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1 UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA Paulo Storani “VITÓRIA SOBRE A MORTE: A GLÓRIA PROMETIDA” O “rito de passagemna construção da identidade dos Operações Especiais do BOPE. Niterói 2008

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  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

    Paulo Storani

    VITRIA SOBRE A MORTE: A GLRIA PROMETIDA

    O rito de passagem na construo da identidade dos Operaes Especiais do BOPE.

    Niteri

    2008

  • 2

    UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA

    Paulo Storani

    VITRIA SOBRE A MORTE: A GLRIA PROMETIDA

    O rito de passagem na construo da identidade dos Operaes Especiais.

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Antropologia da

    Universidade Federal Fluminense, como

    requisito parcial para obteno do Grau de

    Mestre em Antropologia Social.

    LINHA DE PESQUISA: Cultura Jurdica, Segurana Pblica e Conflitos Sociais.

    Niteri

    2008

  • 3

    Banca Examinadora

    _________________________________________________

    Prof. Orientador Dr. Roberto Kant de Lima

    Universidade Federal Fluminense

    _________________________________________________

    Profa. Co-orientadora Dra. Jacqueline Muniz

    Universidade Candido Mendes

    _________________________________________________

    Profa. Dra. Simoni Lahud Guedes

    Universidade Federal Fluminense

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto

    Universidade Federal Fluminense

    ________________________________________________

    Prof. Dra. Ana Paula Mendes de Miranda

    Universidade Candido Mendes

  • 4

    Resumo

    Trata-se de uma densa descrio do Curso de Operaes Especiais do Batalho de

    Operaes Policiais Especiais BOPE - da Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro,

    analisada na perspectiva da teoria antropolgica dos ritos de passagem. A etnografia

    descreve as representaes sociais, performances e os smbolos do processo de iniciao, os

    mtodos de socializao do conhecimento e as formas de incorporao das idias-valor que

    constituem os traos da identidade deste grupo de profissionais chamados de caverias. As

    representaes identificadas foram comparadas com trabalhos acadmicos que tratam da

    mudana de status de profissionais de segurana pblica, bem como as formas de socializao

    dos cdigos de sentimento e de conduta. Os mecanismos de internalizao e naturalizao,

    utilizados no processo, foram considerados para anlise a partir da relao entre o saber

    terico e o fazer prtico, na formao profissional dos operaes especiais, e sua influncia

    na construo da identidade da persona institucional do BOPE. Com a perspectiva

    antropolgica interpretativa, buscou-se a compreenso do significado das aes simblicas e

    performances dos atores, no contexto social especfico, que se inscreveram nos atos, nos

    gestos e nos discurso observados durante o Curso de Operaes Especiais.

    Palavras Chave: segurana pblica, rito de passagem, operaes especiais e performance.

  • 5

    Abstract

    This dissertation is about a dense description of the Special Operations Course of the

    Military Police of the State of Rio de Janeiro, analyzed by the perspective of the

    anthropological theory of the rites of passage. The ethnography describes the social

    representations, performances and the symbols of this initiation process, the methods of

    knowledge socialization and the ways to personify the value-idea, that contribute to construct

    the identity of this tribe called caverias. The representations had been compared with

    academic works and forms of status changing in public professional groups of public security,

    as well the socialization methods of the feeling codes and behavior. The mechanisms of

    internalization and naturalization had been considered for analysis of the relation between

    theoretical knowing and practical making, and its influence to construction of BOPE

    institutional persona. With the interpretative anthropological perspective, it searched

    understanding about the meaning of social actors symbolic actions, performances and

    thinking in the specific situation, during the Course of Special Operations.

    Keywords: public security, rite of passage, special operations, and performance.

  • 6

    Agradecimentos

    Ao Autor da liberdade e o Campeo dos oprimidos

    que, em prece, rogo pela sabedoria de Sua mente, a

    coragem de Seu corao, a fora de Seus braos, e

    a proteo de Suas mos.

    minha mulher Marcia, pelo amor, fora e

    compreenso que nos une e nos mantm juntos

    nesta na jornada.

    Aos meus filhos Pedro e Camila, origem de minha

    fora e inspirao, pela sua essencial existncia em

    minha vida.

    Aos meus orientadores, professores e colegas do

    PPGA e do Nufep da UFF, por terem

    compartilhado sua sabedoria e pacincia.

    Aos meus interlocutores, pela sinceridade e

    coragem.

    Aos homens de Operaes Especiais.

  • 7

    Epgrafe

    Que profisso essa, como se obtm sucesso nela e

    que costumes adquirem, os que a exercem?

    Tolstoi, Guerra e Paz.

  • 8

    SUMRIO

    RESUMO_________________________________________________________________iv

    ABSTRACT_______________________________________________________________v

    AGRADECIMENTOS______________________________________________________vi

    EPGRAFE_______________________________________________________________vii

    LISTA DE SIGLAS_________________________________________________________x

    PRLOGO______________________________________________________________ 11

    INTRODUO - A CONSTRUO DO OBJETO ANTROPOLGICO__________ 14

    NO BATALHO DE OPERAES POLICIAIS ESPECIAIS _____________________________ 18

    DISCUSSES METODOLGICAS E TERICAS RELACIONADAS PESQUISA ______________ 20

    O ESTRANHAMENTO _______________________________________________________ 22

    CAPTULO I

    CONSTRUO IDENTITRIA DA PMERJ E O MITO DE ORIGEM___________ 25

    A AUTO-REFERNCIA HISTRICA DO POLICIAL MILITAR___________________________ 27

    O PARADIGMA MILITARISTA _________________________________________________ 28

    O ETHOS MILITAR COMO IDENTIDADE SOCIAL___________________________________ 30

    A SOCIALIZAO DO CONHECIMENTO POLICIA___________________________________ 33

    A EVOLUO DA VIOLNCIA DOS CONFRONTOS ARMADOS NA TICA DO POLICIAL MILITAR

    _________________________________________________________________________ 34

    A GNESE DO BOPE_______________________________________________________ 39

    O BOPE HOJE____________________________________________________________ 43

    CAPTULO II

    O CURSO DE OPERAES ESPECIAIS COEsp ____________________________ 35 O PROCESSO SELETIVO _____________________________________________________ 37

    O PROGRAMA DE TREINAMENTO______________________________________________ 40

    CAPTULO III

    O RITO DE PASSAGEM___________________________________________________ 42

    A SEMANA ZERO __________________________________________________________ 53

    O primeiro contato do pesquisador com os alunos_________________________________ 54

    A ida ao mercado __________________________________________________________ 56

    A construo da fachada ___________________________________________________ 57 Noes de poluio e perigo ______________________________________________ 63 A SEPARAO: A SEMANA 1 OU SEMANA____________________________________ 62 A Mortificao do Eu e os Signos de uma Nova Identidade ________________________68 A Normalizao como Representao __________________________________________ 70

    A Base de Instruo ________________________________________________________ 71

    O Cerimonial de Abertura do COEsp A confirmao da separao __________________ 75 O Incio da Docilizao dos Corpos ___________________________________________ 78

    Rito, Insulto Moral ou Demonstrao de Poder? ________________________________ 81

    A Rotina de Instruo ______________________________________________________ 85

    Rusticidade como Representao A Naturalizao da Adversidade __________________ 88 A rea Verde O espao privado de uso coletivo ________________________________ 89 O Xerife _________________________________________________________________ 91

  • 9

    A sacralizao do secular ____________________________________________________ 92

    A Cerimnia de inspeo como controle ________________________________________ 95

    A Sano Normalizadora ____________________________________________________ 97

    O ambiente hostil - O meio lquido ___________________________________________ 101

    Desligamento - A Morte e o Sepultamento da Identidade Liminar ___________________ 106

    Dramas Sociais e Naturalizao da Adversidade_________________________________ 111

    A FASE DA LIMINARIDADE _________________________________________________ 116

    Simplificar, padronizar e automatizar__________________________________________ 123

    A casa como referncia_____________________________________________________ 128

    A REINTEGRAO________________________________________________________ 129

    CAPTULO IV

    CONSIDERAES FINAIS_______________________________________________ 130

    O BOPE COMO RESULTANTE DO PROCESSO DE CONSTRUO SOCIAL DO ETHOS

    GUERREIRO______________________________________________________________ 132

    O PROCESSO TRANSFORMADOR: O RITO DE PASSAGEM__________________________122 A socializao como estratgia de construo do novo ethos e viso de

    mundo__________________________________________________________________ 134

    Os motivos para submisso__________________________________________________ 135

    O SAGRADO E O SECULAR__________________________________________________ 137

    A REPRESENTAO DO NOVO EU___________________________________________ 138 A FORA DO SMBOLO REFERENCIAL_________________________________________ 139

    CAVEIRAS E CONVENCIONAIS________________________________________________ 141

    V E VENA! ____________________________________________________________ 143

    Referncias Bibliogrficas__________________________________________________ 145

    Apncide________________________________________________________________ 150

    Anexo I_________________________________________________________________ 152

    Anexo II________________________________________________________________ 165

    Anexo III________________________________________________________________ 169

  • 10

    LISTA DE SIGLAS

    BOPE - Batalho de Operaes Policiais Especiais

    BPM - Batalho de Polcia Militar

    CFAP - Centro de Formao e Aperfeioamento de Praas

    CIOE - Companhia Independente de Operaes Especiais

    COE Companhia de Operaes Especiais

    COEsp Curso de Operaes Especiais

    DEI - Diretoria de Ensino e Instruo

    DGEI - Diretriz Geral de Ensino e Instruo

    DPO Destacamento de Policiamento Ostensivo

    EB Exrcito Brasileiro

    EMG Estado Maior Geral da Polcia militar do Estado do Rio de Janeiro

    FGV - Fundao Getlio Vargas

    MB Marinha do Brasil

    NuCOE Ncleo da Companhia de Operaes Especiais

    OPM Organizao Policial Militar

    PC - Polcia Civil

    PM - Polcia Militar

    PMERJ - Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro

    SIEsp - Seo de Instruo Especializada

  • 11

    PRLOGO

    Abril de 1995, Praia do Forte do Imbu em Niteri. A escurido da madrugada nublada

    dificultava figurar o instrutor sentado na beira da praia, agasalhado e acomodado em um

    banco, ladeado por dois auxiliares de instruo que iluminavam os alunos do Turno 95/I

    dentro da gua do mar, com lanternas magligth1. Os nefitos do VIII Curso de Operaes

    Especiais lutavam contra a fora da arrebentao, agarrando-se um no outro para se manterem

    unidos. Parecia uma penca de caranguejos, segundo a definio de um dos prprios alunos.

