coco de embolada

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    Palavras que consomem:

    contribuio anlise dos cocos-de-embolada

    Elizabeth Travassos1

    ResumoNeste artigo, exponho a hiptese de que h, nos cocos-de-embolada,vocalizaes que podem ser encaradas como processos de encanta-

    mento, quer dizer, empregos performativos da palavra destinados aobter determinados efeitos nos duelos cantados. Para examin-la, ana-liso dois cocos-de-embolada, cantados, respectivamente, por GeraldoMousinho e Cachimbinho, e por Olavo Pedro e Pitiguari. Sugiro que otermo amarrao indica aspectos importantes da potica da embola-da que carecem ainda de investigao. Seguindo pistas deixadas porMrio de Andrade, afirmo que a compreenso dos cocos-de-embolada,como de outras formas de poesia cantada, depende da integrao das

    anlises formais ao estudo da cosmologia e valores dos coqueiros.

    Palavras-chaveCoco, embolada, amarrao, encantamento, Mrio de Andrade,Geraldo Mousinho e Cachimbinho, Olavo Pedro e Pitiguari.

    Recebido em 08 de junho de 2010

    Aprovado em 16 de julho de 2010

    Professora Associada do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Esta-do do Rio de Janeiro (Unirio) e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvi-mento Cientfico e Tecnolgico (CNPq). E-mail: [email protected]

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    Words that consume:

    a contribution to the analysis of

    cocos-de-embolada

    Elizabeth Travassos

    AbstractThe analysis of some curious vocalizations occurring in the cocos-de-emboladaled me to raise the hypothesis that the coqueiros (those who

    sing cocos) resort to enchanting processes in their sung duels. Byenchantment -a slippery word -I mean the activation of the perfor-mative aspects of the sung word by the coqueiros, in their attempts tosupplant their rival singers. To begin the hypothesis testing, I analyzedtwo cocos-de-emboladarespectively sung by Cachimbinho and GeraldoMousinho and by Olavo Pedro and Pitiguari. I also pointed out that theword amarraoindicates important aspects of the poetics of embola-da that should be further investigated. Therefore, following Mrio de

    Andrade, I suggest that a better understanding of cocos, as much as ofother genres of sung poetry, should rest on the integration of formalanalysis with the study of the coqueiros values and cosmology.

    KeywordsCoco, embolada, amarrao, enchantment, Mrio de Andrade,Geraldo Mousinho e Cachimbinho, Olavo Pedro e Pitiguari.

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    Como2 de conhecimento geral, Mrio de Andrade quis

    chamar seu livro sobre msica popular Na pancada do ganz.A escolhado verso homenageava Chico Antnio e, por extenso, todos os cantadoresque conhecera na viagem de pesquisa, realizada entre 1928-29. Tambmse sabe, mas comenta-se menos, que lhe agradava a palavra pancada nottulo no s porque remetia pulsao dada pelo chocalho de flandres.Ela evocava tambm certas propriedades da potica dos cocos que ele vi-nha estudando, conforme sugere o trecho de uma carta endereada a Ma-nuel Bandeira: ...pretendo [...] terminar os estudos pra escrever no ano que

    vem o Pancada, que fica delicioso assim rabic, Pancada, loucura, tolice,divinizao3. Mrio avanou o quanto pode no estudo do extenso corpusque reunira. Muita coisa foi anunciada, mas ficou sem desenvolvimento.

    No coco Jurupan, Chico Antnio cantava: Que as palavras me consme/Prcant com Joana Gme/Com Binidito Ganz! Citado em: Andrade, Mrio de. Oscocos (Introd. e notas de Oneyda Alvarenga). So Paulo: Duas Cidades; Braslia:INL, Fundao Nacional Pr-Memria, . O verso foi lembrado por Antnio Ben-

    to de Arajo Lima em depoimento sobre o encontro de Mrio com Chico Antniono Engenho Bom Jardim (RN). (Chico Antnio, o heri com carter.Dir. EduardoEscorel. Embrafilme; Tele-Cine Maruim, ).

    ALVARENGA, Oneyda. Msica popular brasileira. Porto Alegre: Globo, . p. .(carta de //).

    ...que as palavras meconsomem

    Chico Antnio2

    Introduo

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    Postumamente, e em obras sucessivas, os leitores viram apare-cer os cocos anotados por Mrio de Andrade e as anlises que props4.Por incrvel que parea, os estudos sobre cocos so ainda escassos naatualidade! Alm de Altimar Pimentel5e Alosio Vilela6, a equipe coor-denada por Maria Ignez e Marcos Ayala7preencheu lacunas com ampla

    documentao na Paraba, concentrando os esforos na dana do cocoe na compreenso do lugar que ocupa na vida social dos que a mantmviva. Registros fonogrficos de cocos, por outro lado, existem em relativaabundncia. Alm dos que foram realizados pela Misso de PesquisasFolclricas e pelo folclorista Tho Brando8, muitos discos long-playecds de cocos podem ser encontrados em arquivos sonoros e no mercado.H menos falta de material do que de interesse por parte dos estudiososde poesia e msica popular, o que difcil de entender diante das ques-

    tes que Mrio de Andrade apontou e deixou em aberto.No se procedeu ainda descrio morfolgica exaustiva das va-

    riedades de cocos, que esto distribudas numa rea muito vasta, nonecessariamente contnua, do litoral cearense ao serto e Recncavobaiano. Ser uma grande rvore, cheia de ramos? Os arranjos instru-mentais variados resultam em sonoridades muito diversas. Os tipos decoco reconhecidos num lugar no o so, necessariamente, em outros; oscritrios de agrupamento em tipos tambm variam. A sensao de um

    mar de cocos, dinmico, profundo, precariamente cartografado.Eles tm em comum, porm, o carter dialogal9, quer dizer, a con-

    dio necessria para sua criao a troca contnua de rplicas entre vozessolistas e corais, sons instrumentais e movimentos de dana. Nos cocos,

    ANDRADE, Mrio de. Os cocos(Introd. e notas de Oneyda Alvarenga). op. cit.; AN-DRADE, Mrio de. Embolada. In: Dicionrio musical brasileiro. Belo Horizonte:Itatiaia; Braslia: Ministrio da Cultura; So Paulo: IEB-Edusp, . p. - e

    Vida do cantador (Edio crtica de Raimunda de Brito Batista). Belo Horizonte:Villa Rica, .

    PIMENTEL, Altimar de Alencar. O coco praieiro: uma dana de umbigada. JooPessoa: Editora Universitria, .

    VILELA, Aloisio. O coco de Alagoas. Macei: Museu Tho Brando/UFAL, .

    AYALA, M. I. e AYALA, M. (Orgs.). Cocos: alegria e devoo. Natal: Editora daUFRN, .

    Theotnio Vilela Brando (Viosa, // / Macei, //) documentou di-versas modalidades expressivas em Alagoas. Cpias de suas gravaes encontram-se no Arquivo Sonoro do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (Iphan).

    Alguns cocos que registrou foram editados em disco de sete polegadas e rotaespor minuto, na srie Documentrio sonoro do folclore brasileiro(Cocos/AL).

    A expresso foi usada por Fernando Ortiz ao referir-se-se msica afr icana e afro-cubana. ORTIZ, Fernando. Los bailes y el teatro de los negros en el folklore de Cuba.Havana: Editorial Letras Cubanas, .

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    alternam-se um solista e o coro de danarinos de ambos os sexos; ou doissolistas, no chamado coco-de-embolada. Parte-se sempre de uma cantigacurta e fixa, repetida como refro entre as intervenes individualizadas,propcias ao verso improvisado. O desenho meldico, relativamente amplodo refro ou coco, contrasta, em geral, com o da estrofe. Se representarmos

    as duas partes graficamente, na primeira predominam colcheias, nas se-gundas irrompem sequncias de semicolcheias que dobram o tempo in-terno da cantiga (mantendo-se a pulsao).

    Nas palavras de Oneyda Alvarenga, no coco alternam-se o refro,parte mais lrica e de movimento mais amplo, e estrofe em ritmo de-clamatrio precipitado e linha meldica de intervalos curtos10. O leitorobservar que j desponta aqui o problema da descrio das propriedadessem as quais no h coco, mas algum outro gnero. O contraste entre re-

    fro e estrofe constante, mas no universal, e aparece em cantigas comoutras identificaes genricas, como lundus e caterets. Generalizada a alternncia entre solistas ou entre solistas e coro, clula-tronco daqual surgem organismos complexos, como as formas com dois refres, orefro com refro interno curto e outras variantes.

