codex

171

Upload: lucas-lopes

Post on 22-Oct-2015

63 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • CODEX Revista discente de Estudos Clssicos

    Equipe Editorial

    Editores

    Paulo Martins, USP Henrique Fortuna Cairus, UFRJ Julieta Alsina, UFRJ Rafael Brunhara, USP

    Comisso Editorial Docente

    Ana Thereza Basilio Vieira, UFRJ Anderson Zalewski Vargas, UFRGS Breno Battistin Sebastiani, USP Flvio Ribeiro de Oliveira, UNICAMP Joo Angelo Oliva Neto, USP Joo Batista Toledo Prado, UNESP Roberto Bolzani Filho, USP Tatiana Oliveira Ribeiro, UFRJ

    Comisso Editorial Discente

    Elaine Maia Machado, UFRJ Caroline Evangelista Lopes, USP Patrcia Andra Borges, USP

    Conselho Consultivo

    Adriano Machado Ribeiro, USP Adriano Scatolin, USP Agatha Pitombo Bacelar, (Doutoranda) EHESS-Paris Anderson Zalewski Vargas, UFRGS Breno Battistin Sebastiani, USP Carolina de Melo Bomfim Arajo, UFRJ Cludio Aquati, UNESP Elaine Cristine Sartorelli, USP Fernando Brando dos Santos, UNESP Fernando Jos de Santoro Moreira, UFRJ Jacyntho Jos Lins Brando, UFMG Joo Angelo Oliva Neto, USP Joo Batista Toledo Prado, UNESP Juliana Bastos Marques, UNIRIO Leni Ribeiro Leite, UFES, Brasil Marcos Martinho dos Santos, USP Marly de Bari Matos, USP Mary Macedo de Camargo Neves Lafer, USP Nely Maria Pessanha, UFRJ Pablo Schwartz Frydman, USP Paula da Cunha Corra, USP Paulo Martins, USP Paulo Srgio de Vasconcellos, UNICAMP Roberto Bolzani Filho, USP Trajano Augusto Ricca Vieira, UNICAMP

  • Sumrio

    Apresentao

    Paulo Martins 4-6

    Artigos

    A construo do ethos do orador no Pro Milone de Ccero

    Marlene Lessa Vergilio Borges 7-21

    A mimesis nos Livros III e X da Repblica de Plato

    Helena Andrade Maronna 22-30

    Apontamentos sobre a Arte retrica de Fortunaciano

    Izabella Lombardi Garbellini 31-42

    Historiografia e gnero biogrfico na Vita Caligulae de Suetnio primeiras reflexes

    Danielle Lima 43-58

    As Tesmoforiantes: pea com menos referncia poltica de Aristfanes?

    Milena de Oliveira Faria 59-73

    O tempo verbal na poesia homrica

    Caroline Evangelista Lopes 74-89

    Uma anlise de Reso de Eurpides e da astcia de Odisseu

    Lilian Amadei Sais 90-101

    Um estudo dos procedimentos ecfrsticos

    Melina Rodolpho 102-115

    Elegia marcial e ocasio de performance

    Rafael Brunhara 116-126

    Pricles e a peste: o corpo da plis ou o corpo e a plis

    Rosangela Santoro Souza Amato 127-136

    Hpias Menor de Plato: traduo, estudo e comentrio crtico

    Vanessa Arajo Gomes 137-144

    Para uma descrio das Epistulae ad Caesarem de (Pseudo-) Salstio

    Gilson Charles dos Santos 145-161

    Cena-tipica e tema em Homero: Recepo do hspede e do discurso no Canto XIV da Odisseia

    Viviani Xanthakos 162-171

  • 4 Codex, v.2, n.1, 2010, p.4-6

    Apresentao

    Prof. Dr. Paulo Martins

    IAC/PPGLC/USP

    A revista Codex, em seu terceiro nmero (o primeiro do segundo volume),

    apresenta os resultados de uma iniciativa indita e at ento inusitada, alm de muito

    importante: os textos constitutivos desse novo volume tm sua origem no 4

    Seminrio de Pesquisas em Letras Clssicas, um dos dois eventos bienais em que o

    Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas da Universidade de So Paulo leva

    ao pblico as suas pesquisas. Assim, todos os textos aqui publicados foram

    apresentados como resultado final ou parcial de pesquisas de alunos de Iniciao

    Cientfica, Mestrado e Doutorado em Letras Clssicas que participaram do evento.

    importante ressaltar que o Seminrio de Pesquisas em Letras Clssicas nasce

    com uma finalidade especfica: A implementao prspera e efetiva do dilogo entre

    alunos e professores do Programa, que no raramente estavam habituados a certa

    restrio dos comentrios, s discusses isoladas, mesmo que necessrias e frutferas,

    entre orientador e orientado. Essa ampliao de interlocuo, inversamente

    proporcional ao ensimesmamento acadmico, coaduna-se, salutarmente, com outras,

    que sempre previram como necessrio um maior dilogo inter pares. Tal ideia

    inicialmente foi bem aceita e aplicada a todos os matriculados no Programa. Assim,

    j em suas 2 e 3 verses, expandiu-se o evento participao de alunos de

    programas congneres nas Universidades Paulistas (UNESP e UNICAMP).

    No 4 Seminrio realizado em Novembro/Dezembro de 2009, a inteno foi

    a de ampliar a participao de outros pesquisadores nas Letras Clssicas de

    Universidades Brasileiras e assim contamos com a presena de alunos da UFRJ e

    UFMG. Alm disso, h que se dizer que nas verses anteriores tnhamos entre os

    participantes alunos de Mestrado e de Doutorado, clusula de barreira que foi extinta

    e, a partir de 2009, os alunos de Iniciao Cientfica tiveram a oportunidade de

    apresentar e discutir suas pesquisas. Parece-nos que tal procedimento foi e

  • 5 Apresentao

    extremamente salutar j que no s vai de encontro a uma necessria e imperiosa

    interface entre a Graduao e Ps-Graduao, como tambm aponta ao jovem

    pesquisador caminhos futuros que sero trilhados para que atinja o grau

    ambicionado.

    Para ns, editores da Codex, particularmente auspiciosa que essa assero

    prospere, viceje, enfim, frutifique, dado que essa interface entre Graduao e Ps-

    Graduao o cerne de nossa existncia, veculo cientfico dinmico, competente e

    comprometido com a qualidade da produo cientfica em Estudos Clssicos.

    Quanto nossa qualidade como revista, ditames, critrios e normas de

    publicao no foram alterados nessa edio com a focalizao sazonal desse evento,

    outrossim os artigos foram avalizados e avaliados por professores doutores de

    diversas universidades, como rege o costume.

    O nmero trs de Codex conta 13 artigos que podemos dividir em 4 grandes

    grupos, a saber: Gramtica/Retrica; Filosofia; Poesia e Historiografia.

    No primeiro grande grupo (Gramtica e Retrica) Marlene Lessa, orientada

    por Adriano Scatolin, discorre acerca da constituio do thos do orador no Pro

    Milone de Ccero; Izabella Lombardi Garbellini, cujo orientador Marcos Martinho

    dos Santos, faz seus apontamentos acerca da Arte Retrica de Fortunaciano,

    grmatico latino do sculo IV, reconhecido por sua ateno questo da mtrica

    horaciana; finalmente o trabalho de Melina Rodolpho, aluna de Paulo Martins,

    acerca da cfrase, procedimento retrico complexo sobre o qual imprime novas

    luzes.

    No que se refere Filosofia, destacam-se dois trabalhos de orientandas de

    Daniel Rossi Nunes Lopes: Helena Andrade Maronna e Vanessa Arajo Gomes. Esta

    trata de alguns comentrios acerca de sua traduo ao Hpias Menor de Plato;

    aquela oferece um estudo acerca do conceito de mimesis nos Livros III e X da

    Repblica tambm de Plato.

  • 6 Codex, v.2, n.1, 2010, p.4-6

    O gnero sobre o qual os pesquisadores mais se debruaram na terceira

    edio o potico. Trabalharam com o subgnero dramtico: Milena de Oliveira

    Faria, orientada por Adriane da Silva Duarte e Lilian Amadei Sais, aluna de Andr

    Malta Campos. A primeira tratou dAs Tesmoforiantes de Aristfanes; a segunda do

    Reso, de Eurpides, sob o prisma da astcia.

    Quanto pica temos: um texto acerca do tempo verbal na poesia homrica

    de autoria de Caroline Evangelista Lopes, e outro de Viviani Xanthakos que diz

    respeito Cena-tpica e tema em Homero na Odissia, ambos sob a superviso de

    Christian Werner. A pesquisa acerca da Elegia Marcial e a performance de Rafael de

    C. M. Brunhara enceta reflexo sobre a poesia elegaca marcial, portanto, confim

    pica, no s sob a perspectiva mtrica (estamos no mbito do dstico elegaco), mas

    tambm sob o motivo blico. A orientao desse trabalho est a cargo de Paula da

    Cunha Corra.

    Finalmente, temos os textos dedicados historiografia. So eles: A questo do

    gnero biogrfico em Suetnio desenvolvido por Danielle Lima cuja orientao

    realizada Paulo Srgio Vascocellos. Uma reflexo sobre a peste e Pricles em

    Tucdides de Rosangela Santoro de Souza Amato sob superviso de Daniel Rossi

    Nunes Lopes. E por fim, a discusso sobre as Epistulae ad Caesarem de (Pseudo-)

    Salstio realizada por Gilson Charles dos Santos que orientado por Breno

    Sebastiani. Vale dizer que esse ltimo texto inaugura nova fase de Codex, uma vez

    que passamos a veicular daqui em diante textos tambm de doutorandos.

  • 7 Codex, v.2, n.1, 2010, p.7-21

    A construo do ethos do orador no Pro Milone de Ccero

    Marlene Lessa Verglio Borges Mestrado USP

    Orientador: Prof. Doutor Adriano Scatolin ( USP)

    Resumo

    O poder de persuaso do ethos do orador reconhecido tanto na tradio retrica grega como na latina. Mas na prtica oratria romana que a utilizao do ethos como fonte de persuaso se torna proeminente. Com base na teoria de Ccero sobre o ethos, desenvolvida no De oratore, II, 182-184, procuramos, neste trabalho, realizar um estudo da representao do ethos do orador no discurso Pro Milone, analisando os procedimentos retricos empregados nesse processo.

    Palavras-chave: Ethos; Ccero; Pro Milone; retrica; oratria romana.

    Abstract

    The power of the orators ethos is recognized both in Greek and Latin rhetorical tradition. Yet, it is in the Roman oratorical practice that the use of the ethos as a source of persuasion stands out. Based on the Ciceronian theory concerning the ethos, exposed in the De Oratore, II, 182-184, we aim to study in this paper the representation of the speakers ethos in Ciceros Pro Milone, analyzing the rhetorical procedures applied to this process.

    Keywords: Ethos; Cicero; Pro Milone; rhetoric; Roman oratory.

  • 8 Marlene Lessa A construo do ethos do orador

    Introduo

    O discurso Pro Milone tem origem em um caso de homicdio em que

    figuram como autor Tito nio Milo e como vtima Pblio Cldio Pulcro, ambos

    pertencentes ao cenrio poltico romano, atuando, porm, em campos opostos:

    Milo, pela parte dos optimates, Cldio, dos populares. Os dois lderes polticos

    comandavam gangues de rua que freqentemente se confrontavam em violentos

    combates. De acordo com o relato de Ascnio, no dia 18 de janeiro de 52 a.C., esses

    dois homens e os respectivos squitos se encontram acidentalmente na Via pia1.