    Era o terceiro dia do curso e dos 34 policiais que o iniciaram, 8 j haviam pedido para sair,

    desistindo de continuar no programa de treinamento. O turno de alunos estava mergulhado

    na gua fria do mar por duas horas; tal condio intensificava o sofrimento, pois eles no

    dormiam desde a Aula Inaugural, ocorrida no inicio do treinamento. Toda vez que um aluno

    no conseguia se manter unido aos demais e se desgarrava do grupo, era empurrado pelas

    ondas dom mar at a praia, provocando a reao do instrutor: O Turno deixou mais um

    integrante se desgarrar. Aluno! Volte para sua equipe e informe ao xerife que ser acrescido

    mais 15min na gua, alm do tempo previsto para o exerccio!

    Maio de 1996. Um aluno retirado das guas da Represa de Ribeiro das Lages, em

    Pira, com sinais de hipotermia. Aps ser atendido pela equipe de para-mdicos, aquecido

    com cobertores e tomado uma caneca de sopa quente ele retornado para junto do seu

    turno, dentro da gua fria da represa, com um aviso do Instrutor:

    Um membro da equipe no agentou o frio e a culpa do turno que no o protegeu! Xerife! O turno ficar mais quinze minutos na gua alm do previsto, e o

    aluno hipotrmico no poder sentir mais frio! D seu jeito!

    Parecia que o enigma das guas frias e calmas da represa dizimaria o Turno 96/I, os

    alunos do 9 Curso de Operaes Especiais, pois dos 28 alunos matriculados, restavam

    somente 16. As atividades da Semana 1, tambm conhecida como Semana do Inferno,

    eram programadas para ocupar 22 horas do dia com previso de intervalo de 2 horas, que no

    eram, necessariamente, contnuas. Tudo o que era realizado, em funo da instruo, acabava

    com uma atividade na gua, parecia mais um curso de Comandos Anfbios dos Fuzileiros

    Navais, conforme observao de um dos componentes do turno. As atividades exigiam mais

    que esforo: exigiam sacrifcio. Aos olhos de qualquer pessoa, iniciada ou no, a

    1 Lanterna de fabricao americana de uso policial, reconhecida pela sua resistncia e capacidade de iluminao.

  • 12

    metodologia utilizada na conduo dos processos de socializao dos alunos, possua um forte

    componente de sofrimento fsico e mental.

    Fevereiro de 1996. Em razo do assassinato de um casal de professores em uma

    tentativa de roubo de veculo na Rua lvaro de Azevedo, prximo favela do Jacarezinho2,

    no Rio de Janeiro, supostamente cometido por traficantes do local, o Batalho de Operaes

    Policiais Especiais foi designado para atuar na operao de ocupao da rea, juntamente com

    efetivo do 3 Batalho de Polcia Militar3. A operao foi desencadeada s 08h30min de uma

    tera-feira, com as viaturas deixando a Equipe Alfa4 do BOPE prximo ao ponto de

    entrada, onde iria prosseguir a p. O BOPE foi designado para entrar pelo ponto mais crtico

    da favela, o que no representava nenhuma novidade em operaes desta natureza, pois era

    exatamente isto que esperavam da unidade. Contudo, as altas temperaturas do vero daquele

    ano faziam com que o uniforme preto e o equipamento individual5 dos integrantes do BOPE,

    se transformassem em um forno de assar o corpo, conforme comentrio da equipe. A

    resistncia apresentada pelos traficantes locais, durante a incurso, era guerra avisada.

    Conforme o esperado, o local de entrada do BOPE foi onde houve a maior resistncia por

    parte dos traficantes. As equipes do 3 BPM s entraram na favela, aps a tomada dos

    acessos pela equipe do BOPE.

    Por volta das 14h daquele dia, no se achava mais os policiais do 3 BPM pelos becos e

    ruas da favela. Ao passar em conduta de patrulha6 pelo Destacamento de Policiamento

    Ostensivo (DPO) do Jacarezinho, a equipe Alfa do BOPE assistiu o efetivo do 3 BPM

    descansando sombra. O Comandante da Equipe Alfa se dirigiu a um sargento, que

    aparentemente comandava um dos grupos do 3 BPM, questionando o que faziam ali. A

    resposta foi acompanhada de uma performance que conjugava um sorriso irnico e os

    movimentos circulares da mo espalmada sobre o volumoso abdmen: Estamos esperando o

    almoo chegar, hora do rancho! Sabe como meu chefe! Saco vazio no pra em p!. Ao

    se afastar do local, continuando com a misso de checar vrios pontos na favela, um sargento

    2 A Favela do Jacarezinho era, na poca, a segunda maior favela da Cidade do Rio de Janeiro.

    3 comum, em situaes crticas, o BOPE ser empregado em apoio ao efetivo de unidades convencionais da PMERJ.

    4 As equipes de policiais militares do BOPE so diferenciadas por um termo designativo do alfabeto fontico

    internacional. 5 O equipamento utilizado pelo BOPE, em 1996, composto pelo fuzil com quatro carregadores extras, uma

    pistola com dois carregadores extras, colete balstico, binculo, faca e algemas, perfaziam um total aproximado

    de 13 Kg. 6 Tcnica utilizada pelas equipes do BOPE para incurso em reas de risco.

  • 13

    do BOPE, que estava na equipe, comentou com os demais membros, com um sussurro entre

    os dentes e uma entonao carregada de desdm: Bando de invertebrados7! T [sic] vendo a!

    So todos uns pela-saco [sic]! No agentam o calor e nem ficar sem comer alguns minutos!

    Fracos!. O comentrio do sargento desencadeou um burburinho repetitivo entre os demais

    integrantes da equipe: Bando de invertebrados! Pela-saco! Fracos!.

    Maro de 2007, Vila Cruzeiro, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Com o

    objetivo de retomar parte do Estado dominado por traficantes, segundo um dos

    comandantes da operao, as equipes dos batalhes da PM e da Polcia Civil que cercavam o

    morro, aguardavam a entrada da equipe que iria abrir caminho: as equipes do BOPE.

    Na medida em que incursionvamos e tomvamos os pontos crticos, as outras unidades seguiam atrs ocupando o terreno [...] em alguns momentos, quando os

    traficantes intensificavam os tiros, as unidades de apoio empacavam e at recuavam,

    nos deixando isolados [...] tanto melhor, no corramos o risco de sermos atingidos

    pela retaguarda, [...] menos problemas para nos preocupar. (Oficial do BOPE, integrante da equipe da operao da Vila Cruzeiro, em maro de 2007).

    ________________________________________

    Ao relembrar meu treinamento no Curso de Operaes Especiais, na condio de aluno

    e posteriormente como Coordenador, confrontando com as representaes simblicas

    verificadas ao longo de minha passagem pelo BOPE e pela Polcia Militar, no pude deixar de

    refletir e de me debruar sobre algumas questes sobre o Batalho de Operaes Policiais

    Especiais: (a) O que faz estes homens se comportarem de forma diferentes dos demais? (b)

    Que motivos levam policiais militares a ingressarem em um programa de treinamento to

    rgido? (c) O Curso de Operaes Especiais a estrutura capaz de produzir novas pessoas? e

    (d) Qual o papel do Curso de Operaes Especiais na socializao destes homens? Diante

    destas questes, passei a considerar a possibilidade de estudar e entender o processo de

    construo da identidade dos policiais militares que se submetem ao Curso de Operaes

    Especiais e a influncia deste rito de passagem no ethos do BOPE, no que passo, agora, a

    dissertar.

    7 Invertebrado o termo usado pelos policiais que concluem o Curso de Operaes Especiais para designar os

    que no possuem o curso. Refere-se, metaforicamente, ao corpo que no possui estrutura para suportar presso

    fsica e psicolgica.

  • 14

    INTRODUO

    A CONSTRUO DO OBJETO ANTROPOLGICO

    Em 2005, eu terminava o curso de ps-graduao em Administrao Pblica na

    Fundao Getlio Vargas do Rio de Janeiro. No ano anterior havia concludo a primeira, em

    Gesto de Recursos Humanos. Nos dois cursos estudei a matria Cultura e Organizaes

    onde tive a oportunidade de entrar em contato com noes de cultura, representao, papel e

    identidade social, de verificar como estas categorias esto presentes na sociedade e nas

    instituies, e como sua compreenso podia esclarecer os modos de perceber, pensar e agir

    das pessoas, a ponto de se poder caracterizar o grupo social a que pertencem. Neste perodo

    eu era Diretor de Recursos Humanos da Guarda Municipal do Rio de Janeiro, onde comeava

    a desenvolver projetos de desenvolvimento de pessoas, amparado nestes conceitos.

    Em um trabalho para a FGV sobre representaes nas organizaes pblicas, escolhi o

    caso da Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro, sob o aspecto da fuso da antiga Polcia

    Militar do Estado da Guanabara - PMEG e Polcia do Estado do Rio de Janeiro PMRJ.

    Desenvolvi reflexes sobre os diferentes modos de representao da nova polcia, criada a

    partir de uma fuso de outras duas que desempenhavam a mesma atividade, porm, em

    espaos geogrficos e sociais diferentes. Considerava que as observaes na ps-fuso seriam

    resultantes de permanncias institucionais das organizaes extintas que sobreviveram ao

    processo. Eu buscava identificar, empiricamente, as caractersticas de cada uma, os sistemas

    de valores, as formas de construo das relaes internas e externas e as supostas

    conseqncias para a nova instituio, fruto desta bricolagem organizacional. A Professora

    Valderez Fraga, titular da matria, me orientou a aprofundar os estudos sobre o tema em razo

    da escassez de estudos a respeito das organizaes pblicas.

    Acreditava, at ento, que o mestrado em Administrao Pblica na FGV seria o melhor

    caminho para pesquisar o assunto, at conversar com o Major PM Robson Rodrigues, amigo

    de longa data. Robson estava cursando o mestrado em Antropologia Social do Programa de

  • 15

    Ps-graduao em Antropologia da Universidade Federal Fluminense e aps ouvir minha

    inteno de tema para pesquisa me convenceu a buscar o mestrado em Antropologia da UFF,

    como a melhor metodologia para desenvolver o tema, explicando que a UFF estava se

    firmando como um dos principais plos de estudos e pesquisas em Segurana Pblica no Rio

    de Janeiro. A indicao foi reforada por outros dois amigos os Professores Cesar Honorato e

    Newton Oliveira, que me convenceram em concorrer ao mestrado em Antropologia Social do

    PPGA/UFF. Em novembro de 2006 me inscrevi no processo seletivo para a turma de

    mestrado de 2007.