    Certas peculiaridades formais, que venho observando, motivarama hiptese de que h nos cocos-de-embolada vocalizaes que podem serencaradas como processos de encantamento. Mesmo que ainda no se

    possa demonstrar essa hiptese cabalmente, sua apresentao permitedar mais alguns passos no estudo da potica dos cocos, que tambm,forosamente, estudo da cosmologia e valores dos cantadores (como pen-sava Mrio de Andrade). Problemas de natureza etno-histrica tambmassomam, embora, neste artigo, eles possam apenas ser indicados.

    Malabarismos mirabolantes: tcnicas de encantamento?

    preciso explicar a hiptese de ocorrncia de tcnicas de encan-tamento na embolada, j que esta e outras palavras do mesmo camposemntico, como magia, no costumam ser associadas ao coco do mes-mo modo como o so, por exemplo, ao jongo11. Os cantadores de coco no

    ALVARENGA, Oneyda. op. cit., p. .

    RIBEIRO, Maria de Lourdes Borges. O jongo. Cadernos de Folcloren. . Rio de Janei-

    ro: Funarte/Instituto Nacional do Folclore, ; GANDRA, Edir.Jongo da Serrinha:do terreiro aos palcos. Rio de Janeiro: GGE: UNI-RIO, ; DIAS, Paulo. A outrafes-ta negra. In: Jancs, I. e Kantor, I. (Orgs.). Festa. Cultura e sociabilidade na Amricaportuguesa. So Paulo: Edusp, e Feitio das palavras a arte dos pontos de jongo.In: VIII Encontro de Jongueiros, Guaratinguet, SP, e de novembro de (pro-

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    falam de magia. Quando a palavra aparece na prosa dos estudiosos, indi-ca o deslumbramento esttico, provocado pela verve dos emboladores.No jongo, diferentemente, fala-se de feitio, magia, mironga ou mandingapara indicar efeitos extraordinrios do canto, como o de imobilizar e calaros jongueiros rivais. Ora, os versos dos emboladores so frequentemente

    considerados doidos, sem sentido ou vulgares. Ouvi repentistas comen-tarem que embolar encadear versos velozes com montonas rimas em e sees preenchidas por slabas ritmadas (pa-ra-pa-pa...). Emboladoresconfirmaram isso: Os colegas da profisso de viola tm que se habituar afalar melhor [...] A gente canta embolada. Esses poetas de viola faz os versomais colocado.12Ouvi um embolador dizer, com tranquilidade, que seurepente no presta[va] e, de outro, que tanto faz[ia] cantar certo comoerrado. Eles tentavam me explicar, assim, que os critrios do repentismo,

    feitos ao som da viola, no se aplicam poesia que cantam.Mas Mrio de Andrade descreveu a embolada de Chico Antniocomo alguma coisa prxima de um transe (e o prprio Chico se disse con-sumido pelas palavras, o que corrobora aquela impresso). Ele ficava ton-to, segundo Mrio, para que o verso lhe sasse fantstico, surreal. Era oque acontecia no Boi Tungo, quando Chico Antnio cantava sua jornadarfica e o duelo com o Maior13. Era no mnimo intrigante, o coqueiro falardo duelo como fato real. Mentia ou no distinguia acontecimentos reais eimaginados14? A encantao exercida pelo cantador [...] disse Mrio, em1944 deriva da funcionalidade intransigentemente social dos assuntos, etalvez ainda mais do estado de bebedeira causado por esta msica aindamais intransigentemente medicinal15, parafraseando o que j havia afir-mado em 1929: O canto dele exerce a funo das encantaes primitivas,canto de todos num rito de dinamogenias benfazejas.16

    Alosio Vilela, por sua vez, testemunhou o assombro que causavaXico Torce Bola (ateno ao nome, que comentarei posteriormente), can-

    grama do Encontro). So Paulo: Cachura!, . Alm de textos reunidos em LARA,Silvia Hunold e PACHECO, Gustavo (Orgs).As gravaes histricas de Stanley J. Stein.Vassouras, . Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas: CECULT, , entre eles: SLE-NES, Robert . Eu venho de muito longe, eu venho cavando: jongueiros cumba na senzalacentro-africana, p. -. Ver tambm o livro do Instituto do Patrimnio Histrico eArtstico Nacional. Jongo. Braslia: Iphan, .

    Canr io Avoador, entrevista concedida autora em Carpina, em .

    Uma verso do Boi Tungo, cantada por Chico Antnio, em outubro de (e ano-

    tada por Antnio Bento de A. Lima) foi includa por Raimunda B. Batista em Vidado cantador. Edio crtica. Belo Horizonte: Villa Rica, . p. -.

    Idem, ibidem, p. -.

    Idem, ibidem, p. .

    Idem, ibidem, p. .

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    tador de vida acidentada e morte violenta, que tambm se gabava de tercantado com o diabo:

    meia noite a cantoria de Torce Bola tornava-se prodigiosa e asua voz atingia a tonalidades surpreendentes. O povo admirava-se

    profundamente desta transformao e dizia que era o co que vi-nha chegando para auxiliar o poeta. E o encapetado do Torce Bolatirava ento o seu coco famoso que era o terror dos cantadores:Telchch17

    Eu canto mais voc[...] Depois deste coco o poeta parava, destampava o ganz e uma fu-maa negra saa de dentro. O povo ficava dizendo que era o co quej ia embora. E muita gente benzia-se e esconjurava o maldito.18

    No bastasse os cantadores de coco vangloriarem-se desses duelosmedonhos, eles cantam, efetivamente, versos inslitos, e de um modo raro.

    Mas falar de ao mgica do canto pisar em terreno escorregadio,para se dizer o mnimo. Magia evoca, na linguagem comum de nosso tem-po, ora truques para enganar os crdulos, ora efeitos sobrenaturais, obti-dos mediante palavras esotricas. Para os antroplogos britnicos no finaldo sculo XIX, mgicas eram as tcnicas destinadas obteno de efeitosprticos, derivadas de proposies carentes de fundamento na experinciaemprica. A partir de associaes de ideias, de relaes metafricas e meto-nmicas, os homens primitivos postularam falsas causalidades sem quea ausncia de demonstrao emprica a lmina de Occam da mente cien-tfica as pusesse em xeque. O fato que, quando a magia se converteu emobjeto do pensamento cientfico, ela j no passava de um whole monstrousfarrago (nas palavras de Edward B. Tylor), miscelnea de crenas, ritos etcnicas duplamente alterizados, vis--vis a cincia e as religies19.

    Mrio recorreu s teorias da magia, do animismo e da mentali-

    dade primitiva em diversas ocasies. Esperava que lanassem luz sobrecertos aspectos da potica popular, que ele suspeitava serem governadospor associaes no-conscientes, libertas da lgica intelectual. O em-bolador, segundo ele,

    ...se atira embolada, a palavra explcita, em que a bola inventacom grande libertao de sentido, rebola a bola, sem saber muitas

    Telchch uma das muitas denominaes do diabo, segundo Vilela.

    VILELA, Aloisio. op. cit., p. -.

    TAMBIAH, Stanley. J. Culture, thought and social action: an anthropological pers-pective. Cambridge: Harvard University Press, .

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    vezes o que est dizendo. Este era o caso do cantador Chico Ant-nio, alltogether too ilogical in itself, como j falaram do chins[...] Porm mesmo o surrealismo de Chico Antnio no era nenhummilagre de repentismo no. Se sujeitava a processos sistematiza-dos fatais, do mecanismo da subconscincia e da no conscincia

    cultivadas, enumeraes, associaes de imagens, de ideias feitas,dices estereotipadas ligadas sem lgica intelectual.20

    Os custos da explicao eram altos, pois pressupunham descon-tinuidade entre mentalidades civilizada e primitiva e a supremacia daprimeira no terreno da lgica intelectual. Esses pressupostos, que a antro-pologia, nas dcadas seguintes, se encarregou de contestar, ampararam aexplicao de feitiarias e supersties populares, no Brasil. Mrio levou-os

    tambm para a potica, caixa de ressonncia em que repercutiam as par-ticularidades tnico-nacionais e histricas. As determinaes da mentali-dade primitiva e sua permanncia na mentalidade dos setores popularesno Brasil explicariam, ento, o mundo mirfico de milagrosas imagens21,de Chico Antnio, prova de que existem processos sistematizados de cantarsob domnio da subconscincia. Idiossincrticos e excepcionais, os (auto)encantamentos do coqueiro seriam, ainda assim, socialmente funcionais,na medida em que socializavam dinamogenias benfazejas.

