classe e comunidade num contexto em mudança doutoramento... · quadro teÓrico e metodologia...
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Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
DISSERTAÇÃO DE DOUTORAMENTO
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
Práticas e Subjectividades de uma Classe em Recomposição: o caso do operariado do calçado em S. João da Madeira
Elísio Guerreiro do Estanque
Orientador científico: Prof. Doutor Boaventura de Sousa Santos
COIMBRA, 1999 (23 de Julho)
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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Í N D I C E
Agradecimentos ................................................................................................................. 7
Introdução ......................................................................................................................... 9
I PARTE
QUADRO TEÓRICO E METODOLOGIA
Capítulo 1
ENTRE A CLASSE E A COMUNIDADE: ESTRUTURA DE CLASSES, INDUSTRIALIZAÇÃO E IDENTIDADES CULTURAIS EM MUDANÇA
1.1 - Análise de classes e estrutura de classes ....................................................................................... 22 1.1.1 - Dilemas em torno da análise estrutural das classes ............................................................ 24 1.1.2 - O conceito de “lugares contraditórios de classe” (modelo Wright I).................................. 29 1.1.3 - Novos desenvolvimentos no modelo de Wright (modelo Wright II) ..................................... 32
1.2 - Identidade e comunidade na formação da classe operária ........................................................ 43 1.2.1 - Identidade e identificação .................................................................................................... 45 1.2.2 - Comunidade e emancipação ................................................................................................ 55 1.2.3 - O problema do enquadramento espacial ............................................................................. 66 1.2.4 - A formação da classe operária, a comunidade e a acção colectiva .................................... 71
1.3 - Controle, consentimento e despotismo: regimes de acumulação e
relações na produção ..................................................................................................................... 82 1.3.1 - Classe e processos produtivos, de Braverman a Burawoy ................................................... 82 1.3.2 - Regimes despóticos e regimes hegemónicos ........................................................................ 86 1.3.4 - Relações de consentimento, sistemas de poder e novos despotismos................................... 94
1.4 - Lazer, Cultura Popular e Controle Recreativo............................................................................ 101 1.4.1- Lazer e classes sociais........................................................................................................... 101 1.4.2 - Cultura popular e cultura de massas ................................................................................... 107 1.4.3 - O lazer popular e a comunidade nos regimes autoritários .................................................. 115
Capítulo 2
HIPÓTESES DE TRABALHO E METODOLOGIA
2.1 - Hipóteses de partida ....................................................................................................................... 123 2.2 - Orientação metodológica ............................................................................................................... 127
2.2.1 - Compreensão e auto-reflexão .............................................................................................. 129 2.2.2 - O macro e o micro................................................................................................................ 131 2.2.3 - O método de caso alargado ................................................................................................. 133 2.2.4 - As técnicas de recolha utilizadas ........................................................................................... 136
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II PARTE EVOLUÇÃO HISTÓRICA: INDÚSTRIA, LAZER E COMUNIDADE
Capítulo 3
POPULAÇÃO E ESTRUTURA INDUSTRIAL: BREVE CARACTERIZAÇÃO
3.1 - Traços genéricos ............................................................................................................................. 143
3.2 - População, sectores de actividade e estrutura industrial ............................................................ 145
3.2.1 - Evolução demográfica ..................................................................................................... 145
3.2.2 - Sectores de actividade ..................................................................................................... 146
3.2.3 - Estrutura industrial .......................................................................................................... 148
3.3 - O sector do calçado ........................................................................................................................ 148 3.3.1 - Dimensão das empresas ....................................................................................................... 148 3.3.2 - Níveis de instrução e de qualificação profissional............................................................... 151
Capítulo 4
INDUSTRIALIZAÇÃO, MOVIMENTO OPERÁRIO E TRADIÇÃO FESTIVA NA
VIRAGEM DO SÉCULO
4.1 - A chapelaria, o calçado e o movimento operário local ................................................................ 155 4.1.1 - A primeira fase de industrialização: a chapelaria e o calçado............................................ 158 4.1.2 - Condições de vida do operariado nos princípios do século................................................. 166 4.1.3 - Associativismo e clivagens ideológicas na chapelaria e no calçado ................................... 169 4.1.4 - Movimento grevista e acção operária na chapelaria e no calçado ..................................... 173
4.2 - Cultura, festa e tradição nas comunidades locais ........................................................................ 184 4.2.1 - Expressividade popular, religiosidade e mercado ............................................................... 189 4.2.2 - Alguns contrastes de classe: a vida quotidiana na viragem do século ................................ 194 4.2.3 - O discurso bairrista e o novo estatuto de vila e de concelho ............................................... 202
Capítulo 5
SOB A TUTELA DO ESTADO NOVO: ACÇÃO COLECTIVA E PRÁTICAS DE LAZER, ENTRE A REGULAÇÃO E A RESISTÊNCIA
5.1 - Impactos locais do Condicionamento Industrial.......................................................................... 215
O sector da chapelaria ......................................................................................................... 217 O crescimento do sector do calçado ................................................................................... 219 A indústria metalúrgica e o caso da “Oliva”........................................................................ 224
5.2 - Exemplos de resistência operária local: militância sindical e política durante o salazarismo . 227
5.3 - Controle recreativo e práticas culturais no Estado Novo ........................................................... 251 5.3.1 - Instituições estatais e festividades locais ............................................................................. 253 5.3.2 - As formas locais de lazer e a moral dominante.................................................................... 257
A taberna ............................................................................................................................. 264 Cinemas e cafés ................................................................................................................... 268 O campismo......................................................................................................................... 270 O desporto ........................................................................................................................... 272
5.3.3 - A acção da FNAT em S. João da Madeira e o caso da “Oliva”.......................................... 275
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III PARTE
TENDÊNCIAS RECENTES: AS CLASSES, A FÁBRICA E A COMUNIDADE
Capítulo 6
A ESTRUTURA DE CLASSES NA REGIÃO DO CALÇADO: MOBILIDADE SOCIAL, CONSCIÊNCIA DE CLASSE, ATITUDES E PRÁTICAS
6.1 - Caracterização da estrutura de classes da região ........................................................................ 296
6.2 - Mobilidade social intergeracional ................................................................................................. 307
6.3 - Auto-identificação de classe e consciência de classe .................................................................... 311
6.4 - Opiniões sobre a sociedade e os problemas sociais ...................................................................... 326
6.5 - Atitudes políticas, práticas associativas e acções de protesto ..................................................... 334
6.6 - Consumos e práticas de lazer ........................................................................................................ 342
Capítulo 7
ENTRE A EMPRESA E A COMUNIDADE: AS RELAÇÕES CAPITAL/TRABALHO
E A MASSIFICAÇÃO DO CONSUMO
7.1 - Os actores locais: a ambiguidade das relações entre patronato, operariado e sindicato ......... 351
7.2 - Os usos do lazer e a massificação do consumo ............................................................................. 363
Capítulo 8/ Capítulo 8-A
ESTUDO DE CASO: RESISTÊNCIA, CONSENTIMENTO E EVASÃO NUMA FÁBRICA DE CALÇADO/ UMA EXPERIÊNCIA NA FÁBRICA
O Sociólogo na Fábrica: fragmentos de um “Diário de Campo” ................................... 379
8.1 - A importância da linha de montagem no processo de fabrico .................................................... 380
8.2 - Disciplina, poder, consentimento e resistência ............................................................................. 390 8.2.1 - O patrão e os operários........................................................................................................ 392 8.2.2 - Os encarregados e as relações de poder: uma posição de fronteira ................................... 406 8.2.3 - Os encarregados e os operários: jogos de poder................................................................. 418
8.3 - Evasão, humor, jogo e descompressão .......................................................................................... 458 8.3.1 - Os intervalos e as brincadeiras sexistas............................................................................... 460 8.3.2 - Jogo e humor na produção .................................................................................................... 478
8.4 - Lógicas e trajectórias numa classe fragmentada ......................................................................... 490 8.4.1 - Seis casos exemplares .......................................................................................................... 490 8.4.2 - Ambiguidades e heterogeneidades de classe........................................................................ 508
CONCLUSÃO ...................................................................................................................................... 527
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................................... 537
ANEXOS.................................................................................................................................................. 565
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AGRADECIMENTOS
O tema em estudo na presente dissertação começou a tomar forma no seguimento das Provas
de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica que defendi na Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra em 1991 e surge na sequência de anteriores trabalhos de pesquisa que
tenho vindo a desenvolver, desde há vários anos, no Centro de Estudos Sociais1. Muitos colegas e
amigos contribuíram com o seu incentivo, solidariedade e amizade, para que as inúmeras hesitações e
dificuldades que inevitavelmente me assaltaram ao longo deste percurso, pudessem ser ultrapassadas.
Em primeiro lugar, cabe um agradecimento especial a Boaventura de Sousa Santos, orientador
desta tese, não só pela permanente motivação, confiança e apoio científico que me tem dedicado
desde que em 1985 integrei a equipa de investigadores por ele liderada, mas também pela amizade e
solidariedade sempre prontamente manifestadas, principalmente nas fases de maior inquietação e
desânimo por que passei, como aconteceu durante a observação participante que realizei na fábrica.
Em segundo lugar, quero expressar a minha gratidão aos colegas, companheiros do Centro de
Estudos Sociais, da Revista Crítica de Ciências Sociais e da FEUC, que desde sempre se interessaram
pelo meu trabalho e comigo partilharam o dia-a-dia de vida académica ao longo das diferentes etapas
desta caminhada. Sem o acolhimento e as palavras de incentivo que de um modo geral recebi e sem o
ambiente de diálogo informal no âmbito dos projectos e seminários do CES, as dificuldades de
realização deste estudo teriam sido, sem dúvida, muito maiores. Gostaria de destacar o estímulo
intelectual e a ajuda da parte do João Arriscado Nunes; os entusiasmos e angústias partilhados com o
José Manuel Mendes, meu parceiro no projecto de pesquisa sobre as classes sociais em Portugal; o
apoio que recebi dos jovens colegas Hermes Costa e Daniel Francisco; a troca de ideias e o
permanente interesse, solidariedade e amizade do António Casimiro Ferreira; e, por fim, não só pelas
muitas ideias que trocámos, mas, sobretudo, pela amizade cimentada ao longo destes anos, vai uma
palavra de profunda gratidão para a Graça Capinha.
Agradeço em terceiro lugar, às instituições que financiaram projectos, viagens e estágios,
directa ou indirectamente relacionados com a pesquisa: Fundação Calouste Gulbenkian, Junta
Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, Comissão Fulbright, Fundação Luso-Americana
para o Desenvolvimento, Reitoria da Universidade de Coimbra. À Universidade de Wisconsin-
Madison, em especial ao Professor Erik Olin Wright e ao Departamento de Ciências Sociais, que me
acolheram durante as estadias que aí efectuei em 1992 e 1994.
1 O Relatório de Síntese das Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica designou-se: A Empresa em Contexto: relações de poder e cultura local na indústria do calçado em S. João da Madeira, Coimbra, FEUC, 1990. Os projectos realizados no CES e que, de algum modo, se relacionam com o actual tema, foram os seguintes: Turismo e Cultura em Portugal: quatro estudos sobre mentalidades, práticas e impactes sociais (CES/FEUC, 1995), coordenado por Carlos Fortuna; Estrutura de Classes e Trajectórias de Classe em Portugal (CES/FEUC, 1997), efectuado em colaboração com José Manuel
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Cumpre-me igualmente agradecer ao Sindicato dos Operários do Calçado, Malas e Afins dos
Distritos de Aveiro e Coimbra, sediado em S. João da Madeira, que me disponibilizou os seus
serviços, e especialmente ao seu dirigente Manuel Graça, pelo seu interesse e pelo incansável apoio
ao longo de vários anos. Às Câmaras Municipais de S. João da Madeira e de Santa Maria da Feira,
nomeadamente os serviços das respectivas bibliotecas que sempre me facilitaram o acesso a diferente
documentação. Ao Director do jornal “O Regional”, daquela localidade, igualmente por me ter
facilitado o acesso aos seus arquivos. À empresa que me acolheu nessa cidade para o trabalho de
observação participante, nomeadamente o apoio entusiástico do seu proprietário merece ser
destacado pelo contributo que prestou a esta pesquisa. Para os trabalhadores dessa empresa que me
receberam e comigo partilharam esses momentos inesquecíveis e me transmitiram abertamente
aspectos importantes das suas vidas – em especial para os amigos mais próximos, como o Acácio, o
Cunha, o Manuel, o tio António, a Cila e a Celeste –, vão a minha amizade e solidariedade.
Uma palavra de especial gratidão é devida à Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra e ao Centro de Estudos Sociais, instituições onde trabalho e que, por esse motivo, são
também a minha casa. Aos seus funcionários e colaboradores, o meu sincero reconhecimento, em
especial aos serviços da biblioteca, da secretaria e da secção de informática da FEUC e ao pessoal do
CES: o Nuno Serra, a Maria Lassalete Simões, a Marisa Matias e a Sandra Nogueira.
Agradeço ainda à Mónica Pimentel e ao Pedro Rodrigues pela sua excelente colaboração na
revisão de alguns dos capítulos. Finalmente, quero também exprimir o meu agradecimento aos alunos
da cadeira de Classes, Desigualdades e Identidades, com quem partilhei muitas das minhas
perplexidades e entusiasmos em torno desta pesquisa.
Mendes e coordenado pelo autor da presente tese. Estes projectos foram financiados pela Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, no quadro do Programa Estímulo para as Ciências Sociais.
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INTRODUÇÃO
As temáticas da classe e da comunidade têm suscitado inúmeras reflexões e
debates nas ciências sociais, na sequência dos quais se vem assistindo a uma
reformulação teórica significativa em torno desses conceitos. Sem dúvida que tais
elaborações conceptuais derivam, em boa medida, dos processos de fragmentação social
a que, quer a classe, quer a comunidade têm estado sujeitos, no quadro do capitalismo
global deste final de século.
É sabido que os grandes processos de transformação social no capitalismo decorrem
sob ritmos e temporalidades diferentes, consoante o grau de modernização das sociedades e
o lugar que cada uma ocupa no sistema mundial. O facto de a sociedade portuguesa ser
marcada por traços de periferia na sua relação com os países centrais significa, entre outras
coisas, que ela encerra fenómenos cuja natureza contraditória e polifacetada é porventura
mais evidente do que nas sociedades de capitalismo avançado. Algumas das tendências de
mudança que vêm ocorrendo em Portugal ao longo deste século remetem-nos por vezes para
problemas já identificados nos países centrais noutras épocas históricas. Contudo, não deve
esquecer-se que cada sociedade e cada contexto particular contêm as suas próprias
especificidades – históricas, socio-económicas, políticas e culturais – e obedecem a ritmos
de mudança próprios.
O presente estudo desenvolve-se em torno do núcleo industrial de S. João da Madeira
(SJM)2, localidade tradicionalmente ligada à produção chapeleira, mas actualmente mais
conhecida por ser a zona de maior concentração da indústria do calçado. O seu principal
objectivo é analisar o processo histórico de desenvolvimento industrial desta região e o seu
impacto na estruturação da classe trabalhadora, através da observação das suas práticas,
subjectividades e atitudes, e dando especial atenção às formas adaptativas e de resistência de
um operariado situado entre as pressões da indústria e a lógica comunitária e semi-rural das
colectividades da região.
Desde finais do século passado que esta região tem conhecido profundas mudanças
induzidas pelo impacto da industrialização e suas formas de adaptação a nível local.
Todavia, reconhece-se hoje que, apesar das transformações, adaptações e resistências
produzidas pela articulação entre a produção fabril e as comunidades locais ao longo do
2 Localidade que daqui para diante será simplesmente designada por “SJM”. O objecto de estudo inclui os concelhos de S. João da Madeira, Oliveira de Azeméis e Stª. Maria da Feira. Como se verá no Capítulo 3, neles se concentra a grande maioria das empresas do sector do calçado.
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tempo, os traços de ruralidade e a força da tradição cultural têm subsistido à presença
crescente da lógica capitalista. Num contexto de desenvolvimento tardio, como este, as
linhas de ruptura e de continuidade socioeconómicas e culturais parecem condensar no
tempo algumas das clivagens e ambiguidades do sistema capitalista mais geral, e
simultaneamente fazem emergir o carácter contraditório e dramaticamente disruptor que esse
sistema tem vindo a impor à humanidade desde os primórdios da era moderna.
