coco de umbigada

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  • 2011 daniela bastos dos santos Coordenao GeralDani Bastos

    Coordenao de PesquisaDani Bastos

    Produo ExecutivaDani Bastos

    Registro Fotogrfico e Assistente de PesquisaTenily Sales

    Registro Fotogrfico e AudiovisualAlcides Ferraz

    Projeto GrficoZ Ricardo

    Edio/Reviso de TextoAroma Bandeira

    Assistente de ProduoMnica Santana

    ________________________________________________________ Bastos, Dani.

    Coco de Umbigada: cultura popular comoferramenta de transformao social / Dani Bastos;Recife: Editora Daniela Bastos dos Santos, 2011.244p.:il. Acompanha CD em bolso.ISBN 978-85-912743-0-7 1. Culturas Populares e Tradicionais.l. Bastos, Dani. ll. Ttulo.

    CDD-B980.03

    ________________________________________________________

    Direitos reservados Daniela Bastos dos [email protected]

  • Em primeiro lugar ao nosso grandioso Olorum que, na

    sua generosidade, nos concede a beno de alcanar nossos

    objetivos; Aos orixs - nosso caminho, situao e destino;

    minha me Edna Gomes Bastos, pelo eterno incentivo; Maria

    de Ftima Diniz Costa - Me Ftima de Oxum Nin Nin, pela

    doce e acolhedora orientao espiritual; Aos amigos-irmos e

    fotgrafos Alcides Ferraz e Tenily Sales, meus companheiros

    de todas as horas durante este trabalho; Z Ricardo, por

    acreditar na proposta; Beth de Oxum, Quinho Caets,

    Oxaguiam, Ialod, Mayra e Yna, a Daniel Lus, a Cristiano - o

    Tkralzy, a Luciano Lima, a Armandinho do Reggae, Robinho

    e a todos integrantes do Ponto de Cultura Coco de Umbigada,

    moradores da comunidade do Guadalupe e frequentadores

    da Sambada de Coco do Guadalupe; Aos Mestres Gris Me

    Lcia de Oy e a comunidade do Terreiro Il Ax Oy Togun,

    Agradecimentos

  • Mestre Zeca do Rolete e toda sua famlia, Mestre Pombo Roxo

    e Mestra Aurinha do Coco; Professora Glauciane Maciel e

    todo corpo docente da Escola Pblica Municipal Maria da

    Glria Advncula; A Kennedy Piau - por me guiar pelo rduo

    caminho acadmico; A Afonso Oliveira - pela credibilidade no

    meu trabalho como produtora cultural das culturas populares

    e tradicionais; Aroma Bandeira; por me ajudar a trilhar os

    caminhos da literatura; Mnica Santana, a Marcelo Renan e

    equipe do Centro de Formao, Pesquisa e Memria Cultural

    - Casa do Carnaval; Funarte; A todos aqueles que dieta ou

    indiretamente contriburam para que este livro sasse da

    esfera do sonho e se tornasse uma realidade.

  • Captulo 1O Coco e a Sambada - Manifestaes Culturais Nordestinas ................................ 25

    Captulo 2Sambada de Coco do Guadalupe - Resistncia e Protagonismo CulturalHistrico da Sambada de Coco ............................................................................... 47A Pr-produo da Sambada de Coco ..................................................................... 79A produo da Sambada de Coco do Guadalupe .................................................... 95Problemas Enfrentados: Descaso do Poder Pblico,Intolerncia Religiosa e Perseguio Policial ......................................................... 99

    Captulo 3Mestres Gris do Terreiro da Umbigada .............................................................. 119Me Lcia de Oy .................................................................................................. 133Mestre Zeca do Rolete .......................................................................................... 147Mestra Aurinha do Coco ....................................................................................... 161Mestre Pombo Roxo .............................................................................................. 175

    Captulo 4A parceria do Ponto de Cultura Coco de Umbigadacom a Escola Pblica Municipal Maria da Glria Advncula ................................ 187

    Captulo 5Consideraes ....................................................................................................... 203

    Captulo 6Pernambuco se Envergonha com ao da Polcia Militar ..................................... 217Repertrio e Ficha Tcnica do CD Demo do Coco de Umbigada .......................... 227

    Captulo 7Referncias Bibliogrficas .................................................................................... 233

    ndice

  • Um relato com alma, ritmo e esprito

    Afonso Oliveira

    Joo Pessoa, 09 de setembro de 2011

    Dani Bastos nos brinda com um daqueles livros que nos recolhemos em um canto para no sermos incomodados. Uma rede embaixo de uma palmeira em praia deserta o ideal. E a mergulhamos por inteiro at sentirmos nosso corpo sambar, a alma se revoltar e o esprito ficar mais esperanoso.

    Esse pequeno e precioso relato em forma de livro nos ensina o que uma rede cultural; como nasce uma tradio e como ela se relaciona com seu tempo; como os cantos aos ancestrais trazem energias para as culturas de matrizes africanas e brasileiras; de onde surge a liderana nas horas de horror impostas pelo Estado; como se constri uma sociedade mais coletiva a partir do quase nada, ao redor de apenas um tambor; como o programa Cultura Viva transformou vrias sociedades brasileiras; como crianas

  • bem orientadas e educadas podem construir ideais, sonhos e encher os homens de esperana.

    Nossa pesquisadora e produtora cultural fala da fora da mulher para quebrar regras, enfrentar a polcia e bater o tambor. Essa sua identificao com a luta de Beth de Oxum para mim a maior motivao desse livro. Outra motivao tambm se faz latente: o respeito aos mestres e suas histrias de vida e ensinamento. E quanto ensinamento se encontra na me preta Lcia de Oy, outra mulher forte, e Dani se entrega de corpo e alma ao redigir suas palavras!

    O captulo que me tomou com fora o que enumera toda a pr-produo e produo da Sambada de Coco. Ele traduz a certeza de que as comunidades devem se apoderar dos meios de produo de sua prpria cultura. Dani Bastos sabe da importncia desse trabalho, porque tambm uma produtora cultural, e sempre trabalhou com projetos para uma camada pobre da sociedade, e nos resultados desses projetos coloca sempre em destaque o trabalho da comunidade.

    Ela fortalece a memria do povo brasileiro a partir desta histria em que mergulhou profundamente. quase um depoimento, onde a pesquisa um complemento e no a essncia. Uma forma necessria para a compreenso da produo cultural coletiva e comunitria, cujos atores escrevem suas histrias e estas histrias sero impressas neste livro de uma tradio que no morrer to cedo. E Dani

  • nos mostra isso ao contar a violncia policial que sofreu o Ponto de Cultura Coco de Umbigada naquele fatdico sete de fevereiro.

    O bairro do Guadalupe j viveu muitas histrias ao longo de sua organizao. Nesse momento, quem l faz a histria so todos que esto envolvidos direta e indiretamente com o O Ponto de Cultura Coco de Umbigada. O Ponto inspirador, pulsante, democrtico e o mais importante produo cultural comunitria e responsvel.

    Agora, leitores e admiradores da cultura popular, s restam a vocs procurarem um cantinho e mergulharem nessa histria que vem de Pernambuco, esse Estado de contradies e maravilhas. Maravilhas como a histria de Quinho Caets, Beth de Oxum, seus filhos e uma comunidade que se apoderou e que tem uma rdio chamada Amnsia. Uma comunidade que soube valorizar o trabalho dessa incansvel produtora cultural e pesquisadora.

  • Prefacio

    Kennedy Piau

    Darcy Ribeiro afirma, em seu livro O povo brasileiro, que

    o processo de mestiagem no Brasil criou um homem novo.

    Ao longo do tempo as etnias indgena, portuguesa e africana

    serviram para a formao de esse novo grupo, esse outro que

    j no mais o ndio autctone, ou o negro africano, ou o

    portugus.

    Neste novo pas de dimenso continental e de nova gente

    marcado pela desigualdade , a formao cultural, fruto da

    transmisso oral, gerou processos de hibridizao (troca,

    mistura) que formataram a diversidade cultural brasileira. H

    comunidades que preservam os valores tradicionais, advindas

    de setores historicamente marginalizados, que produzem

    manifestaes culturais de carter popular e dinmicas,

    exercendo uma funo no contexto em que esto inseridas.

    Muitas destas manifestaes agregam e difundem valores

    como a solidariedade, a humildade, o esprito coletivo, o

  • respeito aos mais velhos e natureza, prprios deste tipo

    de organizao social. Estas manifestaes contm formas

    de experincia esttica que no se especializaram, no se

    restringiram aos aspectos formais, no se transformaram

    em algo cujo nico sentido o de ser produzido para uma

    contemplao esnobe ou para o mercado, como acontece nos

    campos das artes chamadas eruditas.

    Com a arte tradicional como o caso do Coco de Umbigada

    diferente. Como nos diz Roberto Da Mata, ela satisfaz uma

    funo social, compe o imaginrio popular, se relaciona com

    os demais aspectos da vida social das comunidades. Nesse tipo

    de manifestao artstica (ou cultural), a forte relao entre a

    natureza e cultura cria uma lgica prpria diferente da lgica

    racionalista, na qual predominam os interesses econmicos.

    Segundo este autor, a relao com as lendas e os mitos seria

    uma das maiores caractersticas da cultura e da arte tradicional,

    demonstrando uma viso mais holstica (mais global e integrada)

    do mundo, no qual a natureza e a cultura, os mortos e os vivos, o

    mundo do real e o mundo do imaginrio se relacionam de forma

    intensa. As festas e as manifestaes artsticas das comunidades

    tradicionais reafirmam um mundo mgico, opondo-se, desta

    forma, lgica racionalista da sociedade capitalista onde

    predomina o interesse do mercado e a busca pelo lucro. Assim,

    para o autor, o popular reintroduziria no mundo individualizado

  • capitalista a velha generosidade da troca, na qual os seres

    humanos dentro das relaes interpessoais, como filhos, amigos

    e parentes, tm a obrigao de dar e receber.

    No entanto, a imposio do modelo de desenvolvimento

    baseado nos valores dominantes da cultura ocidental, na ideologia

    do progresso, na busca de lucros imediatos e na imposio da

    indstria cultural tem alterado radicalmente a produo material

    e simblica destas comunidades e suas manifestaes artsticas.

    Cada vez mais, a lgica do capital, na sua imposio pelo

    lucro financeiro, se intensifica impulsionada pela recente etapa

    do processo de globalizao. Esta globalizao, falsamente

    apresentada como um intercmbio econmico e cultural

    equilibrado entre todos os pases do mundo, na realidade seria uma

    tentativa de mundializao da cultura do consumo, como afirma

    Renato Ortiz. Ao tornar-se impositiva, a globalizao levaria a

    um desmantelamento dos modos de vida que ainda trazem em

    si elementos que no formam parte da lgica capitalista. Este

    desmantelamento se daria principalmente atravs da indstria

    cultural e dos meios de comunicao de massas.