    Ao ter contato com a fonte bibliogrfica da prova escrita, primeira etapa do concurso

    para o mestrado, verifiquei a dificuldade que eu teria em compreender a essncia dos textos

    antropolgicos propostos. Decidi ir alm e comecei a pesquisar a histria da antropologia, sua

    evoluo, as escolas e os principais autores; que deixaram de ser nomes passando a

    referncias. Enfim, pesquisadores e pensamentos passaram a construir o entendimento sobre o

    nvel de profundidade no qual eu deveria mergulhar para produzir minha pesquisa. Mas antes,

    eu deveria vencer o primeiro desafio: concorrer com 96 cientistas sociais para as 17 vagas

    disponibilizadas pelo PPGA-UFF.

    Acostumei a aproveitar toda a oportunidade que surgia para buscar entender melhor o

    que lia nos textos indicados pelo Edital do Concurso. Ao encontrar colegas socilogos,

    antroplogos, ou alunos da ps-graduao em Antropologia, no perdia tempo e saa fazendo

    perguntas sobre os textos que estava lendo. Robson Rodrigues, Luciane Patrcio e Hayde

    Caruso foram minhas fontes iniciais. O resultado do esforo foi minha classificao dentro do

    nmero de vagas.

    Passei para segunda fase: entrevista com a Banca do Concurso. No dia marcado para a

    entrevista conheci alguns candidatos na rea de espera do 4 andar do Prdio O do Campus

    da UFF no Gragoat. Percebi que eu era, de longe, o mais velho dos aprovados. Antroplogos

    e socilogos recm formados constituam o seleto grupo de apreensivos jovens. Todos, com

    hora marcada, no levavam mais do que vinte e cinco minutos de entrevista com a banca

    composta por trs professores doutores do PPGA. Eu estava com minha carta de inteno de

    projeto e me considerava pronto para ser entrevistado.

    Chegada minha vez, um dos professores da banca veio me buscar e conduzir at a sala

    da entrevista. Ao entrar cumprimentei os presentes e, com uma rpida olhada, verifiquei a

  • 16

    disposio da mesa com as posies que cada um deveria tomar naquele processo: a cadeira

    na cabeceira da mesa de costas para a janela basculante indicava a posio da Presidente da

    Banca, que lia minha ficha de inscrio e prova do concurso enquanto eu me acomodava; as

    duas cadeiras na mesma lateral da mesa indicavam a posio dos demais membros, que

    passavam a me observar; a cadeira posicionada na cabeceira oposta da Presidente, onde um

    copo de vidro indicava que acabara de ser cheio com gua, indicava a posio do entrevistado.

    Tomei assento e verifiquei que a luz que entrava pela janela ofuscaria minha vista. Obrigado a

    abaixar a cabea e semi-serrar os olhos, eu tentava observar meus interlocutores, esperando

    algum pronunciamento. Refletindo sobre aquela situao e o clima do ambiente, pensei:

    Parece um processo inquisitorial.

    Com a explicao da Presidente da Banca de que a entrevista no se tratava de uma

    nova prova, as perguntas que se seguiram me deram impresso contrria: Voc pode explicar

    o que quis dizer na primeira questo?; Qual o seu entendimento sobre o tema da segunda

    questo?; e J que voc foi econmico na terceira questo, poderia explicar melhor? Aps

    quase 45 minutos de entrevista a Banca se pronunciou satisfeita, no entanto, pedi a palavra e

    ousei: Gostaria de falar. Discorri, por mais 10 minutos, sobre o que me levou a buscar o

    PPGA da UFF, como me preparei para o concurso e qual era minha origem8, fato que a banca

    declarou conhecer. Aps minha sada da sala os demais candidatos me abordaram,

    perguntado: Cara! O que foi que aconteceu l dentro?. Com o questionamento do colega

    passei a refletir sobre a forma como fui entrevistado, minha ousadia e minha entrada neste

    mundo estranho, que representava mais uma mudana em minha vida profissional. Sendo

    aprovado na entrevista, passei sem maiores problemas na ltima etapa, a prova de idiomas,

    garantindo minha entrada no programa de ps-graduao, que na verdade considerei uma

    grande vitria.

    Embora tenha apresentado uma proposta de inteno de pesquisa, fiquei entusiasmado

    com uma das fontes bibliogrficas: Floresta de Smbolos9. Na descrio do processo ritual,

    feita por Victor Turner, no pude deixar de relacion-lo com uma passagem de minha vida

    profissional onde fui iniciado e, posteriormente, iniciador. Este processo havia influenciado

    minha viso de mundo e meu comportamento diante de dificuldades: o Curso de Operaes

    Especiais da PMERJ. Durante meus estudos para o concurso, liguei para o ento Major PM

    8 Fato que ser exposto mais adiante.

    9 TURNER, Victor. Floresta de smbolos. Aspectos do ritual Ndembu. Niteri: EdUFF, 2005.

  • 17

    Alberto Pinheiro Neto, tambm cursado em Operaes Especiais, e li para ele um trecho da

    pgina 144 de Florestas de Smbolos, sem dizer que era uma citao de um livro. A

    exclamao do Pinheiro Neto definiu o que eu deveria pesquisar: Voc est descrevendo o

    COEsp!.

    As semelhanas entre a teoria dos ritos de passagem e o COEsp eram recorrentes. Passei

    a considerar, de fato, a possibilidade de pesquisar o tema. Em um encontro marcado com o

    Professor Doutor Roberto Kant de Lima, expus minha inteno e solicitei sua orientao no

    mestrado, que concordou e indicou a bibliografia bsica e estudos antropolgicos sobre o

    tema. Em razo da profundidade do tema, relacionado PMERJ, convidei a Professora

    Doutora Jacqueline Muniz para co-orientao. Minha passagem no PPGA, com os debates em

    sala e os dilogos com meus colegas de mestrado, e as discusses com os pesquisadores do

    Ncleo Fluminense de Estudos e Pesquisa - NUFEP10

    , durante as reunies que passei a

    freqentar, ajudaram-me a definir melhor o objeto de pesquisa: vendo, ouvindo e aprendendo.

    Determinado o objeto, parti para a prtica. Finalizei a reunio de toda a bibliografia

    bsica indicada e planejei o trabalho de campo. Pretendendo realizar a pesquisa durante o

    curso de operaes especiais de 2007, tomei conhecimento por amigos do BOPE que o curso

    no seria realizado naquele ano, em razo da realizao dos Jogos Pan-Americanos no Rio de

    Janeiro11

    . Decidi, ento, acompanhar o Curso que seria realizado em 2006, o que me obrigou

    a tomar rpidas providncias para entrar no campo. Fiz um contato preliminar com o

    Comandante do BOPE, o Tenente Coronel Mrio Srgio de Brito Duarte, e expliquei minha

    inteno de pesquisar o COEsp. Ele, ento, me pediu para formalizar o pedido por escrito para

    que pudesse avaliar a possibilidade de autorizao.

    O Tenente Coronel Mario Srgio era considerado, na PMERJ, um oficial diferenciado

    pela sua histria profissional, pela sua formao como professor de Matemtica e aluno de

    graduao em Filosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da UFRJ. Sabia que a

    possibilidade do entendimento da importncia da pesquisa e a conseqente aprovao da

    proposta, teriam maior chance do que em outras circunstncias. Preparei uma carta de

    inteno indicando a proposta de pesquisa, seus objetivos e a solicitao de autorizao para

    10

    Ncleo de Estudos e Pesquisas da Universidade Federal Fluminense, sob a coordenao do Professor Doutor

    Roberto Kant de Lima, que rene pesquisadores de diversas reas do conhecimento e que se encontram,

    periodicamente, para discutir e socializar assuntos relacionados aos projetos, estudos e pesquisas do ncleo. 11

    Durante a realizao dos XIV Jogos Pan-Americanos o efetivo do BOPE foi empregado, em sua totalidade, na

    proteo dos eventos e todo o treinamento foi voltado para as atividades de segurana dos jogos.

  • 18

    acompanhar o curso e segui para o BOPE para encontrar seu Comandante, dois dias depois do

    primeiro contato.

    NO BATALHO DE OPERAES POLICIAIS ESPECIAIS

    Figura 1 - Entrada do BOPE

    Ao chegar ao final da Rua Campo Belo, no bairro das Laranjeiras, parei na entrada do

    Batalho de Operaes Policiais Especiais (Figura 1), onde um painel de 2,0 m de altura por

    2,0 m de largura com o braso da unidade continha um aviso: Visitante seja bem-vindo, mas

    no faa movimentos bruscos. Soldados com o uniforme preto do BOPE, que guardavam o

    porto de entrada, em formao ttica12

    , perguntaram minha inteno e pediram minha

    identificao. Avisei: Venho encontrar o comandante, meu nome Paulo Storani e sou

    pesquisador. Enquanto subia os 500m da rua de acesso para as instalaes da unidade, aps

    minha entrada ser autorizada, refletia o motivo pelo qual no havia me identificado como

    oficial da PM e como caveira13

    , chegando concluso: comeou o estranhamento.

    Chegando s instalaes do quartel do BOPE fui recebido por um soldado, que j me

    esperava no primeiro nvel do prdio: Professor, me acompanhe. Ao entrar na unidade

    observei algo que para um leigo passaria despercebido: uma mulher com cerca de 30 anos de

    idade, passava pela rea de estacionamento do BOPE conduzindo duas crianas, uma de sete e

    outra de dez anos aproximados, com uniforme da rede pblica municipal de ensino. Aquele

    fato seria totalmente atpico se considerasse que se tratava de um quartel da PM, onde pessoas

    12

    Posicionamento no espao fsico que permite que os operadores possam desencadear uma resposta planejada. 13

    Termo designativo de concludente do Curso de Operaes Especiais.

  • 19

    estranhas so proibidas de ingressar, em razo da preservao da segurana das

    instalaes, ainda mais sendo um quartel do BOPE e as residncias mais prximas

    integravam a Favela Tavares Bastos.

    Fui recebido pelo Tenente Coronel Mrio Sergio em seu gabinete. Aps expor

    longamente minha proposta e o os objetivos da pesquisa, ele concluiu:

    Autorizo e vou levar o fato ao Comandante Geral [da PMERJ]. A pesquisa importante para ns [BOPE], pois precisamos nos conhecer melhor. Deixo claro que

    s autorizo por que voc que a est realizando. Sua proposta e a autorizao sero

    publicadas no Boletim Interno do BOPE.