    Surge uma escaramua entre as duas comitivas e Cldio, ferido no ombro, refugia-

    se numa taberna, de onde retirado fora pelos homens de Milo e assassinado. O

    crime causa a indignao da plebe, que, orquestrada pelos seguidores polticos de

    Cldio, passa a levar o caos Cidade. Pompeu chamado pelo senado para

    restabelecer a ordem e, para tal fim, nomeado cnsul nico. Um de seus primeiros

    atos fazer aprovar uma lei para julgar os crimes de violncia, impondo um rito

    mais abreviado para o julgamento e penas mais severas para os crimes. O julgamento

    de Milo se d sob essas novas condies, num clima tenso pela presso dos

    clodianos e pela presena de soldados armados no frum. Ccero no venceu esta

    causa. Mas o discurso Pro Milone que reescreveu mais tarde para publicao seria

    considerado pela posteridade uma obra-prima da retrica. Fontes antigas afirmam

    que o desempenho de Ccero por ocasio da defesa teria ficado muito aqum do de

    costume2. Relata-se, ainda, que uma cpia do discurso pronunciado, recolhida por

    estengrafos, teria sobrevivido ao lado da verso publicada pelo menos at a poca

    de Quintiliano, tendo se perdido posteriormente. O discurso que hoje conhecemos 1 As partes litigantes se acusam mutuamente de premeditao, mas Ascnio [39] afirma que o encontro foi casual. Quinto Ascnio Pediano (9 a.C 76 d.C) escreveu comentrios a vrios discursos de Ccero, dos quais restam-nos fragmentos de In Pisonem, Pro Scauro, Pro Cornelio, In toga Candida e Pro Milone. Alm dos registros histricos, consultava os acta diurna e os acta senatus. 2 Ascnio Pediano, Comentrios ao Pro Milone, 42; Plutarco: Ccero, 35; Dion Cssio, IX, 54.

  • 9 Codex, v.2, n.1, 2010, p.7-21

    seria uma verso aprimorada que Ccero teria escrito para publicao, com muitas

    diferenas em relao primeira. Sobre essa questo, tornou-se clebre uma anedota

    do historiador Dion Cssio3. Segundo este, estando Milo no exlio, uma cpia do

    discurso reescrito por Ccero teria chegado s suas mos. Depois de l-lo, teria Milo

    declarado que se aquele discurso tivesse sido pronunciado em sua defesa, no estaria

    ele comendo peixes to bons em Masslia4.

    Se dermos crdito a Ascnio, Ccero, apesar das hostilidades e ameaas de

    que fora vtima, aceitou defender a causa por lealdade a Milo, de quem era amigo5.

    Tinha em suas mos uma causa fraca: um crime que o senado havia considerado

    contra o Estado (contra rem publicam), um ru confesso e o repdio da maior

    parte da opinio pblica. Tinha a sua disposio trs atitudes possveis6: a) Pedir o

    perdo dos juzes com base na conduta anterior de Milo; b) Sustentar que o ato de

    Milo no configurava um crime, mas um servio ao Estado por livr-lo de um

    tirano; c) Sustentar que Milo agira em legtima defesa em virtude de uma cilada

    preparada por Cldio. Ccero escolhe esta ltima alternativa como linha

    argumentativa principal, mas far uso das anteriores de modo acessrio. Essa linha

    de defesa escolhida consiste na constituio de causa jurdica (constitutio causae

    iuridicialis): no h discusso sobre o fato (o que corresponderia constituio

    conjectural (coniecturalis), pois Milo admitia a sua responsabilidade pela morte de

    Cldio7. Por outro lado, Milo justificava-se alegando ter matado Cldio para se

    defender.

    A controvrsia jurdica, portanto, gira em torno da legitimidade do ato de

    Milo. Para provar essa legitimidade, Ccero precisava convencer os juzes de que

    Cldio realmente havia preparado uma emboscada para seu constituinte. No sendo 3 Dion Cssio, 40, 54, 2. 4 Atual Marselha, na Frana, para onde Milo seguira ao ser exilado de Roma. 5 Ascnio, 39. 6 Cf. Guillemin, A.M., Pro Milone de Cicron, 1938, p. 4. 7 Sposito, G., Il Luogo DellOratore: argomentazione topica e retorica forense in Cicerone, p. 57-58.

  • 10 Marlene Lessa A construo do ethos do orador

    possvel demonstrar pelos fatos que o ru agira licitamente, a defesa devia lanar mo

    de elementos externos como justificativa, o que corresponde constituio jurdica

    relativa (constitutio iuridicialis adsumptiva)8: o acusado assume o fato, mas afirma,

    com base nas circunstncias e nos motivos, que agiu de forma legtima. O ponto

    fulcral ao planejar-se um discurso consiste em escolher uma clara linha de defesa

    (status ou constitutio causae) e, a partir da, expandir os pontos fortes e omitir os

    fracos9. Numa causa fraca, como a de Milo, os argumentos emocionais podem

    desempenhar papel fundamental, pois a influncia afetiva desvia a ateno dos juzes

    em relao aos fatos e pode preencher possveis lacunas da convico intelectual. 10

    A persuaso afetiva se d por dois modos: pelo ethos e pelo pathos. Pelo

    ethos o orador busca despertar uma afetividade suave no ouvinte, a partir da

    representao do prprio carter (ou tambm o do cliente ou do adversrio, segundo

    a teoria de Ccero, como se ver adiante). Os argumentos patticos so os que

    persuadem por emoes fortes e paixes. Ccero far uso copioso das duas

    modalidades no discurso.

    Nosso trabalho focalizar o ethos, mais especificamente, os procedimentos

    retricos que Ccero utiliza para representar discursivamente o prprio ethos, de

    modo a torn-lo uma fonte de persuaso. Para esse fim, um dos passos do trabalho

    consistir no estudo da teoria do ethos constante do De oratore de Ccero (II, 182-

    184), traando um paralelo sucinto entre esta teoria e a de Aristteles, na Retrica.

    O conceito de ethos em Aristteles e em Ccero

    8 Cf. Cic. De inv. I, 15: [Constitutio] adsumptiva, quae ipsa ex se nihil dat firmi ad recusationem, foris autem aliquid defensionem adsumit. [Constituio] relativa, que por si mesma no oferece consistncia defesa e necessita recorrer a algum elemento externo. 9 Albrecht, M.Von. Ciceros style: a synopsis. 2003, p. 185. 10 Lausberg, H. Elementos de Retrica Literria, s/d, p.105.

  • 11 Codex, v.2, n.1, 2010, p.7-21

    Por ethos, Aristteles refere a apresentao do carter do orador no discurso

    de modo a obter credibilidade11. No estava em questo em sua teoria a autoridade

    prvia do orador, nem sua reputao, mas a sua capacidade de inspirar confiana nos

    ouvintes por meio do discurso12. Na doutrina de Ccero sobre o ethos, discutida

    principalmente nos pargrafos II, 182-184 do De oratore, o que est em questo

    como conquistar a benevolncia do ouvinte para com o litigante e seu patrono 13, e

    como afast-la do oponente. Para tanto, tem suprema importncia o carter prvio e

    a reputao do orador e de seu cliente, como afirma Antnio, um dos protagonistas

    do De oratore:

    Tem muita fora, ento, para a vitria, que se aprovem o carter, os costumes, os feitos e a vida dos que defendem as causas e daqueles em favor de quem as defendem, e, do mesmo modo, que se desaprovem os dos adversrios, bem como que se conduzam benevolncia os nimos daqueles perante os quais se discursa, tanto em relao ao orador como em relao ao que defendido pelo orador. Cativam-se os nimos pela dignidade do homem, por seus feitos, por sua reputao [...]14

    Assim, nota-se que o ethos apresentado por Ccero, no que tange a levar em

    conta a opinio prvia sobre o orador e seu cliente, afasta-se da doutrina aristotlica,

    aproximando-se, antes, das idias de Iscrates expostas na Antdosis15. Para Iscrates,

    11 Cf. Aristteles, Retrica, 1356a: Persuade-se pelo carcter quando o discurso proferido de tal maneira que deixa a impresso de o orador ser digno de f. (Aristteles. Retrica. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Trad. Manuel Alexandre Jnior et alii). 12 Id., ibid: , porm, necessrio, que esta confiana seja resultado do discurso e no de uma opinio prvia sobre o carcter do orador [...] 13 Wisse, J. Ethos and pathos from Aristotle to Cicero. 1989, p. 234. 14 De or. II, 182. (Todas as tradues do De oratore citadas neste trabalho so de Adriano Scatolin, extradas de sua tese de doutorado, FFLCH-USP 2009). Obs.: Efetuamos pequena mudana na sintaxe do 1 perodo. 15 Nem negligenciar a virtude aquele que deseja persuadir, mas de tal forma atentar a ela, que granjear junto a seus concidados a reputao mais decorosa possvel. De fato, quem no sabe que

  • 12 Marlene Lessa A construo do ethos do orador

    os argumentos oriundos da vida so mais poderosos do que os fornecidos pelo

    discurso16, idias de que Ccero compartilha. Wisse, comparando a verso

    aristotlica e a ciceroniana do ethos, mostra que o conceito de ethos aristotlico

    pode ser visto como ethos racional, ou seja: persuade fazendo com que o orador se

    mostre competente e confivel por meio do discurso. Neste caso, as emoes ficam

    restritas ao pathos17. J Ccero estaria mais interessado no ethos da simpatia, o que

    significa o estabelecimento de um elo emocional entre o orador e a audincia18. O

    ethos ciceroniano, portanto, estaria de algum modo conectado a um tipo de emoo

    mais branda, resultante da descrio do carter.

    Por que razo Ccero tende para uma concepo mais emocional do ethos?

    Apesar da provvel influncia isocrtica sobre seu pensamento, no se pode negar

    que as especificidades romanas tambm contriburam para isso. Uma razo possvel,

    segundo Riggsby, pode estar ligada diferena entre o sistema judicirio romano e

    o grego. O litigante romano, diferentemente do grego, era geralmente representado

    por um advogado (patronus), ou por vrios. Quando litigante e orador passam a ser

    duas pessoas distintas, a noo de apresentao do carter passa a abarcar tambm o

    patrono. No contexto romano, o interesse na apresentao do carter do patrono

    passa a estar centrado na influncia que advm do seu prestgio19.

    May afirma que o ethos retrico que Ccero descreve e emprega um ethos

    influenciado e condicionado pelas crenas sociais e polticas do ambiente da

    no apenas parecem mais verdadeiros os discursos pronunciados pelos que gozam de boa estima do que pelos que esto em descrdito, mas tambm que os argumentos oriundos da vida so mais poderosos do que os fornecidos pelo discurso? Assim, quanto mais fortemente algum desejar persuadir os ouvintes, mais se esforar por ser belo e bom e gozar de boa reputao entre os cidados. (Iscrates, Antdosis, 278, Apud Scatolin, A., Tese de doutorado FFLCH - USP, 2009, p. 119). 16 Id. Ibid. 17 Wisse, op. cit., p. 234. 18 Riggsby, A. M. The Rhetoric of character in the Roman Courts, in Cicero The Advocate, 2006, p. 181. 19 Id. ibid.

