dois pedais, de perna aberta, como se estivesse de pé empoleirado na mota. O Martim distribuiu o peso entre a perna que o amparava e a que se preparava para impelir o pedal direito.

O Rafael olhou mais uma vez para a Rita.- Partida! – E saiu o Martim, sem freio, com o olhar

pregado ao coreto.- Vai Martim! – Disparou o Raúl a toda a velocidade.Desenfreado, o Tiago pedalava para pôr a mota em

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Primeiro Sendo

marcha, sem sucesso. Cada pedalada em esforço síncrono com a do adversário que se ia afastando na gravilha. A Rita de punhos cerrados. O Rafael, ora de olhos no companheiro que lá ia, ora de verificar se o pedalanço da mota terminava com o trabalhar do motor.

A pasteleira ainda não ia a meio da distância que separava a partida do coreto, com o Martim a sentir-se cada vez confiante com um ouvido à coca pelo barulho do motor permitindo um aumento considerável de confiança no rapaz, quando a ignição da Puch deu sinal. Bolas!

O Tiago lá foi no encalço da cabeça do pelotão, arrumado em cima da mota com o acelerador a fundo e os pneus a deixarem sulcos profundos na gravilha. O barulho do motor teve implicações que não teriam retorno: o alerta por parte do Feijão-verde que, na outra ponta do jardim, achou estranho o volume tão alto de uma mota que quase que parecia estar no jardim, o sobressalto de susto da Rita que focada na distância percorrida pelo Martim não se tinha preparado para desviar a sua atenção e a sensação de urgência dentro do peito do rapaz que, para já, se destacava na frente da corrida. Era só uma questão de tempo até que o Tiago lhe pisasse os calcanhares e o ultrapassasse. Bolas, o tipo tinha posto a mota a trabalhar em menos tempo do que há bocado.

O coreto estava ali mesmo ao alcance do Martim. Quando lhe desse a volta deparar-se-ia com um Tiago que já vinha com um sorriso rasgado na sua direcção e saberia que quando fosse a sua vez de contornar o palanque, estaria a caminho da derrota. Os quatrocentos escudos nem lhe passaram pela cabeça. Nem depressa nem devagar.

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O Martim chegou ao coreto sem travar, meteu os pés à gravilha, deu uma volta completamente de lado quase a perder o equilíbrio, soltando uma nuvem de pó que foi parar a uma criancinha que bebericava no bebedouro e parou para chorar sob o olhar preocupado da mãe que lá vinha em seu auxílio. Quem vinha também a correr era o Feijão-verde, vermelho de raiva mas um pouco mais longe. O próximo a contornar o coreto seria o Tiago já a cantar vitória.

No portão do jardim os três que lá ficaram viram tudo a aproximar-se em simultâneo. O Martim a pedalar ofegante em primeiro plano e o Tiago a chegar-se metro após metro, vitorioso e prestes a ultrapassá-lo. Mais longe, nenhum deles reparou no Feijão-verde que corria também para lá.

Foi aí, no momento da ultrapassagem, que o Tiago riu alto em jeito provocatório. Era inevitável e demais para o Martim aceitar. Como se fosse inconsciente, a pasteleira começou a adornar na direcção da mota que passaria a roçar ao lado. O Martim olhou para a roda da mota a aparecer à sua direita em baixo. O Tiago gritou algo que o Martim não percebeu e deu-se o que seria um grande estrondo aos ouvidos de ambos quando o embate passou do tal inevitável para a dura composição do chão de gravilha.

A Rita gritou e correu a chorar para o coreto. Desataram em passadas largas o Raúl e o Rafael que vinham também do portão. O Feijão-verde ainda não tinha parado do lado oposto.

Na sequência do choque, os rapazes, ambos no chão, contorciam-se de dores. O Tiago com as calças rasgadas de lado, as mãos em sangue cheias de pó e pedrinhas. O Martim

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agarrado a um joelho ensanguentado. A bicicleta para um lado. A mota para o outro em cima de um canteiro verde. O Tiago chorava.

- O que é que fizeste, cabrão? Viste o que fizeste? Foi culpa tua. Vieste para cima de mim.

A Rita não ligou ao que o primo dizia. Chorosa, baixou-se para chegar ao Martim, que se tentava levantar do chão.

- Estás bem, Martim? Estás bem?- Dói-me o joelho. – E descobriu a perna com sangue

a passar-lhe para as mãos.As lágrimas atraiçoavam a rapariga.- Água! É preciso pôr água nisso. – As feridas tinham

sempre de ser limpas. Ela passou-lhe o braço pela cintura e ajudou-o a ir até ao bebedouro. O Raúl e o Rafael levantaram a bicicleta e a mota do chão. O Tiago continuava a chorar, sentado no canteiro.

- Cabrão! Vieste para cima de mim.O Feijão-verde chegou, tendo imediatamente

reconhecido a Rita e o primo como da família que eram, e os restantes pelas caras dos pais cuspidas nas fuças de cada um.

- Eu vi tudo! Tu meteste-te numa bela alhada, Martim Araújo. – Vinha a ofegar de acusação em riste. – Não se pode andar de bicicleta no jardim. Toda a gente sabe disso. Isto não fica assim!

O Raúl e o Rafael largaram tudo e fugiram para fora do jardim, não fosse aquilo acabar feio para eles também. O Martim que se safasse.

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Nem a Rita, nem o Martim tinham cabeça para o Feijão-verde naquele momento. Ela a buscar do bebedouro mãos cheias de água pingadas de lágrimas, vertendo-a sobre a ferida aberta no joelho do Martim, que se ia soprando para dentro à medida que o líquido transparente lhe limpava o sangue e os pedacinhos de sujidade.

- Desculpa a bicicleta. – Balbuciou o Martim por entre os ais.

- Tens sulfamidas em casa? – Tirou a fita grossa que lhe prendia os cabelos castanhos longos para depois a amarrar à volta do joelho do rapaz. Ficou com os cabelos soltos e o Martim lembrar-se-ia bem disso.

O Feijão-verde segurava agora a bicicleta e a mota, uma em cada mão. O Tiago foi sozinho buscar água para lavar as mãos.

- E ainda me deves quatrocentos escudos!- ‘Tá calado, Tiago. Ele não te deve nada! – Gritou a

Rita. – Tu mais a tua maldita mota estúpida!- Vou contar tudo aos tios. – Foi a última coisa que

a Rita ouviu do Tiago que empurrava a mota à mão, com o Feijão-verde por perto com ar de polícia, a ver se ainda conseguia pôr a vista em cima dos dois miúdos que tinham escapado.

Depois de, no jardim, tentar limpar a ferida o melhor que conseguia, a Rita acabaria por acompanhar Martim até

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ao café. Devagar, ele a coxear e mais estragado do que a bicicleta que, ainda assim, poucos danos tinha. O Daniel foi o primeiro a vê-los virar a esquina e levou o irmão para cima sem passar pelo café, depois de agradecer à Rita. Assim, o Alberto pai não via a figura em que o Martim tinha chegado. E já eram quase dez para a uma.

A rapariga encostou a bicicleta com uma roda torta à parede perto do café e seguiu os dois irmãos escadas acima, virou à esquerda para entrar na casa de banho.

- Tira as calças, vá! – Disse o Daniel.O Martim olhou para a Rita com vergonha. Ela tinha

acabado de entrar.- Eu ajudo. – Prontificou-se a rapariga ajoelhando-se.- Não! – Soltou o Martim – Eu faço isso sozinho.- Veja aí dentro desse armário se há água oxigenada.

– Soltou o Daniel e a Rita virou-se para abrir o pequeno armário debaixo do lavatório.

O Martim desapertou o cinto mas não deixou cair as calças. Sentou-se na sanita que tinha o tampo para baixo e deixou as duas mãos na cintura. A Rita voltou-se com uma garrafa branca de plástico com uma cruz vermelha de lado, rodou a tampa e despejou um pouco de líquido no pano das mesas que o Daniel lhe estendia.

- Então? Despe as calças! – Voltou a dizer o Daniel.- Não!- ‘Tás parvo, pá! Tira lá isso.- Eu saio, pronto. – Percebeu a Rita, saindo da casa

de banho e descendo as escadas para a rua. Sentou-se na

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esplanada do café e assim que viu o Alberto pai a fazer menção de ir ter com ela, antecipou-se e levantou-se para entrar no café. Passou pelo pai do Martim e disse-lhe boa tarde. Parou no balcão e pediu uma 7up à tia Mercedes.

- Eu levava para si, menina. – Foi o que disse o Alberto pai.

- Não é preciso. – Pagou e voltou para a esplanada para se sentar. Esteve lá um bocado com o olhar na entrada do café e na janela lá de cima da casa de banho. Não se esquivou a pensar que não podia voltar a casa com a bicicleta da avó Lucinda naquele estado e que tinha de contar uma história qualquer à mãe se ainda fosse a tempo de emendar o que o Tiago lhe pudesse vir a contar. Que má ideia de se ter deixado acompanhar pelo parvo do primo. Bolas, que má ideia, essa.

Já tinha acabado a bebida quando viu o Daniel a sair da porta que dava para as escadas e a virar para dentro do café. Ele acenou-lhe como se estivesse tudo bem com o irmão. Um alívio. Instantes depois saiu o Martim, com outras calças, pretas de servir à mesa, mas com o coxear igual com que tinha saído do jardim.

A Rita levantou-se e apanhou o rapaz que vinha na sua direcção já com uma bandeja na mão e um pano a traçar-lhe o antebraço. Apertou-lhe a mão ainda com uma lágrima a ameaçar cair.

- Estás bem?- Sim.- Eu tenho de ir para casa. As melhoras, Martim. Eu,

quando puder, passo aqui no café. – Era impossível para o

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Martim não olhar para a mão dela sobre a dele. Sobrepunha-se a tudo. E muito mais do que à mão.

- Desculpa a bicicleta.E a mão soltou-se a queimar. A Rita foi pé ante pé a empurrar a pasteleira. Os

sapatos brancos, iguais às meias, puxadas até ao tornozelo.

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Ferida aberta

As molduras engalanadas dispunham-se com aprumo estratégico, num esquema quase geográfico, em cima da cómoda grande, de pernas retorcidas, no quarto dos senhores. Cada uma no seu sítio com as fotografias maiores atrás a fazer um friso histórico com as mais antigas. A presidir num dos topos, os pais da Laura, no outro, os do Francisco. Pelo meio, um momento eterno da coudelaria com homens perfilados e o destaque sempre para o senhor da casa vestido de roupas antigas. Noutra, a avó da Laura sentada com pose real, o peito feito de renda, a roupa de luto, uma aura branca a irradiar das costas como se o cenário fosse verdadeiro. Na fila do meio, os anos esmoreciam e começavam a aparecer laivos de cor esbatida. Uma fotografia do casamento, em pose. O retrato de um descapotável cinzento de porta aberta com o Francisco a olhar para a objectiva, uma perna fora do veículo a ver-se a meia branca, cigarro aceso ao canto da boca. Uma recordação de um dia de chuva em Paris nos Campos Elísios com um casaco de peles que ainda hoje fedia

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num armário. À frente, a Rita bebé, numa moldura de prata, o sorriso em grande no centro, fundo branco, e nos cantos, quatro outras expressões em mais fotografias de escalas mais pequenas quais anjos gémeos da menina. Umas caixinhas de comprimidos de prata a adornar os lados. Tudo sobre um naperon entrelaçado de mestria que tombava ligeiramente nas bordas. Nem um raio de sol penderia de chapa nas fotografias, sob pena de poder desaparecer a memória das impressões. Isso não iria acontecer.

Por perto, a Laura Assunção dormia a sesta como era habitual. A esta hora encostava-se na cama feita para dormitar porque fazia bem à digestão e escapava ao afogueamento do calor. As cortinas do quarto, no primeiro andar, sempre fechadas, ou não fosse a luz da tarde intrometer-se onde não devia. Isto para além das fotografias porque a Laura precisava de descanso.

Se, por acaso, o Feijão-verde tivesse olhado para cima antes de tocar à campainha, cá fora, teria percebido como só havia um conjunto de janelas que estava tapado por dentro a cortinados mas não era coisa para a qual tivesse vagar. Encontrou o botão com os olhos e nele apressou-se a carregar uma vez.

Na salinha ao lado da cozinha, o tinido foi como que abafado pelo Tiago que gritou quando o mercurocromo reagiu na ferida.

- CARALHO!A Jacinta, que tratava do curativo, fez que não ouviu

mas alertou-se para o som da campainha.- Venha aqui para a casa de banho, menino. – E depois

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Primeiro Sendo

num grito. - Júlio! Estão a bater à porta! – Foi o que disse em direcção à cozinha, sem se virar nem nada. O Júlio não perdeu tempo e foi.

Passaram uns instantes. A Laura a dormir, o Tiago a tentar dominar o medo da dor, a Jacinta a fazer o que lhe tinham mandado, o Júlio a descer a vereda da casa, o Feijão-verde cansado, à espera que lhe abrissem o portão e o Francisco nos estábulos. Vamos já lá.

Depois de almoço, cá fora na torreira do sol, o Francisco Assunção ainda nem estava a meio de escovar o cavalo, quando o Júlio falou envergonhado por trás dele com o cuidado mais que suficiente para que nem a sua sombra ficasse na visão periférica do patrão.

- O Doutor desculpe. – O olhar nas costas - É que está ali em baixo um funcionário da Câmara. Diz que veio entregar a mota do menino Tiago.

- A mota do menino Tiago? – Perguntou o Francisco sem tirar os olhos dos movimentos regulares que executava com propósito.

- Sim, Doutor.O cavalo resfolegou e mexeu uma das patas de trás. O

Francisco já o acalmaria.- Sshhhhh… a Puch do Tiago, como?- Não sei, Doutor. Foi o que ele disse. Mas lá que é a

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mota do menino Tiago, lá isso é.O Francisco parou de escovar o animal e voltou-se

para o empregado.- Oh, Júlio, se é a mota do Tiago, vá lá baixo buscá-la.

Jesus!- O Doutor desculpe mas o homem pediu para falar

consigo. – Disse o Júlio, acabrunhado, a olhar para baixo.- Quem é?- Não sei quem é. Só disse mesmo que era da Câmara.

Pediu para chamar o Doutor.A mão, que empunhava a escova, parou de novo

de eriçar a pelagem do cavalo e, com meia volta dada, o Francisco dirigiu-se para o portão da propriedade. O Júlio a reboque, como se percebe.

- Só me faltava mais um comuna da Câmara. – Entre dentes e entre passadas, só para ele.

A distância a diminuir e o verde do uniforme distinguia-se entrecortado pelas verticais pretas dos ferros forjados do portão, com o brasão dos Assunção no topo honrado, à medida que os dois homens se iam aproximando, com o Francisco à frente. O Feijão-verde lá ia tirando o chapéu escuro em sinal de respeito pelo senhor a chegar. Ficou com um vinco na testa onde tinha estado a pala encostada desde Vila Franca. Limpou o suor com as costas da mão enquanto segurava a Puch inclinada para si. Ainda tinha sido um esticanço vir desde o jardim pela beira da estrada até à casa, como lhe tinha ordenado o puto, antes de entrar no táxi e dar-lhe a nota de cem escudos. Talvez uns quinze minutos ou vinte mas se alguém de posição se

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pusesse a perguntar, tinham sido de certeza uns quarenta e muitos. Com quantidades destas não há que ser somítico.

- Boa tarde, Doutor Assunção, como está o senhor? – Fora o melhor cumprimento que o Feijão-verde conseguiu proferir. Era visível que a mota estava suja, com riscos e um pedal a cair aos tombos.

- Essa Puch não é a do meu sobrinho Tiago?- É, sim. Foi o seu sobrinho que pediu que a trouxesse,

Doutor. Vim da vila até aqui, veja bem. – E lá sorriu a meia cara, preparado já para o exagero das distâncias mal calculadas.

- O que é que aconteceu à mota? Onde está o meu sobrinho? – Perguntou Francisco a olhar de volta para casa.

No quarto, a Laura, de olhos fechado, encostada na cama a respirar ligeiro, não deu a entender que sentiu o mirar do marido. Nem podia… havia tanta coisa entre os dois.

- Não sei, Doutor. – E tanto quanto sabia, o raio do puto já tinha abalado aqui para a quinta do Doutor a toda a velocidade. - Eu meti-o num táxi e ele pediu-me para devolver a mota aqui a sua casa. Mas a culpa foi toda dos outros miúdos, eu vi tudo. A menina também não teve culpa nenhuma.

O patrão fez sinal para o Júlio abrir o portão e levar a mota para dentro.

- Você está a falar da minha filha? – Levantando o sobrolho.

- A menina Rita não teve culpa nenhuma. Ela está bem. Foram os outros bandidos que fizeram cair o sobrinho do Doutor. Se quiser, não me importa nada, posso ser

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testemunha… é só dizer.Enquanto o Júlio subia com a mota do sobrinho do

patrão, o Feijão-verde ia contanto à maneira dele o que se tinha passado no jardim. Segundo parecia, tinha vindo a empurrar a mota quase uma hora. Tudo porque uns ciganos tinham roubado a mota e a bicicleta dos meninos. Ele estava a trabalhar, mas tinha visto tudo, desatou a correr a gritar que ia chamar a polícia. Eles espetaram-se uns nos outros e contra o menino Tiago. O menino tinha ficado magoado, mas nada de grave, meteu-o num táxi para ir para casa, porque não conseguia andar, e disse-lhe que lhe trazia a mota até aqui. Tudo com esgares de muito esforço que mereciam pronta recompensa.

- Foi o que eu fiz, sôr doutor. Fiz bem, não fiz?- E a minha filha?- Oh, ela está bem. Eu até pensava que já estava em

casa. – E olhou para o caminho mais acima.Francisco voltou a olhar para a casa. A Rita ainda não

chegara. Nenhum dos dois tinha vindo almoçar. Era melhor encontrar o Tiago para ser ele a contar-lhe o que tinha acontecido. Meteu a mão ao bolso, abriu a carteira, tirou de lá uma nota de cem escudos que estendeu ao Feijão-verde. Francisco olhou-lhe para o vinco na testa.

- Vá-se lá embora.Do lado do Feijão-verde, tinha valido a pena o zelo

todo do excesso da história.- Muito obrigado, sôr Doutor. – Esperou até o portão

de ferro ser fechado e que o Dr. Assunção voltasse costas.Na sua vez, meteu-se à estrada de volta para a Vila e

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estendeu o polegar a pedir boleia. Na outra mão, dentro do bolso das calças, bem quentinhas, duas notas de cem mil reis. Que belo dia este. Estava na altura de ir picar o Joaquim.

Tinha ficado todo esfolado. Assim inclinado, a apoiar-se com as mãos agarradas ao lavatório da casa de banho de serviço, olhado a meio metro do espelho, tinha ainda poeira, umas manchas em carne viva, água que pingava do queixo e várias madeixas de cabelos em pastas suadas. A torneira a correr. O relógio todo fino pousado na louça branca. O Tiago olhou no reflexo a maior ferida no cotovelo que a Jacinta cuidava ao polvilhar umas sulfamidas, para não infectar, como quem põe açúcar em pó em cima dos bolos frescos.

- Cuidado!Tiago limpou a cara à toalha que ficou com provas da

queda no jardim e, no último momento, reparou num ruido surdo no corredor.

- Tiago! – Era a voz do tio do outro lado da porta. – Estás aí?

Manter o silêncio era parvo.- Tio!?- Abre a porta!Agora, não abrir a porta era ainda mais parvo. Uma

volta à chave e a porta rangeu de aberta. O som pareceu

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percorrer a separação dos aposentos e a diferença de pisos eriçando os cabelos do pescoço da Laura que continuou a dormitar.

A Jacinta parou de tratar o menino e levantou-se de repente à espera que o patrão falasse.

- Que belo serviço. – Largou o tio, ao mesmo tempo a dizer que não com a cabeça, enquanto, lá em cima no quarto, o ouvido interno da mulher fez um esforço para apurar o som da madeira antiga mas o sonho, fosse ele qual fosse, sobrepôs-se.

– Estás todo escavacado, pá.A Jacinta baixou os olhos, saiu despercebida. Fechou

a porta atrás dela.- Não foi minha culpa, tio. – Sentou-se na borda

da banheira e voltou a sacudir porções de poeira ainda acumulada na pele em torno da ferida no cotovelo e não só.

- E de quem foi a culpa?- Duns tipos cá da terra, no jardim. Fizeram de

propósito. Eram pra’i uns cinco!- Roubaram-te a mota?- Não, foi uma aposta. – A pensar que atenuava um

pouco o relato.- Uma aposta? Uma má aposta, queres tu dizer!- Eu ganhei! Ele fez batota, tio… é um batoteiro! – E o

Francisco ajoelhou-se para sacudir o pó das calças rasgadas do sobrinho.

- Batoteiro, quem?- Oh… o tipo que se meteu à minha frente de

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Primeiro Sendo

propósito com a pasteleira da prima. – E um movimento mais irreflectido fez com que o cotovelo ferido batesse na parede da casa de banho. – FODA-SE! – Não foi tanto do palavrão que saiu da boca do Tiago mas sim pela segunda vez que a história se estava a desenrolar.

- Como é que foi isso?- A prima deixou um dos tipos andar na bicicleta dela

no parque de estacionamento ao pé do jardim. E depois fizemos uma corrida, até meio do jardim e voltar. Quando eu ia a ganhar, tio, o Martim cortou-me o caminho e veio para cima de mim. Chocou comigo de propósito e ficou-me a dever dinheiro.

- Quem é o Martim?- É o miúdo que trabalha no café. – E lá mais uma vez

a carne viva se contraiu. – O cabrão deve-me quatrocentos paus.

Francisco acabou de tirar o pó às calças do sobrinho, aos safanões, e levantou-se.

- Devias mas era tomar um banho lá em cima.Onde estaria a Rita? Uma pergunta que guardou para

ele ao voltar a abrir a porta da casa de banho para sair. E, sem se voltar. – O melhor é não chatear a tia com esta história, está bem?

A Laura só dormia. Fazia lá ideia.A resposta do Tiago adivinhou-se.

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- O que aconteceu, para ele ter assim a perna? – Via-se perfeitamente que tinha acontecido alguma coisa ao Martim.

- Nada… – respondeu o Daniel à tia Mercedes, que tinha feito a pergunta atrás do balcão num momento em que tinha a certeza que o Alberto pai não estaria por perto a ouvir. O rapaz começou por pousar uns copos sujos e umas chávenas de café usadas. Era início de tarde e o serviço começava a apertar.

Assim, de dentro do café, percebia-se que o raio do rapaz não tinha um andar normal.

- Quem nada não se afoga. O que é que ele tem?- Sei lá... Deve-se ter magoado numa mesa. – Foi

displicente, não foi mal-educado. O Daniel nunca seria mal-educado para a tia. E voltou para atender mais fregueses.

- Numa mesa, pois…Na esplanada, de um lado para o outro, sempre que as

calças se encostavam à ferida do joelho, havia uma tensão que teimava em subir a correr pela perna acima do Martim, percorria-lhe a espinha e amainava no pescoço. Aí se detinha até que o rapaz lhe desse atenção e apertasse os dentes como reacção. Quase que, passo a passo, lá vinha o relembrar da dor enquanto que, pelos constantes avanços e recuos por entre as mesas, o Martim esforçava-se por evitar um maior reconhecimento que desse azo a perguntas.

Em contraste, sem perguntas, sem respostas, cicatrizada quiçá pelo acidente no jardim vinha uma diferente sensação que o impelia de mesa em mesa, de sentidos apurados como se dotado de um ímpeto que acelerava a sua marcha não obstante o coxeio. Por entre os clientes, a atender pedidos,

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fazer trocos, arrumar cadeiras à medida que passava e ia buscar uns cafés e uns bagaços para digerir refeições, Martim parecia que tinha mais sangue. Tinha bem mais sangue que passava ao lado do joelho ferido e o preenchia de força. A força do sangue palpitava forte, estava viva, pulsava dentro dele e queria sair. A ferida aberta gritava o nome da Rita.

- O que é que tens?- Âh!? – Foi mais uma tomada de atenção ao que a tia

Mercedes lhe perguntava. – Diz tia?- O que é que tens?- Nada!- Nada? Atão não vejo que ‘tás a coxear? – Voltou a

perguntar a tia, quando o Martim se preparava para voltar para a esplanada com mais uma bandeja cheia de coisas.

- Não tenho nada tia. Devo ter dado ali um jeito, má nada.

São muito espertas as tias.

A oficina do Joaquim era do outro lado da linha do comboio numa fileira de casas pobres de dois andares, com a tinta esfolada a esfarelar para cima do empedrado velho do cais a algumas dezenas de metros da parte de baixo do jardim, assim de frente de quem vem da passagem de nível em direcção ao rio com a ponte de lado. A ombreira da entrada de pedra gasta com o sinal em círculo azul cruzado numa

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tira vermelha, tombado do topo, a avisar para a proibição de estacionar. Cá fora alguns carros de capô aberto, parados de forma a serem reparados mas com pouco cuidado com a passagem do trânsito que era mais de saída, de ali para fora, e de reduzida marcha. A garagem de porta aberta com um Renault 5 castanho, meio metido dentro do espaço exíguo rodeado de uma bancada de madeira cheia de ferramentas amontoadas, uns candeeiros de luz amarela, as paredes forradas a azulejos de casa de banho cobertas de jantes dependuradas, pneus de motas, cabos descarnados pretos e vermelhos, secções de tubos de escape, rodas de bicicletas velhas e até mesmo canas de pesca que um dia esticaram-se para a água à procura de uma boca que fincasse o isco. Entre uma fileira de tomadas brancas, algumas partidas e pregadas numa tábua meia pintada, pó por todo o lado, um quadro pequeno com uma fotografia de um Lotus de corrida e mais ao lado um poster grande, a cores, com uma mulher de peitos nus, bronzeada, mãos nos quadris, num cenário que mais se assemelhava a uma quinta de um sítio qualquer que de certeza não era ali vizinho de Vila Franca de Xira. Em baixo uma tira branca descartável de um calendário antigo de 1984, embora já tivessem ido mais três anos pois não era pela actualidade que lá estava, e o nome escrito a azul de uma empresa vulcanizadora. O cheiro a óleo misturado com electricidade que vem pelo ar empurrada por lufadas de fumo exaustadas de motores em esforço que aceleram em busca de mais uns escudos a ajudar ao sustento. Sobretudo óleo a sentir-se pegajoso nestas coisas. Um transístor de onda média no canto a empurrar uma música perra que teimava em sair aos solavancos das perfurações da caixa

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de plástico que o envolvia pois estava mais habituado aos relatos de futebol do que às miudezas das melodias. De vez em quando um torcer ritmado de uma chave inglesa e um bater metálico a combinar-se com as ordens do Joaquim para o filho, Alexandre, para lhe trazer mais isto e aquilo. A tosse aos repelões do Feijão-verde que, sentado num banco de madeira, soprava fumo branco pelas narinas. Também podia ser do pó. Era tanto.

- Tu devias era ir à Câmara, falar com o Fausto. Ele arranjava-te um lugar de motorista e ficavas orientado.

- Oh, Zé, a minha vida é isto. – E mais um torcer de porca.

O Feijão-verde chamava-se Zé. Típico.- Tu sabes lá o dia de amanhã. Precisas de uma coisa

certa, pá. Ainda por cima, tens jeito com as mãos – e atirou o cigarro portão fora, com um piparote que se foi meter entre o empedrado mais ao longe.

O filho do Joaquim entrou na oficina, vindo da claridade do dia, à procura de qualquer coisa. O Feijão-verde continuava.

- Com mãos dessas, podes ganhar mais dinheiro do que aqui. Olha, eu nem isso tinha. E as que tinha gastei-as a engraxar sapatos.

- Estas mãos são minhas. São minhas. Não são do presidente da câmara, percebeste?

- O que é que estás para aí a dizer? Tu sabes quantos empregados tem a câmara? Ali chega ao fim do mês e tens o dinheirinho certo… ser funcionário público é assim. É futuro garantido.

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O miúdo voltou a sair com um daqueles carretos de madeira que se põem debaixo dos carros para os mecânicos os arranjarem por baixo. De certeza que conhecem. Foi no sentido de outro Renault azul estacionado lá fora, à porta da oficina.

- Mete na tua cabeça que eu não quero fechar a oficina! – Vociferou o Joaquim enquanto limpava as mãos a um pedaço de trapo mais sujo que o negro.

- Tu és um mal-agradecido de merda. – Respondeu o Feijão-verde. – Não me custava nada falar com o Fausto. Tenho a certeza que me fazia o favor.

- Esse favor, eu não quero, pá. Eu quero a minha vidinha aqui no meio dos meus arranjos. Isto chega-me…

- Tens vistas curtas, Joaquim. Achas que eu vou ficar ali no jardim para sempre? Não senhora! Vais ver que qualquer dia até tenho um gabinete na Câmara e subo a chefe de serviço. Aí é que se faz dinheirinho… – a roçar o polegar contra os dedos indicador e do meio. E a repetir com o conforto de duzentos escudos no bolso. – Dinheirinho bom…

Lá fora, um pedaço de vento trazedor do riso de crianças passou pelos ouvidos do Alexandre deitado debaixo do carro azul a apertar uma anilha do tubo de combustível. Não ligou a infantilidades. Instantes depois, o som de uma bicicleta a ser empurrada à mão, as rodas avançando em círculos e os passos de dois pés de meias brancas pelo tornozelo. Sapatos, também brancos, detiveram-se logo após as rodas de trás do automóvel, perante o olhar de lado do pequeno mecânico resvés ao chão. Os dois pés juntaram-se plenos de prumo. As

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rodas da bicicleta paradas. Uma empenada, a de trás. E logo contornaram o Renault, deram a volta, embicaram na oficina e pararam mais uma vez. O Alexandre viu tudo debaixo do automóvel. Viu como vêem os miúdos, sem os adultos se aperceberem. E com um jeito no pescoço e tudo.

- Bom dia – disse a Rita para os dois homens dentro da oficina. – Desculpe… arranjam bicicletas?