    Entendi, naquele momento, que minha passagem pela PMERJ como oficial e por ser um

    iniciado no COEsp, seriam os fatores que me permitiriam ingressar no universo simblico das

    Operaes Especiais na condio de pesquisador. Aps nossa conversa sobre a pesquisa,

    perguntei ao comandante sobre a mulher que havia visto passando pelo estacionamento do

    quartel, ele me levou janela de seu gabinete e me mostrou a Favela Tavares Bastos:

    No h mais trfico na favela, abrimos um porto no muro que separa o BOPE da comunidade e deixamos que as pessoas utilizem, durante o dia, a passagem para

    chegar a Laranjeiras [bairro] por aqui, caso contrrio elas levariam muito tempo

    descendo a favela at o asfalto e contornando pelo Largo do Machado. Temos uma

    relao muito boa com a comunidade [...] hoje os policiais do BOPE cortam cabelo

    nas barbearias [da favela] e contratam lavadeiras [apontando alguns uniformes do

    BOPE pendurados em varais de casas prximas]. Resolvemos tambm alguns

    problemas internos da comunidade [...] temos um oficial responsvel para atender as

    pessoas [...] at j fomos chamados para apagar incndio: o carro do Corpo de

    Bombeiros no conseguia passar pelas ruas estreitas at o alto da favela, da fomos

    chamados pela comunidade [...] ao chegar no local vimos que a falta de condies

    [hidrantes] para resolver o problema faria com que o fogo se alastrasse pelas casas

    [...] um caveira deu uma soluo: quebrar uma caixa dgua que havia sobre o local do incndio. Como no tnhamos acesso ela demos nosso jeito: quebramos a caixa

    no tiro. O incndio foi apagado, mas tivemos que fazer uma vaquinha para pagar

    outra caixa dgua e ajudar a reparar os danos do incndio [...] a dona da casa era muito pobre e reclamou muito.

    Nas visitas ao BOPE ao longo da pesquisa, j no Comando do Tenente Coronel Alberto

    Pinheiro Neto, pude verificar a evoluo da relao da unidade com a comunidade. Projetos

    sociais com crianas e jovens da favela, realizados nas instalaes do batalho, mudaram a

    sua rotina (Figura 2), algo inimaginvel anos antes. Estes fatos me despertaram para as

    perspectivas em Antropologia Urbana, ao considerar a relao dos integrantes do BOPE com

    a comunidade da favela Tavares Bastos, em contraposio do que ocorre com outras

    comunidades, onde o poder do trfico e das milcias impera sobre os problemas locais,

  • 20

    ocupando o poder do Estado. Contudo, o momento me orientava para meus objetivos iniciais:

    o COEsp.

    Figura 2 - Galeria da Honra do BOPE

    DISCUSSES METODOLGICAS E TERICAS RELACIONADAS PESQUISA

    Para produzir a etnografia proposta e analisar os temas relacionados ao meu objeto de

    pesquisa - os ritos de passagem - busquei o amparo das teorias antropolgicas que tratam do

    tema, relacionando-as com as formas de representaes do eu e de performance. Sobre a

    noo da performance, considerando o mundo social como um palco onde as pessoas se

    destacam como atores que desempenham papis pr-estabelecidos socialmente. Desta forma,

    considerei as formas de representao observadas como condio fundamental para

    compreenso da dinmica performtica, dos diversos atores, durante os ritos, cerimnias e

    atividades do Curso de Operaes Especiais.

    As categorias identificadas no trabalho de campo e as formas de socializao dos

    cdigos de sentimento, conduta e de valores sociais foram contextualizadas com outras

    formas similares de mudana de status dos profissionais de segurana pblica, apresentadas

    em trabalhos acadmicos de mesma natureza. Para identificar os significados e os

    mecanismos de internalizao e naturalizao, busquei a relao entre o saber terico e o

    fazer prtico na formao profissional do policial do BOPE, e sua relao na construo da

    identidade da persona institucional. Com a perspectiva antropolgica interpretativa, objetivei

    a compreenso do significado das aes simblicas dos atores sociais, pela sua complexa

  • 21

    teia. O trabalho consistiu no esforo de captar o modelo nativo dos significados das

    aes simblicas ou performances no contexto social especfico, que se inscreveram nos

    atos, gestos e nos acontecimentos durante o Curso de Operaes Especiais.

    A pesquisa foi realizada no perodo compreendido entre maro de 2006 a novembro de

    2007. Foi desenvolvida em trs momentos: o pr-campo, com a pesquisa da bibliografia

    bsica; a pesquisa emprica, o trabalho de campo propriamente dito e as entrevistas; e ps-

    campo, com a redao da dissertao. No pr-campo reuni a bibliografia bsica indicada pelos

    meus orientadores. Com o acervo inicialmente reunido delimitei o objeto de pesquisa e a

    teoria com a qual passei a considerar o trabalho.

    O trabalho de campo teve a durao de quatro meses, no perodo compreendido entre

    junho a outubro de 2006. Minhas visitas a campo foram planejadas obedecendo a trs

    momentos distintos, tomando como referncia as fases dos ritos de passagem14: na fase de

    separao, durante duas semanas de junho; na fase de liminaridade, durante dois dias de

    julho15

    ; e na fase de reintegrao, durante trs dias de agosto. Durante as fases do Curso de

    operaes Especiais recorri observao e s entrevistas, gravadas e anotadas no caderno de

    campo, bem como tive a oportunidade de tirar as fotos que ilustram o texto. Posteriormente ao

    campo, utilizei a entrevista toda vez que precisei esclarecer alguma questo identificada ao

    longo da redao da etnografia.

    Tive a oportunidade de entrevistar os trinta e quatro alunos matriculados, antes do incio

    do Curso de Operaes Especiais, os alunos remanescentes, durante o processo de passagem,

    e os concludentes do curso. Foram tambm entrevistados oito integrantes da equipe de

    instruo do COEsp; nove integrantes do BOPE, entre oficiais, sargentos, cabos e soldados,

    cursados e no cursados; e seis policiais de outras unidades da PMERJ, entre oficiais e

    sargentos, que serviram para construir um melhor entendimento acerca das representaes

    observadas no campo.

    14

    Van Gennep mostrou que todos os ritos de passagem ou de transio caracterizam-se por trs fases: separao, margem [ou limen] e reagregao. A primeira fase (separao) abrange o comportamento simblico que significa o afastamento do indivduo ou de um grupo [...]. Durante o perodo liminar intermedirio, as caractersticas do sujeito ritual (o transitante) so ambguas; passa atravs de um domnio cultural que tm poucos, ou quase nenhum, dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase

    [reagregao ou reincorporao] consuma-se a passagem (TURNER, Victor. O Processo Ritual: estrutura e antiestrutura. Petrpolis: Vozes, 1974, p. 116).

    15 Interrompida em razo de um acidente ocorrido comigo no campo, narrado ao longo desta dissertao.

  • 22

    Para obter impresses dos candidatos, antes do inicio do curso, utilizei a entrevista

    estruturada (ver Anexo I) por meio da conversao objetiva. Quando havia alguma questo a

    ser esclarecida, empreguei entrevistas semi-estruturadas; quando desejava obter impresses

    momentneas dos interlocutores, durante determinados momentos no campo, utilizei as

    entrevistas no estruturadas. As investidas para as entrevistas tiveram de se adequar funo

    que passei a exercer em agosto de 2006, como Secretrio Municipal de Segurana Pblica de

    So Gonalo, Municpio da Regio Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro.

    Para melhor compreenso do leitor sobre ao desenvolvimento do trabalho, devo

    esclarecer que busquei construir o objeto de pesquisa, no primeiro captulo, pelo

    entendimento do processo histrico e social da Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro e

    do prprio Batalho de Operaes Policiais Especiais. No segundo captulo apresento detalhes

    do Curso de Operaes Especiais, como o processo seletivo e o programa de treinamento. No

    terceiro captulo inicio a etnografia descrevendo cada etapa do curso tomando como

    referncia as fases dos ritos de passagem, que inicia com a separao, seguida da fase de

    liminaridade, e terminando com a fase reintegrao ou reagregao. No ltimo captulo

    apresento as consideraes finais que no esgotam o tema, mas que espero provocar outras

    reflexes que possam suscitar novas pesquisas.

    O ESTRANHAMENTO

    O professor Kant de Lima havia me alertado para uma situao fundamental em minha

    pesquisa: minha posio em relao ao objeto. Eu acreditava que esta preocupao tinha

    fundamento na minha histria profissional: Capito da Reserva16

    da Polcia Militar, desde

    1997, havia pertencido ao BOPE, minha ltima unidade at passar para a inatividade17

    ,

    quando fui aprovado para o concurso de Professor da Secretaria Estadual de Cincia e

    Tecnologia, para trabalhar na Fundao de Apoio Escola Tcnica Estadual FAETEC.

    Alm de ter pertencido ao BOPE, fui iniciado no Curso de Operaes Especiais em 1995 e

    exerci a funo de Coordenador de curso em 1996, ou seja, iniciador de outros iniciantes.

    Embora estivesse afastado por quase dez anos do servio policial, tal condio poderia

    interferir, de alguma forma, no processo de pesquisa.

    16

    Oficial fora do servio ativo da corporao. 17

    No caso, passar para reserva.

  • 23

    Segundo meu orientador esta situao poderia tambm representar, em contrapartida,

    uma vantagem estratgica. Sendo um nativo eu poderia produzir uma interpretao em

    primeira mo, conforme a expresso de Cliford Geertz18. Os textos antropolgicos

    elaborados por estranhos, segundo Geertz, so interpretaes construdas de segunda ou

    terceira mo, com base em suas prprias concepes. Portanto, minha viso no seria por

    sobre os ombros do nativo, mas dos meus prprios ombros. Mesmo estando consciente

    desta vantagem, busquei o distanciamento crtico necessrio observao das

    representaes sociais que pude perceber no trabalho de campo. Sabia que o sucesso da

    pesquisa dependeria da minha capacidade de ver, ouvir e escrever, no texto etnogrfico, com

    a necessria e relativa iseno.

    Acredito que experincia de observar com olhar calibrado pela teoria antropolgica,

    e o fato de ter desempenhado os dois principais papis identificados, o de nefito e de

    iniciador, contriburam para a preservao do equilbrio entre a teoria e a prtica, o que

    tambm me permitiu no ser surpreendido ou arrebatado por alguns acontecimentos no campo

    e nas entrevistas. Grande parte das representaes observadas eu j conhecia do tempo em que

    eu servi s Operaes Especiais, outras surgiram aps meu afastamento. Estas diferenas

    foram fundamentais para a pesquisa, pois possibilitaram a oportunidade de verificar as

    mudanas e permanncias no processo estudado, ao longo dos 12 anos de construo

    histrica, tomando como referncia o tempo em que eu me encontrava na condio de aluno e

    coordenador de COEsp. Contudo, alguns fatos especficos observados no campo me levaram

    a refletir sobre sua dimenso ritual, pois embora fossem contemporneos minha passagem

    pelo BOPE, passei a entender sua relevncia na construo do ethos e viso de mundo dos

    iniciados, ao analis-los sob a perspectiva antropolgica, como veremos mais adiante.