  • 13 Codex, v.2, n.1, 2010, p.7-21

    repblica romana, bem como pelas demandas do seu sistema judicirio20. Para os

    romanos, segundo May, o carter de um homem permanece constante ao longo de

    sua vida e determinante de suas aes21. Segundo esse ponto de vista, o carter

    dotado pela natureza, e, portanto, permanente; alm disso, acreditava-se que era

    constante de gerao para gerao numa mesma famlia. A venerao dos romanos

    pelo mos maiorum (costume dos antepassados) e pelos ancestrais, juntamente com a

    reverncia pela auctoritas (autoridade), alimentava a crena na fixidez do ethos22.

    Um ethos em posse de auctoritas (autoridade) e gratia (influncia) exercia papel

    decisivo nas relaes sociais e no prprio tribunal. Para Riggsby, o tribunal romano

    no s permitia inferncias a partir das demonstraes do carter, mas parecia

    mesmo exigi-las23. J em Atenas, embora tambm a autoridade do orador exercesse

    influncia, o uso aberto das relaes sociais para obteno de vantagem era visto

    com suspeita nos tribunais24.

    Portanto, os costumes, as crenas da sociedade e as prticas da advocacia

    permitem uma ampliao da aplicao do ethos no tribunal romano, que passa a

    abarcar no s o litigante, mas tambm seu patrono, bem como a parte oponente e

    qualquer outra pessoa que de algum modo tivesse envolvimento com a causa. Alm

    disso, o sistema da advocacia ensejava ao patrono em posse de auctoritas influir sobre

    a causa de modo a obter benefcios para o seu cliente, o que inclua falar sobre si

    mesmo, bem como solapar a autoridade do adversrio. A teoria do ethos descrita no

    De oratore II, 182-184 ilustra essa situao. Na primeira parte do pargrafo II, 182

    (Valet ... si nulla sunt), Antnio explicita o que pode caracterizar de modo favorvel

    20 May, J. M. Trials of Character: The Eloquence of Ciceronian Ethos, 1988, p. 6. 21 Id. , p. 9. 22 Id. p.6. 23 Riggsby, op. cit., p. 179: Roman courts [] not only allowed character inference, but seem to have demanded it. 24 Cf. Wisse, op. cit. p. 245.

  • 14 Marlene Lessa A construo do ethos do orador

    o orador e o litigante e denegrir os oponentes25. Os critrios definidores do carter,

    por meio dos quais a audincia avalia o cliente e o patrono, so: a dignitas, as res

    gestae e a existimatio vitae. Tais qualidades26 (relativas ao patrono e ao cliente) so

    mais fceis de serem ornadas, se reais, do que forjadas, se irreais. Tal afirmao deixa

    entrever a importncia do carter prvio, pois se o orador apenas inventar qualidades

    inexistentes elas provavelmente soaro inverossmeis. A seguir, Antnio enumera

    algumas qualidades que se requerem especificamente do orador, as quais dizem

    respeito ao (actio), ou seja, apresentao do discurso: so vantajosas, no

    orador, a brandura da voz, a expresso de pudor no rosto, a afabilidade nas palavras

    [...] A ltima frase do pargrafo 182 ressalta que as mesmas qualidades, tomadas ao

    inverso, devem ser imputadas aos oponentes.

    O 183 traz ao centro da discusso o tipo de discurso que convm: Antnio

    afirma que o ethos de grande utilidade nos casos em que no conveniente o uso

    de um discurso mais vigoroso que levaria a emoes mais fortes (pathos)27. O ethos,

    portanto, diz respeito a emoes brandas, que so despertadas na audincia por meio

    das descries do carter. No 184, Antnio concentra-se no carter dos clientes,

    25 II,182: Tem muita fora, ento, para a vitria, que se aprovem o carter, os costumes, os feitos e a vida dos que defendem as causas e daqueles em favor de quem as defendem, e, do mesmo modo, que se desaprovem os dos adversrios, bem como que se conduzam benevolncia os nimos daqueles perante os quais se discursa, tanto em relao ao orador como em relao ao que defendido pelo orador. Cativam-se os nimos pela dignidade do homem, por seus feitos, por sua reputao; pode-se orn-los com maior facilidade, se todavia existem, do que forj-los, se absolutamente no existem. Ora, so vantajosas, no orador, a brandura da voz, a expresso de pudor no rosto, a afabilidade nas palavras e, se acaso fazes alguma reivindicao com maior rispidez, parecer faz-lo contrariado e por obrigao. Exibir sinais de afabilidade, generosidade, brandura, devoo e de um nimo grato, no ambicioso, no avaro, extremamente til; e tudo aquilo que prprio de homens honestos, modestos, no de homens severos, obstinados, contenciosos, hostis, granjeia enormemente a benevolncia e a afasta daqueles em quem tais elementos no esto presentes; sendo assim, esses mesmos elementos devem ser lanados contra os adversrios de maneira inversa. 26 Wisse, op. cit., pp. 224-225: [...] Antonius points out that the necessary qualifications may be lacking in the patronus or in the cliens. 27 II, 183: Mas todo este gnero do discurso sobressai-se nas causas em que h menor possibilidade de se inflamar o nimo do juiz por meio de uma instigao severa e veemente; que nem sempre se busca um discurso vigoroso mas, muitas vezes, um discurso calmo, simples, brando, o qual recomenda sobremaneira os rus. Chamo de rus no apenas queles que so acusados, mas a todos os envolvidos na causa em questo, pois assim eram chamados antigamente.

  • 15 Codex, v.2, n.1, 2010, p.7-21

    que devem ser caracterizados como justos, ntegros, religiosos, timoratos,

    toleradores de injustias [...]28. E acrescenta que o ethos deve estar disseminado por

    todo o discurso, pois tem tamanha fora, se for tratado com delicadeza e

    julgamento, que muitas vezes tem mais poder do que a causa. Os dois ltimos

    perodos do 184 dizem respeito elocuo, pronunciao e ao contedo do

    discurso29, elementos com que se forja, por assim dizer, o carter do orador, diz

    Antnio. Assim, se o orador caracteriza seu cliente por meio de determinado tipo

    de pensamentos e determinado tipo de palavras, empregando-se ainda uma atuao

    branda e que expresse afabilidade, denotar, ao mesmo tempo, a excelncia do

    prprio carter.

    Nota-se, portanto, que a teoria do ethos ciceroniana, apesar de no se

    distanciar muito dos preceitos para o exrdio apresentados na Retrica a Hernio, de

    autor desconhecido, ou no De inventione, obra da juventude de Ccero, apresenta

    algumas inovaes e esclarece ambigidades. No De oratore II, 182-184, Antnio

    menciona distintamente o orador e seu cliente, distino que, em descompasso com

    a prtica, naquelas obras no existia; alm disso, prescreve que o que se aplica ao

    exrdio para granjear a benevolncia deve ser aplicado a todo o discurso. Ressalte-

    se, ainda, a importncia que dada adequada representao discursiva do ethos do

    cliente, capaz de evidenciar a excelncia do ethos do prprio orador, o que

    tambm um diferencial no s em relao aos manuais latinos contemporneos, mas,

    tambm, em relao teoria grega.

    28 II,184. Apresentar seus caracteres pelo discurso, ento, como justos, ntegros, religiosos, timoratos, toleradores de injustia, tem um poder absolutamente admirvel; e isso, quer no princpio, quer na narrao da causa, quer no final, tem tamanha fora, se for tratado com delicadeza e julgamento, que muitas vezes tem mais poder do que a causa. Realiza-se tanto por determinado julgamento e mtodo oratrios, que se forja, por assim dizer, o carter do orador; por meio de determinado tipo de pensamentos e determinado tipo de palavras, empregando-se ainda uma atuao branda e que expresse afabilidade, consegue-se que pareamos homens honestos, de boa ndole, bons. (No incio deste pargrafo fizemos pequenas alteraes na traduo).

    29 Wisse , op. cit. p. 231.

  • 16 Marlene Lessa A construo do ethos do orador

    A construo do ethos do orador no Pro Milone

    Observando a aplicao do ethos no discurso Pro Milone, destacamos alguns

    procedimentos fundamentais que Ccero usa com o fim de construir uma imagem

    favorvel de si mesmo. A estratgia central escolhida para a defesa o ataque ao

    carter de Cldio. A imagem negativa da vtima perpassa o discurso como um todo,

    e, dessa forma, Ccero vai operando por contrastes, ressaltando as qualidades do seu

    carter e do carter do seu cliente em oposio aos defeitos morais de Cldio. A

    estratgia visa a destruir certa simpatia com que a audincia costuma olhar para as

    vtimas e, ao mesmo tempo, anular a rejeio do pblico em relao a Milo.

    Procedimento recorrente ao longo do discurso o esforo de Ccero em

    apresentar o prprio carter em correlao com o de Milo, visando a transferir para

    este a prpria autoridade, o que leva a efeito por mtodos variados. Exemplo mais

    cabal dessa manipulao se pode notar no exrdio do discurso, em que o orador ora

    coloca o prprio ethos em contraste com o de Milo, ora com ele se identifica, de

    acordo com o interesse do momento. Comea o discurso com cautela, e no tem

    escrpulos em declarar seu temor diante da inusitada situao do frum cercado

    pelas armas (obviamente sua reputao prvia e sua auctoritas permitiam essa

    representao discursiva, sem prejuzo a sua imagem pblica). Dirigindo-se aos

    juzes em tom humilde e apologtico, coloca em contraste seu medo e a coragem de

    Milo ( 1)30, ao lastimar sua incapacidade de aportar causa a mesma grandeza de

    esprito de seu cliente, o qual se preocupa mais com a salvao da repblica do que

    com a sua.

    30 Ainda que eu receie, senhores juzes, que seja indigno sentir medo ao comear a discursar em defesa de um homem altamente corajoso, e de todo inadequado quando o prprio Tito nio se abala mais com a salvao da repblica do que com a sua que eu no possa oferecer sua causa igual grandeza de esprito, contudo, a aparncia inslita deste inslito tribunal aterroriza os nossos olhos que, para onde quer que se voltem, procuram em vo pelo velho costume forense e pela antiga praxe judicial.(As tradues do Pro Milone citadas neste trabalho so de nossa responsabilidade)

  • 17 Codex, v.2, n.1, 2010, p.7-21

    Essa manifestao de modstia est de acordo com seu plano ttico. O orador

    apresenta-se com um ethos humilde de modo a atenuar qualquer indisposio prvia

    contra si mesmo, e engrandece o ethos do cliente, tentando converter em coragem

    a idia de violncia qual Milo estava conectado na mente do pblico. Assim, o

    que vemos aqui seu ethos servindo de realce para o de Milo31. O medo

    expressado no primeiro pargrafo vai gradualmente cedendo espao para a

    confiana, inspirada pelo discernimento de Gneu Pompeu, varo extremamente

    sbio e justo [...] (3): Aquelas armas, aqueles centuries, aquela tropa, no

    anunciam perigo para ns, mas proteo, afirma. E, no 4, o prprio orador

    quem exorta os juzes a ter coragem para expressar seus julgamentos: Por isso,

    conservai vossa calma, senhores juzes, e afastai o temor, se tendes algum. O ethos

    temeroso, portanto, j ficou para trs, substitudo por um ethos confiante, que

    buscou em Pompeu, a mais eminente autoridade do momento, a afirmao de que

    precisava.