    Maria Nazareth Ferreira afirma que a cultura hegemnica,

    identificada como a cultura das elites dos pases ricos, se impe

    cada dia mais, mundializando a cultura do consumo e do modo

  • de vida capitalista. H, neste sentido, um desmantelamento dos

    modos de vida tradicionais e a desintegrao de valores culturais

    que trazem em si formas de explicao, compreenso e vivncia

    diferentes daquelas defendidas pela cultura dos pases centrais,

    mais poderosos econmico poltica e militarmente. Enquanto

    na cultura hegemnica dos pases centrais est presente o

    individualismo, a concorrncia e a depredao da natureza, nas

    culturas tradicionais encontraram valores como a reciprocidade,

    o respeito ao outro e biodiversidade, que podem nos ajudar na

    busca por um novo parmetro de construo social.

    Neste sentido importante a iniciativa do Ministrio

    da Cultura, atravs da Funarte, de incentivar pesquisas que

    tenham como objeto de estudo as artes tradicionais no Brasil. E

    , por outro lado, louvvel que este incentivo no tenha ficado

    restrito ao mbito meramente acadmico e possa ter chegado

    gente como Dani Bastos.

    Pessoalmente, sinto-me satisfeito pelo convite para

    escrever este pequeno texto. Primeiro porque conheci Dani

    durante uma pesquisa de campo em que tive o prazer de conhecer

    o trabalho do Ponto de Cultura Ncleo de Memria e Produo

    Cultural Coco de Umbigada e pude constatar o importante e

    diversificado trabalho que estas pessoas desenvolvem com tanto

    empenho, seriedade e leveza. Senti-me satisfeito por poder

  • contribuir minimamente quando da elaborao do projeto, e

    entusiasmado ao perceber agora que uma pessoa que, em um

    determinado momento, fez parte do meu objeto de estudo

    simultaneamente sujeito na produo de novos conhecimentos.

    Neste sentido, este livro expressa um olhar de dentro, um

    olhar engajado de quem se encontra no olho do furao. A

    crtica, prpria do mundo da universidade, se encontra com a

    necessidade de um texto que possa ser compreendido por um

    conjunto amplo e diversificado de leitores. Alm de se propor

    a compreender as implicaes sociais do trabalho relacionado

    ao Ponto de Cultura, a autora afirma ou reafirma seu

    compromisso em socializar tal compreenso, possibilitando aos

    mestres da cultura popular e aos brincantes em geral o acesso

    a suas prprias memrias e s reflexes que podem ser usadas

    como instrumento de luta contra a histrica opresso qual

    estas comunidades foram e so submetidas.

    Segundo porque posso perceber no texto o

    apoderamento de uma lutadora que consegue navegar com

    determinao nos mares da academia e nos mares da cultura

    tradicional sem negar neste trnsito o que h de melhor nos

    dois campos: a crtica e a paixo.

  • O Coco uma manifestao da cultura popular

    que possui mltiplas vertentes que se proliferam pela

    regio nordeste brasileira: Coco de roda, Coco de praia,

    Coco de embolada, Coco de rojo, Coco de zamb, Coco

    de umbigada, entre muitos outros.

    Muitos pesquisadores e estudiosos concordam que

    a origem do folguedo vem da troca de experincias

    entre indgenas e africanos, provinda provavelmente

    dos cantos de trabalho da atividade coqueira. Para

    suavizar a intensa jornada de trabalho, os quebradores

    de coco versavam e rimavam sobre o seu dia a dia. Para

    quebrar a casca do fruto, colocavam-no em uma pedra

    e batiam-no com outra at a rachadura. Acredita-se

    surgir da o ritmo da manifestao.

    Captulo 1Sambada: Manifestao Cultural Nordestina

    25

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

  • H um consenso entre os Mestres e brincantes

    entrevistados por ns e a bibliografia consultada para

    esta pesquisa. Segundo ambas as fontes, o Coco era

    uma brincadeira mais recorrente no perodo junino,

    presena constante nos festejos para So Joo, So

    Pedro e Santana. Ocasionalmente, fazia-se o Coco em

    festividades familiares ou em momentos de folga. Nas

    ltimas duas dcadas, com a criao e implementao

    das polticas culturais que reconheceram e incluram

    as expresses artsticas das manifestaes de culturas

    populares e tradicionais nas programaes culturais,

    passamos a ver tambm o Coco em outros ciclos

    festivos, como por exemplo, durante o carnaval.

    No encontramos na literatura o conceito ou a

    definio da expresso Sambada de Coco. Os Mestres

    e brincantes entrevistados neste trabalho definem a

    Sambada como a festa, a reunio, o encontro, o espao

    para cantar, danar, tocar, celebrar, ou seja, Sambada

    o espao para brincar, sambar o Coco.

    Tambm so poucas as referncias ao significado

    de Sambada de Maracatu de Baque Solto, uma

    manifestao da cultura popular encontrada na Zona

    da Mata do Estado de Pernambuco, cujos brincantes

    26

    Dani Bastos

  • so em sua maioria trabalhadores do corte da cana de

    acar. Fazendo uma analogia, o conceito de Sambada

    de Maracatu de Baque Solto assemelha-se ao da

    Sambada de Coco. A Sambada se constitui o espao

    onde os trabalhadores rurais se congregam, cantam,

    danam, conversam, bebem, fumam bastante. Alm de

    ensaio diverso, o lazer das classes subalternas da

    Zona da Mata. (Medeiros, 2005, p. 102).

    Nas expresses e manifestaes das culturas

    populares e tradicionais difcil demarcar com preciso

    o incio e o trmino do que trabalho e do que lazer,

    em qual momento o som que ecoa dos tambores

    direcionado para os humanos ou para as divindades;

    os limites so tnues, interligados. Assim a Sambada

    de Coco, uma amlgama, mistura heterognea, tudo ao

    mesmo tempo, agora.

    Partindo dessa breve explanao sobre as origens

    da manifestao do Coco e de um dos espaos onde

    realizada, iremos mergulhar no universo da Sambada

    de Coco do Guadalupe, realizada h treze anos pelo

    Ponto de Cultura Coco de Umbigada, de Olinda,

    Pernambuco. Abordaremos um pouco da sua origem,

    dos seus protagonistas, do seu processo de produo,

    27

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

  • dos seus mecanismos de difuso, da sua interface com as

    ferramentas da tecnologia, dos problemas enfrentados,

    das suas parcerias, dos seus Mestres, do seu cotidiano.

    Vamos conhecer a histria do casal rastafri Beth

    de Oxum e Quinho Caets, dos seus quatro filhos

    Oxaguiam, Ialod, Mayra e Yna e de todos que

    integram o Ponto de Cultura Coco de Umbigada que,

    guiados pela musicalidade ancestral evocada pelo toque

    da secular zabumba, tomaram nas mos as rdeas de

    seus destinos, empoderaram sua comunidade e fizeram

    da cultura popular a ferramenta para a transformao

    social, experincia que virou modelo replicado hoje por

    vrios Pontos de Cultura em todo o Brasil.

    28

    Dani Bastos

  • 1. Beth de Oxum | Foto: Alcides Ferraz2. Quinho Caets | Foto: Tenily Sales3. Daniel Lus | Foto: Alcides Ferraz4. Ponto de Cultura Coco de Umbigada

    Guadalupe - Olinda - PE | Foto: Alcides Ferraz5. Crianas | Foto: Tenily Sales6. DJ NK Cumbia | Foto: Alcides Ferraz7. Cristiano Lopes, o Tkralzy | Foto: Alcides Ferraz8. Armandinho do Reggae

    Coordenador da Rdio Amnsia FM | Foto: Tenily Sales9. Luciano Lima | Foto: Alcides Ferraz10. Detalhe do quadro de avisos do Ponto de Cultura Coco de Umbigada | Foto: Tenily Sales11. No Guadalupe a umbigada no perde pra ningum | Foto: Tenily Sales12. Beth de Oxum e a pequena Yna | Foto: Tenily Sales13. Beth de Oxum e o tambor | Foto: Tenily Sales

  • 47

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    A Sambada de Coco do Guadalupe uma brincadeira

    de herana familiar de origens entre os sculos XVIII e XIX.

    A famlia Barbosa, residentes na Aldeia de Paratibe, no

    municpio de Paulista, Estado de Pernambuco, tinha a prtica

    de realizar a Sambada de Coco com seus familiares e com a

    comunidade, tendo como protagonistas dessa atividade os

    Mestres de Coco Joo Amncio e Z da Hora.

    Com as mortes dos Mestres, a Sambada de Coco se

    calou por quase 40 anos. Em junho de 1998, a musicista,

    mobilizadora e articuladora social Maria Elizabeth Santiago

    de Oliveira, a Beth de Oxum, retomou a luta pela tradio

    ancestral da Sambada de Coco junto com seu marido, o msico

    percussionista Jos Carlos Barbosa, de nome artstico Quinho

    Caets, e os filhos, Oxaguiam, Ialod, Mayra e Yna herdeiros

    Captulo 2Sambada de Coco do Guadalupe:Resistncia e Protagonismo Cultural

    Histrico da Sambada de Coco

  • familiares da brincadeira, respectivamente neto e bisnetos dos

    referidos Mestres de Coco. Beth de Oxum recuperou a secular

    zabumba ancestral usada pelos antigos Mestres para animar

    a roda de Coco. Com muito empenho e autoestima o grupo

    voltou a realizar a Sambada, todo primeiro sbado de cada

    ms. O intuito era promover o pertencimento e consolidar a

    brincadeira do Coco na comunidade do Guadalupe, situada no

    entorno do Stio Histrico da cidade de Olinda, Pernambuco.

    Atualmente a Sambada de Coco se realiza todo primeiro

    sbado de cada ms na Rua Joo de Lima, o popular Beco da

    Macaba, em frente ao n. 42, (onde se localiza o Il Ax Oxum

    Kar ou Terreiro da Umbigada), Guadalupe, Olinda PE. Tem

    carter ldico, amplo e gratuito garantindo populao o

    direito de fruio aos bens de natureza imaterial.

    Com a realizao sistemtica da Sambada de Coco com

    periodicidade mensal, podemos dizer que retomou-se

    um costume. Hobsbawn nos alerta para a importncia da

    distino entre costume e tradio. Segundo o autor, costume

    o termo mais adequado para denominar as prticas dos

    povos ou grupos das culturas populares ou tradicionais,

    pois o costume incorpora gradativamente alteraes e

    mudanas, assim como a prpria vida. J a tradio regida

    pela continuidade artificial, pela referncia ao passado com

    formas quase que obrigatrias.

    48

    Dani Bastos

  • 49

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    O costume, nas sociedades tradicionais, tem a dupla funo de motor e volante. No impede as inovaes e pode mudar at certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela exigncia de que deve parecer compatvel ou idntico ao precedente. Sua funo dar a qualquer mudana desejada (ou resistncia inovao) a sano do precedente, continuidade histrica e direitos naturais conforme o expresso na histria. O costume no pode se dar ao luxo de ser invarivel, porque a vida no assim nem mesmo nas sociedades tradicionais. (Hobsbawn e Ranger, 1997, p. 10).

    Encontramos a reflexo de Hobsbaw no seguinte exemplo.

