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COLECÇÃO ECOS DA HISTÓRIA chiadoeditora.com Chiado

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  • COLECÇÃO

    E C O S D A H I S T Ó R I A

    chiadoeditora.com

    Chiado

  • © 2016, Tiago Moita e Chiado EditoraE-mail: [email protected]

    Título: O Último Império Editor: Camila Figueiredo

    Composição gráfica: Inês Tavares – Departamento gráficoCapa: Inês Tavares - a partir do retrato do Rei D. Sebastião de Cristóvão de Morais

    Revisão: Tiago MoitaImpressão e acabamento: Chiado Print

    2.ª edição: Fevereiro, 2016

    ISBN: 978-989-6974-92-3Depósito Legal n.º 401076/15

    Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedi-cação de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.

    www.chiadoeditora.com

    Portugal | Brasil | Angola | Cabo VerdeConjunto Nacional, cj. 903, Avenida Paulista 2073, Edifício Horsa 1, CEP 01311-300 São Paulo, Brasil

    Avenida da Liberdade, N.º 166, 1.º Andar1250-166 Lisboa, Portugal

    Chiado Editorial

    EspanhaPaseo de la Castellana, 95, planta 1628046 MadridPasseig de Gràcia, 12, 1.ª planta08007 Barcelona

    Chiado Publishing U.K | U.S.A | Irlanda Kemp House 152 City Road London EC1CV 2NX

    Chiado Éditeur

    França | Bélgica | Luxemburgo34 Avenue des Champs Elysées

    75008 Paris

    Chiado Verlag

    Alemanha Kurfürstendamm 21

    10719 Berlin

  • TIAGO MOITA

    O ÚLTIMO

    IMPÉRIOFICÇÃO

    Portugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

    Chiado

  • “Se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é o futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro.”

    Padre António Vieira

  • À minha família e a Portugal

  • Nota: Este livro é uma obra de ficção. Qualquer relação en-tre nomes de pessoas, momentos, lugares ou factos descritos neste livro e a realidade é pura coincidência…

    …ou não?

  • Triste de quem vive em casa,Contente com o seu lar,

    Sem que um sonho, no erguer da asa,Faça até mais rubra a brasa

    Da lareira o abandonar!

    Triste de quem é feliz!Vive porque a vida dura.

    Nada na alma lhe diz Mais a lição da raiz –

    Ter por vida a sepultura.

    Eras sobre eras se somemNo tempo que em eras vem.

    Ser descontente é ser homem.Que as forças cegas se dormem

    Pela visão que a alma tem!

    E assim, passados os quatroTempos do ser que sonhou,

    A terra será teatro Do dia claro, que no atro Da erma noite começou.

    Grécia, Roma, CristandadeEuropa – Os quatro se vãoPara onde vai toda a idade.Quem vai viver a verdadeQue morreu D. Sebastião?

    Fernando Pessoa, O Quinto Império, (Mensagem, 1934)

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    PRÓLOGO

    Terra, Século Vinte e Um.

    O mundo atravessa um dos períodos mais conturbados de toda a História. Pelos quatro cantos do globo, nações e po-vos trocam acusações e sofrimento. A população mundial atingiu os sete mil milhões de habitantes, numa altura em que as principais reservas de água doce começam a secar e o cansaço dos solos provocado pela sua ausência e abuso de produtos químicos transformaram propriedades agrícolas em desertos, matando animais, plantas e seres humanos.

    O aquecimento global derrete mais de metade da superfí-cie dos pólos. A poluição e destruição da natureza avançam a uma velocidade vertiginosa, nas principais metrópoles; raras são as pessoas que saem à rua sem máscara ou capa para se protegerem dos malefícios da poluição atmosférica; em muitos países, existem crianças que só conhecem o sol a partir de um desenho ou fotografia; ar puro transformou-se num bem de luxo em países onde ecologia não passa de uma miragem esquecida na nota de rodapé dum livro de Biolo-gia; água potável, mesmo para uso doméstico, só mesmo se for engarrafada. Nas conferências internacionais, a huma-nidade desespera e revolta-se pela falta de consenso entre governos, empresários, cientistas e ambientalistas sobre o

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    TIAGO MOITA

    problema das alterações climáticas. Todos chegam a acordo nas consequências, ninguém nas soluções.

    O HN8 continua a espalhar-se por todo a parte, deixando um rasto de dor e morte. Mais de nove milhões de pessoas já morreram desde a sua descoberta no Equador, por dois cientistas europeus pertencentes a uma dos maiores grupos de produtos farmacêuticos. Suspeitas recaem sobre labora-tórios de importantes multinacionais ligadas ao sector e à O.M.S. Em resposta, a Organização Mundial de Saúde ne-gou as acusações feitas por movimentos cívicos das vítimas de vacinas contra o vírus equatoriano, produzidas por eles, com autorização e confiança dessa organização internacio-nal, zelosa pela saúde humana.

    O mais recente Crash na Bolsa de Wall Street em Nova Iorque alastrou por todo o planeta como um tsunami, dei-xando no desemprego mais de cem milhões de seres huma-nos; a fome e a pobreza atingem agora quase metade da po-pulação mundial. As multinacionais deslocam-se dos países do hemisfério norte para o sul. Como resposta à crise, os governos dos principais blocos comerciais resolveram alar-gar mais a protecção social aos mais carenciados, abrindo as fronteiras aos produtos dos países do terceiro mundo.

    No Médio Oriente, o Irão formou um bloco político-mi-litar com o Iraque, a Síria e o Afeganistão chamado Aliança Verde, que juntou os principais grupos terroristas islâmicos contra o ocidente. Em resposta ao envio de um míssil balís-tico contra Israel, o Presidente dos E.U.A declarou guerra à coligação islâmica e aos seus aliados. O mundo ocidental fez das palavras do governante de uma das nações mais podero-sas da Terra, as suas.

    Na Europa, as revoltas populares estendem-se por todo o continente, depois da aprovação dúbia no referendo europeu de 9 de Maio do ano que passou, aprovando o controverso

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    Tratado de Praga. Um tratado que, segundo os eurocépticos, concedeu mais poderes ao Presidente da União Europeia e às suas forças de segurança do que ao Parlamento Europeu e parlamentos nacionais, sendo, desde o início, acusado de in-validade devido a escândalos e suspeitas de fraude eleitoral, arquivadas pela Comissão Europeia de Eleições. A partir do Tratado de Praga, A União Europeia passou a ser tratada como um Estado soberano de pleno direito.

    Assiste-se a um período de ebulição no mundo ociden-tal. Por toda a parte, as democracias vivem os momentos mais turbulentos dos últimos tempos. Ninguém confia em ninguém, ninguém respeita ninguém. Grupos de populares vandalizam tudo à sua frente. Não existem mais deveres, apenas direitos. O bem comum passou a ser uma utopia. Tudo é feito para satisfazer apenas interesses pessoais. A realidade passou a ser aquela que a televisão e a internet transmitem. A verdade confunde-se com a mentira, tudo é aparência. Não se pensa no futuro, apenas o presente inte-ressa e o passado deixou de ter qualquer significado. O ho-mem negou a sua própria humanidade e passou a ser uma sombra de si próprio.

    Portugal atravessa uma das maiores crises após a Revo-lução de 25 de Abril de 1974. A crise mundial e as políticas dos sucessivos governos da coligação Aliança Central con-tinuam a arrastá-lo para um abismo económico e financeiro. Mais de um milhão de desempregados sufocam os centros de emprego; empresas fecham e deslocam-se para países com mão-de-obra barata ou escrava, enquanto o governo investe em formação profissional e na inovação tecnológi-ca das empresas nacionais; as cidades são inundadas pelos novos mendigos pedindo e assaltando grandes superfícies comerciais para tentar sobreviver; Bancos recusam emprés-timos; bairros sociais degradados transformam-se em pal-

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    TIAGO MOITA

    cos de guerrilhas e uma misteriosa organização terrorista denominada O.Q.I ameaça fazer ruir o que resta do regime e da civilização.

    Porém, na sombra, um velho mito começa a ganhar for-ma e a transformar-se em esperança. Em segredo, uma par-cela da humanidade aguarda pelo seu regresso.

  • 17

    UM

    OuriqueNoite de 24 para 25 de Julho de 1139

    O que fazia mover aquele homem? Esta seria uma pergunta descabida se o indivíduo em questão fosse um qualquer en-tre tantos que há milhares de anos habitam o nosso planeta. No entanto a pergunta mantinha-se, pertinente. Refiro-me a algo mais profundo; uma força, uma energia superior ao co-nhecimento humano e ao poder da natureza. A mesma que faz mover montanhas, separar águas, unir e dividir terras e povos, animar a vida, avançar o tempo, como se o tempo fosse uma roda à espera de uma desculpa para cumprir a sua função. O que o fazia mover realmente? Por quem se sacrificaria, carregando o fardo do destino, esse fantasma errante e fatal como a vida e a morte? Seria fama e glória que cobiçava? Reconhecimento dos seus pares e da sua terra ou um sentimento mais profundo e sublime que o mundo ainda desconhecia mas que nem a própria morte seria capaz de apagar? Todas estas perguntas não fariam sentido se o homem em questão não fosse o único filho de um dos mais valorosos e sábios cavaleiros que, tal como Dom Raimundo, seu compatrício, deixaram a Borgonha, sua terra natal, para ajudarem na conquista das terras ocupadas pelos muçulma-nos no sul da Península Ibérica havia mais de cinco séculos.

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    TIAGO MOITA

    Em nome de Dom Afonso VI, rei de Leão e Castela e da fé cristã, um jovem príncipe cristão convicto, com coração de guerreiro, fora armado cavaleiro por sua mãe, Dona Teresa, de nome, Afonso Henriques.

    Faltavam poucas horas para o nascer do sol e um clima de ansiedade e medo percorria o espírito dos homens fiéis ao jovem príncipe de vinte e oito anos. Em onze anos de guerras, Afonso Henriques nunca perdera uma só batalha. Porém, agora, a dúvida instalava-se na mente de todos aque-les que o acompanhavam até aos campos secos de Ourique naquele final de Julho do ano de 1139. Os seus homens esta-vam receosos e tristes. Para uns, mesmo com a ajuda merce-nária de três exércitos mouros, inimigos do rei Ismael e mais quatro reis muçulmanos que o jovem príncipe iria defrontar, aquela proeza era um suicídio; para outros, seria a oportu-nidade de assistirem ao nascimento de um novo soberano e uma nova nação cristã.

    Horas antes, Afonso Henriques estivera a ultimar as der-radeiras estratégias com os seus homens. Poucos foram os que o contestaram, raros os que duvidaram das suas ideias. Apesar disso, sentia-se sozinho, naquele momento. Enfada-do com a dúvida e o medo dos seus soldados, começou a pensar no que faria inverter esse estado de espírito. Assim, procurou na oração e na meditação em algumas páginas da bíblia, não só a paz que lhe falta mas também o descanso necessário, depois de tantos anos de combates. Quando ter-minou de ler a passagem referente à vitória de Gedeão, deu por si a falar sozinho, pedindo a Cristo que o ajudasse a vencer os infiéis e, ao mesmo tempo, protecção para ele e os seus companheiros de armas.