Pretende-se, assim, compreender até que ponto as lógicas de classe modeladas
pelas relações de produção incorporaram e reproduziram os vínculos e afinidades
colectivas estruturados a partir das raízes comunitárias. As formas de consentimento e
resistência dos trabalhadores serão observadas, quer no terreno das subjectividades e
representações, quer no domínio das práticas e dos comportamentos concretos e tendo
presentes, por um lado, a dimensão produtiva e das relações de trabalho, e, por outro, as
actividades desenvolvidas na comunidade, nomeadamente a esfera dos consumos e das
práticas de lazer.
Como se verá na apresentação das principais hipóteses e dos procedimentos
metodológicos que guiaram a investigação (Capítulo 2), a perspectiva de análise
adoptada pretende não só dar conta das especificidades regionais atrás referidas, mas ao
mesmo tempo captar os impactos locais de algumas das conjunturas políticas e
estratégias institucionais que mais marcaram a sociedade portuguesa ao longo do último
século. A análise é, assim, historicamente balizada por três períodos distintos: um
período que vai de finais do século passado até aos anos vinte, em que se pretende
acompanhar a primeira fase de industrialização e implantação do mercado nesta região e
o seu impacto sobre o movimento operário local e as actividades festivas ligadas aos
rituais da comunidade rural; um segundo período que corresponde à vigência do Estado
Novo, no qual a acção institucional e a ideologia salazarista desempenharam um papel
decisivo na tentativa de impor às classes trabalhadoras comportamentos conformistas e
disciplinados, tanto na esfera laboral como nas actividades recreativas e de lazer; e,
finalmente, um período que vai do pós-25 de Abril à actualidade continuando a articular
a dimensão do trabalho industrial com a da massificação dos consumos e dos usos do
“tempo-livre”.
Na sua organização formal, a dissertação divide-se em três partes: uma primeira parte
diz respeito à apresentação do quadro teórico e às metodologias e hipóteses de partida;
uma segunda parte centra-se na evolução histórica desde finais do século passado até ao
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final do Estado Novo; e uma terceira parte, mais centrada na actualidade, analisa a
estrutura de classes da região e apresenta estudos de caso baseados na observação
directa da vida social local nas suas diversas vertentes, em especial no quotidiano dos
trabalhadores nas suas relações com a actividade sindical, o ambiente fabril e as
comunidades locais. Estas grandes linhas de abordagem desdobram-se em nove
capítulos que passarei a sumariar.
No Capítulo 1, dá-se conta das principais linhas de reflexão e discussão teórica e
conceptual que serviram de inspiração ao modelo de análise adoptado. As questões da
classe e da comunidade ocupam aqui um lugar decisivo e serão tratadas, quer
separadamente, na medida em que se ligam a tradições teóricas distintas, quer na sua
interconexão, na medida em que remetem para linhas de investigação em que as duas
vertentes se encontram estreitamente ligadas. É precisamente na base dessa articulação
que se desenrola o principal fio condutor da presente tese. Além disso, como é evidente,
esta problemática não poderia deixar de conduzir-nos para outros percursos teóricos que
directa ou indirectamente se prendem com o tema em estudo. Posso adiantar desde já
alguns dos pontos que mereceram maior aprofundamento: as discussões no campo da
análise estrutural das classes nos anos setenta e as reformulações teóricas que esta
corrente tem vindo a promover nos últimos tempos, nomeadamente através das
contribuições de Erik Olin Wright (cujo modelo de análise será utilizado no estudo da
estrutura de classes da região); os conceitos de comunidade e identidade serão
discutidos enquanto instrumentos teóricos de grande actualidade que poderão situar a
análise das práticas e subjectividades operárias, bem como a dimensão do consumo e do
lazer, em quadros analíticos capazes de permitir articular a classe com outras esferas de
acção e de produção de sentido; os problemas da acção colectiva e da consciência de
classe serão tratados, não apenas à luz dos modelos estruturais, mas sobretudo à luz do
enquadramento comunitário do operariado e da sua histórica vinculação aos contextos
locais (em que as análises históricas de E. P. Thompson, constituem uma referência
importante); o tema dos regimes de acumulação e dos sistemas de poder em vigor nas
empresas, bem como a sua articulação com o mercado e a comunidade fornecem
importantes pistas de explicação para os mecanismos de consentimento e controle que
emergem na esfera da produção (dando-se aqui maior realce aos estudos de Michael
Burawoy); as actividades culturais, de lazer e o campo do consumo constituem
igualmente um campo de reflexão a ter em conta, tanto no que se refere à compreensão
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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das culturas operárias e populares (às quais, desde sempre, as experiências do
movimento operário e sindical estiveram ligadas), como pela importância decisiva que
assumiram no desenvolvimento das políticas disciplinares levadas a cabo pelos estados
fascistas e autoritários. Estes são alguns dos principais tópicos que foram objecto de
discussão teórica.
O Capítulo 2 destina-se à apresentação das principais hipóteses de trabalho e nele
se procede a uma breve discussão em torno das opções metodológicas seguidas. Aí se
realça a pluralidade de instrumentos de pesquisa a que recorri, destacando-se a ênfase
dada à análise qualitativa, à sociologia reflexiva e ao método de observação participante
(utilizado no estudo de caso efectuado numa empresa de calçado).
O Capítulo 3 apresenta uma breve caracterização sociodemográfica da região em
estudo e do sector industrial do calçado, inclusive a sua evolução ao longo das últimas
décadas.
No Capítulo 4, entra-se na análise histórica. Procede-se, por um lado, ao estudo do
processo de industrialização na região, de finais do século passado até aos anos vinte, e
do movimento operário local deste período, o qual foi animado sobretudo pelos
operários chapeleiros. Por outro lado, apresentam-se e analisam-se algumas das formas e
rituais festivos, procurando relacioná-las com as identidades tradicionais, mas tendo
presente os efeitos da implantação industrial e da expansão do mercado. Assume-se aqui
um tipo de abordagem de características etnográficas, na medida em que me pareceu
interessante retratar alguns dos ambientes populares da época, a fim de observar mais de
perto os modos de vida das populações, tanto nas dificuldades económicas e laborais em
que se encontravam como na esfera das actividades lúdicas e rituais festivos em que
participavam. O objectivo é mostrar como os modos de vida comunitários e as
experiências operárias foram a pouco e pouco sendo modeladas não só pela lógica
económica moderna e pela acção do mercado, mas também pelo discurso moralista e
burguês que nessa altura começou a impor-se de forma mais nítida. Ainda neste
contexto, referem-se aspectos ligados ao fenómeno do “bairrismo”, promovido pelas
elites locais, cujo impacto disruptor sobre as identidades tradicionais e de classe foi
muito significativo.
O Capítulo 5 dá continuidade à abordagem histórica, mas agora tendo como pano
de fundo o aparelho de Estado salazarista e a sua articulação com as instituições e os
interesses das classes dominantes da região. O discurso local, com os seus contornos
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moralistas, continua a promover o sentimento bairrista em nome do progresso industrial
da vila, reproduzindo no mesmo passo o carácter nacionalista, autoritário e conservador
da ideologia do regime. Exemplos de resistência operária ao salazarismo são aqui
apresentados a partir de relatos e histórias de vida de dois activistas político-sindicais
ligados ao sector do calçado que foram vítimas de perseguição e repressão do regime,
assim como outros documentos onde algumas situações e movimentos grevistas são
testemunhados, apesar da fraca capacidade combativa do operariado. As formas de
ocupação dos “tempos livres” – as festas locais, a taberna, o cinema, os espectáculos, os
hábitos de vida dos jovens etc. – e a tentativa dos organismos locais e estatais em tutelá-
las e discipliná-las são igualmente analisadas, dando-se aqui algum destaque ao papel da
FNAT e à sua presença numa das empresas de maior significado local neste período (a
fábrica metalúrgica “Oliva”). Pretende-se assim mostrar os impactos da acção
disciplinadora e doutrinária do regime e das suas delegações e agentes locais (incluindo
os sectores da burguesia industrial por ele protegidas), sublinhando a sua relevância na
modelação dos hábitos de consumo dos trabalhadores, mas ao mesmo tempo sem
esquecer as capacidades de resistência da cultura popular estruturada a partir do
cruzamento entre a experiência fabril e as comunidades tradicionais. A dimensão
comunitária (e as formas locais de consumo e de lazer) revela-se aqui um elemento
fundamental para se perceberem as ambiguidades de uma classe que simultaneamente
sofre as pressões da exploração na fábrica e reproduz a sua identidade em íntima
sintonia com a vida na comunidade.
O Capítulo 6 analisa a estrutura de classes da região a partir do modelo de análise
de Erik Olin Wright e interpreta os seus resultados – obtidos a partir de um inquérito à
população activa –, equacionando-os com as dimensões analíticas referidas,
nomeadamente os aspectos históricos e contextuais. Com base nesta abordagem, será
possível não só caracterizar a estrutura regional das classes como compará-la com os
resultados referentes à sociedade portuguesa no seu conjunto (recolhidos através da
mesma metodologia)3. De registar é o facto de estes resultados quantitativos
comprovarem variados aspectos respeitantes às classes sociais desta região assinalados
noutros capítulos, além de sublinharem o elevado peso morfológico da categoria
proletária, o esvaziamento das classes médias comparativamente com os valores do
3 Refiro-me ao inquérito às classes sociais em Portugal que foi realizado a partir do Centro de Estudos Sociais, cujo projecto de investigação foi por mim dirigido, em colaboração com o colega José Manuel Mendes (cf. Estanque e Mendes, 1998).
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continente, e as altas taxas de mobilidade intergeracional, bem como de imobilidade.
Por outro lado, também no plano das atitudes políticas, das práticas associativas e
ocupações de tempo livre, por exemplo, os valores que aqui aparecem são
particularmente reveladores da natureza contraditória e ambígua dos comportamentos
deste sector da classe operária.
O Capítulo 7 é um capítulo de síntese e de transição entre a abordagem estrutural
que acabo de referir e a análise qualitativa baseada na observação participante. Nele se
analisam alguns aspectos relacionados com os sistemas de poder em vigor nas empresas
do calçado, procurando compreender o papel da actividade sindical nesse processo e o
seu significado junto dos trabalhadores. As características da indústria do calçado,
nomeadamente a dispersão das pequenas unidades produtivas – muitas delas sem
existência legal – junto das comunidades locais são elementos que aqui são invocados
para sublinhar a combinação peculiar a que se assiste na região entre os sistemas de
poder e os modelos culturais em estruturação. Por outro lado, caracterizam-se também
as tendências mais recentes nas modalidades de consumo, em especial o seu carácter
massificado e mediático, as quais apontam num sentido predominantemente regulador e
integrador, mas sem deixarem de dar lugar à presença de elementos transgressivos
produzidos a partir de formas específicas de apropriação que proliferam em múltiplas
espacialidades e ambientes populares.
Na última parte do estudo surgem, lado a lado, o Capítulo 8 e o que designei como
Capítulo 8-A (alternando-se entre as páginas ímpares e pares), ambos centrados na
experiência de observação participante efectuada numa empresa de calçado. O primeiro,
procura analisar as relações na produção, girando o seu principal fio condutor em torno
das relações de poder na empresa e das práticas de resistência e consentimento dos
operários. Quer as contradições estruturais entre os trabalhadores e o patrão, quer as
dinâmicas de jogo e interacção do quotidiano fabril serão aqui tratadas com algum
detalhe. Se em termos estratégicos e de resistência organizada os trabalhadores
evidenciam um certo individualismo e parecem submeter-se ao poder arbitrário do
patrão e dos encarregados, já quando se observam de perto as suas atitudes espontâneas,
os rituais e os jogos que desenvolvem no espaço produtivo é notória a presença de
atitudes de resistência, ainda que de características tácitas e que se manifesta sobretudo
através uma rebeldia dissimulada, feita de gestos contidos e de silêncios, ou seja, uma
postura de contrariedade nunca completamente manifesta. Outros aspectos são aqui
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objecto de análise detalhada, tais como os jogos sexistas, as clivagens entre os
encarregados e a situação específica em que se encontram no contexto da empresa, o
ritmo de trabalho e o stress, a selectividade que preside às atitudes autoritárias das
chefias, o uso do saber técnico por parte dos operários como fonte informal de poder, as
relações afectivas e transações amorosas dentro da fábrica, a importância do sentimento
de evasão e de fuga, as actividades fora da empresa (de trabalho e de lazer), as atitudes
perante o sindicato, etc. O Capítulo 8-A diz respeito às reflexões, notas pessoais e outras
questões relacionadas com o decurso da investigação – que decorreu de 26 de Fevereiro
a 3 de Maio de 1996 –, em especial os dilemas e angústias que esta metodologia
levantou. Em coerência com o que desde o início assumi ser uma abordagem
compreensiva e auto-reflexiva, decidi realçar essa dimensão autobiográfica e de
envolvimento pessoal e, nesse sentido, apresento-a aqui sob a forma de Diário de
Campo e em contraponto com a exposição mais analítica e interpretativa do Capítulo 8.
Finalmente, apresentam-se as principais conclusões da pesquisa, onde se procuram
sintetizar as linhas de análise mais relevantes de cada um dos capítulos e, ao mesmo
tempo, se sublinham as características particulares do contexto em estudo, bem como a
natureza iminentemente contraditória de uma classe trabalhadora em cujas práticas e
orientações se reflectem processos, experiências e espacialidades multifacetadas que, no
fundo, são o reverso de uma dinâmica de expansão industrial que sempre se confrontou
com um vasto leque de dissonâncias, resistências e ambiguidades socioculturais.
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Capítulo 1
ENTRE A CLASSE E A COMUNIDADE: ESTRUTURA DE CLASSES,
INDUSTRIALIZAÇÃO E IDENTIDADES CULTURAIS EM MUDANÇA
A presente tese não se circunscreve ao âmbito estrito da “análise de classes”, mas
dirige-se a um segmento social – o operariado industrial – que desde sempre ocupou um
lugar decisivo nas discussões em torno da “classe”. O conceito de classe e os debates
teóricos que desencadeou no âmbito das correntes marxistas constitui o ponto de partida
para uma análise das práticas e subjectividades operárias a partir da combinação entre três
dimensões distintas: o processo histórico de industrialização; as relações de produção e o
ambiente fabril; e as vivências quotidianas na esfera da comunidade e do consumo. O
objectivo é, como referi na introdução, equacionar as múltiplas conexões e impregnações
entre estas diferentes esferas da vida social local a fim de compreender a sua incidência
sobre as identidades e formas de acção colectiva que caracterizam os trabalhadores do
calçado e o contexto sociocultural de que fazem parte.
São as seguintes as principais linhas de reflexão teórica em discussão neste primeiro
capítulo: a análise marxista das classes, em especial o modelo de Erik Olin Wright que
serviu de base à caracterização da estrutura de classes da região; a reflexão em torno dos
conceitos de identidade e comunidade, tanto em termos genéricos como no que se refere às
classes e ao operariado industrial; a formação histórica da classe operária e a importância da
sua vinculação às comunidades tradicionais; os regimes de acumulação e sistemas de poder,
nomeadamente os regimes despóticos e hegemónicos analisados por Michael Burawoy; e,
finalmente, as questões do lazer e da cultura popular na sua relação com as classes e o
operariado, por um lado, e com a questão das políticas de controle recreativo levadas a cabo
pelos estados autoritários europeus nos anos vinte e trinta, por outro lado.
1.1 - Análise de classes e estrutura de classes
As discussões em torno da classe são, como se sabe, recorrentes desde Marx e Weber.
