clemens, es - repertórios organizacionais e mudança institucional

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Elisabeth S. Clemens Repertórios organizacionais e mudança institucional:  grupos de mulher es e a transformação da  política nos EUA, 1890-1920 Embora usualmente pensemos nos movimentos sociais como agentes de mudança, as explicações dominantes da relação entre movimento e política conduzem à conclusão oposta. 1  Enquanto os movimentos são muitas vezes creditados com conquistas substantivas limitadas – a aprovação de uma le- gislaçã o ou a derrota de um determinado políti co –, somos levados a esperar, no nível organizacional, a cooptação, a transformaçã o conservadora de obje- tivos, e a “lei de ferro da oligarquia” operando para minimizar as diferenças entre um movimento social contestatório e as instituições políticas existentes (JENKINS, 1977; MICHELS, 1962 [1911]). Mesmo no caso de revolução social, como argumentou Tocqueville (1955) [1856], pode acontecer que os movimentos insurgentes apenas solidiquem padrões já emergentes de autoridade estatal. Em cada uma dessas disputas entre instituições políticas estabelecidas e movimentos sociais oposicionistas, as instituições existentes são preservadas, mesmo quando a substância das políticas se altera. Mas, analitica mente, ca-nos a questão a respeito de como as instituições políticas mudam. O que explica transformações nos modelos ou convenções básicos que informam a organização e a ação política? Uma questão tão ampla pode ser abordada mais facilmente em um contexto especíco. Nas décadas imediatamente anteriores e posteriores à 1 Do original “Organizational repertoires and institutional change: women´s groups and the transforma- tion of U. S. politics, 1890-1920” publicado na American Journal of Sociology  (volume 98, número 4, 1993). Direitos autorais concedidos pela University of Chicago Press. Traduzido por André Villalobos. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 3. Brasília, janeiro-julho de 2010, pp. 161-2 18. RBCPed3 artefinal.indd 161 12/04/2010 09:06:01

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    Elisabeth S. Clemens

    Repertrios organizacionais e mudanainstitucional:grupos de mulheres e a transformao dapoltica nos EUA, 1890-1920

    Embora usualmente pensemos nos movimentos sociais como agentes demudana, as explicaes dominantes da relao entre movimento e polticaconduzem concluso oposta.1Enquanto os movimentos so muitas vezescreditados com conquistas substantivas limitadas a aprovao de uma le-gislao ou a derrota de um determinado poltico , somos levados a esperar,

    no nvel organizacional, a cooptao, a transformao conservadora de obje-tivos, e a lei de ferro da oligarquia operando para minimizar as diferenasentre um movimento social contestatrio e as instituies polticas existentes(JENKINS, 1977; MICHELS, 1962 [1911]). Mesmo no caso de revoluosocial, como argumentou Tocqueville (1955) [1856], pode acontecer queos movimentos insurgentes apenas solidifiquem padres j emergentes deautoridade estatal. Em cada uma dessas disputas entre instituies polticasestabelecidas e movimentos sociais oposicionistas, as instituies existentes

    so preservadas, mesmo quando a substncia das polticas se altera. Mas,analiticamente, fica-nos a questo a respeito de como as instituies polticasmudam. O que explica transformaes nos modelos ou convenes bsicosque informam a organizao e a ao poltica?

    Uma questo to ampla pode ser abordada mais facilmente em umcontexto especfico. Nas dcadas imediatamente anteriores e posteriores

    1 Do original Organizational repertoires and institutional change: womens groups and the transforma-tion of U. S. politics, 1890-1920 publicado na American Journal of Sociology(volume 98, nmero 4,1993). Direitos autorais concedidos pela University of Chicago Press. Traduzido por Andr Villalobos.

    Revista Brasileira de Cincia Poltica, n 3. Braslia, janeiro-julho de 2010, pp. 161-218.

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    virada do sculo XIX para o XX, as instituies da poltica americana pas-saram por uma das mais importantes transformaes governamentais dahistria americana o surgimento de significativas polticas regulatrias eadministrativas juntamente com uma srie de mudanas duradouras nanatureza e estrutura da participao poltica; o voto partidrio declinou e apoltica dos grupos de interesse tornou-se mais importante (McCORMICK,1986, p. 83). Essas mudanas nos modelos bsicos de participao polticavieram na esteira dos esforos dos grupos agrrios e das organizaes detrabalhadores para assegurar maior poder de influncia em um universopoltico em que a igualdade formal entre os cidados brancos de sexo mas-culino parecia crescentemente irrelevante. Ao mesmo tempo, as mulheres

    se mobilizaram para garantir o direito ao voto para a metade da populaoadulta que se encontrava privada desse direito2. Mas permanecem obscurasas conexes entre as instituies polticas em transformao e a onda demobilizao poltica popular.

    Na diviso do trabalho acadmico, esses dois problemas tm sido tratadospor literaturas separadas: o estudo dos movimentos sociais e a histria dossistemas partidrios ou dos regimes eleitorais. Ultimamente, contudo, oshistoriadores que estudam a problemtica das mulheres tm questionado

    essa separao, argumentando que, quanto mais se aprende sobre a magni-tude e centralidade da contribuio das mulheres nesses anos, mais provvelparece que entend-las propiciar uma base para a anlise compreensivado progressivismo que tem escapado ateno dos historiadores at hoje(DuBOIS, 1991, p. 162-163). Para chegar a tal anlise, entretanto, necessrioreconsiderar dois pressupostos tericos que nos levaram a desconsiderar osmovimentos sociais como fontes de mudana.

    Em primeiro lugar, algumas organizaes de movimentos podem ser

    comparativamente imunes s presses para adaptar-se ao contexto institu-cional existente. Para estabelecer essa possibilidade, identificarei as lgicas deincorporao poltica implcitas nos modelos clssicos da sociologia poltica especificamente os de Robert Michels e de Max Weber , aplicando-as emseguida a um conjunto de grupos de movimentos sociais coletivamente co-

    2 Os negros sulistas foram a grande exceo nessa ampliao do universo poltico, na medida em quepr-requisitos de rendimentosper capitapara efeito de direito ao voto (poll taxes) e restries ao direitode registrar-se como eleitor foram usados com sucesso para afastar os homens afro-americanos daslistas eleitorais (McADAM, 1986, p. 68-69).

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    nhecidos como o movimento da mulher do final do sculo XIX e incio dosculo XX nos Estados Unidos. Esse movimento tem suas razes no perodoanterior Guerra Civil, com a proliferao de sociedades beneficentes demulheres e atividades abolicionistas. Quando as emendas legais decorrentesda Guerra Civil deixaram de proporcionar-lhes o direito ao voto, as mulhe-res se reagruparam gradualmente em torno de causas relacionadas com aabstinncia do consumo de bebidas alcolicas e com a luta pelo direito aosufrgio, construindo uma impressionante rede de organizaes de mulheres,federadas em mbito nacional (SCOTT, 1991). Por volta dos anos 1880, asorganizaes e causas das mulheres estavam estabelecidas paralelamente, masbastante separadas, das instituies polticas formais da nao. As dcadas

    seguintes foram palco de uma crescente mobilizao das mulheres, assimcomo uma srie de conquistas legislativas, que podem ser favoravelmentecomparadas no apenas com os sucessos das mulheres em outras naes, mastambm com as vitrias dos movimentos trabalhistas e agrrios nos EstadosUnidos (CLEMENS, 1990a; SKOCPOL e RITTER, 1991). A habilidade dosgrupos de mulheres para ingressar na arena poltica sem serem inteiramentecooptados sugere que os processos de transformao organizacional con-servadora so condicionados tanto pela identidade social dos organizados

    como pelo carter das instituies polticas existentes.Em segundo lugar, pelo menos algumas das interaes entre os movi-

    mentos sociais e as instituies polticas existentes precisam ser capazes deproduzir mudanas nas convenes que informam a ao e a organizaopoltica. Aps apresentar um modelo alternativo da interao entre movi-mentos sociais e instituies, argumentarei que a dinmica organizacional domovimento da mulher americana ajuda a explicar uma das mais importantesmudanas na histria poltica dos Estados Unidos: a mudana do Estado de

    cortes e partidos do sculo XIX para um regime poltico fundado na ativi-dade legislativa e na negociao entre grupos de interesse (SKOWRONEK,1982; McCORMICK, 1986). Enquanto as lutas internas e as tticas eleitoraisforam foras centrais para o declnio dos partidos e a posio proeminenteda poltica eleitoral (McGERR, 1986; SHEFTER, 1983), as associaes exer-ceram um papel-chave na elaborao de um novo estilo de poltica focadoem questes, interesses e respostas legislativas especficas. Uma literaturarapidamente crescente documenta, agora, o extenso envolvimento de gruposde mulheres em um projeto poltico que se deslocou das questes afetas

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    vida local [municipal housekeeping], nos anos 1890, para o desenvolvimentode formidveis lobbiesem mbito estadual e nacional, durante as dcadas de1910 e 1920. Raramente produzindo uma pura expresso de feminilidade,esses esforos cruzaram fronteiras de raa, etnicidade, classe e regio (BAKER,1991; FRANKEL e DYE, 1991; MUNCY, 1991; SCOTT, 1991). Os grupos demulheres no estiveram ss nessa inovao organizacional, mas em virtudede sua posio marginal com respeito poltica eleitoral, seus esforos porcriar uma alternativa institucional so particularmente ntidos.

    O ponto central, por conseguinte, substituir o foco na burocratizao,caracterstico dos estudos na tradio Michels-Weber, pelo reconhecimentode que o mundo social oferece mltiplos modelos de organizao, assim como

    convenes relativas a quem pode se utilizar de quais modelos para quaispropsitos. Os modelos de organizao compreendem tanto padres paraos arranjos de relaes no interior de uma organizao como conjuntos deroteiros para a ao culturalmente associados com esse tipo de organizao.Dessa forma, os modelos podem ser pensados como sendo intermediriosentre dimenses abstratas de uma forma de organizao (por exemplo, graude hierarquia) e exemplos de organizaes especficas. Modelos podemreferir-se a organizaes de um determinado tipo ou a organizaes que

    fazem determinado tipo de coisa3

    . A meno, quer a um atributo quer a umaao, pode evocar um modelo compartilhado ou uma forma de organizar.