    Minha hiptese no tem como premissas a fratura entre menta-lidades civilizada e primitiva, nem a antinomia entre indivduo e so-ciedade. Parto, inversamente, da ideia de que no s a observao decausalidades e o raciocnio lgico informam as aes humanas, emquaisquer sociedades e civilizaes incluindo o Ocidente moderno quetanto preza pela inspeo do mundo naturalizado e objetivado. Da mes-ma maneira, levo em conta que outras dimenses da lngua, alm dareferencial, subjazem atividade da fala. Inspiro-me na proposta do an-

    troplogo Stanley J. Tambiah22

    de incorporar, s anlises do ritual, umapragmtica da linguagem, na tentativa de superar os dilemas da aparen-te irracionalidade das aes e palavras mgicas. Mas meu problemano o das ritualizaes, e sim o de verificar em que medida aspectosperformativos (que integram a dimenso pragmtica) so relevantes napoesia cantada e no apenas falada ou escrita , mais precisamente noscocos. Espero, dessa forma, mostrar que nos cocos-de-embolada aquelesaspectos alcanam um rebuscamento mpar.

    ANDRADE, Mrio. Vida do cantador(Edio crtica de Raimunda de Brito Batis-ta). op. cit., p. -.

    Idem, ibidem, p. .

    TAMBIAH, Stanley. J. op. cit.

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    Ao falar de processos de encantamento nos cocos-de-embolada,refiro-me a determinadas modalidades de elaborao musical da palavra,que explicam as tolices e loucuras recorrentemente apontadas como traoscaractersticos do gnero. Devemos ter em mente que o hbitat da embo-lada a feira, as praias e os terreiros das casas de trabalhadores. O canto

    do embolador no est investido de autoridade estrutural; por outro lado,seu poder excede o dos ritos orais das pessoas comuns, por exemplo, ode prevenir a ocorrncia de coisas indesejadas exclamando-se vira essaboca pra l!. Pois os cocos so cantados, e se quisermos entender o queos emboladores dizem, e porque dizem daquele modo, preciso levar emconta as regras precisas de uso da lngua que eles se obrigam a seguir.

    Embolada e amarrao

    Entre os muitos termos que circulam na extensa rea onde se pra-ticam variedades de cocos, dois so importantes para as anlises queapresentarei adiante: embolada e amarrao. Apio-me na interpretaodo primeiro termo por Mrio de Andrade e aponto a necessidade de exa-me detido do segundo, exame que ainda est por se fazer.

    A polissemia do termo embolada conhecida. A palavra designa

    (a depender do contexto): 1. um tipo de desafio cantado ao som de pandei-ros ou de ganzs; sinnimo de coco-de-embolada; 2. um tipo de estrofecantada pelo solista, intercalada ao refro coral, com versos agrupadosem oitavas, o primeiro e o quinto mais curtos (tetra ou pentasslabos) queos demais (setisslabos); melodicamente, apresenta notas rebatidas eperfil descendente; sua frequncia alta no coco-de-embolada23; 3. umgnero de cano popular urbana, em voga entre os anos 1910 e 1950,basicamente, com representao na fonografia comercial; formalmente,

    apresenta as estrofes do tipo embolada, um refro e sustentao harmni-ca do canto que oscila entre tnica e dominante, s vezes com passagempela subdominante. A cano popular de gnero embolada, com arranjo

    A embolada no uma forma musical, apenas o nome das estrofes solistas nas can-es nordestinas de origem coreogrfica. um processo de tirar o solo nessas cantigase no compreende, pois o refro In: ANDRADE, Mrio de. Dicionrio musical brasi-leiro. op. cit., p. . ...[A] forma mais comum da embolada nordestina: trs redondi-lhas maiores precedidas de um semiverso, de quatro slabas. s vezes a embolada

    potica duplicada. Ento acrescenta mais quatro versos exatamente construdoscomo essa quadra, ou ento com o semiverso tambm completado nas suas sete sla-bas. Musicalmente o processo da embolada consiste numa linha de andamento rpido,onde abundam as notas rebatidas, e contruda num perpetuum mobile, movimentoperptuo em semicolcheias. O compasso no - usual(Idem, ibidem, p. ).

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    Si o esprito num minganaEu tambm sei o bl!h tat, blada num,Blada num, blada ntro,Atirei cum bola srta

    Num jgo de rebl!27

    Que dizer dessa estrofe? Mrio, ao iniciar a inspeo do vocabul-rio tcnico da potica dos cocos, comenta:

    Embolada vem de bola, palavra muito confusa na terminologiado cantador nordestino, e cujo sentido mais perceptvel : jeitopotico-musical de cantar. O cantador nordestino fala constan-

    temente na minha bola pra englobar tudo o que corresponde maneira pessoal dele cantar.28

    Mas a forma exemplar mais tpica do emprego desse sentido debola est na conhecidssima e variadssima quadra: Rebola bola/Voc diz, que d, que d/ Voc diz que d na bola/Na bola voc nod! Esta quadra, conhecida muito aqui no sul tambm, ou ns noa compreendemos ou tomamos bola no sentido do dicionrio, sen-tido objetivo, de coisa que ocupa lugar no espao. Ora , em nada

    se relaciona com bola de bilhar ou qualquer outra bola rodvel, ano ser na provocao da imagem de rebolar, oriunda da palavrabola, empregada no sentido de cachola, cabea: Voc est sofren-do da bola. E evidentemente desta bola, cabea, intelecto, que sefixou o sentido da palavra dos cantadores nordestinos.29

    Bola , em suma, tino, cabea; por extenso, o jeito de cantar. Bola-da so versos que o solista lana, e que sero respondidos pelos parceiros-

    rivais. Rebolar revirar a mente, realizar operaes mentais em busca daspalavras. Nesse sentido, Xico Torce-Bola devia ser mesmo temvel. Dar nabola, por sua vez, talvez equivalha ao dar uma pisa dos repentistas, asurra em versos que faz e desfaz a glria dos cantadores. O embolador defama caba danado, cabo da bola malina (cabra da bola maligna), comonos versos de coco que Mrio anotou na Paraba30. Quem fala de embolada,portanto, fala de debates cantados que exigem agilidade mental.

    ANDRADE, Mrio de. Os cocos(Introd. e notas de Oneyda Alvarenga). op. cit., p. . Idem.Dicionrio musical brasileiro. op. cit., p. . Ver tambm ANDRADE, Mrio.Vida do cantador(Edio crtica de Raimunda de Brito Batista). op. cit., p. -.

    ANDRADE, Mrio de. Dicionrio musical brasileiro. op. cit., p. -.

    Idem. Os cocos(Introd. e notas de Oneyda Alvarenga). op. cit., p. .

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    Embolar, ainda segundo Mrio, processo de cantar [...] e forma[...] que no s puxam pelo tino, mas puxam pela lngua tambm31. Eleobservava, seguido por Oneyda, que a embolada tem dico complica-da pelo alto ndice de repetio de sons e andamento movido. De fato,os emboladores adoram trava-lnguas, uma de suas tcnicas recorren-

    tes. As dificuldades de articulao desviam o foco da ateno do ouvintedo significado semntico para o valor sonoro das palavras, ao ponto dealgumas delas soarem quase estrangeiras. A embolada por excelnciaprovoca um zig-zag entre som e sentido, o que evoca duas conotaes re-levantes do termo, ligeireza e obscuridade. As palavras na embolada noficam liberadas inteiramente de sua funo referencial, mas seus sonsreverberam nos sons semelhantes das palavras contguas, mais intensa-mente do que na fala. Se a embolada tambm embalada, como disse um

    embolador com quem conversei, o processo se intensifica. Pode ser queele se referisse duplicao do tempo interno na estrofe, relativamenteao do refro, que ocorre em um sem nmero de emboladas. Ou acelera-o do andamento no decorrer da cantiga, que tambm pode acontecer.

