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COERÇÃO, CAPITAL E ESTADOS EUROPEUS 990-1992 CHARLES TILLY Tradução Geraldo Gerson de Souza

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COERÇÃO, CAPITAL E ESTADOS EUROPEUS 990-1992

CHARLES TILLY

Tradução

Geraldo Gerson de Souza

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OS ESTADOS E SEUS CIDADÃOS

D E VESPAS A L O C O M O T IV A S

N os últim os m il anos, os estados europeus experim entaram um a evolução peculiar: passaram de vespas a locom otivas. Por m uito tem po se concentraram na guerra , de ixando a m aio ria das a tiv idades p a ra outras o rgan izações, som ente enquanto essas organizações produzissem tributos em intervalos apropriados. Os estados extorquidores de tributos continuaram belicosos, mas leves em peso quando com parados aos seus sucessores mais avultados; ferroaram , mas não esgotaram . Com o p assa r do tempo, os estados - m esmo as variedades de grande inversão de cap ita l - assum iram as a tiv idades, os poderes e os co m prom issos que fo ram obrigados a manter. Os dois trilhos em que essas locom otivas corriam eram o da sustentação por parte da população e o da m anutenção por In term édio de um quadro dq pessoal civil. Fora dos trilhos, as m áquinas de guerra não funcionavam .

O m ínim o d e atividades essenciais de u m estado são três:

/' criação do estado: a tacando e contro lando os com petidores e desafiantes dentro do território reclam ado pelo estado;

prá tica da guerra: atacando os antagonistas fora do território já reclam ado pelo estado;

y proteção: atacando e controlando os antagonistas dos principais aliados dos governantes, quer dentro quer fora do território reclam ado do estado.

Contudo, não dura m uito um estado que negligencia uma quarta atividade crucial:

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extração: sacando de sua própria população os meios de criação do estado, de prática da guerra e de proteção.

Os estados extorquidores de tributos perm aneceram restritos no m ínim o a esse conjunto indispensável de quatro atividades, intervindo nas vidas de seus súditos nom inais especialm ente para im por o poder da classe dirigente e para extrair rendas. Contudo, além de uma determ inada escala, todos os estados acabam aventurando- se em três outros terrenos perigosos:

aplicação de justiça: solução perem ptória de disputas entre os m em bros da população;

/ distribuição: intervenção na divisão dos bens entre os m em bros da população;produção: contro le da c riação e tran sfo rm ação de bens e serv iço s pelos

m em bros da população.

As principais vinculações entre essas atividades funcionam m ais ou menos com o e s tá m ostrado na fig u ra 4.1. A p rá tica da guerra e a c riação do estado reforçam -se entre si, na verdade permanecem praticam ente indistinguíveis até que os estados com ecem a constitu ir fronteiras seguras e reconhecidas em torno de ex tensos territó rio s ad jacen tes . A m bas as a tiv id ad es induziram a ex tração de recursos da população local. O jogo de alianças e a tentativa de ex tra ir recursos de atores relativam ente poderosos ou m óveis favoreceram o envolvim ento do estado na proteção, controlando os competidores e inim igos de clientes escolhidos. Quando a extração e a proteção se expandiram , criaram a necessidade do acerto de disputas dentro da população subm etida, incluindo a regulam entação legal tanto da extração quanto da proteção.

Figura 4.1 Relações entre as principais atividades do estado

C om o tempo, o peso e o impacto das atividades do estado situadas na parte inferior do diagram a - aplicação de justiça, produção e distribuição - cresceram

i s s

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OS ESTADOS E SEUS CIDADÃOS

m ais depressa do que as da parte superior: prática da guerra, criação do estado, ex tração e p ro teção . O vo lum e ab so lu to que a m aio ria d os e stad o s eu ro p eu s in v es tiram na p rá tica d a guerra (a ta ca n d o os a n ta g o n is ta s fo ra do te rr itó rio reclam ado pelo estado) ou da criação do estado (atacando ou contendo com petidores e desafiantes dentro do território) continuaram a aum entar de form a irregular até o século XX; mas a aplicação de justiça, a produção e a d istribuição passaram de tri­viais a trem endas. M esm o aqueles estados não-socialistas que m antiveram um a propriedade privada extensa, por exem plo, acabaram investindo grandes som as na produção e/ou regu lam entação de energia, transporte, com unicação , alim ento e armas. Quanto mais m eios de guerra os governantes e outras em presas coercivas ex tra íram das suas eco n o m ias locais, m ais as c lasses p rin c ip a is dentro dessas econom ias lograram ex ig ir a intervenção do estado fora do dom ínio da coerção e da guerra. Não obstante, no período de mil anos que estam os considerando aqui, as atividades coercivas predom inaram claram ente.

A prática da guerra freqüentem ente envolveu os estados europeus na produção de armas; e a extração, na produção de bens (p. ex., sal, estopins e fum o) cujos m o­nopólios alim entavam os cofres do estado. M ais tarde, todos os estados in terv ie­ram de form a mais geTal na produção, à m edida que se tom aram efetivas as exi­gências por parte de trabalhadores e intelectuais no sentido de conter os excessos capitalistas; os estados socialistas representam sim plesm ente o extrem o de um a tendência geral. A extração, a proteção e a aplicacão da ju stiça se entreteceram , fi­nalm ente, para com pelir os estados ao contro le da d istribuição - prim eiram ente com o um m eio de garan tir as rendas do estado provenientes da circulação de bens, depois com o uma resposta aos pedidos populares de correção das desigualdades e déficits locais. N ovam ente, os estados socialistas representam apenas a versão ex tre­m a de um a expansão bastante geral da atividade do estado fora da esfera militar.

No curso da extração de recursos e da pacificação da população, todo estado europeu acabou criando um a nova estrutura adm inistrativa tanto no plano local e regional quanto num a escala nacional. O T ratado d e C ateau-C am brésis (1559), por exem plo, criou o reino de Sabóia-Piem onte e colocou Em m anuel-Philibert em seu trono. Logo a busca de recursos financeiros levou o rei a inovar: prim eiro um a lucrativa venda com pulsória de sal, segundo um censo para determ inar quem podia ser tributado, depois um im posto baseado na área produtiva de cada com unidade. O im posto obrigou as com unidades adjacentes a determ inar com precisão as suas fronteiras, o que os conduziu à preparação de cadastros e à criação de funcionários para adm inistrá-los (R am baud & Vincienne 1964: 11). Em toda a parte, os esforços extrativos não só desviaram recursos valiosos de seus usos costum eiros mas tam bém criaram novas form as de organização política.

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As ativ idades do estado , portanto, tinham profundas im plicações para os in te resses d a população em geral, para a ação co le tiva e para os d ire ito s dos c idadãos. N o m om ento de execu tar todas essas ativ idades - p rá tica da guerra, criação do estado, proteção, extração, aplicação da justiça, distribuição e produção - , os governantes e agentes do estado acabaram colidindo com os interesses defi­nidos das pessoas que viviam dentro de sua área de controle; e esse im pacto m uitas vezes foi negativo, porque os estados repetidas vezes se apossaram , para uso pró­prio, de terras, capital, bens e serviços que antes haviam servido a outras finalidades. A m aior parte dos recursos que os reis e m inistros usaram para construir a força arm ada proveio, em últim a análise, do trabalho e da acum ulação de pessoas com uns e constituiu um desvio de m eios valiosos dos objetivos aos quais as pessoas com uns atribuíam um a prioridade m uito maior. M esm o que às vezes os capitalistas tenham investido voluntariam ente nas finanças do estado e na proteção que o poder do estado deu ao seu negócio, e m esm o que os m agnatas regionais tenham algum as vezes se a liado aos reis com o intuito de con tro la r os seus próprios inim igos, a m aioria das pessoas que haviam investido nos recursos de que os m onarcas tentaram apoderar-se opuseram -se tenazm ente às exigências reais.

O trab a lh o , os bens, o dinheiro e ou tros recursos que os estados exigiam estavam , afinal de contas, em butidos em redes de obrigação e eram destinados a objetivos que as famílias e com unidades priorizavam . Entre as perspectivas a curto prazo do c idadão comum , aquilo que em alegre retrospecto denom inam os “form a­ção do estado” com preendia a instigação de arrendatários de im postos im piedosos contra os cam poneses e artesãos pobres; a venda forçada, para pagar im postos, de anim ais que poderiam servir para dotes; a prisão de líderes locais com o reféns do pagam ento, por parte da com unidade local, dos im postos devidos; o enforcam ento de ou tro s q u e ousavam p ro testa r; a incitação de soldados b ru ta is co n tra um a popu lação c iv il desafortunada; o recru tam ento de jovens que represen tavam a principal esperança de conforto na velhice de seus pais; a com pra com pulsória de sal im puro; a elevação dos já arrogantes p roprietários locais a funcionários do estado; e a im posição de unidade religiosa em nom e da ordem pública e da m o­ralidade. N ão é de adm irar que os europeus sem poderes tenham tantas vezes aceito a lenda do “bom czar” que fora enganado, ou m esm o m antido prisioneiro, por maus conselheiros.