    No ouvir, procurei tratar os entrevistados como interlocutores e no como informantes,

    promovendo o dilogo objetivado na busca do entendimento que cada um construa sobre o

    tema da entrevista ou situao vivenciada no campo. Procurei identificar, na subjetividade de

    cada um, as recorrncias e discrepncias construdas no longo processo de passagem e em

    razo dele, o que me fez ampliar o nmero de interlocutores durante a pesquisa. De forma

    diferente que ocorreu durante a observao, no ouvir foi possvel descortinar informaes

    fundamentais para a compreenso das transformaes que ocorreram na viso de mundo dos

    entrevistados, durante e aps sua passagem pelo processo ritual.

    18

    GEERTZ, Cliford. A Interpretao das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p. 11.

  • 24

    Se no fui arrebatado no olhar e no ouvir, foi no ato de escrever que isto ocorreu. No

    momento da redao da dissertao, com base nos dados do caderno de campo e na escuta das

    entrevistas gravadas, passei a compreender a dimenso destas faculdades ou atos

    cognitivos na forma exposta por Roberto Cardoso de Oliveira19. Ao escrever, o visto e

    ouvido da pesquisa emprica foi confrontado com a teoria antropolgica estudada, o que me

    levou reflexo e conseqente compreenso da dimenso do curso de operaes especiais

    na construo da identidade dos caveiras, que espero reproduzir nesta etnografia. Minha

    proposta, ento, promover uma descrio densa de um processo ritual, expondo sua

    normalidade e diferenas referenciais, comparadas com outros estudos e pesquisas elaboradas,

    sem reduzir sua particularidade.

    19

    DE OLIVEIRA, Roberto Cardoso. O trabalho do antroplogo. 2 Ed. So Paulo: UNESP, 2000, 220p.

  • 25

    CAPTULO I

    CONSTRUO IDENTITRIA DA PMERJ E O MITO DE ORIGEM

    A historiografia da Polcia Militar marcada por sua vinculao aos fenmenos sociais

    e polticos do processo de transformao da sociedade brasileira. As mudanas ocorridas, ao

    longo de sua histria, seriam respostas s condies locais que empregaram os recursos e os

    precedentes disponveis em cada poca. De um modo geral, as mudanas serviram para

    adequar as instituies policiais s transformaes ocorridas ao longo do processo de

    construo social do Brasil, atendendo aos interesses das classes dominantes20

    .

    Com a transferncia da famlia real portuguesa para o Brasil em 1808, foi criada em 10

    de maio, daquele mesmo ano, a Intendncia Geral de Polcia. Referenciada no modelo

    francs, introduzido em Portugal em 1760, esta instituio era responsvel pelas obras

    pblicas e por garantir o abastecimento da cidade, alm da segurana pessoal e coletiva, o que

    inclua a ordem pblica, vigilncia da populao, a investigao dos crimes e a captura dos

    criminosos (HOLLOWAY, p. 46). O Intendente Geral ocupava uma posio de destaque na

    sociedade da poca, o cargo de desembargador. Com status de ministro de Estado a ele cabia:

    decidir sobre os comportamentos a serem considerados criminosos; estabelecer a punio que

    julgasse apropriada; efetuar a priso dos violadores da lei; levar a julgamento os presos;

    condenar e supervisionar a sentena dos infratores. Desta forma, seu cargo englobava poderes

    legislativos, executivos e judiciais.

    Outra inovao, contempornea transferncia da famlia real para o Brasil, foi a

    criao da Guarda Real de Polcia, em 13 de maio de 1809. Esta instituio consistia em uma

    fora policial de tempo integral, organizada militarmente como uma fora patrimonial

    aquartelada, com ampla autoridade para manter a ordem e perseguir criminosos, devendo agir

    20

    HOLLOWAY, Thomas H., Polcia no Rio de Janeiro. Represso e resistncia em uma cidade do sculo XIX.

    Rio de Janeiro: Fundao Getlio Vargas, 1997, p. 255.

  • 26

    quando fosse necessrio 21. A Guarda Real era subordinada Intendncia Geral de Polcia,

    e pretendia ser a rplica da fora policial de Lisboa no Rio de Janeiro.

    A Guarda Real de Polcia foi incumbida do patrulhamento das ruas, principalmente

    noite, contra a suposta ameaa representada pelo grande nmero de escravos22

    . Esta fora

    tinha a misso de manter a tranqilidade pblica e outras obrigaes relativas ordem civil.

    Como descrito por Holloway (1997), apesar de seu efetivo reduzido23, sua misso de policiar

    em tempo integral se tornava mais eficiente do que o antigo sistema de vigilncia espordica

    [realizada] por guardas civis. Seu efetivo, oficiais e soldados, eram provenientes das fileiras

    do Exrcito regular. Como tropas militares, recebiam um soldo simblico, uniforme, alm de

    alojamento e comida nos quartis.

    Holloway destaca um ponto interessante acerca do financiamento dos organismos

    policiais e a origem da sua autoridade. Embora o poder de agir fosse delegado do monarca,

    portanto a autoridade emanava dele, os recursos para a manuteno dos salrios e despesas

    das foras policiais eram derivados do setor privado. A reciprocidade entre a fonte da

    autoridade do Estado e a elite econmica um exemplo especfico das relaes mais gerais

    que explicam grande parte da evoluo conservadora rumo independncia poltica do Brasil

    e o concomitante desenvolvimento das instituies do Estado (1997, p. 48).

    Em julho de 1831 um fato marcou a historiografia da Polcia Militar. Os integrantes da

    Guarda Real de Polcia e o 26 Batalho de Infantaria do Exrcito, se amotinaram e passaram

    a realizar atos de violncia e saques na capital24

    . Tal comportamento levou o Regente Feij a

    abolir, em 17 de julho, a Guarda Real. Contudo, devido necessidade de proteger as pessoas e

    seu patrimnio, em 10 de outubro do mesmo ano, foi criada outra organizao policial

    militarizada, o Corpo de Guardas Municipais Permanentes. A diferena entre a nova fora e a

    anterior comeava na sua subordinao ao Ministro civil da Justia, e no mais ao da Guerra

    como a Guarda Real, e os melhores critrios de seleo, salrio e treinamento (HOLLOWAY,

    1997, p. 92-93). Esse fato, como observa Holloway, permitiu que a elite brasileira criasse sua

    21

    Podemos entender que se tratava, a princpio, de uma fora policial de interveno. Atuava aps a constatao

    do fato, como fora reativa. 22

    BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na Cidade: o exerccio cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro,

    1907-1930 Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p 41-43. 23

    O efetivo autorizado para o funcionamento da GRP era de 218 homens entre oficiais e soldados. Porm, em

    1818 contava com 75 homens, e no final da dcada de 1820 chegava a 90 homens. 24

    Para melhor conhecimento ler HOLLOWAY, Thomas H., Polcia no Rio de Janeiro. Represso e resistncia

    em uma cidade do sculo XIX. Rio de Janeiro. Fundao Getlio Vargas, 1997, p. 74-82.

  • 27

    prpria verso de instituio policial, em substituio do criado sob a gide da corte

    portuguesa, 23 anos antes (1997, p. 254).

    Sucessora funcional da Guarda Real de Polcia, o Corpo de Guardas Municipais

    Permanentes sofreu transformaes e mudanas de denominao em 1842, 1858, 1866, 1889,

    1893, 1901, 1905, 1911 e 1920 (HOLLOWAY, 1997, p. 255; e BRETAS, 1997, p. 39-49). O

    termo polcia retornou ao nome da instituio em 1866, com a designao formal de Corpo

    Militar de Polcia da Corte; a Constituio republicana de 1891 a alterou para Brigada de

    Polcia da Capital Federal e, a partir de 1920, passou-se a adotar a denominao de Polcia

    Militar (BRETAS, 1997), que vige at os dias de hoje.

    A transformao da polcia do sculo XIX considerada, por Holloway (1997, p. 255) e

    Muniz25

    , como o esforo do Estado se adaptar s mudanas sociais, criando uma ameaa

    palpvel pelo patrulhamento ostensivo das ruas e para deteno e aplicao de medidas

    disciplinares dos violadores da Lei. Tal fora serviu, posteriormente, de modelo para as

    demais organizaes similares no pas. O papel militar de patrulhamento uniformizado das

    ruas acompanhou modelos semelhantes, mas no necessariamente iguais, s foras policiais

    militarizadas em outros pases, como os gendarmes da Frana, os carabiniere da Itlia e os

    guardas civis da Espanha26

    . Tais foras eram caracterizadas pela relao de distanciamento

    dos cidados comum, e sua vinculao ao um poder central.

    A AUTO-REFERNCIA HISTRICA DO POLICIAL MILITAR

    A origem da Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro pela tica dos prprios

    policiais, verificada nas entrevistas realizadas, tem como referncia a Guarda Real de Polcia

    de 1809. Os integrantes da corporao entendem que o motim de 1831 seria decorrncia do

    processo histrico da Polcia Militar, e que tal acontecimento no representou uma soluo de

    continuidade na construo da identidade da corporao. A despeito desta forma de se ver, o

    fato da extino e criao de uma nova instituio em 1831, poderia demarcar um novo ponto

    de partida para se entender a Polcia Militar de hoje. Contudo, tal viso requereria um estudo

    com maior profundidade e metodologia cientfica.

    25

    MUNIZ, Jacqueline. Ser Policial Sobretudo uma Razo de Ser - Cultura e Cotidiano da Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Tese apresentada ao Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro como

    requisito parcial para a obteno do grau de Doutor em Cincia Poltica IUPERJ. 1999, p 52. 26

    Para saber mais ler HOLLOWAY, 1997.

  • 28

    Nas entrevistas realizadas durante a pesquisa, constatou-se que o conhecimento sobre o

    processo histrico da Polcia Militar mais presente nos oficiais do que nos praas. Alguns

    fatores que poderiam explicar algumas representaes, verificveis nos comportamentos dos

    integrantes da corporao policial, como se ver adiante, so desconhecidos dos prprios

    oficiais. O desconhecimento, de alguns entrevistados, sobre a origem do modelo policial que

    influenciou o surgimento da Guarda Real de Polcia, bem como do seu amotinamento,

    extino e a criao da nova instituio em 1831, so recorrentes. Embora a historiografia da

    corporao seja socializada nos cursos de formao da corporao, boa parte de seus

    integrantes no retm as informaes relacionadas.

    Desde sua origem, a fora policial no Rio de Janeiro foi constituda e representada como

    uma fora militar. Durante quase 160 anos de sua histria a corporao foi comandada, por

    um oficial de alta patente do Exrcito Brasileiro e controlada por um rgo desta fora

    27. Este

    fato poderia ser considerado como uma forma de interveno direta na gesto da instituio,

    com a conseqente assimilao das idiossincrasias e modelos dos gestores do Exrcito, pelos

    integrantes da Polcia Militar.