    Pouco depois, a fadiga e o sono acabaram por vencê-lo. Nesse breve interlúdio, assaltou-o um estranho sonho no qual a imagem dum ancião anunciava parte de uma profecia:

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    “Cobra alento, Afonso. Cobra Alento pois haverá vitó-ria. Tem confiança, porque vencerás e destruirás estes reis infiéis, e desfarás a sua potência; e o Senhor se mostrará.”

    A meio do sonho, uma mão familiar despertava o ainda príncipe portucalense. Era João Fernandes de Sousa, seu fiel camareiro com um pedido urgente.

    - Acordai, meu senhor, porque está aqui um homem ve-lho, que vos quer falar.

    - Entre se é Católico! – ordenou. Mal o servo terminara de proferir as últimas palavras, e

    já um homem, em tudo idêntico àquele que o jovem príncipe vira em sonhos, se apresentava perante ele. A mesma ex-pressão, a mesma pele calejada pela rudeza dos anos, além da palidez de cabelo e de olhar. Um fenómeno sem qualquer tipo de explicação lógica.

    - Hás-de vencer pois não podes ser vencido!- Sabeis quem sou? Quem sois vós?- Meu nome não é relevante, senhor. Eu sou a união de

    todas as vozes que esperaram todos estes anos pela vossa chegada.

    - Minha chegada? Que quereis dizer com isso?- Senhor, tende bom coração. Vencereis e não sereis ven-

    cido. Sois amado pelo Senhor que pôs em vós e na vossa ge-ração os olhos da sua misericórdia, depois dos vossos dias e até à décima sexta descendência, na qual se diminuirá a Su-cessão. Mas nela assim diminuída Ele tornará a pôr os olhos e verá. Manda-me dizer-vos que quando na noite seguinte ouvirdes a campainha da minha Ermida, na qual vivo há sessenta e seis anos, saia fora do Real sem nenhum criado, porque vos quer mostrar a sua grande piedade.

    Afonso Henriques olhava para ele com um misto de in-credibilidade, mas também de esperança. Por instantes, julgava aquele momento um mero acaso, uma partida do

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    TIAGO MOITA

    destino. Todavia, era muita coincidência aquele ancião ter a mesma fisionomia daquele com quem sonhara minutos an-tes, proferindo as mesmas palavras.

    - Que mais disse Nosso Senhor de mim? Dizei-me!- Grandes feitos espera de vós e da vossa gente. O terreno

    por onde pisais é sagrado como são sagradas todas as cria-ções do Senhor. Ele espera concretizar convosco, um gran-de sonho!

    - Que sonho é esse de que falais?- Sou apenas um mensageiro, não um adivinho. A minha

    missão era comunicar o que acabei de vos dizer. O resto, só sabereis quando vos encontrares com Ele.

    Afonso obedeceu e prostrado na terra com muita reverên-cia, venerou o embaixador, e quem o mandara. Sentia-se ou-tro; parecia ter recebido a visita dum anjo, um mensageiro di-vino dando-lhe alento e confiança antes de a batalha começar.

    Ainda a alvorada se espreguiçava e o sol lentamente co-meçava a estender os braços sobre o horizonte, quando, de súbito, algo o despertou. Um sino tocava na Ermida do ve-lho, tal como lhe anunciara horas antes. Surpreendido pelo sinal, Afonso Henriques saiu do arraial só, apenas acom-panhado pela espada e o escudo. A poucos metros dali, no seu lado direito contra a Nascente, vislumbrou um clarão tão resplandecente quanto a luz do próprio sol. Sob a sua cabeça, um coro de anjos tão majestoso como o universo, ro-deava Jesus Cristo, o nazareno, filho de Deus. Ao ver aquela visão, Afonso Henriques pôs de parte o escudo e a espada, e lançou em terra as roupas e o calçado, lançando-se de bru-ços de olhos marejados, começando a rogar pela consolação dos seus vassalos

    - Com que fim apareceis, Senhor? Quereis por ventura, acrescentar fé a quem tem tanta? Melhor é certamente que vos vejam os vossos inimigos para que creiam em vós que

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    eu, desde a fonte do baptismo, vos conheci como Deus ver-dadeiro, filho da Virgem e do Pai Eterno, e assim vos co-nheço agora.

    - Não venho confirmar-te na fé mas fortalecer o teu cora-ção para a batalha e fundar os princípios do teu reino sobre pedra firme. Confia Afonso, porque não só vencerás esta ba-talha, mas todas as outras em que pelejares contra os inimi-gos da minha cruz. Acharás a tua gente alegre e esforçada para a peleja, e te pedirá que entres na batalha com o título de Rei. Não ponhas dúvida; mas tudo quando te pedirem lhe concede facilmente. Eu sou o fundador e destruidor de rei-nos e impérios; e quero em ti, e nos teus descendentes, fun-dar para mim um Império, pelo qual o meu nome publicado entre as nações mais estranhas. E para que os teus descen-dentes conheçam quem lhes dá o reino, comporás o escudo das tuas armas do preço com que eu remi o género humano e daquele por que fui comprado pelos judeus; e será por mim o Reino santificado, puro na fé e amado pela piedade.

    - Por que méritos, Senhor, me mostrais tão grande mise-ricórdia? Ponde pois, os vossos benignos olhos nos sucesso-res que me prometeis e guardai salva a gente portuguesa. E se acontecer que tenhais contra ela algum castigo aparelha-do, executai-o antes em mim e nos meus descendentes, e li-vrai este povo, que amo como filho único. – disse, prostrado por terra.

    - Não se apartará deles nem de ti a minha misericórdia, porque, por via desta, tenho aparelhadas grandes searas, e eles escolhidos como meus segadores em terras mui remo-tas. Aceitai este livro e guardai-o convosco. Nele, será es-crito o futuro do vosso reino e guardada a chave que abrirá as portas do Meu Império. – respondeu, enviando num feixe de luz um livro aos pés do jovem príncipe. Afonso Henri-ques, não conteve a emoção perante aquela oferta.

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    TIAGO MOITA

    - Senhor, que em mim se cumpra a tua vontade. Moverei céus e terra para dignificar e glorificar o teu nome!

    - Vai e lança as sementes no teu reino, para mais tarde os teus descendentes colherem os frutos desse novo império.

    Ainda antes de a batalha começar e após celebração da missa, Afonso Henriques contou aos seus homens o que Je-sus Cristo lhe transmitira. Mal terminara de proferir as suas palavras, uma nova energia se apoderou deles. O que outrora era medo e dúvida, passou a ser fé, esperança e coragem. Em breves minutos, o jovem príncipe sentiu uma aura de luz pairando sobre si e os seus companheiros de armas, no inferno que se iria abater nos campos de Ourique. Naque-le momento, cada homem sentia também ter a seu lado um exército de anjos alados e uma mão invisível a protegê-los.

    Em inferioridade numérica perante o inimigo sarraceno, Afonso Henriques acompanhado pelos seus fiéis cavaleiros Paio Guterres, Martim Moniz, Egas Moniz e filhos e Gonça-lo Mendes da Maia entre tantos outros, atacaram de surpre-sa o exército dos cinco reis mouros segundo a estratégia do jovem príncipe. Em escassas horas, a batalha estava ganha, infligindo a mais sofrida derrota que a Espanha Muçulmana alguma vez tivera contra os cristãos. Dos quatro cantos dos campos de Ourique soavam vivas ao novo rei e a Jesus Cris-to, a grande força por detrás daquela grandiosa e decisiva batalha. Nascia assim não só um grande rei mas uma nação cujo caminho iria abrir novos caminhos para a humanidade e cuja História seria mais tarde exemplo para o mundo intei-ro. Portugal dera o primeiro passo. Aos céus, Afonso Hen-riques agradecia silenciosamente Àquele que o escolhera e lhe dera forças para continuar a obra de seu pai que, onde quer que estivesse, estaria orgulhoso por ter gerado um filho vencedor no seio da virtude, da honra e da fé.

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    DOIS

    GuimarãesPalácio dos Gonçalves

    Dez séculos depois

    Um temporal gigantesco abatia-se sobre a histórica e gra-nítica cidade de Guimarães, berço da nacionalidade para muitos portugueses e terra natal de Dom Afonso Henriques; era ainda ponto de passagem para forasteiros descobrirem as deliciosas refeições tradicionais ou um bom lugar onde pernoitassem depois de alguma longa viagem. O silêncio era a palavra de ordem que deambulava pelas ruas desertas na-quela noite sem lua, onde nem gatos miavam nem sombras se moviam pela madrugada adentro em busca de loucura e boémia. O granito dos monumentos históricos era o reflexo dessa letargia. Raros eram os lares onde se ouvia um riso ou mesmo uma canção capaz de queimar os tempos mortos, es-tagnados debaixo dos alicerces que serviam de raízes àquela terra que vira nascer um dos mais antigos países da Europa.

    O ambiente que se vivia na Mansão dos Gonçalves, afas-tados do centro da cidade e do quotidiano não era diferente. Ali apenas reinava o orgulho e amor por essa terra que tanto dera que falar ao mundo, através dos brasões de família, es-cudos, armas e quadros dos seus antepassados, tributo dum passado de que muito se orgulhavam.

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    TIAGO MOITA

    Alegria e luz eram seres estranhos naquela casa. Quando chegavam eram tratados com indiferença pela sombra das relíquias dos antepassados e dos rostos sisudos dos criados, pouco habituados a momentos de prazer e boa disposição. Longe iam os tempos em que ali se respirava amor e felici-dade, estendendo-se esses sentimentos por toda a região e seus habitantes que lhes retribuíam com respeito e orgulho. Naquela noite, a mansão era apenas a sombra dum passado sem regresso.

    Uma hora antes da meia-noite...Afonso Gonçalves, o proprietário, encontrava-se sentado

    junto à escrivaninha do seu quarto. Era seu costume escre-ver num diário ou ler um bom livro antes de se deitar. Não existia melhor calmante para ele do que a escrita ou o prazer da leitura. Televisão e computador eram coisas que evitava. Sua pouca fé no presente e na virtude das novas tecnologias, associadas à vista cansada e constantes dores de cabeça, afastavam-no desses prazeres da civilização contemporâ-nea. Pouco precisava deles, à excepção do computador, onde era capaz de encontrar algum contacto com certas realida-des que o mundo actual ignorava ou demorava muito tempo a perceber.

    Apenas os que o conheciam bem, sabiam que por detrás daquela aparência austera de respeito, se escondia um co-ração generoso e bem-disposto, sempre pronto a ajudar a família, os amigos, e os habitantes mais humildes da região. Seu rosto era a imagem da eloquência, perseverança e sen-satez. Seu olhar, um reflexo de bondade. Suas rugas, a expe-riência e a sabedoria de um passado.

    Todas as noites, Afonso Gonçalves cumpria o mesmo ritual, satisfeito e tranquilo. Porém, naquela noite, o seu estado de espírito era diferente. Um misto de medo e an-siedade tomara conta de si; a imperceptibilidade da escrita

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    reflectia nervosismo. Algo não estava bem, um pressen-timento afluía no seu espírito; alguma coisa ia acontecer. Pela primeira vez na vida sentia a morte pairar sobre a sua cabeça.