    Foram esses aspectos que chamaram a ateno de Mrio. Ele re-lacionou o fato de Chico Antnio girar at ficar tonto e gostar de cantaresquentado ao carter surrealista dos versos do coqueiro:

    No canta nunca sentado e no gosta de cantar parado. Formaos respondedores, dois trs, em fila, se coloca em ltimo lugare uma ronda principia entontecedora, apertada, sempre a mes-ma. Alm dessa ronda, inda Chico Antnio vai girando sobre simesmo. Ele procura de fato ficar tonto porque, quanto mais girae mais tonto, mais o verso da embolada fica sobrerrealista, umsonho luminoso de frases, de palavras soltas, em dico magn-fica. Poemas que nenhum Aragon j fez to vivo, to convincente

    e maluco. prodigioso.32

    Entende-se, ento, que embolar uma tcnica do verso cantado,que pe em relevo a relao entre tino e lngua, pensar e vocalizar. Nafala e em vrios tipos de canto, percebemos os rgos fonadores comoferramentas que acionamos para a transmisso de significaes e afe-tos. Na embolada, entretanto, tudo se passa como se a rapidez da lnguaacelerasse tambm a mente, produzindo um estado de hiperatividadeverborrgica. Vejamos agora outro aspecto do canto dos emboladores.

    Idem. Vida do cantador(Edio crtica de Raimunda de Brito Batista). op. cit., p. .

    Idem, ibidem, p. -.

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    Eles falam tambm do seu balamento, conforme registrado porVilela na regio de Viosa, e que o folclorista explicou assim:

    O balamento consiste em o cantador, nos cocos que tirava, contarcasos, inventar histrias mentirosas, narrar episdios de valentia,

    etc. O nome veio da rapidez com que cantado. Ligeiro como umabala, diz o povo, e apelidou de balamento este gnero de cocos.33

    Os dicionriosAurlioe Houaissdo balamento como um tipo decoco de Alagoas e registram apenas este significado da palavra, cuja ori-gem afirmam ser desconhecida34. Mas o povo diz que balamento e bala(munio de armas de fogo) esto ligados, e est dicionarizada a palavrabalame que significa, de acordo com os mesmos dicionrios, grande

    quantidade de balas. Balamento aparece em versos de coco como sin-nimo de balame: Corro mais do que o vento/Cartuxera, imbalamento/Fuz mansa de atir, cantava Chico Antnio35, dando exemplo inequvo-co de que balamento significa munio, em versos nos quais o cantadorenaltece as qualidades de sua bola. Ento, h emboladas contando loro-tas e ostentando bravura que partem ligeiro como balas e so, provavel-mente, o balame(nto) do embolador. Talvez sejam as boladas do coco Ohtat, olha coquro,citado acima.

    Joaquim Pueirame, do Engenho Mata Verde (Viosa, Alagoas) erao grande mestre do balamento. Mas Vilela no o ouviu cantar, de sorteque as ...amostras dos seus famosos e quase sempre agressivos bala-mentos ele obteve de terceiros que os recordavam36. Nas estrofes apre-sentadas por Vilela, um narrador valento conta suas proezas na barracae na bodega, onde brigava com os punhos e um punh. J sabemosque o embolador no tem freios no reconto das suas faanhas. Repare-secomo sua voz categrica, imperativa:

    L no infernoTem um co chamado ColaSe encaixa na minha bolaTudo que eu peo ele dVolto pra trs

    VILELA, Aloisio. op. cit., p. .

    FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo dicionrio da lngua portuguesa..ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, e HOUAISS, Antnio e VILLAR, Mauro deSalles. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, .

    ANDRADE, Mrio de. Os cocos(Introd. e notas de Oneyda Alvarenga). op. cit., p. .

    VILELA, Aloisio. op. cit., p. .

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    Vou falar com o Padre EternoPra me livrar do infernoDas unhas do maiorTorno a vortE sigo pra as Alagoa

    Eu vou remando a canoaEm direo do PilTamaracVila de Santa MariaCaixeiro da fregueziaDespache quando eu mand.37

    A julgar pelo que afirma Vilela e pelos exemplos que fornece, o

    balamento de Pueirame era longo, agressivo e gabola.Passemos agora a outro termo obscuro do vocabulrio tcnico dos

    coqueiros e emboladores. Eles distinguem coco solto e coco-de-amar-rao. O primeiro tem apenas uma parte, que o solista apresenta ao ini-ciar o canto; na sequncia, a mesma parte retomada repetidamente, emdilogo, por ele e pelo coro38. Ou seja, o solista faz intervenes breves,sem introduzir versos criados ou agenciados de uma maneira prpria.No segundo, o solista lana estrofes, mais ou menos extensas (quadras,

    dcimas, oitavas etc.), entre uma e outra repetio do refro. Vejamosalguns dos escassos documentos mencionando amarrao. Eles mos-tram que a explicao acima insuficiente. Um deles est nOs cocos, emuma nota biogrfica sobre Chico Antnio, escrita por Antnio Bento deArajo Lima, que diz:

    Tanto gosta de cantar o coco solto (toada quadrada, parcela, cocos desolos pequenos) como o coco de amarrao (embolada). Prefere im-

    provisar, sem saber o que est dizendo. Me disse mesmo prefere can-tar esquentado, tirando as emboladas rapidamente no momento.39

    Em uma de suas acepes, como j vimos, embolada um pro-cesso de tirar o solo nessas cantigas [nordestinas] e no compreende [...]

    Idem, ibidem, p. .

    Altimar Pimentel, na obra O coco praieiro: uma dana de umbigada. op. cit., distin-

    gue coco solto e coco-de-dois-ps. Neste ltimo, o coco tem somente dois ps, querdizer, dois versos: um o refro, repetido depois de cada verso introduzido pelosolista. A alternncia estreita e o cantador no tem chance, por assim dizer, detomar a palavra por muito tempo.

    ANDRADE, Mrio de. Os cocos(Introd. e notas de Oneyda Alvarenga). op. cit., p. .

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    o refro 40. Trata-se, afinal, de um tipo de amarrao ou simplesmentede um sinnimo de amarrao?

    De acordo com Vilela41, o coco solto no tem a amarrao que ser-ve de intermdio entre o estribilho, podendo ter a forma de quadras oude emboladas sem nmero certo de ps42 . Pessoas que ele conhecia

    diziam, por exemplo, que gostavam dos dez ps amarrados de um certocantador i.e., da sua maneira de cantar em dcimas. A amarrao osolo, a parte que o poeta canta sozinho...43. Com jeito de quem conhecebem o vocabulrio do coco doutor de borda e capelo na Cultura Popu-lar, segundo Cascudo44, ao ponto de no precisar entrar em detalhes,Vilela disse de certo coco que estava amarrado em trs, isto , seguidode um terceto. Ento, amarrar ligar versos em sequncias, de acordocom modelos mtrico-musicais conhecidos, sem ser interrompido pelo

    refro coral ou pela resposta do embolador-parceiro.NOs cocos, encontra-se uma referncia obscura amarrao. O

    termo indica a uma parte cantada por solista, localizada, porm, no fi-nal da cantiga (ou do trecho transcrito), como se fosse uma coda. Depoisde vrias estrofes, entremeadas pelo refro Oh tat ingenho novo, altima vem precedida de um ttulo:Amarrao (pra acabar)45.Pena queesta indicao no tenha sido explicada. Seria amarrao aquela estrofefinal, pra acabar?

    Ainda nOs cocosencontra-se uma verso de Redondo, sinh, comvrias estrofes anotadas, algumas com carter de desafio. A verso foicantada por Jos, coqueiro com quem Mrio trabalhou em Natal e quemandou buscar um companheiro para responder os cocos que apre-sentava ao pesquisador (esse companheiro deve ter cantado o refro oucoro, conforme consta na transcrio feita por Mrio46:

    Ai, redond, Sinh! Coro: Ai, redond, Sinh!

    h pueta novo, Solo: Ai, nesse coco dimbol!Dxa dessa suberbia, Coro: Ai, redond, Sinh!Cruzro! Santa Maria! Solo: Diz, a minina que bunita

    Idem. Dicionrio musical brasileiro. op. cit., p. .