    At meados da dcada de 60, a grande maioria dos

    brincantes de Maracatu de Baque Virado(1) , era constituda

    por praticantes do candombl, considerando que a brincadeira

    foi criada pelos negros africanos vindos para o Estado de

    Pernambuco na condio de escravos e possua fortes vnculos

    com a religio.

    (1) Tambm conhecido como Maracatu de Nao Africana, folguedo tpico do carnaval do Recife, criado pelos africanos que vieram para o Estado de Pernambuco na condio de escravos. considerado uma das manifestaes ldicas mais prximas das razes africanas do folclore brasileiro. Acredita-se que sua origem a festividade catlica de reis-negros, celebrada na Festa do Rosrio. Nos arquivos da Irmandade do Rosrio dos Pretos, do bairro de Santo Antonio (Recife) h documentos sobre a celebrao da coroao de reis negros desde os tempos coloniais. Nos grupos mais tradicionais, h ainda memria daquela festa e seus integrantes continuam a realizar reverencias com cnticos em honra de Nossa Senhora do rosrio, na porta de suas igrejas. A marca da cultura africana est na msica e na dana, como tambm na organizao social dos grupos e na sua ligao com os cultos afro-brasileiros. Esta ligao to forte que o maracatu tomado como uma expresso religiosa. Na verdade o maracatu tem sido manifestao ldica dos grupos religiosos jeje-nag do Recife.

  • Nessa poca, o Maracatu de Baque Virado era

    considerado uma brincadeira de negros, de xangozeiros(2),

    de vagabundos ou de pobres e estes eram alguns dos motivos

    pelos quais a brincadeira no era muito apreciada pelas

    classes mais favorecidas. Mas na dcada de 90, por influncia

    do movimento mangue-beat, ocorre uma valorizao das

    manifestaes culturais populares pernambucanas e em

    especial, do Maracatu de Baque Virado e esse olhar das elites

    sobre o Maracatu transforma-se ou inverte-se. Muitos jovens

    pertencentes s classes sociais mdias e altas se interessam

    pelo brinquedo e comeam a freqentar os bairros da periferia

    do Recife, a ingressar e participar ativamente das Naes de

    maracatu, sem necessariamente ter laos com o candombl.

    Hoje esses grupos so compostos de um perfil bastante

    heterogneo de pessoas e isso se atribui a essa maravilhosa

    caracterstica de serem ao mesmo tempo os mesmos e outros.

    So simultaneamente os mesmos Maracatus de Baque Virado

    de sculos atrs e outros, pois tambm so Maracatus de

    Baque Virado contemporneos.

    Hoje o folguedo se resume ao cortejo o desfile de uma corte real negra, obedecendo ao estilo das procisses catlicas. Conta com uma orquestra exclusivamente de percusso, chamada de baque-virado, constituda de bombos, tarol, caixa-de-guerra, gongu e mineiro, em numero variado, de acordo com a organizao do grupo.O canto denominado de toada tirado por um dos dirigentes do grupo e respondido em coro pelos demais desfilantes.

    (2) No Estado de Pernambuco, os cultos de matriz africana tambm eram conhecidos por Xangs, conseqentemente seus praticantes eram denominados xangozeiros.

    50

    Dani Bastos

  • 51

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    Seguindo a linha de raciocnio colocada por Hobsbawn,

    entendemos que se os grupos de Maracatu de Baque Virado

    fossem seguir a tradio risca, provavelmente j estariam

    extintos ou seriam pouqussimos ainda em atuao, pois

    o mundo e a sociedade mudaram. Mas na busca constante

    pela continuidade, os grupos se adaptaram, absorveram as

    mudanas histricas, sociais e culturais que o tempo traz

    impreterivelmente, se reinventaram. Mantiveram o costume

    e com isso trazem o ressignificado de sua prpria existncia.

    A brincadeira se fortalece no Guadalupe, onde Beth

    de Oxum j exercia uma mobilizao sociocultural popular

    atravs do seu Terreiro Cultural o Terreiro da Umbigada

    (3). E assim se iniciou o projeto No Guadalupe o Coco de

    Umbigada. A atividade comeou no quintal do Terreiro e

    logo em seguida ganhou a rua, transformando-se ao longo

    de treze anos ininterruptos na tradicional Sambada de Coco

    do Guadalupe, que mobiliza atualmente um pblico rotativo

    aproximado de 2.000 mil pessoas que engloba os moradores

    da comunidade do Guadalupe e localidades do entorno

    (Amaro Branco, Bonsucesso, Barreira do Rosrio, Monte, V8 e

    Cohab), coquistas(4), brincantes, Mestres Gris(5), comunidade

    dos terreiros de Candombl e da Jurema Sagrada, artistas,

    produtores culturais, gestores pblicos, turistas, imprensa,

    professores e estudantes universitrios, comerciantes

  • informais, entre outros. Na perspectiva de manuteno,

    salvaguarda e continuidade, a Sambada valoriza a diversidade

    cultural da manifestao do Coco e suas vertentes e promove

    a difuso desta brincadeira.

    a autoestima de uma comunidade!, brada Beth de

    Oxum repetidas vezes durante a Sambada de Coco.

    Em 2004, o Coco de Umbigada torna-se um Ponto de

    Cultura, atravs do I Edital Pblico dos Pontos de Cultura

    do Programa Cultura Viva do Ministrio da Cultura, na

    gesto do Ministro Gilberto Gil. Este Programa promove

    a diversidade cultural brasileira, atravs da cultura, da

    educao e da cidadania. Os Pontos so uma parceria entre o

    Governo Federal e a sociedade civil, e contemplam iniciativas

    culturais que desenvolvam atividades de arte, cultura,

    cidadania e economia solidria em suas comunidades.

    (3) Atualmente o Terreiro de Matriz Africana Il Ax Oxum Kar.(4) Coquista o todo aquele que pratica cotidianamente atravs da msica e da dana o Coco manifestao e ritmo popular nordestino de origem afro-indgena que possui vrias vertentes pelo Nordeste brasileiro afora. Alguns exemplos: Coco de roda, Coco de embolada, Coco de rojo, Coco de Umbigada, entre outros.(5) Abrasileiramento de griot, palavra francesa (Turino, 2009, p. 97). So considerados Gris, todos aqueles que detm um saber adquirido ao longo de suas vidas, pela experincia prtica ou pela intuio. O Gri um guardio da memria e da histria oral de um povo ou comunidade, so lideres que tm a misso ancestral de receber e transmitir os ensinamentos das e nas comunidades. (www.cultura.gov.br) Alguns exemplos: Yalorixs, Babalorixs, Parteiras, Rezadores, Contadores de Histria, Mestres de percusso popular, Pajs, entre outros.

    52

    Dani Bastos

  • Os Pontos recebiam na poca recursos do Governo

    Federal (185 mil reais, divididos em cinco parcelas

    semestrais) para potencializarem seus trabalhos, podendo

    ser com compras de instrumentos musicais, figurinos,

    equipamentos multimdias, contratao de profissionais,

    produo de espetculos, eventos, entre outros. Ponto

    de Cultura um conceito. Um conceito de autonomia e

    protagonismo sociocultural (Turino, 2009, p. 15).

    O Ponto de Cultura Coco de Umbigada tem sede na

    Rua do Guadalupe, No. 380, Guadalupe, Olinda PE, e

    tem como misso a preservao da memria e a difuso

    da cultura popular, com nfase na manifestao do Coco

    e suas vertentes. Nessa regio concentram-se um nmero

    expressivo de artistas populares, grupos culturais e

    agremiaes carnavalescas da cidade de Olinda, municpio

    outorgado como 1 Capital Brasileira da Cultura, sendo,

    portanto uma das regies mais importantes culturalmente

    dentro do Estado de Pernambuco, apesar de, em

    contraponto, a localidade apresentar uma das maiores

    densidades demogrficas, o que gera problemas sociais

    como escassez de empregos, transporte insuficiente,

    dificuldade no acesso educao, habitaes precrias,

    aumento da poluio, o que consequentemente acarreta

    danos ambientais e agrava a questo da sade, acarretando

    53

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

  • numa diminuio da qualidade de vida. um dos mais

    baixos IDH(6) da cidade.

    Com o reconhecimento, a legitimao e o incentivo

    do Governo Federal, o Coco de Umbigada fortalece e

    amplia suas aes e atividades iniciando um processo de

    transformao social irreversvel.

    To ou mais importante que o recurso o processo de transformao que o Ponto de Cultura desencadeia: respeito e valorizao das pessoas da prpria comunidade, novas formas de pactuao entre Estado e sociedade, fortalecimento da autonomia, conexo em rede, intensificao da troca de saberes e fazeres, liberao de sonhos e energias criativas. Os valores que o Ponto de Cultura agrega vo alm dos monetrios (Turino, 2009, p. 43).

    Algumas destas aes e atividades desenvolvidas

    so as oficinas contnuas de incluso sociocultural. s

    teras acontecem a Oficina de Ritmos, Cantos e Danas

    de Umbigada do Brasil. Seus participantes so crianas,

    adolescentes, jovens msicos e simpatizantes da arte

    percussiva.

    (6) IDH (ndice de Desenvolvimento Humano) um ndice que serve de comparao entre os pases, com objetivo de medir o grau de desenvolvimento econmico e a qualidade de vida oferecida populao. Este ndice calculado com base em dados econmicos e sociais. No clculo do IDH so computados os seguintes fatores: educao (anos mdios de estudo), longevidade (expectativa de vida da populao) e Renda Nacional Bruta.

    54

    Dani Bastos

  • ministrada por Beth de Oxum e Quinho Caets,

    e os contedos trabalhados so os ritmos e a dana de

    manifestaes populares brasileiras de raiz afro-indgena,

    a exemplo do Coco, Jongo, Tambor de Crioula e Samba

    de Roda; j as quartas a vez da Oficina de Incluso

    Digital/Tecnologia da Informao e Comunicao, que

    direcionada para o pblico adolescente e adulto jovem.

    Trabalha a incluso digital utilizando o software livre(7) e

    explora o uso inteligente das ferramentas da tecnologia.

    Outras aes e atividades que merecem destaque so: O

    Tele Centro Umbigada, que disponibiliza diariamente, em

    mdia dez computadores para acesso gratuito internet; o

    Cine Clube Macaba, que aproxima a comunidade da stima

    arte, lazer considerado elitista e muitas vezes inacessvel

    no aspecto financeiro a moradores das periferias; a Rdio

    Amnsia FM, que entra no ar todos os dias levando sua

    rica e diversa programao para cerca de 700 ouvintes; a

    Ao Gri(8) , que promove encontros intergeracionais e,

    usando a prtica da oralidade, integra o Ponto, a escola e

    os Mestres de tradio oral, smbolos da ancestralidade

    do povo brasileiro; os grupos musicais Coco de Umbigada,

    Coco de Umbigadinha, Ciranda de Acalanto e Afox Filhos

    da Oxum que fazem apresentaes artsticas em festivais,

    congressos, mostras culturais e eventos afins pelo Brasil

    afora. Essas so as aes desenvolvidas pelo Ponto de

    55

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

  • Cultura, que ainda tem flego e incentiva e estimula a

    gerao de trabalho e renda com os moradores locais sob a

    proposta da economia justa e solidria.