    Os grupos de mulheres, juntamente com outros, foram politicamentebem-sucedidos medida que adaptaram para propsitos polticos os mo-delos de organizao no politizados existentes. Ao invs de adotar umanica forma burocrtica, esses grupos utilizaram mltiplos modelos deorganizao sindicatos, clubes, parlamentos e corporaes , cada qualarticulado de diferentes formas com as instituies polticas existentes. Esta

    constatao exige que o escopo da explicao padro de Michels-Weber sobreo desenvolvimento do movimento social seja delimitado por uma anlise

    3 Em benefcio da clareza terminolgica, usei modelo organizacional para referir-me definio cogniti-va ou arquetpica [blueprint] da forma organizacional. Hannan e Freeman (1986, p. 56) contestaramessa abordagem com fundamento na alegao de que arqutipos de organizao no so observveis.Contudo, durante perodos de mudana organizacional, os debates sobre a escolha dos modelosapropriados fornecem evidncia dos padres bsicos constitutivos do repertrio de organizao deum grupo. As mudanas institucionais refletem a interao da diversidade organizacional nos nveiscognitivo e material: Quando os esforos para implementar novas formas so bem-sucedidos, elespodem resultar no obscurecimento dos limites entre um conjunto de formas ou no surgimento deuma forma nitidamente diferente (HANNAN e FREEMAN, 1986, p. 63).

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    mais elaborada da organizao social. Valendo-me dos debates atuais sobrea teoria das organizaes, argumentarei que nossa compreenso sobre arelao entre movimentos sociais e mudana poltica foi prejudicada peladupla pressuposio de que a escolha da forma organizacional primordial-mente determinada por consideraes de eficcia, e de que as hierarquiasburocrticas clssicas so a forma mais efetiva de alcanar metas polticas. Aescolha de modelos organizacionais pode ser tambm presidida por lgicasde adequao (MARCH e OLSEN, 1989, p. 23-24) ou por normas insti-tucionais (DiMAGGIO e POWELL, 1983) e, dadas variaes no ambiente,na composio e nas metas organizacionais, as formas burocrticas podemmuito bem provar-se menos efetivas do que arranjos de redes, grupos soli-

    drios ou outras possveis alternativas (POWELL, 1990). Finalmente, quandomobilizadas em novas formas por grupos no usuais, mesmo os modelosorganizacionais mais conhecidos podem ter consequncias perturbadoraspara as instituies polticas.

    O conjunto de modelos organizacionais cultural e empiricamente dispo-nveis pode ser pensado como um repertrio organizacional. Este conceitointegra o vocabulrio terico dos estudiosos de organizao sensveis diver-sidade de forma com o arcabouo cognitivo ou cultural dos repertrios de

    ao coletiva postos em evidncia pelos tericos do movimento social sinto-nizados com a variao histrica (TILLY, 1978; TILLY, 1986). Assim como nasexplicaes do construcionismo social, a institucionalizao e, por extenso,a mudana institucional, compreendida como produto do hbito, da autor-reproduo (ou da falta dela) de um padro social particular (JEPPERSON,1991). Mas, ao invs de enfocar uma histria compartilhada de interaescomo a fonte primordial de tipificaes recprocas (BERGER e LUCKMANN,1966, p. 53-67), esta anlise argumenta que o consenso tambm pode resultar

    de os atores utilizarem um repertrio comum, culturalmente disponvel (maisdo que situacionalmente construdo), de modelos alternativos para interpretaruma situao ou agir nela. Mobilizando mltiplos modelos organizacionaisem campos institucionais diversos, os movimentos sociais podem ser fonte demudana institucional, mesmo quando eles prprios sofrem transformaesde natureza mais ou menos conservadora.

    Desenvolvendo um modelo de mudana institucional, esta argumentaose vale da teoria contempornea da organizao, mas requer um desloca-mento de foco, afastando-se dos centros dos campos organizacionais insti-

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    tucionalizados, em direo a suas periferias. Ao invs de atribuir a disrupodos campos organizacionais a variados choques exgenos, esta interpretaosugere que a ao poltica estratgica, assim como a busca de identidadescoletivas, produz migraes de modelos organizacionais e, potencialmente,a disrupo de campos de ao organizados. As instituies da sociedademoderna so concebidas como sendo potencialmente contraditrias e,por isso, tornam mltiplas lgicas disponveis para os indivduos e as orga-nizaes (FRIEDLAND e ALFORD, 1991, p. 232). Esses movimentos dosmodelos organizacionais so padronizados em pelo menos duas maneiras:pela distribuio de mltiplas afiliaes em campos organizacionais oentrelaamento de afiliaes a grupos, de Simmel e pelas lgicas culturais

    que informam a mobilizao de repertrios organizacionais. Ao desenvolveruma teoria sobre a escolha organizacional, James March assinalou o papelda imitao como um componente de tolice sensata, afirmando que, paraque a imitao seja normativamente atraente, precisamos de uma melhorteoria sobre quem deve ser imitado (MARCH, 1979, p. 75-76). Geraes maisantigas de atores polticos encontraram exatamente tal teoria embutida emseus repertrios de organizao, as interpretaes culturais ligando modelosorganizacionais a atores e propsitos.

    O movimento da mulher: escopo e fontes

    O potencial dos movimentos sociais ou das associaes voluntrias paratransformar a poltica institucional fica evidente em um caso notvel em-bora at recentemente subestimado de organizao poltica por parte deum grupo comparativamente desfavorecido. O movimento da mulher,nos Estados Unidos do final do sculo XIX e incio do sculo XX, reuniumulheres relativamente privilegiadas em termos de situao econmica e

    educao (BLAIR, 1980; SKLAR, 1985), mas ainda submetidas a prticasformais e informais de excluso que limitavam sua capacidade para culti-var habilidades polticas ou para exerc-las, caso as houvessem adquiridode alguma forma. No obstante sua excluso formal do direito de voto emgrande parte da nao (a Dcima Nona Emenda s foi ratificada em 1920),mulheres de classe mdia e de classe mdia alta construram uma impres-sionante quantidade de associaes voluntrias que constituram uma forasignificativa na vida pblica do pas. Dezoito anos aps sua fundao em1874, a WCTU Womens Christian Temperance Union(Associao das

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    Mulheres Crists pela Abstinncia de Bebidas Alcolicas) tinha 150.000membros (BORDIN, 1981, p. 3-4) e exercia influncia sobre a legislao,desde a referente s restries ao consumo do lcool at a concernente aodireito de voto para a mulher. A GFWC General Federation of WomensClubs(Federao Geral dos Clubes de Mulheres) foi fundada em 1890 e tinhapossivelmente 500.000 membros por volta de 1905 e mais de 1 milho nofinal da dcada4. Alm desses grupos, associaes beneficentes, clubes cvicos,grupos de auxlio a fraternidades, e associaes pelo sufrgio preenchiamuma densa rede de organizaes de mulheres. Como um elemento-chaveda era de reforma social, esses grupos contriburam para a fundao de umEstado de bem-estar social nitidamente maternalista nos EUA, um regime

    de polticas que d mais nfase a programas como as penses para as mesdo que aos programas de seguro contra o desemprego e de amparo velhice(GORDON, 1990; SKOPCOL, 1992).

    No mbito institucional, os grupos de mulheres foram centrais para umareelaborao mais ampla do arcabouo organizacional da poltica americana:o declnio dos partidos polticos competitivos e da mobilizao eleitoral demassas, seguido pelo surgimento de um sistema de governo centrado emadministrao, regulao, lobbiese poltica legislativa. Essa mudana envol-

    veu a inveno de novos modelos de participao poltica fora dos partidosestabelecidos e a articulao de interesses e demandas que pudessem sertratadas por meio da legislao e da interveno ativa de agncias estatais.Conquanto a inveno da moderna poltica dos grupos de interesse possa noter sido visada pelas mulheres ativistas, essa foi uma das consequncias maisimportantes desse perodo de experimentao com a organizao poltica.

    Embora as organizaes de mulheres no perodo compreendessem quealguma forma de ao poltica seria necessria para fazer avanar muitas de

    suas causas, a atividade poltica em sua forma usual estava fora de questo.Adicionalmente a sua excluso formal da atividade eleitoral, as associaesde mulheres incorporaram-se a uma ofensiva cultural mais ampla contra osmtodos polticos. Segundo a Sra. Croly, primeira presidente da GFWC:

    Se eu tivesse que dizer o que me parece o maior obstculo vida e ao crescimento

    4 O clculo do nmero exato de membros impossvel, posto que os nmeros totais eram tipicamentefornecidos pelos clubes, e algumas mulheres tinham mltiplas afiliaes (WILSON, 1979, p. 100-101;WOOD, 1912, p. 131 e 154).

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    dos clubes, esse seria o emprego de mtodos polticos, de maquinaria poltica e de

    manipulaes para produzir resultados. A poltica s poder ser purificada quando

    seus mtodos forem modificados, e sua introduo em nossa vida de clube subverte

    completamente a inteno e os objetivos da organizao clubstica (CROLY, 1898,

    p. 128).

    A poltica em si no era rejeitada, mas apenas as formas existentes deorganizao poltica, os modelos do partido eleitoral e os mecanismos depatronagem. Para construir uma alternativa, os grupos de mulheres valeram-se de modelos de organizao que se encontravam disponveis, cultural eexperiencialmente, em outras reas da vida social. Atravs de emprstimos

    desse repertrio de organizao mais amplo, esses grupos ajudaram a trans-formar o repertrio de ao poltica na Era Progressista.No existe uma listagem formal de tais repertrios, mas a gama de

    modelos de organizao culturalmente disponveis pode ser reconstruda apartir dos debates que esses grupos realizaram com respeito a que tipo deorganizao desejavam ser. Atas de convenes constituem uma copiosa fontedesse tipo de informao, visto que qualquer mudana na organizao ou naestratgia usualmente acarretava moes formais completas com a enuncia-o dos fatos (a parte destinada aos considerando) e uma argumentaoem favor de algum modelo alternativo para a ao do grupo. Por exemplo,divises faccionais poderiam ser explicadas em termos provenientes dosmundos dos negcios e da reforma poltica. Em 1911, um grupo sufragistade Wisconsin proclamou sua inteno de explodir o cartel sufragista (asassociaes nacionais pelo sufrgio) e fundar uma organizao alternativacom uma forma de governo atravs de comisso [commission form of

    government] (Milwaukee Evening Wisconsin, 10/10/1911, Wisconsin WomanSuffrage Scrapbooks)5. Mtodos do mundo dos negcios tambm definiram

    novas estratgias polticas. Desencorajando a utilizao de debates pbli-cos uma pea central da vida poltica no sculo XIX , uma sufragista daCalifrnia, em 1913, assim expressou seu argumento:

    5 Os Wisconsin Woman Suffrage Scrapbooksincluem recortes de jornais (primordialmente de jornaisdo Wisconsin) assim como lembranas, telegramas e outros documentos relacionados campanhapelo sufrgio no Estado. A maior parte do material data de 1900 a 1920. So feitas citaes fonte do

    jornal original. Os scrapbooks [livros de recortes] esto nas colees da Wisconsin Historical Society,Madison, Wisconsin.