O caráter e.o peso da atividade de estado variaram sistem aticam ente em fun­ção da econom ia que predom inava dentro das fronteiras de um estado, Nas regiões de aplicação intensa de coerção , era comum os governantes extraírem recursos para a guerra e para outras atividades em espécie, através de requisição direta e de re­cru tam en to . N as econom ias pouco co m ercia lizadas as taxas a lfandegárias e o

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OS ESTADOS E SEUS CIDADÃOS

im posto sobre o consum o geravam retornos pequenos, mas a instituição de im postos sobre o indivíduo e sobre a terra criou pesadas máquinas fiscais e colocou extenso poder nas mãos dos proprietários rurais, dos chefes de aldeia e de outros que exer­ciam controle imediato sobre os recursos essenciais. Nas regiões de grande inver­são de capital, a presença dos capitalistas, o intercâm bio com erciaTeõrganizações m unicipais avultadas estabeleciam sérios lim ites ao exercício direto, por parte do estado, de controle dos indivíduos e das fam ílias, mas facilitavam a aplicação de taxas relativam ente eficientes e indolores sobre o com ércio que se tornaram outras fontes d e rendas do estado . Além disso, a pronta disponibilidade de crédito fe z com que os governantes, em lugar de extrair os recursos em ondas rápidas e calam itosas, distribuíssem os custos da atividade m ilitar por períodos maiores. O resultado foi que nessas regiões os estados geralmente tiveram de criar aparelhos centrais d im i­nutos e segm entados. Nas regiões d e. coerção capitalizada, prevaleceu üm ásítüãção- in term ediária : os governan tes, em bora de form a desconfiada, contaram com a aquiescência tanto dos proprietários de terras quanto dos m ercadores, extraíram rendas da terra e do com ércio e criaram, assim , estruturas duais de estado em que os nobres enfrentavam os financistas, mas no final acabavam colaborando com eles.

N E G O C IA Ç Ã O , D IR E IT O S E A Ç Ã O C O LETIVA

A intervenção do estado na vida quotidiana suscitou a ação coletiva popular, freqüentem ente sob a form a de resistência ao estado mas algum as vezes assum indo o caráter de novas reivindicações. Quando as autoridades do estado tentaram obter da sua população recursos e aquiescência, e la s , o s outros detentores de po d er e grupos de cidadãos com uns negociaram (em bora essa negociação pendesse para um lado) novos acordos sobre as condições em que o estado podia extrair ou controlar, e os tipos de exigências que os detentores do poder ou o povo com um podiam fazer ao estado. A negociação e as reivindicações foram m udando fundam entalm ente do patrim oníalism o para a corretagem , depois para a nacionalização e finalm ente para a especialização; no patrim onialism o, por exem plo , m uitas vezes a negociação aconteceu em decorrência de rebeliões regionais com andadas pelos m agnatas e que favoreciam suas próprias pretensões a um estado independente, enquanto que, na corretagem , quando os antigos patrões se concertaram com o estado, as rebeliões com andadas pelos m agnatas desem bocaram em insurreições populares contra a tributação ou o recrutam ento.

O im pacto do estado sobre os interesses, a ação coletiva, a negociação e o estabelecim ento de d ireitos assum iu form as e seqüências bastante variadas em

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função da relevância relativa da coerção e do capital com o base de form ação do estado. Nas regiões que em pregaram intensa coerção, com o a Polônia e a Rússia, o controle sobre a terra e o trabalho ligado à terra foi durante m uito tem po o objeto central da luta, ao passo que, nas regiões de grande aplicação de capital, como os Países-Baixos, o capital e as mercadorias vendáveis ocuparam um a posição m ais re lev an te com respeito à negociação , o q u e crio u um a e s tru tu ra de e stad o e reivindicações dos cidadãos aos estados. A lém disso, nas zonas de grande inversão de capital, os estados atuaram mais cedo e com m aior eficácia para estabelecer os direitos burgueses de propriedade - reduzir as m últiplas reclam ações sobre a m esm a propriedade, reforçar os contratos e fortalecer a capacidade do dono principal de determ inar o uso da propriedade. Não obstante, em toda a parte, a criação do poder m ilitar pelo estado envolveu os seus agentes na negociação com detentores do poder e com grupos de cidadãos comuns. A estru tura de classe da população, portanto, ajudou a d e te rm in a r a o rg an ização do e s tad o : seu ap are lh o rep re ss iv o , su a adm inistração fiscal, seus serviços, suas ib rm as de representação.

A tradução da estrutura de classe em organização do estado ocorreu através de lutas. As rebeliões de im postos que sacudiram grande parte da E uropa Ocidental du ran te o século XVII orig inaram -se das p re ten sõ es co n co rren tes de reis, de detentores regionais de poder, de com unidades locais e fam ílias individuais, à terra, ao trabalho, às m ercadorias, ao gado, às ferram entas, ao crédito e à riqueza fam iliar que não podiam servir im ediatam ente a todas as finalidades. Q uando congregou as reivindicações dos grandes senhores e as das com unidades locais, com o aconteceu m uitas vezes na França no início do século XVII, a oposição à tributação am eaçou a própria v iabilidade da coroa. No entanto, m esm o num a escala menor, a ação coletiva e individual do dia-a-dia contra os crescentes esforços de extração do estado causou sérios desafios ao próprio soberano.

N a m edida em que a população do estado era segm entada e heterogênea, a p ro b ab ilid ad e de um a rebelião em g rande e sca la d im inu iu , m as aum entou a dificuldade de impor m edidas adm inistrativas uniformes. N um a população hom o­gênea e ligada, um a inovação administrativa criada e testada num a região tinha um a chance razoável de funcionar em outra, e os funcionários podiam facilm ente trans­ferir o seu conhecim ento de uma localidade para a outra. No período de m udança do tributo para o im posto, do governo indireto para o direto, da subordinação para a assim ilação, os estados geralmente se esforçaram por hom ogeneizar as suas po ­pulações e elim inar a sua segm entação m ediante a imposição de línguas, religiões, m oedas e sistemas legais comuns, bem com o por interm édio da construção de sis­tem as ligados de com ércio, transporte e com unicações. No entanto, quando am ea­çaram as próprias identidades nas quais as populações subordinadas baseavam as

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suas re lações sociais d iárias , esses esfo rço s de padron ização provocaram um a resistência em massa.

H abitualm ente, a resistência às ex igências do estado ocorreram às ocultas, num a escala local, em pregando as “arm as dos fracos” que Jam es S co tt descreveu: a sabotagem , a protelação, o disfarce, a evasão (Scott 1985). T ransform ou-se em rebelião de m assa p rincipalm en te quan d o ( / ) as ex igências e açõ es do e stad o o fen d eram os pad rões de ju s tiç a dos c id a d ão s ou agred iram suas iden tid ad es co le tivas prim árias, (2) as pessoas a ting idas pelas ações o fensivas do estado já estavam am arradas por vínculos sociais duradouros; (3) os cidadãos com uns tinham aliados poderosos dentro ou fora do estado, e (4) as ações e in terações recentes do estado revelaram que ele era vulnerável ao ataque. Sob essas circunstâncias, não só e ra provável que ocorresse a rebelião popular, m as tam bém que tivesse a lgum a probabilidade de êxito.

O decênio de 1640 conjugou todas essas condições num a série de estados europeus, resultando um a das décadas m ais rebeldes da história européia. O sórdido em aranham ento de lutas que hoje conhecem os pelo nom e de G uerra dos Trinta A nos pôs à p rova as cap acid ad es da m aioria d os estados europeus, revelando a sua vulnerabilidade no m esm o m om ento em q u e eles exigiam sacrifícios inauditos de seus súditos. A Inglaterra sofreu um a guerra civil, a França ingressou no turbilhão da F ro n d a , a E scócia q u ase se libertou d a In g la te rra , a C a ta lu n h a e P o rtu g a l rom peram os laços (a prim eira tem porariam ente, o últim o definitivam ente) com a coroa heterogênea da Espanha, enquanto em N ápoles o pescador M asaniello liderou um a grande revolta popular.

N a Catalunha, por exem plo, as exigências reais de aum ento dos im postos de guerra colocou o rei (ou, antes, o seu m in istro O livares) num im placável conflito com as Cortes. Em 1640, a coroa enviou nove m il soldados à província com o intuito de fazer cum prir as suas exigências de pagam ento , de reduzir a possib ilidade de um a resistência organizada e de aplicar u m a espécie de chantagem (pois os catalães eram obrigados a to lerar os soldados e so fre r as suas depredações enquanto não fossem pagas as suas obrigações). O aq u arte lam en to de so ld ad o s sem o c o n ­sentim ento da província violou os direitos estabelecidos da C atalunha. L evantou- se um a vasta rebelião popular. Quando e la com eçou a se dissem inar, a D isputació - falando em term os gerais, a com issão execu tiva das Cortes - co locou-se à frente da revolta e chegou m esm o a pedir a Luís XIII da França que assum isse a soberania na C atalunha. Em 1652, aproveitando-se da desatenção da França por causa da Fronda, um exército espanhol finalm ente reconquistou B arcelona e, portanto, a Catalunha. N esse m om ento, “F ilipeIV concedeu um a anistia e prom eteu respeitar as liberdades tradicionais da C atalunha” (Zagorin 1982: II, 37).

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O que fizeram os governantes quando se defrontaram com um a resistência, d ispersa ou m aciça? N egociaram . Ora, alguém pode fazer ob jeções ao uso da palavra “negociação” para designar o envio de tropas com o objetivo de esm agar um a rebelião contra im postos ou prender um contribuinte relutante. No entanto, o uso freqüente de punição e x e m p la r -o enforcam ento de alguns cabeças da rebelião em lugar de todos os rebeldes, a prisão do contribuinte local m ais rico em vez de todos os delinqüentes - indica que as autoridades estavam negociando com a massa da população. Em todo caso , a negociação assum iu m uitas ou tras form as mais aceitáveis: litíg ios com os parlam entos, com pra de funcionários da cidade com isenções de im postos, ratificação dos privilégios de guilda em troca de em préstim os ou em olum entos, regulam entação da tributação e da arrecadação de im postos contra a g aran tia de pagam ento m ais espontâneo etc. Toda essa negociação criou ou confirm ou reivindicações individuais ou coletivas ao estado, direitos individuais ou coletivos frente ao estado e obrigações do estado para com os seus cidadãos. Criou tam bém direitos - exigências exeqüíveis reconhecidas - dos estados em relação aos seus c id adãos. O núcleo do q u e hoje denom inam os “c id ad an ia” , na verdade, consiste de m últiplas negociações elaboradas pelos governantes e estabelecidas no curso de suas lutas pelos m eios de ação do estado, principalm ente a guerra.

