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Trabalho, cidadania e eficiência da regulação eCOEOmiCa: uma comparação Europa/América Latina 12 Jaime Marques-Pereira Introdução A globalização econômica é de modo geral considerada como uma dinâmica irreversível inviabilizando as formas de organização econômica e o papel do Estado que estruturaram nos países desenvolvidos uma sociedade salarial de consumo de massa. A gestão social da economia que sustentava um modelo de desenvolvimento apoiado numa crescente distribuição da riqueza é hoje estigmatizada como um obstáculo à busca de ganhos de competitividade. Não haveria assim outra alternativa a não ser o retorno a uma gestão da economia conforme às suas próprias leis. Toda gestão mais social da economia estaria de qualquer forma condenada pois, por força da concorrência internacional, baixar os custos diretos e indiretos do trabalho seria o único meio de evitar o desemprego e o aumento da dívida social que este acarreta, chegando-se assim à conclusão de que a oposição à via liberal somente anteciparia a crônica da morte anunciada do Estado de Bem-Estar. Em tomo dessa visão da globalização acabam convergindo posições analíticas opostas, isto é, aquelas que sustentam a tese de uma 1 Esse texto desenvolve a idéia dc eficiência da regulação expostos num artigo anlenor "Mercado do trabalho, proteção social c desenvolvimento na hora da globalização Um jogo dc espelhos Europa/Amcrica Latina. Sociedade e Estado, UNB, Brasília”. 2 Professor no Institui des Hautes Eludes de I Amérique Latine (IHEAL), Sorbonnc Nouvelle. Paris.

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Trabalho, cidadania e efic iên cia da regulação

e C O E O m i C a : um a com p aração E u rop a/ A m érica L atin a1 2

J a im e M a rq u e s-P er eira

Introdução

A globalização econômica é de modo geral considerada como uma dinâmica irreversível inviabilizando as formas de organização econômica e o papel do Estado que estruturaram nos países desenvolvidos uma sociedade salarial de consumo de massa. A gestão social da economia que sustentava um modelo de desenvolvimento apoiado numa crescente distribuição da riqueza é hoje estigmatizada como um obstáculo à busca de ganhos de competitividade. Não haveria assim outra alternativa a não ser o retorno a uma gestão da economia conforme às suas próprias leis. Toda gestão mais social da economia estaria de qualquer forma condenada pois, por força da concorrência internacional, baixar os custos diretos e indiretos do trabalho seria o único meio de evitar o desemprego e o aumento da dívida social que este acarreta, chegando-se assim à conclusão de que a oposição à via liberal somente anteciparia a crônica da morte anunciada do Estado de Bem-Estar.

Em tomo dessa visão da globalização acabam convergindo posições analíticas opostas, isto é, aquelas que sustentam a tese de uma

1 Esse texto desenvolve a idéia dc eficiência da regulação expostos num artigo anlenor "Mercado do trabalho, proteção social c desenvolvimento na hora da globalização Um jogo dc espelhos Europa/Amcrica Latina. Sociedade e Estado, UNB, Brasília”.

2 Professor no Institui des Hautes Eludes de I Amérique Latine (IHEAL), Sorbonnc Nouvelle. Paris.

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T r ib i l l io , d i l u l i n i i <• c l i c í ín c U da r c g u U f lo • oo n firo ii*5«

volta ao pleno emprego através da liberalização dos mercados e da redução do Estado, e outras que pregam, ao contrário, a tese do final da era do trabalho diante das condições técnicas e das formas de concorrência que prevalecem doravante e contra as quais os Estados nada poderiam fazer, devendo-se então tratar de preservar a coesão social por meio de um apoio às atividades não lucrativas e de uma desconexão da relação salarial e da proteção social, passando esta a ser concebida como um direito universal a uma renda mínima de cidadania que possa garantir a sobrevivência daqueles que não conseguem integrar a economia dc mercado.

Essas posições repousam, uma tanto quanto a outra sobre umapercepção economicista da globalização. Fazer dela uma dinâmicameramente econômica que impõe-se aos Estados, forçando-os a obedeceiaos anseios dos mercados oculta na verdade o fato dela resultar antes dctudo de decisões de política pública. A diferença de perspectiva ésubstancial em termos de uma prospectiva do trabalho e da proteçãosocial. O que determina a mudança nesse nível não é tanto uma retirada doEstado mas sim, de forma positiva, uma redefinição da escala territorial d.iação econômica de autoridades políticas, isto é, uma transferência decompetências do poder central para instâncias sub ou supranacionais queredelimita a partição entre atividades públicas e privadas, ou seja, entre osdomínios da vida social que constituem ou não um campo de valorizaçãodo capital. As modalidades de produção e de repartição da riqueza vemsendo desta forma radicalmente redefinidas pelos poderes públicos.

*Mas pensar que a gestão da economia poderia tornar-se

completamente independente da gestão da sociedade parece no mínimo ingênuo mesmo que a determinação da primeira sobre a segunda seja com toda evidência mais premente que a relação inversa. As políticas econômica e social não deixam assim mesmo de ser antes de tudo medidas políticas requerendo legitimidade. Que estas sejam hoje concebidas mais em função da opinião dos mercados do que da opinião pública não constitui necessariamente fato irreversível. O ato de governar continua implicando, mesmo no contexto da globalização, conciliar a gestão das populações com a gestão da riqueza que os mercados exigem. Ora, com toda evidência, essa conciliação ainda está bem longe de ser assegurada. A

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Ja im e M arque»-Pereira

credibilidade das políticas econômicas perante a finança global e o mundo empresarial não garante a legitimação que elas precisam também obter por parte de quem não vive de rendas do capital. Restringir a reflexão de caráter normativo em economia à identificação das margens de decisão que definem hoje os mercados financeiros é supor que a norma atual de política econômica e social seria eterna. Ora, não se pode descartar a hipótese que sua legitimação se tome problemática ao ponto de afetar sua credibilidade, levando os operadores financeiros a aceitarem outra norma. Justifica-se nessa perspectiva explorar a hipótese alternativa de uma possível volta a uma forma de coerência entre as gestões da sociedade e da economia que faça de novo da primeira o fundamento da segunda, assim como foi o caso no longo ciclo de crescimento dos “Trinta Gloriosos” nos países desenvolvidos.

A pertinência desta hipótese remete a constatação que a globalização não é uma recomposição territorial apenas dos espaços econômicos mas também dos espaços políticos. Esta última concretiza-se na redefinição dos atributos da soberania dos poderes públicos c das áreas de seu exercício. O déficit de legitimidade, gerado pela precarização da relação salarial, pelo aumento do desemprego, e pela conseqüente vulnerabilidade de partes crescentes das populações, agravada pela privatização da cobertura dos riscos sociais, pode levar a reorientações de política econômica e social. Tal possibilidade já esta claramente debatida no caso da construção européia. A passagem à moeda única representa duas apostas políticas, simetricamente inversas, a respeito dos possíveis cenários de evolução da legitimidade política. Ou a norma atual de política econômica e social verá sua legitimidade aos olhos das populações consolidada - impondo-se a idéia que a flexibilidade dos salários e dos estatutos de emprego é a condição de estabilidade da nova moeda garantindo os ganhos de competitividade dos quais dependeria um crescimento econômico capaz de eliminar o desemprego; ou então, ao contrário, virá a vingar a idéia de que atingir tal meta pressupõe a instituição de um poder europeu recuperando a soberania monetária que os Estados nacionais perderam.