O Zé, Feijão-verde esperto, percebeu quem era, pois claro, e levantou-se. O rádio continuava a zumbir aquelas musiquinhas.

- Bicicletas? – Respondeu o Joaquim de dentro da oficina sem a Rita lhe ver a cara.

Debaixo do Renault azul, o Alexandre trocou a cabeça de lado, deu com a testa num tubo que fez um ruído abafado o suficiente para a menina desviar a atenção por um segundo assim para baixo. De mão suja a tapar os palavrões que empurravam os dedos para ver se conseguiam sair a rasar o empedrado e chegar a ouvidos mais limpos, o miúdo percebeu as botas do pai a chegarem perto dos sapatos brancos da Rita.

- Se for uma coisa simples, arranja-se…- É na roda… - a voz sumida. – Tem arranjo?O Joaquim voltou a passar as mãos pelo mesmo trapo

sujo, deu uns passos para fora da oficina, segurou no selim da bicicleta, deixou pousar um joelho no empedrado da rua. Levantou em peso a bicicleta com uma mão e com a outra fez andar o pedal para a frente. A roda traseira deu uma volta abaulada.

- Nada de especial, menina. Mas hoje não dá… - e

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pousou a bicla.- E se eu deixar ficar a bicicleta posso vir buscá-la

depois. Prá semana?- Se trouxer dinheiro porque é que não havia de poder?

– E esboçou um sorriso.- Domingo, pode ser?- Claro.- Quer que deixe o meu nome?- Não precisa, menina Rita. – Foi o Feijão-verde que

sugeriu, já que tinha estado calado até àquele instante. O Joaquim ainda olhou para trás, para dentro da

oficina.- E dinheiro? Posso deixar duzentos escudos.- Vá-se lá embora, menina. Eu arranjo a bicicleta.

Depois a gente vê do pagamento.- Obrigada. – E o sorriso da Rita alagou a entrada da

oficina o mais que conseguiu, só pelo favor de lhe resolver o problema da bicicleta e especialmente por adivinhar não ter de ouvir mais uma recriminação da mãe por ter estragado a pasteleira. – Diz-me onde posso apanhar um táxi?

- É só atravessar a linha do comboio e ir à estação. Há lá muito táxi.

Quando deu meia-volta ainda pensava no Martim, se ele estaria bem e se a ferida estaria melhor. Mas teria de esconder tudo da mãe e, isso, também ocupava preocupação. Já eram duas a amontoar-se.

Agora sem a pasteleira como amparo, o caminho de empedrado para ir apanhar um táxi ficava mais difícil. Nada

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era fácil.Debaixo do Renault, o Alexandre viu tudo das canelas

para baixo e esperou que os sapatos brancos dessem meia volta para destapar a boca.

- Foda-se! – Foi o que saiu sem ninguém perceber. Só o galo na testa.

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Um tudo que fica

A tinta das portas não se esfarela sozinha, mesmo que assim pareça. E não são as demãos que cobrem um verniz antigo por revelar ou a passagem do tempo que, ao raspar, deixam marca. Bem de perto, esgravatando as primeiras camadas, percebe-se que é a característica da madeira que se permite impressionar pelos elementos e, muito particularmente, pelo toque.

A tinta desta porta por baixo do coreto, no jardim, padece especificamente desta combinação de efeitos pois a madeira da qual foi lascada mal se havia preparado para os elementos e toques que as ombreiras deixariam escapar pelas frestas, com tudo o que haveria de ser. Também por isso, se mostrava esfarelada mas não menos batida.

Esta porta, pintada e esboroada, abria para fora e tinha um batente que nem sempre se ajustava à vontade de fechar quando nele, ela se encostava. Não era do impulso, nem das correntes de ar… mas, provavelmente, mais do jeito. Dependendo do toque, e contudo talvez também do

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elemento, lá escolhia ser trancada ou preferia espreitar aberta a fazer de chica esperta.

Nesse dia, a porta, ainda que com a tinta gasta, estava só encostada a centímetros da ombreira. Foi o Canina que viu primeiro a fresta.

- Onde vais? - O Martim olhou para ambos os lados.- Vou só espreitar - deixou a porta aberta.- Canina, cuidado – havia algumas pessoas no jardim

mas ninguém estava demasiado por perto. O Canina rodou o chapéu de pala ao contrário, puxou a porta para si e entrou sem dizer uma palavra. – Espera por mim.

Com o Canina à frente, o Martim esgueirou-se pela porta e puxou-a para se encostar, deixando-os aos dois dentro da arrecadação debaixo do coreto.

Quase às escuras.- Não se vê nada – disse baixinho.O Canina foi ao bolso buscar um isqueiro e, com um

golpe certeiro do polegar, fez rodar a roldana sem carregar na válvula. O brilho da faísca, acompanhado pelo som característico, inundou o espaço por uma fracção de segundo como se, por um instante, um flash de uma fotografia se tivesse produzido ali como por magia. Para o Martim, que ainda estava virado no sentido da saída, o clarão só iluminou a porta por dentro, fazendo surgir a sombra delineada do rapaz. Mas, para o Canina, deu para perceber logo as dimensões do espaço. Da porta à parede mais longe, aquilo era do mesmo tamanho do coreto por cima das suas cabeças. Parecia ter umas entradas de luz dos lados que ajudavam a perceber melhor a tralha guardada que o Feijão-verde tinha

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para ali sem jeito, aos trambolhões.- Isto ‘tá tudo desarrumado – e rodou o isqueiro mais

uma vez.Agora, já deu para perceber que havia ferramentas por

toda a parte. Baldes, vassouras, utensílios de jardinagem, uns sacos de sarapilheira com coisas. Numa das paredes havia um armário com gavetas e, do lado, encostavam-se uns toros de madeira. Havia umas canas de pesca a sair de uma caixa. Casacos e calças penduradas em pregos. Uma lâmpada pendia do tecto perto de umas cadeiras sujas empilhadas umas nas outras como peças tridimensionais de um puzzle ferrugento e um sofá gasto no meio de tudo.

- O escritório do Feijão-verde é igual a ele. É velho – disse o Canina ao mesmo tempo que dava mais uma nicada no isqueiro de modo a poder calcular a distância e sentar-se no sofá. Experimentou as molas. – Aqui não se está nada mal. Olha, e se lhe fanássemos uma cana de pesca?

- Não vamos fanar nada, Canina. Vamos mas é embora.- Acabámos de chegar… - levantou-se o miúdo com

mais um clarão do isqueiro que deu para ir até ao armário. Abriu uma porta. Outro clarão. Frascos. Fechou-a. Abriu a outra porta do armário. Mais um relâmpago de trazer por casa. Mais frascos. – Só merda!

Pó por todo o lado. Encontraram molhos de canas e galhos, pedras daquelas para fazer canteiros, ferros retorcidos, latas e vasos, um regador sujo, umas picaretas e uma sachola velha.

Pelo meio da escuridão e pelos intervalos dos desarrumos, o Martim foi tentar espreitar lá para fora por

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uma vigia. Sentiu mais um clarão nas costas. Do outro lado do espaço, o Canina abria umas gavetas que roçaram na madeira do armário.

- Eh, lá!- O que foi?- O cabrão tem revistas de gajas.Era verdade. No meio das sementes, dos engodos e

dos adubos havia uma gaveta onde o Zé guardava umas revistas de mulheres nuas. Na capa da que estava em cima, que o Canina apanhou, estava escrito “Playboy”. O resto das letras formava palavras em inglês.

- Gajas inglesas…- E achas que ele tem isto aqui para ler os artigos ou

ver as bonecas?Os dois rapazes sentaram-se lado a lado no sofá.

Folhearam a revista pelo meio dos clarões do isqueiro, esquecendo-se que o tempo ia passando tal como as folhas. Às tantas, os clarões não eram suficientes e a chama do isqueiro ajudava a leitura silenciosa porque isto de partilhar comentários sobre corpos nus de mulheres em revistas, não era conversa que se tivesse quando se tem uma idade como a dos quinze. Nem mesmo entre amigos. Cada um sabia de si e o quente da chama tinha efeitos secundários no dedo que segurava a válvula do isqueiro.

- Chiççççççça, queima! – Soltou o Canina, apagando a chama e bufando de imediato no polegar direito.

- Vamos mas é embora.- Vamos nada.

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- Vamos sim… não é boa ideia estar aqui dentro a esta hora. O Feijão-verde pode vir aí. Põe lá isso outra vez na gaveta, vá.

- Chatice!Levantaram-se os dois com mais uns quantos clarões

luminosos. Até porque o dedo começava a melhorar a espaços. O Canina voltou a meter a revista na gaveta. No clarão seguinte, o Martim vislumbrou umas chaves penduradas na parede, ao lado do batente da porta. Percebeu que eram três, tirou uma e experimentou-a na fechadura da porta encostada. O Canina atrás dele pronto para sair, um bocado a contragosto, é verdade.

A fechadura rodou.- Vamos levar uma chave. Ele tem aqui muitas.Nem combinaram, nem nada. Foi automático. E

saíram dali, para fora.Depois de os rapazes passarem, a tinta da porta não

se esfarelou nem mais um bocado. Não tinha dado tempo, apesar do toque. E já os dois iam longe, quando a porta que abria para fora se acomodou junto ao batente, pois a vontade de ficar aberta tinha sido mais forte ao sentir o encosto. Não que tivesse sido da força, nem da corrente de ar… foi mais do jeito.

A corrida seria bem interessante. Era o que se escrevia no cartaz espalhado pelas paredes da vila. Dois cavaleiros

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de distintas famílias. Os apelidos Pinto e Veiga, em grande, e os primeiros nomes em letras mais pequenas. Fotografias “tipo passe” de ambos centravam o anúncio. Dois grupos de forcados amadores, os de Vila Franca de Xira e os de Montemor-o-Novo. Seis bonitos e bravos “toiros” de ganadarias reconhecidas. No topo, à esquerda, a cabeça desenhada de um touro, a olhar em frente, ameaçador, de fazer cagufa. Um pequeno texto realçava o garbo e a coragem das distintas personalidades tauromáquicas e fazia pouco dos preços a partir dos 650 escudos. Planeado para parecer uma pechincha.

- Chiça, que ir à tourada é caro como a merda!Para o Rafael, tudo era caro e era por isso que os miúdos

se juntavam a famílias inteiras, ou mesmo a senhores de fato que iam sozinhos às corridas de touros, com o propósito de entrar sem pagar. Com menos de doze anos os putos não pagavam na tourada. O problema é que do grupo inteiro nenhum tinha menos de treze, mas eles vinham à mesma pela rua paralela à linha do comboio a correr de grupo em grupo, parando junto das pessoas a pedir se os deixavam ser parte da família só por uns instantes. Uma espécie de sobrinhos ou filhos por uns minutos. Havia sempre gente que não se importava com isso. O truque era não ir em bando e evitar os de nariz mais empinado.

- O th-enhôr, importa-se que entre con-thigo? – O Raúl era sempre o primeiro a conseguir boleia. Ele e o Canina eram os mais pequenos em altura embora o Jaime achasse que o Raúl era o mais pedinchão. O Canina tinha uma lábia mais dada para a brincadeira mas lá se orientava.

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No parque de estacionamento, o carro do Dr. Assunção, conduzido pelo motorista, parou para deixar sair os senhores. O Francisco saiu sozinho do bando de trás. A Laura ficou à espera que o homem desse a volta ao carro para lhe abrir a porta do lado oposto. Cá fora, ela tomou o braço do marido e ajeitou o xaile sevilhano.

- Aqui, às nove, Júlio! – Disse, a fechar a porta.- Sim, senhor Doutor.Avançando em direcção à praça de touros, o casal

cumprimentou silenciosamente outros casais que também se aproximavam das portas da entrada.

Ainda um bom bocado antes do edifício, foi o Jaime que tocou no braço do Francisco.

- Desculpe, chefe. Posso entrar consigo?O Francisco e a Laura olharam ao mesmo tempo para

o rapaz. A Laura de leque em punho abanava para longe o calor do fim de tarde e o aproximar do cheiro a estrume.

- Quantos anos tens? – Perguntou o homem.- Doze!Com a mão pousada no braço do marido, a Laura só

teve de apertar um pouco. Foi o suficiente para uma nega.- Não… - e seguiram para não haver atrasos.O Jaime fez um trejeito com a cabeça, assim como que

a reconhecer o que se tinha passado, e o Rafael juntou-se a ele a vê-los a afastarem-se. Deu-lhe o braço como se fosse uma mulher.

- ´Tás a perder tempo. São os pais da Rita – e com a mão livre abanou-se a imitar um leque.

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- E depois?- Caga neles. Escolhe mas é um gajo que não seja

fatela, ou não entras.O Jaime e o Rafael nunca faziam a coisa às primeiras

mas ainda antes de chegarem às portas altas de madeira, cada um dos quatro miúdos já se tinha conseguido atrelar melhor ou pior. Com jeitinho todos conseguiram passar o controlo dos bilhetes. Assim que entravam, logo largavam quem lhes tinha feito o favor de entrar acompanhados e nunca mais os viam. Era mesmo assim.

De dois em dois degraus, subiam sempre o mais para cima possível nas bancadas. Quando o Jaime e o Rafael lá chegaram, quer o Canina quer o Raúl já estavam encostados a fumar à vez.

- Vocês são sempre os últimos, pá... – disse o Canina enquanto soltou uma baforada de fumo para o ar – Nós, foi sem estrilho.

- Jaime, da próth-iima vez não peth-as à mãe da Rita para entrar com ela. Eu vi-te.

- Porquê, puto? – E com um gesto pediu uma passa ao Canina.

- Porque ainda leva-th com o leque no-th corno-th.- Corno és tu, cabrão. – Respondeu o Jaime, em tom

de gozo. – Tu e aqueles ali em baixo. Naquele dia não eram apenas os pais da Rita que

tinham vindo à corrida. O Alberto, pai do Martim, também lá estava com o Costa dos Correios, pai do Jaime. Cada dois sentados em sectores diferentes, é claro. Todos à vista dos miúdos, lá do ponto alto.

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- Ficamos aqui em cima para o meu pai não nos ver – a espreitar desde lá de cima, tinha avisado o rapaz para que nenhum dos outros se distraísse.

- Olha, o teu pai ‘tá com o pai do Martim.- Porque é que ele não veio? – Perguntou o Canina.- O gajo, agora, não gosta de touros.- Iá! São outros interesses – foi a última baforada

daquele cigarro que pedia logo a seguir mais uma companhia.

Daquele modo, ao longe, eram audíveis os olés da multidão como se fossem ondas que chegavam pelo ar e se abatiam no telhado do coreto batendo nas folhas dos plátanos. O som fazia estremecer ligeiramente as ripas de madeira, ecoava pelos postes e sentia-se em reverberação no chão. Que coisa! Devia estar a ser uma boa corrida.

Por entre os intervalos das copas das árvores, o trompete do inteligente era parte do que chegava até ao jardim, embrulhado pelos aplausos das gentes.

O Martim estava encostado, de frente para o rio, com os cotovelos no parapeito do coreto. A uns passos da Rita, no meio da plataforma, a olhar na direcção do som que vinha da praça.

- Eu não gosto nada de touros mas os meus pais não perdem uma corrida – enquanto entrelaçava uns fios de cabelo castanho entre dois dedos.

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- É… o meu pai também gosta.- Ele foi hoje? – E o Martim virou-se para ela.- Acho que sim… - Como se não soubesse que tinha

ido.- E tu, gostas de touros? – A pergunta fez a rapariga

franzir um pouco o sobrolho.- Mais ou menos. Só vou por causa das pegas.Rita aproximou-se do rapaz para se colocar do lado

dele a olhar em frente.- Não me digas que gostavas de ser forcado?- Eu? Nem pensar! – Riu-se um bocado com a

sugestão. – Só acho que eles são corajosos, mais nada.- Então, se não vais para forcado e pudesses ir para a

faculdade, ias para quê?- Eu? Na faculdade? – Sorriu de novo e debruçou-se

no parapeito para baixo.- Sim.- Eu não vou para a faculdade!- Porquê?- Oh, porque não, Rita.- Porque não, não é razão! Devias ir. Tenho a certeza

que entravas.- A faculdade é para quem pode.- Isso não é verdade. Não te vais candidatar para o

ano? – Martim virou-se de novo para o rio. Agora estavam lado a lado, de rabos espetados, os dois de frente para o rio.

- Não posso. Tenho de ajudar no café.

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- Martim, se eu fosse capaz de metade do que tu, ia para Medicina.

- Achas que vou ser médico, Rita?- Podias ser, e depois? Podias ser o Dr. Araújo – foi

com um ar importante que o disse com enfase no título.- ‘Tá-se mesmo a ver…E perante o escárnio, a rapariga deu-lhe um encontrão

com o ombro esquerdo.- Então? – Soltou o Martim a exagerar a reacção. As

tábuas do telhado do coreto rangeram, sabe-se lá com quê.- Então, o quê? Podias perfeitamente ser médico ou

outra coisa qualquer.- Iá! Podia ser dentista ou veterinário – agora, estava

mesmo a esticar-se.- Não gozes! – E, com a mão aberta, a rapariga deu

mais um safanão no mesmo ombro.- Outra vez?- Tu podes ser o que quiseres – foi de dedo em riste

que o disse.- Rita… - e fitou-a nos olhos antes de o dizer. - Tu é

que podes ser o que quiseres!- Tu também podes, Martim! És muito mais esperto

que eu. Eu só tenho boas notas porque já ando naquele colégio há imenso tempo. Tu tens tudo a teu favor. És rápido, és o mais esperto de todos os teus amigos, o que sabe mais coisas e que pode ir mais longe. Tu não devias ficar aqui. Porque é que não vens estudar comigo para Lisboa?

- Não posso. Isso não dá, percebes?

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- Martim, pensa bem no que podes conseguir se fores estudar para Lisboa. Não é assim tão longe.

- Não deve ser assim tão barato.O vento que veio do rio fez esvoaçar os cabelos longos

da Rita. Mais tarde, essa lufada de ar ficaria presente sempre que o Martim revisitava o momento. Anos até depois.

Os olhos da rapariga mudaram.- O que é que o dinheiro tem a ver com isso?- Vamos falar de outra coisa. Sabes que é aqui por

baixo, que o Feijão-verde tem a sua oficina? – E com a ponta do pé direito deu assim uns biqueiros no chão do coreto como se, com o sapato, estivesse a apontar para o que tinha acabado de dizer. – Vem!

E, de novo, os olhos dela mudaram.- Espera…Desceram os dois pelas escadas de ferro que ladeavam

a porta verde por onde se entrava para debaixo do coreto. Martim, com a Rita atrás, rodearam-no pela esquerda e pararam junto a uma das janelas com vidro fosco que havia dos lados do coreto mais abaixo. No meio dois losangos de vidro batido, rodeados por mais quatro vidros a fazerem cantos, mais um em baixo e outro em cima a cercar. O Martim ainda limpou um dos losangos para ver melhor.

- A esta hora não dá para ver nada.Rita esgueirava-se por cima do ombro do rapaz, vista

da perspectiva dos losangos. E, sendo um vidro fosco, não tinha transparência para mais. Lá do fundo, a multidão deu mais um salto, acompanhado por um urro. Daqueles que só

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as multidões sabem como se faz.Ainda de trás, a Rita reparou num instante que o

cabelo do Martim estava mais comprido e, por instinto, entre o polegar e o indicador, passou-lhe os dedos por uma farripa. Foram os mesmos dedos de há pouco.

- Estás a deixar crescer o cabelo?O toque dela surpreendeu-o a valer. Martim virou-se

com a mão a tocar no sítio onde a rapariga tinha acabado de mexer. Foi como se tivesse ido verificar se, ela, ainda lá estava.

- Tenho de ir cortar.- Não cortes. Eu gosto dele assim. Ficas bem…Os losangos foscos semicerraram a fraca luminosidade

do jardim para esfregar o tão pouco que conseguiam ainda ver. Encostaram-se uns aos outros vidros sem pedir licença no momento em que o Martim estava a falar.

Os olhos a mudar e o rapaz a dizer: - Tenho de voltar para o café…Era a última coisa que ela queria. Que ele se fosse

embora para o café. E essa verdade, do outro lado, mesmo em frente ao rapaz, empurrou a Rita que, de olhos abertos e de sorriso nos lábios, disse com a voz baixa. – Oh…

A sílaba bateu nele em cheio e ficou mais um pouco com tudo. Isto fez com que o Martim procurasse a mão da Rita e, com ela segura, se puxasse para perto do olhar da rapariga. Ao perceber os dedos a entrelaçarem-se, o coração a soar nos ouvidos, o peito a subir e a descer mais repentinamente com o Martim mesmo ali, a Rita voltou a segurar na parte de

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trás da cabeça do rapaz e parou. De narizes quase a tocar-se, ambos fecharam os olhos para expandir amor. Dentro dos dois, era o que preenchia o momento. Era o amor das suas vidas prestes a sentir o primeiro beijo que ficaria.

Atrás, um dos losangos distendeu-se tanto que dir-se-ia que uma fenda se abriu num dos vidros do canto sem nenhum dos outros dar por isso. Nem fez barulho, nem nada. Uma mentirazinha nunca fez mal a ninguém.

A língua da Rita arriscou passar ligeiramente pela boca e sentiu a do Martim a encontrá-la no meio do beijo. Os olhos fechados com vontade de espreitar, as mãos do rapaz a segurar com o respeito possível na cintura fina dela em sintonia com a mão da rapariga que, agora, se entrelaçava nos cabelos dele a precisarem de um corte no barbeiro. Daí, ela apressou um abraço no pescoço do Martim que abençoou a mudança e permaneceu de lábios colados aos dela.

O barulho ao longe da multidão deixou de entrar no jardim e até o rio se acalmou. O ar, contrariado, voltou a meter-se pelo meio dos lábios com os olhos a abrir uns para os outros, de pupilas distendidas em contraste com o que a noite lhes fazia.

Uns instantes dissiparam-se por entre o olhar.- Já tinhas pensado nisto? – Perguntou a Rita, mudada

por dentro, a levantar os olhos para os do Martim.- Já – respondeu o sorriso do Martim enquanto a

continuava a apertar pela primeira vez. A primeira era esta, aqui neste sítio.

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“Luz”

As páginas interiores da revista dessa semana traziam uma morena deitada numa cama. As morenas, agora, arregalavam-lhe mais a vista. Já a ideia da tira de papel tinha vindo sabia lá de onde. Mas, isso, pouco importava já que era com um jeito muito particular que o Martim recortava um pequeno rectângulo de papel do tamanho certo. Tinha de tapar, na horizontal, parte da testa, as sobrancelhas, os olhos e o topo da cana do nariz. Nem mais, nem menos. Tinha de ter essa largura e depois era só uma questão de o posicionar, a tapar, sobre a cara da mulher na fotografia. Dos lados podia sair e não era importante. Nem era preciso pestanejar, não era preciso fingir, a imaginação nem era chamada ao juízo. Páginas abertas, com os agrafos a verem-se e a tira de papel colocada a preceito. Tudo o que necessitava para que a mulher ganhasse nova forma, novo nome e se transformasse na sua Rita. Ali, perto dele e com ele, num momento que acontecia como que por magia assim que o rectângulo se posicionava sobre a fotografia.

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- Rita…Os olhos abertos do Martim não enganavam. Na

fotografia era tal e qual a Rita, o que era mais do que suficiente para se sentir bem. Mesmo que, pouco tempo depois e certa como o destino, chegasse a culpa mais que certeira.

Era de mão dada que a Rita e o pai faziam o caminho

que partira da estação de comboios rumo à oficina do Joaquim, junto ao passeio do lado esquerdo da rua. Ela sempre do lado de dentro, a rasar as montras, com o pai no lado do trânsito.

Os cheiros que transbordavam dos negócios das lojas pontuavam os passos cadenciados dos dois. Como o odor macio da florista, com cambiantes doces e frescas de clorofila, como se tivesse acabado de chover, alguns passos mais adiante o som das chávenas, logo depois misturado com o bruaá da clientela, o cheiro a tabaco e a café queimado, mais uns metros e um cliente que saía do banco cumprimentava o senhor engenheiro. Depois, mais à frente, a laca e o verniz que passavam pelo ar, vindo do cabeleireiro da esquina. Do outro lado, o estremecer do empedrado sempre que surgia um autocarro, o constante fumo dos tubos de escape e o trabalhar dos motores.

- À volta vimos pelo jardim – incomodado, mais com a confusão do que com as nuvens de fumaceira escura.

- Sim, pai.

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Não que ela soubesse mas até podia ter sido o Júlio a ir buscar a bicicleta da Rita e o pai resolvido ter uma conversa longe da Laura.

- Correram bem as aulas? – Primeiro, o desviar de assunto.

- Sim.- Recebeste algum teste?- Não.- Não havia um teste de Matemática que ainda não

tinhas recebido?- Não, pai. Já o recebemos há uma semana?- Que nota tiveste?- Acho que foi… quinze. Quinze, vírgula sete. Acho

que só houve duas melhores.- É pouco.Rita não respondeu.Ao passarem pela loja de discos, o som que lá vinha

de dentro era daquela música do filme que a Rita tinha visto no outro dia, o “Dirty Dancing”. Não vinha à cabeça o título português do filme mas pensou no Martim. Bolas, como a letra da música fazia sentido com o que lhe ia no pensamento. Era o tempo da vida dela numa tradução incorrecta mas que parecia bem apropriada, lá está, ao português.

- Quinze é pouco, Rita. Sabes que tens de te aplicar mais se queres entrar para a universidade.

- Sim, pai – é claro que se teria de aplicar mais.Foi ainda com o refrão das duas vozes da canção no

coração, que a Rita realizou o que o pai lhe estava a dizer na

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passada, como que a marcar o ritmo. Finalmente, a maneira de chegar ao tópico principal.

- Vamos ali à oficina buscar a tua bicicleta.Desde que a tinha vindo esperar de surpresa à estação

do comboio, que o pai não disse o porquê de ali estar e a Rita nem pensou duas vezes. Tinha ficado genuinamente surpreendida por ver que ele a tinha vindo buscar, só isso. Ficou contente. Beijou o pai uma vez na face como todos os dias. Instintivamente, tinha-lhe dado a mão e deixou-se levar para fora da estação.

Nesse momento, só se deixou ficar para trás talvez meio passo. Foi o suficiente para deixar de ver a cara do pai mas não em demasia, de modo a não o conseguir ouvir.

- Hoje, a seguir ao almoço, telefonou um homem lá para casa a dizer que podias ir buscar a bicicleta quando quisesses. A tua mãe ouviu, começou logo a fazer perguntas mas eu disse que tinha combinado vir buscar-te agora e que passávamos lá para trazer a bicicleta – foi a olhar em frente que lhe deu a satisfação.

No domingo passado ela tinha ido à oficina. Bateu ao portão mas ninguém abriu. Depreendeu que o homem não tinha conseguido acabar o arranjo. Deve ter sido isso que aconteceu.

- Cuidado! – Foi o que saiu com calma da boca do pai quando chegaram ao fim da rua que tinham de atravessar, não fosse um carro sair mais depressa da azinhaga. Sem pressa, a palavra. Um gesto pronto com a mão esquerda a fazer parar a filha. Já faltava pouco para a passagem de nível.

Foi em frente à ourivesaria que o pai voltou a falar.

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Era uma pergunta e a segunda surpresa da tarde. Esta, muito diferente e sem lhe perceber de onde vinha disparada.

- Quem é o Martim? – Foi a olhar para ela que o disse.- O quê? – A Rita não sabia onde se havia de meter e,

por instantes, a distância entre os dois aumentou.- É assim que ele se chama, não é? Martim? - É um rapaz aqui da terra, pai – ela teve de acelerar

o passo.- É teu amigo? – E pararam de novo na cancela

levantada da passagem de nível. O pai olhou para ambos os lados e voltaram ao caminho agora com o refrão a perder-se dentro da cabeça da Rita.

- É… brincamos às vezes no jardim.- Foi ele que espatifou a mota do teu primo?A Rita estacou ainda a meio da passagem de nível. E

já a adivinhar uma mentira:- A mota do Tiago só ficou com uns riscos! O que é

que ele te contou? - Que um miúdo chamado Martim o tinha deitado

abaixo da mota à malandro. E, ainda por cima, deve-lhe dinheiro. – E parou para olhar para trás – vá, sai mas é daí.

A Rita passou por cima dos carris do comboio. Os sapatos agora a bater no empedrado.

- Foi só um acidente, pai. O Martim não teve culpa! E se alguém deve dinheiro a alguém, é o Tiago que deve ao Martim.

- Esse miúdo… o Martim estava na tua bicicleta?- Estava – uma lágrima escapou do olho esquerdo da

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rapariga. - Emprestei-a só por um bocadinho. Para fazer uma corrida.

- Uma corrida?- Foi uma brincadeira, pai.- Não estou a perceber. Afinal, foi uma brincadeira ou

um acidente? Ou uma corrida? Em que é que ficamos?- Foi uma brincadeira que correu mal. O Tiago arma-se

em esperto e o Martim não se fica atrás. E depois… - limpou a lágrima.

- Rita, não achas que devias estar mais concentrada nos estudos do que andares para aí com essas brincadeiras com rapazes da terra?

Não era o momento indicado para dizer mais do que já tinha sido dito e o melhor era concordar.

- Sim, pai. – Os olhos em baixo.Pararam de novo já quase a chegar à oficina do

Joaquim. O pai a olhar nos olhos da Rita.- Há alturas para tudo, filha. Eu entendo que tens

dezasseis anos, sei que estás a crescer e sei que tens de ter amigos. Mas tu tens de te agarrar aos estudos, querida. Tu sabes que a tua mãe… sabes que nós temos grandes expectativas para ti. Tens de estudar e fazer um curso. Esse tem de ser o teu objectivo, percebes? Ou achas que a tua mãe vai perceber que andes a brincar no jardim com um Martim de Vila Franca?

- O que é que tem o Martim de Vila Franca?Foi, mais uma vez, com a calma característica do pai

que disse:

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Primeiro Sendo

- Rita. Não é o Martim. Não é Vila Franca. És tu! É a tua vida. Só tu é que a podes fazer. Só tu podes fazer as tuas escolhas.