    Quanto ao distanciamento entre o ethos do orador e o do cliente,

    apresentado no primeiro pargrafo, no 4 j no existe mais; os dois aparecem

    totalmente identificados, compartilhando as qualidades de cidados dignos e

    corajosos (bonis et fortibus viris). Assim, Ccero transfere a Milo grande parte de

    sua bonitas e usufrui de sua fortitudo32. No pargrafo seguinte, tentando obter a

    comiserao dos juzes, lembra que ele e Milo, sendo excelentes cidados, no

    podem deixar de se sentir injustiados, pois levados vida pblica pela esperana

    das mais honorveis recompensas, no podem evitar temer os mais cruis castigos

    ( 5). A imagem do injustiado aparece tambm em outros momentos do discurso,

    principalmente quando faz aluso ao seu exlio. Ele, Ccero, tendo salvado a ptria,

    dela fora injustamente expulso (36): Pois que justa causa haveria para me restituir a

    31 Cf. Dyck, A.R. Narrative Obfuscation, Philosophical Topoi, and Tragic Patterning in Ciceros Pro Milone. Harvard Studies in Classical Philology, Vol. 98 (1998), p. 240. 32 Albrecht, op. cit. p. 183.

  • 18 Marlene Lessa A construo do ethos do orador

    Roma se no tivesse sido injusta a de me expulsar dela? E o orador conecta

    prpria sina, a sina de Milo ( 100), que, tendo livrado a ptria do jugo do inimigo,

    se acha na iminncia de tambm ser dela banido: Este homem, nascido para a

    ptria, h de morrer em algum lugar que no seja a ptria, ou talvez, no pela

    ptria? (104).

    O processo de identificao e contraste assume variadas feies ao longo do

    discurso, diversificando-se os modos e as pessoas comparadas. H momentos em que

    Ccero chega a identificar-se prpria repblica, como no 20, em que a fortuna

    de ambos caracterizada como uma s33. A despeito, porm, da enorme diferena

    entre o ethos real do orador e o de seu cliente, ou, por outra, do ethos do eminente

    consular e o do lder de gangue de rua, observa-se que Ccero consegue elaborar de

    modo consistente a aproximao entre si e seu cliente. Atribui o ato de Milo ao

    matar Cldio um monstro atrevido e abominvel (32), inimigo do Estado a

    um ato de salvao da ptria. O processo de identificao ir focar a identidade de

    ideais entre ambos, e no de temperamento. Por isso Milo freqentemente

    retratado como protetor da ptria (cf. 65, 83, 89), ttulo que se atribua a Ccero

    desde a poca do seu consulado. Por outro lado, diferem no temperamento: Ccero

    se apresenta como emotivo, sentimental, que sofre pelo seu cliente a ponto de

    chegar s lgrimas; Milo caracterizado como contido, calmo, resignado34,

    qualidades que tentam apagar sua prvia imagem de homem violento.

    Consideraes finais

    33 Quantas vezes eu mesmo, senhores juzes, escapei das armas de Pblio Cldio, de suas mos sangrentas? Se delas no me tivesse protegido a minha fortuna ou a da repblica, quem que teria institudo um tribunal para inquirir da minha morte? 34 Cf. 105: Mas terminemos, pois j no posso falar por causa das lgrimas, e Milo no permite que eu o defenda com lgrimas.

  • 19 Codex, v.2, n.1, 2010, p.7-21

    Podemos reconhecer no Pro Milone a nfase na construo do ethos do

    orador e do cliente de modo a serem capazes, juntos, de receber a aprovao da

    audincia e conquistar-lhe a simpatia, como parece ter sido a inteno de Ccero na

    teoria. Est presente tambm, de modo intenso, um processo de destruio da

    reputao da parte adversria. Nota-se que as aluses ao ethos do orador so, sempre

    que possvel, conectadas com seus feitos em prol dos cidados e da ptria, de modo a

    no demonstrar arrogncia35. Observa-se, tambm, que diante das condies

    excepcionais em que se deu o julgamento de Milo, Ccero teve que enfrentar o fato

    de ter no tribunal a presena de um ethos que eclipsava36 o seu, ou seja, o de

    Pompeu. A forma encontrada para lidar com essa situao foi a de evocar a

    autoridade do ento cnsul nico para reforar a causa que defendia. Para tanto,

    procura ligar Milo a Pompeu, retratando-os como amigos e mtuos apoiadores

    polticos, e a si mesmo, como compartilhando do crculo da intimidade de Pompeu.

    Assim, o uso artstico do ethos, visando a manipular as emoes da audincia,

    envolve todo e qualquer participante da cena do tribunal que possa contribuir de

    algum modo para a causa.

    Bibliografia

    ALBRECHT, Michael Von. Ciceros Style: A Synopsis. Leiden- Boston: Brill, 2003.

    ARISTTELES. Retrica. Imprensa Nacional- Casa da Moeda, s/d. Trad. Manuel

    Alexandre Jnior et alii).

    35 Como na Ret. Her. I, 8: [...] obteremos a benevolncia [...] se mencionarmos o que fizemos para o bem da Repblica, de nossos pais, amigos [...] 36 May, op. cit., p.165.

  • 20 Marlene Lessa A construo do ethos do orador

    [CICERO]. Retrica a Hernio. So Paulo: Hedra, 2005. Trad. e Intr. Ana Paula C.

    Faria e Adriana Seabra.

    CICERN. Pour T. Annius Milon. (Texte tabli et traduit par A. Boulanger). Paris:

    Les Belles Lettres, 1999.

    ________ Pro Milone de Cicern. (Prsent par A.M.Guillemin). Paris: Hachette,

    1938.

    ________ De linvention (Texte tabli et traduit par G. Achard). Paris: Les Belles

    Lettres, 1994.

    ________ Sobre el orador (introduccin, traduccin y notas de Jos Javier Iso).

    Madrid: Editorial Gredos, 2002.

    CICERO. Pro Milone, in M. Tulli Ciceronis Orationes. (Texto estabelecido por

    A.C. Clark). Oxford-New York-Toronto: Oxford University Press, 1918,

    Reprinted 1989.

    DYCK, A.R. Narrative Obfuscation, Philosophical Topoi, and Tragic Patterning in

    Ciceros Pro Milone. Harvard Studies in Classical Philology, Vol. 98

    (1998), pp.219-241.

    GRIMAL, Pierre. Cicron. Paris: Librairie Arthme Fayard, 1986.

    HUSBAND, R.W. The Prosecution of Milo. The Classical Weekly, Vol. 8, N 19

    (13/maro/1915), pp. 146-150.

    KENNEDY, George. The art of rhetoric in the Roman World. Princeton-New

    Jersey: Princeton University Press, 1972.

    KENNEDY, George A. The Rhetoric of Advocacy in Greece and Rome. The

    American Journal of Philology, Vol. 89, N4, (Oct.1968), 419-436.

  • 21 Codex, v.2, n.1, 2010, p.7-21

    LAUSBERG, Heinrich. Elementos de Retrica Literria. Lisboa: Fundao Calouste

    Gulbekian, s/d.

    LINTOTT, A.W. Cicero and Milo. The Journal of Roman Studies, Vol. 64 (1974),

    pp 62-78.

    MAY, James M. Trials of Character: The eloquence of Ciceronian Ethos. Chapel

    Hill and London: North Carolina Press, 1988.

    POWELL, J. and PATERSON, J. (ed.). Cicero The Advocate. Oxford-New York:

    Oxford University Press, 2004.

    SCATOLIN, Adriano. A inveno no Do orador de Ccero: um estudo luz de Ad

    Familiares I, 9, 23. Tese de doutorado apresentada ao Programa de Letras

    Clssicas da Universidade de So Paulo (USP-FFLCH) (2009).

    SPOSITO, Gianluca. Il Luogo DellOratore Argomentazione topica e retorica

    forense in Cicerone. Napoli: Edizione Scientifiche Italiane, 2001.

    WISSE, Jakob. Ethos and pathos from Aristotle to Cicero. Amsterdam: Adolf M.

    Hakkert - Publisher, 1989.

    Recebido em Fevereiro de 2010 Aprovado em Abril de 2010

  • 22 Codex, v.2, n.1, 2010, p.22-30

    A mimesis nos Livros III e X da Repblica de Plato

    Helena Andrade Maronna Graduao (USP)

    Orientador: Prof. Daniel Rossi Nunes Lopes (USP)

    Resumo

    O presente estudo tem como objetivo investigar a questo da mimesis na Repblica de Plato; que o leva a banir a poesia de sua cidade ideal e o porqu deste ataque. No incio da

    Repblica Plato aparenta assumir uma posio branda em relao poesia imitativa, mas ao longo da obra a sua censura vai tornando-se cada vez mais violenta at culminar com o

    banimento do poeta de sua cidade ideal. Quando Plato desvela o seu maior ataque poesia

    no Livro X, muita discusso j foi feita acerca da educao da cidade ideal e do cidado

    ideal; paralelo entre o todo e a parte que Plato estabelece durante toda a exposio de sua

    doutrina. Apoiando-nos na crtica moderna sobre tal problemtica pretendemos obter uma

    viso mais abrangente sobre os estudos da mimesis retratada nos Livros III e X da Repblica de Plato.

    Palavras-chave: Filosofia Antiga; Plato; Repblica; mimesis

    Mimesis in Book 3 and 10 of Platos Republic

    Abstract

    The present study aims to investigate the question of the mimesis in Platos Republic, what motivates him to banish the poetry of its ideal city and the reasons of this attack. At the beginning of the Republic, Plato seems to assume a lenient position on the imitative poetry, but throughout the dialogue his censorship becomes increasingly violent until culminating with the banishment of the poet from its ideal city. When Plato evinces his major attack against the poetry in Book X, much discussion had already been made concerning the ideal citys education and the ideal citizen by the parallel between the whole and the part that Plato establishes during the entire exposition of his doctrines. With the support of the modern critics about such problematic, we intend to get a more including understanding of the studies of mimesis in Books III and X of Platos Republic.

    Keywords: Ancient Philosophy, Plato, Republic, mimesis.

  • 23 Helena Maronna A mimesis nos Livros III e X da Repblica de Plato

    O presente trabalho tem como objetivo analisar a questo da poesia nos Livro

    III e X da Repblica de Plato. Aps uma longa exposio durante os Livros

    anteriores sobre a construo da cidade ideal, o filsofo, no Livro X, desvela o seu

    ataque final poesia imitativa e acaba por bani-la de sua cidade, a kallipolis. A

    Repblica tem como objetivo principal a investigao da natureza da justia e, para

    tanto, Plato esboa uma cidade ideal onde a justia seria incorporada em sua

    totalidade. Ao longo da obra, Plato estabelece um paralelo entre a cidade e o

    indivduo, a perspectiva poltica da cidade e a perspectiva psicolgica do indivduo,

    o que segundo ele essencial para a verdadeira compreenso das questes que sero

    tratadas. Enxergando o macrocosmo seria mais fcil compreend-las no

    microcosmo, e assim toda a obra pautada por essa analogia.