Obviam ente, a negociação era assimétrica: no princípio, canhão contra versos; o firm e desarm am ento da população em geral pelo estado com pôs a assim etria. E n tre tan to , m esm o a v io len ta repressão das reb e liõ es con tra a trib u tação e o rec ru tam e n to en v o lv eu co m u m en te um a sé rie de aco rdos com a q u e le s que cooperaram na pacificação e afirm ação pública dos m eios pacíficos pelos quais os cidadãos com uns podiam leg itim am ente ten tar co rrig ir os erros e in justiças do estado. Esses m eios com preendiam habitualmente o abaixo-assinado, a ação judicial e a rep resen tação através das assem bléias loca is. Q uando se o rgan izaram , os trabalhadores e burgueses (ou , com m enor freqüência , os cam poneses) tiraram proveito dos m eios perm itidos para pressionar no sentido de ob ter am pliação de d ireitos e rep resen tação d ire ta . D urante a ép o ca da especialização , os estados anteciparam -se ou reagiram às crescentes exigências dos burgueses e trabalhadores, incum bindo a seus agentes program as com o seguro social, pensões dos veteranos, e d u cação p ú b lic a e m orad ia ; to d o s esses p ro g ram as ac resceram e sc ritó rio s , burocratas e linhas orçam entárias aos estados que a cada dia se tornavam mais civis.

A través da luta, da negociação e da interação sustentada com os detentores dos recursos essenciais, os estados acabaram refletindo as estruturas de classe de suas populações subordinadas. A s maiores conseqüências afetaram as classes do­m inantes, de sorte tal que os estados dom inados por grandes proprietários rurais desenvolveram estruturas m uito diferentes daqueles controlados pelos capitalistas

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(M oore 1966). M as a necessidade absoluta de negociar com os cam poneses, ou ar­tesãos, ou trabalhadores sem terra marcou tam bém a organização fiscal do estado, os controles sobre o com ércio, as forças policiais, e muitas outras coisas. Os acordos negociados especificam ente que puseram fim à resistência sustentada ou facilitaram a aquiescência popular criaram um a parcela significativa dessas instituições de estado.

N ovam ente devem os im aginar um continuum de experiências. Num ex trem o ' ficam aquelas negociações estabelecidas com organizações poderosas que existiam antes da grande expansão do poder do estado e sobreviveram à expansão, princi­palm ente os corpos dirigentes das m unicipalidades capitalistas com o Am sterdam . Essas negociações geralm ente incorporaram os corpos dirigentes ao estado e os trans­form aram em instituições representativas. N um a escala mais am pla, os governan­tes das regiões que possuíam cidades prósperas muitas vezes tiveram de tratar com conselhos representativos dos detentores urbanos de poder. Assim , os primeiros prín­cipes da Catalunha aceitaram que delegados de Barcelona e de outras cidades da C atalunha participassem de seus conselhos ao lado dos nobres e do clero, estabele­cendo, desse modo, o antecedente das Corts tricam erais catalãs (Vilar 1962:1,439).

N o outro extrem o ficavam as negociações com grandes blocos da população, tais com o os proprietários de terra, sobretudo sob a form a de legislação das regras de tributação, de recrutam ento e de outras atividades extrativas. Assim , quando tentou pagar parte dos custos da guerra contra a França com o prim eiro im posto sobre a renda geral já ap arecido na In g la te rra (1799), o p rim eiro -m in istro da In g la terra W illiam P itt instaurou negociações im plícitas ind istin tam en te com proprietários de terra, capitalistas e assalariados: elaborou um a lei que perm itia a rem issão do antigo im posto injusto sobre a terra (Watson 1960: 375-76). Q uando a paz com a França foi firm ada (de m aneira frustrada) em 1802 e (de form a definitiva) em 1815, o Parlam ento logo tomou m edidas para rejeitar o im posto; em bora o prim eiro-m inistro L iverpool tenha tentado, em 1816, m anter o im posto sobre a renda p a ra ajudar a pagar a enorm e d ív ida acum ulada de guerra, o Parlam ento claram ente considerou a negociação um a vinculação do im posto à em ergência da guerra (Levi 1988: 140-43).

E n tre os dois ex trem o s vamos en co n trar negociações estabe lec idas com grupos definidos de detentores de poder, tais com o os funcionários da igreja, que, q uan d o eram d erro tados e esbulhados de suas posses, com u m en te adquiriam d ire ito s, garan tidos pe lo estado , a estipêndios e proteção, e que, quando eram efic ien tes em sua resistênc ia à extração, forçaram m uitas vezes a criação ou o reconhecim ento de corpos representativos, tais com o as assem bléias eclesiásticas. Na Inglaterra, Henrique VIII despojou a igreja de seu país de suas terras e de seus

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vínculos com Rom a, mas com isso assum iu a obrigação de fornecer estipêndios vitalícios a todos os padres que adotassem a sua versão da Reforma.

No conjunto, os funcionários dos estados que se desenvolveram em meio à rede de cidades m ercantis que se estendia da Itália do N orte a F landres e ao Báltico se encontraram perto do prim eiro extrem o, negociando com as o ligarquias m u­nicipais que tinham a sua esfera de ação, sobreviveram e se tornaram os principais com ponentes do estado; as cidades-im pério com o Veneza são um exem plo do caso extrem o. Os agentes dos estados-em -form ação que se constituíram dentro da faixa de c idade-estado muitas vezes tiveram de negociar com os grandes proprietários de terras e sua clientela, e criaram durante o processo novas institu ições represen­tativas. N aqueles estados m aiores, os nobres m uitas vezes obtiveram confirm ações de seus privilégios e m onopólios das patentes m ilitares mais altas em troca de sua colaboração com as tentativas reais de instituir exércitos nacionais. N o entanto, ao longo do continuum , a negociação em torno das exigências extrativas do estado p ro d u z iu d ire ito s , p r iv ilé g io s e in s titu içõ e s de p ro teção q u e não e x is tiam anteriorm ente.

/I IN S T IT U IÇ Ã O D O G O V E R N O D IR E TO

U m a m udança d ifu sa do governo in d ire to para o d ireto o co rreu com a nacionalização do poder militar. Isso ofereceu ao cidadão comum um a oportunidade sedu tora m as cara. D epois de 1750, nas ép o cas da nacionalização e da e sp e­cialização, os estados com eçaram a m udar agressivam ente de um sistem a quase un iversal de governo in d ire to para um novo sistem a de governo d ireto : um a in tervenção sem in term ediários nas vidas das com unidades loca is , fam ílias e em presas produtivas. Quando deixaram de alugar m ercenários e passaram a recrutar gu e rre iro s en tre a sua p ró p ria pop u lação n ac io n a l, e quan d o au m en taram a tributação a fim de m anter as grandes forças m ilitares da guerra no século XVIII, os governantes negociaram o acesso às com unidades, famílias e em presas, rem ovendo no processo os interm ediários autônomos.

D urante todo o m ilênio que estam os analisando, as cidades-estado, os bis­pados autônom os, os principados diminutos e outros m icro-estados governaram de m aneira relativam ente direta. O s agentes, que eram os responsáveis im ediatos junto à coroa e serviam ao bel-prazer dos m onarcas, cobravam impostos, adm inistravam tribunais, zelavam pela propriedade da coroa e mantinham contato diário com as com unidades locais que estavam sob a ju risd ição da coroa. C ontudo, os estados maiores optaram invariavelm ente por algum a form a de governo indireto, cooptando

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OS ESTADOS E SEUS CIDADÃOS

os detentores de poder locais e ratificando-lhes os privilégios sem incorporá-los diretam ente ao aparelho do estado.

Antes do século XVII, todo grande estado europeu governava seus súditos por m eio de poderosos in te rm ed iário s que d esfru tav am de e x p ress iv a au tonom ia, obstru íam as ex igências do estado que não se coadunavam com seus p róprios interesses e tiravam seus próprios lucros do exercício delegado do poder do estado.

i E sses in term ediários m uitas vezes eram m em bros priv ileg iados de populações subordinadas e fizeram carreira m ediante a garantia aos governantes de tributo e aquiescência dessas populações. Na Europa do Sudeste especialm ente, a presença de m ú ltip las p o p u laç õ es m escladas p o r sécu lo s de c o n q u is ta e de c o m érc io m editerrân ico co n g reg o u -se às form as carac te rís tica s do governo m uçulm ano através de subordinados sem i-autônom os e produziu um a extensa zona de governo indireto cujos vestígios rem anescem até ho je na heterogeneidade cultural da região e em suas lutas perm anen tes em prol dos d ireitos das m inorias. E n tre os in te r­m ediários mais im portantes figuravam o c lero , os senhores de terras, as oligarquias urbanas e os guerreiros profissionais independentes, em proporções que variavam ao longo do continuam das regiões que fizeram grande inversão de capital às regiões que ap licaram in te n sa co erção . A c e n tra lid a d e desses v á rio s in te rm ed iá r io s identificou sistem as alternativos de governo indireto.

Q ualquer sistem a d e governo in d ire to im pôs sérios lim ites ao volum e de 1 recursos que os governantes podiam ex tra ir da econom ia am biente. Além desse limite, os interm ediários dem onstraram interesse em im pedir a extração, ou m esm o em unir-se à resistência dos cidadãos com uns contra as exigências do estado. No entanto, nas m esmas circunstâncias, os governantes revelaram interesse em m inar os poderes autônom os d os interm ediários e a o m esm o tem po coligar-se com os principais segm entos da população. A m edida que a guerraex ig iu m aiores recursos, en tre e les sobretudo m ão-de-obra, e que a am eaça de c o n q u is ta pe lo s e s ta d o s ' m aiores passou a se to rnar cada vez mais séria, os governantes, em número cada vez maior, deixaram de lado, suprim iram ou cooptaram os antigos interm ediários e procuraram diretam ente as comunidades e fam ílias a fim de extorquir os meios de guerra. Portanto , os exérc ito s nacionais perm anentes, os estados nacionais e o governo direto orig inaram -se um do outro.

