clínica - a palavra negada
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PUBLICAO QUADRIMESTRAL EDITADA PELO
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DIREO NACIONAL (GESTO 2000-2002)
PresidenteSarah Escorel (RJ)1O Vice-PresidenteArmando de Negri Filho (RS)2O Vice-PresidenteEduardo Freese de Carvalho (PE)3O Vice-PresidenteCarlos Botazzo (SP)4O Vice-PresidenteAlcides Silva de Miranda (CE)1O SuplenteRogrio Renato Silva (SP)2O SuplenteMaria Jos Scochi (PR)
CONSELHO FISCAL
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CONSELHO CONSULTIVO
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CONSELHO EDITORIAL
CoordenadorPaulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ)
Ana Maria Malik (SP), Clia Maria de Almeida (RJ), Francisco de Castro Lacaz (SP),Guilherme Loureiro Werneck (RJ), Jairnilson da Silva Paim (BA),Jos da Rocha Carvalheiro (SP), Lgia Giovanella (RJ), Luis Cordoni Jr. (PR),Maria Ceclia de Souza Minayo (RJ), Naomar de Almeida Filho (BA),Nilson do Rosrio Costa (RJ), Renato Peixoto Veras (RJ),Ronaldo Bordin (RS) & Sebastio Loureiro (BA)
SECRETARIA EXECUTIVA
Ana Cludia Gomes GuedesRenata Machado da Silveira
RESPONSVEL PELA EDIO
Ana Cludia Gomes Guedes
REVISO DE TEXTO
Carlos Frederico Manes Guerreiro portugusJuliana Monteiro Samel ingls
FOTOS DA CAPA
Alvaro Funcia Lemme
CAPA, DIAGRAMAO E EDITORAO ELETRNICA
Adriana Carvalho & Carlos Fernando Reis da Costa
IMPRESSO E ACABAMENTO
Armazm das Letras Grfica e Editora
TIRAGEM
3.000 exemplares
Apoio:
Indexao:
Literatura Latino-Americana e do Caribe
em Cincias da Sade (LILACS)
A Revista Sade em Debate associada
Associao Brasileira de Editores Cientficos
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Rio de Janeiro v.25 n.58 maio/ago. 2001
RGO OFICIAL DO CEBES
Centro Brasileiro de Estudos de Sade
ISSN 0103-1104
CONCEITUALMENTE A CAPA EXPRESSA A RICA PRODUO POLTICA,ARTSTICA E CULTURAL DO MOVIMENTO DE REFORMA PSIQUITRICA
FONTE LABORATRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM SADE MENTAL (LAPS/FIOCRUZ)
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2 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999
SUMRIO
EDITORIAL 3
ARTIGOS ORIGINAIS
Desinstitucionalizao em Sade Mental: consideraes sobre o paradigma emergenteDeinstitutionalization in Mental Health: considerations on the emergent paradigmJacileide Guimares, Soraya Maria de Medeiros, Toyoko Saeki &Maria Ceclia Puntel de Almeida 5
As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as premissas do Modo PsicossocialThe National Conferences of Mental Health and the premises of the psychosocial wayAblio da Costa-Rosa,Cristina Amlia Luzio & Silvio Yasui 12
A constituio de novas prticas no campo da Ateno Psicossocial: anlise de doisprojetos pioneiros na Reforma Psiquitrica no BrasilThe forming of new practices in the Psychiatric-social care: review of two pioneer projects in thePsychiatric Reform in BrazilPaulo Duarte de Carvalho Amarante & Eduardo Henrique Guimares Torre 26
Da avaliao em sade avaliao em Sade Mental: gnese, aproximaestericas e questes atuaisFrom health assesment to mental Health Assesment: birth, theoretical approaches andcurrent issuesPatty Fidelis de Almeida & Sarah Escorel
35
Ambiente construdo e comportamento espacial na instituio psiquitrica: questesticas em Observao ParticipanteBuilt environment and spatial behaviour in psychiatric institution: ethical issues inParticipative ObservationMirian de Carvalho
48
Lares Abrigados: dispositivo clnico-poltico no impasse da relao com a cidadeSheltered Homes: a political-clinical apparatus in the locked relationship with the cityRegina Benevides de Barros & Silvia Josephson
57
O usurio de psicofrmacos num Programa Sade da FamliaThe psycopharmic user in a Family Health ProgramMaria Clia F. Danese & Antonia Regina F. Furegato
70
A construo da diferena na assistncia em Sade Mental no municpio: aexperincia de So Loureno do Sul RSThe construction of difference in Mental Health assistance in municipalities: the experience ofSo Loureno do Sul RSChristine Wetzel & Maria Ceclia Puntel de Almeida 77
Qualidade de vida de pessoas egressas de instituies psiquitricas:o caso de Ilhus BAQuality of life in patients discharged from psychiatric institutions: the Ilhus BA, caseRozemere Cardoso de Souza & Maria Ceclia Morais Scatena 88
Clnica: a palavra negada sobre as prticas clnicas nos servios substutivos deSade MentalClinical ptractice: denied words on clinical practices in Mental Health substitutive servicesRosana Onocko Campos 98
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Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999 3
EDITORIAL
Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 3, maio./ago. 2001 3
Este nmero da Sade em Debate dedicado SadeMental e ser lanado por ocasio da III Confern-cia Nacional de Sade Mental, em Braslia, no perodo
entre 11 e 15 de dezembro de 2001.
Desde os primrdios da Reforma Sanitria, no in-
cio do CEBES que completa 25 anos, o campo da Sade
Mental tm sido vanguarda e integrante do movimento
sanitrio, resguardando suas especificidades que in-
tegram o Movimento da Reforma Psiquitrica no Bra-
sil e, ao mesmo tempo, inserindo objetos, teorias,
temas, atores e arenas no movimento mais geral que
luta pela transformao das condies de sade da
populao brasileira.
Desnecessrio enfatizar a importncia da III Confe-
rncia Nacional de Sade Mental, desejada h mais de
uma dcada e que se realiza num contexto nacional e
internacional auspicioso. H cerca de dez anos vm
sendo implantados servios substitutivos e novas pr-
ticas assistenciais e este um bom momento para ava-
liar avanos e impasses. Depois de muitos anos tra-
mitando no congresso, e de muita luta do movimento
social por uma sociedade sem manicmios, foi apro-
vada a Lei da Reforma Psiquitrica abrindo possibili-
dades de inovao e de regulao. A OMS declarou 2001
o ano da Sade Mental com a proposta cuidar sim,
excluir no. Mas, estas boas novas inserem-se no velho
e conhecido cenrio de pobreza e extremas desigual-
dades sociais. Portanto, h que se pensar nas necessi-
dades especficas de proteo social dos portadores de
sofrimento psquico no interior do contexto de recons-
truo de um efetivo sistema de proteo social.
Este nmero a contribuio do CEBES aos importan-
tes debates da III Conferncia Nacional de Sade Men-
tal. Desinstitucionalizao, novas prticas, prticas cl-
nicas nos servios substitutivos, avaliao, relaes dos
lares abrigados com a cidade, uso de psicofrmacos no
PSF, experincias municipais de assistncia em sade
mental e qualidade de vida dos egressos de instituies
psiquitricas so os temas abordados alm do artigo
que recupera as conferncias anteriores na rea de Sa-
de Mental que nos lembra e relembra que a Reforma
Sanitria em geral, e a Reforma Psiquitrica em parti-
cular, so processos, nem contnuos nem lineares e que
dependem da participao de todos os segmentos para
alcanar efetivamente os objetivos desejados: incluso,
solidariedade e cidadania emancipada.
A Diretoria Nacional
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4 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999
QUEM SOMOS
Desde a sua criao, em 1976, o CEBES tem como centro de seu projeto a
luta pela democratizao da sade e da sociedade. Nesses 25 anos, como
centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espao esteve
assegurado como produtor de conhecimentos com uma prtica poltica concreta,
seja em nvel dos movimentos sociais, das instituies ou do parlamento.
Durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o CEBES continua empenhado
em fortalecer seu modelo democrtico e pluralista de organizao; em orientar
sua ao para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervir nas
polticas e prticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crtica e
a formulao terica sobre as questes de sade; e em contribuir para a
consolidao das liberdades polticas e para a constituio de uma sociedade
mais justa.
A produo editorial do CEBES tem sido fruto de um trabalho coletivo. Estamos
certos que continuar assim, graas a seu apoio e participao.
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Desinstitucionalizao em Sade Mental: consideraes sobre o paradigma emergente
Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 5
ARTIGOS ORIGINAIS
Desinstitucionalizao em Sade Mental: consideraes sobre oparadigma emergente1
Deinstitutionalization in Mental Health: considerations on the emergent paradigm
Jacileide Guimares2
Soraya Maria de Medeiros3
Toyoko Saeki4
Maria Ceclia Puntel de Almeida5
1 Trabalho elaborado a partir da disciplina
Seminrios de Sade Mental do Mestrado
de Enfermagem Psiquitrica e Sade
Mental da Escola de Enfermagem de
Ribeiro Preto da Universidade de So
Paulo EERP/ USP, 1999.
2 Mestranda em Enfermagem Psiquitrica
e Sade Mental na Escola de Enfermagem
de Ribeiro Preto da Universidade de So
Paulo EERP/USP.
3 Professora Doutora do Departamento de
Enfermagem da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte.
e-mail: [email protected]
4 Professora Doutora do Departamento de
Enfermagem Psiquitrica e Cincias
Humanas da EERP/USP.
e-mail: [email protected]
5 Professora Doutora do Departamento
de Materno Infantil e Sade Pblica da
EERP/USP.
e-mail: [email protected]
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar a ps-modernidade
epistemolgica, social e poltica do saber/fazer psiquitrico no Brasil. Para
tanto partimos dos pressupostos do Paradigma Emergente no mbito
epistemolgico e dos Novos Movimentos Sociais (NMS) no mbito social e
poltico ambos segundo Santos (1997a, 1998), acrescido das experincias
prticas da assistncia em sade mental no Brasil nas duas ltimas dcadas
(1979-1999). Verificamos a congruncia existente entre os movimentos de
mudana da ateno psiquitrica e as prerrogativas do paradigma
emergente, podendo-se destacar a complexidade e complementariedade
exigida por esse paradigma e defendida pelas experincias brasileiras de
desinstitucionalizao de orientao basagliana.