    - Talvez num quadro maior, a justia seja maior e mais fcil de

    estudar. Por conseguinte, se quiserdes, procuraremos antes a

    natureza da justia nas cidades; em seguida, examin-la-emos no

    indivduo, de maneira a perceber a semelhana da grande na

    forma da pequena .1

    No primeiro momento da crtica poesia, nos Livros II e III, o foco a

    cidade e a educao dos Guardies, mas no Livro X a poesia encarada sob a

    perspectiva do indivduo. A censura da poesia faz parte de um sistema educacional

    ideal, que, a princpio, voltado para os Guardies, cidados responsveis por

    manter a ordem e fixar as regras. A poesia teria o poder de influenciar o indivduo a

    ponto de comprometer a sua razo. Para chegar a essa concluso necessrio passar

    brevemente pela concepo de Plato a respeito da alma, exposta no Livro IV, e pela

    sua Teoria das Formas, exposta nos Livros V-VII.

    1 Rep., II, 369a.

  • 24 Codex, v.2, n.1, 2010, p.22-30

    A alma dividida em trs partes, segundo o filsofo: a racional, a apetitiva e a

    irascvel. Porm, essa distino, posteriormente no Livro X, vai se fazer somente

    entre a parte racional e a irracional. A parte contemplada pela poesia justamente

    aquela que estimula na alma os elementos irracionais. A parte racional, considerada

    superior e responsvel pela capacidade de pensar, subvertida pela mimesis da

    poesia, influenciando o comportamento do indivduo. A poesia, dessa forma, no

    pode ser considerada uma boa guia na conduta tica do cidado. Quando Homero,

    por exemplo, retrata os deuses comportando-se de forma semelhante aos homens,

    brigando entre si, enganando homens ou sucumbindo aos seus instintos, ele

    estabelece padres de comportamento viciosos como sendo aceitveis, influenciando

    a sua audincia que vai aceitar tais comportamentos como legtimos.

    Nesse ponto necessrio esclarecer o significado e a importncia que a poesia

    tinha entre os gregos na Antiguidade. A palavra arte, como hoje entendida, no

    tinha o mesmo sentido para os gregos. A palavra que traduzimos por arte, tekhne,

    servia para designar qualquer ofcio ou habilidade; o ofcio da marcenaria ou da

    navegao, por exemplo, era considerado uma tekhne. A poesia, a dana, a msica e

    a pintura eram apenas outros tipos de tekhne. No havia a concepo esttica que

    hoje est ligada arte, e assim o ofcio da poesia era , arte potica. A

    noo de arte dos gregos era certamente diversa da que hoje possumos e quando

    admiramos as obras gregas da Antiguidade com uma experincia diferente da que

    o fizeram os seus contemporneos.

    Segundo Havelock2, a poesia quela poca era considerada como um modelo

    em que estavam implcitas as diretrizes de comportamento que norteavam, muitas

    vezes, a sociedade e de onde se retiravam os exemplos ticos. Tais obras eram

    compostas para serem cantadas em pblico e tinham um carter educacional e

    moralizante, alm de apenas deleitar os espectadores. A poesia era a depositria da

    2 Havelock, E. Prefcio a Plato. Campinas: Papirus, 1996. p.44.

  • 25 Helena Maronna A mimesis nos Livros III e X da Repblica de Plato

    tradio e reguladora dos costumes de uma sociedade essencialmente oral.

    Primordialmente, a poesia no era encarada como um texto escrito, mas como uma

    performance envolvendo discurso e msica. O pathos de todos os envolvidos na

    execuo poeta, aedo, ator e espectador era parte essencial do sucesso da poesia.

    nesse contexto que a crtica de Plato faz sentido. A poesia tinha a funo de

    educar e sobre isso que Plato constri toda a sua censura; com seu ataque poesia,

    ele quer romper com essa tradio. Para ele, o indivduo deve ser autnomo, cuja

    razo desempenhe retamente as suas funes. No deve haver uma fuso do

    espectador com o que est sendo narrado. Como observa Havelock, a doutrina da

    psique autnoma a contrapartida da rejeio da cultura oral3. A poesia para Plato

    tem um carter perigoso, pois tem a capacidade de corromper a alma prejudicando

    seu acesso verdade. A poesia, enquanto mimesis, no tem acesso verdade e no

    pode, portanto, infundir este conhecimento na sua audincia, por isso um veculo

    moralmente perigoso para a sociedade. O poeta no conhece a verdadeira essncia

    da matria de seus poemas, segundo Plato.

    A Teoria das Formas vem justamente explicar o problema da verdadeira

    essncia das coisas. Para cada classe de material h uma forma imaterial e una,

    existente apenas nos mundo das ideias. H no mundo inteligvel (das ideias), por

    exemplo, a Forma-cama. No mundo sensvel, o plano material, h as camas

    particulares, que podem ter aspectos diferentes, ou cores diferentes, mas que

    participam da Forma-cama e so realizaes materiais da ideia de cama. A pintura de

    uma cama seria, portanto, a representao da realizao material de uma cama

    particular e estaria, ento, afastada em trs graus da verdade. A pintura, sob esse

    prisma, participaria apenas da aparncia de cama, e ainda, apenas de uma faceta dessa

    aparncia, pois vista de outra perspectiva ela poderia ser diferente. A diferena no

    apenas na aparncia, mas tambm na qualidade da veracidade da representao. A

    3 Idem, 1996, p.216.

  • 26 Codex, v.2, n.1, 2010, p.22-30

    Forma-cama no varia, imutvel e nica, j a representao mltipla e varivel. A

    poesia tem o mesmo carter da pintura; imitativa e no tem acesso verdadeira

    natureza da matria que imita, sendo apenas um fantasma () da

    realidade sensvel e participando minimamente da essncia da Forma no mundo

    inteligvel.

    Ao elaborar a sua cidade, Plato estabelece as regras que a fariam ideal e

    totalmente justa. A poesia imitativa se configura, ento, como a forma errada da

    educao daquela poca e por isso necessrio que ela seja excluda, para dar lugar a

    uma nova forma de educao. Plato no esclarece muito bem qual seria essa forma,

    mas no Livro II estabelece algumas regras que deveriam ser seguidas para que ela

    tivesse o seu lugar. Porm, no Livro X, depois de expor nos Livros intermedirios a

    sua Teoria das Formas, que fundamenta a diferena entre ser e aparncia, e a sua

    Teoria da Alma Tripartida, a poesia mimtica no cabe mais na cidade e deve ser

    banida.

    A discusso sobre a poesia tem incio logo no Livro II, quando a cidade ideal

    comea a ser esboada. Aqui a poesia tratada como uma das duas partes essenciais

    da educao grega (paideia) e encarada em seu carter coletivo. Plato critica a

    poesia por trazer modelos viciosos como sendo moralmente aceitveis, e por conter

    em seu discurso (logos) uma mistura de elementos verdadeiros e elementos falsos.

    Essa alegao apontada como o primeiro problema relativo poesia. As crianas

    que crescem escutando essa poesia no podero desenvolver um bom carter. A

    princpio, Plato trata exclusivamente da educao dos Guardies da cidade,

    cidados que teriam a funo de regular as leis e manter a ordem; mais adiante,

    porm, parece que a sua doutrina se estende para todos os cidados da cidade. No

    Livro III, Plato continua desenvolvendo a sua censura poesia, mas j aqui o foco

    a forma, o logos da poesia. O filsofo faz uma distino entre trs tipos de narrativas

    possveis: a narrativa simples, em que o poeta apenas faz uma narrao em 3 pessoa,

    como so os ditirambos; a imitao (mimesis), em que o poeta procura assemelhar-se

  • 27 Helena Maronna A mimesis nos Livros III e X da Repblica de Plato

    personagem atravs do discurso em 1 pessoa, como so a tragdia e a comdia; e

    por fim, a narrativa mista, em que os dois tipos de discursos so utilizados, cujo

    exemplo so as epopeias. At aqui a distino da poesia aparenta ser essencialmente

    formal e Plato conclui, aparentemente, que a narrativa ideal seria a mista4, mas que

    ainda assim, a maior parte do discurso deve ser o simples e a parte imitativa deve ser

    somente para imitar homens de bem, praticando o bem.

    - Utilizar, pois, de uma forma de relato similar que

    mencionamos, h um momento, a propsito dos versos de

    Homero, e seu discurso participar ao mesmo tempo da imitao

    e da narrao simples, porm, num longo discurso, haver

    apenas uma parte mnima de imitao.5

    Logo no incio do Livro X Plato faz referncia a mimesis do Livro III e por

    meio de Scrates congratula-se de ter banido da cidade o que na poesia imitativa

    houvesse de prejudicial.

    - E por certo reiniciei embora tenha muitas outras razes para crer que a nossa cidade foi fundada da melhor maneira possvel, pensando principalmente em nosso regulamento sobre a poesia que o afirmo. - Que regulamento? perguntou.

    4 Cf. Livro III , 396e, e mais adiante, 398a, quando Plato ainda admite alguns tipos de poeta na cidade, desde que se submetam s regras expostas neste Livro. 5 Rep., III, 396e.

  • 28 Codex, v.2, n.1, 2010, p.22-30

    - O de no admitir, em caso algum, o quanto nela for de

    imitao. A absoluta necessidade de recusar a admiti-la ,

    suponho, o que aparece com mais evidncia, agora que

    estabelecemos ntida distino entre os diversos elementos da

    alma.6

    Aqui j surge uma grande polmica deste Livro: a mimesis discutida no Livro

    III seria a mesma que Plato passa a refutar no Livro X? No Livro III Plato

    considera a mimesis como sendo o discurso em 1 pessoa. J no Livro X a mimesis

    aparenta ser mais abrangente referindo-se a todo tipo de representao potica.

    Agora, Homero j considerado como sendo o grande lder dos tragedigrafos e

    passa a ser o principal alvo do filsofo. Por isso, talvez com estranhamento que

    percebemos ao longo da obra que, apesar de dirigir nele o seu mais spero ataque,

    ele utiliza diversas passagens do poeta para exemplificar modelos de conduta e

    endossar seu argumento. Plato admite o talento de Homero e admite em sua poesia

    alguma dose de verdade, mas justamente essa mistura do que verdadeiro e do que

    falso e a falta de discernimento entre eles que nociva. Na cidade ideal no h

    espao para a poesia perigosa e perturbadora da razo que o poeta oferece. isso

    que Plato discute no Livro X por meio dos exames metafsico, epistemolgico,

    tico e, finalmente, psicolgico da poesia imitativa. Alis, justamente o estatuto

    metafsico da poesia que confere um grande problema compreenso do termo

    mimesis empregado por Plato ao longo da Repblica. Pois, aps definir que a

    mimesis se encontra em trs graus afastada da verdade, como poderemos considerar

    que mesmo a poesia que se serve dos discursos em 3 pessoa, no seria mimtica?

    6 Rep., X, 595a.

  • 29 Helena Maronna A mimesis nos Livros III e X da Repblica de Plato

    luz de estudiosos do assunto esta pesquisa pretende confrontar as opinies e

    os estudos que vm sendo colocados em discusso nos ltimos anos sempre nos

    guiando pelo texto do filsofo em sua traduo para o portugus 7. No momento

    atual trabalhamos com os textos de Jessica Moss e Halliwell, que propem sadas

    diferentes para o termo mimesis. Moss em seu artigo intitulado What is imitative

    poetry and why is it bad?8, estabelece que para ela a poesia no totalmente

    excluda da cidade ideal, mas somente o que nela houver de falso em relao

    verdade, ou seja, no Livro X Plato condena no todo tipo de poesia, mas somente o

    que nela houver de imitativo. J Halliwell9, em sua introduo traduo do Livro

    X, assume que o termo mimesis diferente nos dois momentos da crtica. No Livro

    X a mimesis considerada inerentemente falsa mais do que somente capaz de

    expressar falsidade, e a crtica recai no s sobre a poesia, mas arte representativa

    como um todo.