Antes dessa época, o grau de autonom ia de que desfrutavam os detentores de poder variou consideravelm ente de um estado para o outro; após a sua fase inicial de conqu ista e adm in istração militar, o Im pério O tom ano instalou duas form as sucessivas de governo nos Bálcãs, a segunda até m ais indireta que a primeira. A té o século XVII, os sultões extraíram tributos de seus estados vassalos, m as, dentro de seus próprios dom ínios, dividiram partes substanciais de suas terras e m tim ares,

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concessões asseguradas aos guerreiros enquanto continuassem servindo nas forças arm adas. O s tim arlis (detentores da concessão) extraíram da terra os seus próprios recu rso s , co b raram im postos para o su ltão , d irig iram a ad m in istração civil e controlaram os servos cristãos, mas não tiveram o direito de alienar a terra ou de transm iti-la aos filhos. Todavia, as guerras dos séculos XVI e XVII m ataram muitos tim arlis , e a ex igência de co b rar im postos em volum e cada vez m aior a fim de a tender à p rá tica cada vez m ais cara da guerra tornou as concessões m enos atraentes aos guerreiros. O s sultões voltaram as suas vistas para os arrendatários de impostos, que usaram as vantagens obtidas para converter em sua propriedade as terras que tributavam . D iante desse fato, outros grupos pediram e receberam o d ireito de ad­quirir e possuir terras que pagassem impostos; os chiftliks, terras privadas, subs­tituíram os tim ares (R oider 1987; 133-34).

D esse m odo, os otom anos inadvertidam ente instalaram um sistem a clássico de governo indireto. Esse sistem a, mais tarde, voltou-se contra os súditos e os go­vernantes, em virtude do poder que colocou nas m ãos de guerreiros sem i-indepen- dentes. N a Paz de Sistova entre o império otom ano e o austríaco (1791), por exemplo,

os jan ízaros e as unidades m ilitares irregulares [na Sérvia] se viram desem pregados. Assim , a tacaram e saquearam a população. Bandos desses hom ens capturaram aldeias e suas terras e converteram a p ropriedade em herdades próprias. O u tro s se juntaram a avans rebeldes ou o rganizações de bandidos e pilharam indistintam ente o s m uçulm anos pacíficos e os cristãos.

(Jelavich & Jelavich 1977: 27.)

A autonom ia e rapina dos janízaros acabou por obstruir de form a tão séria o governo o tom ano que, em 1826, os soldados do sultão, a seu com ando, juntaram - se às m ultidões de Constantinopla para assassinar os rem anescentes desse corpo de tropa. O s g ran d es riscos do governo ind ire to eram não só o saque fe ito pelos interm ediários, que suscitava a oposição a esses por parte da população em geral, m as tam bém a resistência da parte dos interm ediários, que estim ulava a recalci- trância de regiões inteiras ao papel nacional.

N o en tan to , no m ais das vezes, os d irigen tes locais governaram de form a relativam ente estável e com praram uma espécie de proteção para a população loca! m ediante o pagam ento tem pestivo de tributo ao estado otom ano. N esse ínterim , na Prússia os Junkers foram ao m esm o tempo donos de suas grandes herdades, juizes, com andantes m ilitares e porta-vozes da coroa, enquanto que na Inglaterra a pequena ’ nobreza, a grande nobreza e o c lero dividiram o trabalho de adm inistração civil fora da capital. Em circunstâncias favoráveis, os interm ediários dotados assim de pode­res atenuaram os efeitos d a expansão do estado sobre a organização social e a ri­

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queza de seus súditos. A natureza de sua interm ediação diferiu consideravelm ente entre dois tipos de regiões: as que dispunham de uma nobreza nativa e as dom inadas peios alienígenas. Onde a nobreza com partilhava com o cam pesinato a religião, a língua e a tradição (com o na Áustria e na Boêm ia), houve algum a possibilidade de um a solidariedade regional contra as exigências da coroa. Onde os nobres eram estrangeiros (como na porção européia do Im pério O tom ano em grande parte de sua história), os chefes de aldeia e os anciãos tribais freqüentem ente serviram de ligação entre os c idadãos locais e as autoridades nacionais. Em tais reg iões, o colapso do império m anteve os cam poneses, mercadores e profissionais em contato direto com o estado (B erend & Ránki 1977: 29-36).

Fossem nativos ou alienígenas, os interm ediários habitualm ente agiram com o tiranos em suas zonas próprias de controle. Quando o sistem a chiftlyk substituiu os tim ars no território otom ano, até o recurso de apelar a tribunais e funcionários m u­çulm anos desapareceu, os proprietários de terra absenteístas muitas vezes fizeram pressões m uito mais severas sobre seus cam poneses do que seus antecessores m i­litares (R oider 1987: 134). Quando o poder central declinou - com o ocorreu de m odo geral no decurso do século XIX — os proprietários de terras adquiriram um contro le crescente sobre as questões locais. N a Bósnia e na Sérvia, no século XIX, os senhores de terra m uçulm anos acabaram por transform ar os seus arrendatários cristãos em servos (D onia 1981: 4-5). Em tais circunstâncias, o banditism o cresceu desm edidam ente nos Bálcãs. Em conseqüência da exploração pelos interm ediários, um a aliança com o rei distante ou com seus agentes pareceu m uitas vezes um a alter­nativa atraente à im inente exploração; os aldeãos apelaram, então, aos agentes reais, apresentaram suas dem andas contra os senhores de terra nos tribunais reais e sauda­ram com alegria a redução dos pri vilégios urbanos. A curto prazo, m uitas vezes g a ­nharam com essas escolhas. Mas, a longo prazo, a destruição das barreiras inter­m ediárias tornou-os m ais vulneráveis à próx im a etapa de exigências do estado geradas pela g n e""

O estabelecim ento de exércitos perm anentes recrutados entre a população nacional propicion um forte incentivo ao govem o direto. Em bora, durante todo o século XVIII, continuassem a existir em alguns exércitos os soldados alugados, os governantes de regiões de coerção capitalizada - sobretudo a França, a Prússia e a In g la te rra -p assa ram a evitar, durante o século XVII, o engajam ento indiscrim inado de exércitos m ercenários. Os mercenários apresentavam m uitas desvantagens: não eram confiáveis quando mal pagos, recorriam ao saque e à pilhagem quando não eram vigiados de perto, causavam distúrbios dissem inados na hora da desm obiliza­ção e custavam m uito caro. O esforço de m anutenção de exércitos em m assa em época de paz, com o aconteceu com Frederico Guilherm e da Prússia no séculp XVII,

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sobrepujou a capacidade da m aioria dos estados de tributar as rendas essenciais, sobretudo diante da concorrência dos detentores de poder regionais. Tais circuns­tâncias encorajaram os governantes a instituir adm inistrações m ilitares dom ésticas perm anentes e em seguida a recrutar, cooptar e influenciar. Essas etapas deixaram de lado os interm ediários e abriram cam inho à passagem do governo indireto ao direto.

O rec ru tam en to d o m és tico de g ran d es e x é rc ito s p e rm an en te s red u ziu grandem ente os custos. Enquanto os m ercenários desm obilizados tinham poucas reivindicações legítimas a fazer a alguns estados, os veteranos de um a força nacional tinham muitas, sobretudo na ocorrência de qualquer tipo de incapacidade física a serviço da nação. As famílias dos guerreiros m ortos ou feridos, indistintam ente, adquiriram alguns benefícios, com o, por exem plo, a preferência na venda de fum o e fósforos adm inistrada pelo estado. O acantonam ento de tropas dentro da região envolvia funcionários m ilitares e seus congêneres civis na provisão de alim ento, de m oradia e na m anutenção da ordem pública. A saúde e a educação de todos os homens jovens, que poderiam afetar a sua eficiência militar, acabaram tornando-se obrigações governam entais. A ssim , a reorganização m ilitar introduziu um a cunha, representada pela expansão da atividade do estado, no que havia sido anteriorm ente esferas locais e privadas.

N um a das tentativas mais conscientes de constru ir um poder de estado, os governantes, durante o processo de instalação do governo direto, procuraram m uitas vezes hom ogeneizar as suas populações. D o ponto de vista do governante, um a população lingüística, religiosa e ideologicam ente hom ogênea apresentava o risco de estabelecer um a frente com um contra as exigências reais; mas a hom ogeneização encarecia a política de dividir para reinar. Todavia, a hom ogeneidade apresentava muitas vantagens compensatórias: dentro de um a população hom ogênea, era mais p lausível que os cidadãos com uns se iden tificassem com seus governan tes , a com unicação podia fazer-se com mais eficácia e um a inovação adm inistrativa que funcionava num segm ento provavelm ente funcionaria tam bém em outros. Além disso, era m aior a probabilidade de que aquelas pessoas que tinham consciência de pertencerem a um a origem com um se unissem con tra as am eaças externas. A Espanha, a França e outros grandes estados praticaram periodicam ente a hom oge­neização, oferecendo às m inorias religiosas - sobretudo m uçulm anos e judeus - a opção entre conversão e em igração; em 1492, logo depois de com pletada a con­quista de G ranada, por exem plo, Fernando e Isabel ofereceram aos judeus espa­nhóis essa escolha; Portugal seguiu-lhe o exem plo em 1497. D iante desse fato, os judeus exilados da Ibéria, os sefaradim , estabeleceram um a diáspora com ercial em todas as regiões da Europa, usando as suas conexões vigentes para criar um po­

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deroso sistem a de c réd ito e com unicação a ionga distância que lhes perm itiram institu ir, em vários m om entos dos sécu los subseqüentes, quase -m o n o p ó lio s de pedras preciosas, açúcar, especiarias e fum o (von G reyerz 1989).