    Naquela noite, só três pessoas se encontravam em casa. Afonso Gonçalves dera folga a todos os empregados. Ape-nas Nuno Galvão, seu fiel mordomo, e Carlota, a governanta se recusaram a sair, preferindo fazer-lhe companhia. Afonso tudo fez para os demover da sua escolha. Esforço inútil.

    Carlota foi a primeira a deitar-se. Sempre fora uma pes-soa de sono pesado. Todavia, naquela noite, ele tardava em visitá-la. Por fim, venceu-a. Mal fechara as pálpebras para o merecido repouso foi subitamente assaltada por um terrível pesadelo. Amedrontada, soltou um grito e não fosse a súbi-ta e atempada intervenção de Nuno Galvão, talvez a pobre mulher não tivesse resistido. Perto da entrada da residência, a sombra de um homem destacava-se à luz de um candeei-ro centenário.

    Trinta minutos antes da meia-noite...Três toques secos. Alguém batia à porta do quarto de

    Afonso Gonçalves. Do interior do compartimento, uma voz trémula interrompeu o silêncio.

    - Quem...quem é?- Sou eu, senhor!- Ah, Galvão! És tu! Entra, entra!- Sente-se bem, senhor?- Já tive dias melhores...como está a Carlota?- Bastante melhor. Consegui dar-lhe um calmante e agora

    dorme como um anjo.- Obrigado...Não há dúvida que não me enganei a teu res-

    peito, meu fiel amigo. – respondeu, dando umas leves pal-madas no ombro de Nuno Galvão.

    - Não entendo.

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    TIAGO MOITA

    - Cada vez que olho para ti, revejo aquela noite fria de Setembro de 1981 em que me salvaste das garras daqueles patifes em Guimarães. Naquele momento percebi que Deus me tinha enviado um anjo da guarda...e não me enganei. – respondeu, antes de se engasgar.

    - Senhor, por favor, não exagere, eu apenas...- Já sei, já sei! Limitas-te a fazer aquilo que a tua cons-

    ciência te ditava. Por isso é que eu digo que não foi acaso o teu aparecimento. Mas adiante...ainda bem que chegaste. Te-nho outro assunto para tratar contigo: sabes que dia é hoje?

    - Hoje?...Quatro de Setembro.- Precisamente. E sabes o que se passou nesta casa há

    precisamente um mês?- Há um mês...Ah, sim! Foi o aniversário da menina...

    santo Deus! – afirmou, assustado.- Agora percebes a razão da minha angústia? É pena que

    a hora tenha chegado. E eu que ainda tinha tanto para dizer à minha princesa…

    - O senhor acredita mesmo que vai...- Ela não se enganou no destino que Deus traçou para

    mim e para cada um dos meus três amigos.- Mas...o senhor ainda vai viver mais tempo do que aque-

    le que pensa! A sua neta termina o curso este ano, qualquer dia vai casar e...

    - Não adianta consolares-me, Galvão! – respondeu, sor-rindo – Cada pessoa tem um dia para chegar, outro para par-tir e uma missão a cumprir nesta vida. A minha chega hoje ao fim e não há nada neste mundo que a vá impedir.

    - Mas...mas senhor!- Não há “mas” nem “meio mas”. O que está escrito, está

    escrito. Agora chega de conversa que o tempo urge. Ama-nhã, quero que vás ter com o irmão Júlio, lhe entregues esta carta e me faças um último favor.

  • 27

    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    - Tudo o que me pedir será sempre uma ordem, senhor.- Protege-a, Galvão. Protege-a nem que seja com a pró-

    pria vida. O Grande Dia está prestes a chegar e ela tem de se preparar para cumprir o seu destino. O futuro da Humanida-de está nas suas mãos e nas Dele.

    - Dele? O senhor não se está a referir a...- Sim, meu caro. Ele já está entre nós. Agora vai e que

    Deus te acompanhe.- Sim...sim senhor! – assentiu o fiel mordomo, desfeito

    em lágrimas, guardando a carta no bolso.Dez minutos antes da meia – noite...O abrandamento da chuva anunciava o fim da mesma. No

    jardim das traseiras ouviam-se passos. Alguém se aproxi-mava, silenciosamente, enquanto dois dobermanns estendi-dos no chão dormiam. Nuno Galvão resolvera estar de guar-da junto do quarto do patrão; Carlota agitava-se na cama; o pesadelo voltara, desta vez com um presságio de morte aproximando-se daquela mansão onde o único som que se escutava era o tiquetaque monocórdico do relógio de parede suíço da biblioteca. Subitamente, as luzes da casa apaga-ram-se.

    Cinco minutos antes da meia-noite...Um barulho vindo da cozinha chamou a atenção de Nuno

    Galvão, afastando-o temporariamente do seu posto de vigia. Carlota continuava agitada, enquanto Afonso Gonçalves re-via fotos da família e dos colegas de tropa que conhecera quando combatera na Guiné durante a guerra do Ultramar.

    Um minuto para a meia-noite...Contagem decrescente. Nuno Galvão chega à cozinha e

    encontra uma janela aberta, razão pela qual sente um cala-frio ao aproximar-se da porta. Uma sombra esgueirava-se colada às paredes da escadaria da residência. Ninguém es-cutara os seus passos. Carlota começa a ter dificuldades em

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    TIAGO MOITA

    respirar; Afonso Gonçalves prepara-se para dormir. Nuno Galvão fecha a janela e corre a chegar para o quarto do pa-trão, sem desconfiar da antecipação do intruso com inten-ções determinadas e no destino que Afonso Gonçalves iria ter dentro de poucos segundos.

    Tarde demais...Meia-noite.De repente...UM GRITO!

  • 29

    TRÊS

    Lisboa, PortugalO dia seguinte

    O amanhecer duma cidade é sempre diferente do despertar numa aldeia. Duas realidades distintas, um único momen-to. É impossível comparar o alvorecer tranquilo matinal de uma aldeia do interior com o frenesim dilacerante de uma cidade, pouco acostumada ao aroma dos campos e ao bri-lho do azul do céu, já não falando no sentido das palavras de um camponês com o sabor das sílabas elaboradas de um citadino.

    Lisboa fora sempre o contraste entre esses dois mundos. Cidade das sete colinas, nascida de lendas, epopeias e revo-luções. Mosaico de memórias onde o passado vivia de mãos dadas com o presente e o futuro. Desde o começo do milé-nio que a capital mudara constantemente de rosto como um camaleão. Sucessivas construções e obras arquitectónicas efectuadas, fruto dum progresso apenas visível aos olhos do ego humano e duma especulação imobiliária libidinosa, deixaram ruir aquela que fora a pérola do atlântico, rainha dos mares donde tantas naus e caravelas partiram em busca de novos mundos. Ali nasceram e morreram poetas e artis-tas que imortalizaram o seu nome; vira também erguer e cair impérios, despertar ódios e paixões tanto de forasteiros

  • 30

    TIAGO MOITA

    como de compatriotas, numa miragem daquilo que outrora tinha sido: Senhora do Mundo.

    Poucas tinham sido as ruas e zonas históricas que esca-param a essa loucura cega chamada Progresso, de manter os nomes que as tornaram célebres durante séculos. Porém, o passar do tempo não afastara as pessoas da Lisboa Pombali-na que ia da Trindade à Praça do Comércio; Nem do Bairro Alto das noites ébrias de boémia, os bairros históricos de Alfama ou a Madragoa das festas populares. Apenas as ruas e bairros novos se deixaram levar pela euforia europeísta, ostentando nomes como “Jacques Delors” ou “Jean Monet”, símbolos de um futuro inquestionável, para todos aqueles que tudo fizeram para transformar uma utopia em realidade.

    Nos cafés vivia-se ainda a rotina frenética do quotidiano. Por entre as mesas circulavam pedidos de café para desper-tar os corpos de um sono rarefeito, e umas torradas para alimentar os estômagos antes de mais um dia de trabalho. Em cada canto, circulavam notícias e comentários pouco ri-gorosos sobre a vida e o mundo. Filosofia barata misturada de paixões e venenos servidos em pequenas doses entre dois dedos de conversa, que iam desde o resultado do último jogo de futebol até às últimas iniciativas do governo da Alian-ça Central que governava o país desde as últimas eleições. Tudo servia de assunto enquanto não chegava a abertura matinal dos blocos informativos das principais estações de rádio e televisão.

    As notícias do dia reflectiam a angústia porque o mundo estava a passar. No ecrã da televisão de um qualquer café da Rua do Ouro, um jornalista relatava as últimas notícias da terceira guerra do golfo entre as forças da NATO e a Aliança Verde. Um conflito com mais de dois anos sem fim à vis-ta; Na rádio, ouvia-se um comentador manifestando a sua opinião sobre o estado da economia portuguesa e as guer-

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    ras urbanas que opunham o exército português e as forças de segurança pública aos grupos de jovens marginais dos bairros mais perigosos de Lisboa e Porto. Nos quiosques da capital, os jornais exibiam notícias para todos os gostos: uns focando os principais jogos de futebol das próximas jorna-das; outros, as difíceis negociações de reconciliação entre a União Europeia e a Confederação Europeia – um pequeno grupo de países europeus que nunca pertencera ou simples-mente abandonara a União desde a separação unilateral da Grã-Bretanha havia dois anos atrás; outros ainda, os confli-tos internos na vizinha Espanha – país a ferro e fogo desde que o País Basco, a Catalunha e a Galiza declararam unila-teralmente independência ao país de Cervantes. Sobre as re-centes manifestações cívicas contra a globalização, o envio de tropas portuguesas para o Médio Oriente ao serviço dos Eurocorps – o braço armado da União e a presença de Por-tugal na União Europeia apenas uma palavra circulava entre os Media: Silêncio.

    O tempo passava como uma brisa. Se horas antes era impossível deixar de ouvir o ruído infernal nas artérias da capital, agora, o quase silêncio era uma realidade. O sol despedia-se com remorso, dando lugar às luzes da cidade. Numa das vivendas do Bairro Azul em Lisboa estacionava um Audi Preto, último modelo.

    Um beijo terno, acompanhado da promessa dum novo encontro foi a despedida de dois namorados. Inês Maia re-gressava a casa, de boleia no carro de Filipe, depois de mais um dia fatigante passado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa. A sorte parecia sor-rir-lhe naquele dia, a julgar pelo sorriso que deixava trans-parecer no rosto. O exame correra-lhe bem, revera velhos colegas prestes a terminar o mesmo curso que ela e conse-guira acabar de ler o último capítulo de um dos seus livros

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    TIAGO MOITA

    favoritos antes do namorado a vir buscar de regresso a casa. Tudo corria de feição para a futura arqueóloga da família dos Maias.

    - Mãe, Cheguei! – anunciou, mal entrou em casa. Um silêncio pesado cercava os quatro cantos da residên-

    cia onde vivia com os pais. Naquele momento, aquele silên-cio tinha outro significado. Sabia a medo e ausência de algo que ainda não conhecia. Inês chegou à sala de estar onde se encontrava Teresa, sua mãe, chorando amargamente, es-condendo o rosto. Uma mão familiar tocou-lhe no ombro. Inês reconheceu o pai pela voz quente e cava que sempre marcara a sua presença. Ao olhá-lo, um mau pressentimento a assaltou.