- Escolher como? Está a falar de estudos e cursos que eu tenho pouco a ideia de quais vão ser. Eu nem sei o que quero fazer quando for grande.

- Rita, quando fores grande não é em Vila Franca de Xira que vais querer estar.

- Como é que o pai sabe isso?Francisco percorreu o espaço que faltava em cima do

empedrado até chegar à entrada da oficina do Joaquim. Pelo canto do olho viu que o homem já lá vinha com a pasteleira pela mão, a sair ao encontro dos dois. Numa mão ainda tinha o pano que há pouco puxava o lustro ao guiador. O Alexandre lá dentro, de costas, a vazar uma lata de óleo para um bidão.

- Sei, filha. O pai sabe estas coisas. – Piscou-lhe o olho enquanto tirava a carteira do bolso de dentro do casaco para pagar o arranjo e levar a bicicleta da rapariga. Mas, desta vez, pelo jardim com a Rita a pedalar ao seu lado.

Visto de fora, lá muito de cima ainda que abaixo das nuvens, o rio parece um campo escuro parado com um ocasional lampejo do reflexo no sol sempre que uma ondulação sobe mais um pouco. A ponte que o atravessa dá

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Francisco Penim

mostras de uma linha segura na diagonal onde nada se parece mexer. O manto verde das copas das árvores imóvel tal como, noutras cores, as telhas das casas e os telhados de zinco das fábricas com mais ou menos fumo. Tudo paralisado se visto de fora, basta que se esteja a uma distância apreciável e a velocidade dos dias nada faça por alterar a paisagem desta terra. Não muda, não nada. Nada muda e, ainda assim, está por todo o lado nestas partes. Quando se vê este tudo de fora, mais dia, menos dia, é o que está por dentro que se surpreende com a transformação.

Descendo progressivamente vão-se percebendo os sons e afinando as formas. Há o vento que se sopra em brisa. Os pontos em terra que se convertem em carros a fazer marcha, os na água que se viram barcos. O líquido do chapinhar nos seus cascos a juntar-se ao restolhar dos ramos das árvores, com as folhas a esbracejar umas nas outras. O som do comboio a passar nas traves de madeira. Há o piar dos pássaros e os passos das pessoas na gravilha dos caminhos.

De cima até próximo do solo, com o tempo a passar.Ao nível da relva, numa parte mais perto da margem

do rio, os dois deitados de barriga para cima, lado a lado, de braços esticados, palmas das mãos para cima, os dedos quase a tocar-se. O cabelo longo e castanho da Rita, arrumado de esguelha a misturar-se com o verde do terreno.

É por estas e por outras, que não se pode subir demasiado depressa e se deve estar mais rente ao chão. Até de costas espalmadas, mesmo que os pés queiram flutuar e possam puxar para cima.

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Primeiro Sendo

O aproximar dos dedos nem fazia sentir a aspereza da relva. A distância era sempre demasiado afastada, não importava se perto ou longe do Martim. Havia sempre uma grande parte que faltava. E ao escassear, engrandecia o ímpeto de ter só mais um beijo, só mais um toque, só mais um sentir do ar dentro dos pulmões que viesse de dentro dele.

Quando os dedos se tocavam, puxavam-se para as palmas das mãos se juntarem, a galgar terreno, acompanhadas do olhar que entre eles se trocava no imediato instante anterior ao semicerrar de olhos que se realizava em todos os beijos.

O meio do beijo perdia-se numa torrente que esmagava o peito, impelia o ar, extenuava os sentidos e pingava palavras curtas nas pontas das línguas dos dois. Palavras curtas.

- Amo-te, Rita – baixinho, rente à relva.- Amo-te – a cruzar de raspão em direcção ao rapaz.Vulnerável por dentro tal era o sentir do quente a

fazer arfar a respiração em busca de mais um pouco de dar, mais um bocado de certeza, mais uma porção de luz. Tudo a sobrepor-se aos dias, que o tempo só fica feito demora se o momento for ansiado. Pois não haveria ânsia suficiente para tamanha escassez de contenção.

A Rita levantou-se e sacudiu os pedaços de relva que insistiram em não cair de tão pegados na sua pele e deu uns passos em direcção ao rio, com a mochila da escola a tiracolo. Olhou ao fundo para o caminho só para ver se vinha alguém.

O Martim seguiu-a até pararem mais à frente perto da

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Francisco Penim

margem.- Tenho de ir, Martim – estavam agora parados lado a

lado numa das muralhas do cais.- Eu sei – foi a brincar com uma madeixa de cabelo

dela que o disse, a olhar para o lado da cara da rapariga com um sorriso.

- Cuidado! – Era só um excesso de zelo não fosse alguém ver.

- O que é que tem? Estou só a mexer-te no cabelo.Era mentira. Com a outra mão livre, tocava na da

rapariga que se amparava no corrimão frio que resguardava o jardim em toda a extensão do rio.

- Nada – e sorriu para ele.- Fica descansada que o Júlio chega sempre a horas.O Júlio vinha buscar a menina ao comboio com a

precisão de um relógio. Estaria do lado de lá da estação daqui por uns minutos, por certo.

- Eu levo-te lá.- Levas-me até ao coreto, vá. Mas não me dês a mão.- Achas que eu tenho de te dar a mão para te mostrar

que te amo?- Eu sei que não, tonto.- Eu quero sempre mostrar que te amo, Rita. – Era

muito mais a sério que o sentia do que o dizia.Ela sorriu.E lá foram os dois a descerem o rio pela margem, a

acompanhar o curso de quem seguia a corrente. Passaram

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Primeiro Sendo

os pedaços de relva que se quase juntavam para formarem caminhos entre os plátanos e os castanheiros. As folhas a ondular ao vento. O barulho sincopado das traves do comboio para Lisboa a ecoar. O coreto a ficar mais perto.

- Um dia tenho de te mostrar uma coisa ali debaixo do coreto.

- Debaixo do coreto?- Depois vês. Eu tenho a chave.

Não havia nada assim. Nada existia como o beijo que nela encontrava. Por muito tempo que se passasse, o beijo continuava a ter o efeito inaugural desde o primeiro momento. O beijo que parecia nascer de dentro dela como que se viesse inspirado por uma vontade divina que preenchia, não só o desejo, como também perdurava o aperto que se acostumava no coração. Dessa união sobrava um ânimo sobre as possibilidades para o que haveria de ser e, acima de tudo, a certeza de todos os apaixonados no destino. Debaixo do coreto, sentados no sofá, era ao que sabia o beijo mesmo que por entre os arrumos todos que se iam acotovelando a espiar.

- Tenho de ir.- Eu sei – disse o Martim, por entre os lábios e os

puxares de roupa.- Pões-me fora de mim, Martim.

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Francisco Penim

E por mais que o acato não se desprendesse do rapaz, lá houve uma mão que lhe fugia pela perna da Rita acima.

-Espera! – Foi quase de sobressalto que o disse mais alto. Os baldes e as canas estremeceram na penumbra.

Pararam imediatamente de se beijar e a Rita ruborizada puxou a saia mais para baixo.

- Desculpa. – O Martim genuinamente embaraçado com o atrevimento. Ou seria da reacção pela qual não esperava? – Desculpa… Rita.

- Não me peças desculpa. Eu… - nem sabia o que dizer, a rapariga – vamos devagar.

Martim sorriu e, no sofá, aproximou-se dela.- Anda cá.O beijo que se seguiu foi na testa da Rita, pelos lábios

do Martim. Os mesmos lábios do tal desejo de há instantes mas um pouco mais sóbrios e, ainda assim, apostados que o dia haveria de chegar.

Ficaram abraçados só mais uns minutos. Os instantes suficientes para que, de um dos lados do

coreto num dos vidros em losango, fosse quase perceptível que, momentos antes e sem nenhum dos dois se dar conta, o primo tinha encostado o ouvido na vã tentativa de escutar o lá dentro decorria. Não fosse o Feijão-verde ter pouco esmero no asseio das janelas e o resultado podia ter sido bem pior. Na certeza, porém, de que o mal estava feito já que, parvo, não era o Tiago.

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Primeiro Sendo

- Tu deves achar que eu sou parvo – largou o Tiago.Sem saber o que responder, Rita encostou-se à cortina

pesada da janela do quarto, em casa.- Sabes que as minhas nódoas negras custam muito a

passar e aquele gajo vai pagá-las.- Não sabes o que dizes, Tiago.- ‘Tás apanhada pelo beicinho, Rita. É isso que te ‘tou

a dizer, percebes. ‘Tás apanhada e nem percebes que ele é só um primitivo. É só um gajo daqui de Vila Franca que só em sonhos é que podia pensar em ficar contigo. Ou achas que a tua mãe vai deixar que andes com um tipo assim? Achas mesmo que isso é possível?

- Oh, cala-te mas é.- Cala-te? Dá-me uma boa razão para me calar?- Não sou tua mãe. Não tenho de ter razão nem deixar

de ter – e saiu. Deu só uma distância de avanço para poder murmurar sem o primo ouvir. – Parvo!

Como é que ele tinha desconfiado? Se calhar foi no café? E o que é que ele iria dizer à mãe? Já devia ter dito das boas ao pai. Por isso é que ele estava com aquela conversa quando fomos buscar a bicicleta. E o Martim? Ele não se atreveria a fazer nada ao Martim!

E, ao vir o nome do Martim, vinham respirares mais profundos, de dentro, cheios de certezas. Amor do Martim. Amor por ele.

Entrou na casa de banho e fechou-se à chave. Sentou-se na sanita com o tampo para baixo. Olhou para o espelho. Os olhos a fitarem-se. O respirar entrecortado com o nome dele

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só para dentro sem verbalizar. Cadenciado, a pulsar, natural, vital como o ar.

Estava a adivinhar o futuro da mãe mais longe a fazer um curso qualquer rumo a um desejo que não era da Rita. Estava a ouvir as conversas de ser uma mulherzinha, de pensar no que tinha de ser, no que ela tinha de se tornar para agradar, no blá-blá-blá do costume como se as opções tivessem sido descartadas sem as poder discutir. Pensar no nome da família, no que as pessoas iam achar, no que era esperado dela, na boa aluna que tinha de ser, na menina sem defeitos e prendada. Na menina perfeita. Habituada a ser perfeita e a ter tudo assim como que perfeito. Feita e pensada de antemão. Desenhada como se não tivesse identidade própria.

Nesse momento, se o destino fosse cruel, Rita sentia que todas as fotografias que tinha tirado na vida, absolutamente todas… desde as que tinha meses de idade na praia no Algarve, as dos aniversários ao colo do pai, a abrir prendas, a galope no cavalo de madeira dos cinco anos, até às mais recentes do primeiro dia de aulas, ou no casamento da prima Aldegundes, com aquele vestido azul que lhe apertava o pescoço… em todas essas fotografias, em todos esses momentos, era como se pequenos rectângulos pretos cobrissem a sua identidade ao taparem olhos, sobrancelhas, parte da testa e topo da cana do nariz. Se o destino fosse cruel era assim que se sentia. No entanto, sentada na sanita a olhar para o espelho, via bem a sua cara, reparava na curva dos olhos, na testa, nos arcos das sobrancelhas e na cana do nariz, tudo lhe dizia maravilhas do amor que sentia pelo Martim quando de dentro, sem verbalizar, surgia o nome

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Primeiro Sendo

dele como que respirado a cadenciar as certezas. As certezas da Rita perante este único e primeiro amor que assim seria para sempre.

Tinha de combinar outra vez com o Martim debaixo do coreto.

Tinha!E ia!

Na concretização do plano da Rita ela já tinha entregado, na secretaria da escola, o papel supostamente assinado pela mãe que lhe permitia sair mais cedo para apanhar o rápido das cinco e quarenta e cinco na estação de Santa Apolónia. Já estava no comboio em direcção a Norte e daqui a pouco, onze minutos depois das seis, estaria em Vila Franca.

- Seis e onze… - tinha falado o Martim quando foi o dia de combinar o encontro.

Seis e um quarto à porta do coreto numa sexta-feira. Nesse dia, os pais tinham um jantar em Lisboa. Deviam sair de casa aí a essa hora. Sexta era dia de Educação Física, Rita trazia o fato de treino dentro da mochila. Dobrado, o mais apertado que conseguiu, um lençol de cama que tinha trazido de casa. O Júlio só a ia esperar à estação bem mais tarde. Dava tempo.

- O Júlio vai buscar-me como se eu viesse no rápido

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a seguir – era um bom plano, tinham, há mais tempo, concordado os dois.

Na sequência de acontecimentos, repetida vezes sem conta na cabeça do Martim e agora de corpo vivido, ele tinha dito ao Daniel que ia chegar atrasado para comer. Passou a linha do comboio para o outro lado e chegou ao jardim mais cedo com o relógio a olhar para ele. O chão, entre as árvores, um pouco empapado por ter chovido durante os últimos dias. A chave da arrecadação dos arrumos no coreto quase que incandescente no bolso do rapaz. Foi até à beira rio e, pelo caminho, verificou quem estava por ali. Não viu o Feijão-verde porque já não estava a trabalhar e passava das seis da tarde.

- Ele, a essa hora, já está na pinga. Não te preocupes – foi o Martim que o disse para a convencer a todo o custo. Não seria por aí.

No jardim, o rapaz voltou para trás e deu uma volta ao coreto antes de parar à porta verde escura que ficava por debaixo das duas escadas que davam acesso ao estrado, propriamente dito, mais acima. A porta abria para fora e funcionava como se fosse uma espécie de cave da construção da Câmara. Logo, sentou-se no muro do canteiro das flores mais abaixo. Daí a nada estava lá dentro a preparar tudo para quando chegasse a Rita. Dava mais que tempo.

- Não tenhas medo! Vai correr tudo bem! – Mais uma acha para a fogueira da paixão, dita quando marcaram encontrar-se naquela tarde, os dois, debaixo do coreto.

E a lembrança da Rita a dizer-lhe – Eu encontro-me contigo, debaixo do coreto, na sexta. – Foi com um sorriso

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Primeiro Sendo

que lhe disse e com outro ele respondeu.Nessa sexta-feira à tarde, no dia que foi combinado,

estava a chover um bocadinho. Nada de especial.Houve um último solavanco da carruagem, um

esguichar cheio de fumo no cais, o comboio parado, as portas a abrir. De todos os passageiros, a Rita foi a primeira a sair da composição da frente, o pé esquerdo a pisar solo firme, cinco ou seis passos a descer a rampa para virar à direita e passar à frente do comboio parado sem tempo para ficar à espera da marcha que continuaria. Atravessou as linhas de ferro e, já do outro lado, era apenas uma questão de tempo, até honrar a promessa que tinha feito ao Martim.

Debaixo do coreto, dentro da arrecadação, sob a luz ténue de uma vela acesa que tinha trazido do café, o Martim tinha libertado espaço no sofá pesado e sujo que estava a um canto a acumular ferramentas. Mudou-as para o lado e decorou com boa memória onde estava cada ancinho, cada pá, cada mangueira, cada saco, cada balde para mais tarde voltar a por tudo no sítio. Espreitou por uma das vigias de ferro forjado, pintado a verde-escuro, a dividir pequenas janelinhas de vidro que davam para o jardim, e verificou a chuva que pingava a fazer barulho nas folhas dos plátanos. Foi sentar-se no sofá, para ver se servia.

A cruzar o jardim passou a Rita, também a verificar com os olhos quem por ali passava. Do cais ao coreto era pouco o caminho e foi pôr-se de costas para a porta da arrecadação a respirar de antecipação. A mochila encostada ao verde da porta, as duas mãos mais abaixo, palmas abertas, uma em cima da outra, espalmadas na madeira. Respirou fundo, com

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o Tejo ao fundo, a ponte de esguelha mais à esquerda. Com um dos indicadores, bateu na porta verde. Um toque rápido, mais um toque, e outros dois, mais depressa. Era o sinal que estava à espreita.

O Martim deu um salto do sofá e lançou-se sobre o puxador. Havia sempre a possibilidade de ela não ter vindo, mas, afinal, não. A porta debaixo do coreto, como prometido, abriu-se para a Rita entrar. Cabelo castanho, mãos e mochila primeiro, quase que às arrecuas. Só depois o resto dela.

- Então? – Perguntou o Martim como se o mais importante fosse o que ela tinha para responder.

Rita virou-se para o agarrar e beijou-o de boca aberta, a desejar não sair mais dali. Martim respirou o ar que vinha de dentro dela e encheu os pulmões o mais que pôde até quase rebentar, com os lábios a esmagarem-se uns nos outros. A porta, ainda escancarada, a balançar para dentro e para fora, bem dava um impulso para se tentar fechar por si própria, como fazem algumas portas mais espertas, mas tal tinha sido o ímpeto da entrada da rapariga que o equilíbrio só lhe dava para se manter aberta com a chuva lá fora a, talvez, aumentar de intensidade. A vela, perto do sofá, sentiu o frio a vir e estremeceu. O vento não precisou de licença e entrou sem ninguém ser tido nem achado, para dar vida ao que por lá estivesse parado. Como o beijo continuava, as ferramentas tilintavam, alinhadas com o sopro que, de fora, abrisava os cabelos longos da Rita, passava de raspão pelo Martim e se esgueirava para debaixo do coreto. Pela arrecadação as mangueiras apertavam-se em rolos cada vez mais compactos, as tesouras de podar cochichavam com os corta-relvas mais abaixo, as luvas contavam os segundos pelos dedos só para

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Primeiro Sendo

ver se também conseguiam suster a respiração, os regadores espreitavam à vez pelos buraquinhos dos crivos e os baldes transbordavam como se estivessem cheios.

A mochila caiu no chão, o que deu cá um susto aos ancinhos arrumados a um canto, que só visto. A vela fingiu que nada se tinha passado.

- Ainda bem que vieste! – Baixinho, escapou-se da boca do Martim quando se despegaram. Os sorrisos a imitarem-se.

- Posso entrar? – Perguntou tarde demais a Rita, também em surdina. Voltou a pegar na mochila.

- Amo-te.- Eu amo-te, Martim.- Senta-te – e foi fechar, finalmente, a porta que pecava

por defeito. Duas voltas à chave e uma cadeira da esplanada, que não tinha ousado arrastar-se, tombada por dentro a fazer peso na maçaneta. Uma autêntica parvoíce do plano da cabeça do rapaz já que era para fora que a porta se abria.

- É melhor apagar a vela. - Achas? – Perguntou o Martim.- É melhor.- ‘Tá bem. Eu já apago.Rita abriu a mochila, começou a tirar o lençol que

tinha trazido de casa e fez por estendê-lo no sofá. - Eu ajudo – continuavam sempre com as vozes

sumidas.- Não podemos fazer barulho, Martim – avisou a Rita

enquanto acabava de tapar o sofá com o lençol.

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- Eu sei – o Martim apagou a vela com um sopro. A Rita sentou-se. Pelos intervalos do escuro, com os olhos a habituarem-se à ausência de luz, as mãos do rapaz encontraram as dela que se estendiam à procura na direcção onde, há pouco, estava o clarão da vela. Os dedos tocaram-se e o Martim sentou-se ao lado do seu amor. Voltaram a beijar-se e ele puxou-a para si.

Sendo a primeira vez há um tudo que fica, um sempre que muda, um imenso mais que parte e só cresce. Primeira sendo, a vez nunca se haveria de desfazer.

Pegou na cabeça dela a acompanhar o beijo com os dedos a entrelaçarem-se no cabelo revolto. Os braços da Rita a apertar os ombros do Martim. O corpo dela junto ao seu a afundar-se no sofá. Os olhos meio abertos à procura de um lampejo de claridade que se invadisse pelo lado das vigias, com os vidros a ficarem embaciados não tardava. Olhos meio fechados de sonho a experimentar a sensação do coração a bater para fora, da humidade entre as pernas que surgiu de rompante com alarme a escorregar, do suor que se precipitava das costas das mãos para as palmas, do quente da respiração de dentro, da rapidez com que se levantou a camisola e se libertaram os botões. A suavidade da pele dela ao roçar nos, ainda poucos, pelos dele, a língua, o cuidado ao mesmo tempo para não magoar e não perder o respeito de anos de supostos ensinamentos e troças entre rapazes e risos abafados de miúdas. As mãos a apertarem exploradoras, os sons a gemerem-se uns nos outros desconhecidos, o sabor da saliva a sair pelos cantos das bocas e o impulso de limpar com dois dedos. As formas dos corpos em revelação em catadupa, o ritmo do respirar, a força com que o Martim se

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Primeiro Sendo

encostava nela e o que isso lhe fazia a latejar, a onda que se elevada desde dentro e as palavras reduzidas aos nomes expirados.

- Rita…- Martim…E o peito nu da Rita que levantava e baixava de respirar

e ajustar as mãos estendidas ao limite do Martim que ora comprimiam, ora aligeiravam o toque de total inexperiência mas que faziam levantar os cantos da boca dele com felicidade. No meio escuro sentia-se tudo com os abraços a adensarem-se de intensidade. A Rita a sentir inesperada, pressionando na sua coxa, a dureza do membro do Martim. Era isto, afinal? A forma, a rigidez e a urgência do calor que irradiava. Queria tocar-lhe ainda dentro das calças mas não o fez. Tinha de o sentir dentro dela sem lhe tocar.

- Deixa-me tirar as calças. – Pediu a rapariga, trocando de posição com ele. Sentou-se no sofá enquanto Martim se pôs de joelhos virado para ela já com os olhos perfeitamente habituados à escuridão.

Rita desceu as calças com as duas mãos até aos pés e tirou os sapatos ao mesmo tempo. Martim ainda tinha os sapatos que não se lembraram de sair. Ela ficou sentada, nua, só de cuecas brancas, braços estendidos a pedir ao Martim que viesse. Foi mais forte do que ele e tocou-se no meio das pernas. Meteu a mão direita dentro das calças e apertou-se duro. Fez um movimento com a mão para trás e para a frente. A Rita abriu as pernas ofegante, a sentir o suor a escorrer-lhe pela espinha junto ao lençol de casa, os olhos muito abertos a absorver tudo para não esquecer. De novo o latejar que lhe

vinha das entranhas. E o húmido que não se ia embora.Martim debruçou-se e beijou o umbigo da rapariga que

soltou um longo arrepio. Com ambas as mãos nos elásticos brancos, ele puxou as cuecas dela para baixo. A Rita juntou os joelhos para facilitar a descida e voltou a abrir-se para ele, à espera de o receber. O rapaz sentiu-se em espasmos vindos do calor, puxou os quadris dela e marcou o sítio das mãos que faziam vincos. Viu-se a tremer, encostou o seu peito ao sexo dela, sentiu os pelos púbicos e estremeceu mais uma vez. A Rita segurou-lhe a cabeça que fervilhava por dentro sem acreditar no que tinha acontecido desde já. O Martim foi verificar com a mão direita e dentro das calças uma grande e molhada zona estendia-se por todo o lado no tecido. Puxou as calças até debaixo do rabo e, a sentir-se meio mole, tentou empurrar-se para dentro da Rita que gemia, com as costas arqueadas, mexendo as paredes a dilatar-se. Com os sentidos entorpecidos o corpo da rapariga tomou conta do que se passou e foi ao encontro do que o Martim seguia a tentar sem o sucesso planeado. O quente do sexo da Rita não era nada do que ele estava à espera. A sua flacidez urgente era demasiado evidente para tudo se perder na cabeça dele. Na dela tudo rodopiava, tudo fazia crer, tudo estava pleno de calor a aperceber-se de todos os lados, em todos os gestos, todas as pressões da carne fraca.

O Martim ainda esteve dentro dela mas já pleno de frustração. Tinha sido mais do que o seu corpo a falhar com ela. Tinha sido dele o falhanço quando tal não podia acontecer. Não depois de tanto esperar por esta sexta-feira.

Movimentaram-se os dois numa cadência demasiado rápida e desajeitada como é próprio. O calor da Rita a manter

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a chama. A desmotivação do Martim a absorver todos os momentos pensados. E por mais que ele tentasse, não ia mesmo conseguir. Talvez devesse dizer qualquer coisa.

- Rita…- Que é? – Respondeu ofegante, a querer mais.- Desculpa… - e parou.- O que foi? – Tinha parado também.- Hmm… - não sabia o que dizer mais.Foi o quente que respondeu de seguida na voz dela.- Anda cá. – E abraçou o rapaz de braços e pernas.

Onde se estava bem.O Martim agarrou-a para a beijar. Não tinha

conseguido dizer nada e o melhor era disfarçar. Mesmo que não fosse possível.

Durante todo este tempo, que pareceu mais demorado do que realmente foi, as ferramentas emudecidas pasmaram. O sofá com a substância do que lhe tinha passado por cima, as vassouras com as farripas distendidas, as tesouras da poda a brincar com as consoantes umas das outras, a cadeira da esplanada a resmungar inclinada sobre a porta, os baldes continuavam a transbordar. Cada utensílio com a sua versão. Todos meio enganados pelo escuro. A tinta da porta, do lado de dentro, dilatou-se com o calor. Do lado de fora, enrijeceu para mais tarde esfarelar em reacção a determinados elementos.

Sentados lado a lado, lá se iam vestindo com os disfarces à mistura. O Martim um pouco mais rápido do que ela porque tinha menos roupa para aprumar.

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- Desculpa, Rita. – Disse cabisbaixo, enquanto o molhado no meio das pernas começava a ficar frio ao toque na pele.

- Não tens de pedir desculpa.- Vá… – e começou a ajudá-la a dobrar o lençol. –

Vamos lá despachar.Na ideia da Rita era tudo tão novo e a emergir que

era difícil perceber o que tinha sucedido. O quente era ainda muito presente, o pulsar do sangue e o respirar forte e ansioso. Ele, o Martim. E ao mesmo tempo a sua reacção. As palavras que não estava à espera. A forte certeza que agora, naquele momento, ele se estava a apressar. Podia até ser apenas uma impressão.

Na cabeça do Martim tudo tinha corrido mal. Não tinha conseguido. Não a tinha agradado, não a tinha amado como desejava. Tinha desapontado a Rita como não pensou que fosse possível. E, ainda por cima, depois de tudo tão bem planeado. Bolas!

A pressa mandava. Dois olhares lá para fora, pelas vigias, uma de cada lado, comprovaram que ninguém estava no jardim e que a chuva tinha passado. Já podiam sair.

Afastou a cadeira dobrada sobre a porta, deu duas voltas à chave, rodou a maçaneta e fez sinal à Rita para sair. Ela chegou os lábios aos dele, ainda sem saber o que dizer mais. Foi pelo coração.

- Eu amo-te, Martim.Foi demais para o rapaz que ainda respondeu que

também a amava. Embora aqui não se tenha ouvido.- Amanhã, na estação? – Perguntou ela.

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- Sim… - um sorriso comprometedor. Um passo a mais dela, porque tinha de ir para casa, e os fins dos dedos que se deixaram de tocar. Com a outra mão, a Rita soprou mais um beijo na direcção dele.

Foi, de novo, demais e assim que ela se foi, houve uma rapidez que se deu nas pernas do Martim que o levaram a correr para o cais da estação. Saltou por cima das poças de água, subiu as escadas a três degraus de cada pulo, parou no cais e avistou o rápido para o Porto que vinha do outro lado, lá ao fundo. Duas ou três pessoas estavam deste lado do cais para apanhar o comboio para Lisboa.

Não hesitou e continuou a correr. Passou as duas linhas para o outro lado e agarrou-se a um poste do edifício da estação que ficava a menos de um metro da borda da linha de ferro. Não teve de esperar mais do que uns segundos, possivelmente dois ou três, para sentir a deslocação do ar súbita da passagem do rápido com o silvo simultâneo da máquina que rugia e levantava um escarcéu que fez aparecer um grito. Martim gritou o mais alto da sua vida e pingava lágrimas dos dois olhos. O grito fez reflexo no apito do comboio e seguiram ambos, agarrados um ao outro, rumo sabe-se lá para onde. Para Norte seria o mais provável. Até porque a Rita tinha ido nessa direcção há pouco.

O barulho ensurdecedor do ritmo dos rodados do comboio sobre as linhas de ferro, repetido em grupos de dois como se fosse código morse. Multiplicado no aço, maquinal, marcante, a murchar numa frustração.

Assim passou por tudo, emaranhado no poste com os dois braços a apertarem, ainda a sentir o molhado dentro

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das calças, o outro molhado das lágrimas, apesar de não ter chovido muito durante o pedaço da tarde. Não obstante o abraço, o poste não era feito dela que estava longe. Tudo tinha passado rápido para não ser desfeito.

Bolas!

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Vida fora

Com luzes dos lados como se fosse um camarim de uma estrela de cinema do antigamente, assim nos intervalos de três espelhos montados na vertical em cima da cómoda no quarto da Rita, exactamente no sítio onde a luz dava de lado ao entrar pela janela. De uma madeira cor dourada de talha, adornada com uns rococós repenicados que trabalhavam para dar, a quem se sentasse defronte, um porte esbelto e clássico por natureza. Frascos de perfume e cremes por abrir compunham um friso alinhado todo ao comprimento do móvel. Pousada, uma caixa de música fechada. Por perto outra caixa com alfazema. Molas do cabelo, ganchos, um elástico ou outro. Duas pulseiras da nossa senhora do Bonfim. Dispostos ao-calhas alguns pentes e escovas de vários tamanhos e formas.

E se era de escovas que era preciso fazer uso, não podia faltar a Jacinta atrás da Rita que de gesto em gesto puxado tornava mais sedoso o cabelo da rapariga. Em ondas esticava-se para baixo a tocar os ombros e era trazido com

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a suavidade de inúmeras vezes de experiência desde que a Rita era pouco maior do que um bebé de colo. Tantas vezes. Naquele mesmo quarto e naquela mesma casa. Mas noutros tempos.

- O que é que a menina tem hoje nos olhos, Rita? – Jacinta tinha notado algo entre uma e outra passagem a escorregar pelos longos cabelos castanhos.

Mas a cadência da escova ainda estava demasiado lenta para que a Rita se tivesse anunciado pela pergunta. Assim ficou-se a olhar nos próprios olhos no reflexo do espelho do meio.