A Reform a Protestante propiciou aos governantes dos estados m enores um a esplêndida oportunidade de definir a d istinção e hom ogeneidade da sua nação no tocante aos grandes im périos, sem falar da chance de cooptar o clero e seu aparelho adm inistrativo no serviço dos objetivos reais. A Suécia deu o prim eiro exem plo, c o lo c an d o g ran d es se to re s da a d m in is traç ão p ú b lica nas m ãos dos p a s to re s luteranos. (Os h isto riadores suecos a inda hoje tiram p roveito da longa série de reg is tro s paroqu ianos, rep le tos de in fo rm ação sobre ed u cação e m udanças de residências, que a partir do século XVII esses pastores prepararam fielm ente.) A lém de qualquer influência possível sobre as crenças acerca da legitim idade do estado, um clero participante e um a fé com um ligados.ao soberano se transform aram num poderoso instrum ento de governo.

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E X P A N S Ã O D O E ST A D O , G O V E R N O D IR E T O E N A C IO N A L IS M O

A expansão mais dram ática da atividade não-m ilitar do estado teve inicio na época d a especialização m ilitar, depois de m ais ou m enos 1850. N esse período, que se e sten d e até o passado recen te , a organ ização m ilitar, que e ra um segm ento dom inante e parcialm ente autônom o da estru tura do estado, adotou um a posição mais subordinada, transform ando-se no m aior dos diversos departam entos diferen­ciados con tro lados por um a adm inistração predom inantem ente civ il. (E vidente­mente, e ssa subordinação era m aior na paz que na guerra, era m aior na H olanda que na Espanha.) A nacionalização das forças m ilitares no século anterior já havia im pelido a m aior parte dos estados europeus a negociar com as suas populações o fornecim ento de conscritos, de meios de guerra e de impostos; os im ensos exércitos de c idadãos, com o os das G uerras N apoleôn icas, suscitaram um a invasão sem precedentes das relações sociais diárias por parte do estado predatório.

N o processo de instalação do governo d ireto, os estados europeus passaram do que podem os cham ar repressão reativa para a proativa, sobretudo com relação aos inim igos em potencial fora da elite nacional. A té o século XVIII, os agentes dos estados eu ropeus gastaram pouco tem po ten tan d o an tecipar as re iv ind icações populares ao estado, os m ovim entos rebeldes, a ação coletiva perigosa ou a disse­m inação de novas organizações; os seus espiões, quando os tinham , concentravam - se nos ricos e poderosos. Q uando ocorria um a rebelião ou “sedição”, os governa­dores convocavam a força arm ada o mais depressa que podiam e puniam de m aneira tão visível e am eaçadora quanto era possível im aginar. Reagiam , mas não através de um m onitoram ento perm anente dos subversivos em potencial. Com a instituição do governo direto ocorreu a criação de sistem as de fiscalização e relatórios que to rn aram os adm in istrad o res locais e reg io n a is responsáveis p e la p rev isão e prevenção de m ovim entos que pudessem am eaçar o poder do estado ou o bem -estar de seus principais clientes. A s forças de po líc ia nacionais penetraram as com u­nidades locais (ver Thibon 1987). A polícia crim inal e política generalizou o em ­prego de dossiês, postos de escuta, relatórios rotineiros e levantam entos periódicos de quaisquer pessoas, organizações ou eventos que pudessem perturbar a “ordem pública” . O am plo desarm am ento da população c ivil culm inou no refream ento severo dos militantes e descontentes.

D e form a análoga, os estados europeus com eçaram a m onitorar o conflito industrial e as condições de trabalho, a instalar e regulam entar sistem as nacionais de educação, a organizar a ajuda aos pobres e incapacitados, a constru ir e m anter linhas de com unicação, a im por tarifas em benefício das indústrias dom ésticas e dos m ilhares de outras a tiv idades que no m om ento os europeus consideravam

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atributgs do poder do estado. A esfera de ação do estado am pliou-se além de seu núcleo militar, e seus cidadãos passaram a exigir dele um a gam a m uito m aior de proteção, aplicação de justiça, produção e distribuição. Q uando estenderam seus dom ínios muito além da m era aprovação de impostos, as legislaturas nacionais con­verteram -se nos alvos das reivindicações por parte de grupos bem organizados cujos interesses o estado afetou ou poderia afetar. O governo direto e a política nacional de m assa se desenvolveram juntos e se fortaleceragi entre si fortem ente.

À medida que o governo direto se expandia por toda a Europa, o bem-estar, a cultura e as rotinas diárias dos europeus com uns passaram a depender com o nunca do estado em que por acaso residiam. Internamente, os estados forcejaram por im por línguas nacionais, sistem as educacionais nacionais, serviço m ilitar nacional e m uitas o u tras coisas. E x ternam ente , passaram a con tro lar os m ovim entos através das fronteiras, a usar as tarifas e taxas alfandegárias com o instrum entos de po lítica econôm ica e a tratar os estrangeiros com o espécies distintas de pessoas m erecedoras de direitos lim itados e de estrita vigilância. Quando os estados investiram tanto na guerra e nos serviços públicos quanto na infra-estrutura econôm ica, suas econom ias passaram a apresentar características distintivas, que mais um a vez diferenciavam as experiências de vida em estados adjacentes.

N esse aspecto, a vida hom ogeneizou-se dentro dos estados e heterogeneizou- se entre os estados. O s sím bolos nacionais se cristalizaram, as línguas nacionais se padronizaram , os m ercados nacionais de trabalho se organizaram . A propria guerra tornou-se uma experiência hom ogeneizadora, à m edida que os soldados e m arinhei­ros representavam toda a nação e a população civil sofria privações com uns e a ssu ­m ia responsabilidades com uns. Entre outras conseqüências, as características d e ­m ográficas passaram a assem elhar-se dentro do mesmo estado e a diferir cada vez m ais entre os estados (W atkins 1989).

Os últim os estágios de form ação do estado europeu produziram ambos os fenôm enos díspares que agrupam os sob o rótulo de “nacionalism o” . O vocábulo d iz respeito à m obilização de populações que não têm estado próprio em torno de um a p retensão a independência po lítica ; fa lam os assim de nacionalism o pales- tinense , arm ênio, ga lês ou franco-canadense. Infelizm ente, tam bém se re fere à m obilização da população de um estado j á existente em torno d e um a forte iden­tificação com esse estado; assim, na Guerra das M alvinas/Falkland de 1982, falam os do conflito entre o nacionalism o argentino e o nacionalism o inglês. Nacionalism o no prim eiro sentido aparece em toda a história européia, quando e onde quer que governantes de uma determ inada religião ou língua conquistaram povos de ou tra religião ou língua. O nacionalism o no sentido de um com prom isso acentuado com a estratégia internacional de estado raram ente apareceu antes do século XIX, e nessa

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época surg iu e sp ec ia lm en te no calo r da g uerra . Tanto a h o m ogeneização da po p u lação quan to a im p osição do g o v e rn o d ireto en co ra ja ram essa seg u n d a variedade de nacionalism o.

Am bos os nacionalism os se m ultiplicaram durante o século XIX, de m odo que talvez fosse m elhor inventar um termo diferente para designar os seus equivalentes anteriores a 1800. Q uando as regiões de soberania fragm entada, com o a A lem anha e a Itália, se consolidaram em estados nacionais de vulto e todo o mapa da Çuropa se cristalizou em 25 ou 30 territórios separados entre si, os dois nacionalism os incitaram -se um ao outro. Os grandes m ovim entos de conquista caracteristicam ente deram origem a ambos os nacionalismos, quando os cidadãos de estados já ex is­tentes viram a sua independência am eaçada e membros de populações sem estado mas ligadas sentiram as possibilidades de extinção ou de nova autonom ia. Q uando N apoleão e os franceses se estenderam por toda a Europa, o nacionalism o de estado nacional cresceu do lado francês e do lado dos estados que a França ameaçava; m ais ou m enos na época em que Napoleão foi derrotado, contudo, as suas adm inistrações im periais haviam criado as bases de novos nacionalism os de am bos os tipos — evidentem ente, russo, prussiano e inglês, m as tam bém polonês, alem ão e italiano — em grande parte da Europa.

Durante o século XX, os dois tipos de nacionalism o se haviam entrelaçado estreitam ente, com um nacionalismo provocando o outro: a tentativa dos governan­tes de aliciar os seus súditos para a causa nacional gera resistência da parte das m i­norias inassim iladas, e a reivindicação de autonom ia política por parte das m inorias não-representadas favorece o comprom isso com o estado já existente por parte d a ­queles que se beneficiam bastante de sua existência. Após a Segunda Guerra M un­dial, quando os poderes descolonizadores com eçaram a m apear o resto do m undo em estados circunscritos, reconhecidos e separados entre si, o vínculo entre os dois nacionalism os se estreitou mais ainda, porque o atendim ento à pretensão de um povo relativam ente distinto a seu próprio estado im plicava a rejeição de pelo m enos uma reivindicação de outro povo a esse estado; enquanto a porta se fecha, m ais pessoas tentam escapar por ela. Ao m esmo tem po, através de um pacto internacional implícito, as fronteiras dos estados existentes se tornaram menos sujeitas a alteração por guerra ou d iplom acia. M ais e mais a única m aneira de os nacionalism os de m inoria alcançarem os seus objetivos é através da subdivisão dos estados existentes. Em anos recentes, tais estados heterogêneos, com o o Líbano e a União Soviética, sentiram pungentem ente a pressão em favor d a subdivisão. Sob essa pressão, a União Soviética explodiu.