    O estatuto ontolgico da poesia abordado no Livro X tambm nos deixa

    com alguns problemas a mais: como explicar a permisso de alguns tipos de poesia

    na cidade, depois de considerar que toda representao mimtica? E, se toda a

    mimesis est trs graus afastada da verdade, como considerar que alguma possa ter

    lugar na educao de uma cidade onde no permitida nenhum tipo dela? Pois, para

    Plato, parece que h uma nova poesia a ser introduzida em sua cidade ideal. Aquela

    que falar de atos moralmente aceitos, que construam, determinem e incentivem o

    bom homem a ser cada vez melhor e sempre comprometido com a kallipolis. Mas,

    qual seria essa poesia e como ela deveria se estruturar para que possa ter acesso

    verdade e deixar assim de ser mimesis?

    7 Conforme traduo citada na bibliografia. 8 MOSS, J. What is imitative poetry and why is it bad? In: FERRARI, G. R. F. (Org). The Cambridge Companion to Platos Republic. London: Cambridge University Press, 2007. 9 HALLIWELL, S. Plato: Republic 10. Warminster: Aris & Phillips, 1988.

  • 30 Codex, v.2, n.1, 2010, p.22-30

    Bibliografia

    GUINSBURG, J. (Org.). A Repblica de Plato. So Paulo: Perspectiva, 2006.

    HALLIWELL, S. Plato: Republic 10. Warminster: Aris & Phillips, 1988.

    MOSS, J. What is imitative poetry and why is it bad? In: FERRARI, G. R. F. (Org).

    The Cambridge Companion to Platos Republic. London: Cambridge

    University Press, 2007.

    MURRAY, P. Plato on Poetry. London: Cambridge University Press, 1996.

    Recebido em Fevereiro de 2010 Aprovado em Abril de 2010

  • 31 Codex, v.2, n.1, 2010, p.31-42

    Apontamentos sobre a Arte retrica de Fortunaciano

    Izabella Lombardi Garbellini Mestrado (USP)

    Orientador: Prof. Doutor Marcos Martinho dos Santos (USP)

    Resumo

    Neste artigo, apresenta-se um resumo das partes de minha pesquisa de mestrado, a qual tem por objeto a Arte retrica de Consulto Fortunaciano, manual escolar composto em latim, provavelmente no sculo IV d. C.. A pesquisa divide-se em duas partes: a primeira compreende um estudo sobre a autoria, datao e partio da obra, e outro sobre a doutrina exposta nesta e, em particular, sobre quatro pontos dessa doutrina que chamam a ateno da crtica especializada por serem, de algum modo, particulares da obra; a segunda parte compreende a traduo anotada da obra.

    Palavras-chave: pesquisa de mestrado; ars rhetorica; Consultus Fortunatianus

    Notes on the Art of Rhetoric by Fortunatianus

    Abstract

    This article presents an overview of my Master research, which focuses on the Art of Rhetoric by Consultus Fortunatianus, a handbook composed in Latin, probably in the fourth century AD. The research is divided into two parts: the first comprises a study of the authorship, dating and partition of the work, and another a study of the doctrine set forth in this and in particular on four points of doctrine which attract the attention of specialized critics for being somehow, particular to this work; the second part includes the annotated translation of the work.

    Keywords: Master research; ars rhetorica; Consultus Fortunatianus

  • 32 Izabella Lombardi - Apontamentos sobre a Arte retrica de Fortunaciano

    Minha pesquisa de mestrado tem por objeto a Arte retrica de Consulto

    Fortunaciano, manual escolar composto em latim, provavelmente no sculo IV d.

    C.. A pesquisa divide-se em duas partes: a primeira compreende um estudo sobre a

    autoria, datao e partio da obra, e outro sobre a doutrina exposta nesta e, em

    particular, sobre quatro pontos dessa doutrina que chamam a ateno da crtica

    especializada por serem de algum modo particulares da obra; a segunda parte

    compreende a traduo anotada da obra. Nela, adotou-se a edio de Lucia Calboli

    Montefusco (1979), no s por ser a mais recente, mas porque coteja cdices no

    que no haviam sido compulsados pelos editores anteriores, por exemplo, por Karl

    Halm (1863).1

    No texto que se segue, apresenta-se um resumo das partes da pesquisa.2

    Introduo

    Os especialistas costumam confrontar a Arte retrica de Fortunaciano com as

    obras de artgrafos dos sculos IV-VI d.C., por exemplo, com as de Caio Jlio Vtor

    (c. sc. IV d. C.), Marciano Capela (sc. V d. C.) e Sulpcio Vtor (ca. sc. IV d. C.).3

    1 para notar, porm, que alguns aspectos da edio de Calboli Montefusco foram criticados, uns, pela prpria Calboli Montefusco (1998, p. 23-24), e outros, por Reynolds (Reynolds, 1983, p. 339), que diz: We now have Lucia Calboli Montefusco's excellent edition (Bologna, 1979). It would be unwise to trust her stemma, however; the affiliations of the manuscripts are not constant throughout the work.

    2 Informe: este texto verso escrita da comunicao apresentada no IV Seminrio de pesquisa em Letras Clssicas, promovido pelo Programa de Ps-Graduao em Letras Clssicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, ocorrido em dezembro de 2009. 3 o que faz, por exemplo, Reuter, que descreve e compara as obras dos artgrafos da chamada Antiguidade Tardia (Reuter, 1893, p. 74-134); diz o estudioso: Aber welche Entwicklung die Kunstlehre genommen hat, davon geben einige kurze Lehrbcher des vierten und fnften Jarhunderts Kunde: es sind die Artes des Chirius Fortunatianus, Julius Victor, Augustin, die lnstitutionen des Sulpitius Victor, das fnfte Buch der Nuptiae des Martianus Capella. Fur den

  • 33 Codex, v.2, n.1, 2010, p.31-42

    Assim, assinalam algumas caractersticas comuns a tais obras, por exemplo, o

    interesse preponderante pelos preceitos do gnero judicial, em detrimento dos

    preceitos do gnero deliberativo e demonstrativo; ou ainda, a finalidade didtica, ou

    melhor, o uso escolar.4

    Quanto Arte retrica de Fortunaciano, pode-se inferir a finalidade didtica

    no s por observaes feitas pelo autor, mas pelo modo catequtico com que expe

    a doutrina retrica. Assim, de um lado, os trs hexmetros que encabeam a obra j

    indicam brevemente a quem ela interessa, a saber, quele que se apressa para, pelo

    caminho da retrica, ser levado ao conhecimento das causas e leis.5 Alm disso,

    Fortunaciano distingue entre preceitos vlidos para discursos no frum e outros

    vlidos para a declamao escolar.6 De outro lado, o modo de exposio da Arte

    retrica de Fortunaciano, todo por perguntas e respostas, isto , catequtico,

    associado pelos especialistas ao contexto didtico ou escolar a que se destinaria a

    obra,7 na medida em que seria imitao do aluno que pergunta e do professor que

    responde. Alm disso, vale ressaltar que, nos manuscritos, a Arte referida seja pelo

    termo grego enchiridion, seja pelas expresses latinas correspondentes liber manualis

    Gebrauch der Rhetorschule sind sie geschrieben, als Leitfaden fuir den Unterricht gedacht [...]. Individualitten also sind diese Schriftsteller nicht. Sie sind nur Trger der Tradition (Reuter, 1893, p. 74-75). 4 certo, porm, que h diferenas, s vezes notveis, entre as obras; por exemplo, o De arte rhetorica de Marciano Capela pertence a uma exposio maior das chamadas artes liberais. 5 Quisquis rhetorico festinat tramite doctus/ ad causas legesque trahi, bene perlegat artis/ hoc opus et notum faciat per competa callem (Cons. Fortunatianus, Ars Rhet., 1, 1). 6 Possumus aliquando omissis principiis a narratione incipere? immo etiam necesse est,cum festinare iudicem senserimus, ne utendo principiis magis eum offendamus, dum illi moram facimus.Sed hoc in foro tantum. Quid in his scholasticis declamationibus? minime; non enim hic certi sunt iudices, quorum animus perspici possit, maxime cum ad audiendum sint voluntarii (Cons. Fortunatianus, Ars Rhet., 2, 20). 7 Assim, por exemplo, Kennedy (1994, p. 275): The Ars Rhetorica of Fortunatianus [] takes the form of a catechism, that is, short questions and answers to be memorized by the student; Calboli Montefusco (Il Nome di Chirio Consulto Fortunaziano, 1979, p. 81): Oltre all'aspetto esteriore di questa ars, la cui forma catechetica sottolineata in vari codici dalle sigle In = interrogatio o M = mathets prima delle domande dell'alunno e R = responsio o = didskalos; prima delle risposte del maestro; Muenscher (1910, p. 44): C. Chirius Fortunatianus, Verfasser einer ars rhetorica von drei Bchern in katechetischer Form.

  • 34 Izabella Lombardi - Apontamentos sobre a Arte retrica de Fortunaciano

    ou breuis libellus, que se aplicam a um vade-mcum escolar (cf. Calboli Montefusco,

    in Consultus Fortunatianus, 1979, p. 8-20).

    1. Da autoria, datao e partio da Arte

    Quanto autoria, o nome do autor da Arte varia nos manuscritos e, da, nas

    edies modernas; Karl Halm, por exemplo, adota o nome C. Chirius

    Fortunatianus, a Calboli Montefusco, o nome Consultus Fortunatianus. Esta dedica

    o artigo Il nome di Chirio Consulto Fortunaziano (Calboli Montefusco, 1979)

    investigao das variantes do nome encontradas nos manuscritos8. J os testemunhos

    que citam o nome Consultus Fortunacianus referem-no, de modo geral, a um autor

    de arte retrica, mas nem sempre citam algum passo especfico, que se possa

    identificar com algum passo da Arte.

    Quanto datao, as referncias internas e externas s permitem dizer que ela

    seria posterior a Quintiliano (sc. I d.C.) e anterior a Cassiodoro (sc. VI d.C.), isto

    , que teria sido composta em algum momento entre os sculos II e V d.C.. O

    terminus post quem infere-se, com alguma certeza, da lio de Fortunaciano sobre a

    regra da pronunciao (3, 19), que parece depender das regras da pronunciao

    expostas por Quintiliano na Instituio oratria (11, 3, 30).9 J o terminus ante quem

    infere-se, com toda segurana, das referncias de Cassiodoro a Fortunaciano.

    8 Em resumo, a especialista defende que Consultus Fortunatianus teria sido seu nome correto, e o termo Chirius seria uma abreviao do termo enchiridion, que nas cpias manuscritas teria sido incorporado ao seu nome. Cf. a introduo da edio de Calboli Montefusco (Consultus Fortunatianus, 1979, p. 14-20). 9 Vide indicao de Calboli Montefusco apud Cons. Fortunatianus, 1979, p. 482: lorigine quintilianea dellintero paragrafo evidente [...]. Si tratta di um adattamento delle quatro virt teofrastee dellelocutio operato probabilmente gi prima di Quintiliano [...]. Anche nei particolari Fortunaziano sembra dipendere strettamente da Quintiliano: cf. 11, 3, 30.