- O que é que esta menina tem nos olhos? – Repetiu como se fosse só ela a estar no quarto e mesmo que não tivesse resposta.

O que é certo, é que a repetição da pergunta teve os seus efeitos não tinham passado muitos instantes.

- O quê, Jacinta?- Estava aqui a pensar com os meus botões, o que é

que a menina fez para deixar o cabelo neste estado.- Como?- Sim. Como é que este cabelo ficou assim?- Foi isso que disseste?- Não foi isso?- Não. Não foi…- Ah… só pode ter sido isso. Era o que eu estava a

pensar e tudo. – Era sabida, esta Jacinta.Não houve mais palavras enquanto a Rita sentia de

olhos fechados os dedos do Martim a ficarem-se presos por

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Primeiro Sendo

momentos nos seus cabelos. Cada dente da escova que se deslizava nas tiras longas, fazia-o onde antes tinha estado o rapaz apenas que mais tempo vagaroso por entre as frestas dos dedos com as pontas no couro cabeludo a trilhar vincos que mais pareciam fogo. O quente do toque do Martim a passar do cabelo para a cara. E ainda de olhos fechados, enquanto a Jacinta tirava os remoinhos, a mão da Rita só com a pontinha dos dedos, fazia memória táctil das carícias dele. Um pé-de-vento, era o que era. Não admirava que o cabelo precisasse de ser assim tão escovado de tão estouvado que ela o sentia. E ao abrir os olhos e voltar a perceber a Jacinta, os fins dos lábios subiam muito ao de leve por perceber que estava ainda dentro daquela desordem de amor.

- Jacinta… - Ai! O que para ali vinha.- Menina?- Quando é que tiveste a certeza que o teu José era

para ti?Sabem quando no final de um movimento de escovar,

mesmo no fim dos cabelos, há uns quantos que se juntam em direcções cruzadas e não deixam que a escova vá por onde seria natural ir? Quando há um impulso que faz com que a cabeça estremeça para trás, a tendência é contrariar a dor e fazer como que se estivéssemos a cambalear de sono para a frente, não deixar que as direcções permaneçam opostas e se soltem em cabelos paralelos. Foi quase isso que o pulso da Jacinta teve de se reagir.

- O meu José?- Sim…- Ora, isso é uma coisa que se sente logo. – Afinal

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Francisco Penim

havia mesmo alguma coisa nos olhos da Rita.- Logo? Logo, como?- Logo que for para ser.- Não estou a perceber. Estás a desconversar…- Oh… sei lá eu desconversar, menina. – Já estava na

idade, a Rita.- Não, sou eu que sei. – A Rita estava a ser irónica.- Não sei, menina. A sério que não sei. Quando a coisa

é para ser, a gente percebe-se logo.- E como é que a coisa faz para ser?- Isso, agora… não sei. Acho que é diferente de pessoa

para pessoa. E ainda mais diferente de homens para as mulheres.

- É diferente para eles? Eles não sentem o mesmo que nós?

Já há para aí uns valentes minutos que o cabelo da Rita não precisava de mais escova e, ainda assim, a Jacinta lá continuava a penteá-la. O hábito faz disto, especialmente depois do caldo entornado. O instinto da empregada estava certo. Tanto assim era que, por momentos, a escova parou e no reflexo do espelho, como se bem devagar, a Jacinta pôs-se com os olhos ao mesmo nível dos da Rita. Lado a lado, as duas a olhar em frente. A caixa de música na mesma posição.

- Olhe-me lá nos olhos, menina. – Foi o que Rita fez. E numa voz quase que murmurada… – O que é que está aí dentro?

Deu duas voltas ao miolo a pensar no que iria dizer

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Primeiro Sendo

sem nunca deixar de fitar a Jacinta no espelho. Duas voltas rápidas daquelas que correm o risco de ficarmos tontos. Ela até repetiu.

- O que é que tem aí dentro?- Nada. Como é possível a Rita ter dito nada? Como é possível

ter-se retraído?- Oh, menina Rita. Eu conheço-a desde que nasceu,

sabe? Não nasci ontem. Se há alguém aqui neste quarto que parece que nasceu ontem, não sou eu de certeza. Eu estou a ver nos seus olhos.

- O que é que vês nos meus olhos?Jacinta voltou a aprumar-se direita, encolheu os

ombros como se fosse um tique e regressou ao pentear dos cabelos da menina como se tivesse agora começado. Os olhos da Rita ergueram-se a acompanhar o movimento da empregada.

- O que é que vês nos meus olhos?E sem olhar para o reflexo no espelho, Jacinta preferiu

semicerrar os olhos, já que tinha voltado ao serviço. Sorriu de um modo que sabia que ela iria reparar.

- Ora… - e fez uma pausa para continuar. - Tudo. Haveria muito ainda por conversar e ainda mais para

estabelecer num entendimento de conselhos pedidos. Tarde e vida fora.

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Francisco Penim

- Anda cá, Martim! – Não era um pedido, ele sabia-o e acomodar a tia não era difícil ainda que o atrasasse mais do que o Alberto pai queria.

Ali de pé na entrada para a cozinha já de tabuleiro em riste. E lá se preparava a tia Mercedes antes do turno do Martim começar. Uma esfregadela das duas mãos no pano que trazia à cintura.

- Que Deus te abençoe e te guarde, a ti. Que Deus te encha de luz e te favoreça, a ti. Que a Glória do Senhor ao iluminar-se no seu rosto se reflicta no teu, em ti. Que Deus te proteja, a ti. Que o Sangue de Jesus e o Espírito Santo te rodeiem e te acompanhem, a ti. – Passava um instante. - Sempre.

E pronto seguia o Martim, devida e propriamente abençoado para atender fregueses no café, enquanto a tia Mercedes nem descansava a mão santa e, com a ajuda da outra, as colocava, ambas, na massa.

Estas poucas palavras autónomas de outras que, naquele momento um pouco mais longe, se escreviam num papel branco do registo diário da Rita. Sozinha no quarto em casa sentada na sua escrevaninha mais habituada a trabalhos de casa. Sem dar demasiada importância à data colocada mais acima na página fresca quando comparada ao valor dos pensamentos que tentavam descrever o que a rapariga tinha sentido debaixo do coreto, no outro dia com ele. Linha após

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Primeiro Sendo

linha com maiores ou menores exactidões, era como estava a encher as páginas. Com muitos adjectivos e muitos verbos. Alguns erros de pontuação. Muitas palavras novas e muitas interjeições. Grandes pintas nos “is” que se aproximavam cada vez mais de corações desenhados e pendurados como se fossem todos os corações… como se fossem todas as pintas… tudo a pensar no Martim. Era debaixo do coreto que ainda se sentia tal o quente do coração misturado com a ilusão de que todas as vezes que haveriam de vir seriam assim. Uma mescla de surpresa de não ter sentido dor com uma certeza de que ele não tinha ficado bem, por culpa dela. Ela não teria feito tudo bem e isso era sua culpa pelo lado da inexperiência. Ela tinha querido tanto quanto ele mas não tinha sabido agradar-lhe o suficiente. Tinha de saber dar a volta mais cedo que tarde. E, ainda assim, o momento íntimo tinha sido outra coisa da que havia sonhado. Especialmente devido às formas inesperadas, aos gemidos que nunca tinha ouvido falar das amigas, às palavras que se diziam e especialmente às que se ouviam. Ao conforto, aos sentidos, ao cheiro dele, ao escorregar de tudo.

A velocidade da caneta deixava transparecer outros enganos, outros pingos de dúvida que alternavam entre a plenitude por se ter dado ao seu amor e a sensação confirmada nos silêncios e especialmente na rapidez com que o Martim se pôs dali pra fora que só validava a convicção de culpa por não ter sabido agradar como tinha ansiado desde sempre.

Como não percebia o que tinha feito de errado, só restava lamentar-se por palavras que ficariam escritas no diário. Sendo mais mentiras ou mais verdades pouco interessava, pois as versões do sucedido na ocasião preparada

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e planeada pelos dois, um final de tarde debaixo do coreto, eram bem mais parecidas do que seria de julgar, ora não partissem da mesma premissa de providenciar felicidade. A Rita só tinha esse intuito. Tal e qual como o Martim. Por isso mesmo, tinha sido perfeito ao mesmo tempo. Ou não?

Ao mesmo tempo que larga as palavras, Rita passa os dedos da mão esquerda pelo fim das costas no espaço em que a blusa azul sobe para descobrir uma ligeira faixa de pele limitada pelo início das calças. O braço para trás num ângulo distraído que segue para cima na direcção das pontas de alguns cabelos que lhe tombam. Puxa-os ao de leve sem tomar razão, torce-os, trá-los mais para o lado, inclina a cabeça a ajudar, enrola as pontas em volta dos dedos, puxa um pouco e magicamente, entre o indicador e polegar, toca na própria pele nas costas e larga. Depois, recomeça sem nunca despegar a caneta que continua a escrever por amor.

Foi no final do jantar que o Francisco comunicou a notícia à mesa com a Laura e a Rita ainda sentadas a terminar a sobremesa.

- Este ano vamos mais cedo para o Algarve. – Fez um sinal para a Jacinta.

- Não vamos na última quinzena de Julho? – Perguntou a Laura.

- Na primeira. Telefonaram-me ontem para o escritório porque apareceu um cliente estrangeiro que queria ficar com

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Primeiro Sendo

o final do mês. – Completou o gesto para que a empregada lhe trouxesse um café cheio.

- Mas isso é daqui a menos de três semanas! – Era uma surpresa para a Rita. Não estava nada a contar com aquilo.

- E tu não lhes disseste que a segunda quinzena é sempre nossa? É assim há mais de dez anos… e se esse tal cliente queria, é porque não quer.

- Eu consegui um bom preço, Laura. – Mas a mulher levantou o sobrolho como se a resposta tivesse sido outra. – O que foi, Rita?

- Não é nada, pai. – Era mentira. - O calor da primeira quinzena não tem nada a ver

com o calor da segunda. – Era quase um desdém da Laura.O Francisco olhou para a mulher que manteve o seu ar

agastado com a antecipação repentina das férias.- O preço da segunda também não tem nada a ver com

o preço da primeira.- Oh… que coisa… - displicente que veio da senhora

da casa.Agora, a Rita tinha ainda menos tempo para contar

tudo ao Martim. Menos tempo não era nada o que ela queria. O rapaz não fazia a mínima ideia que todos os Verões a família Assunção passava quinze dias no Algarve numa vivenda alugada em Vilamoura. Iam sempre de carro porque o pai da Rita gostava de conduzir, apesar do enfado da mãe com o trajecto. Saíam cedo, a maior parte das vezes de madrugada, de modo a que, ainda antes de almoço, o Francisco conseguisse dar um mergulho na praia. Levavam sempre dois carros. Um para a família e um segundo para

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os empregados que invariavelmente faziam a viagem horas antes para quando os senhores chegassem, estivesse tudo já pronto e arrumado.

Era muito para arrumar, pensava a Rita. E o menos tempo não ia dar para tudo. Muito menos agora.

- Mas tínhamos falado em fazer amor no início do mês!... – É verdade que havia um ponto de exclamação assim que o Martim acabou de dizer isto à Rita, mas a intenção era que não tivesse existido e eis que o facto de ter aparecido, assim no final da frase, soou às reticências que depois tiveram lugar. Vai daí, é por isso que lá estavam ainda num colo-de-ar entre os dois, sem saber o que podiam fazer para atenuar o vazio.

- Eu sei… - as reticências de novo com a complacência da Rita que as usava agora. – Mas nós vamos sempre de férias nesta altura. Eu não posso deixar de ir, Martim.

Era a vez dele.- Eu sei…A Rita chegou-se mais para o pé do rapaz, no sofá.

Os ancinhos espreitaram pelo negrume entre as frestas das varetas de metal. Quase que não se via nada debaixo do coreto.

- Eu volto, Martim. – A Rita numa voz sumida que nem todas as ferramentas apanharam.

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- Não vás… - impossível não se ouvirem as reticências.- Não digas isso. Eu tenho de ir. – Com um sorriso

deixado a meio.- Não podes dizer que tens de estudar para os exames?

– Era uma tentativa. – Não são eles que estão sempre a querer que tenhas boas notas? É uma boa razão. Tenho a certeza que iam aceitar!

- Eu já vou estudar lá no Algarve, Martim. Vou fazer a segunda chamada no final de Julho.

O final de Julho tinha acabado de ficar bem mais longe. Como é que ele ia conseguir viver sem a ter por perto durante duas semanas? Como?

Depois do beijo, naquela noite no coreto, tinha sido a partir de dentro que o Martim se sentia diferente. Nada o tinha preparado para tal por muito que o rapaz o tivesse querido. Por muito que tivesse pensado em como seria, não havia nada que lhe tivesse explicado como passaria a sentir-se. Mas agora perante a falta iminente da Rita, o que lhe vinha de dentro era um vento que a soprava para longe, uma distância que aí se prolongava com data marcada e anunciada por ela própria.

E não era isso apenas.Depois daquele fim de tarde debaixo do coreto, onde

definitivamente as proporções de tudo o que sentia pela Rita tinham mudado e, ao mesmo tempo, ainda se percebia a frustração que o levou a correr dali pra fora sem olhar ao comboio rápido. Apesar dos sinais contrários, era o carinho que se levantava feito paz interior. Como se a totalidade das coisas perdesse escala perante tamanho coração, grandeza

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feita vida, desejo a transformar-se nela.A Rita ia-se embora. Faltavam duas semanas e tal.- Eu volto, Martim. Tu sabes que eu volto.- Eu sei.- Não vais ser o único a morrer de saudades, sabes

disso?- Vais ter saudades minhas?- Claro que sim, tonto.- Claro porquê?- Porque estás aqui… – E com a mão esquerda Rita

pegou na mão do Martim e colocou-a por cima do seu peito na direcção do coração. – Sentes?

É claro que o Martim percebeu o alcance da pergunta mas era mais forte do que ele. A forma do seio da Rita, ainda que estivesse um pouco mais abaixo das duas mãos sobre o peito da rapariga, era perceptível ao tacto no rebordo da palma da mão enquanto fazia um esforço para se concentrar na batida do coração dela que mais acima sentia. É claro que o sincopado ritmo do coração dela era muito mais determinante. Era o coração a dizer que o amor que tinha por ele não cabia em ambas as mãos que se sobrepunham. Antes escapava por cada fenda entre dedos. Fugia de raspão da carne que o segurava para ficar suspenso ao nível do olhar dos dois.

A resposta foi dada com um beijo. De novo, no mesmo sofá, debaixo do coreto.

Se se pudessem ver os dois juntos, seja bem de perto no meio do brando costume de estarem sentados no sofá, seja

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mais de longe por entre o vidro partido de uma das janelas do lado, seja pelo espreitanço pela fechadura da porta, as lágrimas do canto do olho esquerdo do Martim quase que chapinhavam pela proximidade das pestanas da Rita. Eram lágrimas feitas só de água. E não é que o rio, mesmo ali à beira, também só de água era feito? Que coisa tão escorreita de coincidências, esta.

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Vocabulário

Chuva em Julho parecia pouco provável mas o tempo tem destes reparos e sempre que a gente se acomoda ao seu estado que se aprende na escola, lá ele amanhece com um travo molhado que nem é orvalho nem é tempestade. É só água que tomba das nuvens. Até em Julho se a chuva quer, a chuva cai.

Vila Franca de Xira não é diferente das outras terras no que diz respeito à chuva quando ela vem por aí abaixo. O casario bem pode estar a contar com sol a durar o dia quase inteiro que quando é para chover, é para molhar todos. Até os tolos, diz a gente.

Antes de começar mais um dia no café, lá se atravessava o Martim para o outro lado da linha do comboio a percorrer os caminhos que mais lhe lembravam a Rita. Os carreiros de gravilha por entre os plátanos a ficarem de folha molhada que pinga. A chegada da vista do rio a descer. As pedras que esperavam a sua vez de capar a água. O cheiro da relva como se tivessem moldados e pisados com os corpos

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dos dois ainda deitados. Os degraus pisados do coreto. Mas especialmente a porta verde mais abaixo. Quando mais falta a rapariga lhe fazia, mais visitas o jardim recebia do Martim.

O andar dele respirava ao ritmo do nome da Rita. A soletrar as duas sílabas à medida que dava passos. A marcar o bater do coração a murmurar o “ri”, a sussurrar o “ta”. Um sorriso a acompanhar a onda no final do nome como se tudo se processasse de uma melodia sincopada a calcar o chão. E funcionava sempre às mil maravilhas. Mais devagar ou mais depressa fazia sempre sentido o nome da Rita quando eram os lábios do Martim que se apercebiam do vento que as palavras empurravam para fora da boca do rapaz. Um respirar que se alongava no tempo à medida que passava pelos sítios dela. Os sítios com ela quando só ele estava. Era tudo um truque que resultava em combinação com os dias que escorriam mais velozes, apesar de se dar por eles.

A chuva, aqui, nem era chamada a intervir sob pena de meter a pata na poça, perita nisso mesmo.

Ainda de manhã, mesmo que tivesse pouco tempo, o Martim marcava todos passeios que tinha dado com ela, como se ao andar pelo jardim, ela estivesse mais presente dentro dele. Como se ao passear por ali, pudesse vê-la com ele, lado a lado. A Rita podia estar no Algarve com os pais, mas diariamente dava um salto ao jardim para, com olhos de ver, relembrar que era amor que ambos guardavam.

- Se eu fechar os olhos, agora, consigo ver-te. – Era impossível resistir a um sorriso.

E quando estava na hora, voltava para trás, fizesse chuva ou sol.

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Neste dia, chovia aquela chuva miudinha. Não o suficiente para encharcar, só para manchar aqui e ali. Já tinha ido até à margem, voltou costas ao rio, encimou-se até ao coreto, sentou-se uns segundos no corrimão que dava para a porta, olhou de cima e desceu os degraus. Passou uma mão pela porta fechada. Sentiu a madeira feita de sulcos.

Correu em direcção ao cais de embarque. Passou por umas pessoas que esperavam pelo comboio. O café estava quase a precisar dele. Desceu a rampa e olhou para os dois lados da linha antes de a atravessar.

À frente, uma senhora numa cadeira de rodas tinha acabado de fazer modos de avançar como se fosse atravessar a linha. E quando o Martim lhe passou pela direita, ela falou.

- Olha! Podes-me ajudar a atravessar?- Claro. – Podia lá o Martim não ajudar a senhora. –

Vai apanhar o das 8?- É só até ao cais do outro lado.Ainda que a chuva não estivesse a cair com mais

força, o que era um facto é que não tinha parado, à medida que o Martim empurrava a cadeira de rodas a atravessar a linha. Ele reparou que a senhora era daquelas que punha uma cara que dizia que as outras pessoas tinham a obrigação de ajudar e mais nada. Tinha-se visto pela resposta dela. Ele conhecia-a de vista. Era, aliás, a única pessoa de Vila Franca que o Martim conhecia e que usava cadeirinha de rodas.

Já era tarde. Tinha de se despachar. Por isso, assim que chegou ao topo da subida, parou preparado para dar meia volta.

- ‘Tá bem aqui?

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- Sim, sim…Virou-se depressa para começar a descer a rampa. Ao

longe reparou no comboio no sentido oposto, ao fundo no início do cais contrário. Em vez de esperar, deu dois passos de corrida, escorregou, perdeu o equilíbrio e estatelou-se na linha de cá. O queixo foi o primeiro a aterrar. Doeu que se fartou.

O comboio, ao aproximar-se com velocidade, soltou um silvo. Os passageiros que esperavam o comboio para a Azambuja, viraram-se ao mesmo tempo para o Martim que estava no chão. Todos sustiveram dentro o ar possível. Que acidente estaria prestes a acontecer?

De um instante para o outro, o Martim levantou-se prontamente e correu a curta distância que faltava para transpor os metros suficientes para chegar ao cais do outro lado.

O comboio passou pela gare a toda a velocidade voltando a reclamar com o mesmo apito de há bocado. Foi aí que o Martim percebeu que era o rápido. Passou vento com a deslocação de ar. Os cabelos do rapaz levantaram-se emaranhados.

- Foda-se! – Foi mais para dentro do que para fora mas o suficiente para que tivesse alguma noção toldada do que tinha acontecido. E sem se ausentar do que era importante, fez duas coisas essenciais: retomou a corrida rumo ao café e voltou ao ritmo interno das duas sílabas.

- Ri… ta… - talvez numa cadência um pouco mais acelerada pois sabia que atrasado ao trabalho é que não podia chegar.

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Não fez mais nada. Tal como não se tinha apercebido do perigo.

Do outro lado do cais, a tal senhora que era a única pessoa de Vila Franca de Xira a precisar de cadeirinha de rodas de modo a ter alguma autonomia, com as duas mãos crispadas nas guias das rodas, não tirou os olhos do miúdo desde que se apercebeu da queda que só podia ter doído como o raio. Dir-se-ia que era até a primeira vez que olhara para ele, tal a desfaçatez com que vivia a vida a esperar que os outros tivessem sempre a obrigação de a ajudar. Pensou mesmo o que teria passado pela cabeça dele para atravessar a correr a linha do comboio no exacto momento em que vinha a passar o rápido do outro lado. Que desmiolado!

De igual modo devem ter reagido as pessoas que estavam na gare. Um ou outro terá soltado um ai que mal se ouviu, lançado a mão ao coração, invocado o nome de Deus, pedido mais um copo de vinho na taberna assim que pôde. Que sorte que ele teve!

Depois, a caminhar pelas ruas meio afogueado, o Martim ia focado nas suas duas coisas importantes. O episódio da mulher da cadeira de rodas desse dia passaria a estar num daqueles cantos da memória que falham a verdadeira dimensão do que acontece, sem remexer nem causar embaraço por falta de recordação, sem remorsos nem arrependimentos, pois no momento em que foi vivido não se registara o que as restantes testemunhas lembrariam e contariam todas nesse mesmo dia quando chegassem a suas casas. Todas sem excepção repetiriam o que tinham visto quando um miúdo fintou a morte por um triz estatelado bem no meio da linha do comboio, levantou-se e seguiu como

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se nada fosse com ele. E logo num dia em que estava a chover aquela chuva de molhar parvos. Parvo era ele! Nem de propósito caía a chuva que o tinha molhado perante o adjectivo. Escapou de morte certa, não pensou duas vezes e seguiu o seu caminho. O comboio bem que apitou.

A Rita nunca soube de nada, nem podia adivinhar. Quando chegou ao café, subiu primeiro até casa

para pegar num caderno, tal e qual um caderno da escola, onde escrevia frases que mais tarde teriam o seu propósito. As frases e o caderno só teriam de esperar pelo momento apropriado. As palavras que colocava nas páginas esperavam só pela Rita. Mas mais à frente. Não já.

Os dias de Verão sem a Rita eram os mais difíceis mas lá se finavam. E quando estava para chegar a certeza que debaixo do coreto se continuariam a amar, não parava de se aquecer a convicção de que o amor viria ainda mais reforçado. Era isso que o Martim contava, baixinho e sempre que podia, à porta da qual tinha a chave guardada no bolso. Encostava-se a ela e quando ninguém no jardim estava a olhar, virava-se de lado e segredava coisas que ficavam entre ele e a madeira. Na verdade não eram bem segredos ou novidades. Não eram pedidos nem promessas. Não eram nadas que ela não soubesse, se por acaso estivesse ali para ouvir. Eram absolutos amores-perfeitos… quase como as flores mas em forma de suspiros que ficavam por ali presos

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a pairar no ar. E assim como quem ateia uma brasa das mais frágeis de todas, o sopro vinha com palavras em companhia.

- Sou teu.- Estás quase a chegar.- Preciso de te beijar.- Quero ficar contigo para sempre.- Preciso de ouvir que me amas.- És tudo para mim.- Sou completamente apaixonado por ti, Rita.- Rita…O nome dela era talvez o que mais dissesse. Lá

estava… a história do ritmo, do respirar compassado, do sempre constante. Tudo fazia sentido mesmo quando ela estava longe de férias e nas histórias de amor há obstáculos permanentes antes de tudo acabar em bem. Nos filmes era assim, porque é que seria diferente na vida real?

E lá voltava o Martim de novo.- Pensa em mim.- Conta os dias que faltam.- Fazes-me muito feliz.- Amo-te loucamente.- Rita…Que rico vocabulário tinha esta porta debaixo do

coreto!

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Nas vindas de carro do Algarve para cima, a Rita era capaz de contar os quilómetros que faltavam para alcançar os braços do Martim. Olhava para os marcos da estrada e, um a um, ia diminuindo a distância que sobrava. Até o caminho fazia a saudade crescer, se tal fosse possível. E quando o sono do embalar monótono do automóvel ganhava às suas contas de cabeça, havia sempre a recompensa de quando entreabrisse os olhos, e visse, de novo, os sinais que a avisavam de quantos quilómetros faltavam percorrer, lá estaria feita a conta que tinha subtraído espaço até estar de novo a atravessar a ponte de metal com o jardim mais ao fundo à esquerda. E aí estaria mais perto dele.

Nesse regresso, porém, a conversa da mãe direccionou-se para o futuro brilhante na faculdade. Com camadas do que era esperado dela, dos sonhos que não eram da Rita mas sim da mãe, com a anuência do pai. Frases feitas de expectativas, de desejos alheios, filmes de uma vida que lhe pareciam de outra pessoa que não dela. Perspectivas de uma carreira, de um rumo escolhido, de fazer jus ao nome de família feito de linhagem segura.

- E ainda bem que não tens tempo para namoricos. Isso só quando fores mais senhorinha.

Os silêncios no banco de trás do carro sempre que a conversa batia de frente, sem saber bem o que dizer mas com a percepção de não se poder comprometer perante os ouvidos dos pais. O silêncio de respostas era melhor do que arriscar um vislumbre de uma maior verdade que a enchia de uma vã vontade de ter coragem. Por vezes, a boca abria-se em forma de resposta mas era nesse momento que a supressão de tudo o que recebia entrava em acção para

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impedir males maiores se por ventura dissesse algo que destoasse da norma de família. E ao evitar falar, calava uma grande parte do que ela própria sentia ser a real Rita. A que sorria perante o beijo dele. Do Martim. Ao calar-se perante as ideias que vinham dos bancos da frente estabelecia uma clivagem entre o que para si era verdadeiro e o que para a mãe era esperado como certo. Como se dentro do carro a viajar do Algarve para Vila Franca de Xira estivessem dois mundos separados pelos assentos de cabedal que o dividiam ao meio. O pai a conduzir, mãos no volante, olhar no caminho, controlando os detalhes, dono de um destino comum perante as suas decisões de comando. A mãe ao lado como se a navegação fosse automática, sabendo que o lugar era vitalício, assegurando o cumprimento de um plano delineado, traçado e certo. Dos assentos para trás a Rita sem controlo de velocidade a tentar correr mais depressa que a marcha do automóvel, de olhos fechados feita sonho, calando o que ouvia da frente, com prioridades assumidas para dentro, sem levantar a lebre, a mal poder esperar para fechar os braços no pescoço do rapaz.

- Assim que chegarmos quero que vejas uma coisa que tenho para ti, Rita.

- Sim, mãe.Pelo meio era o que conseguia responder. O suficiente

para a mãe ter uma resposta e o bastante para poder prosseguir com o desejo de chegar mais depressa, poder desatar a correr para o jardim à procura da próxima vez para dizer ao Martim que o amava e, talvez, admitir-lhe que em sonhos só pensava em loucuras como em ter gémeos com ele.

Não era nada normal, isto.

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Entrelaçados no abraço depois de mais um pedaço de férias afastados, quando vinham à superfície para tomar ar, os olhares cruzavam-se para se encher de nova vontade de seguir em mais um beijo que fosse enquanto houvesse tempo para isso e ninguém estivesse a ver.

- Ontem tive um sonho – foi a Rita que disse.O Martim limpou um pouco de saliva do lado da boca

que saía a destempo. - Então? – Como se pedisse para continuar.- Sonhei que era mais velha. Que estávamos casados. O rapaz sorriu porque também já tinha sonhado isso

muitas vezes.Mas a Rita continuava sem filtro e seguiu a contar o

sonho.- E que tinha tido gémeos.- Era isso que gostavas?E por muito que ela esperasse demasiado das coisas,

recompôs-se e fez sair da boca as palavras que ecoariam na memória do Martim.

- Eu quero gémeos contigo.Não era nada normal, isto.

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O destino se encarrega

Um ano deste amor passa num ápice pois descanso não há. Fica tudo cheio de marcas que não saem. Das boas e das más, que isto de se amar às escondidas tem muito que se lhe diga ao próprio do coração que ouvidos, não tem, só dentes que abocanham tudo o que podem e só mais não fazem porque o respeitinho vem sempre ao de cima no caso do Martim.

Ultima-se o Verão e Setembro chega feito ventania enquanto as aulas dizem que começam mas não o fazem. Sem mais férias passadas no Algarve, os amores feitos têm outras horas mas os mesmos cuidados. Nunca o espaço de arrumos do Feijão-verde tinha visto tanto calor, ali debaixo do coreto, no meio dos utensílios de jardinagem que se ruborizavam cada vez menos com a passagem dos momentos em que os dois apaixonados ali se encontravam, no meio do escuro se amavam, entre portas e travessas, regadores e mangueiras, botas sujas de lama e sacos de estrume vazios. O que tinha principiado torto, numa tarde combinada com

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afinco e ingenuidade debaixo do coreto onde se encontraram, tornar-se-ia no refúgio despercebido do resto da vila onde a vida se desenrolava como habitualmente há medida que lá dentro, depois daquela porta verde feita de lascas de madeira, a descoberta de ambos deixava as suas marcas de água feitas de suor e saliva. Marcas só de água.

Ainda antes da Rita voltar aos vai e vens para a capital, eis que surge a ideia do morse. Que bela ideia, esta!

- Rita, é muito fácil. Repara. – Havia um verdadeiro entusiasmo na voz dele que a Rita agarrava só por ele, não pelo conteúdo do que aí vinha e que até seria bem mais importante que ela imaginava. – Só preciso de te ensinar duas letras: o “L” e o “Y”.