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    Penso que precisamos reconhecer francamente que as pessoas no so todas conven-

    cidas pela razo, e que, embora profundamente verdadeira, a proposio de que as

    mulheres devem votar se consolidar, junto a essa classe de pessoas, de forma similar

    quela em se estabelecem as virtudes da alimentao no caf da manh pela afir-

    mao (Califrnia Equal Suffrage League of Northern California[de ora em diante,

    CESLNC], 1913, p. 11)6.

    Para reconstruir os repertrios de organizao empregados durante esseperodo, este estudo baseia-se em uma extensa leitura das atas de organiza-es de mulheres. O material utilizado nesta anlise proveniente basica-mente de um estudo comparativo da organizao poltica e das estratgias

    de grupos de trabalhadores, grupos agrrios e grupos de mulheres em trsestados progressistas (Califrnia, Washington e Wisconsin) entre 1890 e 1920(CLEMENS, 1990a). Posto que esta anlise est preocupada com inovaona organizao poltica, esses casos foram selecionados entre aqueles estadosreconhecidos pela inovao com respeito ao processo poltico e por suaspolticas sociais substantivas. Embora numerosos estados do leste tenhamaprovado uma legislao social progressista, no conjunto eles foram muitomais lentos em adotar reformas processuais como a iniciativa popular, oreferendum, e a possibilidade de remoo de autoridades de seus cargos poriniciativa e voto popular [recall] que debilitaram o poder das organizaespartidrias para controlar as agendas polticas e seus resultados (PHELPS,1914, p. xliv; SHEFTER, 1983). As lutas no interior das organizaes nacionaistambm assumiram frequentemente a forma de uma diviso regional entreuma liderana da costa leste, comprometida com os mtodos estabelecidos,e as faces do meio-oeste e do oeste, mais abertas ao poltica direta ou interveno estatal. Alm das atas de convenes e das publicaes oficiais de

    6 Conquanto a influncia dos negcios sobre a poltica tenha sido um ponto central de discusso nahistoriografia da Era Progressista, as argumentaes assumiram tipicamente uma forma instrumen-talista: os modelos burocrticos so introduzidos por profissionais (HOFSTADTER, 1955; WIEBE, 1968)ou elites corporativas (BERKOWITZ e McQUAID, 1980; KOLKO, 1963; WEINSTEIN, 1963) para servir seusprprios interesses. O que passou despercebido foi a extenso em que os modelos de organizaoassociados com o mundo dos negcios deram forma s estratgias dos que mais se opunham ao podercorporativo mesmo antes do declnio da poltica de patronagem. Como se manifestou um membrode grupo californiano afiliado ao Grange: Est em nossas mos, como membros da organizao,estudar bem a lio que essas grandes corporaes que dominam o pas nos esto ensinando, nos ao fazendeiro, mas humanidade; ou seja, que na unidade, na cooperao inteligente, h fora, hpoder; mas no esforo dividido, h fraqueza, h desintegrao (...). Precisamos fazer como esto fazendoas corporaes opor combinaes de capital e crebros a combinaes semelhantes (CALIFRNIASTATE GRANGE, 1889, p. 43).

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    vrias federaes estaduais, baseio-me em debates organizacionais, tal comorelatados e analisados em jornais de mulheres e nas histrias publicadas pore sobre diferentes associaes (por exemplo, CESLNC, 1913; CROLY, 1898;GIBSON, 1927; PARK, 1960; RUDDY, 1906; SIMPSON, 1909; SIMPSON,1915; SPENCER, s.d.; WILLIAMSON, 1925; WINTER, 1925; Womans[sic]Parliament of Southern California, 1892; WOOD, 1912)7. Ao longo dessesrelatos, fica clara a extenso do conhecimento mtuo e do mimetismo entreos grupos. Em vez de afirmar que a inovao poltica se baseou em carac-tersticas distintivas de estados individuais, o argumento aqui desenvolvidotoma o processo de imitao e inovao organizacional como central paraa compreenso das mudanas institucionais no perodo.

    Com foco nos repertrios de organizao, a anlise busca estabelecer osmecanismos para tais mudanas, situando a interao entre os movimentossociais e a poltica dentro de um sistema social mais amplo que inclui modelosde organizao alternativos e mltiplas instituies que podem promover aconformidade organizacional ou o isomorfismo (DiMAGGIO e POWELL,1983). As aplicaes do modelo neoinstitucionalista que examina uma nicainstituio focal (normalmente o Estado ou as profisses) tendem a dar nfase maneira pela qual os processos isomrficos promovem a estabilidade e a

    homogeneidade, mas o resultado oposto tambm possvel. Quando formasorganizacionais conhecidas so mobilizadas de maneiras no convencionais,grupos contestatrios podem muito bem desestabilizar as instituies exis-tentes e vir a contribuir para a institucionalizao de novas convenes paraa ao poltica. A heterogeneidade organizacional se reflete nos repertriosde organizao; esta uma exposio a respeito dos instrumentos [ tool kits]cujo potencial para produzir mudana decorre da organizao complexa dassociedades modernas mais propriamente do que de tempos de incerteza

    (SWIDLER, 1986). Em vez de rejeitar o modelo clssico de Michels-Weber,utilizarei o caso do movimento da mulher para identificar condies rela-tivas ao alcance desse modelo e, por extenso, proporcionar critrios paraidentificar os tipos de movimentos com maior probabilidade de contribuirpara uma mudana institucional significativa na arena poltica.

    7 Entre os jornais de mulheres, encontram-se o Wisconsin Citizen(mensrio, 1887-1900, Wisconsin His-torical Society, Madison), o

    Club Life(publicado mensalmente em So Francisco, 1902-6, Biblioteca doCongresso), o Western Woman Voter(Seattle, 1911-13, disponvel em microfilme na Biblioteca Bancroft,na Universidade da California, Berkeley), e a pgina feminina do Wisconsin Equity News(quinzenrio,1911-1917, Wisconsin Historical Societye Universidade da Califrnia, Berkeley).

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    Reconsiderando a lei de ferro

    A organizao poltica pode ter efeitos profundamente irnicos. Comoargumentou Robert Michels em seu estudo clssico sobre o Partido SocialDemocrtico na Alemanha Guilhermina, A organizao a arma dos fracosna luta contra os fortes. Mas essa alavancagem conquistada a um alto preo:A organizao (...) a fonte da qual fluem as correntes conservadoras sobrea plancie da democracia, a ocasionando enchentes desastrosas e tornandoa plancie irreconhecvel (MICHELS, 1962 [1911], p. 61-62). A organizaoburocrtica hierrquica necessria para competir com eficcia na arena po-ltica, mas os processos de competio e organizao distanciam a lideranados interesses de seus seguidores e do compromisso inicial da organizao

    com relao transformao do sistema poltico.Muito embora a inevitabilidade dessas transformaes conservadoras

    tenha sido objetada na literatura sobre movimentos sociais, a imunidadea elas associada a formas de isolamento independncia econmica,exclusividade de afiliao, e pureza ideolgica ou profissional (JENKINS,1977; SELZNICK, 1960, p. 23, 77 e 153; ZALD e ASH, 1966). Alm disso,esses estudos tenderam a focalizar antes a dinmica interna de organizaesvoluntrias do que suas interaes com as instituies polticas. Para Michels,

    entretanto, essas podem bem ser as excees que comprovam a regra. Em suaanlise original, a interao continuada das organizaes polticas radicaiscom as instituies da poltica formal e com o ambiente econmico consti-tua o motor primrio da transformao conservadora. Assim, ficamos comum paradoxo que tem sido central para os crticos do pluralismo poltico(McADAM, 1982, p. 5-6, 18-19). Na medida em que os grupos organizadoscomprometidos com a mudana poltica buscam assegur-la por meio deprocessos polticos o toma-l-d-c na construo de coalizes e na mo-

    bilizao eleitoral , parecem condenados a fracassar na proporo em quesuas metas de mudana social so sacrificadas pelos constrangimentos doprocesso poltico.

    Neste artigo, minha alegao central que as organizaes de mulheresda virada do sculo juntamente com outras associaes de fato causarammudanas substanciais na poltica americana. Minha primeira tarefa, porconseguinte, deve ser a de explicar por que as organizaes de mulheresforam comparativamente imunes lgica da transformao conservado-ra descrita na anlise de Michels. Em Union Democracy(1956), a famosa

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    anlise do caso desviante da International Typographical Union[SindicatoInternacional dos Tipgrafos], Lipset, Trow e Coleman argumentaram quea poltica interna do sindicato (a organizao do trabalho, a fora dasorganizaes locais, e uma histria especfica de conflito poltico) contri-buiu para sua relativa imunidade lei de ferro de Michels. Entretanto, paracompreender o potencial transformador dos grupos de mulheres da EraProgressista, trs aspectos de poltica externa precisam ser examinados. Osdois primeiros dizem respeito relao entre um modelo organizacionale as estruturas sociais mais abrangentes. O argumento de Michels trata deduas lgicas de incorporao distintas econmica e poltica que afetam aafiliao organizacional de chefes de famlia detentores de direitos polticos.

    Consequentemente, os efeitos da organizao podem variar de acordo coma identidade dos organizados. O terceiro ponto envolve antes os aspectossimblicos do que os aspectos instrumentais dos modelos organizacionais;a apropriao de um modelo estabelecido por parte de grupos marginaispode ter consequncias que no sejam inteiramente conservadoras. Dadasas situaes econmicas e polticas de seus membros, os grupos de mulherestinham menor probabilidade de serem atrados para as formas estabelecidasde organizao poltica. Na medida em que adotaram esses modelos esta-

    belecidos, todavia, o resultado foi antes a intensificao da contradio doque a cooptao efetiva.

    A lgica da incorporao econmica

    Uma das regras do jornalismo investigativo a de seguir o dinheiro. Essaregra tambm exerce um papel importante na sociologia poltica, havendorecebido sua forma clssica na anlise de Weber sobre a rotinizao da au-toridade carismtica. O quadro de funcionrios administrativos de um

    movimento ou organizao tem, segundo Weber,

    interesse na continuidade [do movimento ou da organizao] de tal modo que, tanto

    de um ponto de vista ideal como material, sua prpria posio seja estabelecida em

    bases cotidianas estveis. Isto significa, sobretudo, tornar possvel sua participao em

    relaes familiares normais ou, pelo menos, desfrutar de uma posio social segura

    ao invs daquela condio de discpulo, separada das conexes mundanas ordinrias,

    notavelmente no que concerne s relaes familiares e econmicas (WEBER, 1978,

    p. 246).