    O Ponto de Cultura Coco de Umbigada uma referncia

    da regio nordeste do Brasil dentro do Programa Cultura

    Viva, tendo conquistado diversos prmios: Prmio Culturas

    Populares 2007; Prmio Escola Viva 2007; Prmio

    Pontinhos de Cultura/Ludicidade 2008; Prmio Cultura

    e Sade 2008; Prmio Mdias Livres 2009; Ao Gri

    2007/2008 e 2008/2009; Prmio Asas, entre outros.

    Podemos afirmar que a Sambada de Coco do Guadalupe o cerne, o eixo central, a mola mestra do Ponto de Cultura Coco de Umbigada. nesta ocasio que os participantes das oficinas, os locutores da Rdio Livre Amnsia FM, os Mestres de tradio oral, brincantes e colaboradores do Ponto de Cultura de diversas reas do conhecimento exercitam a troca dos saberes e fazeres adquiridos e praticados durante o dia a dia da instituio.

    (7) Conforme a definio de software livre criada pela Free Software Foundation, Software Livre, ou Free Software, o software que pode ser usado, copiado, estudado, modificado e redistribudo sem restrio. A forma usual de um software ser distribudo livremente sendo acompanhado por uma licena de software livre (como a GPL ou a BSD), e com a disponibilizao do seu cdigo-fonte. (http://br-linux.org/faq-softwarelivre/).(8) A Ao Gri Nacional uma ao compartilhada no mbito do Ministrio da Cultura atravs da Secretaria de Cidadania Cultural, SCC-MinC e o Ponto de Cultura Gros de Luz/Lenis-BA, visa a preservao das tradies orais das comunidades e a valorizao dos Gris, Mestres e Aprendizes enquanto patrimnio cultural brasileiro (www.cultura.gov.br).

    56

    Dani Bastos

  • A realizao da Sambada de Coco do Guadalupe um modelo no que diz respeito produo cultural independente dentro do Estado de Pernambuco que apesar da vasta diversidade cultural ainda apresenta poucos espaos culturais gratuitos fora dos grandes ciclos festivos carnavalesco, junino e natalino.

    Grande parte de nossa diversidade cultural est margem dos mercados de produo cultural, consequncia de polticas pblicas de cultura baseadas no lucro, nos eventos de qualidade duvidosa, nas formas equivocadas de incentivos culturais e nas desigualdades econmicas (Oliveira, 2010, p. 22).

    O Coco de Umbigada se empoderou, e no aceita a

    condio de refm que muitas vezes o poder pblico e a

    iniciativa privada insistem em impor aos artistas e grupos das

    culturas populares e tradicionais. O empoderamento devolve

    poder e dignidade a quem desejar o estatuto de cidadania, e

    principalmente a liberdade de decidir e controlar seu prprio

    destino com responsabilidade e respeito ao outro (Pereira,

    2006). O Ponto de Cultura Coco de Umbigada subverte, resiste,

    se auto-organiza, protagoniza, cria e recria seu prprio palco

    e suas prprias formas de realizao, difuso e fruio de sua

    produo cultural.

    Dentro deste contexto, a Sambada de Coco do Guadalupe,

    como uma das atividades realizadas pelo Ponto de Cultura,

    57

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

  • uma prova viva, concreta e real de que possvel realizar uma

    gesto cultural apesar das adversidades, da insuficincia de

    recursos financeiros e de apoios institucionais. uma proposta

    de organizao e mobilizao social e popular que poderia ser

    adaptado e inserido nas polticas pblicas de cultura e replicado

    em outras comunidades do Estado.

    Acho que a Sambada do Guadalupe uma resistncia

    cultural, um encontro, uma celebrao das pessoas que querem

    ver o Coco sobreviver, diz a professora de ingls Joana de

    Farias Melo, frequentadora da Sambada h 7 anos.

    A Sambada de Coco do Guadalupe engloba vrias atividades

    que dialogam entre si durante sua realizao.

    A primeira delas o Cine Clube Macaba, que se inicia por

    volta das 19h e exibe em um telo montado em frente ao Il Ax

    Oxum Kar filmes escolhidos pela equipe do Ponto de Cultura.

    Essa escolha geralmente norteada pelo mesmo critrio da

    criao do projeto grfico, que o tema da Sambada de Coco

    daquele ms, mas pode exibir tambm um lanamento de alguma

    produo de um cineasta local, por exemplo. Essa atividade

    rene uma plateia de 500 pessoas em mdia, formada em sua

    maioria por crianas e jovens acompanhados geralmente pelos

    pais ou responsveis, moradores da comunidade e entorno,

    58

    Dani Bastos

  • pelos comerciantes ambulantes e seus familiares, cineclubistas

    e apreciadores do audiovisual em geral. O objetivo do Cine

    Clube Macaba democratizar o acesso produo audiovisual

    pernambucana e nacional filmes, documentrios, animaes

    e vdeos focados nas culturas populares e tradicionais de matriz

    africana e indgena , promover a autoestima e o pertencimento

    do pblico morador da comunidade e seu entorno e demais

    frequentadores da brincadeira em relao identidade social,

    tnica e cultural.

    Em seguida, o DJ NK Cumbia inicia as atraes musicais

    da noite, esquentando a plateia. Emanuel Albuquerque, que

    toda rapaziada conhece tambm como Nekinho, morador

    da efervescente comunidade de Peixinhos, em Olinda, a qual

    ganhou notoriedade nos anos 90 por ser o bero de grandes

    artistas do movimento mangue beat, como o saudoso Chico

    Science, ex-integrante da banda Nao Zumbi. O estilo do

    discotecrio, como se auto-define NK Cumbia, percorre

    pelos diversos ritmos da musicalidade latina, como a salsa,

    merengue, bolero, cumbia e guaracha, lapidado por um extenso

    e intenso trabalho de pesquisa com antigos guaracheiros de

    seu bairro e arredores.

    Depois, a vez do Coco de Umbigadinha. O grupo fruto

    das oficinas Ritmos, Cantos e Danas de Umbigada do Brasil e

    59

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

  • O Coco e suas vertentes, ministradas no Ponto de Cultura

    Coco de Umbigada por Beth de Oxum e Quinho Caets

    com a comunidade infanto-juvenil. No existem o que os

    grupos artsticos e culturais compreendem como ensaios, a

    brincadeira do Coco se incorporou ao dia a dia das crianas

    do Guadalupe, uma prtica cotidiana, espontnea, como

    ir escola ou assistir desenho animado na televiso.

    tambm um dos grupos de difuso musical do Ponto e

    o exerccio prtico da continuidade da brincadeira e da

    formao de futuros Mestres e brincantes. Sem destoar

    da maioria das casas regida pela orix Oxum, a emanao

    da alegria da presena vivaz das muitas crianas uma

    das caractersticas marcantes do Ponto de Cultura Coco

    de Umbigada. um momento ldico, pueril da Sambada,

    muito apreciado e aplaudido pelo pblico.

    A ltima atrao da noite tem incio por volta das

    22 horas, quando o Grupo Coco de Umbigada principal

    representante da musicalidade do Ponto de Cultura

    comea a pisada. Sob a liderana de Beth de Oxum, vrios

    coquistas e os Mestres Gris do Terreiro da Umbigada,

    apresentam um repertrio que inclui composies

    autorais e do cancioneiro popular, estabelecendo a troca

    de saberes e fazeres das matrizes africanas e indgenas at

    alta madrugada em Olinda.

    60

    Dani Bastos

  • 61

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    Pra onde tu vai, menina?

    Vou pra Olinda brincar

    Pra onde tu vai, rapaz?

    Vou pra Olinda brincar

    Vou danar Coco de Umbigada

    At o sol raiar

    No Guadalupe a umbigada no

    perde pra ningum, de Beth de Oxum.

    A msica a linguagem guia, o vnculo, o elo com

    a continuidade ancestral da Sambada de Coco. Durante

    toda a noite loas tradicionais, de domnio pblico

    e tambm composies autorais so entoadas pela

    musicista Beth de Oxum, pelos Mestres Gris e por

    vrios outros coquistas annimos do grande pblico. As

    msicas autorais do grupo Coco de Umbigada reforam

    a autoestima, o sentimento de pertencimento, a

    identidade tnica, cultural e religiosa, pois contam a

    trajetria e histria do grupo, apresentam seus atores

    sociais, louvam suas divindades e entidades espirituais,

    falam sobre o cotidiano da comunidade do Guadalupe,

    entre outros temas. Uma pequena mostra pode ser

    conferida no CD com trs faixas autorais do grupo Coco

    de Umbigada que integra este livro.

  • Para os povos de matriz africana a msica e a dana, a

    festa em si um presente dos orixs, como conta a lenda:

    Dizem que certa vez Orunmil veio TerraAcompanhando os orixs em visitaa seus filhos humanos,Que j povoavam este mundo,j trabalhavam e se reproduziam.Foi quando ele humildementepediu a Olorum-OlodumareQue lhe permitisse trazer aos homensalgo novo, belo e ainda no imaginado,Que mostrasse aos homens a grandezae o poder do Ser Supremo.E que tambm mostrasse o quanto OlorumSe apraz com a humanidade.Olodumare achou justo o pedidoE mandou trazer a festa aos humanos.Olodumare mandou trazer aos homensa msica, o ritmo, a dana.Olodumare mandou Orunmil trazerpara o Ai os instrumentos, os tamboresque os homens chamam de ilu e bat,os atabaques que eles denominamde rum, rumpi e l,o xequer, o g e o agog eoutras pequenas maravilhas musicais.Para tocar os instrumentos,Olodumare ensinou os alabs,Que sabem soar os instrumentosque so a voz de Olodumare.E os enviou, instrumentos e msicos,pela mo de Orunmil.Quando ele chegou Terra, acompanhando os orixsE trazendo os presentes de Olodumare,A alegria dos humanos foi imensa.E, agradecidos, realizaram ento

    62

    Dani Bastos

  • 63

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    A primeira e grande festa neste mundo,Com toda a msica que chegara do Orumcomo uma ddiva,Homens e orixs confraternizando-se coma msica e a dana recebidas.Desde ento a msica e a dana estopresentes na vida dos humanosE so uma exigncia dos orixs quandoeles visitam nosso mundo.

    (Prandi, 2001, p. 446, 447)

    Nesse contexto, os tambores exercem um papel sagrado,

    so veculos de comunicao. No passado, transmitiam as

    mensagens entre as tribos, pois estas se situavam a distncias

    considerveis umas das outras e possuem tambm a

    propriedade de estabelecer o elo entre as dimenses, ligando,

    fazendo a comunicao entre o Orum (Cu, mundo dos orixs)

    e o Ai (Terra, mundo dos homens).

    A zambumba ancestral centenria da famlia Barbosa,

    quando resgatada por Quinho Caets na casa de um tio,

    teve o couro e as cordas renovadas, mas conserva ainda o

    mesmo bojo de macaba, o mesmo aro de jenipapo e carrega

    a imantao da energia das vrias mos que a percutiram e a

    repercutiram ao longo de mais de um sculo. Quinho Caets

    expressa o simbolismo desse tambor que alinhava a trajetria

    dessa herana cultural.