PALAVRAS-CHAVE: desinstitucionalizao; sade mental; paradigma emergente.
ABSTRACT
This essay aims to analyze the epistemological, social and political post-
modernity of psychiatric knowledge/performance in Brazil. With that objective,
we started from the presuppositions of the Emergent Paradigm in the
epistemological level and of the New Social Movements in the social level,
both according to Santos (1997a, 1998), in addition to practical experience
on mental health care in Brazil in the past two decades (1979-1999). We
observed the congruence that exists between both movements related to
psychiatric health care change and the prerogatives of the emergent
paradigm. The complexity and complementarity required by such paradigm,
which is defended by the Brazilian deinstitutionalization experiences based
on the theories of Basaglia, can be highlighted.
KEY WORDS: deinstitutionalization; mental health; emergent paradigm.
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GUIMARES, J. et al.
6 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001
INTRODUO
O presente artigo tem como ob-
jetivo analisar a ps-modernida-
de epistemolgica, social e polti-
ca do saber/fazer psiquitrico no
Brasil nas duas ltimas dcadas
(1979 - 1999).
Santos (1998: 37) define as
transformaes epistemolgicas no
modo de se fazer/ver cincia ou o
Paradigma Emergente como um
paradigma de um conhecimento
prudente para uma vida decente
assim atestando a novidade de que
a cincia comporta, simultaneamen-
te ao aspecto estritamente investi-
gativo, o aspecto social da vida das
pessoas. Com base neste pensamen-
to tecido como um discurso sobre
as cincias e introduo a uma ci-
ncia ps-moderna, este autor de-
fende um conjunto de teses que tm
em comum a superao do paradig-
ma dominante1, sobre o que nos in-
teressa citar sucintamente:
1. Todo o conhecimento cientfico-
natural cientfico-social;
2. Todo o conhecimento local
e total;
3. Todo o conhecimento autoco-
nhecimento;
4. Todo o conhecimento cient-
fico visa constituir-se em sen-
so comum.
A primeira tese Todo o conhe-
cimento cientfico-natural cient-
fico-social fudamenta-se na su-
perao das dicotomias na no-du-
alidade do conhecimento, abolin-
do-se assim o sentido que continha
interpretaes estanques como, por
exemplo, natureza/cultura, natural/
artificial, observador/observado,
sade/doena, razo/desatino. A
segunda tese Todo o conhecimen-
to local e total visa a um co-
nhecimento interdisciplinar que
una ao que estudamos (SANTOS,
1998: 53). A quarta tese Todo o
conhecimento cientfico visa cons-
tituir-se em senso comum , por
fim, visa ao dilogo entre o conhe-
cimento cientfico e o senso comum
enquanto possibilidade qualitativa
de ampliao do fenmeno obser-
vado e em detrimento do autorita-
rismo e dominao de um sobre o
outro, ou seja, do primeiro sobre
o segundo.
Ressalta-se a importncia deci-
siva do desvelamento pelo paradig-
ma emergente, da chamada neutra-
lidade cientfica preconizada pelo
paradigma dominante na qual o
observador separado, cindido do
observado atuava sobre este sem
no entanto responsabilizar-se so-
cialmente, enquanto que o obser-
vado por sua vez, possua um lu-
gar passivo e coisificado no proces-
so de investigao.
No mbito social e poltico, San-
tos (1997a) atesta um estado ps-
moderno dos acontecimentos atra-
vs dos denominados Novos Mo-
vimentos Sociais (NMSs), presen-
tes em todo o mundo, principal-
mente nas dcadas de 70 e 80, de
forma mais ou menos intensa con-
forme o estgio de desenvolvimen-
to econmico local.
Os NMSs so os movimentos ti-
picamente ps-industriais que de-
1 Dentre vasta bibliografia sobre o paradigma cientfico dominante, pode-se consultar o prprio Santos (1989, 1998).
perceba a totalidade dos aconteci-
mentos especficos, complexifican-
do-os e assim enriquecendo-os. A
terceira tese - Todo o conhecimen-
to auto-conhecimento - refere-se
a integrao e intencionalidade en-
tre sujeitos e no entre um sujeito
e um objeto, assim trata-se de um
conhecimento compreensivo e n-
timo que no nos separe e antes nos
NO MBITO SOCIAL E POLTICO,SANTOS (1997A) ATESTA UM ESTADOPS-MODERNO DOS ACONTECIMENTOSATRAVS DOS DENOMINADOS NOVOSMOVIMENTOS SOCIAIS (NMSS)
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Desinstitucionalizao em Sade Mental: consideraes sobre o paradigma emergente
Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 7
nunciam as formas de opresso
cotidianas contidas na violncia,
na poluio, no sexismo, no racis-
mo e no produtivismo, dentre ou-
tras formas de excluso. Para San-
tos (1997a: 258), os NMSs trazem
como novidade maior tanto uma
crtica da regulao social capita-
lista como uma crtica da emanci-
pao social socialista tal como
foi defendida pelo marxismo.
Assim denunciando com uma ra-
dicalidade sem precedentes os ex-
cessos de regulao da moderni-
dade e contribuindo para a cons-
truo, no dizer deste autor, de
uma equao que comungue si-
multaneamente subjetividade, ci-
dadania e emancipao.
Segundo Santos (1997a: 257), a
Amrica Latina destaca-se dos de-
mais pases perifricos e semiperi-
fricos com relao a atuao dos
NMSs, sendo que aqui estes movi-
mentos so peculiarmente nutridos
por inmeras energias que compi-
lam desde reivindicaes ps-ma-
terialistas a lutas por condies b-
sicas de sobrevivncia, diferente-
mente do que se passa nos pases
centrais onde os movimentos so
puros ou bem definidos.
Com relao ao Brasil particu-
larmente, tem-se na dcada de se-
tenta e de oitenta um notvel flo-
rescimento de NMSs (Santos,
1997a), atente-se para o momento
poltico de luta pela transio de-
mocrtica ps-ditadura que se de-
lineava. Vale situar esse momento
crucial para a transformao da
sociedade brasileira, denominado
por Sader (1990) como entre o ve-
lho e o novo. Segundo Sader (1990:
48), o ponto de partida da transi-
o claro: uma ditadura militar
permeada por uma ideologia de se-
gurana nacional favorvel ao
grande capital monopolista e finan-
ceiro nacional e internacional. J o
ponto de chegada menos claro:
um regime hbrido, em que deixaram
de existir as leis de exceo, em que
pacote de medidas que revogava dis-
posies que limitavam os direitos
polticos estabelecidos pela ditadu-
ra militar (Sader, 1990: 48).
Mas, revelia da menor clareza
do ponto de chegada da transio,
no se pode negar o surgimento de
algo novo que se podia dizer germe
da redemocratizao do pas:
A chamada Nova Repblica foi
sendo instaurada assim como uma
mistura hbrida entre o velho e o
novo. Inegavelmente se trata de um
novo regime. A forma de domina-
o poltica foi modificada, subs-
tituindo as instncias militares
por formas parlamentares: a nova
Constituio fortaleceu o papel do
Congresso, as liberdades individu-
ais foram ampliadas, o direito de
organizao poltica foi explicita-
do, introduziram-se direitos da ci-
dadania que antes no constavam
de nosso sistema jurdico, tem vi-
gncia, ao menos teoricamente, um
Estado de direito, baseado em leis
votadas por um Parlamento eleito
pelo voto universal e direto (Sader,
1990: 54).
Assim finalizamos a dcada de
70 e adentramos a dcada de 80 com
um Brasil efervescente, manifesta-
das as contradies e reduzido o
poder ditatorial das elites dirigen-
tes. A sociedade civil despertava de
um pesadelo que durara vinte e um
anos e havia muito o que ser ques-
tionado. Emergem denncias e in-
dignao acerca da questo psiqui-
trica no mbito da sade.
os partidos polticos, as associaes
civis e a grande imprensa no en-
contram limitaes do ponto de vis-
ta legal. Os prprios militares se re-
tiraram do centro da cena poltica
para um lugar mais discreto. Dei-
xou de haver presos polticos, os r-
gos de segurana tiveram seu pa-
pel diminudo, foram restabelecidos
os mecanismos eleitorais na sua ple-
nitude. Antes mesmo da nova Cons-
tituio, o Congresso j havia remo-
vido o que considerou como entu-
lhos autoritrios, aprovando um
PARA SANTOS (1997A: 258),OS NMSS TRAZEM COMO NOVIDADE
MAIOR TANTO UMA CRTICA DA REGULAOSOCIAL CAPITALISTA COMO UMA CRTICA DA
EMANCIPAO SOCIAL SOCIALISTA TALCOMO FOI DEFENDIDA PELO MARXISMO
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GUIMARES, J. et al.
8 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001
O PROCESSO SADE/DOENA MENTAL:A DESINSTITUCIONALIZAO SOB O SIGNO
DO PARADIGMA EMERGENTE
Feita esta breve localizao te-
rico-metodolgica luz do Paradig-
ma Emergente e dos Novos Movi-
mentos Sociais conforme Santos
(1997a, 1998), retomamos o recor-
te das duas ltimas dcadas no Bra-
sil no mbito das polticas e prti-
cas em sade mental.
A sade mental brasileira nas
duas ltimas dcadas, mais precisa-
mente de 1979 a 1999, passou por
transformaes atravs de avanos
que constituram e constituem o pro-
cesso contemporneo desta prtica.