    O fato que marcou, decisivamente, o papel da corporao na histria recente foi sua

    participao nos rgos de informaes do Exrcito e em suas aes de represso das

    manifestaes pblicas durante a ditadura militar, como fora de controle de distrbios civis.

    Desviando-se, de forma significativa, de seu objetivo como fora de segurana pblica, a

    Polcia Militar incorporou o estigma28

    social associado tortura e represso da liberdade

    poltica e de expresso. Este estigma contribuiu para o cenrio da segurana pblica, que

    passou a ser construdo a partir da dcada de 80, e influenciou o papel da Polcia Militar,

    como instituio de controle social, como ser exposto mais adiante.

    O PARADIGMA MILITARISTA

    27

    Para saber mais ler Muniz (1999) e BASLIO, Marcio Pereira. O Desafio da Formao Policial Militar do Estado do Rio de Janeiro: Utopia ou realidade possvel? Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    graduao em Administrao Pblica da Escola Brasileira de Administrao Pblica e de Empresas da

    Fundao Getlio Vargas RJ, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Administrao Pblica. 2007.

    28 O termo estigma, aqui usado, entendido como referncia a um atributo profundamente depreciativo, mas o

    que, na realidade, uma linguagem de relaes e no s de atributos. Para saber mais ler GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a Manipulao da Identidade Deteriorada. 4 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988.

  • 29

    Para melhor entendimento da forma como a segurana pblica tem sido tratada pelo

    Estado, enquanto poltica pblica, adoto a formulao de Jorge da Silva29

    , que estabelece os

    paradigmas prevencionista, penalista e o militarista. O paradigma prevencionista,

    consideraria a segurana pblica como uma questo tanto da comunidade quanto do poder

    pblico, apresentando princpios pr-ativos de atuao. Tal paradigma estaria orientado por

    atividades preventivas, com nfase na mediao de conflitos, estabelecendo o foco nos

    cidados. A pretenso deste paradigma seria controlar o crime pelo uso seletivo da fora, ou

    seja, aplicar uma reposta adequada ao fato e proporcional resistncia encontrada.

    O paradigma penalista consideraria a segurana pblica um problema apenas da alada

    do governo e do judicirio, apresentando princpios reativos de ao. Por esse paradigma, os

    infratores seriam focalizados individualmente e a atividade policial estaria pautada na lei

    penal, com foco nos fatos criminais. A represso policial, pela aplicao das leis penais, seria

    a soluo para a questo da segurana pblica. O nmero de inquritos instaurados e de

    pessoas encarceradas referenciaria o sucesso desta poltica.

    Ao pensar segurana pblica pelo paradigma militarista, podemos categoriz-la como

    sendo todas as medidas necessrias preservao da ordem urbana, constituda de aes

    reativas amparadas por uma lgica de confronto contra os possveis perturbadores. Desta

    forma, as desordens pblicas manifestas se constituiriam em problema a ser resolvido por

    meio de tticas de combate, em que inimigos seriam identificados e neutralizados. Filho30

    afirma que, na concepo militarista, haveria locais prprios para um teatro de operaes onde

    as baixas poderiam ser consideradas algo esperado pelo embate entre foras opostas.

    O resultado dessa concepo militarista, para da Silva (2003), seria a eleio do aparato

    blico e da mobilizao de grandes efetivos em detrimento das atividades de investigao e de

    polcia tcnica. Desta forma, se a percepo de violncia aumentasse, seria porque os efetivos

    policiais foram insuficientes para patrulhar e confrontar, os bandidos estariam mais bem

    armados ou faltaram maior determinao dos policiais para agir. Nesta concepo, a

    eficincia e eficcia da polcia seriam avaliadas pelo nmero de prises, de apreenses, de

    mobilizao de efetivos.

    29

    DA SILVA, Jorge. Controle da Criminalidade e Segurana Pblica na Nova Ordem Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

    30 FILHO, Wilson de Arajo. Ordem Pblica ou Ordem Unida? Uma anlise do curso de formao de soldados

    da Policia Militar em composio com a poltica de segurana pblica do governo do Estado do Rio de

    Janeiro: Possveis dissonncias pp 11 a 164. In Polticas Pblicas de Justia Criminal e Segurana Pblica.

    Niteri: EDUFF, 2003.

  • 30

    No antagonismo entre os modelos militarista e penalista ao prevencionista, podemos

    identificar a existncia de dois campos de atuao: Cenrio de maior potencial ofensivo; e

    cenrio de menor potencial ofensivo. Nos conflitos de maior potencial ofensivo, tambm

    chamado de Conflito de Baixa Intensidade31

    , o modelo militarista e penalista seria mais

    aplicvel. Nos conflitos de menor potencial ofensivo, caracterizado por Delitos Urbanos32

    , o

    modelo prevencionista seria mais aplicvel. Ambos os cenrios exigem conhecimentos e

    comportamentos especficos para atuao dentro de padres legitimados pelas prticas do

    estado de direito, o que envolveria toda a estrutura empenhada. Contudo, este tema exigiria o

    aprofundamento em seu estudo, face s peculiaridades identificadas, por permitir a conjectura

    da existncia de dois modelos de atuao ou, talvez, de dois modelos de instituies.

    O ETHOS MILITAR COMO IDENTIDADE SOCIAL

    Everett Hughes33

    afirma que os grupos profissionais tendem a construir representaes

    coletivas, peculiares ao seu trabalho, que se constituem uma das partes mais importantes de

    sua identidade social34

    . Goffman refora este conceito e ressalta que a identidade pessoal,

    assim como a identidade social, estabelece uma separao, para o indivduo, no mundo

    individual das outras pessoas (1988, p. 77). Ao considerar as questes sobre o trabalho,

    identidade e separao, o que dizer, ento, dos integrantes de organizaes com caractersticas

    de instituies totais35

    , como as organizaes militares? Sobre este tema Girardet36

    esclarece

    o fenmeno da separao, ou afastamento do militar do no militar, o paisano:

    Com efeito, ao mesmo tempo em que as dragonas conferem queles que as portam uma igualdade recproca e absoluta, elas os separam da massa de seus concidados,

    os paisanos, os burgueses e os colocam num plano moral diferente daquele do restante da nao. Impe s suas conscincias outras exigncias, submetem suas

    31

    Emprego esta categoria, elaborada por Mary Kaldor, tomando como base s chamadas novas guerras ou guerras da ps-modernidade. Este termo designa um novo tipo de violncia organizada que no distingue os conflitos entre Estados, ou grupos com motivao poltica, com o crime organizado, envolvendo grupos com

    objetivo financeiro, e com as violaes massivas dos direitos humanos. (MOURA, Tatiana. Novssimas Guerras, Novssimas Pazes. Desafios Conceptuais e Polticos. Comunicao apresentada no Painel Novssimas Guerras, Novssimas Pazes do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Cincias Sociais, CES, Coimbra, 17 de setembro de 2004).

    32 Emprego esta categoria para designar os delitos tpicos das cidades e de concentraes urbanas, que requereria

    conhecimento especfico sobre mediao de conflitos por parte dos agentes da lei. 33

    HUGHES, Everett. Men and Their Work. Connecticut: Greenwood Press Print, 1981, p. 43. 34

    A categoria e os atributos que ele [o indivduo]... prova possuir, [...] (GOFFMAN, 1988, p. 12) 35

    Uma instituio total pode ser definida como um local de residncia e trabalho onde um grande nmero de indivduos com situao semelhante, separados da sociedade mais ampla por considervel perodo de tempo,

    leva uma vida fechada e formalmente administrada. (GOFFMAN, Erving. Manicmios, Prises e Conventos. 2 reimp. da 7 Ed de 2001. So Paulo: Perspectiva, 2005, p. 11)

    36 GIRARDET, Raul. A Sociedade Militar: de 1815 aos nossos dias (Jos Lvio Dantas trad.). Rio de Janeiro:

    Bibliex, 2000, p 73.

  • 31

    vidas a outras leis que no aquelas que regem a existncia da maior parte de seus

    concidados. (2000, p. 63)

    Castro37

    aponta para a suposta razo deste distanciamento; algo que distingue os dois

    universos, o militar e o civil, e caracteriza o primeiro pelo chamado esprito de corpo:

    [...] comparada a outras profisses, a militar representaria um caso-limite sociolgico, contribuindo para uma grande coeso ou homogeneidade interna

    (esprito de corpo), mesmo que freqentemente aos preos de um distanciamento

    entre os militares e o mundo civil.

    O esprito de corpo, assim como o esprito militar 38, so representaes sociais39 do

    militarismo que, juntamente com outros atributos, constituem caractersticas da identidade

    adquirida, ou incorporada, pelos processos de socializao da instituio militar. Estes

    processos, de uma forma geral, como asseveram Berger e Luckmann40

    , esto implicados na

    formao e conservao de um ethos41

    institucional. Neste caso, estamos diante de um ethos

    militar que tem na hierarquia e na disciplina seus pilares, e que acaba por definir e afastar dois

    mundos, o intramuros e o extramuros.

    Este ethos militar gerou um modelo aplicado organizao profissional das polcias

    ostensivas brasileiras. Sua adoo, segundo Muniz (1996), obedeceu ao processo histrico,

    narrado anteriormente, e caracterizado pela evocao imagens do universo propriamente

    militar. Estas imagens esto presentes na prpria designao institucional (Polcia Militar),

    como tambm em sua estrutura burocrtica (Batalhes, companhias, pelotes). Desta forma,

    no difcil constatar que o paradigma militarista e, talvez, o penalista orientam as aes no

    campo da segurana pblica. Tal assertiva identificada nas representaes que permeiam,

    ainda, qualquer discusso sobre as questes relativas segurana pblica:

    37

    CASTRO, Celso. O Esprito Militar. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, p. 31. 38

    Girardet esclarece que o papel do soldado tendia a reduzir-se aplicao mecnica das ordens que ele recebia. Era no esprito de obedincia que acabava por se resumir o esprito militar. (GIRARDET, op. cit., p. 73)

    39 As representaes sociais so modalidades de pensamento prtico orientadas para a comunicao - a compreenso e o domnio do ambiente social - material e ideal. Enquanto tais, elas apresentam caracteres

    especficos no plano da organizao dos contedos, das operaes mentais e da lgica. (JODELET, 1984 apud PONCIONI, Paula. Tornar-se Policial: A construo da Identidade Profissional do Policial do Estado

    do Rio de Janeiro. Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia, do Departamento de

    Sociologia da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Doutor em Sociologia. USP, 2003, p. 11) 40

    BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construo social da realidade: tratado de sociologia do

    conhecimento. 7 Ed. Petrpolis: Vozes, 1987, p. 228. 41

    Na perspectiva de Geertz, ethos so os aspectos morais (e estticos) de uma dada cultura, os elementos valorativos. (GERRTZ, Cliford. A Interpretao das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989, p 93)

  • 32

    As metforas militares tambm colorem as expectativas pblicas em relao s polcias ostensivas. Alegorias associadas simbologia da guerra como o combate, o confronto, o inimigo etc. so empregadas tanto no senso comum quanto na mdia para descrever as aes da polcia e para cobrar iniciativas e formas de

    interveno. Tambm so freqentes as fabulaes que vinculam a funo de polcia

    a uma guerra contra o crime e, mais recentemente, a uma guerra s drogas. Alguns aspectos, sobretudo aqueles mais imediatamente apreensveis, favorecem a

    cristalizao dessas metforas, parte delas at condizente com a realidade policial

    militar. (MUNIZ, 1999, p. 112).