Mais recentemente, e em especial após o colapso dos sistemas comunistas e socialistas da
Europa do Leste, alguns dos ataques à análise marxista das classes sociais ganharam novo
vigor. Contudo, apesar das polémicas sobre o “declínio” ou a “morte” da classe (Clarke e
Lipset, 1991; Clarke et al., 1993; Hout et al., 1993; Pakulsky, 1993; Pakulsky e Waters,
1996a e 1996b), sobre a perda de centralidade do conceito ou a premência da sua
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reformulação (Wright, 1985, 1989, 1997a; Callinicos, 1991), o que é facto é que a produção
teórica centrada na análise de classes está longe de ter perdido a sua pertinência e
actualidade. Em articulação ou não com outras temáticas, envolvendo ou não análise
empírica substantiva, a classe social continua a assumir-se como um tema fundamental na
literatura sociológica actual: desde a escola neoweberiana (Parkin, 1968, 1978 e 1979;
Hindess, 1987; Giddens e Held, 1990; McAll, 1992; Esping-Andersen, 1993; Crompton,
1993; Butler e Savage, 1995; Pakulsky e Waters, 1996a, 1996b; Marshall, 1990 e 1997), aos
contributos do marxismo estrutural e do chamado “marxismo analítico” (Therborn, 1978,
1980 e 1983; McNall et al., 1991; Mayer, 1994; Chilcote e Chilcote, 1992; Roemer, 1982a e
1994; Wright et al., 1992; Wright, 1985, 1989, 1994, 1996 e 1997a), passando pelas
discussões em torno dos novos movimentos sociais e da emancipação (Pizzorno, 1985;
Touraine, 1985; Arrighi et. al., 1989; Eyerman e Jamison, 1991; Ray, 1993; Aronowitz,
1992; Offe, 1985b; Calhoun, 1991 e 1994; Cohen e Arato, 1994; Melucci, 1989; Eder, 1993;
Santos, 1994 e 1995; Maheu, 1995; Laclau, 1996), é inquestionável a vitalidade da produção
teórica e da investigação empírica que, directa ou indirectamente, continua a tomar a classe e
a análise das classes como um campo incontornável no estudo das desigualdades sociais, da
acção colectiva e da mudança sociocultural nas sociedades actuais4.
A presente investigação não se assume – disse-o no início –, como uma análise de
classes em termos genéricos. Mas a classe é aqui, claramente, um dos conceitos em questão.
Nesse sentido, começarei por dar atenção à abordagem estrutural, na medida em que ela
constituiu um dos principais campos de produção e reflexão teórica da análise marxista das
classes (incluindo no próprio pensamento de Marx). O modelo de Wright é aqui
privilegiado, não só por ser um dos que mais contributos analíticos tem prestado à sociologia
das classes e porque tem vindo a proceder a constantes reactualizações (Wright, 1989 e
1997a) – apesar das limitações que encerra e das críticas que tem suscitado –, mas também
porque isso me permitirá utilizar como termo de comparação a análise recentemente
4 Também em Portugal, apesar da institucionalização tardia da sociologia no nosso país, a análise de classes teve um papel fundamental no desenvolvimento das ciências sociais: a investigação de Sedas Nunes e David Miranda (1969); os estudos dirigidos por Eduardo de Freitas, Teixeira de Sousa, Villaverde Cabral e Ferreira de Almeida (Sousa e Freiras, 1973; Freitas, 1973 e Freitas et al., 1976); a análise de Mozzicafreddo (1981); a pesquisa de Marques e Bairrada (1982); os trabalhos de João Ferrão (1982, 1985 e 1990) e Jorge Gaspar (1987); os estudos desenvolvidos pela equipa do ISCTE (Almeida, 1986; Almeida et al., 1988 e 1994; Costa, 1987; Costa et al., 1990); os trabalhos recentes de Villaverde Cabral (1997); estas são algumas das contribuições mais relevantes da sociologia portuguesa para a análise das classes sociais na nossa sociedade. Refira-se ainda a pesquisa apoiada no modelo de Erik Wright em que esteve envolvido o autor da presente tese (Estanque, 1997; Mendes, 1997; Estanque e Mendes, 1998 e 1999).
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efectuada à estrutura de classes portuguesa com base nessa matriz teórica (Estanque e
Mendes, 1998). Apesar da análise comparativa entre a estrutura de classes do país e da
região se ter apoiado no modelo de Wright, os resultados obtidos serão interpretados à luz do
processo histórico de industrialização e dos seus efeitos sobre as práticas e subjectividades
do operariado, no quadro da comunidade local. A esse propósito, os estudos históricos
desenvolvidos por E. P. Thompson sobre a formação do operariado merecerão particular
atenção. Em suma, tanto a perspectiva estrutural e abstracta como a perspectiva histórica e
conjuntural das classes constituem duas dimensões de análise que podem completar-se no
estudo de contextos concretos, não obstante o facto de (quer uma quer outra) serem ao
mesmo tempo ilustrativas das inúmeras contradições e ambiguidades que, desde o próprio
Marx5, têm acompanhado a teoria marxista das classes no seu conjunto.
1.1.1 - Dilemas em torno da análise estrutural das classes
Principalmente a partir de finais da década de sessenta assistiu-se a uma proliferação
sem precedentes de estudos e reflexões de base marxista virados para a análise da estrutura
das classes nas sociedades capitalistas. Daí resultaram obras de elevada elaboração
conceptual e apoiadas numa sofisticação técnica e metodológica até então inexistentes6. Os
contributos teóricos de pensadores como Althusser e Balibar (Althusser et al. 1970;
Althusser, 1975 e 1976), Poulantzas (1971, 1974), Carchedi (1977), Lukács (1971),
Miliband (1969 e 1987) e Wright (1981, 1985), ao lado do aparecimento de programas de
investigação sobre as classes em sociedades concretas, deram lugar a toda uma profusão de
pesquisas de inspiração marxista que conjugaram, pela primeira vez, o desenvolvimento
simultâneo da reflexão teórica e da análise empírica. Mas, apesar da vitalidade do debate e
5 Na clássica distinção de Marx classe em si/ classe para si reflecte-se a oposição – presente de forma difusa e muitas vezes incoerente na sua obra – entre a visão abstracta de cariz estruturalista e a visão subjectivista, de cariz historicista ou sociopolítico (Giddens, 1975). Pode dizer-se que daí resultaram duas linhas distintas de orientação do pensamento marxista ao longo do século XX. A primeira orientou-se mais para a definição rigorosa dos conceitos, elaborando os critérios que permitissem mapear categorias, fracções e fronteiras, esperando com isso estabelecer correspondências entre categorias abstractas e classes concretas (nomeadamente as correntes estruturalistas marcadas pelo pensamento de autores como Althusser, Poulantzas e Wright, que adiante irei discutir). A segunda mostrou-se em geral mais sensível ao estudo das conjunturas e processos de mudança, e centrou-se em especial na análise histórica e na acção política do operariado inglês e americano do século passado (Thompson, 1987; Hobsbawm, 1984; Tilly et al., 1975; Tilly, 1996; Jones, 1984, 1989), bem como no estudo aprofundado dos processos produtivos (Lockwood 1966; Braverman, 1974; Gutman, 1977; Edwards, 1979). 6 Deverá reconhecer-se, todavia, que a preocupação com a construção rigorosa de categorias analíticas orientadas para a análise empírica das classes foi partilhada pelos weberianos que, tal como os marxistas, sentiram a necessidade de conceber instrumentos de análise mais ajustados à natureza complexa e à profundidade das transformações ocorridas nas sociedades ocidentais. Pode ainda adiantar-se que enquanto os primeiros pretenderam sobretudo contribuir para a “construção empírica” das classes – em especial sob
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das diversas linhas de pesquisa que o acompanharam, a classe permaneceu ao longo da
década de setenta “um conceito essencialmente contestado” ou seja, “um conceito que não
apenas ocupa um lugar numa teoria científica, mas serve como campo de batalha a inúmeras
disputas metodológicas, políticas e ideológicas” (Conolly, 1972). Neste contexto, as
contradições permaneceram entre as diversas correntes marxistas, uma vez que, como
reconhece Wright, “ou a cuidadosa investigação empírica efectuada não era directamente
orientada para abordagens alternativas da análise de classes ou se desencadearam debates
especulativos e abstractos cujos resultados serviam para ilustrar selectivamente os vários
argumentos e não para avaliar especificamente as diferentes alternativas” (Wright, in
Prefácio a Estanque e Mendes, 1998). A resposta a estas dificuldades procurou afirmar-se
através da estreita combinação entre o maior refinamento conceptual e os resultados da
pesquisa empírica. A linha de pesquisa lançada por Erik Olin Wright em 1979 – o Projecto
Comparativo da Análise de Classes – orientou-se justamente para a recolha sistemática de
dados comparáveis entre uma variedade de países, de maneira a que o debate pudesse tornar-
se mais focalizado nos resultados empíricos obtidos7.
As polémicas assim instaladas no próprio campo marxista permitiram, por um
lado, lançar novas bases para o avanço da investigação sociológica em torno das classes
e, por outro lado, recolocaram a reflexão no terreno do pensamento de Marx,
nomeadamente, a partir das propostas para a sua “releitura” empreendidas sob influência
de Althusser (Althusser et al., 1970; Poulantzas, 1971 e 1974). O problema da
articulação entre o económico e o político ocupou um lugar central nestes debates, o
que, em boa medida, se liga ao facto de as definições abstractas de Marx terem, em
muitos casos, sido contrariadas pelas transformações históricas e pela prática política8.
o impulso do funcionalismo americano –, os marxistas procuraram antes de mais desenvolver os fundamentos teóricos de análise da estrutura de classes. 7 Da parte dos teóricos weberianos, as iniciativas então desencadeadas surgiram como reacção à falência do paradigma parsoniano do status-attainment – que pretendia medir a mobilidade observada a partir das mudanças estruturais na divisão social do trabalho e com base em escalas de medição do status – e procuraram clarificar as formas de articulação entre a estrutura socioeconómica e a acção de classe no terreno político-social. Tal como aconteceu com o campo rival, também neste caso se pode dizer que se assistiu a uma crescente inovação e vitalidade, quer a nível conceptual e teórico, quer no campo da investigação empírica, o que, em certos casos, resultou num diálogo académico e numa reflexão teórica mais estreitamente ligados aos conceitos de raiz marxista, especialmente a propósito dos processos de mobilidade social e trajectórias de classe. Veja-se, entre outros, Goldthorpe (1969, 1980); Erikson e Goldthorpe (1993); Lenski (1966); Giddens (1975, 1982); Lipset (1975); Blau (1975); Parkin (1974, 1979); Dahrendorf (1982); Sorensen (1986); Marshall (1990); Marshall e Rose (1990); Crompton (1993); Esping-Andersen (1993); Pakulsky e Waters (1996a e 1996b). 8 No entanto, é justo lembrar – como chamou a atenção Stuart Hall (1982) – que o próprio Marx não deixou de apontar alguns factores de complexidade no que respeita às articulações entre o económico e o não-económico na estrutura das classes: “são as fases de desenvolvimento do modo de produção que
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Exemplo disso é a visão acerca do antagonismo das classes (no quadro da teoria do
materialismo histórico): de facto, nunca as classes rivais se confrontaram como “dois
exércitos inimigos colocados frente a frente” (Balibar, 1991). E foi à volta desse pano de
fundo que a discussão sobre a relação entre as instâncias do económico e do político – o
mesmo é dizer, em torno dos tradicionais antagonismos marxianos, classe em si/ classe
para si e infraestrutura/ superestrutura – procurou responder à questão da
correspondência entre as classes enquanto categorias abstractas e enquanto actores
concretos da luta política9. Mas, apesar da tónica repetidamente colocada na
determinação “final” do económico sobre as outras instâncias da formação social, por
parte de Althusser10, o mesmo autor não deixou de reconhecer a complexidade das
relações entre o económico e as diversas condicionantes históricas: “a contradição entre
capital-trabalho nunca é simples, mas sempre tornada específica pelas formas e
circunstâncias historicamente concretas da superestrutura… pela situação histórica
interna e externa” (Althusser e Balibar, 1970)11.
Poulantzas veio entretanto introduzir novos elementos na abordagem estrutural
das classes. Para este autor, as relações sociais de produção são relações de
interdependência estruturadas na base da propriedade privada legalmente garantida pelo
fornecem a condição necessária, embora não suficiente, para uma teoria marxista das classes: não é o económico, num sentido mais evidente, que ‘determina’. (…) São as relações sociais e materiais em que os homens produzem e reproduzem as suas condições materiais de existência que ‘determinam’ – o como continua por elucidar. A desigual distribuição das riquezas económicas, mercadorias e poder (…) é, para Marx, não a base mas o resultado da distribuição prévia dos agentes da produção capitalista em classes e relações de classe (…)” (Hall, 1982: 31). 9 Evidentemente que, do pondo de vista marxista, um dos factores que mais directamente interfere com a “superestrutura” política da sociedade capitalista, prende-se com o Estado (veja-se, adiante, a nota 9, sobre a concepção de Poulantzas). De um modo geral, estas correntes põem o acento tónico na capacidade de dominação e na procura de homogeneização político-cultural por parte do Estado capitalista, recorrendo para isso a uma vasta gama de aparelhos ideológicos e repressivos (Althusser, 1975). Na sua busca de coesão e integração social, o Estado “desorganiza as classes como classes” (Lukáks, 1971:65), ou seja, a lógica que preside à acção do Estado tem em vista impedir que, sob o efeito de uma multiplicidade de lutas, os grupos humanos – em especial os mais desapossados – sejam vistos e se vejam a si próprios como membros de uma classe ou como membros de uma colectividade específica, para serem simplesmente vistos como membros “da sociedade” (Przeworsky, 1978). 10 Algumas das formulações de Althusser (1975 e 1976; Althusser e Balibar, 1970) e o historicismo abstracto de Lukács (1971) tornaram-se objecto de uma cerrada crítica, mas ao mesmo tempo esses importantes trabalhos relançaram o debate marxista, reposicionando a discussão no pensamento de Marx e denunciando algumas das deturpações a que o mesmo vinha sendo sujeito. 11 O próprio Lenine se referiu à existência de “interesses de classe absolutamente heterogéneos, lutas sociais e políticas absolutamente contrárias [as quais terão emergido] (…) na sequência de uma situação histórica absolutamente única” (Lenine, 1969). A definição de classe que Lenine formulara em 1919 tinha-se tornado uma referência central no campo marxista: “classes são vastos grupos de homens que se distinguem pelo lugar que ocupam num sistema historicamente definido de produção social, pela sua relação (na maioria das vezes fixada e consagrada pelas leis) face aos meios de produção, pelo seu papel na organização social do trabalho, portanto, pelos modos de obtenção e importância da parte das riquezas sociais de que dispõem” (Lenine, 1969: 425).
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Estado burguês na base de um modelo de dominação e de poder que garante a
manutenção e a reprodução do modo de produção capitalista12. Um conceito marcante
no debate sobre a visão estruturalista foi o de determinação estrutural das classes
(Poulantzas, 1974), o qual aponta no sentido de que as relações de classe se estruturam,
não apenas a partir de elementos de natureza económica, mas simultaneamente pelas
dimensões política e ideológica. As relações de produção são relações de classe
apoiadas em poderes de classe que, como tais – sublinha Poulantzas –, “estão
constitutivamente ligados às relações políticas e ideológicas que os consagram e os
legitimam. Estas relações não se acrescentam simplesmente às relações de produção ‘já
lá’, mas estão elas próprias presentes de forma específica em cada modo de produção,
na constituição das relações de produção” (Poulantzas, 1974: 24). A luta de classes é
parte integrante da própria formação das classes, e, portanto, não se trata de conceber a
estrutura económica de um lado, e a luta de classes sob a forma de relações ideológicas
e políticas, de outro lado. Ao procurar conceber a noção de ideologia como um conjunto
de práticas materiais (e não enquanto sinónimo de “sistema de ideias”), Poulantzas
parece aqui olhar mais para a dimensão reprodutiva do que para a esfera restrita da
produção. Todavia, não fica claro até que ponto as vertentes ideológica e política
continuam ou não a ser concebidas como instâncias secundárias onde se projecta o
económico mas que a ele permanecem subordinadas, ou seja – como também alertou
Mozzicafreddo (1981) –, sendo a produção sempre social, e se as “lutas” e “práticas”
(investidas de ideologia e de política) são a base da estruturação das classes, não se
percebe de que forma entram na própria constituição da “determinação estrutural”, uma
vez que, na sua perspectiva, a relativa autonomia de níveis aponta para a determinação
12 Na concepção de Poulantzas, o Estado capitalista é definido na base da sua relativa autonomia face às diferentes classes e fracções de classe, a qual lhe garante a capacidade de preservar e reproduzir o bloco-no-poder. Traduzindo a linha do marxismo estruturalista, o Estado é visto por Poulantzas como um sistema dinâmico que não está acima da luta de classes. Enquanto relação de forças condensada, que interfere nas – e ao mesmo tempo incorpora as – contradições da sociedade, ele articula a conflitualidade social e simultaneamente esconde-a. Boa parte da actividade do Estado e da sua eficácia social e política deve-se, portanto, à sua não transparência. Enquanto fábrica de ideologia o papel do Estado ganha maior relevo por aquilo que omite do que por aquilo que mostra. Todavia, ambas as vertentes são indissociáveis na acção ideológica do Estado, embora cada uma dessas componentes se possa sobrepor à outra em diferentes períodos históricos. Respostas contrárias podem até ter funções semelhantes, do ponto de vista dos objectivos apaziguadores do Estado (Poulantzas, 1978). Embora pretenda ultrapassar as concepções de Estado-coisa (visão instrumentalista de Lenine) e de Estado-sujeito, a sua conceptualização não deixa de acentuar a ideia de “receptáculo” (onde se repercute a luta de classes) e a visão negativa ou reactiva (face à vivacidade atribuída à luta e à conflitualidade social e de classe), em vez do papel activo e empreendedor na relação entre a acção institucional e a sua intervenção na economia, na cultura e na sociedade em geral, aspectos que mais tarde outros autores vieram a realçar (Evens et al., 1985; Jessop, 1990; Offe, 1984 e 1985a; Offe e Wiesenthal, 1984; Mann, 1987).