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OS ESTADOS E SEUS CIDADÃOS

E N C A R G O S N Ã O -P L A N E J A D O S

A luta pelos m eios de guerra produziu estruturas de estado que ninguém havia planejado criar, nem m esm o particularm ente desejado. C om o nenhum governante ou coligação d irigente tinha poder absolu to e com o as classes estranhas à coligação dirigente sempre detinham controle diário sobre um a parcela expressiva dos recursos que os governantes extraíam para a guerra, nenhum estado conseguiu fugir à cria­ção de alguns encargos organizacionais que os governantes teriam preferido evitar. Um segundo processo paralelo tam bém gerou para o estado encargos não-planejados: enquanto criavam organizações ou para fazer guerra ou para extrair os recursos de guerra da sua população - não apenas exércitos e m arinhas mas tam bém escritórios de im postos, serv iços alfandegários, tesouros, adm inistrações regionais e forças arm adas para desenvolver o seu trabalho entre a população civil - os governantes descobriram que as p róprias o rg an izações desenvolveram in teresses, d ire ito s , em olum en tos, necessid ad es e dem an d as q u e exigiam a tenção p o r p a r te de les próprios. Falando de B randenburgo-Prússia, H a n s’R osenberg diz que a burocracia

adquiriu um esprit de corps e desenvolveu um a força form idável suficiente para rem o d e la r o s istem a do governo à sua própria im agem . R estringiu a au toridade autocrática do m onarca. D eixou de ser responsável perante o in teresse dinástico. C onseguiu o co n tro la d a adm in is tra ­ção central e da ação po lítica pública.

(R osenberg 1958: v íi-v iii.)

D a m esm a m aneira, as burocracias desenvolveram por toda a Europa os seus p ró ­prios interesses e bases de poder.

A reação aos novos interesses deu origem a mais organização: lugares ade­quados para veteranos militares, ordens de nobreza para funcionários do estado , escolas de treinam ento, tribunais e advogados que ju lgam privilégios oficiais, for­necedores de alim ento, de m oradia e de outras necessidades para os agentes do es­tado. A partir do século XVI, m uitos estados em preenderam a própria produção d a ­queles materiais decisivos para a prática da guerra ou para a arrecadação de receita; num a época ou noutra, m uitos estados fabricaram armas, pólvora, sal, produtos de fum o e fósforos para um a ou outra finalidade.

U m terceiro processo também agregou novos encargos ao estado. As c lasses que estavam fora d o governo acharam que podiam transform ar aquelas instituições que na origem tinham um a esfera pequena de atividades em soluções de problem as que lhes interessavam seriam ente, m esm o quando esses problem as tinham pouco in teresse para os funcionários do estado. N o intuito d e estabelecer as co ligações

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necessárias para o bom funcionam ento de seu trabalho, os funcionários tiveram de aceitar a am pliação das instituições. Os tribunais originalm ente concordaram em fazer cum prir o m andado real segundo o qual as arm as e os im postos deviam ser os veículos para o acerto de d isputas privadas, que os regim entos do exército deviam converter-se em locais adequados para abrigar os filhos incom petentes da nobreza, que os cartó rios de reg istro criados para receber taxas em troca de certidão de docum entos deviam ser os locais de negociação das questões de herança.

A história da intervenção do estado no abastecim ento de alim entos ilustra de que m odo três processos criaram encargos inesperados para o estado. D e vez que o abastecim ento urbano de alim entos continuou sendo um negócio arriscado durante séculos, os funcionários m unicipais é que tiveram a principal responsabilidade de fiscalizar os m ercados, de procurar ofertas extras em tempos de escassez e garantir que os pobres conseguissem o suficiente para m antê-los vivos. A s autoridades de Palerm o, po r exem plo, enfrentaram um problem a particularm ente sério porque os nobres nativos desdenharam o comércio, que perm aneceu em grande m edida nas m ãos dos com erciantes estrangeiros. Durante as am eaças de fom e do século XV II,

os cidadãos de-Palerm o tinham de portar cartões de identidade a fim de exclu ir os estrangei­ros das filas de pão. A queles que tinham processos jud ic ia is em Palerm o recebiam perm issão especial para entrar na cidade, mas som ente se trouxessem o seu próprio a lim ento; todos os dem ais estavam sujeitos a serem excluídos m ediante um a rígida v ig ilância e fiscalização no portão da cidade. A fabricação de massas doces a lgum as vezes era pro ib ida sem exceção, ou só era vendido pão velho para d im inu ir o consum o. U m a polícia especial dev ia descobrir os estoques de trigo escondidos no cam po, e para esse ofíc io eram preferidos os espanhóis, pois os s icilianos tinham am igos dem ais a favorecer e inim igos a prejudicar.

(M ack Sm ith 1968a: 221.)

E m b o ra se a p lic assem ao s c id ad ão s , e ssa s re g u la m e n ta ç õ e s im p u n h am às autoridades onerosos encargos com relação ao seu cum prim ento. Q uando não cum ­priam as suas obrigações, os funcionários m unicipais enfrentavam a possibilidade de rebeliões com base em coligações de seus próprios inim igos com os pobres urbanos. N o conjunto, as rebeliões não ocorreram onde as pessoas sentiam mais fom e, m as onde o povo via que os funcionários deixavam de ap licar os controles- padrão, toleravam os aproveitadores ou, o que e ra pior, autorizavam o en vio a outras praças do precioso grão local.

As cidades da m aior parte da Europa adotaram regras elaboradas que proibiam as com pras de grão por a tacado fora do m ercado público, a recusa a vender no m ercado o grão arm azenado no local, e fixaram um preço para o pão que estava totalm ente fora do preço corrente do comércio de grãos. Os estados que constituíram

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exércitos extensos, quadros adm inistrativos e cidades capital, por isso m esm o, m ultiplicaram o núm ero de pessoas que não produziam seu próprio alim ento, e aum entaram a dem anda de grãos fora dos m ercados regionais comuns. A ssim , os funcionários regionais e nacionais do estado gastaram grande parte de seu tem po em assegurar e regulam entar o abastecim ento de alimentos.

Sendo devedores dos proprietários de terras que não aceitavam com bons o lhos a in te rfe rên c ia do estado em suas operações, os estados eu ropeus c o n ­centraram os seus controles, não na produção, mas na distribuição. Alguns estados com o a Prússia e a R ússia, q u e cederam poderes enormes aos proprietários ru rais e ratificaram a dom inação dos cam poneses por parte desses senhores de terras em troca do fornecim ento pelos nobres de serviço m ilitar e adm inistrativo, com isso afetaram profundam ente o caráter da agricultura, m as apenas de form a indireta. A redistribuição das terras da igreja por parte do estado, com o na França, na Itá lia e na Espanha, prejudicou consideravelm ente a agricultura, mas não levou os estados a supervisionar a produção como tal. Som ente no século XX, quando alguns regim es socialistas assum iram a produção ag ríco la e a m aioria dos regim es cap italistas in terv ieram na p ro d u ção através da m anipu lação do créd ito , dos preços e dos m ercados, os estados se envolveram intensam ente nessa m eta de abastecim ento de alim entos. Com exceção dos racionam entos em tem po de guerra e das proibições ocasionais m otivadas por program as fiscais ou políticos, os estados tam bém se m antiveram afastados do consumo. N o entanto, no plano da distribuição, todos os estados europeus acabaram envolvendo-se seriam ente com a alimentação.

Seguindo decididam ente etapas diferentes em partes diferentes da E uropa, os séculos XVI a XIX assistiram à expansão in terdependente dos m ercados in te r­nacionais, à a scensão do atacadista de alim entos e ao aum ento do nú m ero de assalariados que dependiam do m ercado de gêneros alim entícios. Desse m odo, os adm inistradores dos estados mantiveram em equilíbrio as dem andas dos fazendei­ros, dos com erciantes de alimentos, dos funcionários m unicipais, de seus próprios dependentes e dos pobres urbanos - todos os quais causaram o infortúnio do estado quando este prejudicou os seus interesses particulares, O estado e os funcionários m unicipais desenvolveram a teoria e a p rá tica da polícia, nas quais a detenção e a prisão de crim inosos tinham uma im portância menor. Antes da proliferação, no sé­culo XIX, de forças de polícia profissionais com o as conhecem os hoje, o term o P o ­lícia referia-se à adm inistração pública, sobretudo no plano local; a regularização do abastecim ento de alim entos era o seu com ponente m ais importante. O grande tratado de N icolas de la M are, Traité de la Police, publicado pela prim eira vez em 1705, e n g lo b a e s sa con cep ção dos p o d eres de p o líc ia do estad o am pla m as centralizada no alim ento.

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N a verdade, os tratam entos do abastecim ento de alim ento por parte do estado variaram com a natureza do estado e de suas classes dom inantes. Quando construiu um exército perm anente que era m uito m aior em relação à sua população básica, a Prússia também criou armazéns e sistem as de abastecim ento para o exército, bem com o incentivos para que os grãos fluíssem para as províncias onde o exérc ito estava concentrado; esse sistema, com o quase tudo o mais no estado prussiano, dependia da cooperação dos proprietários de terra e da sujeição do cam pesinato. A pesar da legislação nacional interm itente sobre o assunto, a Inglaterra geralm ente S deixou o controle prático do abastecim ento nas mãos de seus m agistrados locais e som ente interveio ativam ente no em barque de grãos para fora ou para dentro do : país inteiro; a revogação das Leis do M ilho em 1846 m arcou o final do longo período em que o estado restringiu a im portação de grãos quando os preços não eram m uito altos, portanto o período em que o estado protegeu os proprietários de terra cultivadores de grãos e seus m eeiros contra a concorrência estrangeira. N a E spanha, o esforço adm inistrativo para alim entar M adrid toda cercada de terras dim inuiu aoferta de alim entos em grande parte de C aste lae provavelm ente retardou o desenvolvim ento de m ercados de grande escala em toda a Pen ínsu la Ib érica (R ingrose 1983).