    VILELA, Aloisio. op. cit.

    Idem, ibidem. p. .

    Idem, ibidem, p. .

    Apud idem, ibidem, p. .

    ANDRADE, Mrio de. Os cocos(Introd. e notas de Oneyda Alvarenga). op. cit., p. . V. a crnica de de janeiro de publicada no Dirio Nacional e reproduzida em

    ANDRADE, Mrio de. O turista aprendiz(Estabelecimento de texto, introduo enotas de Tel Porto Ancona Lopez). So Paulo: Duas Cidades; Secretaria de Cultura,Cincia e Tecnologia, . p. -.

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    Mi de Deus do Paran! Sai na rua a namor! Ai, redond, Sinh! Coro: Ai, redond, Sinh! Eu v-mimbora dessa terra, Solo: Eu v mimbora, cumpa-nhro,To cedo eu num venho c, Que aqui num posso imbol!

    Eu v busc meus carapina Coro: Ai, redond, Sinh!Pa levant meus ti! Solo: h eta l, minha minina, Ai, redond, Sinh! Diga a palavra cumo t! Eu quero que me d licena, Coro: Ai, redond, Sinh!Cum artigo de sciena, Solo: E eta l, minha minina,E no coco amarrao. S fala quano eu mand,E s fala quano eu mand! Eu quero que voc me diga... Ai, redond, Sinh!47 Coro: Ai, redond, Sinh!

    Solo: o trem de caiga Passagro da Amorosa, Quanto vai pra Lagam?

    O perfil meldico das estrofes dado pelas semicolcheias rebati-das, caractersticas da embolada. Aparece uma pergunta sobre o trem decarga e, em resposta, a enumerao das estaes por onde ele passa. Emseguida, o cantador anuncia que vai introduzir artigo de cincia e, ato

    contnuo, menciona a misteriosa amarrao. Um verso de advertncia do tom do trecho: s fala quando eu mand!. Trata-se, provavelmente,de verso tradicional, acionado para intimidar os rivais. O significado dapalavra amarrao no est claro nesse coco, mas temos pelo menos umindcio de que ela est ligada prerrogativa, reivindicada pelo embola-dor, de exibir seus versos (no caso, sobre sciena), de ordenar que oparceiro-rival permanea calado ou cante quando for mandado.

    Encontra-se outra ocorrncia relevante da palavra numa entrevis-

    ta que Chico Antnio concedeu a Raimunda de Brito Batista, em 1980,em Pedro Velho (RN). No relato de seus primeiros passos de emboladorde coco, destacam-se os valores agonsticos que timbram o coco-de-em-bolada: os coqueiros batem e apanham em versos; empenham a honracantando. O pai de Chico opunha-se terminantemente vocao do filho.Mesmo assim, prometeu dar-lhe uma surra caso ele apanhasse do canta-dor Z Ful! No mesmo depoimento, Chico rememorou um episdio dosdias em que esteve disposio de Mrio de Andrade, no Engenho BomJardim. De acordo com suas lembranas, ele foi chamado para cantar

    ANDRADE, Mrio de. Os cocos(Introd. e notas de Oneyda Alvarenga). op. cit., p.-.

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    com um certo Chico Climintino para que o pesquisador os ouvisse. Nose saiu bem, mas Mrio deixou claro que preferia ouvir o improviso deChico Antnio aos versos do Climintino. Eis o que Mrio teria dito ao Cli-mintino, nas palavras de Chico Antnio: Moreno, me diga uma coisa, osenh s sabe cantar isso? Isso s. Isso eu num quero, [quero] v home que

    nem esse caboclo a [referindo-se a Chico Antnio], que t arrancano decima e de baixo, di dentro dgua e de dentro da lama, de dentro de tudo,s soltano a embolada e dando a amarrao. 48

    Chico Antnio estava convicto de que cativara Mrio com versosque arrancava de dentro de tudo, soltando a embolada e dando aamarrao. Dar a amarrao, como se v, tcnica to importante quan-to embolar, e com ela no se confunde. Mas de que tcnica se trata?

    Alosio Vilela registrou, na regio de Viosa, a forma denomina-

    da pagode de entrega, na qual um coco e sua amarrao devem serrepetidos pelo parceiro-rival, mesmo que letra e msica sejam para eleinteiramente desconhecidos. Disse o autor: Um cantador tira um cocoque o rival nunca viu nem a letra nem a msica, mas que obrigado arepetir tudo da mesma forma, fazer a amarrao do jeito que o outrotirou, seno est no couro, como diz o povo49. A explicao no clara,mas indica que o parceiro-rival obrigado a repetir a amarrao de cer-tos cocos. Os exemplos, lamentavelmente, no dissipam nossas dvidas,

    pois se restringem, geralmente, a uma ou duas estrofes, insuficientespara esclarecer os processos de alternncia entre os cantadores, e emque consiste repetir tudo da mesma forma.

    Mas nos exemplos apresentados por Vilela aparece um tipo de pa-ralelismo verbal frequente nas emboladas, o quiasmo: Eu entrei den-tro da rima/Dentro da rima eu entrei/Como eu no tenho rima/No seicomo rimarei/Eu entrei dentro da groza [sic]/Dentro da groza eu entrei/Como eu no tenho groza/No sei como grozarei50. Em outros exemplos

    de amarrao que deve ser repetida, sobressaem as listas de palavras, aforma mais reduzida de paralelismo (gramatical, semntico ou sonoro).

    Vai no vai, Marica Ll.Sapato, p, chinelo.Corred, xambari, p

    CHICO ANTNIO. Entrevista com Chico Antnio. In: ANDRADE, Mrio de. Vidado cantador (Edio crtica de Raimunda de Brito Batista). Belo Horizonte: VillaRica, , p. -.

    VILELA, Aloisio. op. cit., p. .

    Idem, ibidem, p. .

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    Fueiro, canga e mancTrancelim, col, cordo Vai no vai, Marica Ll51

    As listas frequentam muitos gneros cantados, mas operam demodo peculiar nos cocos. Conforme argumentei em outro artigo, as enu-meraes na cano popular so, geralmente, inventrios e genealogias.Esses dispositivos mnemnicos so acionados na produo de um pas-sado, uma linhagem ou um territrio, os quais, por sua vez, afianamas afirmaes identitrias do sujeito da cano52. No esse o caso doencadeamento sapato, p, chinelo, corred, xambari, p, fueiro, cangae manc, trancelim, col, cordo [sic], em que as palavras esto dispos-

    tas trs a trs, conforme rgida regra de associao semntica53, gerandoversos agudos. Entre os quatro versos, contendo cada um trs palavras,h paralelismo gramatical e sonoro (-o, -, -o, -). As palavras justa-postas no se ligam a nenhuma sentena e emergem no canto como seesse no tivesse sujeito. Esto l, como uma barreira verbal ou mesmoarmas atiradas contra o parceiro-rival. importante lembrar que, se-gundo informaram a Vilela, essas amarraes tm que ser memorizadasimediatamente, ao serem ouvidas, para serem repetidas.

    Em outras palavras, a amarrao nada tem a ver com listas do tipodentes, pernas, bandeiras, bomba ou Brigitte Bardot (Caetano Veloso,em Alegria, alegria) que, embora soe disparatada, um comentrio dapaisagem urbana vista pelos olhos do caminhante da cano. Ali esto ossubstantivos-estilhaos da imploso informativa moderna, espelhando arealidade urbana, mltipla e fragmentria, captada, isomorficamente, pormeio de uma linguagem nova, tambm fragmentria54. Do mesmo modo,biboca, garagem, favela, fubanga, maloca, bocada, na cano Ratamahat-

    tado grupo Sepultura, um comentrio poltico-social cido, cuja fora estna ...imagem pan-nacional de opresso e luta que desenha55. Isso nada tem

    Idem, ibidem, p. .

    TRAVASSOS, Elizabeth. Colees de palavras: polticas patrimoniais e cano po-pular. Intersees. Revista de Estudos Interdisciplinares, (), Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais, UERJ, Rio de Janeiro, p. -.