  • Aquele tambor t ali como celebrao, tem vez que eu fao ritual, eu boto fogo, uma coisa bem indgena, um smbolo, pra ns uma coisa muito rica, como se t todo mundo, vamos dizer assim: em um minuto de silncio, t? Veja s como eu fao a sensibilidade, ento, aquele tambor pra tocar como se fosse um smbolo mesmo que voc levanta ele e diz: t aqui o trofu do teu povo, t aqui o trofu da minha nao que at hoje existe, n? Que t vivo at hoje mostrando pro mundo todo esse ritmo, que onde eles cantavam, onde eles se abraavam, brincavam... a t o fogo, onde eles brincavam com aqueles instrumentos, era brincadeira, mas a brincadeira hoje pra ns responsabilidade, carregamos um smbolo de um povo, de uma nao, dentro de um ritmo, de uma cultura muito grande que o nosso Brasil(9).

    Em forma de rodzio, todos os Mestres Gris e coquistas

    recebem a chance de mostrar seu estilo e seu trabalho. A

    oportunidade garantida, tanto na exposio quanto na

    fruio da produo cultural, pois a organizao da noite

    feita luz do compartilhamento. Nesse contexto, possvel

    encontrar semelhanas com o perodo carnavalesco, pois

    simultaneamente todos so palco e plateia.

    Na verdade, o carnaval ignora toda distino entre atores e espectadores. [...] Os espectadores no assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval pela sua prpria natureza existe para todo o povo (Bakhtin, 1987, p. 06).

    (9) Depoimento prestado por Quinho Caets a esta pesquisa, coletado no dia 05 de abril de 2011.

    64

    Dani Bastos

  • 65

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    Durante a Sambada, no mnimo interessante observar

    as belas e exmias performances de dana tanto dos coquistas

    quanto do pblico. uma dana permeada de expresses

    corporais peculiares, caractersticas, espontneas, intuitivas.

    No h coreografias, tcnicas ou regras pr-estabelecidas,

    como nas modalidades e estilos ensinados nas academias

    e escolas de dana. O processo de aprendizagem se d na

    vivncia, na participao das rodas de Coco. Mas alguns

    brincantes demonstram, que alm das habilidades artsticas

    e corporais, ainda possuem o dom de se conectar com a

    dimenso ancestral/espiritual da qual oriunda a brincadeira

    do Coco a Jurema Sagrada.

    No podemos deixar de ressaltar aqui as referncias

    ancestrais/religiosas da manifestao do Coco que so o

    Candombl e o culto da Jurema Sagrada. Essa ancestralidade/

    religiosidade o fio condutor e mantenedor das diversas

    manifestaes populares e tradicionais presentes no nosso

    Estado. A ancestralidade/religiosidade o alicerce, o motivo pelo

    qual essas manifestaes resistiram historicamente represso,

    violncia, intolerncia e ao preconceito at os dias atuais.

    Desde a infncia, Beth de Oxum frequentava os Terreiros de

    Candombl e de Jurema da periferia de Olinda, sua cidade natal.

    Ainda conserva a memria viva das lembranas das festividades

  • para os santos Cosme e Damio, santos catlicos que no

    sincretismo religioso so relacionados aos Ibejis, orixs gmeos

    protetores das crianas muito cultuados no nordeste do Brasil.

    Em sua juventude quando militava no Movimento Negro

    Unificado e integrava o Afox Alafin Oy, do qual chegou

    a ser presidente, Beth achava que era filha da orix Oy,

    pois identificava-se com o arqutipo da mulher guerreira,

    independente, destemida, caractersticas dessa deusa africana.

    Mas quando de frente para o jogo de bzios, orculo das religies

    de matriz africana pelo qual se conhece o orix regente da

    pessoa, quem falou foi Oxum. No incio Beth ficou um pouco

    inconformada, mas aos poucos, conhecendo melhor as nuances

    da deusa, veio o encantamento.

    Oxum era muito bonita, dengosa e vaidosa, ela gostava de panos vistosos, marrafas de tartaruga e tinha, sobretudo, uma grande paixo pelas joias de cobre. Antigamente, este metal era muito precioso na terra dos iorubas. S uma mulher elegante possua joias de cobre pesadas. Oxum era cliente dos comerciantes de cobre. Omiro wanran wanran wanran om iro! A gua corre fazendo o rudo dos braceletes de Oxum! (Verger, 1997).

    Hoje, reconhecemos imediatamente Oxum em todos os cantos

    do Ponto de Cultura Coco de Umbigada na cor amarela das paredes,

    nas crianas que correm e brincam livres incansavelmente, nas portas

    sempre abertas para todos que chegam. Oxum est presente at no

    66

    Dani Bastos

  • 67

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    nome artstico e agora religioso de sua coordenadora, Beth de Oxum.

    Oxum a madrinha do Coco de Umbigada.

    Recentemente Beth recebeu a patente de Ebami (10) pelas

    mos de Me Lcia de Oy, e inaugurou o Il Ax Oxum Kar

    o Terreiro da Umbigada, que completou dois anos agora em

    julho de 2011. Para Beth, as duas mais importantes misses

    das casas de candombl so o acolhimento indiscriminado de

    todos aqueles que por caminhos e motivos variados chegam aos

    Terreiros, independente da etnia, da crena religiosa, da faixa

    etria, da sexualidade, da classe social, da condio econmica;

    e tambm a consolidao da famlia, quer seja a famlia

    sangunea, como a famlia construda pelos laos espirituais.

    O homem ocidental contemporneo, cada vez mais urbano,

    distanciou-se da natureza. Concebe-se um ser superior, parte,

    individual e no um ser integrado aos ecossistemas e biomas.

    O desmatamento, a poluio, a matana de animais, tudo isto

    distancia o homem do universo espiritual e, na tica da matriz

    africana, afasta o homem da natureza e consequentemente

    dos orixs, pois os orixs so a prpria natureza a gua, o

    ar, as plantas, as pedras, a terra, por exemplo, so alguns dos

    elementos cultuados pelos adeptos do Candombl.

    (10) Pessoa no Candombl que j cumpriu o perodo de iniciao, na feitura de santo, j tendo feito a obrigao de sete anos.

  • Beth de Oxum uma das maiores representantes

    atuais do protagonismo feminino dentro do universo das

    culturas populares e tradicionais. Durante muito tempo o

    papel da mulher dentro dos folguedos esteve em segundo

    plano, ofuscado pela predominncia do machismo em nossa

    sociedade. Foi uma das primeiras mulheres no Estado de

    Pernambuco a quebrar o tabu da relao entre a mulher e

    o tambor, rompeu paradigmas e deu a volta nos palcos do

    mundo tocando os instrumentos de percusso.

    Em parceria com Me Lcia de Oy e o Il Ax Oy

    Togun, desenvolvem as atividades do Ponto de Cultura

    Ensinamentos de Me Preta, cujo intuito maior promover

    encontros das mulheres que esto frente de Terreiros de

    matriz africana e indgena e tambm que so lideranas

    comunitrias, articulando em rede e fortalecendo as aes

    do segmento de gnero.

    A Sambada de Coco do Guadalupe um encontro

    simultneo de opostos complementares: passado e presente,

    sagrado e profano, tradio e modernidade, palco e plateia,

    humano e espiritual, amalgamados, mesclados, conectados

    e combinados em uma grandiosa celebrao mgica e

    atemporal. Caminhando na linha tnue de delimitao

    dessas esferas, percebemos que a Sambada de Coco do

    68

    Dani Bastos

  • Guadalupe uma brincadeira que extrapola, que transcende

    o puro entretenimento; ela uma louvao, um chamado,

    um momento de encontro atemporal com a ancestralidade.

    Sem fugir regra das brincadeiras populares de rua,

    no auge da Sambada temos a sensao de passar para

    outra dimenso. Para compreender a Sambada de Coco do

    Guadalupe em sua totalidade necessrio um novo olhar,

    preciso se desprender das certezas. Deveramos talvez

    utilizar o macroscpio de Jol de Rosnay (1995, p. 15).

    O macroscpio filtra os pormenores, amplia o que os liga, pe em evidncia o que aproxima. No serve para ver maior ou mais longe, mas sim para observar aquilo que simultaneamente demasiado grande e por demais complexo para os nossos olhos.

    69

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

  • 1. Beth de Oxum e Quinho Caets | Foto: Alcides Ferraz2. Mayra, Lalod e Yna | Foto: Tenily Sales3. Desenho feito por Lalod | Foto: Ded4. Mayra, 8 anos em frente ao

    Ponto de Cultura Coco de Umbigada | Foto: Tenily Sales5. Detalhe da parede do Ponto de Cultura Coco de Umbigada | Foto: Tenily Sales6. Il Ax Oxum Kar | Foto: Tenily Sales

  • 79

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    O processo de pr-produo da Sambada de Coco do

    Guadalupe tem incio com o envio de ofcios com cerca de

    quinze dias de antecedncia para os seguintes rgos pblicos

    municipais:

    SEPLAMA Secretaria de Transportes, Controle

    Urbano e Ambiental/Prefeitura de Olinda, solicitando

    autorizao para realizao do evento;

    SEPACCTUR Secretaria de Patrimnio e Cultura/

    Prefeitura de Olinda, solicitando o envio dos banheiros

    qumicos;

    1BatalhodePolciaMilitar, solicitandopoliciamento

    para o evento visando garantir a segurana e harmonia do mesmo.

    A pr-produo da Sambada de Coco do Guadalupe

  • 80

    Dani Bastos

    Em todos os ofcios constam as mesmas informaes de

    local, data e horrio: Rua Joo de Lima, em frente ao No. 42,

    Guadalupe, Olinda PE, das 19h as 01h.

    O passo seguinte a escolha do tema da Sambada de

    Coco, que geralmente guiado a partir do calendrio do

    Candombl Nag pernambucano ou da Jurema Sagrada,

    ou seja, dedica-se o tema da Sambada aos orixs e/ou s

    entidades reverenciadas naquele ms. So levadas em

    considerao tambm as atividades realizadas naquele

    determinado perodo no Ponto de Cultura.

    Escolhido o tema, vem a criao do projeto grfico do

    cartaz de divulgao da Sambada de Coco do Guadalupe,

    que fica sob a responsabilidade do jovem Daniel Lus

    Albuquerque, 20 anos, msico e monitor de tecnologia

    da informao do Ponto de Cultura. J o texto que

    acompanha o cartaz de divulgao elaborado ora por

    Ronaldo Eli, assessor de comunicao do Ponto de Cultura

    Coco de Umbigada, ora pela Beth de Oxum, ou s vezes

    coletivamente pela equipe do Ponto.