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“final” do económico. O conceito de determinação estrutural das classes de Poulantzas
pode, contudo, permitir pensar as estruturas e práticas políticas e ideológicas como
dimensões sociais do comportamento humano situadas, não “de fora” das bases que as
determinam, mas que, enquanto elementos do social (incluindo o económico),
participam nas estruturas de “determinação” e, ao mesmo tempo, tomam parte da sua
constituição e transformação (Mozzicafreddo, 1981: 40-41)13.
1.1.2 – O conceito de “lugares contraditórios de classe” (modelo Wright I)
Um dos fenómenos que mais contribuiu para dar novo curso às velhas polémicas
sobre as teses da “proletarização” versus “emburguesamento” das classes intermédias
foi o notório crescimento da chamada classe média nas sociedades avançadas – “este
grupo que não é grupo, esta classe que não é classe, este estrato que não é estrato”, na
curiosa acepção de Dahrendorf (1982: 56) –, crescimento esse que abalou
profundamente os pressupostos político-ideológicos do marxismo ortodoxo. Grande
parte do debate entre Poulantzas e Wright girou à volta desse fenómeno (se bem que,
enquanto marxistas, ambos recusaram e combateram as teses liberais ou funcionalistas
que acentuavam a crescente igualdade de oportunidades fornecida pelo sistema)14.
Principalmente devido à importância que dava ao critério ideológico, bem como ao
critério do chamado “trabalho improdutivo” (trabalho não directamente produtor de
mais valia), Poulantzas considerou que um vasto conjunto desses trabalhadores
13 O próprio Marx, ao discutir a noção de indivíduo, perece diagnosticar, desde logo, a importância do factor ideológico na criação do trabalhador “livre”. Na verdade, ele rejeitou claramente a assunção veiculada pelos economistas clássicos que tomava os indivíduos num sentido natural, biológico, como um dado – os “indivíduos desprovidos” da sociedade mercantil –, como se estivessem de fora, disponíveis para posteriormente se tomarem como a “base” das classes. O homem, observou Marx, é produto de muitas determinações: “a sociedade não é apenas um conjunto de indivíduos; é a soma das relações que os indivíduos estabelecem uns com os outros. É como se alguém dissesse que, do ponto de vista da sociedade, escravos e homens livres não existem; são todos homens. De facto, isso é o que eles são fora da sociedade. Ser escravo ou cidadão é uma relação socialmente determinada entre um indivíduo A e um indivíduo B. O indivíduo A não é, enquanto tal, escravo. Ele só é escravo na, e através da, sociedade” (Marx, 1973: 265). Ainda a este propósito, José Barata-Moura refere-se ao problema ontológico da relação entre o indivíduo e o colectivo no pensamento de Marx, sublinhando que “o colectivo não é uma ‘coisa’ – fora, acima ou ao lado daqueles que materialmente o integram –, não é uma generalidade substancializada distinta dos seus portadores e da sua actuação enquanto tais. O colectivo são indivíduos actuando de um modo determinado. O colectivo é um processo dialéctico de trabalho” (Barata-Moura, 1997: 304). 14 O crescente protagonismo destas categorias intermédias remete para o conhecido fenómeno da mobilidade social, a qual, embora reflicta a relativa perda de rigidez da estrutura social não significou um simples aumento das oportunidades para os filhos da classe operária (como pretenderam algumas correntes liberais e funcionalistas), tendo antes gerado mecanismos mais complexos na dinâmica social, mecanismos esses que se traduziram simultaneamente em movimentos de “ascensão”, de “declínio” e de “reprodução” em termos das disparidades de poder e de estatuto social. Diversos autores preferem falar de “trajectórias de classe” em vez de “mobilidade social”. Veja-se, entre outros: Bertaux (1978); Bourdieu
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assalariados integraria uma nova categoria de classe que, aliás, correspondia a um
“prolongamento” de uma classe já existente: a nova pequena burguesia (designação
que, em boa medida, justificou pela semelhança de traços ideológicos – o
individualismo, o feiticismo do poder, etc. – entre o sector dos empregados dos serviços
e a ‘velha’ pequena burguesia).
Erik Wright, por seu lado, tecendo diversas críticas a Poulantzas15, tentou
especificar os fundamentos possíveis da unidade política da “classe média”, embora
aceitasse que esta categoria não constitui uma classe no sentido marxista. Em
alternativa, contrapõe o seu próprio modelo, construído em torno do conceito de lugares
contraditórios nas relações de classe (modelo Wright I) (Wright, 1981). Tais lugares
de classe são identificados não apenas no quadro do modo de produção capitalista (ou
seja, na base das relações de produção capitalistas), mas sim tendo em conta as
articulações complexas entre diferentes modos de produção que historicamente
coexistem numa mesma formação social (leitura que neste ponto é partilhada por ambos
os autores). Wright concebe um esquema triangular a partir das três classes tradicionais:
burguesia e proletariado (modo de produção capitalista) e pequena burguesia (modo de
produção mercantil simples)16. A razão pela qual alguém é considerado parte da
pequena burguesia ou da burguesia, e, por outro lado, a razão pela qual alguém é
considerado parte da pequena burguesia ou do proletariado é aferida em função de
critérios como a propriedade dos meios de produção, a autonomia na produção, o
(1979); Almeida (1984); Almeida et al. (1994); Goldthorpe (1984 e 1992); Butler e Savage (1995); Rodriguez (1989). 15 A crítica ao critério do trabalho produtivo devido à sua irrelevância em termos das consequências práticas para a determinação dos interesses de classe, a crítica ao conceito de pequena burguesia, pelo excessivo ênfase colocado nas características subjectivas dessa classe, a crítica à exagerada importância atribuída à dimensão ideológica, aspectos que teriam consequências negativas devido, por um lado, à secundarização do papel da estrutura de classes na determinação do conflito e, por outro, à perda de centralidade do conceito marxista de relações de produção (Wright, 1981: 40-56). Alguns dos critérios relativamente consensuais entre os marxistas em termos de uma definição formal mínima da classe, são os seguintes: a) a classe é um conceito intrinsecamente relacional; b) as relações em que se encontram as classes conferem-lhes interesses objectivos; c) tais interesses são de natureza antagónica; d) esse antagonismo deriva da relação de exploração inerente ao modo de produção capitalista; e) tal processo de exploração fundamenta-se no modelo de organização da produção, ou seja, nas relações sociais de produção (Wright, 1983: 11-13; 1985: 34-37). 16 Ao longo desses três eixos é possível detectar diversas posições de classe (ou “lugares contraditórios”), primeiro, as situadas entre a pequena burguesia e cada uma das classes polares do modo de produção dominante – a burguesia ou o proletariado (lugares situados entre o modo de produção mercantil simples e o modo de produção capitalista), e, segundo, as posições situadas entre cada uma das classes polares do modo de produção capitalista. Considerando que o impacto do desenvolvimento capitalista sobre a esfera produtiva se repercute em fenómenos como: a) a progressiva perda de controle sobre o processo de trabalho por parte da classe operária; b) a diferenciação das funções do capital; e c) a crescente complexificação das hierarquias no espaço produtivo (Wright, 1981: 59-66).
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controle sobre a força de trabalho alheia e a autoridade ou a posição nas relações de
poder (Wright, 1981). A mudança ocorrida na separação entre propriedade e controle, a
distinção (parcial) entre propriedade económica e controle, e a diferença entre “controle
sobre os meios físicos de produção” e “controle do processo de produção” são alguns
dos factores que Wright toma como centrais pelo seu alcance nas relações de classe.
Assim, por exemplo, enquanto o controle sobre os meios físicos e sobre o processo de
produção constituem factores incluídos nas relações de apropriação de mais-valia, o
controle sobre a força de trabalho faz parte das relações de dominação e autoridade. Em
síntese, este primeiro modelo de Wright resulta da articulação entre seis critérios: 1)
controle sobre os recursos e investimentos (propriedade económica); 2) controle sobre
os meios físicos de produção (posse); 3) controle sobre a força de trabalho alheia
(posse); 4) propriedade legal sobre capital e imóveis (propriedade jurídica); 5) situação
legal de empregador (propriedade jurídica); 6) venda de trabalho assalariado. Como
consequência, esta tipologia traduz-se num conjunto de oito categorias de classe: por um
lado, as três que correspondem a situações inequívocas: burguesia, proletariado e
pequena burguesia; por outro lado, cinco lugares contraditórios de classe: pequenos
empregadores, empregados semi-autónomos, gestores, gestores-consultores e
supervisores (Wright, 1981: 66).
Este primeiro modelo revelou diversas insuficiências teóricas e dificuldades de
operacionalização analítica, postas a nu pelo próprio terreno empírico. Eis algumas das
situações “anómalas” consideradas como reveladoras das deficiências do modelo: a
distinção entre as situações polares e os lugares contraditórios de classe não permite a
identificação de categorias de classe enquanto portadoras de interesses opostos (como
era objectivo declarado do autor); o caso dos empregados semiautónomos, considerados
numa situação distinta da classe operária devido à maior autonomia face às suas tarefas,
aspecto que, além de não pressupor nenhuma diferença essencial em termos de
interesses de classe, é definido com base num critério contingencial (que pode até ser
exterior ao processo produtivo) e não deriva das relações sociais de produção. Como
mais tarde reconheceu Wright, um porteiro poderia possuir mais autonomia do que, por
exemplo, um piloto de aviação, daí resultando que este último estaria mais firmemente
numa localização da classe operária do que o primeiro. A autonomia e a dominação,
enquanto critérios de pertença de classe, foram sobrevalorizados e deixam transparecer
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um excessivo pendor institucional, ou seja, uma lógica demasiado dependente das
hierarquias da empresa e das posições funcionais no seio da divisão técnica do trabalho.
1.1.3 - Novos desenvolvimentos no modelo de Wright (modelo Wright II)
Deste modo, o combate crítico foi, em certa medida, dando lugar à própria
autocrítica do autor e as reformulações que se seguiram começaram a traduzir-se num
segundo modelo, cuja sistematização – sempre acompanhada de abundante pesquisa
empírica e respectivos modelos estatísticos – apareceu na obra Classes (Wright, 1985).
Este modelo reconstruído (Wright II) procurou recuperar o conceito marxista de
exploração para o centro da análise, considerando que o antagonismo de interesses entre
as classes passa necessariamente pela existência de relações de exploração. A
dominação, por si só, não chega para definir interesses objectivos antagónicos. Este é, no
entanto, um ponto delicado. Trata-se da tese das opressões múltiplas, segundo a qual as
sociedades capitalistas se caracterizam por uma pluralidade de mecanismos de
dominação, cada um deles exercendo uma forma particular de opressão: a desigualdade
sexual, o racismo, o colonialismo, o poder económico, etc. Uma boa ilustração da
diferença entre opressão e exploração é retirada da esfera familiar: a opressão dos filhos
pelos pais não implica a existência de interesses materiais (ou interesses “objectivos”)
opostos entre uns e outros. O mesmo se pode dizer dos grupos sociais em situações de
opressão não-exploradora – como acontece com os marginais, os pobres, os
desempregados, as minorias étnicas, etc. – que, por não traduziram uma relação de
interdependência com os opressores poderiam, do ponto de vista destes, ser banidos sem
que isso afectasse a sua condição, ou seja, ao contrário da situação de exploração, o
opressor não “precisa” do esforço produtivo do oprimido17. Por isso, a relação
17 Wright refere-se à diferença entre situações de opressão não-exploradora e situações de exploração recorrendo aos exemplos históricos da colonização da América do Norte e da África do Sul. “No caso da opressão não-exploradora os opressores ficariam felizes se os oprimidos simplesmente desaparecessem. A vida teria ficado mais fácil para os colonos europeus na América do Norte se o continente não estivesse já habitado por pessoas. O genocídio é assim uma estratégia potencial para a opressão não-exploradora. O que não é uma opção numa situação de exploração económica porque os exploradores precisam do trabalho dos explorados para o seu bem-estar material. Não é por acidente que culturalmente temos o hediondo ditado ‘o único índio bom é o índio morto’, mas não outros ditos como ‘o único trabalhador bom é o trabalhador morto’ ou ‘o único escravo bom é o escravo morto’. Fará sentido dizer ‘o único trabalhador bom é o trabalhador obediente e consciencioso’, mas não que ‘o único trabalhador bom é o trabalhador morto’. O contraste entre a América do Norte e a África do Sul no tratamento dos povos indígenas reflecte esta diferença pungente: na América do Norte, onde os povos indígenas foram oprimidos (através da expulsão coerciva das terras), mas não explorados, o genocídio foi a política primária de controlo social em face da resistência; na África do Sul, onde a população colona europeia dependia fortemente do trabalho africano para a sua própria prosperidade, essa não podia ser uma opção” (Wright, 1997a: 11-12).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
146
dominação/opressão não chega, por si só, para definir os interesses objectivos em causa.
Só a exploração pode estruturar as principais clivagens classistas porque só ela produz
interesses materiais antagónicos, visto que só neste caso o explorador “precisa” do
explorado para acumular riqueza e este último precisa do primeiro para sobreviver.
Relações de exploração geram, inevitavelmente, interesses objectivos contraditórios (já
que nenhum indivíduo tem um interesse objectivo em ser explorado) ainda que estes
permaneçam camuflados sob atitudes subjectivas de anuência e aceitação18. Daí a
insistência do autor em manter o conceito de exploração no centro da análise das classes.
Esta acepção em torno dos interesses objectivos (ou fundamentais) não deixou de
dar azo a acusações de ortodoxia e de voluntarismo. Conforme apontaram alguns dos
críticos de Writght, a crença implícita de que o verdadeiro interesse da classe operária
coincide com o interesse no socialismo reflecte, antes de mais, “uma arbitrária atribuição
de interesses, por razões de natureza política” (Laclau e Mouffe, 1985: 83. Veja-se ainda:
Brenner, 1989; Burawoy, 1989 e 1991; Becker, 1989). A questão dos “interesses de
classe”, além de ser um dos pontos mais combatidos e vulneráveis deste modelo – bem
como uma das noções que melhor exprimiu o dogmatismo marxista em geral –, remete
directamente para o problema da acção e da identidade de classe, a que voltarei mais
adiante. É, pois, imperioso reconhecer as dificuldades de Wright em libertar-se de alguns
dos insolúveis equívocos que o marxismo estrutural introduziu na análise abstracta das
classes, aspectos que se foram tornando mais claros à medida que outras clivagens
sociais concorrentes com a classe foram sendo reconhecidas (Balibar e Wallerstein,
1991; Aronowitz, 1992; Eder, 1993; Cohen e Arato, 1994; Calhoun, 1994; Crompton,
1993 e 1997). Apesar da vulnerabilidade de Wright a algumas destas críticas (Wright,
1989, 1997a e 1997b)19, a classe – definida num sentido estrutural – continua a ser
tomada pelo autor como um mecanismo que além de encerrar, ele próprio, uma forma
particular de opressão, é dotado de capacidade para impor limites às outras formas de
opressão (embora não as “determine” directamente), ou seja, o conceito de classe é o
18 Ao contrário da conhecida equação liberal – segundo a qual os interesses do indivíduo correspondem aos seus interesses expressos –, em Wright, o verdadeiro interesse está longe de coincidir com os interesses manifestos do agente. 19 Em artigo recente sobre a questão da diferença sexual, parecem claras as crescentes cedências de Wright, ou seja, a tendência em considerar ambos os factores (classe e diferença sexual), com semelhantes capacidades de estruturação das desigualdades: “o marxismo e o feminismo são as duas tradições teóricas que mais atenção têm dado à tentativa de compreensão destas formas de opressão. No passado dispendeu-se muita energia teórica em debates de carácter metateórico sobre se se deveria conferir uma prioridade
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
147
único que transporta simultaneamente mecanismos de opressão e de exploração.