    Chambaril, corredor e p so partes comestveis do gado bovino; fueiro, canga emancal partes de mecanismos, como o carro-de-boi.

    CAMPOS, Augusto de. A exploso de Alegria, Alegria. In: CAMPOS, A. (Org.). Ba-lano da bossa e outras bossas.So Paulo: Perspectiva, . p. .

    AVELAR, Idelber. De Milton ao metal: poltica e msica em Minas. In:Anais do IVCongresso da Seo Latino Americana da IASPM. Rio de Janeiro, . Disponvelem www. hist.puc.cl/historia/iaspm/rio/actasautorhtml. Acesso em: out. .

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    a ver com emboladas e amarraes, nas quais listas tolas e malucas obe-decem a construes formais rgidas que exigem no s tino, mas tambmlngua. E a voz, a, no instrumento de expresso lrica nem de persuasoargumentativa, mas de produo de boladas, balamentos que se projetam eatrapalham o parceiro-rival.

    Dois cocos-de-embolada

    Apresentando a seguir dois cocos gravados, espero calar em an-lises ao rs do texto a hiptese de que as maluquices do coco so encan-tamentos, processos poticos inerentes ao desafio, destinados a atingir oparceiro-rival com os recursos da bola-boca. possvel que a amarra-

    o seja um tipo de estrofe em que esses processos esto concentrados(mas essa ideia carece de evidncia, sendo aqui apresentada a ttulo dehiptese). Os emboladores, ao cantarem em desafio, armam-se para en-frentar os parceiros-rivais, lanando contra eles palavras ordenadas emsequncias sonoro-semnticas especficas. So tcnicas de assujeitar oparceiro, obrigando-o a repetir uma estrofe complicada que acabou deouvir, tal como a ouviu, antes de lanar sua rplica (s fala quando eumand!; e do jeito que eu mand). Ambos obrigam-se, assim, a por

    prova as respectivas bolas-bocas.O primeiro coco, nas vozes de Cachimbinho e Geraldo Mouzinho, re-

    cebeu o ttulo Se trava lngua assimnum LP da dupla, editado em 198356.

    (Refro dialogado)Mulher nova tem carinho Mulher nova tem carinhoMenino novo tem manha Menino novo tem manha

    (Segundo refro) Arataca, urubutinga....Arataca, urubutingaAratu com aratanhaRita arranha, Roque rindoRoque rindo, Rita arranha

    Cachimbinho o nome artstico de Toms Cavalcanti da Silva, nascido emGuarabira (PB) e que, de acordo com o site Portal Correio, comeou a cantar

    aos anos. Geraldo Mousinho nasceu em Jacara e canta desde os anos.Aos anos de idade (em ), Cachimbinho foi beneficiado com a aposen-tadoria como Mestre das Artes, concedida graas Lei Canhoto da Paraba.http://www.portalcorreio.com.br/noticias/matLer.asp?newsId= Acesso em:mai./.

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    Mulher nova tem carinhoMenino novo tem manha

    Todo p quer o sapato Toda munheca tem moTodo ourives quer o ouro Desculpe [...] delicado

    Toda moa quer namoro Meu trabalho acertadoToda rata quer o rato Todo sul quer o sertoToda gata quer o gato Me preste bem atenoE a ona s quer montanha Colega no tem faanhaOvo s vai com banha Eita! Colega olha a montanhaE menino s com beijinho Meu colega no caminhoToda mulher nova tem carinho Mulher nova tem carinhoMenino novo tem manha Menino novo tem manha

    Mulher nova tem carinho Mulher nova tem carinhoMenino novo tem manha Menino novo tem manhaArataca, urubutinga.... Arataca, urubutinga....Toda moa quer casar Pois todo dedo tem unhaTodo rapaz quer tambm Todo mundo quer viver

    Para possuir seu bem Quem vivo quer comerPara zelar o seu lar Toda isca .......................Reza sabendo rezar Todo ru tem testemunhaTodo caju tem castanha Quem vai dar tambm apanhaTodo besouro se assanha Eu digo ningum se estranhaSe catucar direitinho Pode escutar ...................Mulher nova tem carinho Mulher nova tem carinhoE menino novo tem manha E menino novo tem manha57

    O coco apresentado na voz de um dos emboladores; nas repe-ties, comea o jogo de alternncia dos membros da dupla. Logo emseguida, um deles introduz uma parte de sentido obscuro, embora cor-riqueira do ponto de vista formal so quatro versos setisslabos comrimas cruzadas, que se completam numa sextilha com o coco. As es-trofes que surgem depois so construdas com sentenas paralelas queexpandem o paralelismo do primeiro refro (mulher nova tem carinho/menino novo tem manha).

    Geraldo Mouzinho e Cachimbinho. Disco LP Cantar coco assim. Beverly BLP, .

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    No o caso dos versos que se repetem como um segundo refro,que no obedecem a esse padro de construo, e parecem destinados amostrar que se trava lngua assim, como promete o ttulo. O que per-mite suspeitar que se trata de uma amarrao a semelhana com aque Vilela apresentou, citada acima. Por terem sido gravadas em disco,

    percebe-se melhor como elas se situam relativamente s demais par-tes da cantiga. Trata-se de um segundo refro obrigatrio. Nele, as pala-vras so importantes, claro; mais importante ainda o modo como socantadas, como se a voz fosse um instrumento sonoro58: o trava-lnguaexibe uma sequncia de ataques consonantais com insistente repetiode vibrantes, oclusivas (arataca, urubutinga...) e vibrantes fortes emi-tidas com nfase e em tom de urgncia (Rita arranha, Roque rindo). Aolongo da execuo, os dois erresde articulao uvular posterior so exa-

    gerados por um dos emboladores, medida tambm que o andamentoacelera. Essa parte comea com uma lista de quatro substantivos, todosderivados de lngua Tupi: arataca, que uma armadilha para animaispequenos; urubutinga ou urubu-rei; aratu, um crustceo do mangue; earatanha, um camaro de gua doce em Alagoas59. Uma armadilha etrs bichos, sendo que dois deles so caados com armadilhas. Mas essapequena lista no tem conexo com os quatro segmentos paralelos quevm em seguida, duas sentenas ordenadas em quiasmo. Nessa parte, o

    que conta so os sons que arranham.Passo agora ao segundo coco, cantado por Olavo Pedro e Pitiguari

    (Jos Eusbio dos Santos), ambos de Macei, que diz o seguinte:

    1 cantador: 2 cantador:Embiriba, embiribeira Eu no quero ver fadigaEmbiribeira, embiriba Que a minha volta assimUrtiga-tamearama Para cantador ruim

    Tamearama e urtiga Sou uma dor de barrigaPara cantador ruimSou uma dor de barriga

    1 cantador:

    2 cantador: Sou uma dor de barrigaSou uma dor de barriga Sou uma dor de barrigaSou uma dor de barriga Para cantador ruim

    L-se no Ensaio sobre a msica brasileira: Ora eu insisto no valor que o coralpode ter entre ns. Musicalmente isso bvio. Sobretudo com a riqueza em que avoz pode ser concebida instrumentalmente, como puro valor sonoro. (ANDRADE,Mrio de. Ensaio sobre a msica brasileira. So Paulo: Martins, . p. ).

    FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. op. cit., p. .