    - O avô morreu ontem à noite.

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    QUATRO

    Algo fazia distinguir das outras a rua Duque de Loulé, uma das mais conhecidas de Lisboa, nas proximidades da famo-sa Praça Marquês de Pombal. Na sua aparente pacatez, ca-paz de afastar o mais distraído forasteiro perdido em busca de novidade e emoção, existia alguém que durante cinco anos servira de marco e motivo de orgulho a muitos cida-dãos anónimos e a algumas figuras públicas que passaram a olhar para esta rua de apartamentos simples, pequenas lojas e escritórios escondidos do frémito da confusão das gran-des urbes como a “Baker Street” de Lisboa. Esse alguém era, nem mais nem menos, que o famoso detective particular Diogo Pombal.

    Alvo de ódios e paixões, Diogo Pombal tornou-se mais do que um caso de sucesso entre os meios de comunica-ção social. Entre os agentes das forças de segurança e toda a comunidade de detectives era apontado como uma lenda viva, de um conceituado detective privado, merecedor de todo o respeito e louvor por tudo o que tinha feito em prol da justiça. Há cinco anos atrás era apenas mais um detecti-ve particular entre centenas que trabalhavam na cidade de Lisboa, assumindo o risco da profissão em cada caso que aceitava, preparado para pagar com a própria vida, se fosse caso disso. Todavia, o destino tinha-lhe sorrido. Natural de Sintra, filho de uma comerciante e dum inspector da Polícia

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    TIAGO MOITA

    Judiciária, fã devoto dos livros de Agatha Christie e Sir Ar-thur Conan Doyle – autor do qual herdara, da sua mítica per-sonagem, a personalidade, Diogo Pombal tornou-se célebre quando desmantelara uma importante rede internacional de contrabando de armas e diamantes na capital. Um caso que fora conhecido entre os media como “Lisbon Connection”. Desde então, não parara de trabalhar em casos enigmáticos e complicados.

    Um homem observava as horas no seu relógio de pulso. Meio-dia. Hora do almoço para muitos seres humanos que aproveitavam esta altura para recuperar energias e, de quan-do em vez, trocar dois dedos de conversa entre um café ou um cigarro, prazer cada vez mais difícil de satisfazer. No número 53 da rua Duque de Loulé ouvia-se uma melodia jazzística de um saxofone e um odor intenso e sedutor vindo do interior da residência; dois sinais de vida captados pelo mesmo homem que observara as horas, minutos antes e que se dirigia para o segundo andar do prédio em questão, com um jornal debaixo do braço e uma confiança cega no sorriso.

    Duas voltas na fechadura fez abrir a porta da entrada don-de provinha o som do instrumento e um aroma inebriante do interior, vislumbrando-se um vulto familiar dentro daquelas quatro paredes. O homem entra em casa, arruma o casaco e dirige-se para a sala de jantar. Nem mesmo o fechar da porta interrompeu quem tocava.

    O seu interior revelava um mundo singular. Em cada pa-rede havia um artefacto exótico, um quadro a óleo de uma memória perdida no tempo ou uma natureza morta ansiando pelo suspiro de um amante de pintura. A casa em si era uma mistura entre museu e lar. Nada era deixado ao acaso; cada móvel, objecto ou artefacto estava ordenado de forma precisa como se toda aquela moradia tivesse uma precisão matemá-tica e não o projecto de um qualquer arquitecto ou decorador.

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    - Boa tarde Pombal! Já almoçaste? – Perguntou. Subita-mente, a música parou, e o saxofonista que a tocava barafus-tou, irritado, com a interrupção.

    - Bolas, Ricardo! Já te disse mais de um milhão de vezes que não gosto de ser interrompido quando estou a tocar!

    - Ainda estavas a tocar? Curioso...quando cheguei aqui pensava que tinhas terminado.

    Diogo Pombal engoliu em seco, procurando conter-se.- Bem...chega por agora. Trouxeste os jornais? - Trouxe, não te preocupes!...Ainda não percebi porque é

    que não aderes às novas tecnologias em vez de estares sem-pre a comprar jornais.

    - Ricardo, Ricardo...tu nunca vais entender. Mesmo que um jornal ou uma revista online relate os mesmos temas de um jornal comum, eu encontro sempre mais conteúdo nas páginas de um diário do que num site da Internet, e para tua informação eu já tinha aderido às novas tecnologias muito antes de te conhecer. A chave para a resolução dos grandes casos está na observação e perícia. Observação, Ricardo! Não só num meio de comunicação mas em todos os meios de informação, sentidos humanos e, acima de tudo, células cinzentas activas e sóbrias.

    - Sim, sim...bom, e o almoço? Estou com uma fome que nem vejo! – disse Ricardo, esfregando as mãos em direcção à mesa.

    - Amália! – bramiu Diogo Pombal. Da cozinha, chega-va uma velha empregada com os anos marcados no rosto, transportando uma grande travessa com fatias de borrego assado e batatas assadas no forno. O almoço está na mesa! Exclamou com voz trémula.

    Enquanto os dois detectives se deliciavam com a refei-ção, acompanhada por bons copos de vinho tinto, a televisão divulgava a notícia de uma mulher que perdera a vida na ur-

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    TIAGO MOITA

    gência de um hospital, por não ter sido assistida rapidamente por um médico de serviço, naquele momento, ocupado em efectuar um aborto de última hora.

    - Que mundo é este em que vivemos? – comentou Diogo Pombal, indignado.

    - Um mundo virado às avessas. Calcula tu que hoje, quando fazia compras na baixa, encontrei um amigo meu a quem tinham ficado com Termo de Identidade e Resi-dência na polícia apenas por ter repreendido o filho. Parece que o miúdo tinha sido apanhado a agredir um adolescen-te enquanto o colega filmava a agressão para divulgar no Youtube.

    - Que tempos! Sabes, aquele caso de “bullying” de que me falaste há pouco, fez-me lembrar o caso 39.

    - O caso 39? Aquele da louca suicida de Chelas?- Não! Esse é o 28! O 39 era o caso das penas brancas!

    Aquele do adolescente serial killer que deixava penas bran-cas no peito das vítimas.

    - Ah! Esse caso! Claro que me lembro. Foi até um dos mais difíceis!

    - Ora, ora, Ricardo. Difícil foi o “Lisbon Connection”, lembras-te?

    - Como é que eu poderia esquecer, se foi através dele que nós nos conhecemos!

    - Nada disso! Nós conhecemo-nos há trinta e dois anos atrás no Hotel Altis, durante a vigésima terceira convenção internacional dos agentes de segurança.

    - Caramba! Tens razão! Como o tempo passa….Se não estou em erro, naquela altura eras ainda um estudante.

    - Estudante finalista de Direito da Universidade de Lis-boa, para ser mais preciso. Lembro-me como se fosse hoje... – respondeu, suspirando.

    - Nessa altura nem devias pensar ainda em investigar.

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    - Enganas-te, Ricardo! No ano em que me conheceste es-tava precisamente a investigar um! O caso mais intrigante que Portugal conheceu até hoje e, para já, sem fim à vista.

    - Sério? Qual?- Camarate, meu caro! Camarate!Uma expressão de espanto surgiu estampada no rosto de

    Ricardo Moniz, o fiel assistente e amigo do detective Diogo Pombal, conhecedor de grande parte dos seus segredos, mis-térios e casos. Naquele momento, percebeu a razão dos sus-piros de tristeza dele cada vez que olhava para um quadro representando a figura de Francisco Sá Carneiro, o malo-grado primeiro-ministro português morto num desastre de aviação em Camarate na noite de 4 de Dezembro de 1980. Uma verdadeira lacuna na carreira do homem que nunca vi-rara as costas à Justiça e deixara um caso ainda sem epílogo.

    - Tu...tu estavas a investigar Camarate?!- Sim! Enquanto os meus colegas se preocupavam com

    mulheres, rock ‘n’roll, álcool e noitadas nos tempos livres, eu ocupava-me em investigar este caso tão misterioso. Che-guei mesmo a disfarçar-me de jornalista para poder assistir a sessões de investigação nas comissões de inquérito, tentando encontrar pistas, inclusive acompanhar o grande cartoonista Augusto Cid na sua investigação pessoal. Bons tempos!...

    - E a que conclusão chegaste?- Crime, sem margem para dúvidas! As substâncias quí-

    micas que os investigadores forenses encontraram em 1995 comprovaram a existência de explosivos no Cessna que transportou as vítimas, já descobertas por nós catorze anos antes! Foi um atentado bombista muito bem planeado, feito por profissionais! O problema foi o sistema. Criaram uma tal rede de contra-informação contra nós que vimo-nos for-çados a abandonar o caso. Ainda hoje ninguém me tira da cabeça que a morte deste grande homem se deveu a pessoas

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    TIAGO MOITA

    dentro do seu governo e da coligação que o apoiara. Um crime ainda sem solução que até agora é o maior espinho na minha carreira de detective.

    - Por falar em crimes sem solução. Lembras-te do crime do Elevador da Glória? – perguntou Ricardo Moniz. Diogo Pombal deu um murro na mesa.

    - Esse é outro dos casos que me está atravessado na gar-ganta. Já passaram dois meses e é como se tivesse aconte-cido apenas há poucas horas. Ainda me lembro do nome da vítima: Simão Proença.

    - E nunca se soube quem era esse homem?- Nos meios de comunicação social apenas disseram que

    se tratava de um ilustre desconhecido, porém esse argumen-to não me convenceu. Se assim fosse, por que motivo a po-lícia não investigou a sua identidade e se limitou a arquivar rapidamente o processo? O mais estranho disto tudo foi o facto de me impedirem de investigar esse caso.

    - Realmente é muito estranho. Lembras-te como estava a rua na altura em que chegámos ao local do crime?

    - Perfeitamente...uma multidão ávida por ver o cadáver da vítima, polícias a cercar a zona e quatro indivíduos sus-peitos ali mesmo no sítio da tragédia.

    - Quatro suspeitos? Que suspeitos?- Quando lá chegámos, lembro-me de ver três homens e

    uma mulher vestidos com roupas e óculos escuros que não partilhavam o mesmo estado de espírito da população que ali se encontrava. A mulher reparou em mim e encostou a mão ao ouvido, começando a murmurar qualquer coisa, como se estivesse a falar para um pequeno microfone. In-felizmente, não consegui perceber o que dizia através dos lábios, mas deu para entender que informava os três homens da nossa presença. A prova desse facto é que todos se afas-taram furtivamente.

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    - Foi realmente um mistério...- Será Ricardo? – indagou, fitando o infinito pela janela

    da sala, como se o seu espírito iniciasse uma viagem para outra dimensão.

    A tarde declinava dando lugar ao anoitecer. O dia des-pedia-se do mundo, descanso do bulício urbano como o si-lêncio de uma página em branco. As luzes da cidade riva-lizavam com a das estrelas que cobriam a cidade. Na casa do ilustre detective trocavam-se sorrisos e sabores durante o jantar, enquanto em frente, do outro lado da rua, uma mu-lher de rosto apavorado olhava fixamente a janela da casa de Diogo Pombal, transparecendo um medo apenas descritos nos olhos e decifrado pela mudez da sua língua.