  • 35 Codex, v.2, n.1, 2010, p.31-42

    Cassiodoro chama Fortunaciano artigraphus nouellus, bem como doctor nouellus,10

    de modo a distingui-lo daqueles que chama magistri saecularium litterarum. Alm

    disso, cita diversos passos da Arte em suas Instituies (2, 2, 1; 2, 2, 4; 2, 2, 10; 2, 2,

    11; 2, 2, 16). J a referncia a Marcomano11, por exemplo, permitiria precisar a

    datao da Arte, no fosse a datao daquele autor igualmente incerta... Seja como

    for, os especialistas so, em geral, unnimes em datar a Arte do sc. IV d.C., no que

    parecem seguir a opinio de Muenscher (1910, p. 45).12

    Quanto partio, a Arte divide-se em trs livros, assim:

    Livro I: Trs versos hexamtricos encabeam a obra, de modo a exortar aquele

    que, douto, se apressa para, pelo caminho da retrica, ser levado ao conhecimento

    das causas e leis a ler atentamente tal tratado de arte retrica (1, 1). Segue-se, ento,

    uma srie de definies que dizem respeito retrica, ao orador e a seu ofcio, a sua

    finalidade, s questes civis e seus gneros, s partes do ofcio do orador (1, 1).

    Depois dessas breves definies, o autor logo passa a expor a doutrina dos estados de

    causa (status), definindo o ponto a ser julgado (krinmenon) (1, 2), as matrias

    inconsistentes (asstata) (1, 3-5), os dutos (ductus) (1, 6-8), os gneros de

    controvrsias (genera controuersiae) (1, 9-11) e, finalmente, o estado de causa

    (status) propriamente dito, o que ocupa tambm o incio do segundo livro (1, 12 - 2,

    11);

    10 Secundum Fortunatianum artigraphum nouellum (Cassiodorus. Instit 2, 2, 1) e Fortunatianum uero doctorem nouellum (idem 2, 2, 10). 11 A modo non praescribimus, sicut aput Marcomannum habemus? (Cons. Fortunatianus, Ars Rhet., 1, 23). 12 Cf. o verbete C. Chirius Fortunatianus (Muenscher, 1910, p. 44-45). Dentre todos os especialistas que datam a obra do sculo IV d. C., Kennedy (1994, p. 275) o nico que a situa no sculo IV ou no V d. C., embora no fornea nenhuma justificativa para tal datao: the Ars Rhetorica of Fortunatianus, written in the fourth or perhaps the fifth century.

  • 36 Izabella Lombardi - Apontamentos sobre a Arte retrica de Fortunaciano

    Livro II: Segue-se explicao do status a definio e explicao das partes

    do discurso (partes orationis) (2, 13-31), a saber: princpio, narrao, argumentao,

    perorao;

    Livro III: O autor trata da disposio (dispositio) (3, 1-2), da elocuo

    (elocutio) (3, 3-12), da memria (memoria) (3, 13-14), da pronunciao

    (pronuntiatio) (3, 15-23).

    2. Da doutrina retrica da Arte

    No estudo sobre a doutrina retrica da Arte, a pesquisa concentrou-se em

    pontos que os especialistas consideram particulares da obra, seja ocorrncia de

    termos ou conceitos ausentes de outros textos antigos de retrica, seja pelo modo

    diverso de sistematizar termos e conceitos comuns entre a Arte e estes.13 So quatro

    esses pontos, a saber: 1) a sistematizao dos estados de causa (status) (1, 22-27); 2) a

    doutrina dos dutos (ductus) (1, 6-8); 3) a sistematizao dos caracteres da elocuo

    (characteres elocutionis) (3, 9); 4) a sistematizao das figuras (figurae) (3, 10).

    Quanto sistematizao dos estados de causa, chama a ateno, por exemplo,

    que Fortunaciano inclua a metlepsis entre os estados legais, ao passo que os demais

    rtores, na esteira de Hermgoras, o incluam entre os estados racionais, como

    assinalam Calboli Montefusco (1975, p. 212; 1979, p. 300-328; 1986, p. 35-37)14 e

    Reuter (1893, p. 86).15

    13 Cf. a Bibliografia, principalmente Calboli Montefusco (Calboli Montefusco, 1975; Consultus Fortunatianus, 1979, p. 275-462; 1975; 1986; 2003). 14 Calboli Montefusco, 1975, p. 212: La metlepsis occupava, nella partizione di Ermagora, il quarto posto tra gli stati razionali, come appare chiaro da Quint. 3, 6, 56; Fort. 89, 29sg. HALM e Aug. I42, 3I HALM, ma proprio per la sua fondamentale consistenza giuridica (Fort. 89, 3I sg. HALM nulla

  • 37 Codex, v.2, n.1, 2010, p.31-42

    Quanto doutrina dos dutos, chama a ateno, antes de tudo, que

    Fortunaciano seja o nico, alm de Marciano Capela, a expor os modos de

    conduo da ao, segundo Calboli Montefusco (1979, p. 288;16 2003, p. 118-11917),

    Desbordes (1993, p. 75) e Kennedy (1999, p. 12318). Reuter, porm, traa um

    paralelo entre as figuratae controversiae expostas por Quintiliano em latim e os

    problmata eskhesmatismna expostos por Hermgenes em grego; apesar do

    paralelo, o especialista ressalta a singularidade da exposio de Fortunaciano (Reuter,

    1893, p. 78).19

    Quanto sistematizao dos caracteres da elocuo, chama a ateno a

    diviso da matria em trs partes nomeadas com os termos gregos postes (referido

    ao gnero grandloquo, humilde e mdio), poites (referido ao gnero dramtico,

    narrativo e misto) e peliktes (referido ao gnero longo, curto e mdio), uma vez

    translatio, id est praescriptio, potest esse sine lege) alcuni tra i retori furono portati aconsiderarla tra gli stati legali: cf. Fort. 89, 30sgg. HALM e Cassiod. 496. 15 Reuter, 1893, p. 86: Fort. (97 f.) braucht bei der Aufzahlung der modi translationis, welche er brigens unter die Legal-Status rechnet; dies hatte schon Albucius gethan nach Quint. III 6, 62. 16 Calboli Montefusco, 1979, p. 288: La dottrina del ductus [...] ci stata tramandata, oltre che da Fortunaziano, soltanto da Marziano Capella. 17 Calboli Montefusco, 2003, p. 118-119: [] an investigation into the relationship between these texts and the curious theory of ductus which we find for the first time, probably in the fourth century A.D., in the rhetorical cathechism of Consultus Fortunatianus []. My view is shared by D. A. G. Hinks, who, in his dissertation on Martianus Capella (Martianus Capella, On Rhetoric, Cambridge, Trinity College, 1935), the only author besides Fortunatianus to have dealt with this doctrine, speaks of "precepts for the invention of these ductus which are extremely obscure" (p. 55). His attempt to explain Fortunatianus' text (p. 56) is, however, misleading. 18 Kennedy, 1999, p. 123: Fortunatianus composed his Art of Rhetoric []. Its most unusual feature is the theory of ductus, or treatment of the orators intent, which George Trebizond took up in the fifteenth century. 19 Reuter, 1893, p. 78: eine Analogie zum ductus bieten die figuratae controversiae, welche Quintilian IX 2, 66 anfhrt; (vgl. auch Jul. V. S. 434 = c. 21). Auch die problmata eskhesmatismna des Hermogenes (II 258 ff.) kann man heranziehen; (vgl. Anon. a. ax'r. III 118 f. Sp.). Da finden sich manche Parallelen zu diesem und jenem ductus. Aber die Gesammtauffassung bei Quintilian und Hermogenes einerseits, bei Fort. und Cap. andrerseits, ist grundverschieden.

  • 38 Izabella Lombardi - Apontamentos sobre a Arte retrica de Fortunaciano

    que absolutamente ausente dos textos de retrica antigos, segundo Calboli

    Montefusco (1979, p. 44620), Kennedy (1994, p. 27621) e Reuter (1893, p. 11822).

    Quanto sistematizao das figuras, chama a ateno, antes de tudo, que

    Fortunaciano distinga no s skhmata lxeos e skhmata dianoas, como os demais

    rtores gregos e latinos, mas tambm skhmata lgou; alm disso, que relacione

    ambos aqueles com palavras; segundo Baratin, (1989, p. 29823); Calboli Montefusco

    (1979, p. 45424); Reuter (1893, p. 11825).

    3. Da traduo da Arte

    O interesse da traduo da Arte retrica de Fortunaciano reside sobretudo no

    ineditismo dela em lngua portuguesa. Na verdade, mesmo noutras lnguas, a obra

    foi muito pouco traduzida. De fato, h apenas uma traduo integral da obra, em

    italiano, realizada por Calboli Montefusco, que acompanha a edio do texto latino

    20 Calboli Montefusco, 1979, p. 446: La forma nella quale Fortunaziano ci espone la dottrina dei genera dicendi (kharaktres tu lgou) certamenta uma della pi complesse; la mancanza assoluta del minimo parallelo in questa tripartizione di postes, poites, peliktes rende la sua origine completamente anonima. 21 Kennedy, 1994, p. 276: the discussion of style (3.3-12) is surprisingly short; despite use of Greek sources it takes no account of the theory of ideas that had been developed in Greek, but it does have an unusual classification of characters of style. They are first divided into Greek terms that mean quantity, quality, and length. Quantity refers to the traditional grand, plain, and middle styles; quality is divided into dramatic, narrative, and mixed; length into long, short, and middle. 22 Reuter, 1893, p. 118: ganz singular ist die Aufzahlung der Stilarten c. 10. 23 Baratin, 1989, p. 298: Ajoutons encore quun seul texte atteste nettement lopposition des skhmata lexes et des skhmata logou comme figures relevant des mots par opposition aux figures relevant des noncs: cest un passage de lArs rhetorica de Fortunatianus. 24 Calboli Montefusco, 1979, p. 454: La tripartizione delle figure in schemata lxeos, lgou e dianoas, presente oltre che in Fortunaziano solo in Victorin. 271, 22 sg. Halm si distacca dalle frequenti trattazioni relative a questa parte dellelocutio, nelle quali venivano prese in considerazione soltanto figure di discorso [...] e figure di pensiero. 25 Reuter, 1893, p. 118: Der kleine Abschnitt von den species elocutionis = singulorum et coniunctorum verborum dient nur zur Ueberleitung zu den Figuren. Bei diesen ist merkwrdig, die Dreitheilung in [skhmata] lxeos, lgou, dianias. Sie findet sich nur noch an drei Stellen, (die Striller p. 53 nachweist): Victorin 271 H., Ael. Herod. III 90 Sp., (Jul. Rufin.) de schem. lex. 54 H.

  • 39 Codex, v.2, n.1, 2010, p.31-42

    (Consultus Fortunatianus, 1979), e duas tradues parciais, ou melhor, duas

    tradues da primeira parte do Livro I: uma em francs, realizada por F. Desbordes

    (Desbordes, 1996), e a outra em ingls, realizada por J. Miller (Miller, 1973).

    No trabalho de traduo do texto latino, pretendeu-se manter, sempre que

    possvel, a regularidade e variedade lexicais, bem como a elocuo sucinta da

    exposio da doutrina. Pretendeu-se respeitar principalmente o lxico empregado,

    carregado de termos tcnicos, devidos natureza do texto, manual escolar de

    retrica que apresenta uma abundncia terminolgica de conceitos e definies

    especficas dessa rea. A dificuldade da traduo deveu-se, entre outras, ao

    vocabulrio jurdico, que depende de prticas forenses da poca que nem sempre so

    conhecidas e tambm ao fato de que alguns termos, ainda que se tenham mantido

    no jargo jurdico atual, no se usam hoje no mesmo sentido em que se usavam na

    poca.