O desenlace dessas apostas será função da arbitragem a que as autoridades políticas terão de proceder entre os interesses capitalistas que

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yU r jb -ilh o . t id a d jiú i e e f ic iê iR Ía «1-a re jju U y à o cc o n ô n iira

impuseram uma norma de alta rentabilidade financeira e os interesses do resto da coletividade a quem esta prejudica ao diminuir as possibilidades de valorizar a única coisa que possuem, isto é, a força de trabalho. Com certeza, a atual conjuntura européia é peculiar pois ela se enraíza numa história política que levou os Estados a repartirem cada vez mais, desde os anos 50, o exercício de sua soberania, mas por isso mesmo, ela revela com mais clareza a imbricação de problemas políticos e econômicos que circunscreve hoje em dia de forma universal a agenda governamental. Em todos os países do mundo, a decisão de política econômica implica em achar a difícil conciliação entre os imperativos da credibilidade monetária e aqueles da legitimidade política. Nesses termos coloca-se hoje na prática de governo o que pode ser uma “boa” política econômica e social, o que levanta do ponto de vista de uma reflexão normativa, o problema de relacionar a eficiência da economia com a governabilidade política.

Para esclarecer como se configura hoje essa interação e como ela pode vir a evoluir, a teoria da regulação (TR) (Boyer, 1990) destaca-se no pensamento econômico institucionalista como um dispositivo conceituai mais particularmente adequado pela formalização que ela produz do quadro de compromissos institucionalizados pelo qual tratou de explicar a estabilização do crescimento econômico dos países desenvolvidos durante os “Trinta Gloriosos”. As pesquisas realizadas sobre esse período levaram a uma modelização da regulação econômica que a define de forma geral como uma interação sistêmica entre cinco campos de jogo de interesses onde se institucionalizam compromissos sociais, isto é, a relação salarial, a concorrência, a moeda, o Estado, e'a inserção internacional. Nesta base, estudos recentes delimitam um quadro de análise da mudança dos determinantes da política econômica ao mostrar que o primeiro campo antes condicionava os demais enquanto, hoje, é o último que passou a ser preponderante.

Ao mostrar que as condições de uso e remuneração do trabalho fixadas pelo fordismo na organização da cadeia de produção, nas convenções de produMvidade e no desenvolvimento das despesas sociais foram a base da adequação entre as dinâmicas de oferta e de demanda que levaram ao crescimento econômico durante uns trinta anos, inferiu-se que os compromissos sociais intitucionalizados na relação salarial e no regime

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M im e M ir(| u ei-I'ere ira

cle proteção social sobredeterminaram o regime monetário dc crédito, conformando conjuntamente com o regime de concorrência oligopolística, uma regulação econômica estabilizadora do regime de acumulação. Tudo indica que devido ao peso das restrições externas que limitam doravante as margens de decisão em matéria de política monetária, a relação salarial tenha perdido o lugar predominante que era seu na época do fordismo. A inserção internacional aparece hoje bem mais determinante das condições de adequação entre oferta e demanda do que a norma do consumo nacional. O processo decisório que organiza nas esferas privada e pública a repartição primária c secundária da riqueza nacional a submete ao objetivo primeiro dos ganhos de competitividade a qualquer custo, o que resultou numa tendência generalizada à estagnação ou diminuição da renda do trabalho, paralelamente a uma desregulamentaçâo do mercado do trabalho e, pelo menos na Europa, a um aumento substancial do desemprego. A internacionalização do sistema produtivo a partir dos anos 70, ao redefinir o lugar do comércio exterior no regime de acumulação, retirou aos Estados-Nações a margem de manobra monetária dc que dispunham antes para sustentar uma política expansionista financiando a progressão do investimento produtivo e do gasto social, validada ex-ante pelo pleno-emprego da população ativa promovido pelo Estado de Bem- Estar. A internacionalização, agora acelerada pela liberalização do comércio e dos mercados financeiros solapou esses fundamentos econômicos da sociedade salarial. A remuneração do trabalho se torna de novo um custo a ser contido na busca de ganhos de competitividade, implicando esta, além do mais, uma reorganização do trabalho e da produção visando aumentar a produtividade sem mais ter de oferecer uma melhor remuneração do trabalho.

A redefinição das relações internacionais a que levou o esgotamento do potencial de crescimento econômico da regulação fordista rompeu a complementaridade funcional que se estabeleceu então entre capitalismo e Estado de Bem-Estar. Impõe-se desta forma a questão de saber em que condições a flexibilidade do trabalho e a austeridade orçamentária, ao se tomaram os principais meios de obtenção dos ganhos de competitividade, podem desenhar uma nova configuração institucional da regulação econômica capaz de promover um modo de desenvolvimento estabilizado.

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T r ib i l l iu , ci«l.«<UnU «• r f i c iê n c u d i r c g u l t f w « c o n ò m lo i516

Argumentaremos aqui, a partir das lições que se pode tirar da experiência latino-americana, analisada em perspectiva comparada com Europa, que o círculo virtuoso entre a economia e a política que caracterizou esse período dos “Trinta Gloriosos” tende a tornar-se hoje vicioso na medida em que o novo regime das relações internacionais vai ditando a gestão da moeda, levando por consequência ao rompimento da coerência das formas institucionais do capitalismo pela evolução que ele imprime à relação salarial e à proteção social. Essa comparação nos leva a formular uma hipótese de cunho normativo mais geral: adaptar a gestão do trabalho c as modalidades da repartição da riqueza às exigências da finança globalizada induz uma forma de regulação econômica que tende a se tornar ineficiente. As mudanças atuais do capitalismo nos países latino- americanos levam ao extremo o caráter agora vicioso da interação entre a ordem política e a ordem econômica que se aglutina na interface da gestão do trabalho c de uma política monetária submetida a finança global, dando lugar a um quadro de regulação econômica particularmente ineficiente, quando não caótico.

Procuraremos mostrar que esta hipótese é pertinente para além do contexto específico da América Latina, identificando nesse intuito o papel das condições políticas na performance econômica do fordismo europeu em oposição daquelas que conformaram uma regulação econômica deficiente na industrialização latino-americana. A efetividade na Europa das normas jurídicas e sociais que-regram o uso do trabalho ao mesmo tempo que elas fixam o conteúdo da cidadania contrapõe-se aos limites postos na América latina à universalização de uma cidadania social. Esses remetem à herança da história colonial na evolução da relação entre as esferas pública c privada, o que fez com que a institucionalização de relação salarial fosse limitada pela informalidade do trabalho. Evidencia- se em seguida que as profundas desestabilizações macroeconômicas que certos países latino-americanos conheceram a partir do princípio dos anos 80 constituem um caso limite dos efeitos perversos de regulações econômicas deficientes decorrentes de formas de organização do mercado do trabalho e da proteção social que não são governadas por uma vontade política de universalização da cidadania assentada na garantia pública de cobertura dos riscos sociais. Conclui-se que a melhor resolução da

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.1JÚ 11«- .M.ir«|iHT.-|’<'r* ir.i 3*7

vulnerabilidade financeira externa atual passa por uma construção política da integração regional que permita a adoção dc políticas monetárias compatíveis com a institucionalização de uma relação salarial dando uma sustentação econômica à efetivação de uma cidadania definida não apenas por direitos cívicos e políticos mas também sociais.

i R elação salarial e regu lação econ ôm ica no fordisino eu rop eu

Em termos metodológicos, problcmatizar a eficiência econômica nos termos acima expostos implica em não reduzi-la a um simples equilíbrio dos mercados, na obtenção do qual o Estado ou as instituições apenas constituiriam meros paliativos às suas possíveis falhas. Pensar a eficiência econômica sem fazer abstração da governabilidade política leva a defini-la pela complementaridade entre uma economia privada e uma economia pública cujas áreas respectivas são delimitadas por decisões políticas. A reflexão de caráter normativo atual tem, nesse sentido, de fundamentar-se numa análise positiva da destruição e invenção social das instituições regulando economias agora abertas e procurar nesta base desenhar o campo dos cenários possíveis inscritos nesse processo de destruição criadora. Cabe ressaltar que este não se limita às invenções técnicas/organizacionais. A mutação ensejada pela dita globalização não se restringe a maturação da numerização informática e as inovações da gestão da produção que esta autoriza. As condições da eficiência econômica não apenas se redefinem no plano das forças produtivas mas também naquele dos seus fundamentos societais pela nova dialética de interdependência e autonomia do desenvolvimento do Estado e do capitalismo que configura a recomposição dos territórios políticos e econômicos.