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    Essa conhecida passagem identifica dois mecanismos distintos pelos quaisos imperativos econmicos conformam a relao do pessoal do quadro ad-ministrativo com a organizao: o interesse na continuidade da organizao

    per see a garantia de sua prpria situao econmica, tornando possvelparticipar de relaes familiares normais. Ambos imperativos exercem umpapel proeminente na explicao de Michels sobre a lei de ferro da oligarquia.O pessoal administrativo estar relutante em desafiar a liderana a partir dedentro da organizao: A dependncia financeira em relao ao partido, isto, em relao aos lderes que representam a maioria, agrilhoa a organizaocomo com cadeias de ferro (MICHELS, 1962, p. 140 e 138). A situao dasautoridades partidrias como provedores de suas famlias tambm impele

    os objetivos da organizao para uma direo conservadora. Para aquelafrao da burguesia que joga sua sorte com a classe trabalhadora, nenhumcaminho de volta se abre. Eles esto acorrentados por seu passado. Eles tmuma famlia, e esta precisa ser alimentada (MICHELS, 1962, p. 208). Res-ponsabilidades familiares e posio social produzem efeitos similares sobreos lderes recrutados entre os trabalhadores, que relutaro em abandonarseu statusmelhorado de funcionrios de uma organizao trabalhista (MI-CHELS, 1962, p. 259). Esta explicao s generalizvel, portanto, na medida

    em que no estejam disponveis formas alternativas de apoio organizacional(por exemplo, patronagem pessoal ou institucional [ver Jenkins, 1977]) eque o quadro administrativo ou membros dele sejam responsveis por seuprprio bem-estar econmico e o de seus dependentes.

    Essas dinmicas continuam a figurar de modo proeminente nas discussescontemporneas sobre movimentos sociais, embora um desfecho conservadorno mais seja suposto como inevitvel. As anlises de financiamento do nfaseaos riscos de cooptao postos pela dependncia de financiamento externo ou

    de patronagem, ao mesmo tempo em que observam as limitaes de recursos nointerior de vrias comunidades marginalizadas pelas instituies polticas estabe-lecidas (JENKINS, 1977; McADAM, McCARTHY e ZALD, 1988). As restriesda vida cotidiana foram tambm reconhecidas em termos menos estritamenteeconmicos como restries de disponibilidade biogrfica (McADAM, 1986);responsabilidades familiares ou relacionadas carreira podem restringir a capa-cidade ou inclinao de algum para participar na poltica.

    Como argumentarei a seguir, o impacto dessas limitaes de recursos mediado pela forma de organizao. O ponto mais bvio, no entanto,

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    que a explicao de Michels-Weber negligencia a diviso de trabalho porgnero no interior das famlias. Muitas das principais figuras do movimentoda mulher estavam sujeitas a um conjunto diferente de restries. Em umnvel mais geral, as mudanas na diviso do trabalho e o crescimento de ummercado de bens de consumo deixaram as mulheres de classe mdia e declasse mdia alta do sculo XIX com crescente quantidade de tempo livredas responsabilidades domsticas (WOOD, 1912, p. 24-25). Entre as maisativas nas associaes de mulheres, muitas eram mantidas financeiramentepor seus maridos, e outras provinham de famlias de considervel riqueza envel educacional (BLAIR, 1980; SKLAR, 1985). Os imperativos do ganha-po, to centrais para Weber e Michels, eram claramente menos relevantes

    para esses grupos. Para as menos privilegiadas, os prprios grupos demulheres poderiam proporcionar uma comunidade como os centros deservios comunitrios e de assistncia social [settlement houses] (DEEGAN,1988, p. 40-45) ou carreiras de ativistas poderiam ser financiadas sejapor amplos crculos de simpatizantes ou patronos proeminentes. O fato demuitas mulheres de maior nvel educacional terem permanecido solteirasou sem filhos juntamente com muitas mes, ativas nessas associaes, quecontavam com a ajuda de empregados domsticos diminuiu as restries

    de disponibilidade biogrfica.

    A lgica de incorporao poltica

    Da mesma forma que a lgica de incorporao econmica mediadapelas formas de organizao social e de vida familiar, a lgica de incorporaopoltica estruturada por instituies especficas. Nos termos de Michels, aparticipao poltica conduz transformao conservadora de organizaesoposicionistas por meio do sistema de competio eleitoral e da identificao

    dos lderes dos movimentos com o establishmentpoltico. Prenunciando aanlise de Anthony Downs sobre os sistemas partidrios (1957), Michelsargumentava que, competindo em eleies, os partidos oposicionistas seriamarrastados para o centro poltico e, portanto, moderariam seus objetivosradicais (MICHELS, 1962, p. 334-335). Porm, se a competio eleitoral noproduz resultados favorveis, at mesmo partidos polticos formais podemadotar modelos organizacionais alternativos e estratgias que enfatizempureza ideolgica ou incentivos solidrios ao invs de vantagem eleitoral(KITSCHELT, 1989, p. 41). Alm disso, nmeros absolutos esto menos li-

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    gados vitria em outros sistemas de contestao poltica. Para um partidorevolucionrio, as exigncias de treinamento de seus quadros podem muitobem superar as vantagens de uma ampla afiliao. Para grupos dedicados atividade de lobby, assim como para todos aqueles engajados na polticasimblica, recursos, statuse estilo podem importar mais do que nmeros.

    A negao formal do direito de voto s mulheres obviamente asdistanciava da lgica da incorporao eleitoral. Embora seus grupos fre-quentemente procurassem persuadir os eleitores homens a apoiar o sufrgiofeminino ou a campanha contra o consumo de bebidas alcolicas, ou algumaoutra causa e muitas vezes moderassem o radicalismo dessas demandasem razo de finalidades estratgicas , esses esforos estavam apenas frou-

    xamente articulados com a vida interna da maioria das associaes de mu-lheres. Impedidas de mobilizar seus membros diretamente como um blocovotante com a consequente necessidade de conseguir um consentimentoda maioria, se no uma unanimidade, quanto s metas da organizao ,as associaes de mulheres tipicamente desenvolveram estruturas depar-tamentais internas que permitiam aos membros individuais focalizar seusesforos em uma variedade de objetivos, da visita aos doentes mobilizaopela legislao social8. Combinada com uma misso poltica resumida no

    lema Fazer Tudo!, a estrutura departamental permitia s faces ou sorganizaes locais realizar experimentaes antes que houvesse qualquerconsenso no mbito nacional. Os arranjos organizacionais do movimentoda mulher livraram-no muitas vezes das consequncias conservadoras doprocesso decisrio por consenso (BAKER, 1991, p. 20-21); quando se es-tabeleceu o WomansJoint Congressional Committee[Comit CongressualConjunto da Mulher], em 1920, a norma procedimental sustentava que,quando trs das organizaes do WJCC votassem por apoiar ou opor-se a

    uma pea legislativa, elas constitussem um subcomit para fazer seu lobby(MUNCY, 1991, p. 103). Esses sistemas de unidade flexvel (THOMPSON,

    8 A falta de familiaridade dos grupos de mulheres com a poltica usual teve um papel na ciso entrea National American Woman Suffrage Associatione a mais radical Congressional Union. Durante aeleio de 1916, a Congressional Unionrejeitou as estratgias tradicionais de persuaso dos eleitoreshomens para, em vez disso, mobilizar as mulheres, nos estados em que estas tinham direito a voto, nosentido de usarem o voto para punir o partido no poder, um modelo de ao organizada desenvol-vido pelas sufragistas britnicas no contexto de um sistema parlamentarista (VAN VORIS, 1987, p. 120e 131). Conquanto grande parte do dissenso estivesse centrada em questes de no-partidarismo ebipartidarismo, tambm verdade que a estratgia de mobilizar seus membros enquanto eleitoresno era familiar a muitas organizaes de mulheres.

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    1967) proporcionaram uma fonte adicional de isolamento, protegendo avida interna da organizao tanto das restries ambientais, que poderiamfavorecer formas burocrticas dirigidas a objetivos instrumentais discretos,como do veto das faces conservadoras internas a determinado grupo.

    A demanda instrumental por organizao burocrtica

    A exigncia de eficcia na organizao burocrtica hierarquizada foi oprimeiro argumento substantivo de Michels (1962) e continua amplamenteaceito, mesmo entre seus crticos:

    indiscutvel que a tendncia oligrquica e burocrtica da organizao partidria

    uma questo de necessidade tcnica e prtica. o produto inevitvel do prprioprincpio de organizao. Nem mesmo a ala mais radical dos vrios partidos so-

    cialistas levanta qualquer objeo a esta evoluo regressiva, com o argumento de

    que a democracia apenas uma forma de organizao e que, onde no for possvel

    harmonizar democracia e organizao, melhor abandonar a primeira do que a

    ltima. Sendo o nico meio para alcanar os objetivos do socialismo, a organizao

    considerada como compreendendo em si mesma o contedo revolucionrio do

    partido, e esse contedo essencial no deve nunca ser sacrificado em nome da forma

    (MICHELS, 1962, p. 72).

    Conquanto seja possvel imaginar circunstncias nas quais os gruposoposicionistas fiquem imunes s lgicas econmica e poltica da incor-porao conservadora, esta alegao a base da afirmao de Michelsde que quem diz organizao diz oligarquia e, por extenso, que a or-ganizao acarreta transformaes conservadoras, tanto internas comoexternas. Em sua forma mais simples, o argumento desenvolvido daseguinte maneira: (1) burocracias hierrquicas e centralizadas so a

    forma mais eficaz de organizao; (2) por conseguinte, os partidos einstituies polticas existentes adotaram essa forma de organizao;(3) na busca por atingir seus fins, os partidos de oposio adotaro essamesma forma organizacional por razes estratgicas, mesmo s custas deseus compromissos ideolgicos; (4) portanto, o crescente isomorfismoorganizacional conduzir os partidos oposicionistas a se tornarem se-melhantes aos grupos polticos estabelecidos, impedindo a possibilidadede mudana poltica significativa.