Em 1979, o Brasil recebe a visi-
ta do psiquiatra italiano Franco Ba-
saglia, cujo discurso sobre a desins-
titucionalizao do aparato psiqui-
trico repercute no meio social e
poltico que passa por contestaes
e desejos de mudana em uma soci-
edade que vivencia um processo de
abertura aps anos de regime mili-
tar ditatorial. Surge o Movimento
dos Trabalhadores em Sade Men-
tal ento um NMS que fortaleci-
do pela sociedade civil organizada
e pelas primeiras experincias de
desinstitucionalizao, destacada-
mente a experincia santista, cul-
mina em 1989 com o movimento de
Reforma Psiquitrica, a criao do
Projeto de Lei 3657 de autoria do
deputado federal Paulo Delgado (PT-
MG) que dispe sobre a supera-
o do manicmio e a construo
de assistncia substitutiva e com
a Luta Antimanicomial. Em janeiro
de 1999, o referido projeto foi apro-
vado no Senado, devendo, para tor-
nar-se lei, ser aprovado em nova
votao na Cmara. Em abril deste
ano (2001) foi aprovado e sancio-
nado pelo Presidente da Repblica,
tornando-se lei. Temos passado
pouco mais de duas dcadas (1979
1999), marcadas por indignao,
contestao, lutas e conquistas sig-
nificativas de um processo que se
Amarante (1999: 48) destaca a
dualidade do processo epistmico
cientfico dominante onde
a natureza de um conceito ou teoria
cientfica significa uma determinada
forma pela qual o homem se relacio-
na com a natureza. A cincia moder-
na, de base predominantemente po-
sitivista, vem exercitando um proces-
so de objetivao da natureza, em que
a relao que se estabelece entre
sujeitos epistmicos, de um lado, e
de coisas e objetos de outro.
Esse autor ressalta o pensamen-
to de Franco Basaglia, que diz que
preciso pr a doena, e no o homem,
entre parnteses, assim invertendo
a tradio psiquitrica e cientifica-
mente moderna de objetivao do
sujeito. Com tal inverso, se estabe-
lece uma ruptura operada pela Luta
Antimanicomial e pela Reforma Psi-
quitrica brasileira, de orientao
basagliana, com o mtodo da cin-
cia moderna. No dizer de Amarante
(1999: 48), podemos conferir:
Neste sentido, o que vimos deno-
minando como Luta Antimanicomial,
ou como Reforma Psiquitrica, tem
como princpio bsico uma ruptura
com essa tradio cientfica [a cin-
cia moderna ou paradigma dominan-
te]. Em primeiro lugar, por romper com
o processo de objetivao da loucura
e do louco (inscrevendo a questo ho-
mem-natureza ou a questo do nor-
mal-patolgico em termos ticos, isto
, de relao e no de objetivao). Em
segundo lugar, por romper com o pro-
cesso de patologizao dos comporta-
inspira em um conhecimento que
pressupe o dilogo como instru-
mento da contratualidade estabe-
lecida nos inter-relacionamentos,
sendo assim, um processo delibe-
radamente contra a opresso, onde
seguro afirmar a presena decisi-
va dos pressupostos deste estudo
ou seja, do Paradigma Emergen-
te e da atuao dos Novos Movi-
mentos Sociais segundo Santos
(1997a, 1998) no mbito da sa-
de mental brasileira.
A SADE MENTAL BRASILEIRA NAS DUASLTIMAS DCADAS, MAIS PRECISAMENTE
DE 1979 A 1999, PASSOU PORTRANSFORMAES ATRAVS DE AVANOS
QUE CONSTITURAM E CONSTITUEM OPROCESSO CONTEMPORNEO DESTA PRTICA
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Desinstitucionalizao em Sade Mental: consideraes sobre o paradigma emergente
Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 9
mentos humanos, com base em um
pressusposto teleolgico ou ontolgi-
co de normalidade. Da advm o prin-
cpio de colocar a doena mental en-
tre parnteses, como forma de inver-
ter a tradio psiquitrica, que a de
colocar o homem entre parnteses para
se ocupar da doena, como ressaltou
Basaglia (Amarante, 1999: 48).
E relembrando as quatro teses de
Santos (1998), vejamos o que ain-
da nos diz Amarante (1999: 49) so-
bre a dmarche de colocarmos a
doena entre parnteses:
Colocar um fenmeno entre pa-
rnteses representa uma importante
demarcao epistemolgica no mbi-
to da tradio do pensamento filos-
fico existencial: consiste na idia de
que o fenmeno no existe em si,
mas construdo pelo observador,
um constructo da cincia, e s existe
enquanto inter-relao com o obser-
vador. E, portanto, se o observador,
sujeito do conhecimento, constri o
fenmeno, este parte do primeiro,
parte de sua cultura e de sua sub-
jetividade (Amarante, 1999: 49).
Da a complexidade e a comple-
mentariedade da mudana em sa-
de mental acentuada por Amaran-
te (1999: 50), em pelo menos qua-
tro campos: a) o terico-conceitu-
al; b) o tcnico-assistencial; c) o
jurdico-poltico e d) o scio-cultu-
ral. Ou seja, trata-se de uma inter-
relao de reconstruo de concei-
tos; de espaos substitutivos de
sociabilidade de possibilidades plu-
rais e singulares concretas para
sujeitos concretos; de direito ao tra-
balho, famlia, aos amigos, ao
cotidiano da vida social e coletiva;
de solidariedade e incluso de su-
jeitos em desvantagem social.
Assim o processo de desinstitu-
cionalizao da psiquiatria brasilei-
ra, enquanto conhecimento e prti-
ca centrados no paradigma emer-
gente, inscreve-se na contra-mo do
(1997b: 117), as imagens desesta-
bilizadoras so os veculos, no tem-
po presente, portadores das inter-
rogaes poderosas tomadas de
posies apaixonadas, capazes de
sentidos inesgotveis. As imagens,
potencializam as interrogaes ao
flagrarem o fato de que tudo de-
pende de ns e tudo podia ser dife-
rente e melhor.
PARA UM CONCEITO EMERGENTEDE SADE MENTAL
Para um conceito de sade men-
tal assentado no paradigma emer-
gente seguro indicar a necessida-
de fundamental de se conhecer a
historicidade da chamada psiquia-
tria moderna, resguardando as suas
conquistas e superando os limites
por ela determinados, atendo-se no
dizer de Santos ao paradigma de
um conhecimento prudente para
uma vida decente. Aqui faz-se
oportuno reiterarmos a necessida-
de de uma vigilncia constante con-
tra o atavismo manicomial real ou
travestido na psiquiatrizao do
cotidiano ou no institucionalismo
sutil, sobre o qual Amarante (1999:
49) ressalta a importncia de estar-
mos atentos e munidos com estra-
tgias de enfrentamento capazes de
identificar e propugnar um certo
olhar que classifica desclassifican-
2 Sobre esta questo confira por exemplo: FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S. (Orgs.), 1999. Fim de sculo: aindamanicmios? So Paulo: IPUSP.
projeto cientfico, poltico e econ-
mico dominante: o neoliberalismo2.
Uma novidade fruto da concepo
epistemolgica que se assenta na
idia de que no h s uma forma
de conhecimento, mas vrias, e de
que preciso optar pela que favore-
ce a criao de imagens desestabi-
lizadoras e a atitude de inconformis-
mo perante elas. Para Santos
...NO H S UMA FORMA DECONHECIMENTO, MAS VRIAS,
E DE QUE PRECISO OPTAR PELA QUEFAVORECE A CRIAO DE IMAGENS
DESESTABILIZADORAS E A ATITUDE DEINCONFORMISMO PERANTE ELAS
-
GUIMARES, J. et al.
10 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001
do, que inclui excluindo, que nomeia
desmerecendo, que v sem olhar.
No seria fcil a luta e manu-
teno de um tal paradigma emer-
gente. No entanto, a sade mental
brasileira, nas duas ltimas dca-
das, tem demonstrado que poss-
vel. Hoje, embora o projeto neolibe-
ral seja dominante e pululem trans-
tornos/sofrimentos mentais e o gas-
to pblico com internaes psiqui-
tricas que conforme dados do Mi-
nistrio da Sade em apenas seis
anos aumentou de 224 milhes de
dlares em 1991 para aproximada-
mente 370 milhes de dlares em
1996 (Ministrio da Sade apud
Dad Jnior, 1999: 65-6) vemos a
reduo palpvel do hospitalocen-
trismo psiquitrico e a implemen-
tao de servios substitutivos em
26 dos 27 Estados do Brasil (Alves,
1999). Servios substitutivos, ou
seja, servios que, mais do que al-
ternativas, preconizam a substitui-
o do modelo manicomial, notoria-
mente iatrognico. Servios substi-
tutivos pautados numa nova cidada-
nia e numa nova tica, que superem
a cidadania social e a tica poltica
da responsabilidade liberal voltada
apenas para a reciprocidade entre
direitos e deveres, buscando uma ci-
dadania que, somada subjetivida-
de emancipatria, seja nova e esteja
atenta s novas formas de excluso
social (Santos, 1997a).
Apontamos como possibilidade
de ampliao das estratgias de
enfrentamento em prol desta nova
cidadania, as imagens desestabili-
zadoras e as interrogaes pode-
rosas de que fala Santos (1997b:
117-8), que, alm de comprometi-
das com a transformao do real,
lanam um desafio que potencializa
a indignao, o inconformismo e a
ao qualitativamente emancipat-
ria. As interrogaes poderosas
so as que nos fazem refletir sobre
realidade que poderia ser melhor.
Imagens desestabilizadoras no nos
falta no mbito da sade mental
brasileira e as interrogaes pode-
rosas, felizmente, esto em nosso
meio, pelo menos, h duas dcadas.
De tais imagens e interrogaes nas-
ce o vrtice do trip: a realizao de
uma nova prtica.