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    CINCO

    A Avenida Humberto de Itália em Cascais, sempre fora pas-serelle para os mais luxuosos carros. Desde que o famoso so-berano italiano se refugiara naquela vila paradisíaca, onde a terra acaba e o mar começa, movimento e festas faziam parte do quotidiano daquele bairro de mansões luxuriantes. Num mundo controverso como este, a vida naquele espaço resu-mia-se numa troca de impressões fúteis entre taças de cham-panhe francês, aperitivos com sotaque estrangeiro e sorrisos amarelos diluídos com o fumo dos cigarros e cachimbos que invadiam esses impérios feitos de vidro e mármore.

    Um barulho avassalador cortou a monotonia dominical do famoso bairro, pouco desperto ainda da última festa. Vindos de várias direcções, começavam a chegar a Cascais uma fila de nove Roll-Royces pretos, de vidros fumados, es-condendo o rosto dos motoristas e seus passageiros rumo à Mansão Beirão, residência oficial de Rodolfo Beirão, um dos homens mais ilustres do país.

    Da varanda principal da imponente mansão, um par de olhos observava a chegada daqueles magníficos carros. A aproximação fez sair da sombra um homem de olhar ambíguo, pose alexandrina, seguro de si, acabado de sair de uma medita-ção profunda e um pensamento apenas compreendido pela sua inteligência analítica. Um sorriso frio rasgou o rosto do dono da mansão com a chegada do primeiro dos nove veículos.

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    TIAGO MOITA

    Quem havia de pensar que, cinquenta anos antes, Rodolfo Beirão, um jornalista estagiário do Diário de Notícias, re-cém-licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa se tornaria num dos homens mais ricos e influentes de Portugal. A sua história seria a de um indivíduo comum se não sur-gisse nela a figura de Francisco Pinto Balsemão, seu grande amigo, que colaborara com ele na fundação do Diário Princi-pal – seu primeiro negócio -, e como deputado no parlamento português pela Ala Liberal no tempo do Marcelismo. Esta amizade mudou por completo a vida deste jovem lisboeta, se-dento de fama e poder que, logo após a Revolução de Abril de 1974 se tornou um dos mais jovens fundadores do PPD/PSD de Francisco Sá Carneiro, Ministro de Estado do sétimo e oitavos governos constitucionais, ambos presididos por Fran-cisco Pinto Balsemão até à derrota da Aliança Democrática em 1983, altura em que abandonou definitivamente a política e se dedicou exclusivamente aos negócios, transformando o seu pequeno jornal num dos mais gigantescos grupos econó-micos portugueses da comunicação social. Seu sucesso foi tal, que acabou por fundar o Canal Cinco – a terceira estação privada generalista portuguesa em Portugal. Ainda nos anos noventa foi convidado a concorrer à presidência da República, declinando o convite por duas vezes. Rodolfo Beirão sempre gostou de governar e influenciar grandes líderes na sombra. Que o digam os seus companheiros do Grande Oriente Lusi-tano e do Steering Committe do Clube Bilderberg.

    Cada vez que parava um dos magníficos carros em fren-te à entrada principal, um pequeno grupo de guarda-costas, escondidos nos seus óculos escuros e rostos sisudos acom-panhavam o passageiro principal. Ordens eram trocadas com sinais subtis de modo a que a segurança fosse perfeita.

    O som metálico duma cadeira de rodas e o número de guarda-costas em volta do primeiro convidado denunciou

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    a presença de Daniel Saldanha, antigo primeiro-ministro, ex-presidente da República e um dos maiores amigos da fa-mília Beirão desde sempre. Quem o visse naquele estado jamais suspeitaria estar perante uma das maiores figuras do século vinte e um dos principais opositores ao regime do Estado Novo. Era um homem de fibra, dotado de uma personalidade flamejante, classe, inteligência acima do co-mum, provido de uma Dialéctica inigualável e de um saber enciclopédico de que muito se orgulhava, tal como do seu percurso político. Enfim, um mito vivo dum passado ainda presente na memória de muitos portugueses.

    A contrastar com Daniel Saldanha, chegava o segundo convidado, de estilo completamente diferente, mascando pastilhas de mentol para tornar mais agradável o hálito, en-quanto se dirigia para a porta principal. O jeito ianque de vestir e o seu português inglesado denunciavam a identi-dade de William Belushi, um dos membros mais influen-tes do Clube Bilderberg e dos principais gerentes do Grupo Rockefellar. Imagem de classe e simpatia evidenciara-se na política enquanto embaixador do seu país em Portugal e membro do governo de George Bush. A frieza, cinismo e ar-rogância herdara-a da C.I.A, instituição da qual fora agente e depois Director.

    Só quem não conhecesse as excentricidades do terceiro convidado é que poderia pensar neste antigo médico como secretário-adjunto do Primeiro-Ministro. A usura era notó-ria no seu trajar, além do nervosismo que se podia observar nas mãos, a desconfiança no olhar gélido e a maneira paté-tica de andar de forma a conseguir entrar em cada divisão sempre com o pé direito, realçava o perfil de Vasco Mon-jardino, o mais singular e sinistro secretário que o governo conhecera, sendo também um dos membros mais discretos do Clube Bilderberg a nível mundial.

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    TIAGO MOITA

    Diferente na postura e importância do anterior era o quarto convidado de Rodolfo Beirão. Mesmo não enver-gando a habitual farda militar com os respectivos galões e medalhas de que muito se orgulhava, Alexandre Perdigão nunca deixara de mostrar a imagem marcial do militar, que combatera na cruel guerra do ultramar. Cada passo que dava em direcção à porta fazia recordar as pessoas que traíra e mandara matar em nome da nação, um passado que recorda-va com orgulho como se se tratasse duma medalha de honra.

    A forma como falava ao telemóvel evidenciava o modo provinciano e autoritário do convidado que se seguia a Ale-xandre Perdigão. Era o retrato vivo figura ímpar na socie-dade portuguesa, que conseguira subir a pulso no ardiloso caminho da vida e transformar um vulgar clube de futebol de província num de nível internacional, chegando a pre-sidente da Federação Portuguesa de Futebol e director do FrancoGest – um dos mais importantes grupos económicos do tecido empresarial do norte do país. Para bem e para mal, Jorge Franco era assim para o mundo: a imagem de um de-magogo, inteligente e manipulador, capaz de mover multi-dões pelo poder da palavra.

    O convidado que seguia atrás de Jorge Franco, mesmo vestido a rigor, não conseguia esconder o semblante cíni-co e, ao mesmo tempo, sisudo a que sempre habituara os portugueses desde o tempo em que fora um dos maiores ac-cionistas do Banco Comercial Português até à posse como presidente da Associação de Bancos Portugueses, cargo que ainda ocupa, além do assento exclusivo no Clube Bilderberg, juntamente com o anfitrião daquele encontro, seu fiel amigo. Esta era a imagem que Leonardo Amaral dava aos olhos do mundo.

    Com uma disposição bem diferente do soturno banquei-ro vinham dois ilustres magistrados, que imediatamente se

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    cumprimentaram efusivamente. Quem visse Filipe Pimen-tel, actual Provedor de Justiça, homem sério e íntegro, com o seu fiel amigo e antigo colega da Faculdade, nos tempos conturbados da crise académica de 1969, Raul Azevedo, ac-tual Procurador-Geral da República, estaria longe de ima-ginar estar na presença de dois dos homens mais poderosos do país.

    Nem o tempo nem a idade modificaram a personalidade do último convidado de Rodolfo Beirão. Por detrás daquele olhar semicerrado adivinhava-se mistério, uma atmosfera de respeito e medo para todos aqueles que não fossem seus íntimos. Do cachimbo iam saindo pequenas nuvens bran-cas e um hálito fétido por cada palavra que mastigava no silêncio dos seus pensamentos. Só aqueles que o conheciam na intimidade conseguiam encontrar em Pedro Monteiro, actual Governador do Banco de Portugal, a inteligência e o bom humor que nunca fora capaz de fazer transparecer para além das luzes da ribalta e dos holofotes da fama que pintalgavam a sua carreira política e profissional ao longo do tempo.

    O salão principal ia se enchendo. Murmúrios e risos au-mentavam de tom consoante a chegada dos convidados. Os quadros e as imagens representadas em estatuetas da renas-cença italiana davam um toque de elegância e beleza àque-la divisão.

    - ...e ainda hoje ninguém desconfia que fui eu que escrevi aquelas frases na parede da reitoria da Universidade! – con-cluiu, rindo, Filipe Pimentel ao contar mais uma das suas histórias da resistência antifascista a Raul Azevedo, que re-tribuía rindo também, por cada história contada pelo amigo.

    - Senhor Presidente, como vai? – exclamou William Be-lushi no seu português inglesado a Daniel Saldanha.

    - Will, meu velho amigo! Também por aqui?

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    TIAGO MOITA

    - O Rodolfo ligou-me mal o meu avião aterrou em Lis-boa. Disse-me apenas que era um assunto da maior impor-tância e não adiantou mais nada. O senhor presidente sabe do que se trata?

    - Sempre o mesmo Will...mesmo depois de eu ter deixa-do Belém continua a chamar-me “Senhor Presidente”... – respondeu, antes de ser acometido por um ataque de tosse.

    - Senhor doutor, por favor, não se esforce tanto...- alvi-trou Vasco Monjardino, aparando-o.

    - Creio que não nos conhecemos, senhor...- interrompeu o americano.

    - Peço desculpa, fiquei tão emocionado com a tua chega-da que até me esqueci de vos apresentar. Will, apresento-te Vasco Monjardino, médico e actual secretário-adjunto do Primeiro-Ministro. É também meu amigo e secretário; Vas-co, apresento-te William Belushi, amigo há mais de trinta anos, antigo embaixador dos Estados Unidos em Portugal e grande homem de negócios.

    - Muito prazer! – responderam em uníssono, cumpri-mentando-se.

    - O Will colaborou muito comigo durante os anos quen-tes da Revolução! – disse Daniel Saldanha, com um brilho nos olhos.

    - Não fazia ideia!... – exclamou Vasco Monjardino.- É verdade! Eu e o Daniel fomos grandes companhei-

    ros de luta pela liberdade e democracia em Portugal. Foram tempos difíceis, mas conseguimos afastar não só os situa-cionistas como os comunistas.

    - Situacionistas? – disse o ilustre político.- O Will estava a referir-se aos fascistas, não é? – respon-

    deu Daniel Saldanha, sorrindo.- Claro! Quem mais poderia ser?

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    - Claro!...Quem mais!...- balbuciou Vasco Monjardino, embaraçado.

    - Mas voltando ao assunto; o Rodolfo não referiu a razão desta reunião, pois não?

    - Sei tanto quanto você. A única coisa que me adiantou é que era um caso de segurança nacional.