Para pensar quais podem ser as possíveis normas de política pública nesse novo contexto, vale mais partir da história desta dialética que as ciências sociais puseram à luz (de Max Weber a Norbert Elias e Femand Braudel) do que apoiar-se no individualismo metodológico que impede o pensamento econômico ortodoxo considerar a dimensão também

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Trabalho, cidadania e cficivnci* da regulaçl« econômica*2A

política do capitalismo. A relativização que este vêm operando ultimamente do paradigma da eficiência do mercado o conduz assim a examinar as variáveis institucionais ou sociais como formas não-mercantis de expressão dos interesses individuais. A explicação que Polanyi havia desenvolvido do impasse da auto-regulação da economia de mercado, já assinalava então os limites do pensamento econômico, inclusive marxista, decorrentes de uma visão essencialmente funcionalista e economicista da dimensão política do capitalismo. Polanyi, como se sabe, demonstrou a necessidade do Estado resultando do próprio desenvolvimento das relações mercantis ; não que o Estado apareça para se substituir ao mercado mas ao contrário para assegurar sua dominação como modo de organização da vida econômica desde que somente uma vontade política pode instituir mercadorias fictícias, tais como a moeda, a terra c o trabalho. Ao evidenciar essa relação estrutural entre a dimensões política e económica do capitalismo, Polanyi explicava como foi o seu desenvolvimento mesmo que levou a conceber o Estado de Bem-Estar para remediar a seus efeitos desestruturadores da coesão da sociedade.

Ao precisar em termos macroeconômicos a complementaridade funcional entre um e outro, a TR delimita um campo de reflexão sobre a eficiência econômica que leva a correlacioná-la com a relação salarial, considerando-se esta como una estrutura básica do capitalismo na qual se conforma a coerência entre sua dimensão política e sua dimensão econômica. O que ela chamou dé modo de regulação fordista deu a medida do papel central que teve no longo ciclo de crescimento econômico seguindo a segunda guerra mundial a institucionalização pelo Estado de Bem-Estar de uma relação salarial que garantiu simultaneamente o aumento da produtividade e da remuneração do trabalho. O que há de inovador na TR são as lições teóricas e metodológicas que ela tira do confronto das interpretações marxista e keynesiana do regime de acumulação do capital e da sociologia do trabalho. Demonstra-se desta forma que o conjunto de compromissos sociais em torno da relação salarial constitui o princípio básico da configuração institucional que pilotou o regime de acumulação durante três décadas (Boyer, 1979; Aglietta, 1997). Essa explicação do crescimento contextualiza suas condições institucionais de estabilidade,

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M «r«juc»-I*rreir.

remetcndo-as a um conjunto de variáveis societais que caracterizam um determinado período histórico. Essa análise sugere no entanto, num plano normativo, que a performance de uma economia não reside tanto numa institucionalidade econômica resultando das interações entre interesses individuais que resolvem os problemas de coordenação deixados sem solução pelo mercado (assim como estipula o pensamento neoclássico contemporâneo), mas bem mais em estruturas sociais enraizadas numa história que delimita o campo das escolhas individuais, sejam elas de natureza mercantil ou não. A dinâmica social é que conforma uma institucionalidade regulando o conjunto de mecanismos de mercado e da qual a política e o Estado são a expressão.

A TR pode assim especificar no domínio da ciência econômica a autonomia e a interdependência entre as dinâmicas de desenvolvimento próprias do capitalismo e do Estado moderno que Weber já havia assinalado quanto a suas fases de formação. Ela mostrou que esta interdependência se instituiu primeiro nos mecanismos da dívida pública que oferece ao capital privado uma primeira via de valorização, sobretudo financeira, baseada no circuito econômico do Estado que concretiza-se no regime das finanças públicas. A passagem de uma valorização rentista do capital a um capitalismo industrial fez de sua interação com o Estado uma verdadeira sinergia ao deslocá-la para o terreno do assalariamento. A globalização vem hoje minar essa sinergia na medida em que se restaura a possibilidade de uma riqueza rentista em detrimento da que realiza o investimento no trabalho humano. Diante da dualização/fragmentação do corpo social e da financeirizaçâo que daí resultam, coloca-se a questão de saber até que ponto a interação entre a ordem econômica e a ordem política que vem se constituindo hoje é ou não sustentável.

Problematizando-se nesses termos a mudança de estruturas do capitalismo para além das suas diversidades nacionais, dois cenários opostos parecem hoje possíveis: “um aprofundamento da democracia igualitária salarial, (... tomado possível pela) invenção de formas institucionais permitindo deslocar a concorrência entre os Estados para um plano cultural (...) da qualidade produtiva das populações; (... ou então pelo contrário,) um regresso ao velho liberalismo não-igualitário, (...isto é.) à lógica predadora e especulativa do capitalismo de renda derrotando a

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TrjluiM to, c i d jd i n u « « f ic i« n c i i r t y u U y jo cconóm liH "

lógica mais estável e assegurada do capitalismo produtivo” (Théret, 1992: 300).

Imaginar o futuro a partir de tal alternativa deriva do fato que o capitalismo industrial representa um progresso econômico e social, não tanto porque libera o progresso tecnológico mas principalmente porque faz do assalariamento a possibilidade de uma nova dinâmica histórica que permite otimizar as relações entre a ordem econômica e a ordem política A sinergia através da qual seus mecanismos respectivos vão se articulai torna possível a aceleração do regime de acumulação do capital, mas também uma organização política da sociedade que amplia de modo permanente o acesso ao espaço público. Este encadeamento obedece a um movimento que atingiu sua maior intensidade quando a estabilização a longo prazo do crescimento econômico derivava de sua sincronização com uma dinâmica de expansão contínua do emprego assalariado. Essa sincronização foi organizada no campo político pelo desenvolvimento dos direitos sociais do trabalho que se tomam um vetor de universalização da cidadania a partir do momento em que as normas de utilização e de remuneração do trabalho implicam níveis mínimos de satisfação das necessidades e de proteção dos indivíduos não-proprietários, garantidos pelo Estado, tenham eles um emprego ou não.

A expressão “sociedade salarial” sintetiza a transformação histórica a que levou essa interação virtuosa entre o político e o econômico que foi a origem dos “Trinta Gloriosos”, quando sugere que a relação salarial se tornou durante esse período o principal campo da auto- instituição da sociedade, as normas que regem o trabalho passando a constituir um referencial da legitimação política tanto quanto os princípios democráticos. A tal ponto que a cidadania é redefinida no projeto de finalmente conseguir fazer de todo homem um cidadão graças ao formato institucional que confere à relação salarial uma concepção dos direitos sociais em termos de direitos de acesso ao mercado com igualdade de oportunidades ou, em caso de impossibilidade, de direitos a meios de vida. Assim se pode integrar à sociedade política as pessoas que não possuem os capitais simbólicos ou o patrimônio que os fazem “homens capazes de razão”, como dizia Hegel, quer dizer cidadãos possuindo as qualificações necessárias para participar do debate contraditório sobre o governo da sociedade (Habcrmas, 1976).

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A convergência entre a história da extensão da cidadania a todos os homens e a história do desenvolvimento de uma economia capitalista de mercado, baseada na generalização da relação salarial, não resulta de uma identidade entre as leis do mercado e as leis da democracia como pensavam os liberais, mas de uma complementaridade funcional entre, por um lado, a organização jurídica da sociedade através de um seguro obrigatório e universal dos riscos sociais completando os princípios de direito civil (Ewald, 1986) e, por outro, uma produção de massa sustentada pela concentração de capital favorecendo economias de escala. Esta convergência não é irreversível. Desde que ela deixou de se realizar até nos países desenvolvidos, o campo normativo do trabalho não é mais considerado como o meio da conciliação entre eficiência econômica e coesão social. A metamorfose da questão social a que assistimos atualmente conduz ã conclusão da necessidade de uma reautonomização da economia, que já não é considerada como equivalente a mais mercado e a menos Estado, mas cm termos de uma institucionalidade econômica feita de coordenações privadas, ou eventualmente públicas a nível local, situadas fora da esfera do Estado central desde que este já não seria capaz de assumir as regulações coletivas.