A crescen te ação do estado suscitou um a grande expansão por p a rte do aparelho político nacional devotado à regularização da circulação de alim entos, m esm o quando o objetivo confessado dessa política era “ libertar” o com ércio de grãos. Essa política, adotada crescentem ente nos séculos XVIII e XIX, consistia essencialm ente em fazer valer o d ireito dos grandes com erciantes de em b arca r a lim en to s para aqu eles locais onde poderiam a lcan çar p reço s m elh o res . A s m unicipalidades, pressionadas pela legislação do estado, acabaram elim inando os antigos controles. A longo prazo, a produtividade agrícola cresceu e a distribuição m elhorou o suficiente para reduzir a vulnerabilidade das cidades, dos exércitos e dos pobres à escassez de alimentos. M as, ao longo do processo, os estados criaram quadros de pessoal especializados em alim entos, no intuito de vigiar e in terv ir para garantir o fluxo de suprim ento para aqueles cuja ação o estado apreciava ou tem ia. Indiretam ente, a busca do poder m ilitar levou à intervenção nos meios de subsis­tência. Do mesmo m odo, tentativas de adquirir homens, uniform es, armas, a lo ja­m entos e, acima de tudo, dinheiro para sustentar a atividade m ilitar impeliu os fun ­cionários do estado a criar estruturas administrativas que eram obrigados a fiscalizar e conservar.

As form as de represen tação de m assa que os governantes eu ropeus negociaram com seus súditos-agora-cidadãos, durante o século XIX, envolveram os estados em arenas totalmente novas de atividade, sobretudo com referência à

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produção e à d istribu ição . T íp ico s p rogram as p o lítico s b u rgueses - e le ições, parlam entos, am plo acesso aos cargos, d ireitos c iv is - to rn aram -se realidade. Q uando os c idadãos adquiriram direitos legítim os sobre o estado escudados por eleições parlam entares e legislação parlamentar, os m ais bem organizados entre eles exigiram que o estado agisse no cam po do em prego , do com ércio exterior, da educação e finalm ente de m uitas outras coisas. N as relações cap ital-trabalho os estados in te rv ie ram através d a d e fin ição das g rev es e s in d ica to s traba lh is tas adm issíveis, do controle de am bos e da negociação ou im posição de acordos nos conflitos. N o conjunto , os estados que se industrializaram tarde dedicaram um a parte m aior de seu aparelho governam ental - bancos, tribunais e adm inistrações públicas - à prom oção da indústria do que aqueles que saíram à frente (Berend & Ránki 1982: 59-72).

A T abela 4.1 m ostra o quanto m udaram os gastos m ilitares. D urante todos esses anos, o quadro de pessoal do estado norueguês tam bém se expandiu: em 1875, o governo central em pregava cerca de doze mil civis, mais ou m enos 2% da força de trabalho; em 1920, 54 mil (5% ); em 1970, 157 mil (10% [Flora 1 9 8 3 :1, 228; ver tam bém G ran 1988b: 185]). N a N oruega e outros países da Europa, a adm inistração central, a ju stiça , a intervenção econôm ica e , sobretudo, o s serviços sociais, todos aum entaram em conseqüência de negociação po lítica em torno da proteção, por parte do estado , de seus clientes e cidadãos.

Tabela 4.1 G astos do estado em relação ao PNB na Noruega, 1875-1975 (%).

AnoTotal do governo m ilitar

Administração,justiça

Economia,am biente

Serviçossociais

1875 3,2 1,1 1,0 0,4 0,31900 5,7 1,6 1,2 1,0 1,21925 6,5 0,9 0,7 0,8 1'81950 16,8 3,3 1,4 3,9 7,41975 24,2 3,2 2,3 6,8 9,5

Fonte: Piora 1983: I, 418-19.

O aum ento dos serviços sociais aconteceu em toda a Europa. A Tabela 4.2 cita com o exem plos a Áustria, a França, o Reino Unido, a H olanda e a Alemanha, sim plesm ente porque Peter F lora reuniu sobre eles dados com paráveis. Nos estados que adotaram econom ias planejadas pelo poder central, com o a U nião Soviética, a proporção d a renda nacional devotada aos serviços sociais foi certam ente muito maior. Em todos o s lugares, particularm ente após a Segunda G uerra M undial, o estado passou a intervir na saúde, na educação, na vida e nas finanças da família.

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Tabela 4.2 Gastos do estado em serviços sociais em relação ao PNB, 1900-1975 (%).

Ano* Á ustria França Reino Unido H olanda D inam arca “Alem anha”

Í900 0,7 1,01920 2,0 2,8 4,1 3,2 2,7 7,51940 2,3 5,1 5,3 4 ,4 4,8 11,1I960 7,3 8,9 9,6 8,7 7,6 14,91975 10,8 9,2 15,0 17,2 24,6 20,8

* Dados aproxim ados.F om e: Flora 1983: l, 348-49.

C om o sugerem os próprios núm eros d isponíveis, todas essas intervenções geraram tantos m onitoram entos e relatórios que o período que vai de cerca de 1870 até 1914 tornou-se a idade de ouro da estatística, patrocinada pelo estado, sobre greves, em prego, produção econôm ica e m uito m ais. Assim , os adm inistradores do estado to rn aram -se resp o n sáv eis pela eco n o m ia nacional e pe la cond ição dos trabalhadores num grau inim aginável um século atrás. C onquanto a extensão e a sinc ro n ização dessas m udanças tenham variad o v io len tam en te de um a R ússia resistente pára um a G rã-B retanha volátil, quase todos os estados no século XIX cam inharam na m esm a direção.

G O V E R N O M ILIT A R = G O V E R N O C IV IL

Os processos de transform ação do estado que estam os estudando produziram um resultado surpreendente: o controle civil do governo. O resultado é surpreen­dente porque a expansão do poder m ilitar im pulsionou os processos de form ação do estado. E squem aticam en te , a transform ação ocorreu nos quatro estágios do p a trim o n ia lism o , co rre tag em , nacionalização e espec ia lização com que agora estam os fam iliarizados: prim eiro, um período em que os principais detentores do poder eram m ilitares da ativa, os quais recrutavam e com andavam os seus próprios exércitos e m arinhas; segundo, o apogeu dos em presários m ilitares e dos soldados m ercenários que se alugavam aos detentores civis do poder; terceiro, a incorporação da estrutura m ilitar ao estado com a criação de exércitos perm anentes; e, finalm ente, a m udança para o recrutam ento em massa, as reservas organizadas e os exércitos de voluntários bem pagos recrutados essencialm ente entre os próprios cidadãos do estado, o que por seu tu m o gerou sistemas de benefícios para veteranos, fiscalização pelo legislativo e direitos dos soldados virtuais e antigos à representação política.

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Percebemos a transição do patrim onialism o para a corretagem na ascensão dos condottierí italianos. A mudança da corretagem para a nacionalização com eça com a Guerra de Trinta Anos, que causou o apogeu e autodestruição de grandes em presários m ilitares como W allenstein e Tilly - que, segundo eu sei, não tem qualquer parentesco comigo. Um sinal dessa m udança aparece, em 1713-14, na elim inação dos coronéis prussianos do negócio das roupas, do qual haviam tirado belos lucros (R edlich 1965:11,107). A levée en masse* da França em 1793 e depois dessa data assinala a m udança da nacionalização para a especialização. D epois de 1850, generalizou-se em outros lugares da Europa. M ais ou m enos no final do processo, as burocracias e legislaturas civis contiveram os m ilitares, as obrigações legais de serviço m ilitar estenderam -se com relativa igualdade a todas as classes sociais, a ideologia do profissionalism o m ilitar restringiu a participação de generais e a lm irantes na p o lítica civil, e declinou enorm em ente a possib ilidade de um governo m ilitar direto ou de um golpe de estado.

Depois de 1850, durante a era da especialização, o controle civil do governo acelerou. Em term os absolutos, a atividade militar continuou a crescer em gastos e em importância, m as três tendências refrearam a sua im portância relativa. Prim eiro, lim itado pelas exigências concorrentes da econom ia civ il, o pessoal m ilita r em tem po de paz estabilizou-se em proporção ao total da população, ao passo que outros setores do governo continuaram a expandir-se. Segundo, os gastos em atividades n ão-m ilitares aum entou m ais dep ressa do que o s gastos m ilitares. T erceiro , a produção civil acabou crescendo rapidam ente o suficiente para superar a expansão m ilitar, resultando um declínio nos gastos militares em proporção à renda nacional. A atenção do governo voltou-se cada vez mais para as atividades e gastos não- m ilitares.

N os m esm os estados cu jo s gastos sociais exam inam os an te rio rm en te , o pessoal militar flutuou em relação à população m asculina de 20-44 anos de idade (v e r tabe la 4 .3 ). C om variações im p o rtan tes dev idas a m ortes n a g u e rra e a m obilizações de guerra, nos estados da Europa Ocidental, em 1970, a proporção de soldados geralmente girava em torno de 5% da população m asculina com idade de 20-44. Em 1984, a porcentagem do total da população no serviço m ilitar variou com o segue (Sivard 1988: 43-44):

m enos de 0,5% : Islândia (0,0), Luxem burgo (0,2), Irlanda (0,4), M alta (0,3), Suíça (0,3);

* Em francês no texto, “recrutamento maciço” : o chamamento de todos os homens válidos para a defe­sa do país. (N. do T.)

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Tabela 4.3 Pessoal militar em relação à população m asculina de 20-44 anos de idade, 1850-1970*.

Ano* Áustria França Reino Unido H olanda Dinamarca “A lem anha”

1850 14,5 6,5 4,3 5,4 10,3 4,71875 8,4 7,4 4,5 6,4 6,4 5,91900 6,9 8,8 6,6 3,6 2,8 6,31925 2,5 6,7 4,3 1.3 2,3 1,01950 ? 8,4 7,6 12,7 2,3 ?

1970 4,2 5,8 4,2 5,3 5,3 4,5

* As fronteiras e identidades desses estados variam consideravelmente de acordo com os azares da guerra. Fonte: Flora 1983: I, 251-53.

0,5 a 0,9%: D inam arca (0,6), A lem anha O cidental (0,8), Itália (0,9), H olanda (0,7), N oruega (0,9), Espanha (0,9), R eino U nido (0,6), Polônia (0,9), R om ênia (0,8), Áustria (0,7), Suécia (0,8);

1 ,0 a 1,4%: Bélgica (1,1), França (1,0), Portugal (1 ,0 ) ,Tchecoslováquia (1,3), A lemanha Oriental (1 ,0), Hungria (1,0), URSS (1 ,4), A lbânia (1,4), Finlândia (1,1), Iugoslávia (1,0);

1,5% ou mais: Grécia (2,0), Turquia (1,6), B ulgária (1,6).