Retomando as teses de Santos
(1998: 37-58) sobre o paradigma
emergente, podemos inferir que:
todo o conhecimento cientficotransmitido nos rgos forma-
dores, reproduzido e (re)criado
nas instituies e entidades que
atuam com o processo sade/
doena mental, essencialmen-
te um conhecimento cientfico-
social e como tal, no neutro,
resulta de escolhas cotidianas
e prtica poltica;
sendo o conhecimento local e to-tal, quando apreendemos e so-
cializamos atravs das experi-
ncias e vivncias de trabalhos
em sade mental, estamos
(re)criando esse conhecimento,
e contribuindo para a mudana
ou a reproduo do discurso
competente3 sobre a sade, a
doena e o doente mental;
que todo o conhecimento tcni-co-cientfico e tico-poltico so-
bre sade mental, com o qual
atuamos, na cotidianidade de
3 Confira CHAU, M. de S., 1989. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 4 ed. So Paulo: Cortez.
o motivo, a causa dos acontecimen-
tos e trazem em si o trao de serem
mais relevantes do que as prprias
respostas como interrogar de
modo que a interrogao seja mais
partilhada do que as respostas que
lhe forem dadas? As imagens
desestabilizadoras so as que su-
primem do presente a caracterstica
de inculpvel, trazendo tona uma
SERVIOS SUBSTITUTIVOS PAUTADOS NUMANOVA CIDADANIA E NUMA NOVA TICA, QUE
SUPEREM A CIDADANIA SOCIAL E A TICAPOLTICA DA RESPONSABILIDADE LIBERALVOLTADA APENAS PARA A RECIPROCIDADE
ENTRE DIREITOS E DEVERES
-
Desinstitucionalizao em Sade Mental: consideraes sobre o paradigma emergente
Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 11
nossa prtica no mbito das ins-
tituies de ensino, nos servi-
os de sade e movimentos so-
ciais, constituem-se como par-
te do autoconhecimento de nos-
sas subjetividades e das respec-
tivas interlocues entre socie-
dade e indivduo; entre a vida no
mbito pblico e no privado; en-
tre os sujeitos sociais e estrutu-
ras de micro e macro poder pol-
tico. Dessa forma, podemos in-
tervir nesse processo, na pers-
pectiva de melhor-lo, a partir de
nossas contribuies cotidianas
individuais e coletivas;
considerando que todo o conhe-cimento cientfico visa consti-
tuir-se em senso comum, a pers-
pectiva de mudana do paradig-
ma emergente na sade mental,
caminha no sentido da pro-
posta de uma viso do ser
doente mental como sujeito,
como cidado, respeitado em
sua alteridade, abandonando a
viso do doente como um ser
perigoso, anormal, excludo. En-
fim, contribuindo para a gera-
o de um imaginrio coletivo
onde o trem dos doidos de Bar-
bacena, o beribri do So Joo
de Deus, a imensido lotada do
Juquery, e tantos outros emble-
mas/realidades similares cruas
ou maquiadas que conhecemos
na assistncia ao sofrimento ps-
quico, no sejam mais toleradas
na sociedade brasileira.
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SANTOS, B. de S., 1998. Um discurso
sobre as cincias. 10 ed. Porto:
Afrontamento, 58p.
-
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
12 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
ARTIGOS ORIGINAIS
As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as premissas doModo Psicossocial
The National Conferences of Mental Health and the premises of the psychosocial way
Ablio da Costa-Rosa1
Cristina Amlia Luzio2
Silvio Yasui3
1 Professor assistente-doutor do
Departamento de Psicologia Clnica da
Universidade Estadual Paulista, campus
Assis, doutor em Psicologia Clnica pela
Universidade de So Paulo; psicanalista e
analista institucional.
e-mail: [email protected]
2 Professora assistente do Departamento de
Psicologia Clnica da Universidade
Estadual Paulista, campus Assis,
doutoranda em Sade Coletiva na
Universidade de Campinas.
e-mail: [email protected]
3 Professor assistente do Departamento de
Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da
Universidade Paulista, campus Assis,
doutorando em Psicologia Social na
Universidade de So Paulo.
e-mail: [email protected]
RESUMO
O presente artigo pretende analisar as proposies bsicas e os marcos
conceituais das duas conferncias nacionais de sade mental ocorridas at
o momento, luz dos parmetros do Modo Psicossocial construdos por
Costa-Rosa. Pretende-se, tambm, indicar a sua exeqibilidade nos
dispositivos construdos pelas prticas de Ateno Psicossocial, que tm
proposto superar a lgica manicomial, observar os avanos e retrocessos do
processo de estratgia de hegemonia na sade mental. Finaliza apresentando
alguns pontos para uma proposta de agenda de discusso.
PALAVRAS-CHAVE: ateno psicossocial; polticas pblicas; conferncias nacionais
de sade mental.
ABSTRACT
The present article intends to analyze the basic propositions and the
conceptual marks of the two Mental Health National Conferences that have
occurred up until now, under the light of the Psychosocial Way parameters
built by Costa-Rosa. It is intended, also, to indicate its feasibility in devices
built by Psychosocial Attention's practices, that intend to overcome the
manicomial logic, to observe the progresses and setbacks of the hegemony
strategy process in mental health. It concludes presenting a few points for a
proposed discussion.
KEY WORDS: psychosocial attention; public politics; national conferences of
mental health.
-
As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as Premissas do Modo Psicossocial
Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 13
INTRODUO
Neste artigo retomamos os mar-
cos conceituais e as proposies
bsicas das duas conferncias na-
cionais de sade mental ocorridas
at o momento, a fim de efetuar-
mos uma anlise luz dos par-
metros do Modo Psicossocial (Cos-
ta-Rosa, 2000:141-168). Pretende-
mos, ao mesmo tempo, indicar a
sua exeqibilidade nos dispositivos
construdos pelas prticas de Aten-
o Psicossocial que tm proposto
superar a lgica manicomial.
PRIMEIRA CONFERNCIA NACIONALDE SADE MENTAL (CNSM)
Proposies gerais: concepo
de sade, participao popular, ci-
dadania e interesses dos usurios.
Em junho de 1987, como des-
dobramento da histrica 8a Confe-
rncia Nacional de Sade de 1986,
ocorreu, na cidade do Rio de Janei-
ro, a I Conferncia Nacional de Sa-
de Mental (CNSM).
A Conferncia foi realizada em um
clima de intensas discusses e o seu
relatrio final ficou para a histria
do movimento da reforma psiquitri-
ca, que fez prevalecer suas teses em
praticamente todos os temas.
No tema I Economia, Socieda-
de e Estado: impactos sobre a sa-
de e doena mental, o relatrio ana-
lisa o modelo econmico altamen-
te concentrador brasileiro, apontan-
do para a necessidade de se ampli-
ar o conceito de sade, consideran-
do em seus determinantes as con-
dies materiais de vida. Destaca-
mos o seguinte trecho:
Situando a sade mental no
bojo da luta de classes, podemos
afirmar que seu papel tem consis-
tido na classificao e excluso dos
incapacitados para a produo
(...) urgente pois o reconhecimen-
to da funo de dominao dos tra-
balhadores de sade mental e a sua
nico de Sade, com garantia da
participao popular. No plano as-
sistencial, aponta para os mesmos
princpios j consagrados, tais
como reverso da tendncia hospi-
talocntrica, com prioridade para o
sistema extra-hospitalar.
Por fim, no tema III Cidada-
nia e Doena mental: direitos, de-
veres e legislao, o relatrio rea-
firma, tambm, teses do Movimen-
to Sanitrio, sugerindo incluses
no texto constitucional no que se
refere ao direito sade e propon-
do reformulaes da legislao or-
dinria que trata especificamente
da sade mental, ou seja: Cdigo
Civil; Cdigo Penal e legislao sa-
nitria; prope, ainda, modifica-
es na legislao trabalhista,
considerando a interface trabalho/
sade mental.
O texto do relatrio demonstra
uma estreita vinculao entre o
Movimento Sanitrio e o Movi-
mento da Reforma Psiquitrica.
Ambos tratam a sade como uma
questo revolucionria, no eixo da
luta pela transformao da socie-
dade. Aponta, especificamente,
aos trabalhadores de sade men-
tal, a necessria reviso de seu
papel de agentes de excluso e de
dominao, para reorient-lo na
direo de uma identidade com os
interesses da classe trabalhadora.
Esto presentes nesse documento
oficial, no apenas propostas tc-
nicas, mas argumentos e proposi-
es que engajam o processo de
reviso crtica, redefinindo seu pa-
pel, reorientando a sua prtica e
configurando a sua identidade ao
lado das classes trabalhadoras.
(BRASIL/MS, 1992:15)
No tema II Reforma Sanitria
e reorganizao da assistncia
sade mental, o relatrio reafirma
as teses do Movimento Sanitrio,
introduzindo a especificidade da
sade mental no contexto de suas
diretrizes e princpios, apontando
para a constituio de um Sistema
EM JUNHO DE 1987, COMODESDOBRAMENTO DA HISTRICA
8A CONFERNCIA NACIONAL DE SADEDE 1986, OCORREU, NA CIDADE DORIO DE JANEIRO, A I CONFERNCIA
NACIONAL DE SADE MENTAL (CNSM)
-
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
14 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
transformao de um setor espe-
cifico da sade, a sade mental,
em uma luta que transcende essa
especificidade, vinculando-a
luta pela transformao da socie-
dade. Mas foi apenas mais um do-
cumento oficial, talvez o primeiro
que colocou a questo da sade
mental nessa perspectiva da luta
entre os interesses de classes.