Passaram uns instantes. Foram poucos.- Love you?- Sim… Love you! Em morse é ponto, traço, ponto,

ponto, pausa, traço, ponto, traço, traço. – E ia desenhando traços e pontos na folha de papel que ambos tinham à frente.

- Mas não é muito mais fácil escrever “LY”?- É… mas o giro da coisa é que podemos adaptar os

pontos e os traços como quisermos. Por exemplo: se tiveres na janela do teu quarto e eu tiver cá fora com um isqueiro na mão, a duração da chama é transformada em pontos e traços. Uma chama curta é um ponto. Uma chama maior é um traço.

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Primeiro Sendo

‘Tás a ver? – O Martim não fumava mas passaria a andar de isqueiro no bolso se fosse preciso.

- Não precisamos de estar perto um do outro, sequer!- Exacto! E ninguém vai desconfiar. É impossível! É

só uma chama.Mesmo que a Rita já tivesse percebido o plano morse,

valia a pena pedir mais exemplos.- E mais…- Mais? Podemos assobiar. Olha, se eu assobiar

assim… - e fez uma sequência de silvos a acompanhar o ritmo certo, a tentar pensar depressa e não falhar nas notas mais demoradas e nas mais curtas.

A resposta da Rita foi na medida certa com o assobio que completou o do Martim.

- É isso! – Foi com um sorriso que o Martim o disse para com ele arrancar um beijo nos lábios da Rita.

- Podemos estar rodeados de pessoas e só nós vamos saber que estamos a falar e muito menos eles a perceberem o que estamos a dizer. Ninguém vai perceber. Só nós.

- Só tu, Martim.Era uma conversa que se completava e era

completamente diferente. Mas isso já todos sabem.

Outubro veio com chuva neste ano e fartou-se de molhar o cais do comboio que todos os dias andava, de cá para lá, com a Rita lá dentro, mesmo que o Martim nunca

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mais tivesse escorregado na rampa. Sempre que via a tipa da cadeira de rodas fingia-se distraído para que outro qualquer a ajudasse. Pudera! E, já agora, pelas contas do Martim, só em Outubro tinham feito amor por três vezes. Apontou todas as datas no caderno onde escrevia amiúde e completou com mais letras escritas com o mesmo amor.

Chegou o Verão de São Martinho e o tempo ficou mais cinzento e frio. Os Assunção continuavam a vir ao café essencialmente aos domingos mesmo que a esplanada não estivesse posta. Ficavam menos tempo, mas dava para ver a Rita. Nessas alturas, era o Martim a pôr garrafas e copos enfileirados no balcão a fazer de pontos e traços e a Rita a mirar tudo da mesa onde se ficava com o pai e a mãe. Que belo plano!

Em Dezembro, o Rafael foi com os avós para a terra e já não voltou. O Feijão-verde partiu um braço e andou com ele ao peito umas semanas valentes com um lenço feito de sarapilheira que era motivo de troça do resto da tropa. A Rita fez a passagem de ano na casa de uns primos em Lisboa mas voltou logo no novo ano.

Janeiro, Fevereiro e Março custaram mais a passar. Fevereiro teve mais um dia neste ano. Ela parecia que andava triste e não lhe dizia porquê. O Martim ora insistia, ora deixava a marinar. Ela mais calada ainda que os abraços e os beijos fossem testemunhas de amor que não sangravam dúvida e que seguia a ser consumado debaixo do coreto.

Abril, Maio e Junho fugiram a toda a mecha já que eram meses que adivinhavam o Verão mas que passavam por duas datas que marcavam os dois. O Martim fez 18

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Primeiro Sendo

anos primeiro e a Rita ofereceu-lhe um relógio de pulso que rapidamente inventou a quem lhe perguntava que tinha sido ele a comprar depois de juntar dinheiro. O irmão Daniel não acreditou e sempre ficou com uma pulga atrás da orelha desde o primeiro momento em que o “miúdo” lhe tinha impingido que tinha sido ele a poupar a massa. Depois foram os 18 anos dela passados em Paris, longe dele, mais uma vez, em passeios das compras com a mãe, nos monumentos com o pai, na distância insuportável, nas desculpas de sair por uns instantes do hotel para entrar a correr numa cabine telefónica, meter uns francos na ranhura em troca de um telefone que tocaria uma só vez no café do Araújo e atendido como se a vida dependesse disso na hora marcada e bem combinada só para mais uma troca de palavras de amor. Quando a Rita voltou a Vila Franca de Xira, já com os 18 anos feitos em França, foi a vez do Martim oferecer-lhe todo o coração que tinha.

- O que é? – Perguntou a Rita de olhos fechados.- É para ti – e pôs-lhe, nas mãos estendidas, um

caderno.Ela abriu os olhos devagar ao sentir o objecto nos seus

dedos. Um caderno azul com argolas brancas de lado. Um simples caderno da escola era o que parecia ser. Abriu-o. Na primeira folha em letras grandes o nome da Rita. Mais abaixo a frase: “O meu coração é teu”. E ainda mais abaixo o nome dele assinado.

Era tudo menos um caderno. Era outra coisa bem diferente.

- Tive esta ideia há um ano. E foi esse tempo que

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demorou a escrever. – Sentia-se acanhado a dizer isto enquanto a Rita ia tentando ler o que via e ouvir o rapaz ao mesmo tempo. De data em data, nomeadas no topo de cada entrada, as folhas enchiam-se de letras e palavras saídas dele só para ela como se fossem pairando no ar entre os olhos dela e as folhas brancas cheias de vontade de serem preenchidas. Parou logo no topo da página que tinha a data do dia seguinte à dos seus anos, há um ano.

Assim dizia, perante o que a rapariga conseguiu ler para já:

“Tens nas tuas mãos o meu coração, Rita. Todos os dias é isso que sinto e, por isso, aqui te escrevo o meu amor dia a dia. Vou fazê-lo durante um ano para, no fim, te entregar de presente por inteiro, o caderno e o meu coração. Por escrito e por amor. Amanhã há mais. Hoje foi só para começar a dizer qualquer coisa. LY”

- Escreveste isto tudo para mim, durante um ano? – E folheou o caderno como quem sente atravessar cada dia por entre os dedos.

- É…Os olhos da Rita foram comprovando que era

assim mesmo como o Martim estava a dizer. De dia para dia, o caderno enchia-se de mais e maior amor à medida da passagem das páginas. Ora a azul, ora a preto. Sempre a mesma letra – a dele – sempre o mesmo sentimento – o deles. O Martim conseguiu esconder de todos o que escrito tinha.

- Demorou um ano… mas consegui. É para ti… espero que gostes. – Foi a sorrir que o disse sabendo que era

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Primeiro Sendo

impossível que a Rita não gostasse. - É o máximo!- A sério?- A sério, Martim. Nem sei o que dizer.E verificou a data de ontem na última página do

caderno para depois voltar à primeira entrada de tudo e escolher os olhos dele como destino dos seus.

- Agora tenho o teu coração, Martim.- Só agora?- Agora, já não o largo. – Num enorme sorriso,

procurou os lábios do Martim que retribuiu com um beijo apaixonado. O caderno apertado nas costas do rapaz pelos braços da Rita, que só não o esmagavam em demasia porque quando o coração se entrega, o destino se encarrega.

No dia antes tinha ido à drogaria comprar pilhas e fita isoladora. Nada podia faltar. A lanterna grande que estava na arrecadação do café, já a tinha experimentado com a mira de uma espingarda de plástico esquecida que tinha para lá aos tombos e que dava de certeza jeito para melhor apontar ao carro quando fosse a atravessar a ponte. Depois, havia a questão do tempo. Já tinha feito o caminho de bicicleta desde a quinta da Rita até à ponte várias vezes. Já tinha dado o desconto que achava que lhe dava um atraso mesmo que se esforçasse a pedalar à ganância. Daria tudo certo.

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Era Julho, logo no início do mês, e a Rita e os pais lá iam para o Algarve de carro como era habitual todos os Verões. A diferença deste é que o Martim lhe tinha prometido uma surpresa que ela não fazia ideia do que seria. Só sabia que tinha de olhar para o jardim quando fosse a atravessar a ponte. Era isso que ia fazer porque tinha prometido ao Martim. E mal podia esperar pela surpresa mesmo que não soubesse o que era.

Ainda não eram seis da manhã e já o Martim estava a abrir a arrecadação do Alberto pai. Entrou e, às apalpadelas, foi em busca da lanterna grande que, uns dias antes, já tinha deixado em cima de umas caixas de fruta que agora tinham dentro umas sacas de cimento. Nos bolsos das calças, as pilhas, a fita isoladora e a mira da espingarda. Pegou na lanterna e voltou a sair pela porta. Fechou-a com cuidado e largou a correr pelo caminho até chegar à estrada em direcção à estação. Numa mão a lanterna a balouçar.

Havia muito poucas pessoas na rua. Era muito cedo. Só agora começava a clarear.

O rapaz atravessou a linha e passou para o jardim sempre a correr. Ao chegar à margem, encostou-se a um pilar e olhou para a ponte ao longe ainda antes do sol nascer mesmo.

- Aqui deve dar.Pôs-se de joelhos e pousou a lanterna no chão. Tirou

a fita isoladora do bolso e as pilhas que rapidamente meteu na lanterna. Experimentou pôr a mira em cima da lanterna e apontou-a para a ponte enquanto espreitava. Semicerrou o olho direito e deitou a língua de fora.

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Primeiro Sendo

- Na mouche. – Foi o que disse baixinho quando viu que ia acertar na ponte.

Arrancou um pedaço de fita e prendeu a mira à lanterna. Ligou e desligou a luz fortalecida com as novas baterias. Agora, era só esperar uns minutos. A sequência nada tinha que enganar: ponto, traço, ponto, ponto, uma pausa, traço, ponto, traço, traço, outra pausa maior e, de novo, ponto, traço, ponto, ponto, pausa, traço, ponto, traço, traço. Duas letras.

A alguns quilómetros de distância, já o Francisco Assunção tinha tudo arrumado e bem acondicionado no seu Mercedes para fazer face à viagem, bem a tempo de chegar e dar o seu primeiro mergulho do ano, como gostava de fazer sempre no Verão. Malas e sacos na bagageira, a Laura aprimorada ao seu lado, a Rita lá sentada atrás. Saíram de casa à hora marcada rumo a Sul.

No jardim, o Martim ia treinando a pontaria com outros carros ao calcular que nenhum deles era o da Rita. Estava certo. Era um bom plano com uma rica surpresa!

No banco de trás, a Rita ia espreitando pelo meio negrume do início do dia, para lá do vidro traseiro do lado direito, à medida que o pai os ia metendo a caminho do Algarve. A Rita à espreita pela surpresa do Martim.

Assim que o carro do pai da Rita começou a cruzar a margem do rio para o outro lado, já o Martim tinha enchido o peito de ar de modo a não hesitar com os pontos e os traços feitos de luz. A lanterna a acompanhar a velocidade constante do automóvel. A luz, aos soluços certos e compassados num recado de amor só para a Rita. Quais vidros mais a menina

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dos seus reflexos que foram sendo atingidos em cheio feitos alvos e isto apesar das extremas dificuldades da operação.

- Love you. Amo-te, Rita! – Assim baixinho só para ele ouvir sozinho no jardim.

A Rita topou tudo vindo da margem, às mãos do Martim, só para os seus olhos e à medida que o carro chegou-se progressivamente mais perto de umas novas férias de Verão. O desejo de regresso dos dois só era fortalecido por mais amor partilhado. Ao mesmo tempo reforçado pelo acto feito surpresa e desdenhado pela separação forçada da educação da Rita e da incapacidade do Martim em fazer ou esperar por mais. Todas as vezes que o rapaz quis tê-la de volta eram interrompidas pela inabilidade atroz de um acatamento que ele sentia que tinha de aplicar. Era por amor que fazia o que fazia. O amor pela Rita que norteava todos os planos, todas as vontades, todos os dias em todo o seu coração.

Dentro do carro, já com os vidros todos aos guinchos a apertarem-se contra as borrachas dos frisos, a Rita sorriu perante o amor e lembrou-se de, também ela, dizer bem baixinho para os pais não ouvirem.

- Só tu, Martim. Só tu.

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Pedra lançada

As quatro semanas de Julho eram um tormento com ela longe. Uma espécie de indiferença no sentir e fazer de tudo o que o Martim ia tentando ultrapassar com um assobio de disfarce, fosse a trabalhar no café a ter de ouvir o Alberto pai a gritar com ele, sempre que passava pelo jardim, quando tentava adormecer ou naqueles primeiros instantes depois de acordar. O calor só tornava tudo mais difícil apesar dos mergulhos no rio com os amigos acalmarem o suor que pegava a pele à roupa e, isto, mesmo que não ajudassem na cabeça que estava sempre a centenas de quilómetros mais a sul, perto dela. O Verão era um mau ensinamento de como o Martim não queria viver mesmo sabendo que assim era. Era como se fosse o que teria de suportar com pouca luz.

A luz do candeeiro ao fundo da rua tremelicou com mau contacto ao ligar-se porque era hora.

Desde que o Alberto Manuel tinha partido para a Suíça que o trabalho a mais no café tinha sobrado para ele e para o Daniel. Havia também mais mesas na esplanada e clientes

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que ficavam até mais tarde. Alguns deles para lá de tocados. Durante o dia havia sempre umas horas com menos

movimento e quando o pai se recolhia para a sesta, lá era oferecido aos ouvidos algum descanso mas depois, à noite, voltava a ânsia de tudo levar aos fregueses, de todos atender, sem deixar escapar os trocos de memória e assegurar o asseio dos tampos das mesas e dos assentos das cadeiras de metal.

- São três cafés para o Dr.Borges. Dois, são cheios.O Dr.Borges era mais um daqueles tipos que era

próximo do presidente da câmara e o que o Alberto pai queria dizer com esta ordem para o Martim, que ainda estava a limpar mesas por perto do balcão, é que a garrafa de aguardente tinha que vir na bandeja para terminar de encher as chávenas à frente do doutor.

Os três homens na mesa onde, muitas vezes, a Rita e os pais se sentavam. O Alberto pai em pé a conversar sobre bola.

- Quinze pontos de avanço não é brincadeira, doutor? – Mandou o Alberto pai a ver se pegava.

- Mas este ano quem foi à final dos campeões foi o Benfica, oh Alberto! – Foi a resposta do Dr. Borges bem-disposto mas à espera do café cheio.

- ‘Tá certo, mas perderam mais uma vez. Podem agradecer ao Toni.

- Oh, então… tínhamos o melhor lesionado… pode ser vesgo mas é dos melhores. – E todos se riram ali à volta da mesa enquanto acendiam cigarros. Todos.

Martim chegou com os cafés com o cheirinho que seria vertido não tardava nada. Aquela conversa interessava-o

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muito pouco. Nem ligou ao que estava a ser dito entre o Alberto pai e os homens sentados. Quando terminou de os servir, o pai olhou-o de lado e deu-lhe uma palmada no ombro como que a dizer para se ir embora que a conversa ia continuar para a bola.

Julho passava muito devagar de igual modo para quem gostasse de futebol e para quem não gostasse. Era tudo igual e chato.

No Algarve, as quatro semanas deste mês vagaroso foram muito piores do que o costume. Já o tinham sido há um ano mas este era um mês que estava a ser mais palavroso de tantas promessas, tantas palavras dadas por escrito quando retiradas do contexto daquele caderno de escola que, de aprendizagem, muito tinha para demonstrar. Páginas a perder de leitura, não de vista, linhas que tomavam formas de tantas palavras boas das quais eram compostas, letras escolhidas no momento em que foram riscadas no papel como se estivessem a ser soltas em sussurros.

O ritual da Rita implicava condensar a escrita que tinha demorado um ano a completar, num mês de leitura durante a noite às escondidas dos pais, debaixo dos lençóis à míngua por falta do Martim. Como se a descodificação do que os seus olhos liam, disparasse bem rápido até atingir o coração e acelerasse o respirar. Só o calor atrapalhava. Sendo Verão, estando no Algarve, escondendo a vontade debaixo de um

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lençol e percebendo todo o amor. Um calor insuportável.

E, depois, aquelas palavras dadas:“Bolas, Rita… não me sais da cabeça, não me sais das

mãos, não me sais dos dedos. Só consigo pensar na próxima vez que nos vamos voltar a ver para te poder

beijar. E sei que te vou beijar para o resto da minha vida. É isso que quero e sei que é isso que tu queres também. Para a próxima não te vou largar e se for preciso gritar a todos que te amo, eu grito! Mas grito mesmo. Grito QUE TE AMO em letras grandes como fiz agora. Amo-te para sempre, Rita. O que tenho dentro de mim é para sempre.

LY”

De olhos fechados, depois de ler o que tinha sido escrito algures no mês de Outubro do ano passado, Rita encheu-se de coragem vã para com os dedos repetir o L e o Y na superfície da mesma folha, como se os estivesse a escrever em segredo para o Martim perceber. Mesmo que ele estivesse agora em Vila Franca e ela, no Algarve, a passar férias com os pais como em todos os Verões.

Este Julho, afinal, era mais difícil apesar de, por momentos, mais fácil à pala do caderno do amor.

Adormecer no meio de tanta sofreguidão é só para os mais bem preparados e a Rita começava a perceber que se tinha de amanhar com o muito que não desejava, mas que sabia que não tinha força para fazer outra coisa, ao não ceder a imposições da educação que nunca pediu. Já se tinha começado a preparar desde talvez o início do ano sem saber

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como fazer com o Martim. Era tudo tão difícil.

Em Vila Franca e Xira, os três rapazes desciam a calçada com casas de um lado e o muro branco do cemitério do outro. Os ciprestes clássicos que aqui não seriam mais de vinte, talvez, espaçados por entre as campas. Bem lá ao fundo, o rio e um dos arcos da ponte mais chegado aos telhados das casas baixas, assim de quem olhasse.

À medida que mais se descia a rua, mais o muro se alevantava como se fosse ficando mais de topo. E notavam-se mais as cruzes do alto das paredes meio esfareladas, sendo que ninguém precisava que estivessem ali para se reparar que havia mortos enterrados do outro lado. As cruzes adornavam o cimo do muro como se colocadas por um arquitecto que não queria que ninguém tivesse dúvidas sobre que tipo de flores fosse por ali encontrado.

Do lado contrário alguma roupa estendida esbracejava lentamente com o pouco vento trazido pela lezíria. Mais abaixo, algumas janelas da altura dos tornozelos dos rapazes com os estores todos corridos ou não fosse uma pedra bem direccionada cometer a transgressão de partir um vidro. E não era o melhor dos sítios, à frente do cemitério, para se falhar por um pecado.

Logo a meio da descida, o muro enfeitava-se com um desenho de mosaico feito tijolo que deixava passar o ar, da rua para a paisagem do campario. Era o tal arquitecto a fazer

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das suas e sem motivo aparente.Findo o muro lá apareciam os portões do cemitério

encimados por mais uma cruz e aí do lado esquerdo, um pequeno pátio com empedrado em algumas partes, porções de relva e terra dura noutras, na parte de trás de duas casas. A que tinha uns degraus a subir era a do Jaime prestes a juntar-se aos outros que tinham descido a rua desde lá de cima sem abrir o bico.

Enquanto o Martim, o Raúl e o Canina ficaram à espera que o Jaime saísse, o Raúl virou-se para a entrada do cemitério. Benzeu-se.

O Canina viu o gesto e deu um caldo no miúdo. Não o suficiente para o magoar. Estava só a “entrar” com ele.

- Ai!- Ai o quê? Porque é que fith-este ith-o?- Isso pergunto-te eu, pá. ‘Tás-te a benzer porquê? Pós

mortos?-Oh…- Achas que eles vêem cá pra fora? Mesmo debaixo da

terra? És mesmo taralhouco, tu.- A tua prima.O Martim não ligou a nada da discussão, até porque

era idiota. Quando o Jaime fechou a porta de casa para ir ter com os amigos, viu o Canina e o Raúl nisto e o Martim que nem estava ali para a conversa.

- Oh, mas o que é que se passa? – Atirou o Jaime para os dois rapazes – vão andar à bulha, é?

- O Raúl tem respeitinho aos mortos… - disse o Canina

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com um sorriso.- E th-e tiveth-e, qual era o problema?- Ele ‘tá a gozar contigo, Raúl. Não ligues. Vamos mas

é embora.O Canina deitou a língua de fora ao Raúl, que lhe

respondeu com o dedo do meio da mão direita a sorrir. Ele. Não o dedo.

O Jaime pôs o braço no ombro do Martim enquanto se encaminhavam para baixo.

- ‘Bora?- ‘Bora.- ‘Tás bem?- Iá.- De certeza?- A tua prima.Houve qualquer coisa no olhar do Martim que o

Jaime não reconheceu. Mas não deu importância. Ainda olhou durante mais um pouco para o amigo, mas acabou por desistir na interpretação.

Os quatro seguiram caminho. O Jaime e o Martim um pouco mais à frente. O Canina e o Raúl mais atrás.

No fundo da rua, a descer, aparecia o empedrado.

A Rita começou por ficar insensível.Foi bem a meio de um jantar, algures em Vilamoura,

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com um casal conhecido dos pais. A Rita achava que ele era advogado em Lisboa e ela não fazia ideia. Tinham dois gémeos insuportáveis, talvez uns anos mais novos do que a Rita. A mesa devia ser a única com portugueses no restaurante, tão cheio de estrangeiros que estava. A conversa tinha começado pelos negócios do homem. Depois passou para as notas dos filhos… más, é claro! Depois, para o futuro. Uma conversa qualquer de uma cunha para ambos, quando fossem mais velhos. A mulher do advogado perguntou à Laura sobre a Rita e a mãe encheu o peito de ar para dizer:

- A Rita já tem tudo planeado. Vai fazer o 12º em Lisboa e depois vamos mandá-la para Bruxelas. Vai para a faculdade de medicina.

Afinal era medicina. Já não era advocacia.- Ai, que bem… vamos ter aqui uma madame

doctoresse. Que sorte, Rita.E as mulheres riram.O Francisco Assunção disse: - Vai ser uma oportunidade fantástica, para ela. Vai

deixar-nos muito orgulhosos – e virou-se para a filha.Os olhos da Rita perceberam que dos do pai não viria

ajuda desta vez. Não desta vez, tal era a confirmação que o olhar paterno demonstrava sem deixar espaço para outra explicação. Para o estar a fazer deste modo era porque acreditava ser o melhor para ela. Não tomaria uma decisão destas por mero capricho da mulher Laura e, para estar a ser comunicado desta maneira, já o teriam falado as vezes suficientes para que assim fosse.

Não era por isso que deixava de ser um despertar.

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E o Martim?Desapareceram os lugares à mesa, os candelabros,

os talheres, os pratos e a comida. Foram-se os restos das conversas trocadas, as palermices dos gémeos, os risos fúteis de tia da mulher do advogado. Fugiram os minutos até à sobremesa, o café para os adultos, o pedir da conta e os beijos a fingir na despedida.

Como ficava o Martim?Ao entrar no carro ainda só pensava que talvez

conseguisse fazer a mãe mudar de opinião. Talvez se falasse com ela, a convencesse. E podia sempre contar com a ajuda do pai. O pai não lhe ia negar se ela lhes dissesse que não queria ir para Bruxelas. Ela nem falava bem francês… como é que iria conseguir tirar lá um curso? Era impensável! Tinha de dizer qualquer coisa. Não podia ficar calada. Ia dizer agora.

- Estás muito calada, querida – disse o pai, a meio da viagem para a casa alugada que não ficava nada longe do sítio onde tinham jantado. – Estás bem?

Era mais forte do que ela. Talvez se demonstrasse que tinha algumas dúvidas. Podia dizer que tinha ficado surpreendida. Era uma boa ideia. Se o fizesse assim, depois mudava um bocado o discurso e lá acabaria por dizer que não queria ir para fora. Fazer o 12º em Lisboa já não lhe parecia assim tão mau… mas Bruxelas é que não podia ser.

Como é que ficava o Martim?- Sim… - foi mais um suspiro vindo do banco de trás.A Rita procurou os olhos do pai no retrovisor mas os

faróis de um outro carro impediram a troca de olhares. Não

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havia nada que não lhe acontecesse mas talvez se esperasse por chegar a casa, poderia ser que com um pouco mais de calma conseguisse convencer o pai a falar com a mãe para pôr cobro a esta ideia absurda de ir fazer medicina para a Bélgica. Quem é que tinha tido esta ideia? Devia ter sido a mãe, de certeza. E depois convenceu o pai, claro. Tinha de pensar muito bem nisto. Tinha de fazer bem as coisas e convencer os dois a desistir disto. O Martim não ia perceber nada disto. Não podia ser…

- Rita, não bebeste café pois não? – Perguntou a Laura.Ia ser muito caro. Mudar de vida para ir viver para

Bruxelas era de certeza caro demais. Por aí, também podia ir. Era caro! Era outra boa ideia. Quando chegasse a casa tinha de pensar mais nisto e falaria com o pai primeiro. Ele depois convenceria a mãe. Era um bom plano, este. O dinheiro era um bom esquema.

Bolas, e o Martim?- Rita?- Mãe?- Não bebeste café, pois não?- Não, mãe. Não bebi. – Foi de cabeça inclinada para

baixo que o disse.Se não fosse o dinheiro a convence-los, o que mais

poderia invocar? Olhou para o retrovisor de novo, sem sucesso. Afundou-se no banco de trás do carro. Encostou a cabeça e virou-se para o vidro, lá para fora. Dir-se-ia que na direcção onde, muito mais longe e por esta hora, estaria o Martim a arrumar as coisas no café de Vila Franca. Não viu a lanterna do Alberto pai. Não viu os brilhos dos pontos

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e traços. Não viu nada porque não estavam lá. Era escusado. Sem forças, era escusado. E a Rita deitou-se no automóvel a olhar para cima, à medida que ia sendo chocalhada pelo movimento da viagem. No tecto do carro passavam sombras e luzes. Sombras com luzes sem significado. Apetecia-lhe chorar. Foi o que fez com o cuidado suficiente para que nem o pai, nem a mãe, percebessem que o fazia deitada. As lágrimas a correr do olho esquerdo.

Talvez amanhã quando acordasse. Talvez nessa altura conseguisse falar com o pai.

E o Martim?

- Eu vou estudar para Lisboa, Martim – foi muito a custo que, finalmente, o disse.

- Mas tu já estudas em Lisboa.- A minha mãe diz que vou ter de estudar muito e não

posso estar sempre a ir e vir para Vila Franca.Estavam os dois sentados perto um do outro no jardim.

O Martim nem acreditava no que estava a ouvir na última meia hora à beira do rio que até àquele instante só se tinha escorrido com o amor deles os dois.

- Tu ‘tás a dizer que vais e não voltas?Escoaram alguns instantes sem nada acontecer. Até

que…- Não posso fazer nada, Martim… - a Rita começava

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a choramingar.O rapaz levantou-se. A Rita continuou sentada no

chão de cabeça baixa. Os dois lado a lado.- Eu sou capaz de fazer tudo por ti, Rita.Rita continuava vergada. Dos olhos do Martim, irromperam lágrimas. Deu dois

passos em frente e pegou numa pedra que, no chão, já o tinha percebido a aproximar-se. Fez um movimento brusco com o braço e atirou-a. A pedra mergulhou de uma vez só no rio como se não fosse nada com ela.

- Foda-se! As pedras lançadas têm uma coisa: nunca voltam.

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A vida manda na gente

Os Ls e os Ys continuavam a estar em muitos lados, os sacanas. Quando menos podia esperar, davam-lhe autênticas chapadas na cara-de-pau que punha, dia após dia, ora no café a servir os fregueses do costume, ou quando chegava o sorrateiro mau hábito de olhar ao longe, na direcção do jardim, mesmo que do outro lado dos carris. Vinham, sabia o Martim lá de onde, e ficavam a marinar durante um tempo. Por vezes, eram constantes: em latidos dos cães, chávenas mal arrumadas nas prateleiras, pingos de água no lavatório, pedaços de nomes em inglês no jornal.

Mas também se iam embora na certeza, porém, de causar vestígios feitos nódoas negras que teimavam em dar sinais de dor sempre que pisados. Nisto do amor parece que fica sempre qualquer coisa de muito lastro. Mesmo que nunca mais tivesse visto a Rita e ainda bem antes de chegar o Natal, ia imaginando-a em Lisboa no que podia bem ser perto da realidade, mesmo que não tivesse nenhuma certeza. Se, para ela, os estudos teriam continuado, para ele a vida

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obrigava a outros cadilhos.A tia Mercedes devia ser a beata que mais pedia a

Cristo. Eles eram os sobrinhos Martim e Daniel que levavam o negócio do café para a frente, apesar do trabalho que tréguas não dava e das horas compridas que mais pareciam dias. Ele era o Alberto Manuel que para dar notícias estava mas era quieto. Ele era o cunhado que dificilmente iria sair da doença que entretanto lhe tinha apanhado as pernas. Ele era o dinheiro que era preciso ter mão. Ele era a cozinha que lhe dava água pela barba. Elas eram as aves-marias que, mesmo que mais curtas que um padre-nosso, tinham a capacidade de expiar cabazadas de pecados e de dar força à fé da mulher.

A tia Mercedes podia não saber nem dos Ls nem dos Ys mas sabia que os olhos do Martim mereciam algumas penitências nesta vida.

Desde que o Alberto pai tinha piorado, o Martim resignou-se a parar de estudar para se dedicar ao café. Sabia que o Daniel, um dia, iria embora, tal como tinha feito o irmão mais velho. Uma coisa era ser de poucas falas, outra era ser de pouco tino. Ao Daniel não faltava nenhuma atenção ao que um dia se podia tornar se não ficasse plantado em Vila Franca de Xira.