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    Esse argumento pode ser contestado em pelo menos dois pontos. Dis-cutirei o primeiro a suposio de que h uma nica forma de hierarquiaburocrtica para a qual todas as organizaes evoluem na busca de eficcia no contexto de um modelo alternativo a ser desenvolvido mais abaixo. Osegundo, contudo, diz respeito suposio de que a adoo, por um grupode oposio, das formas organizacionais existentes tem necessariamente umainfluncia conservadora ou moderadora em seu posicionamento crtico comrelao s instituies polticas existentes e pe em perigo sua democraciainterna. Como a poltica se estrutura por normas interseccionadas comoorganizar, quem deve organizar, e para que organizar , possvel que a ado-o de modelos organizacionais convencionais possa ser desestabilizadora,

    na medida em que exponha contradies no sistema existente.Muitos dos primeiros esforos desenvolvidos pelas mulheres politicamen-

    te ativas aceitaram tanto os modelos institucionalizados da poltica americanacomo a diviso cultural tradicional do mundo social em esferas separadaspara homens e mulheres. Mas esse emprstimo revelou incompatibilidadesentre os sistemas organizacionais da poltica e do gnero. As tentativas dasmulheres no sentido de se utilizarem de mtodos polticos passveis de re-conhecimento acabaram finalmente por exigir a negao do sistema dual de

    esferas separadas. Inicialmente, as instituies polticas de mulheres foramamplamente autnomas. Em 1848, a Conveno dos Direitos das Mulheres,realizada em Seneca Falls, emitiu uma Declarao de Princpios formal,e Elizabeth Cady Stanton declarou que a prpria mulher precisa fazer estetrabalho; pois s a mulher pode entender a altura, a profundidade, a extensoe a amplitude de sua degradao (apudFLEXNER, 1970, p. 77). Por voltada segunda metade do sculo, as organizaes de mulheres promoviamParlamentos de Mulheres como fruns nos quais as mulheres podiam

    debater e tornar pblicas as suas opinies. Ao longo do resto do sculo XIX,elas se utilizaram desse modelo de uma comunidade poltica distinta, emparalelo com as esferas separadas. Em 1892, por exemplo, o Parlamento deMulheres da Califrnia se reuniu para a plena e livre discusso de reformasnecessrias ao progresso do trabalho das mulheres na igreja, no lar e nasociedade (1892, p. 1). O trabalho das mulheres foi redefinido em termosmais propriamente pblicos do que nos termos religiosos tradicionais, masmanteve sua identidade como um domnio caracteristicamente feminino. En-tretanto, por volta do final do sculo, a atrao por essa forma de organizao

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    poltica se desgastou, em parte como decorrncia de seu prprio sucesso. Aoestabelecerem um terreno comum para o envolvimento pblico e os ideaisdomsticos, os parlamentos ajudaram a tornar mais amplamente aceitvel aideia do envolvimento poltico das mulheres. Porm, como os parlamentoseram muito facilmente associados com a questo altamente controvertidado voto feminino, as mulheres muitas vezes encontravam menos oposioquando buscavam seus objetivos por meio de modelos organizacionais noderivados diretamente do sistema poltico existente.

    Mas como seriam esses modelos organizacionais? Para as associaesde mulheres, e particularmente para as organizaes sufragistas, o dilemaimediato era o de que quaisquer vantagens instrumentais da forma burocr-

    tica centralizada e hierrquica iam contra um dos objetivos centrais dessesgrupos: a demonstrao de que as mulheres eram capazes de ser cidadsindependentes ao invs de estarem sujeitas indevida direo de padres,maridos ou outras autoridades9. Por conseguinte, no era suficiente subs-tituir as organizaes burocrticas dirigidas por homens por associaesvoluntrias burocrticas lideradas por mulheres de elite. Desde o nvel dossales locais at o das convenes nacionais, era dada ateno forma senem sempre substncia da organizao participativa e ao procedimento

    apropriado10

    . Em So Francisco, o clube Richelieu era composto em suamaioria por presidentes de outros clubes (...). O objetivo do clube desen-volver o treinamento nos usos parlamentares com vistas a um conhecimentomais acurado dos direitos sobre o plenrio e dos deveres da presidncia deuma assembleia (Club Life, outubro de 1902, p. 3). Os jornais das mulheresdavam regularmente destaque aos exerccios sobre o processo parlamentar.

    9 Esta era uma preocupao especfica no que diz respeito concesso do direito de voto s mulheresem comunidades de imigrantes recentes. As sufragistas e os eleitores de origem anglo-sax estavaminseguros quanto a se esses grupos votariam nos verdadeiros interesses das mulheres e crianasou se seriam influenciados para opor-se s restries ao consumo de bebidas alcolicas e a outrasreformas sociais: provvel que as escravas assalariadas de nossas grandes lojas de departamentos,de nossas camisarias e de estabelecimentos manufatureiros de vesturio, e de outras indstrias queempregam, com salrios de fome, grande nmero de mulheres e [que as] jovens eleitoras em potencialse arrisquem perda do emprego e da ninharia que recebem, votando contra o desejado por seusempregadores? (Wisconsin Equity News, v. 4, n. 18 [25 de janeiro de 1912]; nfases no original).

    10 At mesmo a deciso quanto a organizar-se ou no podia ser carregada de um peso simblico. AConveno Nacional sobre os Direitos da Mulher, de 1852, havia derrotado uma proposta para formaruma associao nacional, rejeitando qualquer tipo de organizao formal, na mesma linguagem usadapelos abolicionistas radicais e por espiritualistas em transe [trance-speaking spiritualists]: a autoridadesecular constitua uma afronta autossoberania do indivduo e sua submisso a autoridades maiselevadas (BRAUDE, 1989, p. 162-163; PERRY, 1973, p. 114).

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    Embora algumas organizaes fossem dominadas por uma nica figuranacional (como a WCTU sob a direo de Frances Willard), a GFWC ele-gia regularmente novas presidentes e, em quase todos os casos, a estruturafederada e as divises departamentais complexas dessas associaes pro-porcionavam considervel oportunidade e permitiam participao flexvelno movimento da mulher. Embora um mapa organizacional dos principaisgrupos de mulheres pudesse apresentar muitos traos de uma burocraciaclssica, as carreiras individuais raramente envolviam uma progresso regularem uma hierarquia de cargos, sugerindo que esses grupos acomodavam ascambiantes obrigaes familiares e econmicas das ativistas (CLEMENSe LEDGER, 1992). Conquanto admitindo a especializao interna da cor-

    porao moderna, as mulheres foram muito mais ambivalentes quanto aestabelecer uma clara hierarquia de autoridade. Embora tanto os estudos depoltica de grupos de interesse como os de movimentos sociais tenham vistoa organizao em termos de sua contribuio para objetivos instrumentaisde mudana poltica e legislao, as vantagens da centralizao e da espe-cializao podem ser mitigadas pelos significados atribudos aos modelosorganizacionais e diferenciada capacidade das formas organizacionais comvistas a manter o envolvimento.

    Esta breve viso geral das organizaes de mulheres estabelece, contudo,as premissas a partir das quais preciso dar forma a uma explicao alterna-tiva da organizao poltica e da mudana institucional. O primeiro ponto que a escolha de modelos organizacionais no governada apenas porconsideraes instrumentais. As culturas possuem regras a respeito de quemdeve organizar, de que maneira e para que propsitos; consequentemente, aescolha de um modelo convencional por um grupo no convencional podeno produzir a eficcia e nem as transformaes conservadoras sugeridas

    pela anlise de Michels. O segundo que as sociedades complexas apre-sentam muitos modelos possveis de organizao mltiplas combinaesentre hierarquia, centralizao, autoridade e intercmbio que podem sersimultaneamente legtimos e incompatveis. Os americanos do final dosculo XIX estavam familiarizados tanto com as formas hierrquicas e cen-tralizadas do partido de patronagem como com a corporao moderna, masa poltica do perodo muitas vezes retratada como um conflito entre essesdois modelos de organizao da vida pblica. Na medida em que um grupocontestatrio possa ser imune ao processo de incorporao j discutido,

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    tanto o seu potencial para causar a mudana institucional como o carterdessa mudana refletiro a gama de modelos alternativos disponveis nosrepertrios de organizao de seus membros.

    Repertrios de organizao: uma abordagem alternativa

    Para grande parte da sociologia poltica, as organizaes importam en-quanto recursos; elas possibilitam a ao coordenada e tornam mais provvelo sucesso. Por outro lado, tambm j se demonstrou o papel das organizaesno bloqueio da ao; compromissos anteriores e redes estabelecidas podemtornar difceis novos padres de mobilizao (CONNELL e VOSS, 1990).Mas a organizao tem consequncias para alm do prprio processo de

    mobilizao. Conforme um grupo se organiza de uma maneira particular,adota um modelo especfico de organizao, ele sinaliza sua identidade tantopara seus prprios membros como para outros. Os modelos de organizaofazem parte do ferramental cultural de qualquer sociedade e, assim comopreenchem funes instrumentais, preenchem tambm funes expressivasou comunicativas. Alm disso, a adoo de uma forma particular de organi-zao influencia os vnculos que um grupo organizado estabelece com outrasorganizaes. O modelo de ao coletiva escolhido conforma as alianas com

    outros grupos e as relaes com as instituies polticas. Tanto no mbitocultural como no institucional, os modelos de organizao e de atividadecoletiva so mecanismos centrais na transformao dos sistemas polticos.Uma vez que a forma organizacional vista como sendo simultaneamenteuma afirmao de identidade e constitutiva de campos institucionais maisamplos, os movimentos sociais aparecem como no apenas veculos deinteresses preexistentes e causas de efeitos polticos especficos, mas comofontes cruciais de mudana institucional.

    A linguagem da anlise cultural ajuda a compreender tal mudana.Se o legado cultural de uma sociedade constitudo por um conjunto demodelos de ao e de modelos para a ao (GEERTZ, 1973), ou seja, umrepertrio organizacional, a apropriao de cada um desses possveis modelosno igualmente provvel. Ao invs disso, alguns modelos so privilegiadospelas distribuies de poder, statuse riqueza existentes, bem como pelosarranjos institucionais estabelecidos. Em um nvel mais bsico, h certasvantagens na familiaridade: At mesmo autoridades governamentais e di-retores industriais de nosso prprio tempo geralmente se comportam como

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    se preferissem demonstraes ou greves a formas de ao coletiva totalmenteno-convencionais (TILLY, 1986, p. 391). Tericos de organizao enfatiza-ram esse processo, explorando as maneiras pelas quais a conformidade comas normas institucionais produz crescente homogeneidade no interior doscampos organizacionais (DiMAGGIO e POWELL, 1983; MEYER e ROWAN,1977). Contudo, se se reconhece um repertrioestabelecido de formas acei-tveis ao invs de uma nica norma institucional, processos de isomorfismoinstitucional podem tambm promover mudana em um sistema social.