O Modo Psicossocial e a I ConfernciaNacional de Sade Mental
Costa-Rosa (2000:151-164),
conceitua o Modo Psicossocial de
acordo com quatro parmetros fun-
damentais, que podemos definir, su-
cintamente, nos seguintes termos:
em relao concepo do ob-jeto e dos meios de trabalho
preconiza a implicao subje-
tiva do usurio, o que pressu-
pe a superao do modo de
relao sujeito-objeto caracte-
rstico do modelo mdico e das
disciplinas especializadas que
ainda se pautam pelas cinci-
as positivas. Preconiza-se, ao
mesmo tempo, a horizontali-
zao das relaes interprofis-
sionais como condio bsica
para a horizontalizao das
relaes com os usurios e a
populao da rea;
no que diz respeito s formasde organizao das relaes in-
trainstitucionais preconiza-se a
sua horizontalizao, com a
distino obrigatria entre as
esferas do poder decisrio, de
origem poltica e as esferas do
poder de coordenao, de natu-
reza mais operativa. Esta reo-
rientao das relaes intrains-
titucionais vai na mesma dire-
o das relaes especificamen-
te interprofissionais e faz parte
dos requisitos necessrios para
o exerccio da subjetivao sin-
gularizada que meta cara ao
Modo Psicossocial;
quanto forma como a insti-tuio se situa no espao geo-
grfico, no imaginrio e no
simblico o Modo Psicossocial
preconiza antes de tudo a in-
tegralidade das aes no terri-
trio. Alm disso ao preconizar
o posicionamento da institui-
o como espao de interlocu-
o, como instncia de supos-
to saber e, ao fazer dela um
espao de absoluta e intensa
porosidade em relao ao ter-
ritrio, praticamente subverte
a prpria natureza da institui-
o como dispositivo. A natu-
reza da instituio como orga-
nizao fica modificada e o lo-
cal de execuo de suas prti-
cas desloca-se do antigo inte-
rior da instituio para tomar
o prprio territrio como refe-
rncia. A instituio, enquan-
to equipamento, posiciona-se
num foco em que se entrecru-
zam as diferentes linhas de
ao no territrio e para onde
podem remeter-se as primeiras
pulsaes da Demanda;
destacando a tica dos efeitosdas prticas em sade mental,
o Modo Psicossocial preconiza a
superao da tica da adapta-
o, que tem seu suporte nas
aes de tratamento como rever-
sibilidade dos problemas e na
adequao do indivduo ao meio
e do ego realidade. Ao propor
suas aes na perspectiva de
uma tica de duplo eixo, que
considera por um lado a relao
sujeito-desejo e por outro a di-
menso carecimento-Ideais1,
deixa firmada a meta da produ-
1 Carecimento, por oposio ao conceito de carncia ou de necessidade, abarca uma dimenso do homem que inclui o desejo (como prope a
psicanlise) e toda a abertura do homem para os Ideais, possveis ou no de imediato. Mas inclui tambm a abertura para a produo e usufruto
de todos os bens da produo social, muito alm do preenchimento de necessidades, e que, muito mais que estas, correspondem especificida-
de humana. Pode-se considerar que aqui esto includas tambm as criaes da Filosofia, da Arte, da Cincia, e at da Religio, mas no sem
passar pela aspirao pertinente ao usufruto das comodidades socialmente produzidas no mais alto grau da sua evoluo histrica, tal como
encontrado em Marx nos Manuscritos de 1844. Quanto aos Ideais, na mesma perspectiva do conceito de desejo, preciso sublinhar seu carter
alm da dimeno teleolgica. (Costa-Rosa, 2000:162)
-
As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as Premissas do Modo Psicossocial
Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 15
o de subjetividade singulari-
zada, tanto nas relaes imedi-
atas com o usurio propriamen-
te dito, quanto nas relaes com
toda a populao do territrio.
Retornando s proposies da I
CNSM, em primeiro lugar merece
destaque a proposta de ampliao
do conceito de sade, incluindo em
seus determinantes as condies
gerais de vida. Alm de sua sintonia
com os princpios gerais da Refor-
ma Sanitria, podemos indicar, ain-
da, o alinhamento dessa preocupa-
o com as do campo da Ateno
Psicossocial, que insistem, de mo-
dos diversos, na reformulao da
concepo do objeto das prticas em
sade mental. Essa ampliao da
definio sem dvida um bom pon-
to de partida para tal reformulao.
Outra proposio que deve ser
sublinhada diz respeito exigncia
da participao popular na sade
mental. Alm de uma proposta co-
erente com a tica da participao
geral do cidado na vida social,
fundamental percebermos sua coe-
rncia com a tica da Ateno Psi-
cossocial. Uma srie de evidncias
apontam as relaes diretas exis-
tentes entre as formas da organi-
zao intrainstitucional e as formas
como essa instituio (atravs de
seus agentes) se dirige e se relacio-
na com a clientela e a populao de
sua rea de ao. Se nas prticas
da Ateno Psicossocial a exign-
cia da superao do paradigma su-
jeito-objeto um objetivo funda-
mental, parece mais do que justifi-
cado que a participao popular nas
instituies seja elevada catego-
ria de dispositivo necessrio, no
apenas contingente. Por outro lado,
o Modo Psicossocial prope que a
tica da implicao subjetiva e so-
ciocultural dos usurios das insti-
tuies de sade mental nos con-
flitos e contradies que os atraves-
sam, fazendo-os procurarem ajuda,
seja um componente essencial da
Ateno. Essa implicao do sujei-
excluso e dominao, ao mesmo
tempo propondo sua reorientao
na direo dos interesses da classe
trabalhadora. Esta mais uma pro-
posio que ultrapassa os interes-
ses tico-polticos globais. Sua tra-
duo nos pressupostos do Modo
Psicossocial exige um percurso um
pouco mais complexo. Antes de
tudo preciso firmarmos uma con-
ceituao de Sociedade como arti-
culao de interesses contraditri-
os, num processo poltico-social que
Gramsci denominou Processo de
Estratgia de Hegemonia (PEH). A
seguir temos de recorrer a uma das
proposies importantes do Modo
Psicossocial, que conceitua as pr-
ticas em sade mental neste mo-
mento histrico, como conjunto ar-
ticulado (nos mesmos termos do
PEH), podendo a designar-se dois
plos bem configurados e com l-
gicas contraditrias: o Modo Asilar
e o Modo Psicossocial. (Costa-Rosa,
2000:141-168).
Uma vez colocados na situao
de trabalhadores de sade mental
no h como escapar ao alinhamen-
to com uma dessas lgicas. fcil
demonstrar que a lgica asilar
perfeitamente congruente com a do
Modo Capitalista de Produo, na
qual os interesses dos usurios so
inequivocamente subordinados aos
interesses do Hospital. A proposi-
o de se alinhar com os interesses
dos usurios , portanto, uma exi-
gncia inadivel dos que pretendem
fazer das prticas em sade men-
to na sua situao especfica nun-
ca poderia ser realizada se, no con-
texto mais amplo da sua existn-
cia, o exerccio dessa implicao lhe
fosse negado. No Modo Psicossoci-
al o engajamento subjetivo e socio-
cultural so indissociveis da defi-
nio de sade mental.
Um terceiro aspecto, que opor-
tuno sublinhar, refere-se concla-
mao dos trabalhadores da rea a
reverem os riscos, ou mesmo, a efe-
tivao do seu papel de agentes de
RETORNANDO S PROPOSIESDA I CNSM, EM PRIMEIRO LUGARMERECE DESTAQUE A PROPOSTA DE
AMPLIAO DO CONCEITO DE SADE,INCLUINDO EM SEUS DETERMINANTES
AS CONDIES GERAIS DE VIDA
-
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
16 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
tal dispositivos alternativos ao
Modo Asilar; ou seja, prticas ca-
pazes da produo de subjetivida-
de singularizada, em que os lucros
principais das aes de produo de
sade sejam apropriados pelos usu-
rios das instituies, como plo
socialmente subordinado.
Observamos, de modo geral, como
parece justo esperar por tratar-se da
I CNSM, uma nfase em proposies
na esfera poltico-ideolgica e no
mbito jurdico. Pode-se notar clara-
mente, agora, como ali se tratava de
produzir bases para as propostas e
experincias prticas que viriam, na
seqncia, exercitar outras lgicas
contrrias asilar. Deve-se registrar,
ainda, que a proposio antimanico-
mial, que vai atravessar os passos de
boa parte das prticas da Reforma
Psiquitrica, at os dias de hoje, j
se apresenta a bem clara e plena-
mente afirmada.
A SEGUNDA CONFERNCIA NACIONALDE SADE MENTAL
Proposies gerais: Ateno IntegralTerritorializada, direitos e teraputica cidad
Quatro anos depois, em dezem-
bro de 1992, foi realizada a II Con-
ferncia Nacional de Sade Mental
(II CNSM) com uma organizao di-
ferente da anterior. Precedida de
etapas municipais, regionais e es-
taduais, que contaram com o envol-
vimento direto de cerca de vinte mil
pessoas, a etapa nacional contou
com a participao de quinhentos
delegados eleitos nas conferncias
estaduais, com composio parit-
ria dos dois segmentos: usurios e
sociedade civil, governo e prestado-
res de servios.
Diversos pontos do relatrio,
aprovados na plenria final, tive-
ram a defesa emocionada e firme
dos usurios.
Foram discutidos trs grandes
temas: crise, democracia e reforma
viso integrada das vrias dimenses
humanas da vida do indivduo, em
diferentes e mltiplos mbitos de in-
terveno (educativo, assistencial e de
reabilitao). (Brasil-MS,1994:13)
Reafirma os princpios da uni-
versalidade, integralidade, eqida-
de, descentralizao, participao
popular e municipalizao, propon-
do a substituio do modelo hospi-
talocntrico por uma rede de servi-
os, diversificada e qualificada, e a
intensificao da desospitalizao
atravs dos programas pblicos de
lares e penses protegidas. Prope,
tambm, a articulao com os recur-
sos existentes na comunidade e a
necessria transformao das rela-
es cotidianas entre trabalhadores
de sade mental, usurios, famlias,
comunidade e servios, em busca da
desinstitucionalizao, bem como da
humanizao das relaes no campo
da sade mental. (Idem:16)
Chama a ateno para uma ne-
cessria construo coletiva de pr-
ticas e saberes cotidianos que con-
sidere: o trabalho em equipe, ou-
tros campos de conhecimento e os
saberes populares. Por fim, desta-
ca a relao entre cidadania, Esta-
do e Sociedade, propondo estimu-
lar a organizao dos cidados em
associaes comunitrias, altera-
es na legislao e aes no cam-
po da informao e educao.
Em sua segunda parte, o relat-
rio apresenta inmeras propostas
relativas ateno em sade men-
psiquitrica; modelos de ateno
em sade mental; direitos e cida-
dania. O relatrio final subdivide-
se em trs partes: marcos conceitu-
ais; ateno sade mental e mu-
nicipalizao; direitos e legislao.
Em sua primeira parte, o relat-
rio aponta a ateno integral e cida-
dania como conceitos direcionado-
res das deliberaes da Conferncia.
A ateno integral dever propor
um conjunto de dispositivos sanitri-
os e socioculturais que partam de uma
EM DEZEMBRO DE 1992,FOI REALIZADA A II CONFERNCIANACIONAL DE SADE MENTAL
(II CNSM) COM UMA ORGANIZAODIFERENTE DA ANTERIOR
-
As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as Premissas do Modo Psicossocial
Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 17
tal e municipalizao. No captulo
sobre as recomendaes gerais, alm
de reafirmar o princpio da munici-
palizao, acrescentou a proposta de
utilizao dos conceitos de territrio
e responsabilidade como dispositivos
para uma ruptura com o modelo hos-
pitalocntrico. Finaliza essa segun-
da parte com propostas para a capa-
citao dos trabalhadores de sade,
sobre as relaes no trabalho em ter-
mos de organizao e conquista de
direitos, e sobre a promoo de pes-
quisas voltadas para a investigao
epidemiolgica e scio-antropolgi-
cas e para a avaliao da rede de
ateno em sade mental.