Todavia, é questionável se a dominação é menos importante que a exploração. A
propensão humana para a acção é muitas vezes mais constrangida pela
dominação/opressão do que pela exploração.
Como principal referência teórica, Wright inspirou-se abundantemente em John
Roemer (1982b)20, o qual considera que a exploração e as classes são, à partida,
fenómenos relativamente independentes um do outro. Para além disso, procura mostrar a
possibilidade teórica da existência de sociedades com exploração mas sem classes
sociais (Costa, 1987). As desigualdades sociais são analisadas como consequência de
mecanismos de exploração capazes de proceder à transferência de sobretrabalho de uns
grupos sociais para outros, ou seja, existe uma relação causal entre o bem-estar de uns e
a privação de outros. Ao contrário da teoria do valor-trabalho de Marx, Roemer defende
que pode haver exploração, por exemplo, num modelo de sociedade em que todos sejam
proprietários dos meios de produção e trabalhem em regime de autoprodução (economia
de subsistência sem mercado de trabalho), pressupondo-se para tal a existência de bens
produtivos e instrumentos técnicos desiguais à partida. Se, como demonstra Roemer
(1982b, 1986), o produtor X produzir mais mercadorias que o produtor Y dispendendo o
mesmo tempo de trabalho, ao trocá-las no mercado concorrencial, X pode obter um
cabaz de mercadorias maior que Y, tendo dispendido um esforço igual ou inferior, o que
significa que X explora Y. Em tal situação a exploração poderia acontecer, mesmo na
ausência de classes.
O mesmo autor postula ainda a existência de um processo de correspondência
entre classes e exploração, o qual tem lugar no quadro de um modelo de economia de
subsistência com mercado de trabalho. Neste caso, as classes emergem a partir da
diferença (qualitativa e quantitativa) na relação com os meios de produção. À existência
ou não existência de propriedade dos meios de produção e ao desigual volume de
propriedade, correspondem diferentes classes: os que vendem força de trabalho, os que
compram força de trabalho e os que não vendem nem compram força de trabalho. Em tal
geral a um ou a outro destes feixes de processos causais. Uma das conquistas do progresso teórico destes últimos anos consistiu em superar essas preocupações” (Wright, 1997b). 20 Os modelos propostos por este autor e a sua contribuição para as “novas e velhas questões” sobre a teoria das classes foram objecto de importante reflexão e síntese teórica realizada por António Firmino da Costa (1987).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
148
situação é a propriedade a base da exploração e trata-se, portanto, de exploração
capitalista (com base na apropriação de mais-valia no processo de trabalho).
Segundo os modelos de Roemer, a desigual distribuição de recursos e a troca de
bens no mercado bastam para gerar transferência de mais-valia. São, portanto, dois os
tipos de recursos produtivos que estão na base desses processos: 1) – recursos alienáveis
(bens físicos, propriedade material); e 2) – recursos inalienáveis (capacidades,
habilidades, qualificações). As desigualdades nos primeiros dão origem à exploração
capitalista e as desigualdades nos segundos dão origem ao que Roemer designa por
exploração socialista21.
Olin Wright acrescenta-lhes duas novas modalidades (que se vêm juntar àquelas):
3) – recursos em pessoas (posse de força de trabalho) e 4) – recursos organizacionais
(controle dos mecanismos de decisão nas organizações). A desigual distribuição dos
primeiros refere-se especificamente à sociedade feudal, uma vez que aí, diferentemente
do capitalismo, nem todos possuíam uma unidade de força de trabalho, visto que os
servos não eram sequer proprietários do seu próprio corpo, enquanto os senhores
possuíam a força de trabalho dos seus servos. Deste modo, a exploração feudal assenta
na transferência directa do sobretrabalho a partir da propriedade da força de trabalho
alheia. Por sua vez, a desigual distribuição de recursos organizacionais dá lugar a uma
forma de exploração considerada dominante nas sociedades de “socialismo de Estado”
(onde as estruturas organizacionais do Estado se estendiam a toda a sociedade) – a
exploração socialista22.
Segundo Wright, as diferentes modalidades de recursos desigualmente distribuídos
combinam-se de forma complexa nas “sociedades concretas”, para darem origem a
múltiplas formas de exploração. Assim, ao propor o seu actual mapa das localizações de
classe, desde logo nos adverte que “na maior parte das sociedades haverá muitas
posições na estrutura de classes que são simultaneamente exploradoras e exploradas
21 Escuso-me, por razões óbvias, de aprofundar a análise de Roemer, mas refira-se que uma segunda componente de grande importância no contexto da sua “teoria geral da exploração” é inspirada na teoria dos jogos. Dela se infere que as estratégias de retirada dos actores, perante as “alternativas viáveis” em face de escolhas entre, por exemplo, participar no “jogo” feudal, capitalista, ou socialista, se tornam condicionantes fulcrais das práticas e dos seus processos de estruturação em termos classistas (veja-se Roemer, 1982a e 1982b; e Costa, 1987). 22 Em todo o caso, a noção de “exploração organizacional” ou “exploração burocrática” parece algo ambígua, principalmente quando aplicada às sociedades capitalistas. De facto, não é fácil vislumbrar situações em que aos desapossados dos meios de produção seja permitido estruturar com sucesso o “poder
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
149
segundo as diferentes dimensões das relações de exploração” (Wright, 1989a: 8).
Concretamente, nas sociedades capitalistas, o autor considera a combinação de três tipos
principais de exploração: exploração capitalista (baseada no desigual controle dos meios
de produção); exploração organizacional ou burocrática (desigual controle de recursos
organizacionais ou de autoridade); e exploração por credenciais ou qualificações
(desigual controle de qualificações escassas ou credenciais escolares). Se nas actuais
sociedades a única forma de exploração fosse de tipo capitalista, todos os assalariados
pertenceriam à classe operária. Porém, tendo em atenção as outras formas de exploração
será possível visualizar divisões internas de classe, pondo em relevo, por exemplo,
localizações da “classe média” onde se combinam múltiplas formas de exploração e em
que algumas dão lugar a situações ambíguas (que, no fundo, correspondem a lugares
contraditórios nas relações de classe), ou seja, situações que podem ser
simultaneamente exploradas (porque, por exemplo, não possuem os meios de produção)
e exploradoras (porque, por exemplo, possuem elevadas credenciais ou diplomas
académicos). O referido esquema dá então lugar a uma estrutura com um conjunto de
doze “localizações de classe” (o que, obviamente, não significa advogar a existência de
doze classes) as quais, embora correspondendo a uma estrutura abstracta, condicionam
no concreto as práticas individuais e as formas possíveis de acção colectiva23.
Uma das vantagens desta proposta reside justamente nas possibilidades que abre à
análise das chamadas “classes médias” a partir de um ponto de vista marxista,
permitindo visualizar diferentes lógicas de acção e diferentes estratégias segundo
critérios que se reconhecem hoje decisivos, como é o caso das qualificações (ou
credenciais escolares) e dos instrumentos de poder (recursos organizacionais ou
autoridade) de que se dispõe nas relações de trabalho. Mas há aqui incongruências
difíceis de ultrapassar.
Primeiro, o conceito de exploração é, na prática, utilizado num sentido puramente
quantitativo e, em termos operativos, as distinções são efectuadas arbitrariamente, o que
contraria o pressuposto de que a análise marxista é fundamentalmente relacional.
da organização”, em especial se se pretender usá-lo contra o proprietário. Por isso, dificilmente este factor pode ser visto como uma relação independente. 23 Sobre a tipologia das doze localizações de classe e a sua operacionalização, ver Wright (1985: 64 e ss.). No âmbito da presente tese, o modelo de análise de Wright assume maior relevância no que respeita aos resultados da estrutura regional das classes na zona da indústria do calçado (que apresentarei no Capítulo 6). A abordagem aí efectuada, embora apoiada nos pressupostos teóricos e metodológicos de Wright,
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
150
Segundo, não se vê como os três critérios – propriedade, recursos organizacionais (ou
autoridade) e credenciais escolares – se relacionam uns com os outros. Terceiro, é
duvidoso que a desigual distribuição de recursos em credenciais e em autoridade possam
ser concebidas como formas de exploração com o mesmo nível de importância da
exploração capitalista (propriedade e extracção directa de mais-valia), pois esta é a única
relação que, além de produzir lucro, implica relações intrínsecas de interdependência
entre explorado/ explorador. Por último, o procedimento de Wright no que respeita ao
tratamento da dimensão político-social – das formações de classe, da consciência de
classe e da subjectividade – levanta sérias dúvidas, em particular a sua insistência nas
articulações “objectivas” entre as posições estruturais e as formas de consciência
confunde-se com a ortodoxia essencialista, como lhe têm apontado alguns dos seus
críticos neoweberianos e pós-marxistas (Marshall et al., 1988; Laclau e Mouffe, 1985).
É importante nesta altura lembrar as aproximações de Wright ao pensamento de
Weber, particularmente notadas nos seus últimos trabalhos (Wright, 1997a e 1997b). Na
verdade, a abordagem estrutural das classes poderá sair enriquecida se for combinada
com factores mais identificados com o weberianismo, como sejam a dimensão
comunitária e a mobilidade social. O próprio Wright aponta, como se disse, as vantagens
de “marxianizar o weberianismo”24, considerando que o elo estrutural que liga
explorador e explorado na produção afecta as capacidades de mercado e as
oportunidades de vida dos membros das classes sociais em presença e, assim, o conflito
distributivo está em articulação com as relações de exploração sediadas na produção.
Recorrendo a uma parábola da banda desenhada – a história do schmoo (Wright, 1997a:
4) – o autor procura mostrar como os recursos e meios de vida que os trabalhadores da
indústria possam encontrar fora da empresa constituem uma dimensão que – embora
tenha lugar através das relações de mercado e não na relação directa capital/trabalho –
faz parte dos mecanismos de exploração, já que o enriquecimento de uns é efectuado à
custa da privação de outros. Neste caso, a exploração não é incompatível com o
analisa os resultados obtidos recorrendo à dimensão histórica e cultural, ou seja, dando atenção a factores que se aproximem mais da teoria weberiana. 24 Em algumas formulações, o próprio conceito de “exploração” surge como elo de ligação entre as duas tradições. É o que acontece quando, por exemplo, John Roemer fala em “exploração de status” ou em “exploração socialista” e quando se admite que, em termos abstractos, pode haver exploração mesmo num modelo de sociedade sem mercado de trabalho, ou seja, com todos os produtores a serem proprietários dos seus meios de produção, os próprios mecanismos de mercado fornecem as bases da exploração. Wright adere claramente a esta ideia quando, no seu último livro, desenvolve a metáfora do “efeito schmoo”
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
151
compromisso entre as classes desde que as actividades complementares (na verdade, o
equivalente aos schmoos) se mantenham insuficientes para a subsistência do trabalhador,
acabando por favorecer simultaneamente os operários e o capitalista. Ou seja, enquanto
os primeiros podem reforçar o seu baixo salário, mantendo ao mesmo tempo o emprego
(por isso não têm interesse que a fábrica feche as portas), o segundo beneficia com isso,
pelo menos enquanto tais rendimentos paralelos forem insuficientes por si sós, e os
trabalhadores, à falta de melhores alternativas, forem obrigados a trabalhar para um
patrão que lhes paga mal25. Com esta ilustração o autor pretende mostrar como as
relações de mercado têm de facto uma interferência directa na estruturação das classes
visto que tais mecanismos de mercado, apesar de facilitarem certas formas de
compromisso, não deixam de se apoiar no antagonismo de interesses e na lógica
exploradora.
Por outro lado, a localização “directa” na estrutura de classes, sendo muitas vezes
insuficiente para explicar tanto as práticas como as orientações subjectivas dos
indivíduos, faz apelo a outras mediações, como sejam a interferência “indirecta” das
redes sociais (familiares e de amizade) e das trajectórias pessoais ou intergeracionais na
definição da posição de classe mediada, enquanto factor influente na explicação das
práticas e subjectividades individuais ou colectivas26. Efectivamente, parece cada vez
mais insustentável a ideia de que a estrutura de classes possa, por si só, fornecer
explicações plausíveis para a compreensão das subjectividades e comportamentos
colectivos, uma vez que na verdade não existem quaisquer interesses “essenciais” ou
“objectivos” directamente atribuíveis à posição de classe27. Se esta continua a ser um
elemento importante, ela deve conjugar-se com outros factores de natureza histórica,
contextual e cultural, nomeadamente o fenómeno das identidades.
(Wright, 1997a; cf. também Estanque e Mendes, 1998). Para uma síntese desta discussão e em particular dos modelos de Roemer, ver Costa (1987). 25 Mas se, por hipótese, a situação se alterasse no sentido de se obterem benefícios crescentes a partir, por exemplo, da actividade agrícola, é provável que muitos trabalhadores preferissem trocar a fábrica pelo trabalho na agricultura, fazendo escassear a mão-de-obra na indústria e consequentemente inflaccionando os salários aí praticados. 26 Alguns resultados da sociedade portuguesa referentes às permeabilidades de classe entre diferentes gerações e à posição de classe do cônjuge e do amigo mais próximo foram publicados noutro lugar (Estanque e Mendes, 1998). Para novas discussões entre o modelo de Wright e a diferença sexual, ver Wright (1997b) e Crompton (1997). 27 Michael Burawoy afirma que Wright faz concessões ao idealismo, ao formular o conceito de “interesses de classe objectivos”, assumindo, implicitamente, que a classe operária tem um interesse objectivo no socialismo (Burawoy, 1989).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
152
O problema da acção colectiva e a questão dos “interesses” – classistas ou não –
podem ser equacionados com as identidades. Muito embora esse seja um tema que
abordarei mais à frente vale a pena adiantar que diversos autores o introduzem nas
discussões sobre a acção de classe. Por exemplo, Ted Benton prefere utilizar em vez do
conceito de “interesses”, a noção de “objectivos” (Benton, 1981), considerando que estes
são inerentes às práticas sociais e se manifestam sobretudo no seu conteúdo simbólico.
Esta ideia é sublinhada por Firmino da Costa quando afirma que “em sociedade, cada
actor ou categoria de actores não só tem um, mas diversos objectivos possíveis, ligados à
variedade de identidades colectivas28 sobreponíveis ou alternativamente colocáveis”
(Costa, 1987: 77). Quer isto dizer que a tomada de consciência dos “interesses de classe”
não deriva directa e “objectivamente” dos lugares de classe, uma vez que estes apenas
estão em condições de desenvolver interesses potenciais. De qualquer dos modos, os
interesses manifestam-se sempre no quadro de identidades sociais em relação às quais
estão, em certa medida, dependentes (Marshall, 1997: 52). Como frisou Pizzorno (1981),
a identidade precede os interesses. Isto vai também ao encontro da leitura dos pós-
marxistas Laclau e Mouffe (1985) para quem são sobretudo a experiência e as práticas
que condicionam a subjectividade e a vontade dos actores, e não tanto o processo
inverso. Numa linha semelhante, os autores da escola neoweberiana de Essex (Marshall
et al., 1988), admitem que as identidades sociais sejam primariamente oriundas da
produção, mas sublinham: “isso não é sempre verdade nem tem consequências
uniformes. Identidades sectoriais, tanto como identidades de classe, podem emergir de
experiências particulares de trabalho, mas elas não têm de ser permanentes ou duráveis.
Podem ser activadas em circunstâncias particulares, por exemplo, no contexto de uma
disputa industrial ou quando a fábrica está sob ameaça de encerramento, mas noutras
ocasiões permanecem latentes. Nessas alturas, as esferas da vida fora do trabalho são
provavelmente as mais salientes para activar as identidades sociais. Na verdade, para
alguns indivíduos estas identidades podem modelar outras identidades potenciais”
(Marshall et al., 1988: 273).