    - Segurança nacional?- Liberdade sempre! Segurança acima de tudo! – inter-

    rompeu o General Alexandre Perdigão.- Que susto! Você quase me mata do coração, homem! –

    retrucou Daniel Saldanha, irritado.- Alexandre!...”Alexander, the great!”. Já não te via des-

    de... – comentou o americano.- ...a comemoração dos oitenta anos do nosso amigo

    Daniel. – asseverou, sorrindo.- É verdade! Como tens passado?- O Alexandre é neste momento Chefe do Estado-Maior

    das Forças Armadas! – elucidou Daniel Saldanha.- Really?! Parabéns! É caso para dizer que se tratou de

    uma evolução natural! – congratulou o americano.- Digamos apenas que foi uma merecida recompensa

    para quem se sacrificou pela pátria e pela defesa da liberda-de, democracia e integração europeia. – respondeu com um sorriso amarelo. Todos se riram em uníssono.

    A conversa permaneceu animada enquanto aguardavam a chegada do anfitrião daquele encontro. O calor do ambien-te no salão estava no auge. Subitamente, um barulho seco e forte fez emudecer os presentes. As portas da sala abriram--se, dando lugar à entrada de um rosto familiar para todos.

    - Bem-vindos! – disse Rodolfo Beirão em voz alta – Queiram fazer o favor de passar para esta sala.

    Os convidados seguiram-no, expectantes e curiosos.

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    TIAGO MOITA

    Tal como duas gotas d’água siamesas, tanto a sala onde se encontrava Rodolfo Beirão como o salão de baile eram idên-ticas em tamanho e forma. Apenas a decoração contrastava com a elegância e a sobriedade do mobiliário da divisão an-terior. Esta, respirava uma atmosfera de orientalismo, mis-tério e misticismo. Cada canto encontrava-se devidamente ornamentado com objectos ligados à Maçonaria e à arte mística oriental e europeia. Uma vez dentro, os convidados iam se acomodando nos sofás e cadeiras que encontravam, antes do anfitrião explicar a razão daquele encontro de ci-dadãos tão ilustres da democracia portuguesa. O silêncio ia tomando conta das dos presentes à medida que as suas aten-ções se fixavam em Rodolfo Beirão, paciente, aguardando que o momento de falar fosse oportuno.

    - Meus caros amigos. Antes de mais quero agradecer a vossa presença e expressar o regozijo, tanto meu como da minha mulher, por terem aceitado o nosso convite. Infeliz-mente, ela não pode estar connosco por ter surgido um com-promisso inadiável de última hora, o que significa que esta noite vou ser o vosso único anfitrião. – asseverou, sorrindo. Todos o acompanharam.

    E continuou – Mesmo não tendo a capacidade de ler o pensamento humano, sou capaz de adivinhar o que circulou pelas vossas mentes quando receberam o convite: Porquê? A que se deve este convite? Porquê tanto secretismo? Pois bem, é chegado o momento de vos revelar o que deu origem a esta reunião.

    - És capaz de ir directo ao assunto?! – interrompeu, im-paciente, Jorge Franco.

    - Tem calma, meu caro. Nenhum de vocês foi escolhi-do ao acaso para estar aqui hoje, uma vez que acasos não existem, apenas destino. O mesmo destino que fez com que todos nós estivéssemos aqui presentes no momento em que

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    o falecido Professor Doutor João Eanes Raimundo, nosso distinto Grão-Mestre, nos revelou o segredo do futuro de Portugal. Naquela altura, nenhum de nós se atreveu a du-vidar das suas palavras. Porém, a pouco e pouco, muitos de nós, ignoraram a sua revelação. Contudo, com o passar do tempo, ocorreram um conjunto de sinais não só em Portugal como noutras partes do mundo que fizeram relembrar o que o nosso Grão-Mestre nos revelara. Na semana que passou, tomei conhecimento de mais um: A morte de Afonso Gon-çalves.

    Um clima de inquietação e espanto pairou no rosto dos convidados presentes, como se uma memória do passado viesse à superfície das suas mentes. Uma onda de murmú-rios invadiu a sala, afugentando o silêncio ali instalado.

    - Francisco, não é altura para brincadeiras! – exclamou Daniel Saldanha, irritado.

    - Infelizmente, senhor presidente, não estou a brincar. Fontes seguras confirmaram-me a tragédia. E se querem melhor prova do que estou a dizer...leiam! – respondeu, mostrando um jornal local com a notícia da morte do ho-mem que causara todo aquele burburinho entre os presentes. Numa fracção de segundos, o jornal circulou de mão em mão. Das suas bocas, nem uma palavra.

    - Quatro de Setembro...tal como fora previsto! – excla-mou Leonardo Amaral, empalidecendo.

    - E os sinais? Sempre se confirmaram os sinais dela?- Receio bem que sim, Pedro! – exclamou Rodolfo Bei-

    rão, virando-se para Pedro Monteiro – na noite em que ele morreu verificou-se um eclipse lunar, acompanhado de uma chuva de estrelas cadentes. Os outros sinais encontram-se noticiados nesse jornal.

    - Não estarás a exagerar? Pode ser uma coincidência! – comentou Jorge Franco.

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    TIAGO MOITA

    - Coincidência? – exclamou o anfitrião, indignado – Achas que se tudo aquilo fosse coincidência eu vos teria chamado a minha casa onde há cerca de cinquenta anos ou-vimos aquela maldita profecia?

    - O Rodolfo tem razão! – interrompeu Alexandre Per-digão com o jornal na mão – Tudo o que até agora se tem passado está longe de ser uma coincidência. Com a morte de Afonso Gonçalves, desaparece o Quarto Cordeiro conforme estava previsto na profecia. Olhem só o que está a acon-tecer no mundo inteiro! Tudo aquilo que Ela falou está a acontecer! Até mesmo aqueles fenómenos estranhos que os astrónomos da N.A.S.A descobriram há cerca de dois anos! Agora, morre um homem precisamente no dia em que suce-de o penúltimo sinal e vens tu dizer-me que tudo não passa de uma coincidência? – concluiu, irritado, virando-se para Jorge Franco.

    - Tenho uma pergunta a fazer. – disse o Governador do Banco de Portugal. – Ela já tomou conhecimento da morte do Quarto Cordeiro?

    - Penso que sim. Mas não acredito que tenha tomado pos-se daquilo. Tampouco ter entrado em contacto com Ele.

    - Como podes ter tanta certeza?- Um pressentimento…- Pressentimentos não são certezas.- Talvez o que te vou contar te convença.- Depende do que seja. Do que se trata?- Ajuda externa de alguém da nossa confiança. Alguém

    por nós colocado num dos postos mais altos da Europa e que já garantiu enviar-nos auxílio para resolver este problema.

    - E de onde vem essa ajuda? – perguntou Pedro Monteiro, intrigado.

    - De Bruxelas.

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    SEIS

    Nada fazia desviar o olhar de Inês Maia da janela do carro dos pais, enquanto ambos se dirigiam para Guimarães – ber-ço de Portugal e de Afonso Gonçalves, seu avô, a fim de lhe prestar a última homenagem antes do funeral. Tinham parti-do cedo de Lisboa para evitar os dilacerantes engarrafamen-tos. Era sexta-feira e o dia despertara cinzento e chuvoso, retractando o mau humor atmosférico. Na viatura vivia-se um ambiente tenso, além da melancolia silenciosa, tatuada apenas pelos gritos mudos expressos nas lágrimas de Teresa Gonçalves, sua mãe, e na apatia letárgica de Inês em tudo o que a rodeava e observava. Nem mesmo o chamamento do verde dos campos apagavam aquele reflexo de mágoa no seu rosto.

    Inês não queria acreditar. Por uns momentos, gostava que tudo não passasse de um pesadelo, um sonho mau prestes a sucumbir com o despertar. Todavia, a realidade era bem mais fria que a ilusão e do avô agora podia apenas guardar lembranças. Lembranças de uma infância e adolescência felizes passadas em Guimarães, em casa de Afonso Gon-çalves. Ora brincando no jardim verdejante e robusto da propriedade; ora acertando nos jogos e enigmas que o avô preparava para si como forma de lhe ofertar prendas ou do-ces como recompensa, ou ainda escutando as estórias no seu colo, quando pequenina, sobre episódios da Bíblia Sagrada,

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    TIAGO MOITA

    lendas místicas sobre seres e mundos desconhecidos, ou en-tão, os episódios mais marcantes da História de Portugal, país com o qual se identificava e orgulhava.

    - Inês, filha? Chegámos! – disse a mãe, tocando no om-bro da jovem. Naquele instante, despertara do transe em que vinha mergulhada. Tinha acabado de chegar a casa do avô. Como que atordoada, nem se apercebera do chiar dos por-tões, do latir dos cães de guarda, que vira crescer quando criança, nem dos fios de luz solar trespassando as sombras das copas das árvores.

    Nuno Galvão encontrava-se à entrada da mansão a fim de orientar os convidados para a capela de família. Um leve sorriso revelou satisfação pela chegada dos Maias à casa do seu antigo patrão. Etiqueta e distinção acima de tudo; emo-ções eram atributos privados que não deviam ser exaltados em público. De luva branca e fato de cerimónia, o mordomo de Afonso Gonçalves abrira a porta do lado de Teresa mal sentira a viatura parar.

    - Sejam bem-vindos! - exclamou. Dos Maias, apenas um leve aceno em silêncio.

    De todas as capelas da região, a capela da mansão dos Gonçalves destacava-se pela sua originalidade. Por fora, mantinha a sobriedade de uma capela cristã comum; por dentro, espelhava uma auréola de mistério e beleza, onde o sagrado e o profano de cada religião se cruzava numa co-munhão de ideias e ritos. Uma aldeia global na pluralidade de consciências espirituais num único e pequeno espaço de oração e partilha com algo que os homens sentiam ser supe-rior ao seu conhecimento. Dentro daquelas quatro paredes, filas de pessoas com rostos de pesar e consternação, desfi-lavam em silêncio com a amargura nos olhos e um luto nos lábios. Muitos dos rostos eram desconhecidos para Inês. Até mesmo os pais tiveram dificuldade em reconhecer alguns

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    dos presentes naquela capela, ornamentada com desenhos de seres fantásticos e deuses mitológicos misturados com reis e santos.

    Pouco depois da chegada dos Maias, a mansão recebia mais uma visita. A poucos metros da capela parava um Ford Mondeo último modelo, num local onde a sombra se cruzava com a luz; dele saia um casal na casa dos quarenta, elegantes na maneira de trajar embora sóbrios no luto que enverga-vam e nos óculos escuros que ostentavam. No banco de trás, transportavam consigo duas lindas meninas gémeas com a inocência estampada nos olhos azuis e silêncio nos lábios.

    - Achas que fizemos bem em trazer as crianças? Este não é o lugar mais apropriado para elas.

    - Preferias o quê? Que ficasse em casa com elas? Não te esqueças que eu e Teresa somos grandes amigas e o velho gostava muito das pequenas. Além disso, depois do funeral vai ser feita a abertura do testamento e eu quero saber se elas também foram contempladas.

    - Tens mesmo a certeza disso?- Intuição, meu querido, intuição feminina. – respondeu,

    abrindo a porta do carro.Uma sombra ganhava forma com a abertura da porta.