Tal evolução não é só problemática no que diz respeito á separação entre a gestão da economia e do social que restabelece o laço entre precariedade econômica e instabilidade social que havia sido rompido pela sociedade salarial. Desse ponto de vista, ela “revela a incapacidade do Estado em controlar uma sociedade sempre mais complexa e heterogênea, repercutindo sobre articulações privadas tudo o que as regulações coletivas não mais conseguem dirigir”. Esta conclusão a qual chega Robert Castel (1995) no fim de sua crônica da relação salarial não coloca somente em evidência o perigo de um retomo a uma visão do trabalho de outrora que ele chama de “assalariamento indigno”, antes de sua redefinição institucional pelo Estado de Bem-Estar, mas também a ameaça de uma reatualização da patologia da pobreza, desde já bem palpável, e que na ausência da “mediação dos direitos coletivos [faz quej a individualização dos socorros e o poder de decisão fundado sobre os interconhecimentos locais corram o risco de voltar à antiga lógica filantrópica: faz ato de vassalagem e serás socorrido”. A incapacidade

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T ra lu lh o , d iU d tn ia «> r ( ic l« n c ( j d i r r p d j ç i » pconÔm iris s *

atual da potência pública de conter tal deslize para uma sociedade roída pelo individualismo negativo “dos que carregam sua individualidade como uma cruz porque ela significa uma ausência de vínculos e de proteção" sintetiza os efeitos perversos sobre a ordem política de uma evolução que o sociólogo considera irreversível na medida em que ela manifestaria “as implacáveis restrições da economia que exercem uma pressão centrífuga crescente” (Castel, 1995: 472-4).

Considerando a relação estrutural entre a ordem econômica e a ordem política, o problema de salvaguardar a função de preservação da coesão social que deve assegurar a potência pública se coloca mais em termos de uma mudança política que permita recuperar os meios de uma gestão social da economia, o que depende da negociação dos compromissos institucionais que regem o regime internacional. Caso contrário, existe o risco de que a preservação da coesão social se torne uma vasta operação ideológica de aceitação de uma nova forma de apartheid em que se transformaria o Estado de Bem-Estar. A responsabilidade do economista é de fazer tomar consciência de que o círculo vicioso entre o político e o econômico deriva do fato que se considere o .segundo termo como um constrangimento implacável e inelutável, conformemente á velha idéia liberal de que teria suas próprias leis de funcionamento impondo-se aos homens independentemente de sua vontade. O problema é que os economistas acatam esta visão difundida pela retórica neoliberal, na medida em que eles continuam vendo nas leis econômicas a expressão de uma racionalidade intrínseca mesmo que deixam de identificá-las apenas'a mecanismos de mercado, teimando ignorar que a sociologia tenha demonstrado o caráter polimórfico e historicamente situado da racionalidade dos comportamentos econômicos (Elias, 1975). A economia somente se torna um constrangimento implacável por causa de sua regulação deficiente que condena a ordem política a garantir - mal - a coesão social, sem organizar a proteção dos indivíduos como um princípio de cidadania pelo pleno-emprego dos recursos produtivos que o trabalho humano permite mobilizar. A caracterização que pode ser feita da regulação econômica na América Latina, que tentamos a seguir, permite precisar em que condições políticas esta pode tornar-se deficiente, c mesmo caótica.

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2 Do Estado d e B em -Estar ab ortad o ao im passe do d esen volvim en to latin o-am erican o

A questão que se impõe atualmente na América Latina é a de saber o que podem significar democracia e eficiência econômica diante da herança política e econômica legada pela história de seu desenvolvimento que determina a redefinição de sua inserção internacional. Tal análise significa retomar uma reflexão sobre a relação entre teoria e história que inspirou o pensamento econômico latino-americano do desenvolvimento. Este precisou a especificidade do curso seguido pela industrialização no continente resultando de uma modernização impulsionada do exterior antes de ser sustentada por uma dinâmica endógena. Esclareceu-se então como as antigas economias agroexportadoras nascidas da demanda mundial de produtos tropicais foram a base de uma acumulação nacional do capital industrial e como esta se consolidou, perseguindo ao abrigo da concorrência internacional uma substituição das importações de bens manufaturados até a crise dos anos 80. Faz-se hoje necessário entender como este passado determina o futuro possível dessa dinâmica endógena em economias mais abertas. Mas o problema não é só de saber como gerir essa abertura de modo a reencontrar o caminho do crescimento econômico mas também de saber como diminuir as desigualdades sociais, já que as vítimas da exclusão se tornam atores sociais presentes no espaço público. A redução da coesão social e até territorial que se pode constatar em numerosos países do continente impõe considerar a questão, não só por evidentes razões éticas, mas também como um problema de governabilidade política que condiciona a implementação da política econômica, assim como o demonstrou o drama da crise financeira mexicana.

Pensar a dimensão econômica da questão social no contexto do desenvolvimento latino-americano não é mais evidente do que no caso do capitalismo europeu e exige um renovamento teórico que enfrenta o mesmo tipo de déficit de conhecimento sobre a relação estrutural entre a economia e o político. A ordem política aparece, de fato, como a caixa preta das análises da CEPAL apesar de o Estado estar no centro das proposições normativas que elas inspiraram ou justificaram. A dimensão

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T r ilit l l iu , cid ad an ia c r f ic ir n c U «la r«jn>U ç3o rrnnA m li'«iv »

política do subdesenvolvimento pode ser contudo esclarecida a partir tias análises do setor informal que o identificaram como a expressão da incapacidade de industrialização, por mais rápida que tenha sido, a instituir a sociedade salarial. Com base na crítica de sua definição como forma de emprego ou atividade definidora de um setor econômico diferente daquele que se fundamenta na relação salarial formal, procuramos a seguir resgatar nos termos da TR a interação entre as formas institucionais de regulação econômica. A análise da interação entre os regime salarial e de proteção social que organizam a complementaridade entre estatutos formal e informal no mercado de trabalho, a natureza do Estado que revela sua despreocupação em fazer respeitar os direitos sociais que ele promulga, e a restrição externa que pesou desde sempre sobre o regime de acumulação do capital, evidencia que a informalidade do trabalho não pode ser considerada apenas como o resultado de uma economia incapaz de criar empregos de boa qualidade em quantidade suficiente. Essa análise mostra que essa especificidade do capitalismo latino-americano se enraíza nos limites da universalização de uma cidadania baseada nos direitos sociais do trabalhador.

O conjunto de pesquisas de sociologia e economia do trabalho que levaram o debate criticando a antiga visão dualista mostrou, em síntese que não convém falar de um setor informal na medida em que não existe nem um conjunto de atividades nem um conjunto de ativos formando um setor econômico regido por uma dinâmica própria (Lautier, 1994). A produção de bens e serviços informais se insere no mercado formal, seja pela compra de insumos seja peltudemanda que ela atende. Os estatutos de atividade ditos informais, seja o de assalariado não registrado, o de autônomo, ou ainda o de empregador, constituem um conjunto de posições de um sistema de mobilidade dos ativos que rege o funcionamento do mercado de trabalho no seu conjunto. O que é propriamente informal é a não aplicação do direito social e da legislação do trabalho. Esta realidade não tem apenas conseqiiências sobre um setor da economia ou um segmento do mercado de trabalho. Ela traduz uma especificidade do capitalismo latino-americano que caracteriza uma interação entre suas formas institucionais enraizadas nas suas origens coloniais.