    Iremos dar um exemplo concreto, para facilitar a

    compreenso desta etapa. Durante a pesquisa de campo

    deste projeto, ns acompanhamos a pr-produo da

  • 81

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    Sambada que seria realizada no ms de abril de 2011. O

    tema fez referncia mostra dos resultados de trs meses

    de atividades realizadas pelos participantes da oficina

    Hackeando Parangol, desenvolvida pela artista Cinthia

    Mendona (RJ), que trabalhou a construo de artefatos

    com materiais luminosos (LEDs). A Oficina teve o incentivo

    do Prmio Interaes Estticas 2010/Residncias Artsticas

    em Pontos de Cultura/Funarte. J o texto, cita a presena da

    nossa equipe realizando a pesquisa de campo para compor

    este livro, resultado final do nosso projeto.

    O passo seguinte o envio do cartaz de divulgao

    atravs da mailing list composta de cerca de 5000 endereos

    eletrnicos, direcionada ao pblico alvo de Pontos de

    Culturas, comunidade de Terreiros de Matriz Africana

    e Indgena, grupos de culturas populares e tradicionais,

    agremiaes carnavalescas, movimentos sociais,

    movimentos de radiolivristas, de cineclubistas, produtores

    culturais, entre outros segmentos. O cartaz tambm

    postado no blog do grupo(11) e nas principais redes sociais,

    a exemplo do Facebook.

    (11) http://sambadadecoco.blogspot.com

  • A Rdio Amnsia FM 89,5 mega-hertz uma mdia

    livre que chegou ao Ponto de Cultura Coco de Umbigada

    atravs de uma oficina promovida pelo Prmio Interaes

    Estticas/Funarte e se consolidou com o projeto aprovado no

    edital de Pontos de Mdias Livres do Ministrio da Cultura

    que possibilitou a compra dos equipamentos antena e

    transmissor. O desempenho foi tamanho que o equipamento

    de rdio plantou razes no Coco (Gutierrez, 2009, p. 59).

    Partindo da compreenso que a comunicao um direito

    humano e social, a Rdio Amnsia possui em sua grade

    de programao diversos programas protagonizados por

    moradores da localidade. Seu Ablio, comerciante local, realiza

    aos sbados o programa Forrozo do Ablio, com repertrio de

    Luiz Gonzaga, Trio Nordestino e outros baluartes do autntico

    forr nordestino; Armandinho do Reggae, Coordenador da

    Rdio Amnsia, vai ao ar diariamente com seu programa

    Conexo Reggae, trazendo desde o lendrio Bob Marley as

    recm-criadas bandas da periferia da regio metropolitana;

    o jovem monitor de tecnologia Daniel Lus, vem com o

    Conscincia Hip Hop, com nfase no hip hop nordestino; o

    Babalorix Ivanildo de Oxssi o responsvel pelo programa

    Boa Tarde Vodunce, no qual temas referentes matriz africana

    so debatidos com convidados; Beth de Oxum, seus filhos e as

    demais crianas da comunidade fazem o Brincar para o sonho

    alimentar, promovendo a importncia da cultura da infncia.

    82

    Dani Bastos

  • 83

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    Comunicadores de outras comunidades tambm integram a

    grade, como o DJ NK Cumbia que difunde a msica latina

    frente do Coco de la Cumbia.

    Os objetivos da Rdio Amnsia so a garantia ao direito

    comunicao atravs da democratizao dos meios de

    comunicao, o acesso informao e fazer a difuso da

    produo musical no contemplada pelas mdias convencionais.

    Em um raio de 40 km de alcance, divulga a Sambada de Coco e

    suas atividades. a rdio que esqueceu do seu dinheiro, diz o

    slogan durante a toda a programao.

    Por outro lado, a questo envolve um grande paradoxo,

    um contrassenso. O Governo Federal d com uma mo e

    tira com a outra. O equipamento foi adquirido com recursos

    provindos de um prmio do Ministrio da Cultura, mas

    o Ministrio das Comunicaes no autoriza a concesso

    facilmente. Este processo torna-se burocrtico, moroso,

    levam anos. De um lado, um ministrio potencializando a

    polifonia; de outro, instituies da mesma repblica podando

    essas novas falas (Turino, 2009, p. 21).

  • 84

    Dani Bastos

    A legislao que regulamenta as rdios comunitrias bastante restritiva e no se ajusta realidade viva das comunidades que querem se expressar legitimamente. Processos de concesso de rdios comunitrias levam anos para a serem autorizados, gerando um descompasso entre a vontade das comunidades em romper com o monoplio da mdia e a legislao (Turino, 2009, p.21).

    A Sambada de Coco do Guadalupe j um evento

    assimilado pelos brincantes, simpatizantes e frequentadores

    das brincadeiras e manifestaes das culturas populares e

    tradicionais de Pernambuco, que j sabem de cor o refro

    repetido h treze anos pela Me Beth de Oxum: Todo primeiro

    sbado do ms, no Guadalupe, o Coco de Umbigada.

  • 1. Igreja do Guadalupe - Olinda - PE | Foto: Alcides Ferraz2. Beco da Macaba Guadalupe - Olinda - PE | Foto: Alcides Ferraz3. Rose | Foto: Alcides Ferraz4. Beth de Oxum no Il Ax Oxum Kar | Foto: Alcides Ferraz

  • Os primeiros preparativos da produo da Sambada

    de Coco a limpeza do local, a montagem e teste dos

    equipamentos de som e iluminao, a fixao da faixa do

    evento comeam na parte da manh, por volta das 9h30

    e so realizados pelos prprios componentes do Ponto de

    Cultura: o Coordenador Pedaggico Quinho Caets, o msico

    Luciano Lima, o locutor da Rdio Amnsia FM Armandinho

    do Reggae e o jovem monitor de tecnologia Daniel Lus.

    Em grande parte dos grupos de culturas populares e

    tradicionais e principalmente nos Terreiros de Candombl,

    onde a base das relaes de parentesco, as refeies tem um

    significado sagrado e tambm social. Comer antes de tudo

    se relacionar (Beltrame, 2008, p. 245). O alimento deve ser

    compartilhado, o ritual da comida intensamente simblico:

    A produo da Sambada de Coco do Guadalupe

    95

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

  • 96

    Dani Bastos

    acolhimento, fartura, troca, estabelece vnculos,

    fortalece laos, une. A Me Beth e sua famlia, as crianas

    da comunidade, os visitantes, os oficineiros, os msicos, os

    pesquisadores, a equipe do Coco de Umbigada: todos almoam

    no Il Ax Oxum Kar.

    Do meio para o final da tarde j comeam a chegar os

    comerciantes informais de alimentos e bebidas que trabalham

    na Sambada. Instalam-se pelo Beco da Macaba, com seus

    carros de mo, carroas, isopores, engradados, fogareiros e

    demais utenslios. Cachorro-quente, churrasquinho, pastel,

    queijo assado e outras iguarias regadas a muitas e muitas

    cervejas geladas compem o cardpio da noite. Festa sem

    comida e bebida porque no d mesmo!, diz sorrindo o

    msico Luciano Lima. Para a maioria dos ambulantes, a

    Sambada proporciona o complemento da renda familiar. D

    pra arrumar um trocado, diz a comerciante Alcineide Maria,

    de 32 anos, que negocia onde tem festa de rua na cidade de

    Olinda. Infelizmente aqui em Olinda no tem nada, lamenta.

    No paradoxo do binmio tradio-modernidade, o Ponto

    de Cultura Coco de Umbigada um dos grupos de cultura

    popular que habilidosamente incorporou com maestria

    e criatividade no seu cotidiano o dilogo inteligente da

    tradio com as novas ferramentas da tecnologia. A Revista

  • 97

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    Vida Simples (2009) traz uma matria sobre Beth de Oxum

    intitulada Guardi Ciberntica, reportando-se a como Beth

    usou os mecanismos da modernidade para favorecer a

    tradio.

    Integrando o Programa Digital do Ministrio das

    Comunicaes atravs da Rede Mocambos, rede que articula

    comunidades quilombolas urbanas e rurais em todo Brasil,

    o Coco de Umbigada ampliou a capacidade de atendimento

    do Tele Centro Umbigada que funciona diariamente,

    disponibilizando gratuitamente dez computadores para a

    comunidade do Guadalupe e entorno, promovendo o acesso

    incluso/alfabetizao digital para pesquisas, trabalhos

    escolares e atividades afins, utilizando uma metodologia

    prpria que foca o uso inteligente dessas ferramentas, visando

    informao e a comunicao, estimulando a produo

    de contedos. Em entrevista a Revista Ministrio das

    Comunicaes (2008), Beth de Oxum afirma que a internet

    mudou o paradigma da nossa comunidade.

    Foi essa parceria com as novas tecnologias, a insero e

    conexo nas redes virtuais que repercutiu o grito de socorro

    e o clamor por justia perante a violncia policial sofrida pelo

    grupo como veremos a seguir.

  • 99

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    Em nossa pesquisa, verificamos que o Ponto de Cultura Coco

    de Umbigada solicita atravs de ofcios apoio para a realizao da

    Sambada de Coco do Guadalupe, conforme detalhamos no captulo

    anterior. Porm, no dia 02 de abril de 2011, quando chegamos a

    Olinda s 9h e samos ao trmino da Sambada de Coco, por volta de

    3h da madrugada, constatamos que nem sempre as solicitaes so

    atendidas pelos rgos competentes.

    Neste dia, os banheiros qumicos no foram enviados, nem a

    Polcia Militar apareceu. Esse fato gera transtornos, aborrecimentos

    e desentendimentos com a vizinhana. Para ilustrar a situao,

    trazemos um exemplo concreto. Se a Secretaria de Patrimnio e

    Cultura/Prefeitura de Olinda no envia os banheiros qumicos, em

    determinado momento os frequentadores da Sambada vo ter que

    fazer suas necessidades fisiolgicas em algum lugar, mesmo que esse

    Problemas Enfrentados: Descaso do Poder Pblico,Intolerncia Religiosa e Perseguio Policial.

  • 100

    Dani Bastos

    lugar seja o porto de algum morador da localidade. bvio que da

    surgir no mnimo um descontentamento.

    A presena da polcia militar transmite a sensao de segurana e

    inibe um pouco os pequenos delitos. Alguns Mestres, vrios brincantes

    e comerciantes informais queixam-se da falta de segurana na volta

    para casa ou a caminho da parada de nibus ou txi. No so poucos

    os relatos de assalto. Mas importante ressaltarmos aqui que isso

    no uma situao exclusiva da comunidade do Guadalupe, Olinda

    ou Pernambuco. uma situao presente em todas as periferias

    brasileiras. Em muitas delas a polcia mais temida que os bandidos.

    Infelizmente ainda existe tratamento diferenciado da polcia para

    com a populao, principalmente quando essa parte da populao

    tem a cor da pele mais escura, quando o poder aquisitivo dessa

    populao menor e quando o conhecimento dos direitos humanos

    praticamente inexistente.