    Sua silhueta mostrava uma mulher alta e elegante no andar e no olhar. Tia de Inês, cunhada de Teresa e Henrique Maia, era o retrato vivo de uma mulher castelhana de sangue quen-te e coração frio, habituada a ser o centro das atenções em todos os eventos para que era convidada e a provocar multi-dões, mesmo nos momentos mais impróprios, exibindo uma magnitude e uma altivez, fruto da sua natureza. Assim era Leonor Cortez.

    Miguel Maia, seu marido e tio de Inês, era o oposto do irmão, seu pai. Ela, adorava-o pelo seu humor sarcástico e pelo carinho e orgulho que lhe devotava, ao contrário da

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    TIAGO MOITA

    tia, que a desprezava e invejava por ser a neta predilecta de um dos homens mais importantes da família, senhor de uma fortuna que só conseguia imaginar em sonhos. Inês sempre achara piada ao tio Miguel, mas nenhuma confiança. Tanto ela como a família conheciam bem os seus truques e manhas para conseguir persuadir pessoas a entrar nos seus negócios pouco limpos, conjuntamente com a profissão de engenheiro civil de uma das mais importantes empresas de construção civil do país.

    A entrada de Leonor e família fizeram com que algumas velhas beatas, procurando esconder a sua indignação, fizes-sem o sinal da cruz, ao mesmo tempo que rezavam algumas Avé-Marias e Padres-Nossos como que a apaziguar os es-píritos da insegurança que sentiam ao ver os seus homens completamente fascinados por ela. Apenas um pequeno gru-po de homens, mulheres e crianças permaneceu indiferente à sua entrada.

    Mal Leonor se sentou junto de Teresa, juntamente com a família, um homem dos seus cinquenta e poucos anos levan-tou-se, dirigindo-se para o púlpito a fim de proferir algumas palavras sobre o finado.

    - Fez ontem precisamente quarenta anos que conheci o Afonso. Ainda antes de aqui chegar, passei por um velho terreiro onde costumávamos jogar à bola, juntamente com os seus primos. Era um jovem cheio de vida, um coração pleno de alegria e amor pelo próximo. Nunca conheci nin-guém tão bondoso, corajoso, inteligente, amigo do seu ami-go, humano e patriota como Afonso Gonçalves – afirmou com a emoção a embargar-lhe a voz.

    E continuou –...três dias antes de morrer, liguei-lhe para desabafar como era meu costume. Nessa noite, ele terminou a nossa conversa com um poema que gostaria de partilhar convosco, para saborearem a grandeza da alma e coração

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    que este homem tinha: A esperança é o farol/aceso em noite de nevoeiro/um ardente e fino fio de sol/que faz o último sen-tir-se o primeiro/estranha é a força que a razão desconhece/interior, a vontade atrás da paixão/saudade, a dor que não se esquece/desse barco sem bússola chamado coração/feliz quem não duvida/do sonho que persegue/crente, quem crê na vida/que só a alma percebe.

    Lágrimas sentidas deslizavam pelos rostos de todos os que tinham participado na cerimónia fúnebre. Teresa foi a única que extravasou a emoção caindo depois na mais pro-funda tristeza. Inês deixava que interiormente a sua alma chorasse. Miguel e Leonor permaneciam estáticos, enquan-to suas filhas mostravam preocupação e compaixão apenas expressa no seu olhar.

    A cerimónia era agora no exterior. O céu limpo dava lu-gar a uma nebulosidade espessa, como se o tempo quisesse demonstrar o seu pesar pela morte do patriarca dos Gonçal-ves de Guimarães. O cortejo fúnebre prosseguia marcha em direcção ao cemitério municipal. Pela primeira vez, um Gon-çalves quebrara a tradição familiar e ia ser sepultado junto do povo anónimo e não no jazigo dos seus antepassados como muitos outrora tinham feito. Inês seguia aquela multidão va-garosa, qual discípula de Cristo acompanhando o Senhor em direcção ao Calvário. De todos, era a única semidesperta do transe melancólico daquele rio de almas difusas; o suficiente para reparar discretamente nalgumas pessoas que assistiam àquela cerimónia. Pareciam falcões, vigiando os passos da presa; seis, segundo a sua observação. Alguém está a ser observar-me, mas quem? pensava Inês para consigo, um pensamento que não a largara mesmo depois do enterro e do almoço que precedeu a cerimónia. Durante a refeição, Inês reparou em olhares suspeitos de algumas pessoas para si. Porque será que olham tanto para mim? pensou.

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    TIAGO MOITA

    A tarde começava a declinar e os primeiros pingos anun-ciavam uma noite chuvosa e fria. Mal o último dos convida-dos tinha abandonado a mansão dos Gonçalves e já todos os familiares se reuniram junto do advogado do velho patriar-ca, jovem ainda. O aspecto e a forma de falar era de alguém com linhagem, embora simples. Paciente, esperou que todos se sentassem em silêncio para dar início à leitura do testa-mento de Afonso Gonçalves.

    - Vou ler agora para vós o testamento do meu cliente: “Caríssimas, quando lerem estas linhas já terei partido para junto do Senhor. Assim é o ciclo da vida, tudo tem um princípio e um fim e o meu acaba de chegar. O fim do meu percurso aqui na terra é um novo princípio noutra dimen-são. Tal como eu nunca concebi a morte como um fim em si, também não desejo que vejam as vossas vidas como o fim do mundo. Santo Agostinho disse, antes de morrer, que todo o fim traz consigo um princípio atrás de si. Por isso, quero que neste momento vivam um novo princípio. Assim, desejo que as minhas terras, esta mansão e oitenta por cento da minha fortuna pessoal passem para a Fundação Dom Sebastião, desde que o meu fiel mordomo Nuno Galvão continue a tra-balhar nela, assim como Carlota. Para vós, confiro a res-ponsabilidade de gerir uma pensão de alimentos no valor de vinte e cinco mil euros a cada uma das minhas afilhadas Liliana e Beatriz Cortez Maia até elas perfazerem dezoito anos de idade. À minha filha Teresa deixo o resto da minha fortuna e quanto à minha adorada princesa, minha querida e amada neta Inês, ficará com o meu baú de brinquedos.”

    Todos ficaram sem palavras.

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    SETE

    Vila Nova de Foz Côa23 de Junho de 1282

    Apenas uma força animava aquele homem. Só um poder su-perior a todos os tesouros da Terra faria levar o jovem rei Dom Dinis, Rei de Portugal e dos Algarves, até às terras do Douro e esquecer, por algum tempo, os assuntos que o reino e o povo exigiam. O estatuto não escondia a sua idade. Para os seus súbditos, era a imagem de um rei sério e justo, zeloso e conhecedor da responsabilidade do seu cargo e da impor-tância da família na fundação e consolidação do Reino de Portugal; para si, um jovem de vinte e um anos dominado pela ingenuidade no que toca a sentimentos mais profundos e verdadeiros como a força que o animava e levara até aos confins do Portugal profundo: o amor de uma mulher. Es-pecialmente quando falamos da Princesa Isabel de Aragão.

    Filha mais velha do rei Dom Pedro III e da rainha Constan-ça da Sicília, Isabel de Aragão recebera o nome por influên-cia de Jaime I, seu avô, em homenagem à sua tia, Santa Isabel da Hungria, cuja vida tanto a edificara. Sua mão era preten-dida pelos reis de França e Inglaterra. O destino favoreceu Dom Dinis pelo facto de ser o único dos pretendentes à mão da formosa princesa que tinha subido ao trono. Essa alian-ça reforçou as relações entre os reinos de Portugal e Aragão.

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    TIAGO MOITA

    Estávamos no auge do verão, véspera das festas de São João. O calor que assolava o reino assemelhava-se ao bafo do Diabo. A agressividade do clima tinha deixado as folhas e a erva dos campos beirões de Vila Nova de Foz Côa casta-nhos e ressequidos. Nas ondulações do relevo, as povoações arrumavam-se nos cumes mais aplanados, onde se podiam observar os povoados vizinhos rodeados de vinhas, amen-doeiras e oliveiras nos dias claros e de intensa luminosidade. Um cenário transcendente que empolgava, espantava e ex-tasiava qualquer ser humano que tivesse a oportunidade de observar aquela paisagem do Alto Douro.

    O nervosismo do jovem rei português desapareceu, quan-do, no meio do seu séquito, surgira o rosto quase infantil de Isabel, a neta preferida do velho rei aragonês Jaime I. Para Dom Dinis parecia que o sol tinha atingido o seu esplendor. A luminosidade e beleza confundiam-se com o brilho do astro rei, irradiando uma aura tão pura quanto o orvalho da manhã. Diante de si, estava a juventude radiosa de uma princesa que vinha humanizar os esforços de consolidação do reino de Portugal.

    Dom Dinis e Dona Isabel subiam alegremente o Douro até Vila Nova de Foz Côa. O povo aclamava o casal real e via no rosto suave da princesa aragonesa a imagem da Vir-gem Maria. Uma comparação que fez com que o povo pres-sentisse que aquela princesa tinha qualquer contacto com o céu. Dom Dinis, qual jovem enamorado no seu primeiro encontro, continuava desculpando-se pela agressividade do clima e do castanho da terra. Dona Isabel, cheia de uma bon-dade infinita, acrescentava, sorrindo.

    - Mas estes campos – dizia docemente. – São ainda mais belos que os jardins de Zaragoza…vede-os, cheios de viço e frescura, como verdadeiros vergéis floridos!

    - Floridos, senhora?! – respondeu-lhe Dom Dinis com um sorriso vetusto e forçado. – Floridos?! Por quem sois!...

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    Estamos no pino do Verão. Até as papoilas estão mirradas. É uma pena não terdes uma paisagem mais bonita ao longo do trajecto.

    - Mas não vedes como estão os campos?...Olhai aquela encosta!...Que beleza!...ali revestida de uma brancura sem par. E aquele monte, branco como fora o Moncayo, nas cer-canias de Sória…

    E continuou, para os companheiros, entusiasmada. – Não vedes?!...Não é neve, não…são rosas! Pequeninas flores, frá-geis, brancas e levemente rosadas! Uma prenda que Deus nos deu para embelezar a nossa paisagem!

    El-rei enxergara com mais atenção no que Isabel de Ara-gão descrevia. Os campos ofereciam um verdadeiro véu de noivado. As amendoeiras tinham sido toucadas, como se tivessem sido nimbadas das mais finas rendas por uma fada, e tudo feito de flores. Virando as costas, reparou que a comitiva também descobrira uma paisagem diferente. Um toque de beleza, quase de magia transformara aqueles cam-pos ressequidos até então. Para os presentes tinha sido um autêntico milagre, um milagre de Isabel.

    - Que maravilha! Parece o mundo depois da chegada do Império do Espírito Santo. – exclamou o rei, deslum- brado.

    - Vossa cultura surpreende-me, alteza! Não vos sabia de-voto do pensamento de Joaquim de Fiore.

    - Conheceis Joaquim de Fiore, senhora?- Conheço o seu pensamento. Acredito piamente nas suas

    ideias. O Espírito Santo é a alma do mundo e como tal, o seu império deverá ser uma época em que o homem terá a capacidade de se tornar livre e esclarecido através da boa vontade e da palavra de Deus.