Ao contrário do que ocorre nos países europeus, a dependência do mercado mundial marca a gênese da Nação, induzindo na história do

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J * iin e M < n | U (i*l'«r«irJ

Estado c do capitalismo, uma dupla temporalidade que ira pesar no curso de seus desenvolvimentos respectivos posteriores. A determinação do mercado mundial continuará presente mesmo depois do sistema de produção tornar-se capitalista. As economias nacionais deixarão de ser simples anexos produtivos do comércio colonial quando o uso da violência, da rapina e do simples tributo, passou a ser a base de relações de trabalho que fizeram da acumulação de capital uma dinâmica de transformação econômica dando lugar a um processo de divisão do trabalho. O regime de crescimento passará então a obedecer também a um ritmo endógeno mesmo se a substituição das importações continuará assim mesmo subordinada a temporalidade do mercado mundial. A restrição externa se reproduzirá primeiro na forma de um estrangulamento comercial afetando, como mostraram diversas análises dos regimes de acumulação inspiradas nas primeiras teorias da CEPAL, a capacidade de levar a cabo uma industrialização includentc dos bens de produção, e segundo, através dos efeitos perversos do pagamento do serviço da dívida e do ajuste exterior que fizeram dos anos 80 a chamada década perdida do desenvolvimento. Hoje em dia, essa restrição externa ao crescimento se materializa nas dificuldades de reverter a financeirização pela qual se contornou os problemas de liquidez, ao preço de um ajustamento fiscal sempre na ordem do dia mas impossível de ser alcançado (Tavares, 1993).

Os limites da industrialização latino-americana definidos em termos de sua incapacidade de romper o círculo vicioso da pobreza e do subemprego não remetem apenas a uma dinâmica econômica ritmada por essa dupla temporalidade. Esta implicou ao mesmo tempo limites ao desenvolvimento do capitalismo mas também do Estado pela relação que ela induziu entre o regime salarial e a forma de adesão ao regime internacional que esta gestão da restrição externa significava. Essa releilura “regulacionista” das raízes do subdesenvolvimento encontra fundamentos nas análises que evidenciam, por um lado, as contradições da acumulação no princípio da transição ao capitalismo industrial, e por outro, a natureza do Estado e o papel que lhe coube nesse processo.' 3

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3 Fazemos aqui referencia aos estudos sobre o caso brasileiro. Caberia sem dúvida comparar as trajetórias econômicas dc outros países latino-amcncanos para verificar a validade da generalizado aqui proposta. Para maiores desenvolvimentos sobre essa questão, ver Marques-Pereira (1997).

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T raU illio , cidad ania c e f ic iê n c ia d a re jju laçA o econAiiiliM 6

O regime de câmbio, imposto pela agricultura de exportação, impedia que as baixas dos preços internacionais repercutissem sobre as rendas em moeda local dos plantadores mas condenava por outro lado a indústria a não renovar seus equipamentos justamente quando suas vendas mais aumentavam, graças as desvalorizações monetárias que aumentavam o custo das importações. Ao contrário, esse regime de cambio favorecia essa renovação quando as vendas do setor diminuíam, ao mesmo tempo em que a moeda se revalorizava e que baixava então o preço tanto dos produtos importados que lhe faziam concorrência quanto aquele dos bens de equipamento. Esta contradição que está na origem do protecionismo refletia aquela que afetava a agroexportação. Este regime de câmbio favorecia a substituição dos bens-salários outrora importados por uma produção nacional ao mesmo tempo em que exercia uma pressão a favor da preservação de uma parte não monetária da reprodução da força de trabalho para limitar o aumento dos salários que pressionava as taxas dc lucro, quando era necessário utilizar a desvalorização para restringir a baixa que poderia ser provocada pela queda dos preços internacionais a partir do momento em que a oferta era superior a procura. Essas contradições endógenas do curso da acumulação, que caracterizam o impacto de uma gênese tardia do capitalismo (Mello, 1982), assumem seu pleno sentido no que diz respeito ao desenvolvimento industrial posterior quando são colocadas em relação com a estruturação da ordem política que enquadrou as formas de emprego instituídas nesse momento.

As análises caracterizando a passagem do trabalho forçado ao trabalho assalariado que vingou nesse processo de transição sugerem que o império da lei do valor somente podia ser exercido através de mediações sociais conformando o que pode scr chamado de lei do favor (Mathias, 1987). Elas levam assim a reinterpretar como a restrição externa ao crescimento econômico se expressava na própria dinâmica endógena de desenvolvimento de uma produção capitalista. O aprofundamento da divisão social do trabalho seria então freado pelo caráter limitado do assalariamento resultando da articulação de relações monetárias e de relações pessoais de vassalagem no mercado do trabalho. Cabe salientar que a gênese desse tipo de relação salarial híbrida não se explica apenas por sua funcionalidade econômica que acima se explicitou, mas também

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|*iine M «rq u e « -re re ir*

pela construção peculiar de um Estado moderno que reproduz duas estruturas de poder, distintas mas ligadas, uma que se tece em torno das grandes famílias patriarcais das plantações e outra constituindo-se através das clientelas políticas organizadas ao redor dos representantes do poder central (Mathias, 1987).

Os limites à diversificação das atividades produtivas e à transformação do trabalho em mercadoria devem ser pensados em conjunto e a longo prazo. A informalidade atual do trabalho tem raízes em estruturas sociais que remetem às condições de gênese da economia capitalista de mercado na América Latina e que se reproduziram ao longo do seu desenvolvimento. Isso aparece claramente por um lado na importância que ainda hoje revestem as relações pessoais de dependência na gestão do trabalho e, por outro lado, na pouca relevância do consumo popular como campo de valorização do capital. A submissão do trabalho na produção capitalista não pode ser considerada - o que ainda e verdade hoje em dia4 - unicamente como uma procedimento mercantil eventualmente regulado pelo Estado mas deve também ser considerada como uma troca de favores entre senhores e dependentes. Esta hipótese de uma interação entre lei do valor c lei do favor, avançada para caracterizar tanto o surgimento de um mercado “livre” do trabalho quanto a criação de instituições que o regulam deve ser contemplada nas suas implicações a longo praze assim correlacionada com a história da relação salarial que acompanhoi a industrialização.

A análise da relação entre o direito e a economia que define a informalidade do trabalho no presente encontra suas raízes na conformação da relação entre o publico e o privado que marcou a gênese do Estado moderno latino-americano. O peso das estruturas sociais de lon^a duração, no sentido braudeliano do termo, transparece no papel do Estado na gestão contemporânea do trabalho. Por mais que o Estado latino-americano tenha sido o principal ator da transformação social e da diversificação econômica, ele não deixou de ser por outro lado um Estado

4 Podemos observar nas inovações organizacionais à japonesa a permanência dessa vassalagem do indivíduo que faz do valor de seu (rabalho um processo social mais do que o resultado de uma regulação institucional do mercado do trabalho ou da lei da oferta e da procura (Marques- Pereira, 1995).

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limitado, incapaz de impor o império da lei dc forma efetiva, incapaz na verdade de consolidar sua soberania. A hipertrofia da função pública e a importância das intervenções econômicas do Estado não podem ser negadas mas, de outro ponto de vista, caberia falar de um subdesenvolvimento do Estado diante de sua incapacidade manifesta de cumprir suas funções básicas de guardião da lei, o que a análise do trabalho revela ias suas manifestações mais graves para não dizer chocantes.