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    2cantador1cantador: Sou uma dor de barrigaPara cantador ruimSou uma dor de barriga

    1 cantador: 1 cantador:Elisa, Riachuelo Embiriba, embiribeiraRiachuelo, Elisa Embiribeira, embiribaEmbiriba, embiribeira Urtiga-tamearamaEmbiribeira, embiriba Tamearama e urtigaUrtiga-tamearama Para cantador ruimTamearama e urtiga Sou uma dor de barrigaCom certeza lua, brisa 2 cantador:

    Lua, brisa bem assim Sou uma dor de barrigaPara cantador ruim Sou uma dor de barrigaSou uma dor de barriga Para cantador ruim Sou uma dor de barriga1cantador: 1 cantador:Sou uma dor de barriga Quando eu vinha do oiteiroSou uma dor de barriga Com certeza lua, brisaEmbiriba, embiribeira Embiribeira, embiriba

    Embiribeira, embiriba... Embiriba, embiribeiraUrtiga-tamearana Urtiga-tameramaTamearana e urtiga Tamearama e urtigaPara cantador ruim [............] voc no brigaSou uma dor de barriga Se eu no brigo bem assim Para cantador ruim Sou uma dor de barriga60

    Novamente, temos uma parte, repetida como um refro, de ondesaem os dois versos que do o mote da cantiga (para cantador ruim,sou uma dor de barriga) e caracterizam bem o desafio, com sua mis-tura de ameaa e gabolice a bazfia do cantador de que falava Mriode Andrade. Novamente, tambm, temos uma lista de nomes, no caso devegetais. No encontrei embiriba nem embiribeira nos dicionriosAurlioe Houaiss, tampouco em obras de botnica brasileira. Converseicom um cearense cujos pais vivem na rea rural e ele conhecia embiriba

    Olavo Pedro e Pitiguari. Embiribeira, CDA atual msica popular tradicional deAlagoas. v.. Selo Das Lagoas, .

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    como planta que d dor de barriga61. Tamearama-urtiga uma trepadeiraconhecida tambm como urtiga-tamearama e que tem, provavelmente, osefeitos do cido frmico da urtiga, substncia que causa ardor e irritaona pele (Aurlio). O efeito trava-lngua gerado, nos dois primeiros ver-sos, pela sucesso de exploses bilabiais. Como era de se prever a essa al-

    tura, embira, embiri e tamearana so palavras derivadas de lngua Tupi.Na sequncia, o primeiro cantador apresenta material novo em quiasmo(Elisa, Riachuelo, Riachuelo, Elisa). O segundo cantador, por sua vez,introduz versos alusivos briga, quer dizer, prpria situao do canto.

    Nos dois cocos, o corte rtmico-meldico o do motum perpetuumem todas as partes. Mas no deixa de haver certo contraste entre o pri-meiro refro e o restante, pois apenas nele (que se divide em chamadae resposta) a voz se expande num espao tonal um pouco mais amplo.

    No caso de Embiriba, embiribeira, a resposta (sou uma dor de barri-ga) ascende em arpejo at a stima (abaixada) com relao ao tom derepouso do modo. O segundo refro o que penso ser a amarrao praticamente falado; mais do que isso, falado com nfase, quase comagressividade. No admira: ele dirigido contra o parceiro-rival e deveatingir tambm os ouvintes, igualmente embalados pela cantiga.

    A voz nesses cocos comunica significados semnticos por meio deestruturas sintticas peculiares (como as listas). Mas ela o faz mediante

    recursos sonoros especiais, que so os ataques consonantais exacerbados,a retrao do movimento no espectro das frequncias e o controle da du-rao das slabas. Essa melodia ritmizada em valores curtos soa, s vezes,como um estrato percussivo que interage com o dos pandeiros (e no caso deMulher nova tem carinho, com pandeiros, um tringulo e um agog).

    Podemos pensar essas vocalizaes como puro jogo formal. Masno se pode ignorar as ameaas contidas no coco da embiriba que, porsua vez, nos estimulam a pensar na aspereza cmica de Rita arranha

    Roque rindo como mais do que deleite. As palavras veiculam ameaas,de dois modos. Primeiro, por convocar coisas do mundo que causamdano e evocar metaforicamente a armadilha e as presas. Segundo, por-que as listas como que objetificam as palavras, que so empilhadas paraerguer barreiras de sonoridades enfatizadas e reverberantes. So objetos

    Embiri outro nome da araruta (Maranta arundinacea L.), herbcea cujos ri-zomas produzem uma farinha muito consumida no pas. Embira designao

    comum a vrias espcies arbustivas que do boa fibra, e tambm qualquer cip(Lorenzi, Harri.rvores brasileiras: manual de identificao e cultivo de plantasarbreas nativas do Brasil.Nova Odessa: Plantarum, ). Segundo Houaiss(op.cit.), tambm conhecida como embireira e envireira. Suas folhas contm dafnina,venenosa para o gado.

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    sonoros que se desprendem da bola-boca do cantador e que ele usa comobalame(nto)s. No quaisquer palavras, elas no so aleatoriamente dis-postas, conectadas por livre associao guiada pelo inconsciente. Suadisposio regida por uma ordem formal estrita e sua emisso por umestilo vocal igualmente rigoroso e estilizado.

    Cantados em notas rebatidas, listas, quiasmos e outros paralelis-mos revolvem no estreito espao tonal da fala, da qual se afastam, po-rm, ao homogeneizar as duraes das slabas pela fora do ritmo. Elesimpedem que o discurso se dirija a algum ponto e que revele um sujeito:so a anttese da prosa. Com as listas retendo o discurso, no h movi-mento em direo a,somente o movimento da perptua reiterao.

    Encantamentos verbais no so instncias de um sistema lingus-tico divorciado do mundo, que a ele remete graas a convenes que li-

    gam arbitrariamente sons e significados. A palavra dita ou cantada, emvirtude das simpatias e correspondncias que a ligam ao mundo, podeatrair, conjurar, afastar em suma, obrigar. Ela suscita ou descarta ascoisas representadas, sobretudo se a elas se liga por semelhana62. O em-bolador obriga a urtiga-tamearana e a embiriba, convoca-os para enfra-quecer o parceiro-adversrio. A lista arataca, urubutinga, aratu comaratanha, por sua vez, no parece uma maldio, mas exibe o podereficaz da forma63, qual seja, o de travar a lngua, desafiar bolas e bocas

    com sons que raspam e arranham, batem e explodem. No quer o embo-lador atrair o cantador para a armadilha para que nela caia, como aratue aratanha? Quando assume a forma de listas e quiasmos, o encantamen-to do embolador tambm uma armadilha mental que gera agradvelfrustrao ao prender a mente em labirintos de padres abstratos64. Osegundo refro, nos dois exemplos analisados, alm de amarrar o coco(refro), ilustra as tcnicas de encantamento, que hipnotizam quem ouvee protegem quem canta. A forma encontrada em outros cocos, como,

    por exemplo, a verso de Meu baralho dois ouro, gravada pelo grupoRazes de Arcoverde65.

    Ver sobre a doutrina das correspondncias, abandonada nas concepes modernasda lngua, em: FOUCAULT, M.As palavras e as coisas: uma arqueologia das cin-cias humanas. So Paulo: Martins Fontes, []. Sobre magias verbais, verMAUSS, Marcel. La prire. In: Oeuvres, . Les fonctions sociales du sacr. Paris: Lesditions de Minuit, .

    MAUSS, Marcel e Hubert, Georges. Ensaio sobre a magia. In: Sociologia e antro-

    pologia. [-]. p. . GELL, Alfred.Art and agency: an anthropological theory.Oxford: Clarendon Press,. p. .

    Razes de Arcoverde. Baralho dois ouro, CD Razes de Arcoverde. Selo CavaloMarinho, s.d.

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    Recapitulando, ento, as propriedades identificadas nos cocos-de-embolada comentados (de Cachimbinho e Geraldo Mouzinho, Olavo Pedroe Pitiguari): 1. canto dialogal; contraste entre refro e estrofes, sendo asltimas propcias improvisao e ao debate; 2. presena de um segundorefro fixo; 3. frequentes paralelismos verbais que projetam o discurso so-

    bre o eixo paradigmtico; 4. reiteraes fnicas generalizadas, na forma denotas rebatidas simultneas s aliteraes e assonncias; 5. uso mgicodas palavras, graas explorao tanto de sua iconicidade quanto de suaintimidade com as coisas; 6. desestabilizao da relao convencionada en-tre som e sentido; 7. ocorrncia de trechos que devem ser repetidos; 8. tomcategrico e imperativo das intervenes do solista (em alguns casos). Dizerque os emboladores cantam versos sem sentido ou doidos, indiferentes aosparmetros de correo e significao vigentes em outros uso da lngua ,

    possivelmente, outra maneira, mais sinttica, de dizer a mesma coisa.