28 Como refere Firmino da Costa, daqui deriva “a possibilidade de objectivos alternativos e o facto de uma parte importante da luta de classes consistir em tentar-se persuadir outros de que os seus ‘interesses verdadeiros’ são uns, e não outros, ou seja, em advogar mudanças de identidade, em procurar induzir orientações preferenciais, não para umas, mas para outras identidades colectivas”. Citando Benton, pode ler-se no mesmo texto: “tentar persuadir alguém de que um certo curso de acção, em vez dum outro qualquer, é do seu interesse significa tomar parte na constituição e/ou reconstituição da sua identidade social e pessoal” (Costa, 1987: 77).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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De um modo geral, pode dizer-se que a explicação da acção colectiva da classe
trabalhadora com base nas solidariedades da colectividade operária tem vindo a sofrer
uma crescente contestação (Korpi, 1983; Goldthorpe, 1984; Maheu, 1995; Eder, 1993;
Aronowitz, 1992; Burawoy, 1985 e 1989; Pakulsky e Waters, 1996a)29. É certo que o
pressuposto evolucionista da teoria do materialismo histórico, bem como o pendor
determinista e abstracto que acompanhou a teoria das classes no passado, são
formalmente rejeitados por Erik Wright (1997a; Wright et al., 1992). No entanto, a
grande preocupação do autor com o rigor conceptual e a operacionalidade dos modelos
estatísticos parecem ir de par com uma certa perda de vitalidade crítica, fazendo com que
alguns dos seus “equipamentos analíticos” apareçam hoje envoltos num excessivo
relativismo. A abordagem de Wright é ontologicamente forte, mas epistemologicamente
fraca. Ao advogar que as classes têm uma existência concreta, independentemente do
que se passa num dado quadro “mental” ou “conceptual”30, parece esquecer que, apesar
de tudo, a realidade é inseparável do sujeito que a pretende captar e “moldada” pelo
próprio acto de conhecer.
Uma análise realista das estruturas e da acção de classe exige a captação das
configurações concretas de ideologias, identidades culturais e práticas de classe inseridas
em contextos históricos particulares. Ou seja, a análise estruturalista das classes pode ser
útil a uma abordagem como a que está em causa neste estudo, mas é necessário
complementá-la com outras perspectivas que permitam uma compreensão mais profunda
e qualitativa da realidade social, capaz de captar os processos históricos e os contextos
socioculturais concorrentes com a estrutura de classes na modelação da acção colectiva.
As práticas e experiências vividas no processo produtivo e na comunidade não só se
inscrevem nas estruturas mais gerais do capitalismo, mas revestem-se de significados
simbólicos muito variados onde as lógicas estruturais e globais aparecem ligadas a
especificidades locais particulares. Significa isto que a captação da acção social e o
estudo de uma dada colectividade exige o reconhecimento de que as práticas colectivas
transportam as marcas das estruturas e sistemas de relações em que as pessoas se
29 A perda de centralidade da classe nos processos políticos e na transformação social mais geral, caminha de par com a emergência de outro tipo de fenómenos e de clivagens identitárias (socioculturais, étnicas, sexuais, etc.), assunto a que irei referir-me no ponto seguinte. 30 Uma tentativa de demarcação face a Ernesto Laclau (e a outros críticos), segundo o qual “os objectos não são nunca dados como meras ‘existências’ mas, são sempre articulados no seio de totalidades discursivas” (Laclau, 1990: 109). Alguns acusam-no de ser como o viajante meticuloso que “passa o tempo a fazer as malas para não ir a lado nenhum”.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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inserem, mas, simultaneamente, sofrem a influência das histórias e subjectividades que
os próprios actores constróem e com as quais se identificam, mais do que a determinação
de “interesses essencialistas” que lhes sejam imputados (Somers e Gibson, 1994). É
nessa medida que a discussão teórica em volta das noções de “identidade” e de
“comunidade” poderá constituir um poderoso auxiliar que pode articular-se com a
abordagem estrutural, dando assim maior visibilidade aos processos de estruturação das
práticas e da acção colectiva do operariado.
1.2 - Identidade e comunidade na formação da classe operária
Os conceitos de “comunidade” e “identidade” têm nos últimos anos animado
diversos debates – sejam eles directamente relacionados com a classe ou, por exemplo, a
propósito das temáticas do nacionalismo, do racismo ou do feminismo – onde diferentes
correntes teóricas e tradições científicas se vêm cruzando, nomeadamente a filosofia
política, a sociologia, a história e os estudos culturais (Gilbert, 1992; Calhoun, 1982 e
1994; Anderson, 1991; Mouffe, 1996; Laclau, 1996; Bellah, 1991, 1997; Rajchman,
1995; Tilly, 1996a; Hall, 1996; Hall e du Gay, 1996; Ferrara, 1997; Bhabha, 1995;
Santos, 1995 e 1996).
Poder-se-á dizer que, enquanto dimensões substantivas da realidade sociocultural,
a comunidade e a identidade estiveram, durante séculos, estreitamente imbricadas ou até
mesmo sobrepostas (no contexto das sociedades tradicionais). Todavia, com o avanço
do capitalismo e o consequente processo de edificação do Estado-nação31 tornou-se
inevitável a crescente fragmentação e desterritorialização da velha comunidade pré-
industrial. A ambiguidade dos conceitos de comunidade e identidade prende-se
justamente com a perda de importância da ideia de lugar32, e, por isso, a sua actual
31 Na conhecida obra de Benedict Anderson – Comunidades Imaginadas – a nação é ela própria concebida como uma comunidade imaginada. Apoiando-se em formulações de Ernest Gellner, aquele autor sustenta que o nacionalismo, em vez de corresponder ao “acordar das nações” é antes “a invenção das nações onde elas não existem”. Todavia, isso não significa que se trate de uma invenção ou fabricação (no sentido de ‘falsidade’ por oposição a algo ‘genuíno’, como pretendia Gellner): a nação é uma comunidade política imaginada “porque os membros mesmo da mais pequena nação nunca conhecerão a maioria dos seus concidadãos, encontrá-los, ou até ouvir falar deles, apesar de na mente de cada um persistir a imagem da sua comunhão. (…). De facto, todas as comunidades mais extensas do que as antigas aldeias onde prevaleciam os contactos face-a-face (e talvez mesmo estas) são imaginadas (…)”. Trata-se de uma comunidade imaginada “porque, apesar da real desigualdade e exploração que prevalece em cada uma, a nação é sempre concebida como uma profunda camaradagem horizontal. Em última instância, foi esta fraternidade que tornou possível, ao longo dos últimos dois séculos, a tantos milhões de pessoas disporem-se, não tanto a matar, mas a aceitar morrer em nome desse imaginário” (Anderson, 1991: 15-16). 32 Com o desenvolvimento capitalista e a consequente acção do mercado e do Estado a comunidade tradicional (espacializada) foi sendo submetida a crescentes pressões. Nessa medida, o conceito de
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
155
pertinência não deixa de surgir como corolário de fenómenos sociais que, embora
típicos do nosso século, nos remetem permanentemente para processos históricos e
civilizacionais antigos como acontece, por exemplo, com as temáticas do racismo, do
colonialismo, dos movimentos religiosos, do feminismo ou do nacionalismo, para além
do próprio processo de industrialização e de expansão capitalista (Balibar e Wallerstein,
1991, Anderson, 1991, Calhoun, 1997).
Apesar da dimensão espacial e local continuarem a ser elementos que dificilmente
poderão ser subtraídos a este debate (uma vez que, mesmo as novas formas de
desestruturação identitária, não se manifestam no vazio mas sim em espaços social e
territorialmente definidos)33, é justamente o carácter fluído e instável, sob a pressão de
inúmeros factores (político-económicos e simbólico-culturais) oriundos das mais
diversas instâncias e mediados por uma enorme panóplia de meios tecnológicos, que
mais distingue os actuais processos de fragmentação/estruturação identitária nas
sociedades avançadas. A tal ponto que as concepções substantivas da comunidade e da
identidade têm vindo a ser questionadas pela generalidade dos teóricos. Em todo o caso
é bom sublinhar que as referidas noções são conceptualmente distintas e nessa medida
merecem ser discutidas em separado.
1.2.1 - Identidade e identificação
Não sendo possível tratar aqui a vasta e crescente discussão em torno da noção de
identidade, convém no entanto ter presentes algumas das suas premissas teóricas. A
identidade é sobretudo associada à subjectividade e ao modo como os sujeitos se vêem a
si próprios enquanto intérpretes da sua experiência passada a partir das suas condições
comunidade vai ganhando novos contornos: “no sentido de afinidade contextualizada num lugar, a ‘comunidade’ tem sido, de facto, largamente destruída, ainda que se pudesse discutir até que ponto esse processo ocorreu em contextos específicos” (Giddens, 1992: 91). 33 Mais adiante farei referência à dimensão espacial e geográfica na sua relação com a identidade e a comunidade. Mas, vale a pena sublinhar como a questão do espaço é fundamental a diversos níveis. A começar pela própria formação do moderno Estado-nação. No seio das sociedades feudais, os direitos individuais eram circunscritos às pequenas elites locais por via de um estatuto geralmente herdado ou restrito às situações excepcionais dos agentes da administração local. A vasta maioria das populações camponesas estava simplesmente amarrada aos deveres para com os senhores das terras e, deste modo, o exercício do poder era na prática mantido no quadro dos valores e costumes locais, ligados a esta ou àquela comunidade, vila ou território de administração senhorial, isto é, como assinalou Perry Anderson (1974), as relações feudais eram caracterizadas pela fusão entre o poder, a exploração económica e a coerção legal numa dada base territorial e local. A grande maioria das pessoas nasciam, viviam e morriam no mesmo espaço comunitário, já que os movimentos de massa praticamente se limitavam às actividades militares e, nessa medida, o poder soberano a que obedeciam assentava num critério de controle-através-do-espaço, segundo os princípios instituídos de “perpetuação de laços e de obrigações” (Clegg, 1989: 173).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
156
de vida no presente. Seja no plano individual, seja no quadro de uma comunidade
territorializada (localidade, região ou nação), a história – pessoal ou colectiva – é um
elemento decisivo. É decisivo não porque se imponha por si mesmo, mas sim porque “o
passado que afecta o presente é um passado construído e/ou reproduzido no presente”
(Friedman, 1994). Segundo Jonathan Fiedman, trata-se de uma “prática do mito”, o que
não quer dizer os efeitos de um mito na prática, mas sim a própria prática da
fabricação do mito: “a imposição de um modelo do passado sobre o presente ocorre
como um acto de vontade na socialização (…). A constituição da identidade é um
elaborado e mortalmente sério jogo de espelhos. É a complexa interacção temporal de
múltiplas práticas de identificação externas e internas a um sujeito ou população”
(Friedman, 1994: 141). Para Charles Tilly, o conceito de identidade é fundamental na
análise social, por três motivos: 1) não é um fenómeno privado e individual, mas
público e relacional; 2) abarca todos os níveis, desde o de ‘categoria’ ao de
‘organização’; e 3) qualquer actor possui múltiplas identidades – raça, sexo, classe,
emprego, religião, filiação, nacionalidade, etc. –, pelo menos uma por categoria, ligação,
papel, rede social, grupo ou organização a que o actor permanece ligado. O facto de
permanentemente os outros tipificarem um indivíduo ou grupo, apontando apenas um
dos seus traços identitários é o que permite estabelecer a unidade entre as várias
dimensões/identidades, tornando uma delas dominante na consciência e no
comportamento do actor (Tilly, 1996a: 7).
A noção de identidade é cada vez mais associada aos processos que os actores
põem em prática na procura de identificação. Por vezes sugere-se o abandono da
primeira noção e a sua substituição pela segunda. Tendo em conta as múltiplas formas
de identificação, simultaneamente reais e fictícias – “identidades”, “comunidades”,
“categorias”, etc. – com que se depara o indivíduo nas sociedades actuais, muitos
interrogam-se sobre se é ou não possível conceber identidades unificadas e coesas.
Alguns acentuam o papel da dimensão racional. Por exemplo, Giddens (1991) refere que
as “auto-identidades” poderão manter uma linha de coerência e preservar a estabilidade
através da reflexividade. Etienne Balibar, discutindo as relações entre identidade
cultural e identidade nacional, apresenta diferentes distinções e ambiguidades inscritas
no conceito de identidade34: “na realidade não existem identidades, apenas
34 Nomeadamente, a distinção entre a dimensão objectiva/ subjectiva, a contradição universal/ singular, a oposição entre identidade das elites/ e das massas e a distinção entre elementos de fixidez ou resistência/
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
157
identificações (…) ou, se se preferir, identidades são apenas os objectivos ideais de
processos de identificação” (Balibar, 1995: 187). Boaventura Sousa Santos, referindo-se
às características fluídas das actuais comunidades – as comunidades-amiba35 –, sustenta
que nelas “a identidade é sempre múltipla, incompleta, levando a cabo um processo de
reconstrução e reinvenção, ou seja, um processo de permanente identificação” (Santos,
1995: 485). Stuart Hall aponta num sentido semelhante ao advogar que “a identificação
tornou-se um dos últimos conceitos bem compreendidos – embora quase tão enganoso
como, é preferível à própria ‘identidade’” (Hall, 1996: 2). Por seu lado, as identidades
categoriais de que fala Calhoun (1997: 42 e ss.) representam o impacto das múltiplas
categorias construídas nas sociedades modernas – a profissão, o status, a classe, a
juventude, a terceira idade, etc. – que, de certo modo, concorrem com a linhagem
familiar, a etnia, a comunidade local e os laços de vizinhança, ou seja as putativas
similitudes individuais desenrolam-se em divergência com as redes concretas de
interacção das formas primárias de socialização36.
Elementos fundamentais na compreensão da identidade são a subjectividade e a
narrativa, os quais apontam directamente para a relação entre o sujeito e o Outro37 – já
que o termo identidade envolve sempre negação ou diferença: “alguma coisa é alguma
coisa, e não outra coisa”; isto é, a identidade tem pelo menos dois significados
diferentes: primeiro, aponta para “o que dá a uma coisa ou pessoa a sua natureza
essencial, isto é, o seu eidos ou forma, e portanto, a sua continuidade através do tempo
e, em segundo lugar, o que torna duas coisas ou pessoas na mesma” (Zaretsky, 1994:
199-200). A identidade constrói-se na interacção entre o Nós e o Outro e ambos são, em
elementos de fluidez e mudança, contradições estas que reflectem o carácter dialéctico do conceito de identidade cultural (Balibar, 1995: 174-176). 35 Como adiante se verá, este autor inscreve aqui as “comunidades emancipatórias”, enquanto novo paradigma de realização identitária que se orienta em oposição às comunidades-fortaleza (Santos, 1995). 36 Essa divergência não significa, obviamente, que as identidades categoriais não possam dar lugar a grupos concretos e a formas de acção colectiva. Um exemplo disso é, num certo sentido, a própria classe, já que, na formulação que o marxismo lhe deu, começou por ser um processo teórico de “classificação”, mas que nem por isso deixou de ter um notável alcance prático na modelação da “identidade de classe” do operariado (Bourdieu, 1987). Mas, a maior ou menor coincidência entre “categorias” e redes concretas de interacção reflecte-se, sem dúvida, nas potencialidades da acção colectiva: quanto mais as colectividades e as redes organizadas de interacção coincidirem com as identidades categoriais – se os indivíduos casarem com membros da mesma categoria, trabalharem em empresas etnicamente estruturadas, etc. –, maior será a sua capacidade de mobilização para a acção colectiva (Calhoun, 1997: 48). 37 Stuart Hall, recorre à teoria da psicanálise, citando Freud, para mostrar o legado semântico do conceito de identificação, mostrando ao mesmo tempo a importância da relação Eu/Outro: “Freud chama-lhe a primeira expressão de um laço emocional com outra pessoa (…). No contexto do complexo de Édipo, porém, toma a figura do pai simultaneamente como objecto amado e de rivalidade, desse modo inserindo
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158
boa medida, fruto da imaginação e do sentimento: em prole da defesa de um in-group, a
ideia de irmandade ou de um Nós, exige a presença de um Outro, de uma ameaça, de
um inimigo, como condição para que se preserve uma linha de demarcação (ainda que
contingente e imaginária) e se assegure a lealdade e cooperação no seio desse Nós
(Bauman, 1997: 42). Se, na maioria dos casos, o referente identitário transcende as
relações face-a-face, a construção da identidade – seja ela a etnia, a classe, o trabalho, a
localidade ou a nação – emerge sob a forma de comunidades imaginadas (Anderson,
1991; Balibar e Wallerstein, 1991) apoiadas em lógicas paradoxais e sob o signo das
ambivalências entre presença e ausência, entre práticas e representações, entre razão e
emoção, entre estrutura e acção ou entre universalismo e localismos (Fortuna, 1991). É
este um dos paradoxos da vida social a que Ernesto Laclau se refere fazendo uso da
noção de deslocação, a qual considera como “o nível ontológico primário de
constituição do social”, uma vez que a compreensão da realidade social exige, não a
compreensão do que a “sociedade é, mas do que a impede que ela seja” (Laclau, 1990:
44). Uma formulação retomada por Paul du Gay, quando afirma que “qualquer
identidade é deslocada, na medida em que ela depende de um exterior, o qual nega essa
identidade e cria ao mesmo tempo as condições da sua possibilidade” (du Gay, 1996:
37). A produção identitária passa, assim, por processos contraditórios de construção
simbólica e discursiva. E, como assinalou Donna Haraway, referindo-se ao papel do
discurso científico em tais processos, passa também pela assunção de “estratégias
epistemológicas” de crucial importância na imaginação de possíveis unidades, embora
estas, não passem muitas vezes de mistificações políticas falhadas (Haraway, 1991)38.