A terceira parte do relatrio apre-
senta propostas referentes ao tema
Direitos e Legislao. So cinco ca-
ptulos abrangendo os seguintes te-
mas: questes gerais sobre uma ne-
cessria reviso legal; direitos civis
e cidadania; direitos trabalhistas;
drogas e legislao; direitos dos usu-
rios. Talvez tenha sido a parte do
relatrio na qual os usurios parti-
ciparam de forma mais ativa, espe-
cialmente na plenria final.
Realizada em circunstncias
histricas distintas da I CNSM, cujo
relatrio apresentava diversas pro-
posies de carter poltico, o texto
da II CNSM no foi to contunden-
te na crtica ao modelo econmico
nem ao momento poltico que se
estava vivendo. Embora aquelas
questes estivessem como pano de
fundo, o relatrio era muito mais
extenso e especfico nas questes
da sade mental.
A II CNSM foi realizada em um
momento em que diversas experi-
ncias j estavam consolidadas e
espalhando-se pelo pas;2 j exis-
tia uma lei, aprovada na Cmara
dos Deputados e tramitando no Se-
nado, e leis estaduais aprovadas ou
em tramitao; j existiam dispo-
sitivos institucionais (portarias mi-
O Modo Psicossocial e a II ConfernciaNacional de Sade Mental.
Podemos considerar como de
significativa relevncia o fato de
que os marcos conceituais do RE-
LATRIO DA SEGUNDA CONFE-
RNCIA NACIONAL DE SADE
MENTAL, realizada em 1992, este-
jam perfeitamente em sintonia com
as premissas gerais do Modo Psi-
cossocial para os tratamentos ps-
quicos na Sade Coletiva.
Ainda que se possa considerar
que tais marcos conceituais este-
jam muito mais na perspectiva de
transformaes na esfera poltico-
ideolgica, eles podem ser tradu-
zidos em dispositivos terico-pr-
ticos, capazes de fazerem de pre-
ceitos gerais, verdadeiros instru-
mentos de transformao das pr-
ticas cotidianas nas instituies
de sade mental, sobretudo das
relaes destas com os usurios e
com a populao das suas reas
de referncia.
Seno vejamos:
1. I. ATENO INTEGRAL E CI-
DADANIA so conceitos direciona-
dores das deliberaes da II Confe-
rncia Nacional de Sade Mental.
(Brasil/MS,1994:11)
Definir a integralidade da con-
cepo e do exerccio dos programas
e aes implica operar uma srie de
2 Como exemplo, o Centro de Ateno Psicossocial (CAPS) Luiz Cerqueira j era uma realidade consolidada, o Programa de Sade Mental de
Santos j era reconhecido internacionalmente como experincia modelar, inclusive pela Organizao Pan-americana de Sade (OPAS).
nisteriais) que possibilitavam a im-
plantao de novos servios e au-
mentavam a fiscalizao dos hos-
pitais; j existiam diversas associ-
aes de usurios atuando ativa-
mente pelo pas. Ou seja, estava em
curso um processo de transforma-
o da sade mental no campo te-
rico, no campo assistencial, no cam-
po jurdico e no campo cultural.
ESTAVA EM CURSO UM PROCESSODE TRANSFORMAO DA SADE MENTAL
NO CAMPO TERICO, NO CAMPOASSISTENCIAL, NO CAMPO JURDICO
E NO CAMPO CULTURAL
-
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
18 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
transformaes no modo de traba-
lho. Estas transformaes que so
condio para o exerccio de aes
integrais, e ao mesmo tempo cons-
tituem a base para a efetivao de
um princpio de cidadania nas pr-
ticas dos trabalhadores de sade
mental que seja coerente com a
meta da singularizao.
Na perspectiva do Modo Psicos-
social de fundamental importn-
cia que se tenha proposto a aten-
o integral e a cidadania como
conceitos direcionadores, mas no
se pode perder de vista, por outro
lado, o conjunto dos passos concre-
tos que ainda precisam ser dados
para estar no exerccio efetivo de
aes integrais em Sade e de cida-
dania singularizada. Tambm no
podemos esquecer que a integrali-
dade, supondo o conceito de Terri-
trio, deve ocorrer simultaneamen-
te em extenso e profundidade, su-
perando as mazelas da Ateno es-
tratificada por nveis (primrio, se-
cundrio e tercirio).
2. II. A democratizao do Es-
tado com o controle da sociedade ci-
vil fundamento do direito cida-
dania e da transformao da legis-
lao de sade mental. (idem:11)
Esta diretriz, colocada em m-
bito de anlise poltica da Forma-
o Social global muito pertinen-
te, porm necessrio aproxim-
la das nossas esferas cotidianas
de ao. Desse modo, ao preconi-
zar a democratizao das institui-
es e de suas relaes com os
usurios e com a populao, e a
partir da condio de trabalhado-
res da Sade, cuida-se da aplica-
o daquela diretriz. Uma das
maneiras mais eficazes de cumprir,
nesta esfera de atuao, a diretriz
de controle social, pela sociedade
civil, pondo em prtica disposi-
tivos como os conselhos gestores
de unidades de sade e como os
conselhos comunitrios de sa-
3. III. O processo sade/doena
mental dever ser entendido a par-
tir de uma perspectiva contextuali-
zada, onde qualidade e modo de vida
so determinantes para a compre-
enso do sujeito, sendo de impor-
tncia fundamental vincular o con-
ceito de sade ao exerccio de cida-
dania, respeitando-se as diferenas
e as diversidades. (idem, idem)
3.1. Contextualizar o processo
sade/doena exige vrias opera-
es articuladas:
Primeira: o Modo Psicossocial
preconiza uma definio de sade
numa perspectiva que a contextua-
lize em relao a uma concepo de
sociedade, entendida como conjun-
to de interesses contraditrios arti-
culados, possveis de serem descri-
tos e compreendidos atravs do con-
ceito de Processo de Estratgia de
Hegemonia (PEH). Essa contextua-
lizao, nos termos do PEH, obriga
a considerar a prpria luta por sa-
de, tanto entendida como estado
das condies de vida, quanto en-
tendida como reivindicao de cui-
dados de sade, como componente
da prpria definio de sade.
Segunda: no Modo Psicossocial
define-se a especificidade da sade
mental, de tal modo que se visualiza
a participao da dimenso sociocul-
tural como intrnseca ao prprio pro-
cesso de subjetivao. Desse modo a
prpria forma de atravessamento da
dimenso scio-simblica pode ser
parte constitutiva dos problemas que
de, alis, instrumentos j garan-
tidos na constituio do pas. Alm
disso devemos lembrar que as
metas de livre trnsito dos usu-
rios pelas instituies e de sua
participao direta na instituio,
preconizadas pelo Modo Psicosso-
cial, podem ser implementadas cri-
ando condies para que os con-
selhos e comisses de usurios e
populao participem em esferas
da instituio relacionadas com o
poder decisrio.
NA PERSPECTIVA DO MODOPSICOSSOCIAL DE FUNDAMENTAL
IMPORTNCIA QUE SE TENHAPROPOSTO A ATENO INTEGRALE A CIDADANIA COMO CONCEITOS
DIRECIONADORES
-
As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as Premissas do Modo Psicossocial
Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 19
tendem a apresentar-se como tpicos
ou preponderantes numa determina-
da conjuntura histrico-social.
Terceira, o Modo Psicossocial
inclui em sua caracterizao a
considerao da especificidade da
sade mental com a incluso da
prpria noo de crise como seu
componente estrutural. Ou seja,
dada a concepo de sade que
inclui em sua definio a partici-
pao ativa do homem na busca
de melhores condies de vida e
de melhor atendimento sade, e
dada a circunstncia histrica de
que a sociedade liberal - ainda
mais gravemente nos contextos
chamados de capitalismos depen-
dentes - conjuno de interes-
ses contraditrios, portanto um
processo que envolve luta e confli-
to entre esses interesses, ento s
possvel conceber a sade men-
tal como um certo modo do posici-
onamento subjetivo e sociocultu-
ral dos indivduos na conjuntura
conflitiva particular que os atra-
vessa e pela qual so atravessados.
3.2. Vincular o conceito de sade
ao exerccio de cidadania, no mbito
das prticas em Sade, possvel
apenas em decorrncia da prpria
contextualizao da definio de sa-
de nos termos acima propostos. Nes-
te sentido tambm importante no
perder de vista algumas nuances in-
cludas na questo, que podem ser
capciosas se tomadas em sentido
muito estrito ou muito genrico.
Dizer que o exerccio de cidada-
nia resolutivo e preventivo de
problemas psquicos e mentais
pode ser muito pertinente, porm
isto est longe de significar que
preveno em sade mental e tra-
tamento psquico em Sade Cole-
tiva possam ser reduzidos ao exer-
ccio de aes de cidadania, qual-
quer que seja a definio em que
se tome esta ltima.
Disso resulta que o mais impor-
tante especificar quais so as con-
prisma, no ignoramos as dram-
ticas condies de vida dos usuri-
os do hospital psiquitrico, cuja re-
vogao h muito tarda.