A tia Mercedes também via isto do mesmo modo e seguia as prioridades à risca, sempre que lá ia pedir ao Cristo: o Martim que tivesse força e paciência, o Daniel que um dia seguisse o nariz e fosse feliz, o Alberto Manuel que não se arrependesse de nada, o Alberto pai que desse folga à goela, o dinheiro que não faltasse na caixa e as mãos que

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não lhe tremessem na hora de bater na massa.O Martim percebeu que no café havia sempre trabalho

para se ocupar e isso ajudava no resto à medida que se ia sentindo cada vez mais longe da Rita. Isto do longe, tinha dias e havia-os para todos os gostos.

Aquela mesa, lá fora, onde os pais dela se costumavam sentar ao domingo nunca perdeu a memória fotográfica. O espaço que ocupava nunca deixou de os ter por ali a pairar. A mãe, o pai e a Rita, cada um deles sentados nos mesmos lugares, nas mesmas posições, ali, ali e ali. Uma cadeira ficava vaga, era sempre a mesma. E quando, ao longo dos meses, outras pessoas se sentavam nesta mesa, eis que havia sempre a presença dos três a ocupar lugar, a permanecer, a ficar como que a encher um vazio. As conversas, o tilintar das chávenas, o arrastar de outras cadeiras no chão, o vento que por vezes soprava, os risos de outros fregueses, as baforadas de tabaco, os trocos, o húmido do pano que puxava lustro aos tampos. Outra vez os Ls e os Ys.

Depois, a distância e o tempo eram parceiros que iam desajudando o bastante. As novas preocupações com o negócio e a doença do Alberto pai permitiam que a distração fosse séria e comprometida. O mesmo também se podia dizer dos amigos. O Rafael que não voltou, sem nunca mais terem ouvido falar dele. O Jaime que tinha ficado a fazer biscates nos Correios como o pai dele. O Raúl que não melhorou a fala, ficou para trás nos estudos e foi com a mãe que se separou. O Canina que tinha mantido o tamanho e trabalhava na Câmara, era canalizador. As vidas de todos foram-se ajustando com golpes de azar e sopros ditados por escolhas que não dizem com nada propositado.

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É muito natural ser-se levado quando é a vida que manda na gente.

Em Lisboa, a Rita propôs-se a estudar como desejavam os pais. A ida para Bruxelas tinha sido adiada em grande parte pela ampla maquia que isso implicava gastar, não obstante os bons empreendimentos da família, mas também porque era preciso um empenho académico proporcional e esforçado. Era um tempo de aplicação e não de encher o peito de saudades do que fora. Ainda assim, era quase impossível não lhe chegarem uns Ls… uns quantos Ys…

Apesar de tudo, o Tejo era o mesmo, apenas mais largo, com mais navios. Até havia uma ponte, de cor e forma diferentes, e carros que cruzavam margens, fazendo lembrar outras viagens. Uma vez tinha pensado em capar a água bem perto de Belém. Nessa tarde, ainda procurou no chão mas de pronto desistiu. Não ficava bem uma rapariga ser vista a atirar pedras ao rio.

O comboio também a fazia recordar. Tinha o mesmo barulho. A mesma proximidade com a água, ali. E os jardins estavam por todo o lado em Lisboa com árvores, folhas e relva. Havia dias que era forte demais e sentia-se que tinha sido mais empurrada que impelida. A vida de Vila Franca era uma parte que tinha ficado para trás, ainda que com mágoa e, ao mesmo tempo, com uma saudade imortal de tudo o que sentia quando o Martim estava por perto. Era impossível não

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Primeiro Sendo

se lembrar.A mãe Laura e o pai Francisco tinham-se mudado

também para Lisboa e deixado a lezíria. Era o que fazia mais sentido para eles. Os estudos tinham assim quem mantivesse o plano a rolar com o curso de Medicina como futuro mais que certo e sabido para a menina prestes a ser universitária e ainda mais moldada pelas esperanças depositadas num percurso devidamente calculado, previsível e desejado.

O tempo livre de Rita era escasso e pouco improvisado. Aos fins-de-semana, quando podia fazer algo de diferente, sentia falta da pasteleira, mas era impossível que a mãe a deixasse andar de bicicleta em Lisboa. Impensável, mesmo que o pai continuasse a ser o aliado preferencial.

Habituara-se ao permanente escrutínio da Laura, às explicações, aos testes assinados pelo encarregado de educação, ao exemplo que tinha de dar pela família Assunção só porque tinha de ser, às respostas que repetia sempre que alguma amiga da mãe ia lá a casa, perto do Bairro Azul, para tomar um chá.

- Ela vai ser doutora. Vai para Me-di-ci-na. – Assim mesmo a soletrar as sílabas e a diminuir a velocidade da fala que ficava arrastada. – Antes achava que podia ser diplomata ou tirar Direito. Mas agora acho que não. E, se tudo correr bem, vai tirar o curso lá fora.

- Ohh… - Ahh… - era o que respondiam, à vez, as convidadas

da mãe.- Só tens é de estudar, Rita – rematava a mãe, ao

mesmo tempo que a olhava com um sorriso.

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Francisco Penim

-Sim, mãe. – Nunca mudava nada na resposta.À chegada da noite, o pai beijava-a no cimo da nuca

quando voltava a casa vindo do escritório, estando ela a estudar invariavelmente. Perguntava-lhe pelas aulas, se iam bem, se tinha recebido testes, que notas tinha tido e se estava bem. Como se estivesse em conluio com a mãe. Nem era por mal, os hábitos são assim mesmo. O pai a ser pai. E passava depressa pelo corredor para se ir sentar no escritório com muitos papéis em cima da secretária. Só o veria mais tarde para lhe dar as boas noites. Nada mais que isso.

E pelo meio de tudo, uns Ls e uns Ys… num som, numa coisa, numa sensação.

Era noite.Os dois irmãos sentaram-se numa mesa dentro do

café. O Martim chamou a tia que veio ainda de avental posto e sentou-se com eles. O Daniel tirou a mão do bolso das calças e levou-a de chapa, com calma, ao tampo da mesa.

- Chegou hoje!Tirou a mão.Era uma carta do Alberto Manuel. Tinha sido o Jaime

a entregá-la juntamente com as contas do costume. Sim, ele agora trabalhava nos Correios. A carta estava endereçada ao Daniel e ao Martim. Em cima, à direita, um selo que mostrava uma montanha com neve, a palavra Helvetia

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Primeiro Sendo

escrita de lado, um carimbo a comprovar o trajecto de avião que a tinha trazido até ao café do Araújo.

- Abre e lê – disse a tia Mercedes enquanto tirava o avental pela cabeça, ajeitava o cabelo ao mesmo tempo que pensava que, afinal de contas, o rapaz não estava quieto e lá tinha mandado notícias.

O Daniel abriu o sobrescrito. Lá dentro, três folhas arrancadas de um caderno de linhas, com a letra do Alberto Manuel.

Como resultado da leitura, entendia-se que morava numa cidadezinha chamada Lyss, trabalhava num hotel, era uma espécie de faz-tudo. Ganhava bem melhor do que em Portugal, estava a construir vida por si próprio. Amaldiçoava o frio, queixava-se das caras fechadas de poucos-amigos das pessoas, do preço das coisas, da língua, mas sobretudo da comida com falta de sabor. Escrevia com orgulho do que estava a fazer por lá, que respeitavam o trabalho dele e que tinha grandes novidades.

- Vou-me casar. – Foi o que o Daniel leu primeiro – O cabrão vai-se casar!

A tia Mercedes benzeu-se logo a seguir a ter dado uma topada no braço do Daniel que segurava a carta.

- Chiu… o que diz mais, ele?Antes que o Daniel retomasse a leitura, o Martim ainda

estava parado na primeira linha onde as letras escreviam, em maiúsculas, o nome do estupor da cidade onde vivia agora o Alberto Manuel. Reparou nisso, é claro.

Mas voltando à leitura.Chamava-se Natália, era portuguesa, de Cinfães, tinha

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Francisco Penim

a idade do Daniel. Trabalhava nas limpezas do hotel. Os dois tinham planos para o futuro.

Foi o Daniel a continuar a ler. O Alberto Manuel ia mandar dinheiro. Queria que o Martim fosse ter com ele à Suíça. Arranjava-lhe trabalho e podia fazer vida por lá também. Era bom para ele. Ele, o Martim, bem entendido.

- Vou mandar dinheiro… - repetiu o Daniel.- Queres ir Martim?- Vou lá agora tia… não vou nada – levantou-se da

mesa.- Porquê? – Perguntou o irmão a olhar para cima.Não podia responder com todas as letras mas o Martim

sabia que não iria para a Suíça. Ao fundo na parede do café, o quadro com o bordado do Cancioneiro de Escaroupim da mãe Ana terminavam assim:

“Deixa o mar ralhar que o mar é traidorVamos navegar com o nosso amor”

E nem passaram uns instantes.- Martim! – O grito meio abafado do pai, vinha do

quarto mais acima. O Martim apontou para o tecto.- O Alberto que me chama está já aqui por cima. É o

nosso pai. – E foi atrás da voz que o chamava.Nessa noite, no café, a conversa não se demorou mais

do que o já relatado. O Daniel voltou a pôr a carta no bolso e ficou a remoer só para ele, ao passo que a tia fez questão de repetir mentalmente que no dia seguinte tinha de ir à igreja

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Primeiro Sendo

para agradecer a graça do Alberto Manuel estar bem.A caminho do quarto do pai, o Martim reforçava a

decisão de não sair dali.Como é possível, os Ls e os Ys estarem no caminho?

Até no raio da Suíça. E o Martim não ia ceder. Arrastassem-se os anos que isso não iria acontecer.

E os anos não tiveram dificuldades por nenhuma parte em particular. Correram, mas foi. A decisão ficou tomada por defeito. Era ali que ficava.

1999.O Alberto pai piorava com uma doença nos ossos

das pernas que durou anos a fio. Ele, andar, andava, mas precisava de uma bengala e fazia-o muito devagar. Os das redondezas diziam que ele não andava… movia-se. E trabalhar, trabalhar não trabalhava mas o café do Araújo, sem o Araújo, não era a mesma coisa. Pois então que o Martim ia ajudando o pai a descer do quarto para se sentar todo o santo dia, ora cá fora na esplanada, quando estava bom tempo, ora lá dentro quando a chuva ameaçava. O café era dele, e sem ele, não havia café. Os modos do Alberto pai, para com os fregueses, eram os anfitriões. Já com os da sua carne, os modos vinham aos gritos, aos apitos e em catadupa. A cerveja, que empurrava a gritaria, só a bebia depois de fechar as portas e o Martim os olhos fechava, porque entendia que o álcool aliviava as entranhas do pai.

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Neste momento, havia dois Araújos homens no café com esse nome em Vila Franca de Xira pois quem aproveitou o convite escrito do Alberto Manuel tinha sido o feliz do Daniel que após a boda do irmão lá apareceu um dia a bater à porta em Lyss na Suíça. Fez e deu-se bem. Estava lá há uma dezena de anos, conheceu uma moça e juntou-se quando chegou a vez dele. Não se casou. Era chinesa e, agora, tinham um chinesinho.

No café havia agora duas mulheres. A tia que, mais dobrada, mantinha os mesmos hábitos junto do sobrinho a repetir-lhe na cara dizendo a lengalenga dela:

- Que Deus te abençoe e te guarde, a ti. Que Deus te encha de luz e te favoreça, a ti. Que a Glória do Senhor ao iluminar-se no seu rosto se reflicta no teu, em ti. Que Deus te proteja, a ti. Que o Sangue de Jesus e o Espírito Santo te rodeiem e te acompanhem, a ti. – E passava um instante. - Sempre.

E no café também trabalhava a Ana Maria. Com o mesmo nome da mãe lá de casa.

Lembrando uma vez aquela rapariga que trabalhava na drogaria da Dona Luísa, a mesma que namoriscava o Álvaro que o Alberto pai, um dia, pôs dali para fora com quinhentos escudos na mão, a tia Mercedes recordou que ela tinha uma irmã mais nova. Era a Ana Maria. A Ana Maria que, agora, trabalhava no café do Araújo porque a tia Mercedes se tinha lembrado dela. A Ana Maria que, pasme-se, tinha casado com o Martim. Ela e o Martim tinham casado há talvez dois anos.

Embora a conhecesse, ele não se lembrava bem dela

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Primeiro Sendo

quando entrou para o café. Naquele momento era preciso mais ajuda porque o tempo sem o Daniel tinha pesado muito nas costas do Martim e como o negócio ia bem, dava para pagar a uma empregada. Por seu lado a Ana Maria recordava-se bem do rapaz, apesar de ser cinco anos mais nova, e quando começou a trabalhar percebeu logo que gostava dele. A aproximação entre os dois foi natural e, ao longo de alguns meses, o conhecimento deu lugar ao amor o que, para o Martim, foi uma escolha. A Rita seria parte dele para sempre, nem que fosse pelo carácter de ser a sua primeira. Sendo a sua primeira, ao mesmo tempo, sabia que era bem mais que isso. Ficara em Vila Franca porque sentia a obrigação do pai, do café, da tia… mas era aqui que a vida estava. Aqui era ele. Quando fechava os olhos sentia o coração a pedir para ficar, para guardar o sentimento do primeiro amor. Era como se tudo o que tinha dado pela Rita tivesse permanecido numa consciência íntima, com a qual sentia uma ligação profunda. Uma sensação dele, pessoal, que nunca passou para mais ninguém. Um nexo do que o rodeava nas agruras, nos pesares, nas paixões, nos sorrisos, nos desgostos. Uma definição ampla do que ele queria ser. Era aqui, em Vila Franca, que o Martim era. E, ao mesmo tempo no seu centro, o Martim sabia que muito do que ele era tinha aprendido com a Rita. A Rita também ali estava nas cadeiras do café, nas ruas, na estação de comboios, nas árvores a esvoaçar, na relva perto do rio, no coreto e para lá da porta verde lá debaixo. Ele percebia isso e tentava não enganar-se a ele próprio. Era uma boa tentativa. Sentia a força pronta a soltar-se e tentava domá-la como lhe era possível. Adivinhar o amor que o ligava à Rita era óptimo,

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desde que isso não significasse que continuava a ansiar por ela no presente. Até porque nem sabia onde ela estaria, com quem estaria, se teria casado, se era mãe… E, mesmo que evitasse pensar muito nisso, queria acreditar que a luz que iluminara os dois podia existir para lá da relação real que não mais estava presente na vida de ambos. Esquecer-se dela, nunca esqueceria mas isso não significava que não soubesse lidar com o sofrimento que tinha deixado para trás sem ressentimentos. Mesmo que preferisse que nada daquilo tivesse acontecido, sabia que a riqueza estava presente nele, dentro dele, em tudo o que fazia, tudo o que pensava, tudo o que era. O sentimento tinha permanecido vivo e latejava fresco. Mesmo sem a menina Rita que, para ele, tinha personificado o seu tudo.

A vida era engraçada e matreira, pois ao aproximar-se da Ana Maria parecia que reconhecia o mesmo sentimento de anos antes. O mesmo sentimento sem tirar nem pôr. A mesma vontade de tudo dar ainda que com diferenças feitas em muitas partes parecenças. O amor podia ser exactamente o mesmo. A Rita era a Rita. A Ana Maria era a Ana Maria. Não as amava menos às duas por causa de não serem a mesma pessoa. Não era por amar a Ana Maria profundamente que a Rita deixava de estar dentro dele. O amor era algo que não fugia, não era uma pedra lançada mas sim um tudo que ficava. O que o Martim tinha com a Ana Maria era deste mesmo tudo.

Vila Franca de Xira, estava igual por todas as partes. Umas mais que outras. O mesmo rio, a exacta ponte com o jardim ao lado, o coreto sem mudança e com toda a mesmança.

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Primeiro Sendo

Por contraste, a orientação da Rita nas escolhas feitas tinha-a levado a seguir o que estava devidamente designado. Depois dos estudos em Lisboa, foi por fim passar uma temporada a Bruxelas e entrou na universidade em medicina. O intervalo de tempo indeterminado longe de Portugal transformou-se em alguns anos, não porque os semestres escolares assim o exigissem mas porque a Rita fez força em ficar por lá. Tinha por perto o conforto do apartamento que os pais lhe tinham alugado e a lonjura do sufoco da exigência da mãe. O foco nos estudos ajudava à arrumação de que necessitava. E, na verdade, nada disso era longe do que tinha imaginado para si pois sempre percebeu que os valores da família lhe estavam inculcados no modo de proceder e comportar. Mesmo que os constrangimentos da mãe fossem muitas vezes em demasia, a Rita contrabalançava por dentro com as influências do pai, bem mais apaziguadoras e identificativas com o seu ser. As conversas ao telefone eram sempre com o pai e jamais com a mãe. Sempre que a visitavam, os abraços mais demorados eram com ele e apenas de fugida com a Laura.

Bruxelas acabou por moldá-la também ainda que, ocasionalmente, a distância de Lisboa, e especialmente a distância de Vila Franca, ajudassem ao compromisso. Esta cidade não tinha rio ou, pelo menos, não um rio que se assemelhasse de todo ao Tejo. Isso ajudava-a. Mas mesmo ao lado da universidade havia um parque, um bosque que

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puxava por ela, o Bois de la Cambre, onde a Rita acabava por passear. Ali estava um jardim onde, inevitavelmente árvore a árvore, folha a folha, passo a passo, conseguia chegar perto do que tinha tido com o Martim e que não tinha verdadeiramente sido apagado. O lago do bosque era visitado muitas vezes. E mesmo que não houvesse rio, a água ia matando a sede.

Rita sabia que a separação do Martim tinha sido inevitável. Não que não lhe tivesse custado a vida pois não se ama daquele modo sem ficar com um aperto de desgosto feito mágoa. O que não mudaria é que o Martim tinha sido tudo para ela, parte dela, dentro de si, levando-o de Vila Franca a Lisboa e, pasme-se, até ao Bois le la Cambre.

Mas a Rita não era nada de viver no passado e, pelo meio dos afazeres da medicina, optou por ir permanecendo cada vez mais nesta cidade que a tomava como dela, há já tanto tempo que cá estava.

No último ano do curso, conheceu o Carlos. Era filho de um casal amigo dos pais, prontamente sancionado pela Laura. Era meio belga por parte da mãe e trabalhava na firma de advogados do pai dele. O mesmo escritório que tinha negócios com a empresa do pai Francisco em Portugal. O tipo de homem que bem podia ser o genro que a Laura imaginava. Inteligente, bem-parecido, com futuro assegurado e, qualquer dia, o prometido que pediria a mão da Rita em casamento. Pois foi o que veio a verificar-se passado pouco tempo, qual casamento arranjado. Foi tão perfeito e certinho que a Laura apressou-se a sugerir à Rita que interrompesse os estudos para dar prioridade à família.

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Primeiro Sendo

A Rita tinha ficado genuinamente impressionada pelo Carlos, pela atitude de saber o que fazer e dizer, pela rectidão das maneiras, pelo senso de rumo e certeza determinada. Apaixonou-se pelo modo como ele a olhava e lidava com ela. Era um pouco mais velho e, isso, concedia-lhe uma segurança inata de que tomaria conta dela. A Rita precisava disso e, como tal, decidiu ser feliz com o Carlos. Foi uma decisão consciente do que havia de ser e, à maneira dela, terna.

Na Bélgica, o tempo tem a concebível mania de se ir escoando do mesmo modo que noutros locais.

Aqui, em Bruxelas, a Rita teve a sua primeira filha, a Francisca, que recebeu o mesmo nome da avó materna do Carlos. Embora, a Rita tivesse mantido ao pai que o nome provinha dele. A Francisca veio dar um novo alento ao casamento com o Carlos e abriu o coração da Rita como ela não conseguiu antever. À medida que a descoberta deste amor lhe ficava cada vez mais real e imediato, a Rita também se lembraria que tinha vivido um momento no passado em que tinha desejado ter filhos com o Martim e que isso não se tinha tornado realidade. Naquele instante remoto, o desejo era de ter gémeos, se bem recordava o desejo. Já o nascimento da Francisca não menorizava de modo algum a casualidade da troca, enfim, de progenitor. Não havia sentimento de culpa, nem de responsabilidade, mas sim uma percepção madura de como tudo tinha sucedido. A Francisca tinha nascido dela, tinha nascido do amor que nutria de facto pelo Carlos, vinha de si, dela. Sentia-a e preenchia-a. A Francisca manifestava um amor dentro da Rita que ela reconhecia como fazendo parte da mesma matéria que a

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tinha unido originalmente ao sentimento partilhado com o Martim. Não havia mais respostas, mas havia instantes assimilados nos quais essa intensidade era completamente absorvida pelos sentidos da Rita. Momentos absolutos de partilha quando olhava nos olhos da sua bebé, a colocava no seu colo, tinha o seu dedo mindinho envolto numa pequenina mão fechada, tudo sem toldar a cabeça com pensamentos pré-concebidos. Quando a naturalidade da experiência fazia jus ao reconhecimento profundo. A grande maioria das vezes sem nenhuma explicação tangível.

Nunca entrou em pormenores disso com o Carlos e reservou todos os momentos para si. Fê-lo a seu favor e, acima de tudo, independentemente do marido pois não tinha dúvida de que o que os ligava também era amor. Protegido, seguro, fiel, afectuoso amor. Esse era o amor que guardava pelo Carlos.

A Francisca cresceu. A Rita arranjou tempo e vontade para terminar o curso que tinha interrompido subitamente pois nem sequer tinha pensado muito bem na questão. Agora, perguntou a opinião ponderada do marido para se sentir mais escudada. Não lhe passava pela cabeça tomar uma decisão destas de outro modo. O Carlos acedeu e incentivou a mulher mesmo que, no seu íntimo, preferisse tê-la mais demoradamente em casa a tratar da menina como devia de ser. A Laura, nesse momento, aconselharia o contrário mas não levou a sua avante. O Francisco manteve-se do lado da filha, o que, para ela, revelava uma cumplicidade que com o tempo se adensava apesar da distância.

Na cidade, o escritório de advogados continuava com muito negócio embora esses assuntos não fossem discutidos

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Primeiro Sendo

em casa. Eram conversas que não existiam e estavam bem para lá do que o marido se sabia preparado para abordar. Para a Rita, como toda a franqueza, não era sequer um tema pois não se importava de não saber muito bem o que fazia o Carlos. O dinheiro não faltava para nada do que era preciso por muito supérfluo que fosse. As contas eram escrupulosamente pagas. A vida era fácil o que tornava por demais evidente toda a estabilidade apresentada.

Quando chegou o ano de 1999, a oportunidade era boa demais para não aceitar. Tinha sido mais ou menos assim que o Carlos lhe tinha começado a transmitir a decisão de regressarem a Portugal. Era uma oportunidade que lhes assegurava o futuro, explicou-lhe em maior detalhe, até porque o país já estava melhor economicamente com a Comunidade Europeia e isso permitira à família uma boa vida. Portugal não era o mesmo. Neste caso, a vantagem era óbvia, económica e a decisão estava tomada. A Francisca teria obviamente de mudar de amigos e de escola mas isso resolver-se-ia. Comprariam um apartamento no centro de Lisboa. Teriam tudo à sua disposição. O Carlos até achou boa ideia a Rita abrir um consultório assim que terminasse a especialização. Era uma boa maneira de a convencer. Quanto à Laura e ao Francisco, é claro que estavam de acordo. O pai porque passaria a ter a filha e a neta à mão de abraçar, a mãe porque teria ali ao lado a validação do que a vida da filha tinha proporcionado em prol do conforto e da segurança.

Os preparativos demoraram ainda algum tempo, mas a viagem lá acabou por ser marcada, a nova casa identificada, avaliada, reservada e comprada, a empresa de mudanças contratada, a Francisca entusiasmada por poder praticar o

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português em Portugal e não apenas com as empregadas de casa. Tudo disciplinado. Tudo arranjado.

Depois de tanto tempo, nada alertou a Rita. Não porque ela tivesse esquecido ou mandado para trás das costas o que lhe tinha ficado para sempre mas simplesmente porque apesar de nada de distraído ter dentro de si, nunca teria desconfiado do que ainda seria capaz de voltar a sentir.

Quando fosse o momento de voltar a Portugal, ainda que com o marido ao lado e com pequenos passos de mão dada com a Francisca, a Rita não estava preparada para o que aí vinha.

Quando fosse o momento de regressar a Lisboa, Vila Franca de Xira ficaria bem mais vizinha do que estava e, já se devia saber que, nestas coisas o tempo não é contido nem achado.

Quando fosse chegado o momento da volta se dar, seria para sempre.

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Primeiro Sendo

Ilusão de óptica

Se há uma coisa que o tempo tem, é não ser refreado por natureza. Se há uma coisa bem lembrada é a essência do que nos forma a todos. Quando é para avançar é mesmo para a frente. Sem ilusões.

Eis o momento em que a Ana Maria descobriu estar grávida, pela segunda vez na vida. A senhora pressa em contar ao Martim foi a que seria de esperar e ele fez questão de revelar a boa nova ao José, logo no dia do seu aniversário com a mãe a servir de público restrito e único. A família de roda da mesa da cozinha, a jantar em modo urgente, antes de terem de voltar a descer para o café.

- José, come fruta… a mãe tem mais uma prenda.O miúdo de apenas quatro anos, feitos hoje, parou de

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Francisco Penim

comer o pedaço da maçã reineta e abriu mais os olhos.- É pastilhas? – Com um sorriso para o pai.- Não, a prenda não é pastilhas. É outra coisa. Come.- Não quero mais… ‘Tá quente. – E empurrou o prato

à sua frente que bateu num copo.Esta era a maneira de o José dizer que não gostava da

fruta. Quando dizia que estava quente não era uma questão de temperatura mas de gosto. Se estava quente, para ele de quatro anos apenas, era porque não lhe sabia bem. As maçãs reinetas têm este efeito, muitas vezes, nos mais pequenos. Ficam muito enfarinhadas e não só em Vila Franca de Xira.

- ‘Tá quente, ‘tá... – Disse a Ana Maria a tirar-lhe o prato da frente dando uma trinca no pedaço de maçã que sobrava.

- Queres a prenda?- Onde ‘tá?- Tem a mãe. – Disse o Martim a apontar para a Ana

Maria. Olhou também para o relógio.- Onde ‘tá, mãe? – Repetiu o miúdo.Foi nos olhos que o fitou.- José, tu vais ter um mano para brincar contigo.- Mano?- Sim, um irmão! – Precisou a Ana Maria.- Ou irmã… logo se vê… – Completou o pai.- Uma menina?- Sim, a prenda é um menino ou uma menina.- E não é pastilhas?

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Primeiro Sendo

O Martim e a Ana Maria riram-se sem que o José percebesse exactamente porquê. O pai levantou-se e limpou a boca.

Na sala ao lado, o Alberto pai acordou de repente com o barulho. Ficou a olhar para a televisão que ainda estava ligada.

- Vá, vai lá baixo. Diz à tia Mercedes para te dar uma pastilha.

O José levantou-se a correr e desceu as escadas.- Uma! – Era melhor a Ana Maria avisar que era só

uma pastilha.Na sala, o Alberto pai repetiu só para ele.- Uma…Ninguém ouviu.- Raio do miúdo. Quer lá saber do bebé… - e o Martim

deu um beijo na cabeça da Ana Maria, sentada.Deu meia volta e espreitou pela ombreira da porta

para a sala onde estava o Alberto pai.- Pai… queres ir agora?- Sim…Com o tempo, o estado de saúde do Alberto pai,

agora já avô, tinha piorado bastante. A bengala que usava para andar, era mais o filho que a de pau. Até para ir à casa de banho precisava de ajuda. O braço do Martim puxou-o para cima. Arrastaram-se os dois até ao lavabo lá de cima. O Martim abriu a porta e deixou passar o pai.

- Ajuda?O Alberto pai nem olhou para o filho. Mas lá foi

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Francisco Penim

falando acre.- Quando eras puto, era eu que te punha a mijar. A tua

mãe, que foi fazer quarenta e três anos debaixo da terra, não podia.

O Martim continuou a segurar no pai que abriu as calças. O velho puxou as cuecas para baixo, deu a volta à sanita e sentou-se. O Martim saiu da casa de banho, encostou a porta e encontrou os olhos da Ana Maria que lá se ia dirigindo para o café no piso debaixo. Só com o olhar, a mulher dizia-lhe que ia andando, que não fizesse conta do pai e que, acima de tudo, o amava.

Passaram uns instantes.Na casa de banho, o Alberto pai tentava erguer-se

do trono mas as pernas fraquejavam. Puxou as cuecas e as calças para cima mas acima do joelho não subiram mais. Voltou a arranjar forças e fez para que se içasse da sanita sem assinalável sucesso.

- Merda.Puxou o autoclismo. O Martim voltou a entrar para

completar a tarefa.No café, o José tentava, sem resultados visíveis, fazer

um balão com a pastilha que a tia lhe tinha dado. A mãe passou por ele com a mão tranquilamente na barriga. A palma da mão do José já lá tinha um daqueles autocolantes de película que, com água, ficavam agarrados à pele dos miúdos que gostavam de pastilhas e as comiam para soprar balões e fingir que tinham tatuagens nas mãos ou nos braços porque tinha pinta.

- Daqui a bocadinho, cama.

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Primeiro Sendo

- Olha o que eu tenho… - Mostrou-lhe a parte de trás da mão e com os olhos arregalados disse… – É um urso!

- Grrrrr… – Respondeu a mãe ursa.O José riu.Os fregueses começavam a chegar à esplanada. Estava

uma noite quente e ainda não eram oito e meia. As pessoas iam-se sentando para tomar um café depois de jantar. Os homens acendiam os cigarros. As mulheres punham a conversa em dia, ainda que fosse noite.

O Martim desceu directamente para fora e foi atender às mesas sem mais demoras. A Ana Maria entrou na cozinha passando pela tia Mercedes que estava no balcão a atender. Lá em cima, o Alberto pai, de novo, sentado à frente da televisão. Cá em baixo, encostado à porta que dava para a esplanada, o José continuava a esforçar-se e bufava feito lobo mau. Era difícil fazer balões. Como é que os outros conseguiam?