Mas, este jogo de espelhos, onde sobressai a dimensão construcionista, simbólica
e interactiva da realidade e das subjectividades não deve, porém, impedir-nos de pensar
o poder das identidades colectivas na promoção do sentido de movimento, da
ambivalência no centro do processo. ‘A identificação é, de facto, ambivalente desde a sua origem’”(Hall, 1996: 3). 38 Apoiada na ideia de identidades fracturadas, Haraway discute o papel do discurso marxista e do “feminismo socialista” na “naturalização” e, ao mesmo tempo, na “desnaturalização” da categoria da “mulher”, postulando que o combate da diferença sexual, do racismo ou da consciência de classe são movimentos resultantes das terríveis experiências históricas geradas respectivamente pelo sistema patriarcal, pelo colonialismo e pelo capitalismo. E interroga-se: “E quem conta como o ‘nós’ na minha própria retórica? Que identidades estão disponíveis para sustentar um tão poderoso mito político chamado ‘nós’ e o que poderia motivar o alinhamento nesta colectividade? (…)”. E mais adiante sublinha: “é importante notar que o esforço para construir bases revolucionárias e epistemologias como movimentos de pessoas empenhadas em mudar o mundo foi parte de um processo que mostrou os limites da identificação. Os instrumentos amargos da teoria da pós-modernidade e os instrumentos construtivos do
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
159
contestação e da acção, os quais – embora possam ser mais ou menos contingenciais –
continuam a emergir em diversas atmosferas sociais. É sobretudo nos contextos onde os
mecanismos de opressão ou os sentimentos partilhados de segregação e exclusão se
tornam mais patentes (acentuando o sentido de pertença a um destino comum), isto é,
onde a presença do Outro se torna mais ameaçadora – seja essa ameaça real ou ilusória
– é onde a identidade mais tende a ganhar uma materialidade própria e a estruturar-se
em formas concretas de acção, sejam elas defensivas ou ofensivas, sejam elas
emancipatórias ou autodestrutivas39.
Em todo o caso, mesmo em relação a situações e ambientes de maior
constrangimento como os da produção40 – como fez notar Sainsaulieu (1988) –, a
identidade decorre, em boa medida, dos processos de aprendizagem cultural e das
identificações entre sectores da força de trabalho nas relações que estabelecem entre si e
com as estruturas de poder. Mas não são apenas estes factores que estão em causa. A
identidade resulta de múltiplos processos de “interdependência entre a experiência de
poder na empresa e da identidade pessoal dos indivíduos confrontados com as
modalidades de acesso ao reconhecimento de si no meio social do trabalho”
(Sainsaulieu, 1988: 13)41. Teresa Rosa, por exemplo, apoia-se nas tipologias de
discurso ontológico acerca dos sujeitos revolucionários devem ser vistos como aliados irónicos na dissolução dos selves ocidentais em nome da sobrevivência” (Haraway, 1991: 157). 39 Não é, sem dúvida, por acaso que nos regimes nacionalistas, autoritários ou “fundamentalistas”, a prática discursivo-ideológica do Estado tende a acentuar a ameaça externa, procedendo a recorrentes alertas e pondo em marcha sentimentos de ódio contra “o inimigo”, seja ele o comunismo, o capitalismo ou qualquer outro potencial invasor. O facto de a identidade fermentar sob poderosíssimas ilusões torna-a um elemento susceptível de manipulação em variadíssimas esferas da vida social, cujos efeitos mostram (por vezes de forma dramática) a força do imaginário sobre a realidade. Um caso extremo de autodestruição através da exaltação da fé foi, por exemplo, o do suicídio colectivo da seita “Templo do Povo” na herdade de Jonestown, na Guiana (em 18 de Novembro de 1978). 40 Numa perspectiva teórica diferente, Alain Touraine referiu-se à importância do princípio da identidade, enquanto elemento constituinte da consciência operária, mas esta só atingiria a sua verdadeira dimensão em termos de acção estratégica e política quando, além daquele, integrasse também os princípios de oposição e de totalidade (Touraine, 1966: 305 e ss.). 41 O mesmo autor assinalou uma variedade de modelos identitários/ culturais estruturados no quadro da empresa: retaimento, unanimismo, separatismo, solidariedade democrática, individualismo, compromisso, afinidades selectivas, estratégico e de integração. Estas orientações culturais estariam vinculadas às diferentes condições de trabalho e categorias socioprofissionais e, segundo Sainsaulieu, relacionam-se ainda com modalidades de representação do poder que “desenham as estratégias prováveis” dos actores, a saber: o modelo de fusão, caracterizado pela solidariedade conformista e pela dependência e que é típico dos operários da linha de montagem sem qualificação; 2) o modelo de negociação, que orienta os actores para a firmação da sua diferença cimentada nas suas competências técnicas, é típico dos operários qualificados e quadros técnicos; o modelo de afinidades, que privilegia as afinidades e lealdades pessoais, excluindo a adesão às solidariedades de grupo ou de classe, é típico dos jovens tecnocratas, dos quadros autodidactas e daqueles que tiveram uma mobilidade socioprofissional rápida; e, finalmente, o modelo de retraimento, que traduz conformismo e evitamento face a qualquer adesão à acção colectiva, é típico dos sectores sem qualquer qualificação, jovens, mulheres, imigrantes, operários ainda rurais, etc. (Sainsaulieu, 1988).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
160
Sainsaulieu e de Dubar (1991) para nos propor um modelo misto das identidades no
trabalho em que os recursos, categorias profissionais e qualificações inerentes aos
diferentes postos e sectores – mas também aos percursos e experiências dos
trabalhadores – se apresentam como factores de bloqueio ou de desenvolvimento da
identidade42 (Rosa, 1998: 104 e ss.). Convirá, pois, ter presente que, seja no âmbito das
experiências produtivas ou noutros contextos, a identidade inscreve-se nas trajectórias
pessoais e colectivas e, portanto, remete sempre para o passado, embora este seja
também objecto de desconstrução e reconstrução, isto é, o processo de construção
identitária afirma-se como um contínuo que interage com outras identidades
previamente estruturadas e que apela aos elementos biográficos e relacionais (Duarte,
1996; Oliveira, 1998)43.
Algumas das actuais abordagens em torno da temática das identidades têm vindo a
pôr em evidência os contributos de diferentes tradições e disciplinas, nomeadamente
cruzando os estudos da acção colectiva com os estudos da narrativa conceptual, bem
como a dimensão ontológica com os conteúdos históricos e empiricamente fundados
sobre a acção social. A questão linguística é aqui um factor incontornável, visto que ela
se prende ao mesmo tempo com a prática e a sua representação simbólica, exprimindo a
42 Tendo em conta o contexto de transformação do tecido industrial da região de Setúbal (abordando casos dos sectores: químico, construção naval, indústria automóvel e electricidade), a autora postula a seguinte tipologia de modelos identitários vinculados a diferentes grupos profissionais: 1) operários profissionais, uma simbiose crítica da arte e da técnica no trabalho: o caminho para uma identidade bloqueada – este é um grupo misto composto por antigos profissionais de ofício, quase profissionais, novos profissionais tecnicamente qualificados e novos profissionais polivalentes (marcado pela confrontação de linguagens e de culturas, tradicionais e modernas: o saber tradicional, a virilidade, a força física, etc., de um lado, os novos saberes técnicos e teóricos, a racionalidade e a preocupação com o mercado, etc., de outro lado). Trata-se em geral de percursos sinuosos e situações ambíguas situadas entre o velho e o novo mundo empresarial, cujos estatutos não obtiveram o reconhecimento social requerido e por isso neles pontificam as atitudes defensivas (p. 105/ 107); 2) operários executantes de emprego estável: a identidade retraída – “são operários formados no posto de trabalho, sem acesso a uma formação profissional continuada, tendo em geral baixa escolaridade (…) que ficam dependentes, para a sua sobrevivência, da sobrevivência da própria empresa” (p. 108); 3) operários em mobilidade ascencional: a progressão de uma identidade carreirista – “este grupo privilegia as boas relações com a hierarquia, relações que considera colaborantes e responsáveis” (p. 109); e 4) operários vigilantes do processo e operários executantes precários: entre a identidade bloqueada e a identidade autónoma e incerta – este é um grupo misto que revela “uma configuração identitária sinuosa, cuja curva se desenha entre pontos marcados pelo bloqueio e os da autonomia-dependência identitárias” (p. 109) (Rosa, 1998: 105-109). 43 Ana Maria Duarte estudou a importância das identidades sociais no caso dos mineiros de Pejão perante uma situação de desemprego e verificou como as acções de formação e de intervenção para a reconversão profissional foram mal sucedidas precisamente devido à presença dos factores identitários no seio daquele colectivo (Duarte, 1996). Luísa Oliveira, por seu lado, apresenta uma interessante análise dos processos de reconversão e inserção profissional dos trabalhadores da indústria de lanifícios da Covilhã, tendo em conta não só as articulações entre o contexto local, o sindicalismo e as identidades profissionais estruturadas na produção, mas também o efeito de expectativa e das trajectórias socioprofissionais dos operários vividas num processo de grandes mudanças e rupturas político-económicas (Oliveira, 1998).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
161
produção de sentido e as forças culturais e políticas que a modelam. Contributos do
campo antropológico ou da análise literária podem ser mutuamente enriquecedores na
análise da identidade44: “O conceito de identidade não existe fora da linguagem e dos
poderes que a estruturam. Assim, ao tratar a questão da identidade, é inevitável que se
trate de um processo de articulação e de representação, ou seja, um processo que é
linguístico e literário” (Capinha, 1997: 104).
Uma orientação interdisciplinar pode, sem dúvida, ser vantajosa. Pode ser “uma
oportunidade para interligar os interesses de longo prazo numa sociologia da acção a
partir de estudos sobre a formação identitária” (Somers e Gibson, 1994: 41). Para estas
autoras, um aspecto decisivo será o recurso a uma epistemologia histórica: “todo o
nosso conhecimento, a nossa lógica, as nossas pressuposições, na verdade as nossas
práticas racionais são (ainda que obscuramente) indelevelmente marcadas com a
assinatura do tempo” (Somers e Gibson, 1994: 44). O tempo e a distância45 constituem
traços estruturadores da identidade, como mostraram alguns estudos sobre as
comunidades emigrantes (Feldman-Bianco, 1993; Capinha 1996 e 1997). Por exemplo,
a memória associada às “saudades da terra” exprime um processo de reinvenção “no
contexto de experiências de migração, vida e trabalho na intersecção de culturas, molda
a construção da identidade do ‘eu’ e eventualmente reforça identidades regionais que se
contrapõem à identidade nacional” (Feldman-Bianco, 1993: 194).
Esta ideia da remissão para a história, para o passado projectivo, pode colocar-se
em diferentes níveis de análise, mas ela não deixa de comprovar como o passado e/ou a
sua permanente reinvenção constituem fundamentos incontornáveis no quadro das
actuais discussões à volta de temas como a identidade, a comunidade e a emancipação.
Ou seja, a relação entre o Homem e a história é a pedra de toque da relação entre o
44 Graça Capinha desenvolveu uma interessante abordagem dirigida a comunidades de emigrantes portugueses nos EUA e no Brasil, em que combina um olhar de carácter antropológico com uma análise discursiva de inspiração literária e centrada na poesia popular: “Toda a fragmentação e multiplicidade do sujeito se acentua fortemente devido à experiência da própria emigração. Sem dúvida que aquilo que se identifica como ‘o outro’, aquilo que é deixado de fora, aquilo que se considera como diferença, é tão importante para o entendimento do processo de identificação quanto aquilo que se inclui para o definir. O jogo com a palavra, a adequação desta a um contexto que é, de per si, mobilidade e diferença, traduz-se nesse ‘discurso de fronteira’ que simbolicamente reconfigura a multiplicidade identitária do emigrante” (Capinha, 1997: 105). 45 “A identidade de alguém ou de algum grupo é produzida simultaneamente em muitos locais diferentes de actividade através de muitos agentes diferentes em nome de muitos propósitos diferentes. A identidade do lugar onde vivemos, entre os nossos vizinhos, amigos, familiares ou ‘co-estranhos’ é apenas um contexto social, e talvez não o mais importante em que ela é modelada. Para uma abordagem moderna da
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
162
Homem e a acção, já que “o ‘passado projectivo’ introduz nas narrativas da identidade e
da comunidade uma necessária discrepância entre o momento do discurso e o espaço da
memória” (Bhabha, 1995: 59). Perante a crise das velhas utopias e as imensas nuvens de
incerteza que se deparam ao mundo contemporâneo, os desafios futuros e a recriação de
novas utopias exige, pois, uma permanente reinvenção do passado como resposta ao
risco de eternização do presente que as subjectividades fragmentárias e simplificadas
acarretam. Como nos alerta Boaventura Sousa Santos ao abordar, a partir do dilema
entre raízes e opções, os actuais perigos que se colocam à humanidade, “o futuro já
perdeu a sua capacidade de redenção e o passado ainda não a adquiriu. Já não somos
capazes de pensar a transformação social a partir da equação entre raízes e opções, mas
tão pouco somos capazes de a pensar sem ela. O perigo reside na eternização do
presente e na sua capacidade de fulguração kafkiana. O perigo reside em que, uma vez
desprovidos das tensões em que formámos a nossa subjectividade, nos quedemos por
formas simplificadas de subjectividade” (Santos, 1996: 31)46. Se o desenraizamento
prometido pela era moderna foi, num certo sentido, vivido como libertação, se o
individualismo moderno constituiu um factor de emancipação, de conquista de
autonomia e de ampliação de escolhas, a ambivalência que tal processo transporta é hoje
cada vez mais visível nos efeitos destrutivos do individualismo atomizado, da
desfiliação (Castel, 1990), do aumento do risco (Beck, 1992) e da insegurança: “no
mesmo acto, a individualização-emancipação dobra-se numa individualização-
fragilização. Tudo se torna mais indeterminado e cada um de nós é levado a organizar a
sua vida de um modo mais precário e solitário” (Fitoussi e Rosanvallon, 1997: 19). Este
processo parece arrastar consigo um “mal-estar identitário” – o qual, de resto, se afirma
identidade na etnografia, é a identidade dispersa em muitos lugares diferentes e de carácter diferente que tem de ser captada” (Marcus, 1992: 315). 46 A crítica da modernidade e do progresso efectuada por Walter Benjamim a partir da imagem do Angelus Novus é aqui retomada por Santos, quando discute o binómio raízes e opções. A interpretação que Benjamim faz do quadro de Klee – de que o autor se serve como metáfora que para ele simboliza a necessidade de preservar o inconformismo perante o futuro a partir da redenção do passado, um passado cuja capacidade redentora tem sido tragicamente ameaçada pelo anjo da história moderna – dá-nos a imagem dramática e catastrófica da modernidade e do progresso: “Representa um anjo que parece estar a afastar-se de alguma coisa que contempla fixamente. Os olhos estão arregalados, tem a boca aberta e as asas estendidas. É este, seguramente, o aspecto do anjo da história. Ele tem a face voltada para o passado. Onde vemos perante nós uma cadeia de acontecimentos, vê ele uma catástrofe sem fim que incessantemente amontoa ruínas sobre ruínas e lhas vai arremessando aos pés. Ele bem gostaria de ficar, de acordar os mortos e de voltar a unir o que foi destroçado. Mas do paraíso sopra uma tempestade que lhe enfuna as asas e é tão forte que o anjo já não é capaz de as fechar. Esta tempestade arrasta-o irresistivelmente para o futuro, para o qual tem as costas viradas, enquanto o montão de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Esta tempestade é aquilo a que chamamos progresso” (Walter Benjamim, citado por Santos, 1996: 7).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
163
mais ligado à dimensão afectiva e sentimental do que à dimensão racional47 – que é
tanto mais notório quanto mais se assiste ao desmoronamento de alguns dos corpos
secundários que asseguraram a estabilidade, a solidariedade e o “contrato social”: a era
do “pós-contratualismo” comporta uma infinidade de riscos não só do ponto de vista do
indivíduo frágil e despojado, mas também no que respeita à defesa dos regimes
democráticos (Santos, 1998).