4. IV. A vida exige uma aborda-
gem abrangente no campo da sa-
de mental, capaz de romper com a
usual e ainda hegemnica concep-
o compartimentalizada do sujei-
to, com as dissociaes mente/cor-
po e trabalho/prazer .... Refletida
em: a) Mudana no modo de pen-
sar a pessoa com transtornos men-
tais em sua existncia-sofrimento,
e no apenas a partir do seu diag-
nstico; b) Diversificao das re-
ferncias conceituais e operacionais,
indo alm das fronteiras delimita-
das pelas profisses clssicas em
sade mental; c) uma tica da
autonomia e singularizao que
rompa com o conjunto de mecanis-
mos institucionais e tcnicos em
Sade, que tm produzido, nos lti-
mos sculos, subjetividades proscri-
tas e prescritas. (idem:11-12)
Este talvez seja, entre todos os
outros, o marco conceitual mais
complexo. Isto se deve ao fato de a
se mesclarem, como veremos, as-
pectos terico-tcnicos e ticos:
4.1. Para mudarmos nossa ati-
tude asilar, reformista e tecnicista
diante da pessoa com transtornos
psquicos ou mentais, e consider-
la a partir de sua existncia-sofri-
mento, faz-se necessrio especificar
dies das prprias prticas em
sade mental, capazes de criar os
meios de exerccio de cidadania nas
relaes das instituies e dos tra-
balhadores com os usurios e a po-
pulao, e, ao mesmo tempo, mos-
trar como essas condies podem
estar em sintonia com a tica da ci-
dadania singularizada e da produ-
o de subjetividade singularizada,
explicitadas no Modo Psicossocial.
importante sublinhar, ainda, que,
ao tomarmos a questo por esse
IMPORTANTE SUBLINHAR, AINDA,QUE, AO TOMARMOS A QUESTO
POR ESSE PRISMA, NO IGNORAMOSAS DRAMTICAS CONDIES DE VIDA
DOS USURIOS DO HOSPITAL PSIQUITRICO,CUJA REVOGAO H MUITO TARDA
-
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
20 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
uma concepo de subjetividade e
de sade psquica que deixem cla-
ro qual o lugar e o estatuto das
crises e dos diferentes desencadea-
mentos problemticos.
necessrio dar s crises um
lugar estrutural (depois de extirpa-
das de sua poro indesejvel e evi-
tvel). As crises s tero uma aco-
lhida como efeitos estruturais e,
portanto, tambm estruturantes, se
elas forem concebidas como inte-
grantes do modo de o sujeito se po-
sicionar em relao s conjunturas
conflitivas (subjetivas e sociocultu-
rais) que os atravessam. Apenas
numa concepo de sade psquica
assim formulada ser possvel con-
siderar seriamente os indivduos
como existncia-sofrimento.
Tambm j sabemos que esta
diretriz da II Conferncia Nacional
de Sade Mental sai explicitamen-
te do modelo italiano. Sobre isso,
Rotelli et al. (1990:28), afirmam
que para considerar, de fato, o in-
divduo como existncia-sofrimen-
to preciso comear a desmontar
a relao problema-soluo, renun-
ciando a perseguir aquela soluo
racional (tendencialmente tima)
que no caso a normalidade ple-
namente restabelecida.
O modelo italiano, do qual tam-
bm tributrio o Modo Psicosso-
cial, proclama que
o mal da Psiquiatria est em haver
separado um objeto fictcio, a doen-
a, da existncia global complexa e
concreta dos pacientes e do corpo so-
cial. Sobre essa separao artificial
se construiu o conjunto de aparatos
cientficos, legislativos, administra-
tivos (precisamente a instituio),
todos referidos doena. este con-
junto que se pretende desmontar (de-
sinstitucionalizar) para retomar o
contato com aquela existncia dos
pacientes, enquanto existncia-sofri-
mento. (idem, idem).
O problema no cura (a vida
produtiva) mas a produo de vida
sentir o sofrimento do paciente e
que, ao mesmo tempo, se transforme
sua vida concreta e cotidiana, que ali-
menta esse sofrimento (...) Por isso a
festa, a comunidade difusa, a recon-
verso contnua dos recursos insti-
tucionais, e por isso solidariedade e
afetividade se tornaro momentos e
objetivos centrais... ( idem:30).
Esta diretriz est perfeitamen-
te em sintonia com o que, no Modo
Psicossocial, se define em termos de
implicao subjetiva e sociocultu-
ral dos indivduos que recorrem s
instituies de sade mental.
4.2. Para superarmos as refern-
cias conceituais e operacionais,
para alm das profisses clssicas,
sero necessrias pelo menos duas
operaes articuladas.
Primeira, ser preciso rever e
modificar a concepo de sade e
doena e dos meios de tratamento
decorrentes dos postulados psiqui-
tricos, como detentores exclusivos
ou preponderantes do saber sobre
o psquico e o humano neste con-
texto. Isso s poder ser feito rela-
tivizando a importncia das con-
tribuies desse campo de saber,
agregando-lhe de modo bastante
radical (no apenas como acess-
rios) uma srie de conceitos e tc-
nicas geradas no campo da Psica-
nlise e do Materialismo Histri-
co, alm de contribuies da Filo-
sofia (filosofia da Diferena), da
Arte e da Esttica.
e de sentido, de sociabilidade, a uti-
lizao das formas (dos espaos co-
letivos) de convivncia dispersa
(idem:30).
Assim, o modelo italiano assen-
ta-se em uma redefenio do tra-
balho teraputico voltado para a re-
constituio de pessoas enquanto
pessoas que sofrem, como sujeitos
(idem:33). Fala-se menos em cura
do que em cuidado.
Cuidar significa ...fazer com que
se transformem os modos de viver e
O MAL DA PSIQUIATRIA ESTEM HAVER SEPARADO UM OBJETO
FICTCIO, A DOENA, DA EXISTNCIAGLOBAL COMPLEXA E CONCRETA DOS
PACIENTES E DO CORPO SOCIAL
-
As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as Premissas do Modo Psicossocial
Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 21
A segunda operao dever con-
sistir numa crtica diviso do tra-
balho tal qual ela est em ao des-
de o primeiro momento em que se
congregaram diferentes disciplinas
no campo do saber e das prticas
em sade mental. Essa crtica ter
que passar pela demonstrao
(como via para a superao) de que
o modo da diviso do trabalho a
atuante o mesmo que vige no con-
texto da produo em geral e que
tem sido chamado de modo taylo-
rizado ou linha de montagem,
(Costa-Rosa, 1987:222-252).
Nesta linha de raciocnio pos-
svel demonstrar que essa frag-
mentao do cliente e da prpria
subjetividade so os meios atravs
dos quais se reproduzem as rela-
es sociais dominantes no contex-
to social (as relaes sociais de
produo e de poder). Ao mesmo
tempo ser possvel demonstrar
que essas relaes sociais domi-
nantes (j conhecidas nossas com
as seguintes fisionomias: como
trabalho intelectual e decisrio
versus trabalho de execuo, e sob
a forma da prpria ciso fragmen-
tadora do processo de trabalho, por
exemplo, em termos da separao
entre momento diagnstico e mo-
mento teraputico, mas no apenas)
so alguns dos modos de expropria-
o, tanto de trabalhadores quanto
de usurios, do excedente precioso,
que o equivalente da mais-valia
no contexto das prticas em sade
mental. Ou seja, onde h muita re-
produo h pouca produo; onde
h subjetividade serializada falta
subjetividade singularizada.
Em suma, esta segunda opera-
o inclui a superao terico-tc-
nica e ideolgica do modelo taylo-
rista no processo de trabalho na
sade mental, e sua substituio
por outro modo capaz de permitir
que o saldo mais precioso do pro-
cesso de trabalho ( a implicao
subjetiva e a singularizao) seja
apropriado pelos trabalhadores e
ciais em sintonia com o agencia-
mento dos interesses sociais subor-
dinados (intersubjetividade hori-
zontal singularizada).
4.3. Para sustentar na prtica
uma tica da autonomia e da sin-
gularizao tambm ser necess-
rio realizar no mnimo outras duas
operaes conjugadas.
A primeira diz respeito auto-
nomia. A autonomia dos usurios
s pode estar associada autono-
mia dos trabalhadores. A autono-
mia dos trabalhadores e dos usu-
rios por sua vez associa-se supe-
rao dos modos de existncia e
funcionamento das instituies que
so caractersticas do Modo Asilar.
A organizao da instituio de
sade mental como dispositivo se-
gundo a mesma lgica das institui-
es tpicas do Modo Capitalista de
Produo (MCP) produz uma srie
de efeitos refletidos na sua produ-
o, que so desastrosos e s ve-
zes letais. H muito que teorizar e
transformar a fim de driblar esse
intermedirio necessrio (j que
no d para escapar neste momen-
to histrico da intermediao da
instituio nas prticas de Ateno)
da relao dos trabalhadores de
sade mental e dos usurios. Mas
o melhor comeo ser, sem dvida,
reconhecer essa intermediao e
desvendar-lhe a anatomia para des-
cobrir as operaes que so neces-
srias para fazer esse intermedi-
rio trabalhar a favor da tica que
pelos usurios e posto a seu servi-
o ao contrrio do que acontece
no Modo Asilar, em que o inter-
medirio, dono dos meios de pro-
duo e das decises do qu e como
produzir, quem dele se apropria.
Convm no perdermos de vista que
a natureza desse excedente muda
conforme o seu destinatrio. Num
caso d-se como reproduo das
relaes sociais dominantes (sub-
jetividade capitalista), no outro d-
se como recriao de relaes so-
A ORGANIZAO DA INSTITUIO DE SADEMENTAL COMO DISPOSITIVO SEGUNDO A
MESMA LGICA DAS INSTITUIES TPICASDO MODO CAPITALISTA DE PRODUO
(MCP) PRODUZ UMA SRIE DE EFEITOSREFLETIDOS NA SUA PRODUO, QUE SO
DESASTROSOS E S VEZES LETAIS
-
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
22 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
preconizamos para nossas prticas
de Ateno. Quanto a este aspecto
tambm propomos retomar as di-
retrizes de Modo Psicossocial em
relao instituio como disposi-
tivo, e quanto ao modo de ela se
situar em relao clientela e ao
territrio que lhe correspondem.
A segunda operao a respeito
da singularizao inclui justamen-
te a nossa capacidade de criar uma
mnima sintonia (ainda que com
concesses tticas inevitveis) en-
tre a forma de conceber e atuar as
definies de sade e doena e dos
meios de tratamento; a forma das
relaes intrainstitucionais; a for-
ma da relao da Instituio como
equipamento com seus usurios e
com o territrio; e, finalmente,
como se concebe o estatuto de nos-
sas aes em termos de performan-
ce e de tica.