    No ano de 2009, a Sambada de Coco do Guadalupe sofreu

    com a perseguio e a violncia policial. O ocorrido repercutiu

    nas redes virtuais de norte a sul do pas. De forma geral, todos

    ns temos conhecimento seja atravs de livros e documentos

    histricos, de filmes e produes audiovisuais, em explanaes

    ou palestras na escola ou na universidade ou mesmo ouvindo

    relatos de memria e depoimentos de antigos brincantes que,

    durante uma determinada poca em nosso pas, para os terreiros

  • 101

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    de Candombl ou de Jurema Sagrada pudessem bater ou para

    que as agremiaes carnavalescas e brinquedos populares

    sassem s ruas, por exemplo, era necessrio pedir autorizao

    delegacia, deixando bem claro o dia e horrio e muitas vezes

    o nome completo e documento de identificao das pessoas que

    iriam estar naquele local ou participando daquela atividade. Caso

    contrrio, a penalidade era a chegada truculenta da fora armada

    da polcia, sem d nem piedade disposta a espancar, apreender

    e quebrar os instrumentos musicais e objetos de culto, prender,

    humilhar, desmoralizar. Pois a prtica do candombl e das diversas

    manifestaes e expresses das culturas populares e tradicionais

    eram consideradas contraveno, proibidas no mbito da lei.

    Mas existe uma enorme diferena entre ouvir falar

    e vivenciar tal situao. Podemos pelo menos imaginar a

    enormidade do desespero sentido pelos nossos antepassados,

    nossos avs, bisavs, tataravs, no momento em que estavam

    louvando os orixs ou estavam com suas agremiaes ou seus

    brinquedos na rua e a polcia chegava destruindo os objetos

    do folguedo. Eles no tinham a quem recorrer, a quem pedir

    socorro, a quem denunciar, a quem pedir justia. As opes

    eram correr para escapar, ou resistir e apanhar, ser preso,

    constrangido e algumas vezes se deparar com a morte e,

    apesar disso, conservar a f e a esperana de que um dia, no

    futuro, as coisas pudessem ser diferentes.

  • 102

    Dani Bastos

    Tivemos, sim, muitas conquistas, inclusive no mbito da

    legislao, pois a constituio brasileira garante a liberdade

    de credo e diz ainda que o Estado proteger as manifestaes

    oriundas das culturas populares e tradicionais, assim como

    qualquer dano ou ameaa a esse patrimnio sero punidos. A

    lei existe, mas nem sempre cumprida, e em pleno sculo XXI

    ainda nos deparamos com a intolerncia, com o preconceito,

    com a perseguio e com a violncia, como veremos na descrio

    a seguir, elaborada a partir do que foi coletado por nossa equipe

    em entrevistas realizadas com os participantes do Ponto de

    Cultura Coco de Umbigada, brincantes e freqentadores da

    Sambada e moradores da comunidade do Guadalupe durante a

    etapa da pesquisa de campo deste projeto.

    Dia 07 de fevereiro do ano de 2009. Dia de Sambada de

    Coco na comunidade do Guadalupe, o Coco de Umbigadinha,

    j fazia a passagem de som, para iniciar sua apresentao, que

    neste dia tinha um sabor especial, sabor de bolo confeitado,

    feito especialmente para comemorar a aprovao do projeto

    Uma brincadeira chamada Coco de Umbigadinha no Edital

    Pontinhos de Cultura/Ludicidade (12) , do Ministrio da Cultura.

    (12) Ao constituda atravs de edital do prmio Pontinho de Cultura institudo pelo Ministrio da Cultura atravs da Secretaria da Cidadania Cultural e da Secretaria de Articulao Institucional do Programa Mais Cultura. Os Pontinhos de Cultura visam mobilizar, sensibilizar e desenvolver conjuntamente com instituies pblicas e entidades sem fins lucrativos a elaborao de atividades para a implementao e difuso dos direitos da criana e do adolescente, principalmente no que tange o direito de brincar enquanto patrimnio cultural

  • 103

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    A aura de comemorao e alegria que circundava os primeiros

    momentos da Sambada de Coco foi substituda por um sentimento

    de constrangimento e medo. O motivo foi a chegada de vrias viaturas

    das Polcias Civil e Militar do Estado de Pernambuco das quais

    desembarcaram cerca de 40 policiais usando coletes a prova de bala e

    pesados armamentos. Indagaram pela responsvel pelo evento, Beth

    de Oxum, que se apresentou. Os policiais falaram que receberam

    uma denncia e esto com ordem de cancelar a brincadeira, baseados

    na Lei do Sono ou Silncio. Beth de Oxum argumentou que tinha

    autorizao dos rgos municipais competentes para realizar a

    celebrao mensal e mostrou ao policial os ofcios enviados pelo

    Ponto de Cultura com a autorizao conseguida e tambm os ofcios

    recebidos com as respectivas respostas, todas positivas. Apontou para

    o banner do evento, para as logomarcas dos apoiadores Prefeitura

    de Olinda, Fundarpe (13) Governo do Estado de Pernambuco e

    Ministrio da Cultura. Mas nada disso foi suficiente. Em entrevista,

    Beth de Oxum declarou:

    O Capito Daniel Pereira disse que era mentira que tnhamos esse apoio, que forjamos um banner, pois o Ministrio da Cultura no apoiaria projeto de um povo com estes cabelos. [...] Tudo a mando do Major Marcos Pereira e do seu irmo Capito Daniel Pereira, moradores da nossa comunidade do Guadalupe. A me evanglica e eles no aceitam, no toleram e no respeitam o nosso trabalho e a religiosidade de matriz afro (Gutierrez, 2009, p. 62).

    (13) Fundao do Patrimnio Histrico e Artstico de Pernambuco www.fundarpe.pe.gov.br

  • 104

    Dani Bastos

    Os equipamentos de som comearam a ser recolhidos e

    colocados nas caminhonetes da Policia. Algum na plateia instigou:

    Vamos fazer como faziam nossos avs, na voz e na palma da mo.

    E as crianas do Coco de Umbigadinha, fazem ecoar a centenria

    zabumba, acompanhada pelos pandeiros e ganzs. A polcia arrancou

    os instrumentos das mos das crianas. A comunidade vaiou os

    policiais. Vo prender ladro! gritaram indignados os moradores.

    O comandante da operao insistiu para que Beth de

    Oxum o acompanhasse at a delegacia, para, segundo ele,

    dar explicaes da infrao que estaria cometendo contra

    a Lei do Sono. Ela recusou-se. Falou que fazer Coco no era

    mais crime. Beth de Oxum telefonou para Mrcia Souto, na

    poca Secretria de Cultura de Olinda e relatou o que estava

    acontecendo e pediu explicaes, pois no dia anterior, sexta

    feira dia 06 de fevereiro tudo foi combinado em uma reunio

    na qual estavam presentes os representantes do municpio de

    Olinda e da prpria Polcia Militar para acerto de normas para

    a realizao da Sambada, Mrcia Souto tranquilizou Beth, disse

    que iria enviar o Secretrio de Controle Urbano, o Sr. Joo Luiz

    para acompanhar Beth delegacia para reaver a aparelhagem

    de som e os instrumentos musicais. Quando o Secretrio Joo

    Luiz, Beth de Oxum e Me Lcia de Oy chegam delegacia

    de Casa Caiada Olinda defrontaram com o Capito Daniel,

    o Major Marcos e o Tenente responsvel pela operao que

  • 105

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    h poucos momentos atrs queria prender a Beth de Oxum.

    O delegado alegou ao Secretrio Joo Luiz que o som da

    Sambada excedia o percentual de decibis permitidos por lei. O

    Secretrio respondeu que a competncia de medir o percentual

    de decibis em festividades de rua era da sua Secretaria e no

    da Polcia Militar de Pernambuco. Os instrumentos voltaram

    para casa no mesmo dia. O equipamento de som chegou no

    dia seguinte, pelas mos de uma delegada que tinha recebido

    um telefonema do Prefeito de Olinda, o Sr. Renildo Calheiros

    solicitando a devoluo do material do Coco de Umbigada, um

    dos Pontos de Cultura mais importantes de Olinda e do Brasil.

    No outro dia Beth redige um relato, um desabafo detalhado

    sobre toda a situao ocorrida e dispara para as redes virtuais

    de comunicao compartilhada.(14) O clamor do Coco de

    Umbigada e seu pedido de ajuda ecoam, repercutem os quatro

    cantos do pas. O resultado foi uma cobrana nacional do ponto

    de vista poltico ao Governo do Estado de Pernambuco e ao

    Ministrio da Cultura. Em seguida, o grupo lana a campanha:

    Diga no violncia, diga sim Sambada de Coco, que rendeu ao

    grupo participao em documentrios, entrevistas, palestras e

    eventos afins para relatar o abuso sofrido e relatar a experincia

    de enfrentamento da situao.

    (14) O e-mail de Beth de Oxum pode ser conferido nos anexos deste livro.

  • 106

    Dani Bastos

    Alguns exemplos foram: promoveu a reflexo sobre o ocorrido

    numa roda dilogo coletivo realizado em Olinda pelo Ponto de

    Cultura e Convivncia e Cultura e Paz, de So Paulo; gravou um

    programa de rdio efetivado pela Escola Municipal Maria da Glria

    Advncula, com os locutores da Rdio Amnsia, os frequentadores da

    Sambada, os moradores e os comerciantes da comunidade; participou

    no documentrio Um rosto no espelho, do cineasta paraense Renato

    Tapajs; compartilhou a dorida experincia no evento Observa e Toca

    Malakoff, projeto que mesclava debates e apresentaes artsticas,

    promovido pela Fundarpe; entre outros.

    A violncia sofrida nesse dia foi marcante, deixou uma cicatriz

    que no tem como ser removida do corpo, da alma, da memria,

    da vida de todos aqueles participantes do Coco de Umbigada, sejam

    brincantes ou frequentadores da Sambada de Coco do Guadalupe.

    decepcionante a constatao do ainda longo e rduo caminho

    para a erradicao da intolerncia, da perseguio, do descaso e

    da discriminao contra as manifestaes oriundas das culturas

    populares e tradicionais. Essa uma ferida aberta e inflamada que

    lateja em nossa sociedade. Uma doena social que no pode mais ser

    ignorada, que tem que ser tratada com eficincia, curada.

    Os danos causados por este trgico dia nos aspectos morais e

    psicossociais so imensurveis. A pequena Mayra Kar, de apenas

    8 anos de idade, terceira filha de Beth de Oxum e Quinho Caets,

  • 107

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    aps o acontecido passou um perodo com medo de brincar o

    Coco. Ela perguntava: Me, a polcia veio prender a gente porque

    a gente canta coco ou porque temos o cabelo rasta?. Para ns, fica

    a seguinte reflexo: Quem se responsabiliza pela reparao de um

    trauma dessa natureza?

    A violncia atinge de vrias maneiras os grupos de culturas

    populares e tradicionais. No Estado de Pernambuco, as apresentaes

    artsticas, nas ocasies de grandes ciclos culturais como o carnaval e

    os festejos juninos, ou em festivais culturais, difcil vermos artistas

    das culturas populares e tradicionais serem a principal atrao da

    programao. De forma geral, esses grupos so lotados nos palcos de

    apoio, com menor visibilidade, infraestrutura precria, equipamento

    de som de qualidade inferior, muitas vezes sem camarim, outras

    tantas vezes sem alimentao, sem uma boa divulgao nas mdias,

    em um horrio que no favorece o comparecimento do pblico. Existe

    tambm um enorme abismo se compararmos os cachs dos grupos e

    artistas das culturas populares e tradicionais com os cachs dos artistas

    que esto em evidncia atravs das mdias convencionais aliadas de

    uma indstria cultural que impe um modelo nico, padronizando a

    cultura, a identidade e a diversidade brasileira, encobrindo-as com um

    manto de invisibilidade.