A esquina mais distante, do outro lado da estrada, foi contornada pelo andar de um casal de braço casualmente dado. Era a Jacinta e o seu José. Precisamente a mesma Jacinta empregada dos Assunção em Vila Franca, confidente da Rita em menina, fazia uns valentes anos. Vinham os dois calados, olhos a atravessar a estrada, passo certo. Como se viessem de um passeio à noite ainda antes das oito e meia que, por sinal, era o que acontecia. Por um breve instante, a Jacinta reparou no homem que atendia as pessoas cá fora nas mesas da esplanada. O olhar só a retardou por momentos na marcha a atravessar a estrada. Mais nada, tão somente isto. Ligeiramente travado por ela, o José dela fez uma

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suficiente diminuição de ritmo e esguelhou-a de perto sem oferecer importância. E não tinha, de facto. Apenas a Jacinta reconheceu o Martim à medida que o passo dela tornou-se meio passo. Só isso… apenas isso e talvez o lampejo do nome do Martim que lhe veio à cabeça. Quase como se fosse, “olha o Martim”, assim de repente no pensamento da Jacinta.

- Olha, o Martim. – Mas ela não disse nada, apesar de as palavras poderem até ter estado quase a sair dos lábios. Não disse nada.

- O que foi? – Perguntou o seu José. Já a conhecia muito bem e pressentia quando as palavras estavam quase a brotar.

- Nada… - deixou escapar a Jacinta.Era mesmo o Martim. E a Jacinta pensou na Rita. Por

onde andaria? Se estaria bem.O ritmo dos dois fora retomado.No céu nocturno, já as estrelas enfeitavam a noite

feitos pontos de luz a tremelicar. Na constelação de Orion, as “Três Marias”, a mais de 800 anos-luz da Terra, piscaram pontos e traços mais demorada ou mais rapidamente consoante o local do observador. Se alguém tivesse olhado lá para cima, a partir de Vila Franca, de Lisboa ou de outro sítio qualquer, não importava onde, percebesse o palavreado em código e tivesse uma boa memória, até seria capaz de jurar que os astros se estavam a manifestar perante o destino dos homens.

Talvez fosse apenas ilusão de óptica. Sabe-se lá… onde é que já se ouviu de estrelas que falavam? Deus nos

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Primeiro Sendo

livre!E, mais uma vez, se há uma coisa que o tempo tem, é

não ser irresoluto por natureza. Se há uma coisa que o valha que está para se dar, então o melhor é cerrar os dentes e aceitar que a mudança não escolhe lados.

Meses depois, a Ana Maria foi de charola para o hospital. Ainda era cedo para o bebé nascer, mas as dores lá em baixo estavam mais fortes do que da última vez que tinha ido ver a médica Inês que logo lhe disse para descansar o máximo possível a partir dali. Ficar que tempos de pé a atender fregueses no café estava totalmente fora de questão. Por isso, o descanso passou a ser fundamental e a Ana Maria remeteu-se a descer cada vez menos as escadas, ficando mais a fazer companhia ao sogro em frente ao televisor. Que teria feito ela para merecer tamanho castigo? O que foi certo e sabido é que, quando começaram as dores a apertar, foi o Alberto pai que gritou mais alto pelo Martim a chamá-lo. Surpreendeu-se a ele próprio e tudo.

Quem primeiro veio foi o José e assim que entrou e viu a mãe a contorcer-se com dores voltou a descer a escadas de três em três degraus, o que para um puto com pouco mais de quatro anos é um feito assinalável. O Martim subiu as escadas a toda a brida com o José logo atrás.

Os bombeiros chegaram rápido e lá seguiram para o hospital a toda a velocidade. A Ana Maria deu entrada logo

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sem demoras. O Martim ficou na sala de espera onde ligou de pronto para o café só para sossegar a tia e o José avisando que já tinham chegado ao hospital. Nem sequer pensou em pedir para dizerem também ao Alberto pai.

O parto complicou-se. Complicou-se muito. Foram mais de dez horas e sem detalhes para o Martim. Não o deixaram assistir.

Quando o foram acordar, é possível que tenha sido a meio da noite, estava ele a dormir em quatro cadeiras em fila, pegadas umas às outras encostadas a uma parede do corredor, foi para lhe dizer que já era pai. Seguiu por vários corredores, passou por umas portas até que ouviu uma enfermeira a falar.

- É o senhor Araújo? – Uma voz muito repousada.A enfermeira tinha um bebé nos braços.- Sou…- Quer conhecer a sua filha? A bebé foi-lhe estendida com os dois braços e ele

tomou-a nos seus. Ficou a olhar para ela ainda atónito. - Já lhe dei banhinho.O Martim não conseguia tirar os olhos da filha acabada

de nascer.- É perfeitinha… não é? – Juntou a enfermeira.E porque o Martim não tinha ainda dito nada, a

enfermeira continuou e pôs-lhe a mão no braço assim de lado.

- Parabéns, pai. – Disse-o com o sorriso possível.O Martim levantou a cara para a enfermeira e sorriu

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Primeiro Sendo

também.- É mais uma Maria. – Foi assim que deu o nome à

filha. – Onde está a mãe? Posso vê-la?- Está a descansar… foi um parto complicado. Eu já o

levo lá. Venha comigo, agora. O Martim seguiu a enfermeira com a Maria ao colo.

Mais tarde falaria com o médico que fez o parto que lhe contou as dificuldades que tinham tido. A menina era perfeitamente saudável, estava tudo bem com ela. A mãe tinha passado um mau bocado, estava sedada e muito fraca. Ele podia passar lá o resto da noite perto da mulher. Levaram-no a vê-la.

A Ana Maria entreabriu os olhos, viu o Martim com a bebé ao colo, sorriu ao vê-los, emocionou-se um pouco. O Martim aproximou-se e beijou-a na cabeça. Tinha o cabelo num reboliço… não que importasse.

- Achas que se pode chamar Maria? – Perguntou ele à mulher e debruçou-se na cama ao mesmo tempo.

- Pode.Nem era preciso fazer contas mas era mais uma Maria

Araújo depois da mãe e da falecida avó. Três Marias…

Nos dias seguintes ao nascimento, foi a tia, foi o José visitar. O Alberto pai não podia ir. O Martim voltou para o café e preparou-se para regressar ao hospital mais tarde para ir buscar as duas Marias na data marcada pelo médico. Um

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Francisco Penim

dia antes, telefonaram-lhe do hospital para o preparar. A Ana Maria tinha apanhado uma infecção e não

podia ter alta. A bebé não podia ficar com a mãe e, ou ficava no hospital até a mãe estar melhor, ou, se o pai quisesse, podia ir lá buscar a bebé. Depois, logo explicariam melhor o que devia fazer em casa se fosse esse o caso.

O Martim começou por dizer que era melhor a Maria ficar no hospital mas no dia seguinte foi lá para falar com o médico. A infecção da Ana Maria tinha piorado e corria risco de vida. Era uma septicemia. Podia até ser fatal.

Apesar de duro, quando foi o momento para saírem finalmente do hospital, uns dias mais tarde, a Ana Maria tinha-os deixado para sempre e o Martim ficou só com o José e com a Maria no colo.

Pensando melhor em tudo e desde o início, o Martim sabia que tinha escolhido a Ana Maria de coração aberto. E tinha sido assim que ela entrara, dúvidas houvesse. O amor que lhe tinha sentido de raiz era o mesmo de antes, vinha das mesmas origens, passava pelas mesmas partes, chegava às mesmas conclusões. Tinha-o enchido de uma certeza que validava a vida que juntos tinham construído, no filho José e também depois na filha Maria. Não seria a morte da Ana Maria a responsável por mudanças que o Martim não acreditava para ele. Não passaria a pensar outra coisa. A Ana Maria podia já não estar lá para saber isto de viva voz mas

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Primeiro Sendo

o que unia o Martim ao amor não seria para desaparecer em vão. E atenção… nada disto era confundível com crenças cristãs como a tia até insistia em demasia numa interpretação dos factos que, ao Martim, o tirava completamente do sério. Se a Ana Maria já não vivia seria para o Martim o aceitar. Para o bem e para o mal, ele aprenderia a assim ser forte levando com ele os dois filhos a tiracolo. Nem a Maria nem o José deveriam temer.

É que, se há uma coisa que o tempo não faz pela metade, é não querer continuar. Pois, mais coisa menos coisa, quando é o mínimo que se faz por esperar, é nesse instante que se engrandece a vontade de mais forte permanecer.

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Primeiro Sendo

Bênção repetida

Desde que a Rita tinha voltado de vez para Lisboa, com a família, que a Laura sentia que tinha menos mão nela. Primeiro foi a intransigência da filha nas opiniões referentes à educação da Francisca. Não pôde sugerir escolas, mesmo depois de ter puxado os cordelinhos todos no Liceu Francês. Não conseguiu que a rapariga fosse para o ballet, como desejava, só porque a menina gastava muito tempo no caminho até às aulas com a professora de quem tinha as melhores referências. E o culminar de tudo era a roupa que a Rita insistia em deixar a Francisca usar. Era medonha e nada condizente com uma menina de família respeitada. Ou, pelo menos, era isso que a Laura acreditava piamente. Depois, era a ideia da Rita em não ter consultório aberto. Como é que era possível, uma médica não ter o seu próprio consultório? Onde já se tinha visto, semelhante coisa? O que diria se uma amiga dela lhe perguntasse durante um chá onde era o consultório da Rita?

Para mal dos seus pecados, a Laura sentia a Rita a

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escapar-se-lhe pelo meio dos dedos e não estava nada habituada ao que isso a fazia sentir. Os queixumes tinham, bem entendido, o marido como destinatário, mas, com o tempo, o Francisco tinha deixado para trás a complacência de outras épocas. Não que tivesse perdido o sentido do matrimónio ou de dever perante a Laura, mas sim porque ao que à menina dos seus olhos dizia respeito, especialmente agora depois de adulta, depois de casada, já com uma filha, o que seria de esperar era a validação paterna de todas as suas acções.

Verdade que o facto de Rita ter seguido os conselhos da Laura, tirado o curso em Bruxelas, mas especialmente casado com o Carlos, colmatava grande parte da frustração que nos dias de hoje em Lisboa a mãe ainda sentia. Afinal de contas, a Rita tinha uma vida bem mais confortável e segura que a própria Laura, o que deixava a mãe com um sentimento de missão cumprida tendo tomado como sua a certificação de que nada seria deixado ao acaso no rumo delineado para a vida da sua filha.

Ainda assim, mesmo mulher-feita, podia sempre ouvir os conselhos da mãe. Muita falta lhe faziam, certamente.

Ora, um.- Não acho nada boa ideia a tua filha estar já a pensar

em tirar a carta. Até parece que vocês não podem ter um homem qualquer que a leve sempre onde for preciso… uma espécie de chauffeur. O Carlos deve ter uma série deles lá na firma.

Outro.- Já que não quer ir para o ballet porque é que não a

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pões a aprender piano. Tenho uma amiga que é a melhor professora de piano de Campo de Ourique. Queres que fale com ela?

E ainda mais outro.- E aquela história de ela poder ir ao cinema sem tu

saberes os nomes dos pais das amigas dela, é completamente impensável, Rita. Até parece que não te importas com quem é que a Francisca se dá. Ainda, por cima, à noite. Valha-me Deus!

O regresso a Lisboa, para Rita, tinha este afinamento a contemplar que a falta de proximidade física com a mãe e a passagem do tempo haviam colocado em segundo plano. Mas nem mesmo a idade e a relativa experiência de vida, suficientemente diferente da da mãe, faziam milagres e a resposta sempre na ponta da língua era devidamente adaptada com doses ponderadas de paciência, relevância e até distracção disfarçada qb. De resto, quando a insistência era maior do que a habitual, a solução aplicada encontrava sempre o aconchego do pai. Há comportamentos que permanecem eternos mesmo que a vida nos impinja mudanças e o pai Francisco seguraria sempre a mão da menina dele. Para melhorar a coisa ele, agora, tinha duas.

O velório da Ana Maria fora na velha capela do cemitério. A luz falhava lá dentro, o que fez com que algumas pessoas fossem falar com o prior para ver se

alguém da Câmara podia fazer qualquer coisa porque parecia impossível o estado ao que estas coisas tinham chegado. Mas o pior é que pingava lá dentro, pois o telhado há muito que não via melhores dias e até aos mortos tinham de se lhes fechar o caixão. As carpideiras da terra reclamaram tanto, mas tanto, que até de chorar se esqueceram.

O Martim recebeu as condolências de todos os que estiveram no velório. Nessa noite, fechou o café e pediu à tia que ficasse em casa a tomar conta dos meninos. Talvez umas vizinhas tivessem ido ajudar. O Alberto pai também ficou em casa.

Quando as portas da capela bateram, o Martim foi o último a sair porque o padre precisava de fechar a loja. Cá fora, deu os últimos abraços, os últimos passou-bens e foi a pé para casa, já passava bastante da meia-noite.

Foi devagar. O foco no José e na Maria. Não podia ser diferente.

Ao subir as escadas, ao lado do café, deu por dois sons. Um, da televisão, à frente da qual o Alberto pai dormia. Outro, da voz da tia, vinha do quarto.

- Que Deus te abençoe e te guarde, a ti. Que Deus te encha de luz e te favoreça, a ti. Que a Glória do Senhor ao iluminar-se no seu rosto se reflicta no teu, em ti. Que Deus te proteja, a ti. Que o Sangue de Jesus e o Espírito Santo te rodeiem e te acompanhem, a ti. – Um sorriso. E um instante. - Sempre.

Hoje, a bênção tantas vezes repetida era sobre a cara adormecida do José, deitado na cama do Martim e da Ana Maria. A tia a chorar aos pedaços e a lengalengar só com a

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mão livre. No outro braço, o amparo que fazia para cima e para baixo com a Maria a dormir, tal como o irmão.

Na ombreira da porta, o Martim assistiu só à última frase. Foi o bastante para a mão esquerda saltar direita e tapar-lhe a boca. Susteve um soluço que seguramente poderia acordar os filhos.

Ficou assim, parado, até que percebeu que a tia se ia levantar.

O dia a seguir ia ser difícil.

A chuva estava a dar tréguas mas a ligeira subida dentro do cemitério revelou-se mais penosa e escorregadia para todos os que, nessa tarde, acompanharam a Ana Maria à sua última morada.

A urna coberta ia à frente num andarilho com rodas, empurrado por dois coveiros locais. O padre Mesquita seguia logo atrás em passo lento, depois ia o Martim com o José pela mão, a tia Mercedes com a bebé Maria ao colo e, quem sabe, algumas dezenas de pessoas mais. A grande maioria vestida de negro. Todas muito vagarosas.

Da família, o Alberto pai estava incapacitado de sair de casa, não estava lá. Restavam os irmãos Daniel e Alberto Manuel que tinham recebido um telefonema do irmão avisar do sucedido. Ficaram ambos na Suíça. Era impossível virem para o funeral. Mandaram sentimentos. Do lado da família

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da Ana Maria não havia já ninguém.O cortejo fúnebre parou em frente a uma série de

gavetões. Um deles, a meio, estava vazio e aberto. O padre começou a falar num tom solene. A tia Mercedes não perdeu uma palavra enquanto a Maria dormia. Os coveiros deram meia volta e regressaram com alguns molhos de flores arranjadas com dizeres pagos e encomendados.

O José agarrou-se à perna do pai à altura do joelho. Chorou ao ver o caixão onde a mãe jazia prestes a ser empurrado para dentro de uma parede de cimento. O Martim pôs-lhe o braço por cima dos ombros.

Os coveiros içaram o caixão, meteram o topo inclinado na abertura e empurram-no para dentro.

Empurraram também alguns instantes para a frente.O padre Mesquita terminou o serviço. Despediu-se da

família. Primeiro o Martim e o José que levou um raspar no cabelo. Depois a tia Mercedes. Na Maria fez-lhe o sinal da cruz na testa e foi-se embora.

As restantes pessoas foram atrás dele até porque, do céu, caiam agora alguns pingos de chuva.

Ouviram-se guarda-chuvas a abrir.O Raúl, que estava ao lado da tia Mercedes, abriu o

dele protegendo a senhora e a bebé. Não disse uma palavra mas se o tivesse dito teria sido com o cicio que nunca lhe tinha passado. Nem com o tempo.

O Canina e o Jaime juntaram-se debaixo do telheiro de um jazigo vizinho. Os dois a olhar o vazio. O primeiro tinha deixado de usar o chapéu de pala há muito anos. Ficou careca cedo e trabalhava no saneamento da Câmara. O Jaime

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Primeiro Sendo

estava nos Correios.O Alexandre Bonito, filho do Joaquim mecânico,

agora dono de um franchise de pneus e bem na vida, foi até ao pé do Martim para lhe dar um abraço.

O Martim ainda não reparara mas um dos coveiros era o Zé, o Feijão-verde. Já bem para lá da idade da reforma, fazia um biscate no cemitério da Vila. Quando passou pelo viúvo levou a mão ao boné e puxou a borda para baixo a cumprimentá-lo de respeito.

O Raúl virou-se e apontou para o Feijão-verde ao mesmo tempo que olhava para o Canina e o Jaime debaixo do telheiro.

- O que é que ele está a dizer? – Perguntou o Jaime ao Canina.

- O quê?- O Raúl!O Canina olhou para o Raúl e lançou-lhe o queixo de

supetão como que a fazer a pergunta à distância. O Raúl voltou a apontar para o coveiro mas desta vez acompanhou o gesto com os lábios que exageram devagar a alcunha do velho de modo a que os amigos percebessem o que ele queria dizer.

-O Feijão-verde? – O Canina disse-o só para o Jaime ouvir, até porque o homem ia chegando perto.

- Olha, pois é! É o Feijão-verde! – Havia espanto na voz do Jaime.

- Mas ele não tinha batido a bota?- ‘Tá calado. Parece mal…

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- Oh… eu nunca mais lhe tinha posto a vista em cima.- Também eu não.O Feijão-verde passou por eles e voltou a repetir o

mesmo gesto que fez para o Martim.- Tarde… - Disse o coveiro mais para ele do que para

os dois homens.- Tarde. – Responderam o Canina e o Jaime ao mesmo

tempo.Desceu o caminho que o levaria ao portão do cemitério.

Com o punho fechado em torno do isqueiro, o polegar ia rodando a roldana repetidamente. Ia fazendo umas faíscas pequenas.

Depois das portagens, entrou na rotunda e saiu na terceira saída. Passou por cima da linha do comboio e ficou virada para Sul, paralela ao Tejo. A Rita, ao volante, avançou um pouco mais e parou o carro na berma. A ponte estava à sua frente. Com o carro ainda a trabalhar, acendeu um cigarro e ficou a olhar para ela.

Era um domingo depois de almoço. Seriam talvez quatro e tal da tarde. Tinha almoçado com duas amigas em Lisboa e depois meteu-se à estrada sem muito pensar. Não tinha nada para fazer até à noite. Foi para Norte e guinou em Vila Franca de Xira. Em vez de se dirigir para o centro da vila ou para a antiga casa dos pais, foi nesta direcção que

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Primeiro Sendo

acabou por seguir marcha.A ponte continuava no sítio onde a tinha deixado em

paz. Os arcos de aço e ferro a ondular como se fossem um rasto gigante de uma pedra a capar a água quase a perder-se de vista. Mas a pedra que desenhava a ponte podia ir ou podia vir, só dependia de quem tudo via. Os anos que escoaram tinham a responsabilidade de tudo fazer ver melhor. O que é mais fácil de dizer do que sentir aplicado na vida.

A Rita deu a volta à chave e abriu a porta do lado do condutor. Saiu. Olhou para a ponte durante alguns minutos. O cigarro atirou-o para o chão e pisou-o. Voltou a entrar no carro e pôs o motor a trabalhar sem arrancar.

Visto de cima, não importava a altitude, percebia-se o automóvel estacionado durante algumas horas na berma ainda antes de cruzar a ponte, por baixo. Um pouco mais à frente, ficava o jardim. No meio deste, o coreto.

Primeiro, a ponte. Segundos e terceiros ver-se-ia mais tarde.

Já era de noite quando a Rita acelerou em frente.

Havia umas horas mais críticas aos fins-de-semana que o Raúl e o Canina, ainda que o Jaime também o fizesse várias vezes, ajudavam no café do Araújo. Eram dias de mais movimento e eles sabiam que o amigo Martim precisava desta ajuda de braços. A tia Mercedes, ainda que com idade

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avançada, dava para as encomendas, mas restringia-se à cozinha e assim o balcão e as mesas sempre tinham um acompanhamento que mantinha o negócio a fazer algum dinheiro. Eram também momentos que o Martim aproveitava para dar mais atenção aos filhos na hora da comida, com alguma brincadeira a meio da tarde quando era possível e sempre quando chegava o momento para os pôr na cama. Primeiro a Maria. Depois o José.

Daquela vez, lá em baixo, a cozinha já fechara e era o Canina quem acudia alguns fregueses com mais cervejas. O Raúl já tinha ido embora e o Jaime não tinha aparecido para ajudar.

Pelas escadas acima de lado do café do Araújo, a Maria já ferrada a dormir, o José para lá a caminhar feito sonho, o Martim debruçado no berço da filha acompanhava com gestos tradicionais da bênção cristã da tia assim prestes a tocar ao de leve na cara da bebé. Os movimentos mais lentos que as palavras, de um lado para o outro, ora descendo, ora subindo. Outras vezes ao invés na ligeireza como ele achava que a tia tinha feito com ele desde que se lembrava de gente ser.

E ele, o pai, fazia a voz.- Que Deus te abençoe e te guarde, a ti. Que Deus te

encha de luz e te favoreça, a ti. Que a Glória do Senhor ao iluminar-se no seu rosto se reflicta no teu, em ti. Que Deus te proteja, a ti. Que o Espírito Santo te rodeie e te acompanhe, a ti.

Em cada “ti”, a mão também lhe fugia para os olhos da menina a dormir mas sem tocar. Cada “ti” acompanhado

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por uma suave exageração no tom de voz e no tal quase fazer que tocava nas pálpebras.

Daquela vez, o Martim não reparara que a tia Mercedes tinha subido as escadas e surgira atrás dele sem o interromper. Daquela vez, a tia chegara a tempo e apressou-se a corrigir. Pegou na mão dele e emendou.

- Que o Sangue de Jesus e o Espírito Santo te rodeiem e te acompanhem, a ti. – Um sorriso. Um instante. Um olhar mais demorado na vista do Martim. A terminar, uma palavra mais grave num suspiro. - Sempre. – E mais coisas nenhumas.

O Martim sorriu para a tia e pediu assim.- Desculpa…- Martim… - disse a tia – não precisas de pedir

desculpa.Na verdade, as desculpas na voz do Martim, como

na da maior parte das pessoas, não se evitavam… antes hesitavam-se.

Já era de noite quando o Martim parou.

O carro travou uns valentes metros antes de chegar à ponte. Foi de repente que o fez. É claro que não o fez sozinho. Os faróis balouçaram.

A Rita, lá dentro, sentiu o coração a ir mais depressa que o automóvel logo antes de parar.

Tinha sido apenas a primeira tentativa.

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Amor primeiro

Durante muito tempo tinham sido quatro as estátuas e sempre enfeitaram o jardim desde que ele se lembrava. Agora eram só três, todas alinhadas e quase por ordem. Representavam as Estações do Ano e davam uma espécie de tom distinto ao contorno da relva com a balaustrada mais atrás. Todas de costas para o rio como se conseguissem cortar o vento. Ele era a Primavera, o Estio (ou seja, o Verão, sendo a estátua que faltava), o Inverno e o Outono, as senhoras de pedra. As estátuas conheciam o Martim Araújo de ginjeira e mais depressa o tempo as gastaria do que ao homem. Mesmo que ele não fosse feito de pedra e a demora tivesse sido abrasiva.

No jardim, agora nos poucos momentos em que do café se podia afastar por umas horas, passeava com os filhos, pelo meio das folhas dos plátanos e da gravilha ali à beira do rio. Enquanto a Maria era bebé com o empurrar do carrinho atravessavam os carreiros, o José atrás da bola, o Martim de sentidos despertos sempre com as imagens, os sons e os

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cheiros a entrar por ele adentro. A relva. O rio. O barulho do comboio. A ponte ao fundo. O coreto. As escadas a dar a volta. A porta fechada mais abaixo. A Rita. Tudo o que ali ainda estava preso a bater no coração.

Mais à frente, o preciso local onde pousava a lanterna e a apontava ao carro dela a passar a ponte.

Em toda a extensão do jardim, o princípio da margem direita do rio onde se capava a água.

Pelo meio de todas as recordações presentes do amor dela, da Rita, os dois filhos feitos também de amor, mas da Ana Maria.

Se num momento apanhava a chucha da filha que caíra no chão, ou anuía a comprar um gelado ao José, no noutro instante, sem nenhum aviso, olhava fixamente para o vidro rachado da janela de lado mais abaixo no coreto, ou parecia-lhe ouvir o girar da roda de uma pasteleira antiga, ou então o clamar ao longe da populaça na praça de touros. Nunca se sabe o que mais engana, se os cinco sentidos ou os aferidos.

Sem uma menina nem outra, neste sítio tinha ambas como só ele podia. Tudo pesado, no entanto. Nada ligeiro.

Por outro lado mais presente, quando encontrava algumas pessoas conhecidas, por exemplo, não deixava de as cumprimentar com genuína gentileza ora não tivesse sido essa a educação dada pela tia Mercedes e até pelos gritos do Alberto pai, imagine-se. Mas, se pudesse olhar de fora, perceberia que a alegria de outros tempos tinha-a substituído uma boa porção. Dentro não estava o mesmo Martim. Era outro. Menos jovial por ventura mas menos atrido com

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Primeiro Sendo

certeza. É que o Martim não alentava paciência para

arrependimentos, não tinha estofo para rancores, não guardava pena dele próprio, nem se lamentava do que podia ter sido. Ao mesmo tempo, enchia-se de força com o que tinha amado. Era muito menos filosófico do que poderia parecer e completamente centrado no amor.

O amor. O amor único. O inicial feito Rita. O essencial da Ana Maria. O absoluto e notável em ambos os filhos. Todo ele, todo o mesmo amor primeiro. E sendo o primeiro, bem guardado e vivido, o Martim entendia que esse era o amor que não se ensina, mas sim, que se aprende. Que não se esconde, mas partilha-se. Não se sussurra, antes grita-se. Não se procura, em troca se encontra. Sobretudo, não se faz, é-se.

As pernas do Alberto pai estavam cada vez piores. O médico já tinha dito que teria de ir à faca e não se podia esperar muito mais tempo.

A tia Mercedes duplicou as idas à igreja mas o resultado de tanta reza só se via nos joelhos da senhora. Nas pernas do cunhado, nada.

Por seu turno, parecia que ao Alberto pai aumentava-lhe a vontade de gritar pelo filho com ordens para governar o estabelecimento. Nem a cama lhe trazia mais merecimento pelos cuidados prestados, nem o choro da Maria que se

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seguia a cada sessão de gritaria lhe dava recato. Gritava o velho, berrava a mais nova. E de cada vez que o Martim tentava apaziguar o pai, sucesso só tinha com a Maria, pois para apagar o fogo do pai não se ia lá com colo e beijinhos. Nem havia quem.

Quando chegou o dia da operação, o homem foi a berrar o tempo inteiro com os pobres dos bombeiros que o foram buscar ao primeiro andar, sacudir para cima da maca, descer as escadas a custo para o meterem, depois, na ambulância. E quando lá passou pela esplanada, aos tombos e às pontadas, ainda gritou com o Martim porque as cadeiras empilhadas no canto não tinham a corrente à volta delas não fossem os ladrões levarem algumas.

- Chiça, que o gajo não se cala, nem na maca. – Disse o Jaime, que nesse dia veio dar uma ajuda ao Martim, para um freguês.

O Alberto pai só fechou a matraca quando lhe puseram a anestesia no bucho. Mais tarde, quando acordou na cama do hospital e percebeu que lhe tinham amputado uma perna, também não disse nada. Foi um paz-de-alma para as enfermeiras.

Ficou assim, sem nada dizer, desde o momento que voltou para casa. Parou de gritar e semanas depois de viver. Foi tudo muito depressa. Foi assim que o Martim ficou sem o Alberto pai.

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Ao funeral, vieram os irmãos da Suíça. Chegaram de carro. O Martim achava que, pelo menos, o Alberto Manuel nunca iria voltar a Vila Franca mas, pelos vistos, estava enganado. Veio com a Natália, a mulher que era de Cinfães, e as duas filhas, a Lúcia e a Margarida. Noutro carro, chegou o Daniel com a mulher. Chamava-se Hua Jun que queria dizer “flor verdadeira” em chinês, tinha piada, e o filho Jacques, à francesa com “es” no fim. Iam ficar uns dez dias, talvez.

Verdade que o motivo da visita tinha sido o funeral do Alberto pai, mas não era mentira que ter os irmãos reunidos, e especialmente a filharada toda à mistura, transformava tudo por completo. Para melhor.

Noutros dias, a Rita continuou a sair da auto-estrada no mesmo local nas suas viagens a norte de Lisboa. Depois de pagar a portagem, fazia-se à rotunda, virava na terceira saída e, certo e sabido, o pé do acelerador começava a levantar. Era quase sempre a modos que um pouco antes de se perceber que o automóvel tinha de passar por baixo da ponte, não tardava nada. Não havia outro caminho.

Lá acabava por encostar o carro na berma à direita. Ligava o rádio numa estação que passava música dos tempos em que vivia em Vila Franca de Xira. Raramente saía do carro mas abria a janela do seu lado quase sempre. Naquela estrada havia muito pouco trânsito o que limitava o risco de parar algum esperto para perguntar se precisava de ajuda.

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Do lado esquerdo do automóvel ficava a olhar a ponte durante muito tempo até que voltava para casa.

Sabia-lhe sempre bem ir até ali. Só ver a ponte e o rio recordava-lhe o mesmo primeiro que também pertencia ao Martim Araújo. O primeiro com o Martim. Como se fosse preciso recordar o sentimento deste “nós” através destas idas a Vila Franca. Nunca tinha deixado de sentir este mesmo “nós”. Nem quando percebeu em rapariga que o tinha de deixar ali e ir para Lisboa. Ainda que o Martim tivesse permanecido com ela, foi ali que a Rita o deixou.