A meta da singularizao, no
Modo s poder ser almejada por
uma concepo do objeto e dos
meios, e da relao dos dois, que
seja capaz de atender especifici-
dade da subjetividade humana, e
que inclua a prpria ao e autode-
terminao como constitutivas do
homem. Ningum trabalhar na
subjetividade revelia do sujeito,
a no ser para a produo de efei-
tos de destituio subjetiva.
Para ser almejada e alcanada, a
singularizao depender de que a
forma das relaes sociais e huma-
nas na instituio parta da horizon-
talizao como meta e, em alguma
medida, seja vivida como exerccio.
Sem isto no h a menor plausibili-
dade em propor a implicao subje-
tiva e sociocultural do usurio e do
trabalhador; sem estas parece-nos
que no pode haver teraputica na
perspectiva da singularizao.
Apenas poder ser meta realis-
ta, na medida em que a instituio
seja capaz de desfazer seu imagi-
nrio repressivo e segregador (pa-
trimnio que neste momento hist-
rico no exclusividade do Hospi-
so aos usurios e da populao do
territrio a todos os espaos insti-
tucionais; criar modelos de recep-
o e de escuta das primeiras de-
mandas, que sejam capazes de der-
rogar os atuais balces e filas de
espera, construindo uma relao di-
reta que permita instituio situ-
ar-se no imaginrio e no simblico
como sujeito-suposto-saber, ou
seja, que lhe permita funcionar como
primeiro interlocutor e at como te-
rapeuta, se for o caso, ali onde a ins-
tituio est acostumada a pensar e
agir apenas como natureza morta
ou, na melhor das hipteses, como
suporte das relaes sociais da sua
produo ali atualizadas.
Finalmente, a singularizao s
poder ser almejada como meta ti-
ca realista se formos capazes de
superar o modo da tica vigente
nas prticas atuais do Modo Asi-
lar. A atitude tica de uma prtica
em sade mental pode ser decifra-
da a partir de uma anlise de seus
efeitos de tratamento e cura e tam-
bm atravs das finalidades socio-
culturais para que concorrem es-
ses efeitos. A tica da singulariza-
o ter que superar os modelos
funcionalistas das prticas que tra-
balham nos eixos da adequao do
indivduo ao meio e do ego reali-
dade, e no eixo da relao entre
carncias e suprimentos da mais
variada natureza.
Essa superao s poder ser
alcanada na perspectiva de uma
prtica que seja capaz de propor,
tal Psiquitrico). Isto, por sua vez,
s ser possvel se os seus agentes
forem capazes de fazer prevalecer
aes que tendam a transform-la
em espao privilegiado de interlo-
cuo para questes subjetivas e
socioculturais. Para isso ser neces-
srio que tais agentes sejam capa-
zes de rever, de forma drstica, sua
representao da sintaxe e da se-
mntica em termos lingsticos e
em termos dos conjuntos do arqui-
tetnico e do mobilirio; abrir aces-
A ATITUDE TICA DE UMA PRTICA EMSADE MENTAL PODE SER DECIFRADA A
PARTIR DE UMA ANLISE DE SEUS EFEITOSDE TRATAMENTO E CURA E TAMBM
ATRAVS DAS FINALIDADES SOCIOCULTURAISPARA QUE CONCORREM ESSES EFEITOS
-
As Conferncias Nacionais de Sade Mental e as Premissas do Modo Psicossocial
Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 23
como efeito principal das suas
aes de tratamento, a implicao
subjetiva como meta radical, na re-
lao do sujeito com o desejo (por
oposio ao ego-realidade) e na re-
lao carecimento-Ideais (por opo-
sio carncia-suprimento); dese-
jo e carecimento considerados como
o que mais essencialmente define
a especificidade do homem.
O PROCESSO DE ESTRATGIADE HEGEMONIA NA SADE MENTAL:
AVANOS E RETROCESSOS
Muitas das propostas apresen-
tadas nas duas Conferncias se con-
cretizaram, como, por exemplo, a
criao de lei federal, leis estadu-
ais e municipais, que incorporaram
as propostas apresentadas no rela-
trio e a criao da Comisso Naci-
onal de Reforma Psiquitrica que
teve, posteriormente, a sua deno-
minao mudada para Comisso
Nacional de Sade Mental. Nesse
sentido, o relatrio da II CNSM
apontou para a consolidao das
conquistas e para onde avanar. Os
avanos, entretanto, parecem ter
sido mais difceis num dos eixos
centrais e mais importantes da luta:
a Lei Paulo Delgado.
A II CNSM consolidou tambm
a conquista dos espaos institucio-
nais. A posio oficial do aparato
estatal estava alicerada pelas di-
retrizes propostas e pelos conceitos
do Movimento da Reforma Psiqui-
trica. Utilizando-se da mesma es-
tratgia do Movimento Sanitrio, a
Reforma Psiquitrica instituciona-
lizou-se enquanto poltica oficial (se
que, pelo menos desde os anos
setenta, em algum momento deixou
de ser poltica oficial, ao menos no
discurso). Na guerra de posies
no interior da construo de um
processo de hegemonia, o Movi-
mento da Reforma Psiquitrica con-
quistou territrios no interior do
aparelho estatal.
Primeira inflexo: as crticas ao
manicmio e sua lgica. Esta
identificada a do Estado autorit-
rio naquele momento em uma de
suas faces mais evidentes; nesse
momento tambm o modelo econ-
mico excludente colocado em pa-
ralelo com o paradigma excludente
da sade mental e vice-versa. At
este momento, as lutas contra o
hospital psiquitrico se mesclam
inteiramente com as lutas sociais,
podendo-se dizer que elas se auto-
reforam. At aqui parecia reagir-
se contra um adversrio que insis-
tia em ficar impassvel, embora
para olhos mais avisados fosse ine-
quvoco tratar-se sempre das aes
da contraface hegemnica que, na
seqncia, ficariam mais evidentes.
Segunda inflexo: os movimen-
tos da Reforma Psiquitrica se am-
pliam, ganhando um novo eco so-
cial. Agora pode se dizer que a pr-
pria sociedade se envolve na luta
contra o manicmio e sua lgica;
firma-se o Movimento da Luta An-
timanicomial, cujo lema, por uma
sociedade sem manicmios, ajuda
a definir com clareza um preceito
central das aes dos interesses at
a subordinados: os trabalhadores
das instituies de sade mental e
seus usurios. Na mesma seqn-
cia vo se firmando vrias experi-
ncias e prticas, exercitando no-
vas lgicas e demonstrando sua ca-
pacidade de substituir o hospital
psiquitrico; firmam-se novos sig-
nificantes sociais antimanicmiais:
Finalmente, poderia ser til subli-
nharmos que esse processo de lutas
e conquistas pontuado pelas duas
CNSM transcorre atravessado por um
movimento de sinal contrrio, que se
processa, neste caso, muito mais
como reao s aes da Reforma
Psiquitrica, do que como movimen-
to deliberado capaz de desfraldar sua
prpria bandeira. No transcurso his-
trico dessa luta podemos ver dese-
nhadas algumas inflexes maiores
que vale a pena sublinhar.
A II CNSMCONSOLIDOU TAMBM
A CONQUISTA DOSESPAOS INSTITUCIONAIS
-
COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
24 Sade em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001
Centros de Ateno Psicossocial
(CAPS) e Ncleos de Ateno Psi-
cossocial (NAPS). Assistimos a al-
gumas manifestaes oficiais,
mesmo que ainda tmidas no sen-
tido de subtrarem espao e pode-
rio ao hospital psiquitrico. Aqui
as foras contra-hegemnicas mos-
tram sua face bem configurada;
fora que poderamos flagrar na
sua maior visibilidade se nos deti-
vssemos na observao dos avan-
os e retrocessos de uma das pe-
as mais notveis da luta antima-
nicomial: a Lei Paulo Delgado. Pa-
rece-nos que nada poderia ser mais
indicativo da intensidade e viruln-
cia das foras contra-hegemnicas
Reforma Psiquitrica do que a di-
ferena entre o que se propunha
como objetivos dessa lei e o que se
conseguiu transformar em Lei.
Terceira inflexo: podemos ver
esboado um momento, de aparn-
cia mais serena, em que se vo se-
dimentando novos conceitos e no-
vos significantes, novas prticas e
novos movimentos; momento em
que se destacam os movimentos de
usurios, dentro da perspectiva da
participao popular. Tambm ve-
mos tentativas cada vez mais fre-
qentes de teorizao das novas
prticas e de sua lgica terico-tc-
nica e tica, a ponto de visualizar,
sem maiores dificuldades, a perti-
nncia e a possibilidade de novos
servios na perspectiva de uma te-
raputica cidad.
Quanto a esta terceira inflexo
nas lutas pela Reforma Psiquitri-
ca, s reaes contra-hegemnicas,
do tipo que nos familiar, devemos
acrescentar outras de ordem micro-
fsica; uma espcie de patrimnio
sinistro herdado da constncia do
lugar de subordinado no Processo
de Estratgia de Hegemonia.
PONTOS PARA UMA PROPOSTADE AGENDA DE DISCUSSO.
1. Refletir sobre as atuais estra-
tgias de fortalecimento do
movimento de usurios e pro-
por avanos.
2. Avanar nas propostas de acom-
panhamento e avaliao da rede
de servios substitutivos por
comisses paritrias de usuri-
os e gestores e trabalhadores.
3. Discutir o surgimento de uma
nova demanda dependncia
qumica que apresenta uma
interface com assistncia soci-
al e judiciria.
4. Discutir a demanda dos usu-
rios ex-internos que acabam
desassistidos sofrendo com
processo de marginalizao.
5. Discutir a transinstitucionaliza-
o criao de outras institui-
es menores de segregao
em que so abandonadas as es-
truturas asilares mas no a pos-
sibilidade da cronicidade e de
medicalizao da demanda.
6. Criao de dispositivos que ga-
rantam a transferncia dos re-
cursos financeiros das interna-
es para os servios substitu-
tivos em sade mental.
7. Discusso sobre a reviso da
formao profissional, com pro-
posta para a reforma curricular
dos profissionais da sade con-
siderando os parmetros da re-
forma psiquitrica.
8. Construo de espaos de aco-
lhimento e cuidado, flexveis e
que faam uma ponte com ou-