    Perguntas sem resposta

    Gostaria de encerrar explicitando as perguntas que permanecemsem resposta. A primeira diz respeito ao termo coco, que ningum duvi-da se tratar de um homnimo do fruto do coqueiro. Na verso que Alosio

    Vilela ouviu de um velho proprietrio do Distrito de Ch-Preta, os es-cravos fugidos cantavam e sapateavam quebrando cocos no quilombo dePalmares. O nome aderiu ao canto e dana e disseminou-se na senzala.A explicao no convence, embora algumas danas afro-brasileiras te-nham o nome do instrumento musical que as anima: tambor, zabumba,zamb, caxambu...

    Que se trata de canto e dana criados por africanos e seus descen-dentes ningum duvida. A forma vocal de chamada e resposta, a dana

    de umbigada e os arranjos instrumentais com tambores e outros idiofo-nes so indcios fortes, os mesmos que induziram Edison Carneiro66apropor vnculos genticos entre todas as danas de umbigadas no Brasil,em roda ou em duas filas que se defrontam, conhecidas modernamenteou extintas, do litoral norte a So Paulo.

    Foram escravos Xico Mouro, Candido Lino, Saturnino Ca e Joa-quim Canrio, da mais antiga gerao de cantadores de que Alosio Vile-la teve notcia em Viosa. Jos Veneranda era filho da Veneranda, negrade quase cem anos, retrato vivo daqueles negros bantus que no sculo

    CARNEIRO, dison. Folguedos tradicionais. Rio de Janeiro: Instituto Nacional doFolclore Funarte, .

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    passado foram importados da frica67. A preta Maria Joana que Mriode Andrade escutou em Olinda era filha de africanos legtimos, e tinhaidade estimada em 30 anos. Cantava esplendidamente emboladas, sam-bas, marchinhas de carnaval com seu ritmo prodigioso, inconcebvel,voz de metal, com cor de prata polida, ntida feito alfinete, formidvel de

    encanto68. Tenta-se em vo saber sobre eles mais do que alguns versosou uma anedota. Os afrodescendentes disseminaram os cocos que, naprimeira metade do sculo XX, j haviam contaminado proprietrios deengenho e burgueses citadinos.

    O enraizamento na vida cotidiana das comunidades negras e mes-tias torna possvel expandir um pouco a interpretao das tcnicas dobalamento e da amarrao, luz do que se sabe, atualmente, acerca dojongo. Amarrar, na linguagem jongueira, uma artimanha mgica dos

    melhores cantores de jongos. Diz-se que o jongo fica amarrado quandoalgum entoa um ponto (cantiga) enigmtico que os outros no sabeminterpretar, ou melhor, desatar. Uma aura de competitividade cerca asexibies dos jongueiros que se provocam reciprocamente e granjeiamprestgio com pontos de efeitos considerados extraordinrios. Os enig-mas so construdos com base em metforas, algumas delas pratica-mente congeladas numa espcie de cdigo que somente os jongueirosexperientes dominam69.

    A ideia do ponto que amarra traduz, em portugus, um arco de sen-tidos imbricados nas razes bantu kane gan(respectivamente amar-rar ou pegar, e amarrar). Da primeira proveio encangar, que o objetivodos feitios de amarre dos grupos identificados como congos em Cuba:amarrar significa sujeitar a vontade de uma pessoa ou esprito, concluiuOrtiz70. Da segunda proveioganga, o feiticeiro, ou aquele que conhece osfeitios de amarre, como tambm se diz em Cuba. Afirma o historiadorRobert Slenes, num ensaio erudito sobre os pontos de jongo e a constitui-

    o tnico-lingustica do estrato escravo nas fazendas de caf do Sudeste:...kanga e suspeito, tambm seu conjunto de metforas teria tido res-sonncia com muitas pessoas fora da comunidade kongo, porque vem deuma raiz (possivelmente proto-bantu) que deixou derivados espalhadosatras da frica Central, a oriental tanto quanto a ocidental.71

    VILELA, Aloisio. op. cit., p. .

    ANDRADE, Mrio de. Os cocos(Introd. e notas de Oneyda Alvarenga). op. cit., p. .

    RIBEIRO, Maria de Lourdes Borges. op. cit. DIAS, Paulo. A outrafesta negra. In: Jancs,I. e Kantor, I. (Orgs.). op. cit. e Feitio das palavras a arte dos pontos de jongo. op. cit.

    ORTIZ, FERNANDO. op. cit.

    SLENES, Robert. Eu venho de muito longe, eu venho cavando: jongueiros cumbana senzala centro-africana. op. cit., p. .

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    Portanto, cantos de amarrar so parte de um conjunto de concei-tos centro-africanos.

    O etnlogo africanista Wyatt MacGaffey (citado por Slenes) sus-tenta, ademais, que vige entre populaes de fala bantu uma viso nomi-nalista da lngua. As palavras no so codificaes sonoras ligadas por

    vnculo em larga medida arbitrrio a abstraes mentais (significados).Elas no so concebidas como elementos de um sistema divorciado domundo, porque mantm com as coisas afinidades eletivas. Suspeitoque o mesmo pode ser dito dos procedimentos poticos encontrveis noscocos-de-embolada.

    Com respaldo na filologia africanista, Slenes relacionou a palavrajongo, hipoteticamente, aos vocbulos kikongo nsngi(ponta, aguilho),nzngo(tiro de fuzil, carga de plvora para fuzil) e locuo nznog myan-

    nua (tiro, combate com a boca, imitao de tiro de fuzil com a boca).Ligar-se-ia tambm ao umbundusongo(bala, ponta de flecha) e ao kim-bundusongo(pontada). inevitvel pensar no balamento e nos combatescom a boca dos emboladores. Creio, portanto, que h elementos lingus-ticos para associar as artimanhas de amarrar o jongo amarrao noscocos. As tcnicas poticas, contudo, so diferentes. As charadas no jon-go tm que ser respondidas por uma glosa na qual o jongueiro faz provade que sabe do que se est falando. A amarrao se est correta minha

    ideia um trecho de afronta, intrincado, com listas e trava-lnguas,contendo ameaas e depositando, aos ouvidos do parceiro-rival, uma pi-lha de palavras imantadas de som. Pode-se invocar ainda, a favor dessaassociao, a tcnica do desmanche, que inevitvel relacionar com ade desatar o ponto72. Isso, porm, ainda necessita mais investigao.

    Finalmente, pergunto se no estaria na mesma constelao osamba-chula do Recncavo Bahiano. Veja-se o que diz a pesquisadoraKatarina Dring:

    O samba chula caracterstico, tambm chamado samba-de-viola esamba amarrado, se encontra na antiga regio da cana... [do Re-cncavo Baiano] [...] Na outra margem do Rio Paraguau, nos mu-nicpios de Antnio Cardoso, Santo Estvo e Rafael Jambeiro, achula chamada de cocoe o corrido chamado de chula. O sambase caracteriza por se um samba de desafio[...]. Entre os sambado-

    VILELA, Aloisio. op. cit. e Andrade, Mrio de. Os cocos(Introd. e notas de OneydaAlvarenga). op. cit.

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    res antigos, samba coisa sria, assunto de homens brabos que sedesafiam com palavras afiadas e ritmadas.73

    Seu Moreno (Olavo Ferreira de Sousa), morador de Rafael Jam-beiro e cantador de samba-chula, explica que a tirana amarrada,

    uma conversa de cantador pra cantador, feita at sem som. O sambachula ou coco, diferentemente, solto, a gente fala o que quer. A es-to, novamente embaralhadas, as peas do quebra-cabeas: a conversade cantador para cantador, os desafios de homens brabos, a amarrao(em que no se fala o que se quer livremente, pois se est obrigado pelooutro a repetir, comentar, responder, glosar...) e o coco. Para que formemuma figura inteligvel, preciso mobilizar recursos mltiplos: anlisesmicroscpicas de cocos-de-embolada investigao etnogrfica das atua-

    es de emboladores, seus sistemas de classificao de gneros e estilos,suas explicaes tcnicas; etnologia e lingustica africanista, e histriadas populaes afro-descendentes em vrias regies do Brasil. H algumtempo, os emboladores vm dando pistas sobre tcnicas como amarra-o, balamento, embolada e outras. Infelizmente, ainda no as ouvimoscom suficiente ateno.

    DRING, Katharina. A Chula no samba do Recncavo. Texto no folheto que acom-panha o DVD Cantador de Chula, Prmio Avon Cultura de Vida, . [Grifos daautora].