    - Sabeis que Portugal está directamente ligado com o pensamento de Fiore?

    - Como assim, alteza?

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    TIAGO MOITA

    - Uma vez que dentro em pouco sereis minha esposa e acreditais na chegada do Império do Espírito Santo, julgo que devereis saber um pouco sobre o vosso futuro reino. Esta terra pode não parecer mas encontra-se rodeada de uma forte presença espiritual. Desde Santiago de Compos-tela até ao Cabo de São Vicente, Portugal está protegido por força divina vinda da Grande Porta.

    - Grande Porta? Não estareis a falar da…- Perfeitamente, senhora! Descoberta pelo pai de Dom

    Afonso Henriques, nosso primeiro rei! - Senhor! Desde o primeiro momento que vos conheci,

    senti não só amor por vós mas também por esta terra cheia de luz e de paz. Depois de tudo o que vós dissestes, acredito que não vim para esta terra apenas por força do destino, mas também por missão. Façamos os nossos votos quanto antes e homenageemos o pensamento de Fiore com a celebração de um culto religioso.

    - Um culto religioso em homenagem a Fiore? Que culto é esse de que falais?

    - Um culto ao Divino Espírito Santo. Uma cerimónia em homenagem à Terceira Idade defendida por Fiore que inspire este povo e prepare o nosso reino para o que Cristo prome-teu oferecer aos homens.

    Um sorriso selou um compromisso entre os dois sobe-ranos e jovens noivos. Dali seguiram para Trancoso onde receberam as bênçãos matrimoniais. Para o futuro, ficou uma promessa transformada em realidade. A concretização das Festas do Divino Espírito Santo, prenda que Dom Dinis e Dona Isabel ofereceram a Portugal e ao povo português, como preparação para um destino à espera de ser cumprido desde o milagre de Ourique.

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    OITO

    Bruxelas valia o sorriso daquele homem. Aquela expressão, longe de ser fruto do acaso, era o resultado de uma cuida-dosa visualização. Sorrir significava agrado, confiança, simpatia, tal como o aperto de mão firme ou mesmo um abraço envolvente. Esta era a visão que se queria transmitir aos espíritos mais mundanos que visitavam ou habitavam a grande capital da União Europeia, um dos principais eixos europeus por excelência – não fosse ela o albergue da gran-de máquina burocrática europeia desde a fundação, e tam-bém, centro nevrálgico de todos os caminhos e ambições de um continente transformado em estado soberano, qual nova Roma, ponto de partida e chegada para todas as opor-tunidades e decisões de um dos mais antigos continentes do mundo.

    À luz do ambiente que se vivia no mundo e do clima ou-tonal que dominava a cidade, o sorriso daquele homem era uma miragem num deserto. Outros sorrisos com maior pu-reza e brilho ofuscariam este como o de um grupo de Euro-deputados ao sair das novas instalações do Parlamento Eu-ropeu em direcção a um dos cafés da Grand Place, distantes da realidade que se vivia nos países que os tinham elegido, longe de todas as preocupações internas.

    Quem conhecesse bem Sidónio Carneiro era capaz de entender a razão daquela satisfação. Por detrás daquela apa-

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    TIAGO MOITA

    rência simulada e hipócrita que marcava a sua personalidade enquanto político em Portugal, existia um ser humano que aos olhos dos seus entes queridos transmitia uma imagem oposta daquela com que o mundo sempre o rotulara. Bom pai, casado com uma mulher extraordinária que sempre o acompanhara em todos os momentos; bons filhos, bem-su-cedidos tanto nos estudos como nas suas vidas pessoais; senhor de uma das mansões mais luxuosas e antigas da Europa e detentor de um dos cargos mais importantes da mesma. Neste momento, encontrava-se a assinar documen-tos com o mesmo sorriso que o iluminara no dia em que se casara com a mulher dos seus sonhos; nascera o primeiro filho; tomara posse como Primeiro-Ministro de Portugal e, presentemente, ao aceitar o cargo que actualmente ocupa-va, três dias depois de o seu partido ter sofrido uma pesa-da derrota nas eleições europeias, interrompera um man-dato a meio para assumir uma missão em nome do sonho europeu.

    Dois toques do telefone alertaram o homem mais pode-roso da Europa. Sidónio era cauteloso na sua maneira de ser e de estar em sociedade. Seu jeito transmontano e paciente souberam sempre impedi-lo de agir por impulso em situa-ções perturbantes e de maior responsabilidade. Fora sempre assim desde os tempos de criança, passando pelo seu passa-do revolucionário de jovem estudante da extrema-esquerda nos anos quentes da Revolução dos Cravos até ao momento presente. Um suspiro de alívio antecedeu uma breve pausa antes de atender.

    - Sim?- Pax Frater, irmão Sidónio!- Rodolfo! Que prazer voltar a ouvi-te! O que mandas?- Escuta: aconteceu aquilo que nós mais temíamos.- De que se trata?

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    O ÚLTIMO IMPÉRIO

    - Lembras-te daquela reunião em minha casa com o pro-fessor Doutor João Eanes Raimundo, nosso antigo Grão--Mestre?

    - Tivemos tantas reuniões com ele antes de morrer. Como é que queres que me lembre de…

    - …Aquela reunião em que ele falou do Segredo! – in-terrompeu.

    - Ah!...essa…sim, lembro-me perfeitamente, porquê?- Faleceu o Quarto Cordeiro. Um minuto de silêncio emudeceu o Presidente da União

    Europeia, mal Rodolfo Beirão proferiu aquelas palavras. A expressão do rosto e o abrir dos olhos revelavam espanto e medo. Um suor frio percorreu-lhe o corpo transmitindo-lhe uma sensação de pânico.

    - O Afonso Gonçalves…morreu? Quando? Como? Tens a certeza?

    - Estás ligado à rede?- Claro! Porquê?- Vai ao teu mail. Deixei lá uma mensagem reveladora de

    tudo o que te estou a dizer.Sem pensar duas vezes, virou-se para o computador pes-

    soal do outro lado da secretária e acedeu à Internet. Era pre-ciso pôr em pratos limpos aquela estória. Sempre era verda-de: Rodolfo Beirão tinha de facto enviado uma mensagem. Dentro, encontrava-se uma imagem digitalizada da notícia num jornal local de Guimarães, com a fotografia de Afonso Gonçalves e relatos de um conjunto de fenómenos idênticos àqueles que o grande magnata da comunicação social portu-guesa revelara na última reunião que realizara em sua casa. Pânico.

    - Não é possível!...Então sempre é verdade! A profecia está a cumprir-se!

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    TIAGO MOITA

    - Por isso é que eu te liguei. É preciso agir quanto antes! Tu sabes o que é que está em jogo?

    - Se sei!...E ela, já tomou conhecimento disto?- É muito provável. Se calhar até já tem A Chave!- Calma! Não te precipites! – respondeu, limpando o suor

    do rosto. – Já falaste com os nossos irmãos?- Falei com eles ontem. Prometi-lhes ajuda da tua parte.- O quê? Ajuda? Mas vocês não são capazes de Eliminá-

    -la e resgatar Isso?! – inquiriu, irritado.- E se ela já estiver sobre a protecção Deles?- Deles? De que é que estás a falar?- Tu bem sabes do que estou a falar. Decerto te recor-

    das do atentado em Estrasburgo em que atribuímos culpas a Eles. Porventura já te esqueceste do que foi decidido na última reunião do Grupo? – respondeu Rodolfo Beirão. Si-dónio Carneiro respondeu com um murro na mesa.

    - Maldição! Tens razão. É muito provável que Ela já es-teja sobre a sua alçada. Informa o Grupo que vou tomar as medidas necessárias para impedir o avanço do que pode ser uma catástrofe. A partir de agora os assuntos dela são objec-to de segurança nacional.

    - Segurança europeia, queres tu dizer.- Claro, sabes bem o que quero dizer. Obrigado Rodolfo!

    Um abraço e até breve! – respondeu, antes de desligar.Não havia tempo a perder. Hesitação era palavra desco-

    nhecida no seu vocabulário e tempo a chama de uma vela prestes a apagar-se. Mal Rodolfo Beirão desligara o telefone, Sidónio Carneiro ligava para a sua secretária.

    - Senhora Bruguell? Ligue-me rapidamente ao Director--Geral dos ESS!

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    NOVE

    Palácio Real Marquês de Abrantes24 de Junho de 1578

    Como aquela semana não havia memória de semelhante romaria em Lisboa. O Verão tinha começado poucos dias antes. O calor fustigava as almas de todas os estrangeiros e raças que deambulavam pelas ruas da capital de um dos maiores impérios que o mundo conhecera; estranhos abalos sísmicos e focos de peste amedrontavam os corações mais frágeis e as mentes mais fracas e ignorantes do reino, víti-mas de demagogos, fanáticos e adivinhos ambíguos e deli-rantes que viam na partida da armada de Dom Sebastião, Rei de Portugal e dos Algarves, de Aquém e de Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, um mau pres-ságio, que poderia não só comprometer a vida do rei e dos milhares de soldados e cavaleiros que o acompanhavam mas também o futuro do Reino e Império de Portugal. Desde a notícia da partida do rei Desejado para Marrocos que a população de Lisboa lotara igrejas, pedindo a Deus pela pro-tecção de um rei que era visto pelos seus súbditos como o salvador do futuro de um dos reinos mais antigos e podero-sos que a Europa conhecera.

  • 66

    TIAGO MOITA

    Antigo Convento das Comendadeiras, transformado em Palácio Real no reinado de Dom Manuel I, o Palácio Real Marquês de Abrantes, também conhecido como Palácio dos Santos ou dos Santos-o-Velho, era um espaço com uma fa-chada brasonada no interior e com salões abobadados reple-tos de frescos, em especial uma sala piramidal, inteiramen-te coberta de porcelanas e faianças do Japão e uma capela adornada de azulejos. Foi nesse Palácio que Gil Vicente apresentou alguns dos seus autos, em 1510.

    Nunca o poder e a cultura estiveram tão próximos um do outro como naquela tarde. Lado a lado, passeavam dois ho-mens perfeitamente distintos. Um, fruto da providência que o sagrara soberano e esperança de toda uma nação e de um império; outro, mestre no pensamento e na palavra que fez da poesia sua vida e necessidade, sacrificando a mesma para salvar a sua obra imortal, quando o navio que o transportava naufragara na foz do rio Mekong. Dom Sebastião admirava o Tejo enquanto passeava pelos jardins do Palácio com Luís Vaz de Camões. Quatro anos antes, auxiliara-o, pagando as despesas da publicação dos “Lusíadas”. Os dotes poéticos desse humanista, assim como o seu pensamento, impressio-naram o soberano, que nunca mais esquecera a dedicatória que o ilustre poeta lusitano lhe fizera na sua obra. Durante aquele passeio com ele, o jovem rei não parava de lhe te-cer elogios.

    -...o estilo engenhoso como escreve versos, a exactidão vocabular com que cruza a realidade e a fantasia, leva-me a considerá-lo, Camões, como um dos melhores poetas do meu reino.