    Consideremos as seguintes possibilidades. Um grupo se encontra em umasituao na qual os modelos de organizao estabelecidos e os cursos de aoso inadequados. Isso pode ocorrer por muitas razes: os modelos existentes

    podem ser ttica ou culturalmente desacreditados (como o eram, para a Sra.Croly, a manipulao e outros mtodos polticos); os modelos existentespodem estar indisponveis ou fora de alcance (como estava a poltica eleitoralpara a maioria das mulheres americanas); ou nenhum dos modelos de aoestabelecidos pode ser associado a essa situao (por exemplo, os mtodospara responsabilizar os legisladores por votos especficos, anteriormenteao desenvolvimento de compromissos pr-eleitorais e do sistema de votoaberto no legislativo). Confrontados com situaes anlogas, os tericos de

    organizao e deciso desenvolveram explicaes sobre os procedimentosde busca. Essas explicaes estabelecem tipicamente alguma relao sejaproposital ou estocstica entre um ambiente que proporciona mltiplassolues potenciais e alguns critrios ou procedimentos de seleo11. Umavez selecionada, a soluo ou modelo organizacional particular tem, ento,consequncias tanto para o ambiente como para o sistema de relaes entreorganizaes. Determinadas escolhas podem produzir organizaes que fa-am suficientes demandas em seu ambiente a ponto de induzir a formao de

    novas organizaes (WESTNEY, 1987). Ao mesmo tempo, a escolha de ummodelo pode levar a organizao a ficar mais prxima de alguns grupos e aenfraquecer outros vnculos interorganizacionais. Por exemplo, os professorespodem escolher afiliar-se a um grupo ocupacional baseado no modelo dosindicato trabalhista ou a outro, segundo as profisses. Esta diferena, porsua vez, estabelece padres distintos de alianas com outras organizaes,tais como a AFL-CIO ou a Associao Mdica Americana (HESS, 1990).

    11 Ver, por exemplo, Heclo (1974); Kingdon (1984); March e Olsen (1989) e Meyer e Rowan (1977).

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    Aplicada ao estudo da mudana poltica, esta explicao salienta a impor-tncia do conjunto de modelos organizacionais disponveis e do processo deseleo. O repertrio de organizao tanto reflete como ajuda a dar forma aospadres de organizao social. Assim como qualquer indivduo ou grupo oadquire, um repertrio em grande medida constitudo pela experincia epela percepo das formas existentes de organizao social. Sabemos o que fazer parte de um comit, de uma comunidade ou de um peloto porqueparticipamos, observamos ou ouvimos falar dessas diferentes formas deorganizao12. De modo similar, sabemos o que diferentes modelos organi-zacionais significam no que diz respeito s expectativas e comportamentosdos membros, assim como no que concerne identidade coletiva apresen-

    tada aos outros. Assim, o uso inicial de formas conhecidas por novos gruposprovoca um efeito desestabilizador sobre as convenes de organizaoexistentes. Por exemplo, as mulheres engajadas em organizaes sociais e/ou cvicas denominadas clubes, hoje figuras moderadas e com um charmeum tanto antiquado, adotaram, na poca, tal denominao em violao sconvenes femininas estabelecidas. Embora o termo clube fosse rejeitadopor algumas delas como um rtulo masculino, os grupos mais ousados,como oNew England Womens Club, deliberadamente escolheu clubepara

    indicar um rompimento com a tradio; [pois] no queria ser associado comas sociedades de benemerncia (MARTIN, 1987, p. 63; nfase no original;ver tambm RUDDY, 1906, p. 24). Para os de fora, a forma organizacionalera um sinal das novas qualidades e objetivos desses grupos.

    Qual o propsito? era a primeira pergunta sobre qualquer organizao de mulheres

    e, se a resposta no fosse fazer peas de vesturio, coletar fundos para uma igreja ou

    um propsito filantrpico, a organizao no era considerada merecedora de ateno

    ou se lanavam dvidas injuriosas sobre suas motivaes (CROLY, 1898, p. 9).

    12 Neste sentido, o conceito de um repertrio de organizao sintetiza o modelo de ferramentalcognitivo ou cultural dos trabalhos recentes de teoria do movimento social (TILLY, 1978; TILLY, 1986),combinando-o com as explicaes institucionalistas correntes na teoria da organizao. Diferente-mente do novo institucionalismo da economia ou da cincia poltica, com suas preocupaes comcustos transacionais e processos de deciso governados por normas (WILLIAMSON, 1985; SHEPSLE eWEINGAST, 1987), no contexto da sociologia e da teoria da organizao, as instituies so aquelasconvenes que assumem um statuscom carter de norma [a rule-like status] no pensamento e naao social (MEYER e ROWAN, 1977; DiMAGGIO e POWELL, 1991). Contudo, na medida em que oconceito de repertrio organizacional implica mltiplos conjuntos de convenes, esse status comcarter de norma necessariamente contextual e sujeito a mudana.

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    Distanciando-se das associaes religiosas e das sociedades de beneme-rncia, os clubes de mulheres se constituram como uma coisa absoluta-mente nova sob o sol (WOOD, 1912, p. 188). E, ao definir-se por meio daapropriao de modelos organizacionais no tradicionalmente associadoscom grupos femininos, o movimento dos clubes de mulheres constitui umexemplo claro de inovao baseada nos materiais disponveis. Esse processode mudana organizacional atravs do rearranjo dos repertrios existentescaracterizou o movimento da mulher como um todo.

    Uma vez que um grupo tenha usado pioneiramente um modelo organiza-cional em uma nova arena, esse modelo pode, ento, ser adotado e utilizadopor outros grupos. Embora o fundamento racional para a adoo possa

    derivar de vantagens estratgicas momentneas, a adoo em ampla escala uma fonte de mudana fundamental nas categorias organizatrias do sistemapoltico. Voltando ao caso especfico da mudana poltica nos Estados Unidos,sustento que a mudana de foco do regime eleitoral de partidos altamentecompetitivos para o da negociao legislativa e administrativa dos gruposde interesse pode ser compreendida atravs do exame dos experimentosorganizacionais de grupos comparativamente desfavorecidos sob o primeirodesses regimes. A subsequente alterao nas caractersticas do repertrio de

    organizao disponvel o conjunto reconhecido de opes polticas deulugar, ento, a um sistema em que essa forma de mobilizao tornou-se partedaquilo que considerado como no sujeito a discusso. Escrevendo em1907, John R. Commons, um proeminente economista e reformador social,observou que no h nenhum movimento, nos ltimos vinte anos, maissereno e potente do que a organizao dos interesses privados. Nenhum outropas do mundo apresenta um espetculo to interessante (1967 [1907], p.359). Com relao s convenes da ao e organizao poltica, esse novo

    sistema acarreta um foco dirigido preferencialmente para a poltica legisla-tiva do que para a poltica eleitoral, com a consequente organizao baseadaantes na delimitao de questes especficas do que em filosofias polticasabrangentes. Como se queixou um comentador nos anos 1920:

    A atual era de sindicalizao, de ligas, sociedades, alianas, conluios e camarilhas,

    oferece [a oportunidade de] alianas para apoio mtuo entre quase todos os interesses

    concebveis, exceto para os diversificados interesses dos humildes na aplicao da lei

    geral. Com suas frentes unidas, banqueiros, corretores, leiteiros, detetives, esportistas,

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    motoristas, estalajadeiros, barbeiros, plantadores de hortel, tocadores de sinos suos,

    et al., podem apresentar, e efetivamente apresentam, suas reclamaes ao legislativo

    em busca de mudanas (WISMER, 1928, p. 172).

    Embora os industriais tenham organizado associaes corporativasno partidrias tanto nos Estados Unidos como na Europa, somente nosEUA o interesse preferencialmente ao partido, classe, linguagem ou religio tornou-se o idioma primordial da vida poltica, uma forma leg-tima, ainda que no necessariamente bem-vinda, de organizao poltica13.Apresentar demandas especficas ao legislativo no era uma coisa nova emsi mesma, mas anteriormente elas tomavam a forma de peties, de projetos

    legislativos direcionados a indivduos, ou do considervel suborno dos AnosDourados (THOMPSON, 1985). O que era novo era o exerccio de pressocom respeito a questes especficas utilizando-se da educao poltica, daopinio pblica, do testemunho de especialistas, e das crescentemente sofisti-cadas tticas legislativas utilizadas por organizaes dedicadas a determinadasquestes ou com base em clientelas especficas.

    Esse novo sistema de organizao poltica se desenvolveu a partir de umecltico processo de reorganizao. Ao invs de aceitar um nico modelo

    para a ao poltica, os grupos se valeram tanto dos modelos tradicionaiscomo dos mais modernos utilizados pelos propugnadores do bom governo,valendo-se tambm da imitao daquilo que houvesse funcionado para seusfrequentes oponentes, as corporaes e as mquinas polticas. Por volta de1890, por exemplo, associaes contrrias ao consumo de bebidas alcolicase grupos de mulheres j haviam estabelecido suas prprias organizaesdistritais e departamentais para exercer presso focalizada sobre instituiesgovernamentais especficas (BORDIN, 1981; KERR, 1980). Na Califrnia, aWomens Christian Temperance Union

    exercia influncia mais do que proporcional ao seu tamanho, em virtude de contar

    com forte apoio da igreja e de sua capacidade de cooperar facilmente com todas as

    outras organizaes contrrias s bebidas alcolicas, e tambm porque, diferentemente

    das sociedades de ajuda mtua [fraternal societies], devotava suas energias quase que

    inteiramente mobilizao e ao trabalho pela reforma. Baseando-se no modelo da

    WCTU nacional, a organizao estadual estabeleceu muitos departamentos, trinta

    13 Ver tambm Clemens (1990a); Maier (1981); McCormick (1986); Reddy (1987) e Rodgers (1987).

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    ao todo, cada um deles se concentrando em um aspecto do trabalho de combate ao

    consumo de bebidas alcolicas (OSTRANDER, 1957, p. 58).

    Reconhecendo a necessidade de criar um contraponto poltico e umveculo para influenciar a opinio pblica, a indstria de bebidas alcolicasrespondeu pela apropriao de um modelo ento desconhecido na polticadas empresas:

    Os negociantes de bebidas constituram uma organizao que, pelo menos pelo

    aspecto exterior, se baseava em uma ideia nova para a Califrnia. Organizaram o

    que foi tornado pblico como uma associao de homens favorveis moderao

    do consumo de lcool. Seguindo o exemplo de muitas organizaes antialcolicas,os negociantes de bebidas adotaram um modelo baseado no esquema manico. A

    nova organizao foi chamada de Knights of the Royal Arch[Os Cavaleiros do Arco

    Real] e, em abril de 1902, a Grande Loja dos Cavaleiros do Arco Real se estabeleceu

    em So Francisco (OSTRANDER, 1957, p. 100).