    As produes culturais das culturas populares e tradicionais

    ainda so consideradas, pela maioria dos gestores pblicos e pelos

  • agentes do mercado cultural, como uma produo menor ou inferior.

    Temos rarssimos negros e ndios no poder. Obviamente, isso se

    reflete nas polticas pblicas. muito difcil contemplar algo que se

    desconhece. O programa Cultura Viva, do Ministrio da Cultura, na

    gesto de Gilberto Gil foi um marco divisor na histria das polticas

    pblicas de cultura desse pas. Houve muitas falhas, lacunas, questes

    que ficaram em aberto, mas tambm houve avanos indiscutveis

    no reconhecimento, valorizao e na democratizao dos recursos

    pblicos para a cultura com segmentos da sociedade praticamente

    ignorados em gestes anteriores como as crianas, idosos, povos

    tradicionais (quilombolas, indgenas, ciganos), expresses das culturas

    populares e comunidade LGBT.

    Existem aqueles que como Beth de Oxum e Quinho Caets que

    no se entregam e que no desistem; persistem, insistem e perseveram

    na busca dos seus ideais, fazendo das ferramentas da tecnologia suas

    aliadas; das mdias livres sua assessoria de comunicao; inteirando-

    se sobre as formas burocrticas de funcionamento do poder pblico;

    apropriando-se dos editais e chamadas pblicas; munindo-se com as

    armas propostas pelo sistema vigente para poder lutar, se no de igual

    pra igual, pois a distncia e as barreiras so enormes; mas para poder

    se contrapor com dignidade e propor outros modelos de produo,

    mostrando alternativas mais horizontais, justas, colaborativas,

    compartilhadas, mltiplas e diversas, fazendo seus prprios palcos,

    mostrando que todos tem direito a um lugar sob o sol.

    108

    Dani Bastos

  • 1. Detalhe da parede do Ponto de Cultura Coco de Umbigada | Foto: Tenily Sales2. Crianas da comunidade do Guadalupe assistindo ao Cine Clube Macaba | Foto: Tenily Sales3. Exibio do Cine Clube Macaba | Foto: Tenily Sales4. Matria com Beth de Oxum na Revista Vidas Simples | ano 2009.5. Matria do Jornal do Commrcio | 04 Setembro de 2009.

  • Este captulo (15) dedica-se aos guardies dos saberes e

    fazeres das culturas populares e tradicionais oriundos das

    matrizes africanas e indgenas, alicerce dos brinquedos e

    manifestaes culturais brasileiros: os Mestres de Tradio

    Oral, ou Gris, como so denominados mais recentemente

    por influncia do Programa Cultura Viva do Ministrio da

    Cultura atravs da Ao Gri. Essa uma ao que faz refletir

    sobre a dimenso sagrada da vida e da lgica da convivncia

    econmica baseada na partilha, dois aspectos to preservados

    pelas culturas tradicionais brasileiras (Turino, 2009, p. 95).

    Os Mestres Gris tem uma funo imprescindvel dentro

    da organizao dos povos de culturas populares e tradicionais

    cuja forma de transmisso dos saberes e fazeres feita

    atravs da oralidade. Os Gris viram, ouviram e vivenciaram

    Captulo 3Mestres Gris do Terreiro da Umbigada

    119

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

  • 120

    Dani Bastos

    os acontecimentos no decorrer de suas vidas, enquanto eram

    crianas, jovens e adultos, e agora que esto velhos, eles

    costuram o passado, o presente e o futuro com a linha mgica

    da memria.

    Em nossa sociedade urbana contempornea os valores

    predominantes estimulam o culto excessivo juventude,

    como se esta etapa da vida fosse superior e melhor s outras.

    Ela apenas uma das fases da existncia humana. Por outro

    lado, em culturas populares e tradicionais, o ancio muito

    respeitado. Me Stella de Oxssi, Yalorix do Il Ax Op

    Afonj, de Salvador, traz em seu artigo No outono da vida

    (16) uma reflexo sobre este tema:

    Na cultura yorubana, o velho um heri, pois conseguiu vencer a morte, que nos procura e ronda todos os dias. Ele tem sempre a ltima palavra, a qual no deve ser contestada. Tanto que comum em frica, a pessoa que ainda no completou 42 anos se manter calada durante as assembleias comunitrias, a fim de exercitarem a importante arte de ouvir. No candombl, tentamos seguir a tradio que herdamos e ensinamos aos iniciantes essa difcil arte. Mesmo que o iniciante se ache com razo, ele tem o dever de ouvir o mais velho de cabea baixa e pedir a beno, por respeito. Todavia, no lhe negado o direito, de em momento outro, justificar-se.

    (15) Este captulo considerar as falas dos Mestres Gris parte integrante e indissocivel da redao da autora, portanto sem diferenciao de margens ou peso e corpo da fonte.(16) http://www.atarde.com.br/mundoafro/?p=4217

  • 121

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    A Ao Gri por meio de editais pblicos apoiou projetos

    socioculturais de Pontos de Cultura em parcerias com escolas,

    universidades e entidades do terceiro setor cujo intuito fosse a

    valorizao das prticas da oralidade e dos conhecimentos dos

    Mestres Gris. Cada projeto aprovado contemplava at seis

    pessoas por Ponto de Cultura, e o apoio vinha na forma de uma

    bolsa mensal no valor de R$ 450,00 (17) . No Ponto de Cultura

    Coco de Umbigada, os Mestres Gris atuavam numa parceria

    com a Escola Pblica Municipal Maria da Glria Advncula, cujo

    objetivo geral a preservao e transmisso da memria e das

    prticas da matriz africana e da brincadeira do Coco. Numa

    semana os integrantes do Ponto e os Gris iam Escola e na

    semana seguinte a Escola ia ao Ponto.

    Nos encontros semanais, realizados nas tardes de sexta feira,

    aconteciam atividades variadas, como as oficinas de Coco, onde

    eram trabalhados pedagogicamente os contedos da brincadeira do

    coco: a msica (canto, percusso, processo de composio), a dana,

    a histria de cada Mestre participante, os principais coquistas de

    Olinda. De outra vez, eram promovidas rodas de dilogo sobre

    determinado tema (cultura de paz, meio ambiente, quilombos

    urbanos e rurais, etc) com a participao de professores e alunos da

    Escola, da equipe do Ponto, dos Mestres Gris, dos moradores da

    comunidade e convidados.

    (17) Turino, 2009, p. 98.

  • 122

    Dani Bastos

    Constatamos na fala dos quatro Mestres entrevistados

    Me Lcia de Oy, Mestre Zeca do Rolete, Mestra Aurinha

    do Coco e Mestre Pombo Roxo que o principal benefcio

    trazido pela Ao Gri, alm de promover os encontros

    intergeracionais e criar a oportunidade de transmisso dos

    conhecimentos, de levar os saberes no acadmicos para o

    ambiente escolar e do estmulo financeiro, embora pequeno,

    contribua para auxiliar o transporte e a alimentao do

    Mestre Gri no dia da atividade na Escola ou no Ponto de

    Cultura; conclumos a partir dessa pesquisa foi que a maior

    contribuio da Ao Gri se deu pelo reconhecimento, pela

    valorizao, pela legitimao, pela outorga dessas pessoas

    condio de Mestres, de detentores dos saberes e fazeres de

    uma tradio oral, ancestral, secular que durante muito tempo

    foi desconsiderada pela sociedade em geral, e no raras vezes

    at pela prpria famlia, amigos e vizinhana desses Mestres

    como um conhecimento banal, inferior ou at mesmo intil.

    Tentamos enfatizar em cada entrevista apresentadas a

    seguir as particularidades de cada Mestre, o que caracteriza

    cada um deles. Com vocs, os Mestres Gris do Terreiro da

    Umbigada.

  • 1. Grafitagem na parede do Il Ax Oxum Kar | Foto: Alcides Ferraz2. Dani Bastos e Beth de Oxum | Foto: Tenily Sales 3. Sambada | Foto: Alcides Ferraz4. Oxaguiam | Foto: Tenily Sales

  • 133

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    Ao ficar frente a frente com Me Lcia de Oy, a

    sensao que temos a de estar diante de uma esplendorosa

    majestade africana. Aos 64 anos, Lcia Maria Crispiniano

    da Silva possui uma aura que resplandece o sagrado.

    Fundou o Il Ax Oy Togum h 42 anos, localizado no

    bairro do Janga, municpio de Paulista, e esta a sua

    prioridade, a sua essncia, a sua misso de vida.

    Candombl entrega e f, ensina Me Lcia. Uma f

    que testada pela manh, tarde e noite: cotidianamente.

    A partir da iniciao religiosa voc no mais dono da sua

    prpria vida. Seu orix quem rege, quem determina,

    quem tem o poder do sim e do no sobre seus caminhos.

    A trajetria pelo sagrado exige muita seriedade, muito

    respeito, muita venerao. Porque no uma religiosidade

    Me Lcia de OyO sagrado o que me permeia.

  • 134

    Dani Bastos

    s dos sins, tem muitos nos e tem muitos porqus,

    explana Me Lcia. Isto no para qualquer um. Segundo

    a sacerdotisa, tudo na vida tem um preo, e o preo dos

    saberes do sagrado alto, altssimo, revela Me Lcia. o

    preo da caridade, o preo da doao.

    No universo das religies de matriz africana, o

    conhecimento um merecimento e a humildade requisito

    imprescindvel no percurso da busca por este saber. Me

    Lcia nos conta que no seu tempo de aprendiz, o ato de

    perguntar no era bem visto aos olhos dos mais velhos.

    Eu ficava l no meu cantinho, bem quietinha, vendo ela

    limpar... e tirar o que era do sagrado, da obrigao, o que

    era para partilhar com aquela congregao e muitas vezes

    eu escrevia, mas eu era incapaz de perguntar: Porque a

    senhora est fazendo assim? At pelo respeito, n? Ela

    era mais velha.... O aprendizado acontecia atravs da

    observao, com a convivncia junto s Yalorixs mais

    antigas. Mas hoje o processo de ensino-aprendizagem

    tem que ser diferente, em sua opinio: Voc no deve

    banalizar, popularizar quem herda a matriz... Mas tem

    alguns adendos que voc tem que consentir, a juventude

    agora outra... Hoje voc no tem como contrapartida a

    rebeldia, a vontade de viver, a vontade de conhecer, hoje

    voc tem as drogas....

  • 135

    Coco de Umbigada: Cultura Popular como Ferramenta de Transformao Social

    Defensora ferrenha e engajada do exerccio do

    matriarcado dentro do candombl, prtica ainda tmida

    dentro do Estado de Perna