    Para resolver algumas dificuldades da traduo, consultaram-se no s as

    tradues referidas da Arte retrica de Fortunaciano, mas tambm tradues de

    outras obras que trazem vocabulrio afim, por exemplo, da traduo da Retrica a

    Hernio em portugus (Faria e Seabra, apud [Ccero], 2005), das tradues do

    Acerca dos estados de causa de Hermgenes em francs (Patillon, apud Hermogne,

    1997) e em ingls (Heath, apud Hermogenes, 2004), da traduo de Marciano

    Capela em italiano (Ramelli, apud Capella, 2004). Alm dessas, consultaram-se os

    comentrios de Calboli Montefusco apostos edio do texto e tambm artigos dela

    e outros que explicam o uso de certos termos no perodo compreendido entre os

    sculos IV a. C. e VI d.C., alm de manuais modernos de retrica e crtica literria,

    por exemplo, os Elementos de retrica literria (Lausberg, 2004), e dicionrios

    especializados no vocabulrio jurdico.

    Por exemplo, para traduzir praescriptio, recorreu-se a trs textos de Calboli

    Montefusco: aos comentrios ao texto (Consultus Fortunatianus, 1979, p. 326-328),

  • 40 Izabella Lombardi - Apontamentos sobre a Arte retrica de Fortunaciano

    do artigo La Translatio e la Praescriptio nei Retori Latini (1975) e da obra La

    dottrina degli "status" nella retorica greca e romana (Calboli Montefusco, 1986, p.

    139-152). Assim, optou-se por traduzir praescriptio pelo termo exceo, que,

    como termo jurdico, indica hoje um meio de defesa, regular e indireto, usado pelo

    ru com a finalidade de excluir os direitos da ao e, desse modo, se identifica

    definio dada por Fortunaciano. Pois considerou-se que a traduo portuguesa

    prescrio, decalcada sobre o latim, seria imprpria, uma vez que prescrio se

    aplica ao esgotamento do prazo concedido por lei para aplicao da pena, de modo

    que difere daquilo que Fortunaciano entende por praescriptio, isto , a excluso da

    ao, e corresponde antes ao que o autor entende por translatio, que o nome de

    um dos estados de causa e se aplica justamente ao adiamento da ao.

    Bibliografia

    CALBOLI MONTEFUSCO, Lucia. Ductus and color: the right way to compose a suitable speech, in Rhetorica, Vol. 21, 2003, p.113-131.

    ______. "Il Nome di "Chirio" Consulto Fortunaziano, in Hermes, Vol. 107, No. 1, 1979, p. 78-91.

    ______. La dottrina degli "status" nella retorica greca e romana, Hildesheim, 1986.

    ______. La Translatio e la Praescriptio nei Retori Latini, in: Hermes, Vol. 103, No. 2, 1975, p. 212-221.

    ______. Omnis autem argumentatio...aut probabilis aut necessaria esse debebit (Cic. Inv. 1.44), in Rhetorica, Vol. 16, 1998, p. 1-24.

    CAPELLA, Marziano. Le nozze di Filologia e Mercurio. Introduzione, traduzione, commentario e appendici a cura di Ilaria Ramelli. Milano: Bompiani, 2004.

    CASSIODORUS. Institutiones. Edidit R. A.B. Mynors. Oxford : Clarendon press, 1961.

  • 41 Codex, v.2, n.1, 2010, p.31-42

    [CICERO]. Retrica a Hernio. Traduo de A. P. C. Faria e A. Seabra. So Paulo: Hedra, 2005.

    CONSULTUS FORTUNATIANUS. Ars rhetorica. Introduzione, edizione critica, traduzione italiana e commento a cura di Lucia Calboli Montefusco. Edizioni e saggi universitari di filologia clssica. Bologna: Ptron Editore, 1979.

    DESBORDES, Franoise. Le texte cach: problmes figurs dans la dclamation latine, in Revue des tudes latines, 1993, p. 73-86.

    ______. La rhtorique antique. Paris: Hachette, 1996, p. 218 221. DINIZ, Maria Helena. Dicionrio jurdico, 4 vols. So Paulo: Saraiva, 1998.

    GAFFIOT, Flix. Le Grand Gaffiot. Dictionnaire Latin-Franais. Paris: Hachette, 2000.

    GLARE, P. G. W. (ed.). Oxford Latin dictionary. Oxford [Oxfordshire]; New York: Clarendon Press: Oxford University Press, 1982.

    HALM, Carolus (ed.). C. Chirius Fortunatianus. Artis rhetoricae libri III. In: Rhetores Latini minores ex codicibus maximam partem primum adhibitis. Leipzig, 1863. Reimpresso Frankfurt: Minerva, 1964.

    HERMOGNE. Lart Rhtorique. Premire traduction franaise intgrale, introduction et notes par Michel Patillon. Lausanne: Age d'homme, 1997.

    HERMOGENES. On Issues. Introduction and translation by Malcolm Heath. Oxford: Clarendon Press, 2004.

    HOUAISS, Antnio. Dicionrio da lngua portuguesa (com nova ortografia). Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

    KENNEDY, George A. A new history of classical Rhetoric. Princeton University Press, 1994.

    ______. Classical Rhetoric and Its Christian and Secular Tradition from Ancient to Modern Times. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1999.

    LAUSBERG, Heinrich. Elementos de Retrica Literria. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2004, 5 Ed.

    ______. Handbook of Literary Rhetoric: A Foundation for Literary Study. Foreword by George A. Kennedy. Translated by Matthew T. Bliss, Annemiek Jansen, and David E. Orton. Edited by David E. Orton and R. Dean Anderson. Leiden: E. J. Brill, 1998.

  • 42 Izabella Lombardi - Apontamentos sobre a Arte retrica de Fortunaciano

    MATTHES. Hermagorae Temnitae testimonia et fragmenta. Lipsiae: Teubner, 1962.

    MILLER, Joseph M., Michel H. Prosser, Thomas W. Benson, eds. Readings in Medieval Rhetoric. Bloomington: Indiana University Press, 1973, p. 25 32.

    MUENSCHER, K. Fortunatianus, RE VII 1, 1910, p. 44 55.

    QUINTILIAN. Institutio Oratoria. Books VII IX. With an English translation by H. E. Butler. London: Loeb, 1996.

    QUINTILIAN. Institution Oratoire. Tome II, Livres II et III. Texte tabli et traduit par Jean Cousin. Paris: Socit ddition Les Belles Lettres, 1976.

    REUTER, A. Untersuchungen zu den rmischen Technographen Fortunatian, Julius Victor, Capella und Sulpitius Victor. Hermes 28, 1893, p. 73 134.

    REYNOLDS, Leighton D. (ed.). Texts and Transmission. A Survey of the Latin Classics. Oxford: Clarendon Press, 1983.

    SARAIVA, F. R. dos Santos. Novssimo dicionrio latino-portugus. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1993. 10a Ed. facsimilada.

    Recebido em Fevereiro de 2010 Aprovado em Abril de 2010

  • 43 Codex, v.2, n.1, 2010, p.43-58

    Historiografia e gnero biogrfico na Vita Caligulae de Suetnio

    primeiras reflexes

    Danielle Lima Graduao (Unicamp)

    Orientador: Prof. Doutor Paulo Srgio de Vasconcellos (Unicamp)

    Resumo

    Neste artigo pretendemos apresentar os resultados iniciais da pesquisa de Iniciao Cientfica acerca de Suetnio (69- 130? d.C) e sua relao com a historiografia romana. Em nosso estudo, partimos da biografia do imperador Calgula, a De Vita Caligulae, para analisar aspectos genricos da biografia de modo a observar suas caractersticas e como esta se insere na tradio historiogrfica romana, a saber, como um modo de se escrever histria ou como um gnero parte. Durante a pesquisa, alm da traduo de parte da biografia, realizamos um breve estudo acerca da historiografia romana, bem como algumas consideraes sobre aspectos textuais e estilsticos de Suetnio. Palavras-chave: Suetnio; Historiografia; Biografia Historiography and biography genre in the Vita Caligulae from Suetonius - some impressions Abstract This paper presents the reflections and the results of the Scientific Initiation Research about Vita Caligulae (Life of Caligula), from Suetonius (69/70 - 130? a.C.) and his relation to the roman historiography. In our study, we start from the biography of Caligula emperor, named De Vita Caligulae, to analyze those generic aspects of the biography in the way to notice its features and how this biography is inserted in the historiographical roman tradition, to be known, as a way to write history or as a different genre. During the research, besides the translation of the biography, we realized a brief study about the roman historiography, as well as some considerations about the textual and stylish aspects of Suetonius. Keywords: Suetonius; Historiography; Biography

  • 44 Danielle Lima Historiografia e gnero biogrfico na Vita Caligulae de Suetnio

    Introduo

    Neste artigo pretendemos apresentar os resultados iniciais da pesquisa de

    Iniciao Cientfica1 que estamos desenvolvendo acerca de Suetnio (69- 130? d.C) e

    sua relao com a historiografia romana. Em nosso estudo, partimos da biografia do

    imperador Calgula, a De Vita Caligulae, para analisar aspectos genricos da

    biografia de modo a observar suas caractersticas e como esta se insere na tradio

    historiogrfica romana, a saber, como um modo de se escrever histria ou como um

    gnero parte. No presente estgio da pesquisa, alm da traduo de parte da

    biografia, realizamos um breve estudo acerca da historiografia romana, bem como

    algumas consideraes sobre aspectos textuais e estilsticos de Suetnio.

    Iniciaremos a exposio de nossos resultados a partir das observaes de dados

    lingsticos presentes nesta biografia e sobre as primeiras impresses quanto ao estilo

    suetoniano que tivemos neste contato inicial com o texto latino. Em seguida,

    procuraremos expor breves apontamentos a respeito de nosso estudo introdutrio

    sobre historiografia e biografia.

    Caracterstica notvel do texto de Suetnio riqueza de ablativos absolutos e

    de particpios. Conforme alguns autores apontam2, a presena destas construes

    confere ao autor um estilo conciso e direto. Hurley, por exemplo, aponta que

    Muito mais do que qualquer outro autor latino, Suetnio emprega particpios para transmitir sua mensagem. Eles frequentemente seguem um verbo principal acrescentando informaes importantes, quase como um acrscimo posterior. Ablativos absolutos so abundantes. Ambas as estruturas permitem grande quantidade [de informao] dentro de um pequeno espao, uma inteno que parece direcionada pela rubrica [species] enquanto as frases avanam rapidamente para ilustrar o tpico apresentado ou para alcanar a concluso final de maneira rpida

    1 Pesquisa desenvolvida sob auxlio FAPESP, processo n2008/57404-8. 2 Veja tambm CIZEK, 1977, p. 23-4 e os autores por ele citados.

  • 45 Codex, v.2, n.1, 2010, p.43-58

    gil. Elas [as frases] so condensadas, concisas ou (menos positivamente) sobrecarregadas3. (HURLEY, 2008, p. 19-20)

    No trecho que se segue, possvel observar o uso de ablativo absoluto, bem

    como uma srie de particpios, no presente e no passado, estes que so

    frequentemente empregados sem o verbo sum:

    1Germanicus, C. Caesaris