    Com seus funcionrios exoticamente titulados e, sem dvida, com seusapertos de mo secretos, essa inovao dos interesses dos negociantes debebidas parece retrgrada, distanciando-se da moderna poltica de interes-

    ses, com base na opinio pblica e nas assessorias especializadas ao invsda solidariedade fraternal. Mas, conceber a mudana institucional comoproduto de novas aplicaes de repertrios organizacionais existentes no afirmar que todas as aplicaes desse tipo sero eficazes. Se os negociantesde bebidas da Califrnia se engajaram em uma forma retrospectiva de em-prstimo organizacional, os defensores do combate s bebidas alcolicas, eespecialmente os grupos de mulheres, ajudaram a transformar o significadode modelos polticos corporativos como o lobby. No processo, um modelo que

    fora associado com prticas corruptas era agora transformado e legitimadocomo um componente plenamente aceito da ao poltica.Esta explicao das mudanas nas formas de organizao poltica gera

    uma srie de proposies bastante diferentes daquelas associadas com omodelo Michels-Weber. Em primeiro lugar, ao invs de identificar uma ten-dncia unilinear para a criao de formas burocrticas e hierrquicas, estaexplicao alternativa sugere que devemos esperar encontrar grande quan-tidade de trabalho cultural em torno de questes como Que tipo de gruposomos ns? e O que fazem grupos como ns?. As conexes entre a anlise

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    cultural e a anlise organizacional so claras; os modelos de organizao noso apenas convenes para coordenar as aes, mas tambm declaraesdo que significa para determinadas pessoas organizar-se de determinadasmaneiras para determinados propsitos (KANTER, 1972).Em segundo lugar,devemos esperar que tanto a substncia desses debates como os padres demobilizao subsequentes variem segundo o conjunto de modelos orga-nizacionais cultural e experiencialmente disponveis para um dado grupoem um momento determinado. Em terceiro lugar, padres de organizaoem resposta a situaes novas ou ambguas devem ser conformados peloslaos que determinado grupo mantm com outros grupos engajados em ummodelo particular de organizao. A escolha de uma forma organizacional

    especfica deve, ento, fortalecer os laos entre algumas organizaes aomesmo tempo em que enfraquece outras.

    Na prxima seo deste artigo, explorarei cada uma dessas proposies,usando exemplos do movimento da mulher da virada do sculo. No estouafirmando que os grupos de mulheres foram os nicos a adotar novos mo-delos de organizao (na verdade, meu argumento sugere que os modelosde organizao disponveis so provavelmente apreendidos e utilizadospor mltiplos grupos), mas apenas que os grupos de mulheres estavam

    particularmente bem situados tanto por estarem constrangidos pela faltade alternativas viveis como por serem relativamente imunes s lgicas deincorporao discutidas anteriormente para explorar o potencial de mo-delos organizacionais que, na poca, eram de introduo recente na arenapoltica.

    Gnero e organizao poltica

    No decurso do sculo XIX, intensificou-se o papel do gnero na definio

    da identidade poltica. Na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado,de 1791, e na Dcima Quarta Emenda Constituio dos Estados Unidos,o direito ao voto era definido como prerrogativa exclusiva dos homensadultos (CATT e SHULER, 1926, p. 32-45; LANDES, 1988, p. 122). NosEstados Unidos, essas excluses formais foram reforadas por uma densarede de associaes polticas. Na medida em que as associaes polticas sebaseavam em identidades relacionadas com o local de trabalho, os padresdiferenciados de envolvimento de homens e mulheres no mercado de tra-balho asseguravam que essas associaes fossem primariamente grupos de

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    um nico sexo. Similarmente, na medida em que a mobilizao poltica davirada do sculo nos EUA se baseou nas organizaes fraternais do sculoXIX, ela perpetuou as culturas polticas masculina e feminina nitidamenteseparadas daquele perodo (BAKER, 1984; CLAWSON, 1985). Conquantoorganizaes como a dos Good Templars[Bons Templrios] e a dos Patrons ofHusbandry[Defensores da Agropecuria] (tambm conhecida comoGrange)tenham abraado as questes morais de preocupao das mulheres e, porvezes, permitido a filiao de mulheres, a organizao poltica dos homensinfluenciou poderosamente a participao das mulheres em todos os casosdo final do sculo XIX.

    Contudo, a poltica das mulheres no foi inteiramente derivada da poltica

    masculina. Na introduo do seu estudo compreensivo sobre o movimentodos clubes de mulheres nos EUA, Jennie June Croly proclamou: quandoa histria do sculo XIX vier a ser escrita, as mulheres aparecero, pela pri-meira vez na histria do mundo, como organizadoras e lderes de grandesmovimentos organizados entre [pessoas] de seu prprio sexo (CROLY,1898, p. 1). Em parte, os modelos de ao poltica das mulheres derivaramde sua histria de participao pblica: a revivescncia da era jacksonianaecoou no fervente chamamento por reformas feito pela Womens Christian

    Temperance Union(EPSTEIN, 1981; SMITH-ROSENBERG, 1985, p. 129-164)e as reformadoras sociais se valeram do legado das visitaes caritativas eda prestao pessoal de servios aos pobres (McCARTHY, 1982, p. 3-24). Asmulheres de classe mdia e de classe mdia alta, em particular, adotaram osmodelos da reunio de salo e da sociedade de benemerncia, adaptando-osgradualmente como veculos para um papel de maior porte nos assuntospblicos. Sem desafiar diretamente o carter fundamentalmente fraternoda vida poltica, as mulheres se valeram de modelos de ao domsticos e

    religiosos para comear a construir um papel pblico para si prprias. Mas aduradoura excluso poltica das mulheres significou que seu ativismo viessea ser particularmente disruptivo para a ordem poltica. O quebra-cabea,portanto, diz respeito a explicar como os grupos de mulheres foram capazesde transformar sua identidade pblica de uma forma que contornou, emgrande medida, a equao implcita entre poltica e masculinidade.

    Nesse empreendimento, as ativistas se utilizaram de um repertrioorganizacional que lhes era familiar enquanto membros da sociedade ame-ricana, se no necessariamente atravs de sua experincia direta nos grupos

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    de mulheres:O clube de mulheres no foi um eco; no foi o mero agrupamento para um prop-

    sito social ou econmico, como os clubes de homens. Ele se tornou imediatamente,

    sem inteno deliberada ou ao concertada, um centro iluminador e semeador de

    atividade puramente altrustica e democrtica (CROLY, 1898, p. 13).

    Havendo se apropriado de um modelo masculino de organizao, asmulheres de clube continuaram a transformar seu movimento por meio daimitao organizacional. Uma das sucessoras da Sra. Croly como presidenteda General Federation of Womens Clubscomemorou explicitamente a ino-vao do movimento, conquanto reconhecendo sua base na imitao. Seu

    pequeno livro, The Business of Being a Clubwoman,

    no trata de propsitos ou programas, mas das maneirasde conduzir nossas ativi-

    dades. Precisamos aprender a evitar velhos erros e conquistar nossos objetivos por

    caminhos mais diretos. Podemos aprender com nosso prprio passado. E ningum

    pode ajudar-nos alm de ns mesmas. Faculdades e cientistas sociais, assim como

    especialistas de vrios tipos podem ajudar-nos nos assuntos sobre as quais estamos

    trabalhando, mas, quanto s maneirasde trabalhar, precisamos forjar nossa prpria

    trilha (WINTER, 1925, p. vi; nfases no original).

    A necessidade de inventar novas maneiras de trabalhar foi um produtodo repertrio organizacional que essas mulheres economicamente privile-giadas herdaram do sculo XIX, combinado com sua dupla excluso, dasorganizaes masculinas e da poltica partidria. Confrontadas com essasrestries, as militantes dos clubes e suas parceiras de mesma condio socialforam compelidas a inovar.

    Embora a vida clubstica fosse, para muitas mulheres, a forma inicial de

    ingresso esfera das questes pblicas, trs outros modelos de organizaoforam centrais para o desenvolvimento de uma estratgia mais especifica-mente poltica para mulheres. Em primeiro lugar, elas se utilizaram de formasempresariais e de operaes financeiras para substituir a prestao pessoalde servios como meio preferencial de ao social. Alm disso, os gruposde mulheres internalizaram as formas e mtodos burocrticos do Estadomoderno, medida que se voltaram com mais frequncia para os governosestaduais e federal, e no s suas prprias comunidades locais, como asarenas apropriadas para a ao poltica (BAKER, 1991). O desenvolvimento

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    final envolveu a reavaliao cultural positiva do modelo do lobby. Levandoao extremo essas trs mudanas organizacionais, chega-se figura modernado grupo de interesse ou do grupo atuante sobre uma questo especfica(issue group), com sua utilizao de literatura educativa e do testemunho deespecialistas com vistas a assegurar financiamento federal para algum tipode programa. Por mais perene que essa forma de ao poltica possa pareceratualmente, ela foi uma inveno da Era Progressista, e os grupos de mulherestiveram um papel central em sua elaborao e legitimao.

    A organizao como empresa

    Todos esses esforos para a organizao das mulheres e suas atividades ocor-

    reram durante um perodo hoje amplamente reconhecido como uma revoluoorganizacional. Consequentemente, ao invs de confinar a anlise s relaesentre os grupos de mulheres e a poltica, precisamos considerar a influnciade vastas transformaes no repertrio mais amplo de organizao social nosEstados Unidos do sculo XIX. Nesse sentido, foi de particular importncia a ex-panso do mercado e o desenvolvimento de novas formas de relaes comerciais(CHANDLER, 1977). Enquanto as relaes hierrquicas da corporao tinhamimplicaes confusas para a autoapresentao das mulheres como cidads inde-

    pendentes, o mercado aparecia como peremptoriamente moderno.Para os grupos de mulheres, contudo, a adoo de mtodos empresa-

    riais tinha consequncias que no apareciam nas atividades dos homens,j imersos em um sistema de relaes de mercado. Parte do tornar-se umaorganizao moderna envolvia a substituio da prestao pessoal de serviospor atividades envolvendo operaes com dinheiro. Falando ao Parlamentodas Mulheres da Califrnia sobre o Trabalho das Mulheres na Igreja, em1892, a reverenda Lila F. Sprague declarou que

    a mulher de hoje est inaugurando uma poca de convico; a de que muito melhor,

    para todos os envolvidos, dar cinco dlares em dinheiro para as necessidades da igreja,

    do que dez dlares em bolos ou tortas a serem vendidas para ajudar os pobres, os

    quais, com a presena de muita gente e com grande esforo, podem render um ou

    dois dlares (apudWomans Parliament of Southern California, 1892, p. 8).