Nessa perspectiva, a informalidade já não pode mais ser considerada apenas como a simples consequência de uma dinâmica económica responsável por uma oferta insuficiente de trabalho mas também como o resultado do uso discricionário do direito pelos agentes econômicos sobre o qual o Estado fecha os olhos. Nesses lermos, a questão econômica que levanta a informalidade não é mais a de saber como se articulam os setores formal e informal, mas a dc entender o funcionamento de um sistema de emprego articulando comportamentos econômicos qye se inscrevem na legalidade a outros que a contornam, na maioria dos casos de modo legítimo.5 O funcionamento do mercado do trabalho como um todo que daí resulta explica a configuração tomada pela relação salarial na América Latina. A fraqueza da intervenção social do Estado, comparativamente â sua intervenção econômica, não pode mais nesse sentido ser entendida de modo estritamente funcional. Sem dúvida as políticas sociais ligadas ao modelo de Estado de Bem-Estar (mas desviadas de seus objetivos de compensação dos efeitos regressivos do crescimento económico sobre a distribuição da renda), foram funcionais para um regime econômico que fez do agravamento das desigualdades sociais um meio de crescimento a partir dos anos 50. A despreocupação do Estado em matéria de regulação do mercado de trabalho, revelado pela

5 A crítica das teses dualistas já não pode mais se contentar dc pôr em causa a ideia de uma reabsorção natural do setor informal através do crescimento do setor formal ou da funcionalidade de um salário dc subsistência o tempo necessário para que tal evolução sc concretize, argumentos que já foram contestados pela crítica ao dualismo mas que são boje rcatualizados pelo organismos internacionais. Ú a noção mesmo de mercado do trabalho que 6 preciso redefinir. Primeiro, por certo, a hipótese de uma segmentação do mercado do trabalho defendida pelas análises do PKEALC, mas também a definição da regulação do mercado do trabalho que a concebe como uma alternativa ou um mix entre um processo institucional (ou uma coordenação dc agentes económicos regulada por uma racionalidade utilitária) e um ajustamento prcço-quantidadfcs.

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I i ú i i c M » i |U f« -P « rc ÍM

informalidade, bem como o fato da proteção social financiar mais a classe média que as classes de baixa renda, estruturaram um sistema de gestão da força de trabalho que nunca poderia fazer desta um fator de expansão da demanda. Ao contrário do que ocorreu no fordismo, o preço do trabalho (tanto em termos de salário direto quanto indireto), do ponto de vista da acumulação do capital, sempre permaneceu um custo de produção a ser barateado. Assim sendo, essa configuração da proteção social pela qual o Estado de Bem-Estar pode hoje ser estigmatizado pela retórica neoliberal como estado de mal-estar não deve ser apenas considerado como resultado de uma dinâmica econômica determinada pelo caráter dependente e tardio do capitalismo latino-americano. Reduzir a essas variáveis econômicas a explicação do papel do Estado equivale na verdade a atribuir-lhe uma racionalidade c uma capacidade de antecipação um tanto maquiavélicas, o que seria pois uma visão tão mistificadora quanto aquela do ideário desenvolvimentista próprio dos planificadores formados pela CEPAL, os quais pensavam ter concebido uma política econômica e social conduzindo ao consumo de massa enquanto sua implementação consolidaria na verdade a estrutura não-igualitária da sociedade.

Convém justamente comparar nesse aspecto capitalismos a primeira vista opostos apesar de apresentarem ambos a mesma linearidade na construção do Estado e de um capitalismo, primeiro de renda e depois industrial. O que explica o contraste de resultados entre um modo de desenvolvimento instituindo a sociedade de consumo de massa e outro agravando as desigualdades sociais, são as diferenças de impac|o da relação salarial no regime de crescimento econômico, pelo fato dela ter ou não se constituído num vetor de universalização da cidadania. Se o projeto de Estado de Bem-Estar abortou na América Latina não foi simplesmente por causa de um nível de assalariamento demasiadamente baixo da população ativa. A criação de emprego está ligada a dinâmica de acumulação, particularmente no plano dos efeitos benéficos que pode ter a esse nível a complementaridade entre as setores de bens de consumo e de capital. Mas como o mostrou a TR, não se trata de uma variável endógena â dinâmica de crescimento. Esta complementaridade só se estabeleceu no fordismo Europeu por força da invenção política que transformará as normas de consumo e de produção. Essa invenção política é, cm síntese, o

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T n b i l l io , c k U i U i iu o e fic iê n c ia da re g u la çã o ecnnA m icaV í”

vínculo entre o trabalho e a cidadania que foi sendo institucionalizado. Se a criação de instituições sociais inspiradas do modelo do Estado de Bem- Estar europeu não obteve os mesmos resultados políticos e econômicos na América Latina foi, na raiz, por causa de uma interpenetração entre as esferas pública e privada, herdada do ancien réginte europeu e que durará até que a democracia se imponha como uma questão de legitimidade do Estado em relação com o conjunto da Nação, como é atualmente o caso.

As independências nacionais não abalaram essa interpenetração. Somente criaram um espaço público para gerir as relações das oligarquias exportadoras com o concerto dos Estados-Nações. O estabelecimento no cone sul, antes mesmo do que na Europa, de uma proteção social dos trabalhadores cuja vocação universalizante será consagrada pela OEA, não modificará este peso da história como tampouco o havia feito o sufrágio universal. A proteção social se tomará, ao nível político, um campo privilegiado de constituição de relações clientelistas e, ao nível econômico, um instrumento a mais da concentração da renda. Esta evolução da proteção social se inscreve no rasto dos limites ao assalariamento resultando do modo de funcionamento do mercado do trabalho acima explicitado; ela é coerente com um regime salarial que limita a integração da reprodução da força de trabalho ao circuito do capital produtivo. Os limites estruturais à acumulação do capital que foram atribuídos a dinâmica particular do progresso técnico na América Latina (Salama, 1972), ao caráter triincado da industrialização ou ainda as particularidades do fordismo nesse continente (Fajnzylber, 1983; Ominami, 1986), devem ser nesse sentido correlacionadas com uma ordem política que implicou, como mostra a análise de Gilberto Mathias, num assalariamento que ele chamou de restringido, articulando relações mercantis e não mercantis de trabalho.

Tal hipótese se justifica nas conseqüências macroeconômicas desse caráter restrito do assalariamento. O papel que exerceram as políticas centrais do Estado, seja ao nível da distribuição primária e secundária da renda, seja no controle social corporativo e clientelístico tio trabalho desenha uma crônica da relação salarial seguindo a evolução do regime político, a qual foi nesses termos determinante sobre o curso que seguiu o regime de acumulação. A história* do trabalho na América Latina

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J l im c M arqu es-P ero ira M»

mereceria ser reconstituída nesta perspectiva do impacto que ela teve sobre as trajetórias nacionais de desenvolvimento. Somente evocamos aqui as condições de sua gênese que marcam a evolução do mercado “livre” do trabalho que se transformará nessa articulação entre o formal e o informal, eufemismo dos economistas do BIT cuja utilização abusiva oculta a regulação ambivalente de que esse mercado se tornou o objeto, já que esta é realizada tanto por instituições que têm uma legitimidade baseada sobre a idéia de interesse geral quanto por um sistema de representações sociais patriarcais do indivíduo. O trabalhador permanece assim principal mente tratado em função de sua condição e não como detentor de direitos.6

3 Da regu lação d eficien te à reg u lação caó tica

A interação do regime salarial e do regime de acumulação conformada pelas políticas públicas na América Latina fez do padrão de regulação econômica próprio da industrialização por substituição de importações o contrário do fordismo Europeu. Sem dúvida, os setores motores da acumulação, tais como os bens duráveis, apresentaram características fordistas na sua organização do trabalho, podendo mesmo chegar a uma indexação programada dos salários sobre a produtividade, como foi o caso no México nos anos setenta. Mas, mesmo considerando- se o caso do Brasil, que conseguiu praticamente reproduzir uma dinâmica setorial de país desenvolvido ao tirar partido do endividamento* externo, não deixa de ser que seu sistema socioprodutivo, em termos macroeconômicos, constituiu um mecanismo de recondução do subdesenvolvimento tal como foi acima definido. Na América Latina em geral, limitaram-se as economias de escala â demanda da classe média, da qual se acelerou a expansão e se incitou o mais que se podia o consumo através de políticas de crédito bem mais expressivas do que na Europa. Esta sustentação do regime de acumulação pelo Estado requereu um regime monetário cada vez mais inflacionista que explodiria quando da reversão da sobre-liquidez internacional que tinha dantes permitido o