    Alguns pesquisadores questionam a aplicabilidade deste modelo, quando o relacionam

    ao trabalho de polcia preventiva pelo o paradigma prevencionista. Esta crtica estaria

    fundamentada na impropriedade do ethos militar, quando confrontado com a magnitude e

    diversidade de foras sociais e as mltiplas e diferentes facetas do trabalho policial, em face

    de uma lgica eminentemente reativa, pautada em indicadores quantitativos e no

    qualitativos. Kant de Lima42

    identifica dois aspectos a de influncia negativa deste ethos:

    Primeiro, quanto a sua organizao interna e quanto a suas relaes externas com outras instituies da sociedade: sendo a Polcia Militar uma organizao

    subordinada, seus oficiais so subalternos aos oficiais das Foras Armadas. [...]. Em

    segundo lugar mantm da hierarquia militar a estrita obedincia e a negao da

    autonomia, que, se pode ser indispensvel s funes a serem executadas no cenrio

    da guerra, revelam-se obstculos importantes na atuao policial, tanto no que diz

    respeito a sua necessria autonomia de deciso na prtica de suas funes

    profissionais, quanto no modo pelo qual se deve fazer a avaliao de sua conduta na

    eficcia obtida na mediao dos conflitos, medida no pelo grau de obedincia a

    ordens superiores, mas pela sua criatividade na conduo de negociaes bem

    sucedidas.

    Efetuando a anlise da crtica de Kant, sobre as representaes militares de obedincia e

    negao da autonomia necessria mediao de conflitos, identifico duas dimenses distintas,

    aparentemente antagnicas, que na verdade as entendo como complementares. A primeira

    trata da organizao militar como forma de administrao43

    dos recursos humanos e materiais;

    tal dimenso envolveria o universo militar propriamente dito, o intramuros: o quartel. A

    segunda dimenso envolveria a o lcus da ao policial: a rua. No universo da rua ocorreria

    a interao entre os dois mundos, o militar e o civil, e que exigiria uma performance mais

    apurada do ator policial, que transcenderia ao simples cumprimento de ordens superiores.

    Desta forma temos duas categorias de significao sociolgica: o quartel e a rua.

    42

    KANT DE LIMA, Roberto. Polticas de segurana pblica e seu impacto na formao policial: consideraes tericas e propostas prticas. In: ZAVERUCHA, Jorge (org). Polticas de Segurana pblica: dimenso da

    formao e impactos sociais. Recife: Massangana, 2002, p. 199-219. 43

    Entendam-se como as aes de planejamento, execuo e controle; a seleo e preparao de pessoas; e

    aplicao dos recursos logsticos.

  • 33

    Tomando como referncia o clssico de Roberto da Matta, A Casa e a Rua44,

    proponho considerar o quartel como a casa, o espao privado do militar onde esto os

    nossos, que devem ser protegidos e favorecidos pelo esprito de corpo e onde as

    representaes so socializadas por meio de metodologia peculiar. A rua, como em Da

    Matta (1985), o espao pblico; um espao hostil onde no valem as leis e os princpios

    ticos, a no ser sob a vigilncia da autoridade que viria do quartel. A rua, ento, o espao

    de ocorrncia de fatos onde a convivncia e soluo dos problemas dependeriam de uma

    negociao constante, entre desiguais: A autoridade, os cidados e as pessoas.

    A rua, tambm, seria o espao onde as regras militares do quartel se flexibilizariam,

    e uma nova regra pautaria o comportametno dos iguais, dos militares: a regra da rua. Desta

    forma, o quartel e a rua representariam categorias que constituiriam: [...] esferas de ao

    social, provncias ticas dotadas de positividade, domnios culturais institucionalizados e, por

    causa disto, capazes de despertar emoes, reaes, leis, oraes, msicas e imagens

    esteticamente emolduradas e inspiradas (DA MATTA, 1985, p.12).

    A SOCIALIZAO DO CONHECIMENTO POLICIAL

    A profisso policial como uma ocupao privilegiadamente complexa, difcil, e sria,

    em que freqentemente so exigidos de seus praticantes a iniciativa, o julgamento e a deciso

    para responder s variadas demandas, usando a fora quando necessrio45. Diante desta

    constatao, devemos imaginar a amplitude requerida pelos processos de socializao dos

    conhecimentos, necessrios para lidar com situaes que, normalmente, causariam

    repugnncia, medo, ou paralisia em outros. Kant de Lima (1997) evidencia o modelo de

    socializao praticado nas organizaes policiais:

    A formao policial entre ns [no Brasil] tem sido tradicionalmente centrada na idia de treinamento, onde se busca a padronizao de procedimentos, na base de repeties mecnicas, reproduzindo uma ideologia marcadamente repressiva e

    punitiva, retirando dos policiais a capacidade reflexiva diante de situaes

    complexas, como as questes da infncia e da adolescncia, das drogas, da

    discriminao social, racial, de gnero, do idoso etc. Em suma, condicionamos o policial para obedecer ordens irreflexivamente, a comando, para depois coloc-lo

    sozinho diante da realidade conflitiva das ruas, esperando que ele aja

    reflexivamente, e tome suas decises com bom senso e equilbrio.

    44

    DA MATTA, Roberto. A casa & a rua Espao, cidadania, mulher e morte no Brasil. So Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

    45 BITTNER, Egon. Aspects of police work. Boston, MA: Northeastern University Press, 1990 apud PONCIONI,

    2003, p 187

  • 34

    Alm de Kant de Lima, outros pesquisadores observam que os processos de socializao

    profissional privilegiam uma teoria distanciada da prtica das ruas (MUNIZ, 1999, p.153-180;

    PONCIONI, 2003, p. 190-25; e CARUSO, 2004, p. 95-134). Assim, o que socializado

    formalmente no tem ou no teria respaldo no cotidiano46

    , segundo os principais atores deste

    cenrio: os policiais. O fazer prtico, ento, seria resultante de uma socializao informal

    gerada no interstcio entre o quartel e a rua, e colocaria estes dois campos de saber em

    confronto permanente.

    A prtica da rua, orientada pela viso militar do combate ao crime, fortaleceria o

    conceito, no senso comum, de que esta seria a misso precpua das instituies policiais. Este

    entendimento acaba por promover a distino de dois tipos de policial: o policial de quartel

    - o burocrata - e o policial de rua - o operacional. Tal conceito percebido amplamente pelo

    pblico e pelos prprios policiais, e acaba por gerar e fortalecer outro arqutipo: o

    guerreiro. Nesta perspectiva, o ethos guerreiro [o policial de rua, o operacional]

    paulatinamente sedimentado na identidade profissional do policial como um importante

    requisito para que ele possa, com sucesso, realizar a rdua misso do combate real

    criminalidade. (PONCIONI, 2003, p 187).

    Embora no faltem crticas em relao ao modelo militarista adotado pelo Estado para

    sua fora policial de patrulhamento ostensivo, como tambm ao ethos guerreiro, desenvolvido

    na prtica diria do confronto com criminosos armados, o fato concreto : este o modelo

    vigente, e que contribuiu para o processo de institucionalizao e construo da identidade

    social da Polcia Militar; que assim ser, at que seja mudado pelos os mandatrios, quando

    entendermos que no esteja mais atendendo s necessidades sociais; quanto maior o

    conhecimento sobre estas instituies, melhor o entendimento sobre dever ou no mud-las.

    Desta forma, procurarei construir a viso do empoderamento blico e ttico da fora policial

    do Rio de Janeiro desde 1920, quando recebeu a denominao de Polcia Militar, at nossos

    dias, confrontando com a evoluo da criminalidade.

    A EVOLUO DA VIOLNCIA DOS CONFRONTOS ARMADOS NA TICA DO POLICIAL MILITAR

    Durante as entrevistas com os policiais do BOPE, verifiquei a percepo recorrente nos

    relatos dos policiais mais antigos47

    , sobre uma suposta relao entre a evoluo blica dos

    46

    Cf. CARUSO, 2004. 47

    Neste caso, a categoria antigo se refere aos policiais com mais tempo de servio prestado corporao.

  • 35

    narcotraficantes com o conseqente aumento dos confrontos armados e da violncia. O final

    da dcada de 50 constitui o marco mais distante da histria oral destes policiais. Os fatos

    narrados foram fixados na mente destes policiais, pela forma recorrente como a mdia tratava

    os casos de polcia, onde a destreza dos marginais e dos policiais eram enaltecidas, em

    momentos distintos, como se quisessem promover uma disputa entre eles. A mdia teria

    tornado este perodo em uma fase romntica, em que os marginais seriam caracterizados

    pela malandragem, por viverem na boemia envolvidos com prostitutas, cabars, bebidas,

    pela destreza no carteado, e pela capacidade de ludibriar a polcia com fugas espetaculares das

    batidas policiais.

    Segundo estes interlocutores, os criminosos mais violentos eram assaltantes de bares,

    lojas e pequenos comrcios. As mortes ocorriam durante os assaltos, em distncia reduzida e

    seriam motivadas pela reao dos proprietrios ou usurios. As armas mais utilizadas pelos

    criminosos eram a navalha, o revlver calibre 32 e 38 e pistola calibre 45, em alguns casos.

    Nesta poca, o fato mais marcante teria ocorrido em Duque de Caxias, onde o bando do

    assaltante Mineirinho48 teria, supostamente, invadido um posto da PM, assassinado os

    policiais e roubado suas armas. O armamento utilizado pela polcia era revlver calibre 38, e

    submetralhadoras Thompson49

    e INA50

    , ambas de calibre 45.