Nada poderia ter sido diferente.A Rita chorou só de um olho, o esquerdo, ainda antes

de ter passado o Trancão.

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Cinco arcos perfeitinhos

Naquele dia, assim, como assim, a falta de semelhança não era por aí, além. Até o tempo tinha pregado uma partida e chuviscava em pleno mês de Julho no cemitério de Vila Franca de Xira, tal como da vez anterior. Na vez da Ana Maria do Martim. Havia passado bem menos da porção de um ano e ele tinha, não só posto a repousar a mulher aqui, como agora, o pai.

O mesmo padre Mesquita, depois de liderado o cortejo fúnebre, tinha realizado o serviço junto ao gavetão onde colocariam o caixão do Alberto pai, um pouco mais abaixo de onde ficara a Ana Maria.

Se os amigos dele voltaram a marcar presença, o maior amparo estava nos irmãos Daniel e Alberto Manuel que deram à morte do pai o pretexto para regressarem à terra acompanhados pelas suas famílias e tudo. Quer a Natália, mulher do irmão mais velho, quer a Hua Jun, mulher do Daniel, estavam igualmente em Portugal. A tia Mercedes de olho em toda a criançada: o José, a Lúcia, a Margarida e

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o Jacques. A Maria estava nos braços da tia da China que desde que chegara, insistido tinha para se encarregar da bebé sempre que houvesse ocasião. O Martim agradecia a ajuda, pois então.

Dos três irmãos o Alberto Manuel era o único que pranteava o saimento do Alberto pai. O seu choro não passou despercebido às filhas que entenderam, a partir daquela tarde, que o pai, que sempre lhes disse que as lágrimas se engoliam, também tinha permissão para chorar. Pensando bem, nunca o tinham visto assim, a chorar.

No muro, lá ao fundo no cemitério, um corvo atirou-se aos céus para voar dali para fora.

O Daniel reparou que um dos coveiros era o Feijão-Verde muito mais velho. Mais tarde haveria de confirmar com o Martim. Agora, a mulher aproximava-se dele para lhe sussurrar qualquer coisa.

Depois de ouvir, perguntou ao irmão.- Martim, a Hua Jun ‘tá a perguntar onde está a Ana

Maria. Leva-a lá daqui a pouco?- Pode ser agora.O Martim deixou o Daniel com o Alberto Manuel, fez

sinal à Hua Jun para o seguir e chamou o José para o pé dele. O José deu a mão ao pai e foram devagar.

Agora, parara de chover.Em silêncio, os quatro subiram mais um pouco e

viraram à esquerda, no segundo talhão. Uns passos mais à frente o Martim e o José pararam.

- É este aqui. – Disse a apontar, não que a Hua Jun

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Primeiro Sendo

percebesse.Havia uma fotografia a preto e branco da Ana Maria

na parcela de cimento onde jazia. Um rebordo dourado em torno da cara dela. A palavra “esposa”, a palavra “mãe” pelo meio das datas inscritas na pedra mármore. Uma anilha de ferro que servia para colocar uma vela ou até flores em saudades.

A cunhada acomodou melhor a bebé Maria de olhos abertos ainda no seu colo e debruçou-se para dar ao José o pequeno ramo de flores que levara na mão.

Sorriu para o miúdo.- For your mother. - A Hua Jun não falava português.- Hã… - exclamou o José a agarrar nas flores.- É para a mãe. – Traduziu a voz do Martim mais

acima.O Martim içou o José com as mãos nos sovacos e o

rapaz meteu as flores na anilha de ferro junto à Ana Maria. Eram demasiados caules, e o Martim teve pousar o filho, separar o ramo e voltar a repetir o levantamento. Algumas flores ficaram ali bem postas enquanto, outras, levou-as o José nas mãos.

A Hua Jun colocou a palma da mão no topo da sepultura da Ana Maria e começou a dizer baixinho umas frases em chinês. O Martim e o José ficaram atrás dela a olhar. Só se percebia o tom, nada mais.

Os ciprestes abanaram um pouco com o vento que soprava da lezíria.

Quando regressaram, o Alberto Manuel já tinha

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Francisco Penim

enxugado as lágrimas da surpresa e estava de mão dada com a Natália. À chegada, o Daniel deu uma palmada suave no ombro do irmão mais novo e juntou-se à mulher. O Martim vinha com a sensação de que tinha sido mais custoso ter regressado à campa da Ana Maria do que ter sepultado o pai. E tudo no mesmo dia. Não ocupou a mente sobre o que é que isso diria dele como filho… nem, ao invés… sobre o que diria dele como marido… agora, como viúvo. Ainda que não o pesasse em demasia lá por dentro, não era algo que lhe estivesse a preencher nem uma ponta de orgulho que fosse. Quando finalmente terminou a comiseração, à medida que ia andando, veio-lhe uma vontade antiga e completamente vã de abraçar a mãe. Respirou fundo, lutou contra as lágrimas e a única coisa que conseguiu foi fazer sinal para ser ele a levar a Maria.

O Martim pegou nela e apertou-a o suficiente para sentir que era amor o que estava a segurar.

O José foi dar à Lúcia as flores que trazia na mão que, por sua vez, as deixou no chão perto das restantes junto à última morada do Alberto pai.

E foram todos para baixo.

Naquele dia, o Martim não tinha aberto o café por via do luto, pelo que, quando todos chegaram, foi natural a maneira como se começaram a dispor cá fora, sentados nas cadeiras, numa grande roda em volta de três mesas.

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Primeiro Sendo

A Maria voltou a mudar de colo enquanto o Martim foi abrir a porta deixando passar a tia Mercedes, que foi ligar a máquina do café, e o José que tinha pedido ao pai para ir buscar pastilhas para todos os miúdos.

Finalmente, na esplanada de outro modo vazia, o silêncio tinha de ser quebrado por alguém.

- Então, vocês ficaram lá pela Suíça… - perguntou o Canina aos dois irmãos.

O Daniel respondeu.- Bom… vai-se fazendo pela vida.- Só pode correr bem, porra… Olha só os vossos

carros. – Respondeu o Canina ao mesmo tempo que reparou que o Jaime estava a acender um cigarro e acenou-lhe a cravar um.

O Raúl viu os amigos a passarem um cigarro entre eles e estendeu a mão.

- Outra vez? – Queixou-se o Jaime. – Já é o segundo…- Vá lá…Do outro lado da mesa, o Alberto Manuel, já

recuperado, atirou o seu maço de Marlboros ao Raúl, que prontamente o apanhou quase à guarda-redes.

O José chegou com uma mão cheia de pastilhas e começou a distribui-las pela criançada.

- Obrigado. – Respondeu o Raúl ao gesto do Alberto Manuel.

- Na Suíça, estes carros são muito mais baratos que em Portugal. – Justificou o Daniel. – Nenhum de nós está rico.

- Podem não ‘tar ricos mas ‘tão melhor do que qualquer um de nós. – Rematou o Jaime.

- Ah, poi-thé.E continuaram a falar da vida na Suíça, de como se

tinham estabelecido por lá, há quanto tempo o tinham feito, de como eram as pessoas no meio de tanto frio e neve. Se tinham saudades da terra e se seguiam o Benfica. Os efeitos do funeral a esbaterem-se um pouco.

Na porta do café o Martim chamou o José que, de pronto, voltou ao grupo para perguntar quantas bicas eram.

A Natália levantou-se para perguntar onde era a casa de banho e levou a Lúcia com ela, de mão dada.

Logo a seguir, o Martim saiu com a bandeja cheia de chávenas. Foi parado por dois homens que lhe ofereceram os pêsames. Agradeceu de pronto a atenção e seguiu em frente. Junto às mesas foi tirando chávenas, dando-as ao Canina que as ia passando aos restantes convivas.

Os primos todos iam fazendo corridas em redor da esplanada. Ao final de contas, era a primeira vez que brincavam todos juntos.

O Martim sentou-se ao lado da Hua Jun que tinha a Maria no colo.

- ‘Tás bem? – Perguntou o Jaime ao seu lado quando lhe tocou na perna.

- Tudo.- Já viste que um carro daqueles – e o Canina apontou

para um dos automóveis dos irmãos do Martim, que estava estacionado ali ao pé – custa menos lá do que cá? E mais: cá

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não há carros daqueles.O Martim não respondeu mas fez, de um gesto,

menção de que tinha compreendido a ideia.O Alberto Manuel chamou a Margarida para lhe dizer

para ter calma, não estar a correr tanto porque, senão, ficava com dor de burro. A menina disse que sim a arfar e saiu disparada para continuar a brincadeira.

- Martim, não ‘tava na altura de pensares em vender isto? – Arriscou perguntar o Daniel em frente de todos.

- Vender o café?- Sim, porque não? Vendias e vinhas connosco para

Lyss. – Continuou o Daniel.- Não. Não vou vender o café.- Olha que era uma boa ideia. Mesmo que percas

algum, podias vender isto. E ias-te dar bem por lá, sabes? – Juntou-se o Alberto Manuel.

- Não me parece, pá.- Porquê?- Porque não. Porque não me parece. – Tentou

desconversar e começou a fazer que se ia levantar. – Quem é que quer comer alguma coisa? Daniel… a tua mulher o que é que quer?

- Deixa estar… não é preciso nada.O Martim levantou-se, levando a bandeja vazia com

ele.- Eu já venho. – E foi na direcção do café. À medida que foi andando, a mão debaixo da bandeja,

que também segurava um abre-garrafas, foi batendo na

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chapa fria. O Martim não notou, mas a maneira como o abre-garrafas ia dando pequenos toques não era, de todo, inocente. Dir-se-ia, se ele tivesse reparado nisso, que a cadência se assemelhava a oito toques. Um rápido, outro demorado, dois rápidos. Seguido do inverso. Um demorado, outro rápido e mais dois demorados. E lá foi o Martim acompanhado pela ladainha sorrateira debaixo da bandeja.

- Se o Martim não quer ir pá Suíça, vou eu. – Disse o Canina. – Oh, Daniel…

- Diz…- A tua mulher não tem nenhuma irmã mais nova?E desataram-se todos a rir. Todos, menos a Hua Jun,

que sorriu um pouco atrapalhada por não ter percebido a razão da galhofa. O Daniel explicar-lhe-ia não tarda nada.

Mais importante, é que talvez não fosse a altura para voltar a insistir com o Martim para ele vender a chafarica. Haveria com certeza mais oportunidades. É possível que o tentassem convencer, usando o argumento do futuro do José, por exemplo. Seja como for, isso, de poder vender, é que fazia sentido.

Depois, o Alberto Manuel levantou-se da mesa e chamou todos os primos aproveitando para parar um pouco a correria que já lhe fazia confusão à cabeça, especialmente num dia como aquele. Juntou-os aos quatro para tirar uma fotografia de família. Os quatro primos juntos: a Lúcia, a Margarida, o José e o Jacques. Tirou umas quantas fotografias com o telemóvel. A Margarida, a mais velha, afastou-se por momentos do grupo e foi pedir a Maria à tia. Voltou logo depois, pé ante pé, com a prima bebé ao

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colo, e juntou-se para uma nova sessão fotográfica. Desta vez, o Daniel também tirou algumas fotografias para pôr no Facebook.

Este até se revela um momento de vitória porque, desta vez, a ponte não a detém. Cerra os dentes e lá consegue passar por baixo, segue em frente umas quantas centenas de metros e mete o carro logo no primeiro parque de estacionamento que fica assim à direita de quem chega perto do pavilhão, juntinho da linha dos comboios. O carro de traseira virada com desprezo para o rio, com o pesado portão do jardim no lado esquerdo. O portão aberto que dá para a vereda paralela à linha. Exactamente a mesma que fica no enfiamento do coreto um pouco mais à frente.

Dá para respirar fundo, mas não sai do automóvel.Uns instantes passam.Fica com a ideia que tinha sido por aqui que tinham

vindo com a pasteleira naquele dia em que o Martim se tinha espetado no chão na corrida com o Tiago. Tem quase a certeza disso.

Olha pelo vidro do lado do carro e vê os plátanos que, agora, cobrem de folhagem verde praticamente a totalidade do caminho da vereda, daqui e até lá ao fundo… pelo menos até onde a sua vista consegue alcançar.

Umas quantas pessoas passam por ali.

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Hoje é tudo completamente diferente do que tinha achado antes que poderia vir a ser. Até por isso, sair do carro está, para já, fora de questão.

Acende um cigarro e abre um pouco o vidro por causa do fumo. O Carlos não gosta nada que se fume dentro dos carros.

Para já tudo não passa de uma boa tentativa. Já tinha conseguido passar a ponte e isso já não era nada mau, não senhora.

Neste momento, a Rita vira-se para o vidro e passa os dedos da mão direita pela parte debaixo das suas costas naquele espaço em que o camiseiro sobe e descobre uma magra faixa de pele limitada pelo início das calças. O braço assim para trás a fazer um ângulo distraído que segue para cima na direcção das pontas de alguns cabelos negros que lhe tombam. Puxa-os sem propósito de uma maneira inata como fazia desde rapariga mas sem nunca reparar nisso. Torce estas farripas de cabelo negro, trá-las para o lado, tomba a cabeça para ajudar ao gesto, sopra uma baforada de fumo, enrola as pontas ao redor dos dedos, puxa ligeiramente e, entre o indicador e polegar, toca em certos sítios da própria pele no final das costas. Em seguida, larga os cabelos. Depois, recomeça sem nunca deixar de fumar o cigarro que continua a levar aos lábios por vício e ofício.

Hoje não chora.No rádio, que sempre esteve ligado, passa uma música

que fala de uma rapariga que espera pelo capitão do seu coração.

Ui.

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No jardim, também se dão voltas e como não há muitas hipóteses de as dar com a família, vai daí, o Martim decidiu aproveitar os irmãos estarem todos reunidos para juntar a pandilha, espairecer e descer até às margens do rio.

A tia Mercedes ficara em casa com a Maria e o resto do pessoal foi por ali abaixo, depois do café ser fechado mais uma vez.

- Vamos ver a ponte e capar a água, pai? – Tinha sido assim que o José se entusiasmara para ver se os primos tinham o jeito dele ou não. Estava-se a ver que não.

Não se lembrava da última vez que tinha percorrido aquelas ruas lado a lado com os dois irmãos. Era bem possível que fosse a primeira vez e, de certeza, que nunca o tinha feito com as famílias de ambos. Quando pararam junto à cancela aberta, para passar para o outro lado da linha, o Martim fez questão de estarem todos juntos, olharem para os dois lados com cuidado e, só depois, atravessarem. O empedrado dava um novo sentido à marcha de passeio pela rua onde, em tempos, ficava a oficina do Joaquim Bonito, um pouco mais à frente no lado esquerdo.

Lá cruzaram a linha do comboio e viraram para o jardim. Entraram pelo portão do lado sul e a pequenada foi a correr em direcção à balaustrada.

- Cuidado. – Avisava o Alberto Manuel. Já se percebeu que o irmão mais velho zelava muito pelo bem-estar dos seus.

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Passaram a correr pelas costas de pedra das três estátuas das Estações do Ano até ao sítio onde o Martim costumava vir com o José.

- Quem é que quer aprender a capar a água? – Perguntou o Martim para os miúdos.

As crianças levantaram todas os braços mas só porque o José já lhes tinha contado o que era isso de capar a água.

- Primeiro, apanhem uma pedra.E lá foram todos à cata de pedras com o José a explicar

que tinham de escolher pedras lisinhas, lisinhas. Se não, não ia dar. O Martim apanhou a primeira que viu. Talvez estivesse ali a chamar por ele.

- Já todos têm uma pedra? – Era impossível capar a água sem nos divertirmos. Nem que seja só um bocadinho.

- Sim! – Responderam em coro.- Não! – Corrigiu a Margarida. – Falta o Jacques.O miúdo ainda esgravatava a terra à procura de uma

pedra lisinha, lisinha que o Daniel encontrou por ele e passou-a para a mão do filho.

- Vá. Já está. – Anunciou o Daniel.- Agora, faz-se assim…. – e o Martim levou a mão

direita ao pé da boca e pregou-lhe uma valente cuspidela. Pumba!

- Hmmmm… - foram as meninas a fazer uma careta de nojo.

Os meninos abriram os olhos e sorriram.- Meninas… – explicou o Martim debruçando-se

sobre as duas. – ‘Tá tudo bem. É só água!

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O Jacques, que ainda sorria, levou à boca a pedra que tinha apanhado do chão e cuspiu-lhe para cima. A Margarida viu, e fez o mesmo na pedra dela. O José não se ficou atrás. A Lúcia tentou mas o cuspo falhou o alvo, bolas… por isso, levou a outra mão à boca, lambeu os dedos e passou-os molhados na pedra. Que rica menina!

- Muito bem. Agora, estão a ver a ponte? – E o Martim com a pedra lisinha na mão direita, limpou-a às calças. Os mais pequenos repetiram o gesto enquanto olhavam para a ponte Marechal Carmona. – Quero cinco arcos perfeitinhos, meninos. Cinco arcos a capar a água! Um, dois… três!

A Lúcia e a Margarida. O Jacques e o José. O Martim. Todos atiraram as pedras lisas ao mesmo tempo ao rio. A Natália e a Hua Jun, o Daniel e o Alberto Manuel sorriram perante o empenho de todos nas pedras lançadas que, de ricochete em ricochete, foram batendo ao de chapa na superfície de água, e avançando a olhos vistos como se impelidas por uma vontade quase humana de chegar à outra margem, de tanta força que levavam a impulsioná-las.

Vistas de cima, e ainda que com resultados diferentes, as pedras foram lançadas, dir-se-ia com valor.

A do Martim foi bem mais longe. Pudera, era quem percebia mais daquilo. A experiência faz toda a diferença.

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Sem mexer do mesmo sítio

A Rita não dizia onde ia. Simplesmente metia-se no carro e seguia viagem. Os alguns ajustes que acabavam por ter lugar só se manifestavam depois de continuar a ter forças para passar por debaixo da ponte, estacionar o carro e ponderar um pouco, por vezes com o rádio ligado, outras vezes não. O mais longe que tinha conseguido ir foi até à margem do rio, mas junto ao enfiamento do Esteiro do Nogueira, onde as novas casas dos avieiros se alinhavam de um dos lados do largo. Era até esse sítio que a sua corda esticava, nos limites do jardim e onde se ficava mais perto da ponte.

Sempre junto à água como se fosse enganando o corpo com a proximidade e alertando a razão para a intensidade. Os sons e os cheiros ajudavam ambas as sensações e isso tinha o dom de um reconforto que dificilmente conseguia explicar se fosse preciso. Havia um bom fragmento da Rita que aqui se conservava vivo e que lhe era entendido como que indispensável. Essa era uma imensa porção de amor que, na

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verdade, nunca lhe desapareceu das acções. Especialmente nas que incluíam a filha Francisca, foco de todo o seu amor desde o dia em que a pequena nasceu.

Não desfazendo, o Francisco Assunção, pai da Rita, costumava dizer bastas vezes que ela não nascera de geração espontânea sempre que se queria referir ao que ela herdara dele próprio e que não da Laura. A Francisca tinha naturalmente essa faculdade, tendo nascido da Rita e do Carlos, o que atestava que, num determinado momento, teria havido um amor que os ligara de facto. Esse, no entanto, não era o amor que perdurara.

O amor com o qual escolheu viver estava aqui bem presente. Sabendo que o tinha aprendido neste local, a Rita não o dissociava do amor que tinha recebido do Martim. Era o mesmo. E era comovente.

Por isso chorava por vezes, não que fosse detectando algum sinal de arrependimento ou remorso. A Rita acreditava que tudo o que recebera e tudo o que dera não era lamentado mas sim celebrado, porque sendo o primeiro amor, era de igual modo o que hoje a animava ainda. Nasceu de coração jovem, completou os sentidos, consumiu-se de tristeza quando chegou o momento de se ir embora, distanciou-se com o tempo mas nunca se apagou realmente. Depois de tantos anos, o primeiro amor foi-lhe para a vista.

A Rita chorou dos dois olhos com a ponte de fundo que durante todo, mas todo, este tempo nunca se mexeu do mesmo sítio.

Na verdade, nunca mexeu nenhum dos cinco arcos desde a inauguração em Dezembro de 1951.

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Estava um frio de rachar em cima da ponte e tinham obrigado os rapazes a varrer a secção final do tabuleiro antes da inauguração que ia acontecer ali no dia seguinte. Vinha o Presidente da República, General Craveiro Lopes, o cardeal-patriarca de Lisboa, Cardeal Cerejeira, o Ministro das Obras Públicas, Engenheiro José Frederico Ulrich e, naturalmente, o Presidente do Conselho, Professor Doutor António Oliveira Salazar. A vila estava em festa pela nova travessia iminente e pela expectativa da presença lá na terra das mais altas figuras do regime. Os habitantes estavam muito orgulhosos. Uns mais que outros.

Um dos rapazes que em pleno mês de Dezembro se esforçava para varrer o raio da ponte, era o Zé. Ainda não tinha feito os doze anos e já percebia que se se esmerasse naquela tarefa ingrata, poderia arranjar um emprego e esquecer o resto da escola. Aquele alcatrão que hoje varria seria pisado pelas maiores figuras do estado com o Professor Doutor Salazar à cabeça. O Professor Doutor era a personalidade que o Zé mais admirava, pois então.

Ainda assim, amanhã, seriam milhares que passariam pela ponte, pessoas, cavalos e carros… e o pó seria, de certeza, a mínima das preocupações daquelas gentes. Seja como for, era graças à inauguração da ponte que, para muitos vila-franquenses, as coisas corriam às mil-maravilhas. Gastar cinco escudos para passar ali de carro era um pormenor que não parecia preocupar grande parte da população. Muito

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menos o Presidente do Conselho, que discursaria no dia seguinte e diria assim de peito cheio: - Em plena natureza, em face do largo Tejo e adivinhando a lezíria imensa, sob um céu protector e as bênçãos de Deus, homens de vastas regiões celebram, como uma grande família, uma vitória incruenta. A vitória sobre os elementos e os obstáculos naturais, e riem e folgam e transbordam de alegria, porque esta obra magnífica lhes enriquece a paisagem, lhes facilita o trabalho, os ajudará a levar a vida, nobre e séria, tal como a queremos e amamos. E esta é precisamente uma imagem da vida, na sua verdade, na sua pureza e na sua glória.

Na inauguração, o Zé assistiu à solenidade do discurso tal como todas as pessoas da terra engalanada. Ele enquanto fumava uns cigarros às escondidas e furava pela multidão para tentar chegar ao princípio do cortejo. Naturalmente que não se lembrava da maior parte daquelas palavras mas foi o que ouviu depois a uns homens que liam o jornal uns dias mais tarde enquanto lhes engraxava os sapatos, já a ponte estava aberta ao trânsito. Tinha sido um discurso poderoso e pleno de promessas de futuro. Algumas daquelas frases levaram o Zé a acreditar que, se a vida lhe desse o que ele precisava, talvez pudesse chegar a presidente da Câmara. Sabe-se lá!

- O Salazar é que a leva direito. – O homem fez uma pausa, ajustou-se na cadeira, puxou a perna direita das calças mais para cima e continuou a ler o jornal, voltando a proferir parte das palavras do discurso do Presidente do Conselho. Tudo enquanto o Zé terminava de passar lustro no sapato castanho. – Transbordam de alegria - diz ele - porque esta obra nos facilita o trabalho.

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- Foi o que ele disse? Facilita o trabalho? – O segundo homem foi para trás do primeiro só para confirmar nas letras do jornal o que tinha ouvido.

- É preciso ter tomates.A palavra fez o Zé parar momentaneamente para

depois prosseguir o trabalho. Estava quase a terminar.- Chiu… não digas isso. – Disse outro dos homens que

reparou que o rapaz tinha reagido ao impropério.- Que foi? Se alguém tem tomates no Conselho é o

Salazar.O Zé soltou uma interjeição quase inaudível que

registava mais uma vez o termo utilizado.- Achas que se ele passar a ponte o vão obrigar a pagar

a portagem, Camilo?- Achas que sim, tu?- Tenho a certeza que não. A portagem é só para

aqueles que ficaram com o trabalho facilitado, como nós.- Tu viste como o casaco comprido dele se parecia

com a capa do Cardeal Cerejeira?- O Salazar não é como nós, pá. É beato como o raio.Os homens riram-se a bom rir.O Zé parou de puxar o lustro ao sapato do homem.- O que foi, rapaz?- O senhor não gosta do Professor Doutor Salazar? –

Foi a pergunta do Zé ainda de joelhos mas a olhar para cima.- Eu? Que ideia é essa?- O senhor parece que não está assim muito contente

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com a ponte que ele mandou fazer cá na terra…- Querem ver agora que até os cagaréus percebem de

política! – Os homens riram-se todos à custa do Zé. – Cresce e aparece, miúdo!

O primeiro homem levantou-se, deu um piparote na moeda que sacou do bolso em direcção ao engraxador, virou costas e seguiu com os amigos pelo passeio. Provavelmente até ao Ateneu.

O Zé apanhou a moeda no ar com as duas mãos e olhou para as costas dos homens que injuriaram o Professor com desdém.

- Cabrão… - disse o Zé entre dentes. Foi só para ele.Quem diria que o Zé que tinha varrido a ponte

Marechal Carmona uns dias antes da inauguração e ganhara uns trocos a engraxar sapatos no início dos anos cinquenta em Vila Franca de Xira iria enterrar alguns daqueles homens muitos anos mais tarde?

A vida dá mesmo que pensar e tem coisas do arco-da-velha.

Os irmãos estavam prontos para ir embora e, até à última, a Hua Jun embalava a Maria nos braços a aproveitar à míngua. A vontade não passou despercebida.

- Já pensaste em ter mais um? – Perguntou o Martim ao Daniel.

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- Não me digas mais nada.O Martim regressou ao sopé das escadas e meteu as

mãos à volta da boca.- Se esse menino não se despacha, não vai hoje para a

Suíça. – Disse-o a olhar fixamente para o Daniel. Na verdade, era o Jacques que tinha tido vontade de fazer chichi e subira a correr para ir à casa de banho.

- Eu vou buscá-lo. – Ofereceu-se a tia Mercedes que ia a sair do café com a Natália. A cunhada vinha com dois pacotes de bolos.

- O Alberto que nem pense em comer isso tudo…- Nem pensar. Ele sabe que isto é para lá p’rós vizinhos.

– E foi em direcção ao automóvel. O Alberto Manuel estava a terminar de arrumar todos os pertences da família e tentava perceber se conseguiria fechar a mala do carro sem entalar nada.

A Lúcia e a Margarida estavam a despedir-se do José com abracinhos de primas. Beijinhos já era mais difícil e o rapaz limpava a cara com o antebraço sempre que alguma delas tinha um sucesso relativo na despedida mais lambuzada.

O Martim aproximou-se da Hua Jun e fez um gesto repetido com ambas as mãos ao mesmo tempo para a Maria vir para o seu colo. A bebé respondeu de braços abertos e não se importou de mudar de poiso.

- Bi-djinó. – Disse a Hua Jun para o Martim quando o beijou uma vez na face.

- Bei-ji-nho. – Tentou o Daniel mais devagar.

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- Thank you.- Obrigado nós. – Respondeu o Martim para ela.O Jacques desceu as escadas seguido pela tia

Mercedes.- O teu filho é um miúdo de muitas vergonhas, Daniel.

Nem me deixou ajudar a fechar a braguilha.O miúdo meteu-se logo no carro e não tardou nada

para que os dois irmãos se lançassem à estrada rumo à Suíça. Os dois automóveis soaram as buzinas. Mãos a acenar adeus pelos vidros abertos. A música dos rádios a jorrar cá para fora em catadupa. No café, o Martim com a Maria ao colo, o José ao lado dele e a tia Mercedes mais atrás, a responderem às despedidas.

Estes últimos dias seriam recordados muito mais pelos momentos felizes de reunião da família do que pela partida do Alberto pai. A passagem do tempo, essa, acabaria por dar razão à escolha do Martim em ficar em Vila Franca. Já o mesmo não se poderia dizer do Canina que, anos mais tarde, iria atrás do sonho suíço, fosse lá ele o que fosse. Até porque a Hua Jun era filha única.

Para o Martim, muito do que ficava por ali estava mais abaixo, bem mais próximo do rio, de onde nunca tinha saído. Muito do que tinha ficado, nem parado tinha estado, embora não todo.

Sempre que o Martim ia até à margem do rio, e segurava a balaustrada como se tivesse receio de tombar, tinha o hábito de duvidar sobre se o que tinha perdido o impedira de voltar costas a Vila Franca de Xira. Mas, para ele, sair dali seria correr o risco de deixar de sentir o primeiro amor, algo

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que percebia dentro dele ser impossível. O amor único que experimentara pela primeira vez com a Rita, tinha-o visto replicado no que o ligara à Ana Maria e no que ainda hoje o unia aos dois filhos. Esse amor vibrava no seu interior feito primeiro e primeiro sendo manifestava-se eterno.

As conclusões, variadas vezes, são muito mais simples escritas do que vividas e, como tal, mesmo de amor composto, o Martim voltava ao jardim constantemente onde tudo a recordava. A cada apito do comboio, regressava à primeira vez debaixo do coreto, sentindo depois o frio do maldito poste da estação. A cada vislumbre da ponte, segurava de novo a lanterna do Alberto pai, e seguia os carros com os olhos acompanhados do raio de luz. A cada passo que dava na relva, via mais uma vez os longos cabelos castanhos que nela repousaram. A cada olhar que apanhava de soslaio de uma das Estações do Ano, subia-lhe o calor de quando os olhos dos dois se cruzavam. A cada som mais repetitivo, encontrava uma sequência terrivelmente parecida com os seus ponto-traço-ponto-ponto, uma pausa, traço-pon-to-traço-traço que lhes tinham dominado a ligação. A cada salto de uma pedra lançada a capar a água, era o Martim que tudo ensinava de novo à Rita.

Ainda achava ele que podia ficar ali, em Vila Franca de Xira, para sempre como a ponte, sem se mexer do mesmo sítio.

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