6 Discutímos essa qucslào cm Laulicr & Marqiics-Pcrcira (1996).

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T h Im Uw , c id id in ía « <-ficiênci«i ila r«-£uU v«o «vonAmU aM *

endividamento, íls taxas de interesse começando então a subir. O caráter deficiente de tal modo de regulação reside no fato que, ao inverso do fordismo, não foi a distribuição da riqueza o que puxou o crescimento econômico mas foi neste caso a concentração da renda garantida pela ordem política que assumiu este papel. Em contraste, pode-se pensar que tal evolução não ocorreu nos países atualmente desenvolvidos porque as lutas provocadas pelo pauperismo induziram essa metamorfose da questão social que Castel resgatou. A evolução que a regulação econômica conheceu na América Latina, quando se modificou o regime internacional, confirma o diagnóstico feito por Celso Furtado, já nos anos 60, sobre as tendências estruturais à estagnação, diagnóstico que havia sido desconsiderado pelo forte crescimento dos anos 70. A crescente concentração da renda e o endividamento não foram mais do que meros expedientes. Autorizaram sem dúvida manter o crescimento durante um certo tempo, mas a eficácia de tal política econômica erã fatalmente provisória. O aumento da demanda da classe média no seio da estrutura fortemente polarizada, derivada das modalidades de repartição estabelecidas nos anos 50, só descartou temporariamente os limites da acumulação. A redução do custo do capital graças ao endividamento permitiu continuar nessa via por certo tempo, mas ao preço dos efeitos recessivos do serviço da dívida e do ajustamento que se seguira, desestabilizando o regime de crescimento. As razões de base do esgotamento da substituição das importações remetem à inadequação estrutural da oferta e da procura globais de um regime de acumulação intensiva baseado sobre a produção de massa sem que se estabeleça paralelamente uma ordem política instaurando um consumo de massa.

É na desigualdade social, que não chegou a ser até hoje abalada, que se encontram as raízes dessa contradição econômica. Essa herança se expressa na vulnerabilidade externa, agora na forma financeira que impõe um regime monetário limitando as possibilidades de crescimento, mesmo que apenas puxado por exportações industriais exigindo a permanência de baixos salários. Um novo ciclo longo de expansão do mercado interno depende, mais ainda num contexto dc economia aberta, da possibilidade de concluir acordos sociais permitindo uma política de rendas e uma política industrial. Tais políticas são dificilmente concebíveis sem que

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sejam impostas novas regras institucionais de repartição da riqueza. Por isso mesmo, a relação entre o mercado interno e o mercado externo define a possibilidade de inscrever no longo prazo a estabilização macroeconômica e o retorno ao crescimento, lí a esse nível que se pode auferir bases econômicas apaziguando os conflitos distributivos e restaurar a rentabilidade de investimentos produtivos, de maneira a reverter a financeirização perversa permitida por um regime monetário e por um regime fiscal que conduziram à hiperinflação.

Afirma-se geralmente que a crise da dívida tornou obsoleto o modo de desenvolvimento que se apoiava numa industrialização derivada da substituição das importações. Que o protecionismo do passado não seja mais uma garantia de crescimento e que a evolução política torne a restauração do Estado de direito irreversível, não implicam assim mesmo alguma modificação do modo de desenvolvimento. As trajetórias caóticas seguidas por certas economias latino-americanas, ao enfrentarem a crise da dívida, mostram antes uma resistência a tal modificação. Os regimes fiscal e monetário, ajustados ao pagamento do serviço da dívida mais que compensaram a perda de rentabilidade do investimento produtivo (fora dos setores exportadores) através do crescimento da dívida pública, impondo desta forma através da inflação uma aceleração sem precedentes históricos da concentração da renda. A interação entre os dois regimes, escapando durante certos períodos a qualquer pilotagem - até que se concretizasse a ameaça duma hiperinflação aberta, terminou conformando uma regulação econômica caótica. O caso brasileiro, com sua hiperinflação duradoura meticulosamente administrada por um sistema de indexação cada vez mais sofisticado, fornece uma ilustração extrema dessa situação: a desestabilização macroeconômica, ao ponto de pôr as finanças públicas na bancarrota, não foi produto de uma ausência de controle do jogo económico; por mais caótico que este tenha ficado, o capital continuou valorizando-se e a economia brasileira demonstrou a melhor performance de ajuste externo, o que lhe permitiu continuar a crescer, ainda que aos trancos e barrancos, durante a década perdida.

A trajetória brasileira representa um caso limite do círculo vicioso que se pode estabelecer entre a ordem política e a ordem econômica no capitalismo atual, quando nenhum compromisso institucionalizado existe

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3-H T rabalh o , cid ad an ia o o fie iên cia da rc y u la çã o eco n ô m ica

para sustentar uma regulação dos conflitos distributivos, questão que remete à construção da democracia,7 e mais precisamente à relação que deve ser feita entre trabalho e cidadania. A importância econômica de uma regulação do trabalho permitindo as instituições sociais garantir sobre essa base a proteção dos indivíduos, assim assegurados de sua cidadania na ordem política, aparece claramente nos limites de uma regulação da economia apoiada num assalariamento limitado.

A deriva rumo a uma regulação caótica, tal como ocorreu no Brasil, permite medir a que ponto um aprofundamento da democracia igualitária salarial, que o Estado de Bem-Estar europeu esboçou, constitui hoje a melhor alternativa de desenvolvimento para a América Latina, não apenas de um ponto de vista social mas também de eficiência econômica. A resposta ao desafio da globalização passa, em termos econômicos, por uma progressão da produtividade permitindo aumentar simultaneamente os lucros e os salários, rompendo dessa forma com um padrão de regulação econômica, que limitou a margem de manobra da política econômica durante os anos 80 a uma escolha entre as ameaças de agravamento do conflito distributivo ou de fuga dos capitais, e a condena hoje a um dilema entre crescer com déficit comercial ou estagnar com déficit público, mantendo-se num caso como noutro a vulnerabilidade âs reações voláteis da finança global. Esta crítica do pensamento neo- estruturalista ao ajustamento ora realizado evidencia qual deve ser o papel do Estado para transformar a' abertura numa potencialidade de desenvolvimento. A questão não é apenas de evitar os comportamentos erráticos que podem ter os mercados liberalizados, ou ainda de dinamizar os fatores endógenos de crescimento que constituem os bens e serviços coletivos, pouco atraentes para a atividade privada. O objetivo principal do ajustamento é fazer com que a progressão da acumulação seja superior â da produtividade (Salama & Valier, 1994).

7 Desenvolvemos cm outro artigo como a dcsestabili/nção econômica remete h recusa das elites em aceitar a repartição da riqueza que seria coerente com o avanço da democratização. Essa recusa se materializou cm decisões monetárias que anulavam os ganhos democráticas cm matéria de legislação social c do trabalho, consagrados na nova constituição. O '‘caos" foi o preço a pagar mas a conta variou segundo u capucidade de defender-se da inflação. Vide Marqucs-Pcreira & 'Iliérct (1997).