    Na dcada de 60 o crime evolui para assaltos que marcaram a poca, como o Assalto

    ao Trem Pagador. O armamento dos criminosos continuou o mesmo, mas suas tticas foram

    aprimoradas e os nomes, ou melhor, vulgos, comeavam a surgir na mdia, como: Mineirinho,

    Tio Medonho, Caveirinha, Fidel Castro e Cara de Cavalo. Da mesma forma, pelo lado da

    polcia nomes foram consolidados, como os detetives: Perptuo, Le Cocq, Sivuca e

    Americano. A imprensa, falada e escrita, explorava as aes criminosas tanto quanto as

    policiais. Entre os confrontos, que comeavam a surgir, tomou vulto o que resultou a morte

    do detetive Le Cocq, pelo criminoso Cara de Cavalo. A curta distncia ainda caracterizava

    os poucos confrontos com armas de fogo51

    .

    48

    Vulgo de Jos da Rosa Miranda, conhecido assaltante e autor de 9 homicdios. Com fama de enfrentar

    policiais, foi encontrado morto no dia 30 de abril de 1962, na Estrada Graja-Jacarepagu. RIBERIO, Otvio.

    Barra Pesada. Coleo Edio do Pasquim Vol. 12. Rio de Janeiro: CODECRI, 1977, p. 14-35. 49

    Arma de fabricao americana, produzida a parir de 1919, conhecida pela arma preferencial dos gangsteres de

    Chicago-EUA nos anos 20 e 30. 50

    INA, de Indstria Nacional de Armamento. Arma fabricada no Brasil nos anos 50. 51

    Revlveres, pistolas e submetralhadoras.

  • 36

    Na narrativa dos interlocutores, at meados dos anos 70, a PM concentrava sua ateno

    nas aes de manuteno da ordem pblica e nada tinha a ver com patrulhamento ostensivo.

    Quando comeou a mobilizao contra a ditadura, no final dos anos 60 e durante os anos 70, a

    PM reprimia as manifestaes pblicas, para preservar a ordem, enquanto o crime evolua.

    Os policiais entrevistados apontaram que a PM foi usada como o brao armado da represso

    poltica, por estar subordinada ao Exrcito. Esta viso de sujeio apresentada por Muniz

    (1999) que relata desde a dcada de 30 as polcias militares eram estruturadas imagem e

    semelhana das unidades de infantaria e cavalaria do Exrcito regular52

    e a ele deveria se

    subordinar53

    . A Constituio de 1967 acompanhou este modelo, quando atribuiu PM a

    manuteno da ordem pblica e a segurana interna. Contudo, por meio de decreto-lei54

    , as

    corporaes militares estaduais estavam autorizadas a exercer o policiamento ostensivo

    fardado, o que poderia representar no retorno da PM s atividades de polcia (ibidem, p.77-

    75).

    Segundo os relatos dos interlocutores, o cenrio criminal da dcada de 70 foi marcado

    pelos assaltos a bancos. Estas ocorrncias foram encaradas, inicialmente, como crime de

    motivao poltica: Diziam que eram estudantes e militantes de esquerda. No incio at podia

    ser, mais depois, a vagabundagem [sic] entrou na onda, era assalto a banco sem parar, parecia

    que todo mundo tinha virado comunista (Oficial do BOPE, possuidor do curso de Operaes

    na Selva do EB, que ingressou na PM nos anos 70). Este tipo de delito, ento, era tratado pela

    extinta Lei de Segurana Nacional (LSN). Criminosos comuns passaram a ser encarcerados

    juntamente com presos polticos no Instituto Penal Candido Mendes, na Vila Dois Rios, na

    Ilha Grande. Segundo os relatos dos policiais militares entrevistados, a promiscuidade entre

    os presos resultou na criao de uma organizao fundamentada em uma ideologia55

    :

    Paz, justia e liberdade um fundamento ideolgico. Embora os marginais de hoje no tenham a capacidade de perceber isso, os fundadores tinham [...] aprenderam

    52

    Determinado pela Lei n 192, de 17 de janeiro de 1936. 53

    A Carta Magna de 1946 determinava: As polcias militares institudas para a segurana interna e a manuteno da ordem nos estados, territrios e no distrito federal, e os corpos de bombeiros militares so

    considerados foras auxiliares reserva do exrcito. (MUNIZ, 1999, 72). 54

    Decreto-Lei n 317 de 13 de maro de 1967. 55

    O mito de origem da criao das faces criminosas no Presdio Candido Mendes, na Ilha Grande, e sua fundamentao ideolgica pode ser comprovada ou refutada por vrios trabalhos acadmicos e memrias

    registradas em livro como: PIMENTA, Carlos. Ilha Grande. Sucursal do Inferno. Belo Horizonte: Almeida

    Artes Grfica Editora, 1998; MACHADO, Catia Conceio Faria. Revolucionrios, Bandidos e Marginais.

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense PPGH/UFF, como forma de obteno parcial do grau de Mestre em Histria, 2005; e MISSE, Michel. A

    constituio e reproduo das redes de mercado informal ilegal de drogas a varejo no mercado informal do

    Rio de Janeiro e seus efeitos de violncia. www.necvu.ufrj.br/arquivos/0%20movimento.pdf.

  • 37

    isto com os intelectuais de esquerda, presos no Instituto Penal Candido Mendes da

    Ilha Grande [...] ningum ainda percebeu, se perceberam no comentam, pois estes

    fundamentos esto no prembulo da Declarao Universal dos Direitos Humanos, s

    que em sentido invertido. Na mesma parte [do prembulo da Declarao Universal],

    h uma espcie de advertncia, que alerta se estes bens no forem protegidos [pelo

    Estado], as pessoas podero se insurgir contra a tirania e opresso. Isto ou no um fundamento ideolgico? (Oficial da reserva da PM, caveira, ex-integrante do BOPE).

    A droga passa a ser percebida como um problema grave a partir dos anos 80. Os

    interlocutores apontam a abertura poltica como um fator concorrente ao enfrentamento do

    trfico de entorpecentes:

    A anistia trouxe de volta os exilados polticos. [...] isto no foi o problema, a verdadeira questo estava na forma como eles percebiam a polcia. Eles [os

    anistiados] foram eleitos para cargos polticos. Pregaram a mudana da polcia, mas

    na verdade no sabiam como fazer isto, e a PM tambm no. [...] Passaram a limitar

    as aes policiais e o Comando da PM aceitou. Com a inrcia da polcia os

    traficantes fizeram a festa [...] se organizaram e se estruturaram nas favelas, era onde

    o poder pblico menos atendia. (Oficial da Reserva da PM, caveira, ex-integrante do BOPE).

    Alguns interlocutores apontam outro fato que, juntamente com a questo poltica, ajudou a

    construir o cenrio que vivemos na atualidade, o discurso mais esclarecedor observa:

    A produo da droga em escala industrial nos pases andinos, no incio dos anos 80, fez os preos despencarem no Brasil. A Rota Sul, que partia da Colmbia e passava

    pelo Rio de Janeiro rumo a Europa, comeou a abastecer o mercado de drogas do

    Rio [de Janeiro], que antes era rota de passagem e a droga principal era a maconha.

    A cocana que era droga de rico passou a ser oferecida por preos acessveis [no Rio de Janeiro]. [...] a demanda reprimida diante da oferta abundante, fez o negcio

    da droga render muito, e os traficantes a se capitalizarem rapidamente. Com o

    dinheiro compraram armas cada vez mais poderosas [...] comearam com pistolas,

    depois submetralhadoras e, finalmente, os fuzis de assalto. Com grupos fortemente

    armados, a faco mais agressiva passou a tomar os pontos de venda de drogas da

    concorrncia nas favelas [...] o lado [faco] agredido comeou a comprar armas

    para proteger seus pontos da invaso. Foi o incio da Guerra do Rio que dura at hoje. (Oficial da Reserva da PM, caveira, ex-integrante do BOPE).

    Em relao ao recrudescimento dos confrontos armados nos anos 80, entre a polcia e os grupos

    criminosos, um oficial observa:

    [...] quando o candidato ao governo do [Estado do] Rio foi eleito, aps os quatro anos de retraimento da polcia, com um discurso novo de enfrentamento, talvez por

    conta da presso da opinio pblica, o Estado passou a empregar a polcia contra os

    grupos criminosos. [...] os confrontos com os marginais se tornaram mais violentos,

    mais letais e passaram a ocorrer em maiores distncias. Muitos policiais morreram

    em razo da falta de preparo tcnico, para este novo tipo de confronto, e do

    armamento inferior. Esta inferioridade [blica] s foi equilibrada com o emprstimo

  • 38

    de fuzis [FAL] do Exrcito, em meados dos anos 90. O marco da luta contra o

    narcotrfico foi o caso da Rocinha [1988] quando o Naldo [Chefe do trfico local]

    fez disparos de fuzil do alto do morro [...] diante deste cenrio ou voc se corrompe,

    ou voc se omite, ou vai para guerra. O BOPE optou ir para guerra, subiu a Rocinha

    e pegou o Naldo, Buzunga e Brasileirinho [traficantes da Rocinha], da passou a

    atuar efetivamente nas reas de risco. At hoje no saiu de l, e pelo jeito no vai sair to cedo. (Oficial da PM, caveira, ex-integrante do BOPE).

    Com base nesta viso dos policias, proponho uma classificao das fases do confronto

    pela relao entre o armamento utilizado pela polcia e pelos grupos criminosos, a distncia

    dos confrontos e gradiente de letalidade, que neste caso ser estimado com base nas fases

    anteriores:

    Quadro 1

    Sistema Classificatrio das Fases de Confronto Policial

    Fase 1-Romntica 2- da

    Represso

    3 da Difuso do

    Trfico

    4 Beligerante 5 Guerra Urbana

    Perodo Dcada de 50

    e 60

    Dcada de

    70

    Dcada de 80 Dcada de 90 1 Dcada do

    Sculo XXI

    Modalidade

    Criminosa

    Relacionada

    Jogo: Roubo a

    estabelecimento

    comercial

    Roubo a

    banco

    Roubo a

    banco; e

    Trfico de

    Drogas

    Trfico de Drogas Trfico de drogas

    Armas dos

    Criminosos

    Revlver .32

    e .38

    Pistola .45

    Revlver .32

    e .38

    Pistola .45

    Pistolas 9 mm

    Smtr 9 mm

    Cal 12

    Fuzil 5,56 mm

    Pistolas 9 mm

    Smtr 9 mm

    Fuzil 5,56 mm e

    7,62 mm

    Granadas de mo

    Pistola 9 mm

    Fuzil 5,56 mm e

    7,62 mm

    Granadas de mo

    Alcance

    Mximo das

    Armas dos

    Criminosos

    At 800m At 800m At 2500m At 3000m At 3000m

    Armas da

    Polcia

    Revlver. 38

    Pistola .45

    Smtr .45