Alguns estados essencialm ente desm ilitarizados têm agora menos de 0,5% de sua população em armas, e alguns m ilitarizados registram acima de 1,4%, m as a m aioria dos estados europeus estão situados no meio. Todos esses núm eros - m esm o os das beligerantes Grécia e T u rq u ia -e s tã o m uito abaixo dos 8% de sua população que a Suécia tin h a em armas em seu apogeu até 1710. Além disso, com altas p roporções de suas populações fisicam en te capazes já em a tiv idade e baixas proporções na agricultura, os estados europeus enfrentam agora severas lim itações ao número de soldados adicionais que podem m obilizar em tempo de guerra sem necessidade de grandes reorientações em suas econom ias.

Nesse m eio tem po, as atividades não-m ilitares se estavam expandindo tão depressa que, apesar do grande crescim ento dos orçam entos da maioria dos estados, a parcela destinada aos gastos militares diminuiu. Tom ando os m esmos países de antes, vamos encontrar tendências decrescentes na parcela do orçam ento destinada aos gastos m ilitares m ostrada na tabela 4.4. Em todo estado, a tendência a longo prazo conduziu a um a proporção decrescente dos gastos na atividade militar.

Na verdade, eventualm ente a renda nacional aum entou mais depressa do que os gastos m ilitares. Em 1984, a proporção do Produto N acional Bruto destinada aos gastos m ilitares variou mais ou m enos de acordo com o núm ero de hom ens em armas (Sivard 1988: 43-44):

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Tabela 4 .4 Porcentagem do orçam ento do estado destinada aos gastos militares, 1850-1975.

Ano* Áustria França Reino Unido H olanda Dinam arca “A lem anha”

1850 27,41875 23,2 37,8 34,01900 37,7 74,2 26,4 28,9 22,91925 7,7 27,8 19,1 15,1 14,2 4,01950 20,7 24,0 18,3 15,6 13,51975 4,9 17,9 14,7 11,3 7 ,4 6,4

* Os dados são muito aproximados. Fonte: Flora 1983: I, 355-449.

m enos de 2%: Islândia (0 ,0), Luxem burgo (0,8), Rom ênia (1,4), Áustria (1,2), Finlândia (1 ,5), Irlanda (1,8), M alta (0,9);

de 2 a 3,9%: Bélgica (3,1), D inam arca (2,4), A lem anha O cidental (3,3), Itália (2,7), H olanda (3,2), N oruega (2,9), Portugal (3,5), Espanha (2,4), H ungria (2,2), Polônia (2 ,5), Suécia (3,1), Suíça (2,2), Iugoslávia (3,7);

de 4 a 5,9%: França (4,1), Turquia (4,5), R eino Unido (5,4), B ulgária (4,0). Tchecoslováquia (4,0), A lem anha Oriental (4,9), A lbânia (4,4);

6% ou mais: Grécia (7,2), URSS (11,5).

A igualdade de forças entre os Estados Unidos e a URSS ajudou a criar essa distribuição dos gastos. Em 1984, os Estados U nidos gastavam em atividade m ilitar 6,4% de seu enorm e PNB para equiparar-se aos 11,5% que a U nião Soviética sacava de sua econom ia consideravelm ente menor. N ão obstante, na E uropa a tendência geral e ra de decréscim o: p roporções m enores d a população em arm as, parcelas m enores dos orçam entos do estado destinadas aos m ilitares, porcentagens menores d a renda nacional gastas com so ldados e arm as. E ssas m u d an ças foram um a conseqüência da contenção organizacional dos m ilitares e no final acabaram por fortalecê-la. Em cada passo dado do patrim onialism o à corretagem , da corretagem à nacionalização e da nacionalização à especialização, então, foram criadas novas e significativas barreiras para lim itar o poder autônom o dos m ilitares.

A lguns desvios da seqüência idealizada confirm am a sua lógica. A Espanha e Portugal fugiram do contro le civil do governo m ediante a d renagem de receitas coloniais para um a parcela m aior dos gastos m ilitares, continuando a recrutar os oficiais entre a aristocracia espanhola e os soldados entre as classes m ais pobres e m antendo os oficiais m ilita res com o rep resen tan tes da co ro a nas p rov íncias e colônias (B allbé 1983: 25-36; Sales 1974, 1986). Todos esses fatores m inim izaram o tipo de negociação em torno dos meios de guerra com a população q u e em outros

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locais estabeleceu direitos e restrições. A Espanha e Portugal tam bém podem ter caído na “arm adilha territorial” : a conquista de tão grande núm ero de possessões, com relação aos seus meios de extração, que os custos adm inistrativos acabaram p o r ab so rv er -os lucros do dom ínio imperial (Thom pson & Zuk 1986). A ssim , sob alguns aspectos, a Espanha e Portugal anteciparam a situação de m uitos estados contem porâneos do Terceiro M undo em que os m ilitares detêm o poder.

Por trás da diferenciação entre a organização civil e a militar, e da subordina­ção do m ilitar ao civil, existe um problem a geográfico fundamental. N a m aioria das c ircu n stân c ias , a d istribu ição espacia l da a tiv idade do estado que fav o rece os objetivos m ilitares difere enorm em ente da d istribu ição espacial que p rom ove a produção de rendas. Enquanto um estado estiver operando num território contíguo através de conquista e tributação, a discrepância não deve ser grande; os soldados podem então serv ir de fiscais, adm inistradores e cobradores de impostos. C ontudo, além desse ponto, quatro interesses impelem em direções diferentes: a colocação das forças m ilitares entre os locais prováveis de sua atividade e as suas principais fontes de suprim ento; a distribuição dos funcionários do estado especializados na vigilância e contro le da população civil de um a m aneira que se coadune com a integridade espacial e corresponda à distribuição populacional; a d ivisão eqüitativa das ativ idades de arrecadação de receitas segundo a geografia do com ércio , da riqueza e da renda; e, finalm ente, um a distribuição das atividades resultantes de negociação em torno das receitas que se harmonize com as estruturas espaciais dos parceiros das negociações.

O bviam ente, a geografia resultante da atividade do estado varia de acordo com a sua relação com todas essas quatro forças; as m arinhas se concentram em águas p rofundas den tro dos lim ites m arítim os de um estado, enquanto os serv iços de correio se distribuem em estreita correspondência com o conjunto da população e os departam entos de adm in istração central m antêm -se ligados en tre si. Q uanto m aior for a instituição militar, quanto m aior for a sua orientação para a guerra fora do próprio território do estado e m ais extenso for o aparelho de extração e o controle desenvolvido para sustentá-lo, m aior será a discrepância entre as suas geografias e m aior será a d istância entre a geografia m ilitar ideal e um a que dê às forças arm adas um controle diário substancial sobre a população civil.

A discrepância geográfica estim ula a criação de organizações separadas para cada a tiv idade, inclusive a d iv is ã o /la força a rm ada em exérc ito s e po líc ia . A distribuição das forças policiais chega a aproxim ar-se da geografia da população civil, ao passo que a distribuição das tropas isola-as dos civis e coloca-as onde exige a estratégia internacional. N a verdade, o m odelo francês divide as fo rças de terra em três p a rtes: os so ldados ag ru p ad o s em g u arn içõ es lo ca lizad as seg u n d o a

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Page 30: COERÇÃO, CAPITAL E ESTADOS EUROPEUSrodrigocantu.weebly.com/uploads/2/3/0/7/23070264/tilly_cap4.pdf · 4 OS ESTADOS E SEUS CIDADÃOS DE VESPAS A LOCOMOTIVAS Nos últimos mil anos,

OS ESTADOS E SEUS CIDADÃOS

conveniência adm inistrativa e tática; os gendarm es (que perm anecem sob controle m ilitar e podem ser m obilizados em tem po de guerra) se espalham ao longo das linhas de com unicação e d e setores pouco povoados do territó rio ; e a p o líc ia estacionada nas maiores aglom erações do país. Assim , os soldados patrulham as fron te iras , p ro tegem os lo ca is de poder n ac io n al, in tervém no u ltram ar, m as raram ente tomam parte no controle do crim e ou de conflitos civis.

C om exceção das auto-estradas, os gendarm es se ocupam sobretudo daqueles setores do território que são ocupados, em sua m aior parte, pela propriedade privada e, p o r isso, gastam a m aior parte do tem po em patru lhar as linhas de com unicação e atender a cham ados dos civis. A polícia urbana, ao contrário, ronda os territórios dom inados pelo espaço público e os locais de propriedade valiosa no âmbito desse espaço público; correspondentem ente, gastam a m aior parte do seu trabalho na vigilância e prisão sem a necessidade de cham ado dos civis. Em últim a análise, algum a divisão geográfica desse tipo separa o m ilitar do político e torna-o depen­dente, em term os de sobrevivência, dos civis cujas preocupações com preendem saúde fiscal, efic iência adm inistrativa, ordem púb lica e a observância das negocia­ções políticas bem com o (talvez até em lugar de) eficiência militar. E ssa lógica com ­plexa afetou fortem ente a diferenciação espacial dos estados europeus.

N a verdade, a d iscrepância era m ais do que geográfica. C om o vim os, as pessoas que administram a m etade civil do estado têm poucas opções a não ser a de estabelecer as relações de trabalho com os capitalistas e negociar com o restante da população a cessão de recursos para expandir as atividades do estado. Na busca de receitas e de aquiescência, os funcionários criaram organizações que se distinguiram bastante da instituição militar, e para a m aioria das finalidades se tornaram m ais e mais independentes dela. N a Europa como um todo, esses processos não im pediram o constante crescim ento dos gastos militares ou m esm o que as guerras se tornassem mais destrutivas, mas refrearam o poder m ilitar dom éstico num a extensão que teria espantado um observador europeu de 990 d.C. a 1490.

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