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Ja im e M arcjuea-Pereira 545

Numa economia que deve se abrir para garantir o acesso às novas tecnologias e aos financiamentos exteriores, e que será por conseqüente cada vez mais submetida a concorrência estrangeira, tal progressão da acumulação não pode ser concebida sem que o Estado desenvolva as economias externas, necessárias para fazer do crescimento uma dinâmica endógena, c apoie através de uma política industrial os setores que podem se tornar competitivos assim que tenham recuperado o atraso do investimento a que levou a financeirização. Uma política de renda que diminua os conflitos distributivos entre lucro e salário reveste-se assim também de uma importância estratégica para criar uma dinâmica de expansão do mercado interno que não leve a conflitos distributivos cujo potencial inflacionista acaba, como se viu, numa gestão da moeda favorecendo a especulação financeira em detrimento do investimento produtivo.* Só a reconstrução de um sistema de finanças industrializantes (Braga, 1992) pode dar ao Estado os meios de tais políticas condicionando um novo ciclo de desenvolvimento do mercado interno que viria consagrar o advento de uma sociedade salarial com base numa economia simultaneamente mais aberta e mais justa. Cabe a respeito lembrar que, num continente no qual a população ativa só está parcialmente assalariada, as margens de manobra são, mesmo na época da globalização, bem maiores do que num país europeu. Para uma economia do tamanho da do Brasil, tal possibilidade já existia ao termo da fase de substituição das importações levada a cabo pelo regime militar, ou seja antes que a crise da dívida viesse interromper o sonho que inspirou as políticas heterodoxas segundo o qual o advento da democracia representava a possibilidade política da criação dos mercados de consumo necessários para dar novo fôlego ao regime de acumulação. O sonho veio abaixo pela colusão de interesses que se expressaram na política monetária, a qual era ao mesmo tempo uma escolha de adesão ao novo regime econômico internacional dominado pela finança. 8

8 Cabe a respeito observar que o fato da inflação não parecer mais necessária hoje para que se realiza tal repartição da riqueza não significa o desaparecimento do conflito distributivo mas sim seu congelamento. A des inflação legitimou até certo ponto as políticas neoliberais. e os efeitos desestruturadores sobre o movimento social da precariz-ação do trabalho c do desemprego anulam por enquanto a possibilidade dc uma oposição.

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T r iU lh v , ( t d i d jn u e « ( ic iê n c u d« rv g u U ^ iv n o n v i i i ic iJ 46

A possibilidade de vir a se realizar uma alternativa a essa configuração de interesses deve ser hoje pensada no quadro das integrações regionais. Sem desenvolver aqui esse ponto, queremos no entanto sinalizar que pode-se ver na perspectiva aberta pelo MERCOSUL dois tipos de cenários opostos comparáveis às apostas que podem ser feitas hoje com a União Européia. Tudo indica que a estabilização econômica é ainda precária diante do caráter aleatório da possibilidade de reverter-se o déficit comercial bem como diante do potencial de agravamento dos problemas de legitimidade política a que leva a necessidade de reduzir mais ainda o custo do trabalho para compensar a valorização da moeda e as altas taxas de juro que garantem a entrada de capital financeiro equilibrando a balança de pagamentos. Uma integração regional nos moldes de uma simples união alfandegária, ao constituir um grande mercado interno pode dinamizar economias de escala e de complementaridade industrial, aumentando a competitividade sistêmica e reduzindo aos poucos a brecha externa. Caso essa aposta não seja ganha, a política econômica permanecendo condenada a uma austeridade sem fim, sua continuidade pode vir a ser questionada num conhecido círculo vicioso explosivo entre erosão de sua legitimidade e de sua credibilidade.

Nesse caso, a única alternativa seria questionar a excessiva rentabilidade financeira c promover um crescimento baseado numa distribuição de renda mais equilibrada. Nessa perspectiva, a recuperação da soberania monetária no contexto de uma integração regional também política desponta como uma alternativa que deve ser considerada pois ela é a forma de inserção internacional que condiciona a restauração de uma finança industrializante. A opção de uma moeda, assentada num vasto mercado, cuja expansão seria garantida pela ação dos poderes públicos, isto é, através de um conjunto de políticas - industrial, salarial, de proteção social e fiscal, conformando o que se chamou de gestão social da economia - desenha um quadro de regulação mais eficiente, e sobretudo menos arriscada que aquela hoje vigente, pela qual a renúncia à soberania monetária implica não apenas num ajuste econômico fundamentado na regressão social mas também numa ameaça de crise financeira. Além do mais, não há razão alguma para desconfiar de que a finança global iria desprezar as oportunidades de investimentos produtivos rentáveis que abriria tal opção.

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A virtualidade de impor-se uma nova norma de política econômica e social, que volte a favorecer o investimento produtivo em detrimento do investimento financeiro (e daí, uma valorização do capital mais orientado na mobilização do recurso produtivo do trabalho do que no jogo especulativo), concretizar-se-á ou não em função da evolução política. As idéias que esta mobiliza no debate de ciência econômica não deixam de ser determinantes da evolução que pode tomar a contradição entre credibilidade e legitimidade da política econômica, e mais particularmente monetária, já que esse debate constitui o ceme da formação das opiniões financeiras. É precisamente nesse sentido que se justifica a reflexão normativa aqui levada.9

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C onclusões

Tentamos precisar, nesse texto, as implicações econômicas do modo de tratar a questão social pela configuração institucional do capitalismo que dele decorre. Ao sublinhar que o regime salarial determina estrutural mente o grau de eficiência ou de ineficiência da regulação, reconsidera-se radicalmente os termos do debate sobre o futuro do trabalho e da proteção social. A visão do campo das possibilidades se turvou num falso debate que fez da defesa de uma proteção social fundada sobre um sistema de direitos sociais universais uma posição ingênua já que este sistema não cobriria mais o risco de exclusão. Apenas sobraria desta forma a alternativa de promover consequentemente uma nova forma de solidariedade institucionalizando um direito de inserção a um espaço econômico intermediário entre o Estado e o mercado para os indivíduos menos eficazes (Rosenvallon, 1995). As posições pondo em causa o vínculo entre cidadania e trabalho e caucionando assim a desconexão entre a gestão da economia e a do social, já não são hoje um monopólio do liberalismo radical.

9 Cabe, a respeito, recordar a importância que revestiu, em outras épocas, a elaboração de um pensamento normativo alternativo inspirado na obra de Keynes para que se imponha uma nova norma dc política econômica e social levando ao crescimento dos Trinta Gloriosas graças ao qual sc apaziguou a propensão ao conflito social que vinha deslcgitimando as políticas liberais seguidas até os anos 30. 1’aru uma análise da interface entre teoria c credibilidade da política econômica atual, ver Lordon (1997).

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Essa convergência de posições é canto mais grave nos países latino-americanos em que a herança de uma regulação deficiente fez do aumento da pobreza dos anos 80 um fator de ingovernabilidado dos territórios onde sua incidência muitas vezes não deixa outra alternativa dc sobrevivência a não ser a inserção nas redes da economia da droga. Frente a essa situação, a constituição de um espaço econômico próprio dos que não conseguem integrar a economia de mercado apresenta-se com certeza como uma via incontomável enquanto o nível de assalariamento da população continuar restrito. O que deve ser considerado como uma regressão é fazer dessa política um projeto de sociedade c renunciar a uma política de emprego e renda (Draibe, 1993), o que equivale a institucionalizar uma mão de obra de segunda zona, um subproletariado no sentido próprio do termo. A essa crítica expressando o temor que essa nova concepção de política social não passe de um retomo ao eugenismo, responde-se geralmente que, pelo contrário, sua implementação evitaria que a crise do Estado de Bem-Estar leve numa sequência implacável ao crescimento da exclusão, desde que ela favoreça uma melhor articulação entre a prática da democracia e a gestão do social. Mas se essa articulação não se sustentar na gestão da economia a alternativa fica entre a peste e a cólera.

O principal ensinamento da comparação entre os modos de desenvolvimento do capitalismo industrial na Europa e na América Latina dos quais procuramos aqui evidenciar o que determinou suas diferenças pode-se enunciar nos seguintes termos: os despossuídos não podem ser cidadãos se a economia não é governada de modo a buscar o pleno- emprego c vice-versa. As regulações deficientes latino-americanas que se explicam pela ausência de círculo virtuoso entre o econômico e o político são uma clara indicação do desenvolvimento socialmente perverso e, na pior das hipóteses, do caos que pode significar para a Europa a construção de instituições supranacionais que continuariam a privilegiar a finança em detrimento do social (Thérct, 1995). Não renunciar a uma política de emprego e renda é adotar uma política econômica e social de pleno emprego, o que hoje em dia, fica condicionado a uma gestão da moeda que permita relacionar de novo trabalho e cidadania.

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