    Ao longo da Era Progressista, o conflito entre os grupos de mulherestradicionais e ativistas continuou a ser expresso em termos do papel do

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    dinheiro. O apelo por dinheiro, entretanto, tinha que se confrontar com ofato de que muitas mulheres tinham apenas um acesso limitado a fundosprprios. Por conseguinte, a dependncia da produo domstica dos bolose tortas e dos artigos de bazar prosseguiu juntamente com o esforo porangariar fundos na base de uma identidade feminina mais moderna, a deconsumidora. Destacadas associaes sufragistas patrocinavam jejuns deconsumo nos quais as mulheres se comprometiam a deixar de consumircosmticos e outros produtos de luxo por uma semana, enviando o dinhei-ro assim poupado para financiar a luta pelo direito ao voto. Organizaesmais radicais tentaram romper a ligao entre a arrecadao de fundos e ospapis tradicionais das mulheres como prestadoras de servios de caridade e

    consumidoras. Em Wisconsin, a lder da Political Equality League[Liga pelaIgualdade Poltica] declarou:

    que ela no realizar vendas de livros de cozinha ou cartes postais para uma cam-

    panha de levantamento de fundos e que, alm disso, se for para haver esse tipo de

    campanha, ela procurar um lugar agradvel perto do Lago Superior e se aposentar

    por l. Promessas, assinala a Sra. Wagner, no pagam as contas e mendigar dinheiro

    humilhante (Racine News, 11 de julho de 1911, Wisconsin Woman Suffrage Scra-

    pbooks).

    A mudana para mtodos empresariais caracterizou tanto a prestao deservios como as subscries em dinheiro. Conquanto os contatos pessoaisentre as mulheres caridosas e suas clientelas pobres houvesse, outrora, sidovistos como centrais para o projeto de elevao moral, essa visitao ami-gvel estava crescentemente sob ataque. Da perspectiva da benemernciacientfica, essa forma de ajuda era ineficaz; do ponto de vista dos desfavo-recidos e seus defensores, era muitas vezes humilhante. Em resposta a essas

    queixas, voluntrias em numerosas cidades patrocinaram grandes feiras ouestabelecimentos [Womens Industrial Exchanges] onde operrias pudessemvender produtos de fabricao caseira, bolos e tortas, e trabalhos em bordado,ao passo que as associaes de caridade se reuniram como Sociedades deOrganizao de Benemerncia, buscando coordenar tanto a arrecadaode fundos como a prestao de servios. Na verdade, a misso das novasassociaes de benemerncia cientfica iria muito alm da dependncia devoluntrias.

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    A convergncia dessas tendncias no sentido das contribuies em dinhei-ro e das auxiliares remuneradas pode ser observada em um novo programaestabelecido por uma organizao de So Francisco, aAssociated Charities[Associao de Instituies de Benemerncia], na qual as mulheres detinhamconsidervel poder. Na esteira do terremoto de 1906, aAssociated Charitiesfoi o conduto principal tanto para o auxlio federal como para os fundos deajuda recolhidos por todo o pas, e a partir desse momento desenvolveu ohbito de operar com base em dinheiro. Mais tarde, em resposta situaodas mulheres e crianas desamparadas, as mulheres ligadas a essa Associaoestabeleceram aquilo que um informe descreveu como a mais importanteinovao sociolgica j feita em So Francisco14. Dando sequncia a um

    esforo anterior para retirar as crianas abandonadas da tutela do Estado,aAssociated Charitiessimplesmente pensionou bebs com US$ 12,50 porms. De modo similar s posteriores penses para as mes, esse programaproporcionou s mulheres o dinheiro para sustentar seus filhos. Diferen-temente das penses para as mes, entretanto, o dinheiro, neste caso, eraganho pelas mulheres por meio do ingresso em uma explcita relao deemprego com uma agncia pblica. Para as voluntrias de benemernciaem So Francisco, o potencial de persuaso moral ou de controle social ra-

    pidamente perdeu importncia em comparao com o comprovado poderdo dispndio monetrio15.

    A capacidade de despender recursos financeiros era tambm um sinalde cidadania poltica plena. Relatando suas contribuies para a ExposioPanam-Pacfico de So Francisco, em 1915, o Conselho de Mulheres in-formou que:

    A cooperao da mulher em outras exposies mundiais incluiu necessariamente

    uma conta de fundos provenientes de fontes oficiais. No esse o caso do Conselho

    14 Cf. Anna Pratt Simpson, The Story of Associated Charities since the Fire of 1906. Estes artigos apa-receram originalmente no San Francisco Call, em 1909 (Bancroft Library, Universidade da Califrnia,Berkeley).

    15 A influncia desse modelo de emprego evidenciada por uma comparao com as conseqnciasorganizacionais de iniciativas de socorro aps o Incndio de Chicago, de 1871. Enquanto as AssociatedCharities

    de So Francisco estabeleceram relaes contratuais com seus clientes que, por isso, ganha-vam poder como trabalhadores que se auto-sustentavam, a Chicago Relief Association, dominadapelos industrialistas, usou sua autoridade sobre o desembolso dos fundos de ajuda para controlar asorganizaes de benemerncia da cidade por meio de uma verso filantrpica do truste, exigindorepresentao nos conselhos em troca de doaes (McCARTHY, 1982).

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    de Mulheres, que ajudou na criao da Cidade dos Sonhos de So Francisco, em

    1915, e contribuiu para uma pitoresca e notvel obra de administrao; ele financiou

    todas as suas prprias iniciativas assim como os empreendimentos que assumiu com

    satisfao, a pedido da junta diretiva da Exposio (SIMPSON, 1915, p. ix).

    A importncia dessa afirmao sublinhada por estar inserida j nosegundo pargrafo do prefcio, como a primeira afirmao substantiva emum longo relatrio com a extenso de um livro. A importncia poltica daautonomia financeira explicada no pargrafo que se segue:

    Tem-se em mente os homens e mulheres que, em toda parte, podem estar interessa-

    dos nestas conquistas no simplesmente por seu valor intrnseco, mas tambm emrazo de testemunharem o sucesso de uma grande causa humana, em razo de elas

    serem de algum modo os primeiros frutos da emancipao da mulher em um estado

    recentemente emancipado, praticamente uma ddiva de agradecimento do orgulho

    e patriotismo da mulher (SIMPSON, 1915, p. ix-x).

    Ao adotarem prticas empresariais, essas ativistas diminuram o pa-pel das formas organizacionais caracteristicamente marcadas por gnerona constituio de sua identidade pblica. Ao mesmo tempo, a adoo de

    prticas empresariais e das atividades envolvendo operaes com dinheiroenfraqueceu as formas de intimidade, solidariedade e comunidade tradicio-nalmente associadas com os grupos de mulheres do sculo XIX. Promovendoa organizao das mulheres trabalhadoras, por exemplo, os clubes de eliteno mais procuraram manter os laos pessoais, ainda que de superviso,das visitaes amigveis. Em So Francisco, o prestigioso California Clubpatrocinou, num primeiro momento, o Porteous Club um clube de classeoperria , deixando, posteriormente, que ele passasse a se sustentar por

    conta prpria. Outra vez, as prticas empresariais sinalizaram maturidadecvica:

    Que o pequeno clube capaz de administrar seus negcios em pequena escala algo

    que fica suficientemente evidenciado pelo concerto que promoveu no comeo do ano,

    quando contou praticamente, embora ainda no nominalmente, com seus prprios

    recursos (...). No obstante, o evento foi organizado e levado a efeito, em todos os

    seus detalhes comerciais, pelas prprias afiliadas do Porteous, e elas se houveram to

    bem que conseguiram um lucro lquido de US$ 108,04 com o espetculo. Depois de

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    193Repertrios organizacionais e mudana institucional

    tal resultado, ningum pode duvidar da capacidade empresarial do infante Porteous

    (Club Life, maio de 1902, p. 4).

    Tais mudanas no sentido das prticas empresariais se fizeram em tensocom os modelos familiares de irmandade e de relaes entre me e filha quehaviam dado forma tanto organizao como autoimagem das organiza-es de mulheres do sculo XIX (DuBOIS, 1991). Contudo, se essas mudanastornaram possvel que as organizaes de mulheres empreendessem aespblicas no diretamente ligadas s atividades domsticas, permaneceramas questes a respeito de como tais aes poderiam se tornar politicamenteeficazes.

    Da comunidade burocracia

    Enquanto a organizao da atividade em torno de operaes envolvendodinheiro sinalizou dignidade pessoal e maturidade poltica, esse distancia-mento com respeito prestao pessoal de servios como a atividade pblicaprimordial teve tambm consequncias quanto capacidade das mulherespara ingressar na poltica usual e estimular a expanso das agncias estatais.Na medida em que suas atividades se construam em torno de um nexo

    monetrio, ao invs das prestaes pessoais de servios, programas privadosexperimentais podiam ser adotados mais facilmente por rgos governamen-tais, uma vez que contassem com suficiente apoio pblico. Sem confrontardiretamente a oposio de gnero entre o lar e a poltica, a incorporaooblqua das formas empresariais de organizao resultou em um crescenteisomorfismo entre as associaes de mulheres e as agncias estatais.

    No entanto, se as atividades dependentes de operaes com dinheirofacilitavam tais transferncias, elas no foram sua nica causa. Os progra-mas de assistncia para os homens passaram por mais ou menos o mesmodesenvolvimento; na verdade, sistemas baseados em trabalho e centradosnas bolsas de emprego eram muito mais usuais na assistncia social paraos homens pauperizados. Mas havia um perigo em distribuir recursospblicos para os homens pobres, um perigo que ia alm da ameaa que adependncia colocava para seu carter moral. Qualquer distribuio dessetipo podia facilmente voltar-se para propsitos polticos visando favorecerpartidos. Porm o mesmo no era verdade para as mulheres pobres. Nopodendo elas mesmas votar, e com sua no-ligao a homens adultos como

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    a prpria condio para poder pleitear auxlio, as mulheres vivas e sol-teiras podiam ser alvo de auxlio pblico sem que o financiamento dessesprogramas fosse atacado como politicamente corrupto16. Dada sua relativaimunidade lgica de incorporao poltica, as mulheres privadas do direitode voto eram culturalmente privilegiadas como recipientes da generosidadegovernamental.

    A posio caracterstica das mulheres com relao ao Estado refletia adinmica do isomorfismo organizacional em duas dimenses. No tocante aocampo organizacional da poltica eleitoral, a excluso formal das mulheresquanto ao direito ao voto isolava suas associaes da incorporao eleitoral,do assalto da poltica predatria que afetara os movimentos agrrio e tra-

    balh