Se a questão da identidade nos coloca perante desafios e representações da
realidade – passada, presente e futura –, capazes de condicionar de forma decisiva a
nossa acção na sociedade, tais desafios passarão certamente por formulações inovadoras
acerca das novas e velhas formas de vida colectiva, de participação cívica e política48,
pela capacidade de denúncia das novas formas de opressão e alienação que se nos
deparam e, consequentemente, pela redefinição de possíveis caminhos emancipatórios.
Uma tal leitura aconselha-nos a dar atenção à noção de comunidade, a qual parece vir a
ressurgir como um elemento central em algumas correntes das ciências sociais e da
teoria política.
1.2.2 - Comunidade e emancipação
Seria difícil proceder ao recenseamento dos diferentes sentidos que hoje envolvem
a noção de comunidade na teoria sociológica: conjunto de imperativos morais capazes
de preservar o modo de vida natural; conjunto de experiências sociais definidor de um
sistema cultural particular; conjunto de relações sociais estruturadas numa dada
instituição; conjunto de relações sociogeográficas enraizadas numa dada localidade;
conjunto de valores e sentimentos subjectivos produtores de identidade colectiva em
torno de um projecto de sociedade; eis algumas das perspectivas em que a comunidade é
concebida49. Em diferentes linguagens e disciplinas científicas (da história à ciência
política, da sociologia à geografia, da antropologia aos estudos linguísticos e literários)
ou no quadro de diferentes temas de reflexão (a globalização, a acção política, os
47 Especialmente quando nos referimos ao indivíduo e à “auto-identidade” (Giddens, 1991: 171). 48 A “morte” da esfera pública e a sua “compensação” individual através da subjectividade narcisista aventada por Richard Sennett (1990) corresponde, sem dúvida, a uma tendência visível nas sociedades actuais. Mas essa leitura pode conduzir-nos a uma atitude de inelutável e deprimente paralisia. Se os sinais de tragédia se tornassem bloqueadores de qualquer esperança na humanidade nada mais nos restaria do que abdicar da acção e adormecer perante o precipitar dessa tragédia. 49 Giddens, por exemplo, refere que “a noção de comunidade, aplicada tanto a culturas pré-modernas como a culturas modernas, compreende vários conjuntos de elementos que devem ser distinguidos: as relações comunais de per se (que tratarei basicamente em relação com o lugar); as relações de parentesco; as relações de intimidade pessoal entre pares (amizade) e as relações de intimidade sexual” (1992: 90).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
164
movimentos sociais, as relações de trabalho, os consumos simbólicos e culturais) a
comunidade assume variadíssimos contornos e significados.
A maioria dos autores clássicos da sociologia lidou com a noção de comunidade
sem a definir com rigor, mas as principais referências que lhe fizeram – Comte, Marx,
Durkheim e Weber – quase sempre a conceberam, ainda que implicitamente, na sua
interferência com a classe e a acção colectiva. O que significa que a comunidade se
tornou objecto de reflexão no quadro do mesmo processo que trouxe a classe para o
centro de discussão. Ou seja, tal como acontece com a classe, a questão da comunidade
apenas se coloca perante o processo de industrialização das sociedades ocidentais. Em
Weber, ela traduz a presença do sentimento subjectivo por oposição à racionalidade da
relação associativa; em Comte é uma forma de vida social em declínio a que se opõe a
nova sociedade industrial; em Durkheim o desaparecimento da solidariedade mecânica e
a emergência das situações de “anomia” resultou da desagregação da comunidade
tradicional; e também Marx, embora menos “saudosista” do que a maioria dos seus
contemporâneos, não deixou de estar atento aos efeitos destrutivos do capitalismo sobre
as formas de sociabilidade comunitárias da sociedade pré-capitalista.
A visão tradicionalista do termo “comunidade” é fortemente devedora do conceito
de gemeinschaft (comunidade), inicialmente definido por Ferdinand Tönnies. Segundo
este autor, ao contrário da gesellschaft (sociedade)50, a gemeinschaft envolve três
aspectos fundamentais, a saber: os laços sanguíneos; o sentido de pertença a um lugar; e
a memória. Estes três aspectos adquirem profundas consequências em termos do
sentimento de pertença e dão lugar a fortes relações de solidariedade, de vizinhança e de
amizade, permanecendo estreitamente inter-relacionados “em todos os fenómenos e no
seu desenvolvimento, bem como na cultura humana em geral e na sua história”
50 Esta, é sobretudo marcada pela racionalidade e pela presença de laços impessoais e contratuais. De acordo com Tönnies, a gesellschaft caracteriza-se pela negação, ou seja: nela não existem acções derivadas de qualquer unidade existente à priori; nenhuma acção manifesta a vontade e o espírito dessa unidade, mesmo quando desencadeada pelo indivíduo; nenhuma acção, enquanto desempenhada pelo indivíduo, tem lugar em nome dos que a ele estejam unidos (Tönnies, 1963: 65). Na base deste conceito, cada indivíduo é concebido como actuando por si mesmo. Tanto os objectos e o valor dos bens que são objecto de troca como os seus proprietários são tomados separadamente uns dos outros: “o que alguém possui permite-lhe daí retirar proveito excluindo todos os outros”. Contudo, se à partida não existe algo que tenha um valor comum, esse algo pode ser introduzido pelos indivíduos, o que significa que “eles precisam de inventar uma vontade e personalidade comuns”. Assim, para que a gesellschaft se realize e desenvolva o consenso deverá ter lugar sob determinadas “valores objectivos” – de tipo contractual – que garantam os diversos tipos de intercâmbio da sociedade através de uma “vontade racional” (por oposição à “vontade natural” característica da gemeinschaft) (Tönnies, 1963: 64 e ss).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
165
(Tönnies, 1963: 42)51. O enquadramento da comunidade no tempo e no espaço
continuou presente em variadíssimos estudos ao longo deste século. Norbert Elias, por
exemplo, interrogou-se a esse propósito sobre a noção de comunidade, procurando
explicitar os termos em que o conceito deve ser entendido: “quais são, por outras
palavras, os aspectos específicos da comunidade numa comunidade? Referem-se,
evidentemente, às redes de relações entre as pessoas organizadas numa unidade
residencial – de acordo com o lugar onde normalmente vivem. As pessoas estabelecem
relações se realizam negócios, se trabalham, se comungam uma religião ou se se
divertem umas com as outras e essas relações podem ser ou não altamente
especializadas e organizadas. Mas também estabelecem relações quando vivem juntas
no mesmo lugar, quando fazem as suas casas na mesma localidade” (Elias e Scotson,
1994: 146). O entendimento da comunidade (ou da identidade) no quadro de um dado
espaço ou território continua a ser, sem dúvida, um procedimento analítico pertinente52.
51 Na linha da definição de Tönnies, a pequena comunidade está estreitamente vinculada à ideia de partilha de grupos unidos por laços de sangue ou de vizinhança no seio dos quais prevalecem os valores partilhados e inquestionáveis. Para a maioria dos autores do século passado, a comunidade era sobretudo centrada nas relações face-a-face, vinculada à ideia de lugar e, portanto, vista num sentido conservador. Robert Nisbet caracteriza o conceito clássico de comunidade nos seguintes termos: “inclui todas as formas de relação caracterizadas por um alto grau de intimidade pessoal, profundidade emocional, envolvimento afectivo, coesão social e continuidade no tempo. A comunidade funda-se no homem concebido na sua totalidade, mais do que num ou noutro dos papéis, tomados separadamente, que ele pode abraçar na ordem social. Ela desenha a sua força psicológica em níveis mais profundos de motivação do que os de mera volição ou interesse e alcança a sua realização submergindo a vontade individual que está presente em uniões de mera conveniência ou base racional” (Nisbet, 1970: 48). Por seu lado, Max Weber dá, como se sabe, grande atenção ao grupo de status, o qual, segundo ele, pode constituir mais facilmente uma comunidade do que a classe. Apenas excepcionalmente e quando “os efeitos da situação de classe são nitidamente reconhecíveis (…), só então o contraste das possibilidades de vida pode ser apreendido e sentido”. Ou seja, a acção comunitária pode estar na base de uma actuação de classe, mas esta “não é, no seu aspecto fulcral, uma actuação dos participantes de uma mesma classe, mas sim uma actuação entre membros de diferentes classes” (Weber, 1989: 741). Refira-se ainda que Weber faz uso de noções originalmente diferentes da distinção gemeinschaft/ gesellschaft – usa antes as noções vergesellschaftung/ vergemeinschaftung que no original alemão significariam à letra “socialização/ comunalização” (cf. Weber, 1944: 33, nota* dos tradutores para a língua espanhola) –, mas que são em geral traduzidas por communidade/ sociedade visto que possuem um significado idêntico ao dos termos cunhados por Tönnies. 52 A vastidão de estudos “de comunidade” impossibilita qualquer levantamento exaustivo. Refira-se, a título de exemplo, alguns dos que se centraram em comunidades ou localidades particulares (Pinto, 1985; Almeida, 1986, A. N. Almeida, 1993; Silva, 1994; Oliveira, 1998; Davies, 1992; Bentley, 1992; Bourke, 1994). Outras análises tomaram a ideia de local e de território como factores decisivos para a compreensão das lógicas de estruturação urbana (Gama, 1987; Thrift, 1996) ou dos processos de implantação industrial (Medeiros, 1988; Reis, 1987, 1988 e 1992; Ferrão, 1987; Silvano, 1997). Os estudos de Fernando Ruivo e outros autores olham o local do ponto de vista do poder autárquico na sua articulação com o Estado (Ruivo, 1990 e 1995; veja-se VVAA, 1988); Pedro Hespanha centra-se nas comunidades camponesas e na importância da propriedade fundiária como elemento providencial e factor de segurança e reprodução social das famílias em meio rural (Hespanha, 1993; 1994); e Carlos Fortuna questionou a ideia de local no contexto da globalização (Fortuna, 1991).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
166
Mas os propósitos aqui em causa justificam que se proceda a uma reflexão mais
alargada em torno do referido termo53.
Tal como a identidade, também a comunidade54 é hoje um conceito que suscita
renovados debates. Dada a enorme diversidade de sentidos com que tem sido utilizada, a
noção de comunidade corre o risco de se tornar um conceito desprovido de significado e
sem potencialidades analíticas. Pese embora a sua capacidade descritiva, não é um
conceito neutro: “é normalmente ambíguo, parcialmente analítico, parcialmente
normativo e muitas vezes romanticamente nostálgico” (Gilbert, 1992: 32)55. Durante
muito tempo a ideia de comunidade manteve uma carga conservadora, sendo sobretudo
evocada perante a ameaça de destruição de uma dada tradição cultural e, portanto,
concebida em contraste com a modernidade. É também nessa base que a comunidade
apareceu ligada às primeiras formas de resistência do operariado inglês face à
industrialização “selvagem”. O que significa que foi no quadro comunitário que o
artesanato pré-industrial ganhou relevo na formação da classe operária, uma vez que a
emergência da “consciência de classe” terá, no seu início, sido animada mais por um
instinto “conservador” do que por uma consciência “emancipatória”56.
53 Embora seja conveniente recordar que os propósitos desta investigação têm como base a relação entre comunidades espacializadas e a produção industrial – assunto a que mais diante me dedicarei, direccionando a reflexão para a vertente histórica de emergência da classe operária e sua inserção comunitária –, a ideia de “comunidade” está longe de se circunscrever à noção territorializada que acaba de ser referida. E é justamente porque à dimensão tradicionalista e espacial se junta a importância da dimensão simbólica, discursiva e até doutrinária veiculada, por exemplo, em expressões como a “comunidade operária”, a “classe operária” ou o “proletariado” que os conceitos de “classe” e de “comunidade” permanecem tão estreitamente ligados e levantam problemas teóricos tão profundos. Mais profundos do que pode parecer quando tais noções são interpretadas no seu sentido mais clássico. 54 Por exemplo, a classe, a nação, a etnia, a fábrica ou a aldeia podem ser concebidas como produzindo formas de identificação específicas, isto é, podem fazer emergir o sentido de partilha comunitária geralmente inscrito na identidade colectiva. O “espaço da comunidade” é, em Boaventura Sousa Santos, visto como constituído pelas “relações sociais reunidas em torno da produção e reprodução de territórios físicos e simbólicos e identidades e identificações comunitárias” (Santos, 1995: 420). 55 Apesar de todos os problemas teóricos e sociais que no passado se levantaram à volta do conceito de comunidade, o que é facto é que o seu abandono, sugerido por Alain Macfarlane (1977), não foi possível porque simplesmente não se encontrou outro melhor para o substituir. O termo continua a ser usado quer pelas pessoas que vivem na comunidade, quer pelos sociólogos e antropólogos que as estudam, incluindo o próprio Macfarlane que propôs a sua rejeição continuou a usá-lo, sem no entanto o definir (Calhoun, 1978: 363). 56 Segundo Ernesto Laclau a emancipação pode ser concebida em múltiplas dimensões: 1) uma dimensão dicotómica, em que há uma absoluta descontinuidade entre emancipação e ordem social; 2) uma dimensão holística, em que a emancipação afecta todas as esferas da vida social; 3) uma dimensão de transparência, em que na emancipação não há lugar para nenhum tipo de alienação ou representação de poder, ou seja, a emancipação pressupõe a eliminação do poder e a abolição da distinção sujeito/ objecto; 4) a pré-existência de forças opressoras, em que a opressão significa a existência de poderes que impedem o livre desenvolvimento de algo, isto é, a emancipação é um acto de libertação, mais do que um acto de criação; 5) pressupõe a existência de um terreno ou uma base de partida (ground) que será deixada para trás; e 6) finalmente, pode falar-se de uma dimensão racional, ou seja, ao contrário do
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
167
Como já foi referido, o presente estudo dirige-se a uma região territorialmente
identificada e tem por objectivo analisar, por um lado, as diferentes formas de
interconexão entre a lógica produtiva e as modalidades identitárias e de acção colectiva
aí recriadas e, por outro lado, o efeito da lógica comunitária veiculada por um
operariado que se mantém ligado às diversas comunidades espalhadas por esta zona de
implantação industrial. Mas, se a própria natureza do objecto de estudo poderia
justificar, por si mesma, a importância do conceito de comunidade, deve sublinhar-se
que o mesmo não pode ser utilizado nem acriticamente nem no sentido tradicionalista.
Em primeiro lugar, porque, como aconteceu de um modo geral, também nesta região as
características tradicionalmente associadas à ideia de comunidade – o vínculo
sentimental às convenções e costumes de uma terra, de um lugar querido e familiar –
foram sendo ao longo do tempo pulverizados pelos novos arranjos geográficos e
demográficos sob o impulso do mercado e da industrialização (Sack, 1992)57. Em
segundo lugar, porque também neste contexto fará todo o sentido perspectivar a noção
de comunidade para uma abordagem mais construcionista, dado que a acção colectiva –
seja ela de sentido conservador ou emancipatório, apoie-se ela em práticas de
consentimento ou de resistência e tenha ela lugar na esfera do consumo ou das relações
de trabalho – transporta dimensões simbólicas cruciais para o entendimento dos
processos de construção e reconstrução das identidades. Refiro-me, inclusive aos
processos de reestruturação da comunidade tradicional, os quais se inserem numa
relação dialéctica entre os efeitos modeladores das acções e experiências de luta da força
de trabalho e a sua capacidade para as condicionar, enquadrando-as, neutralizando-as ou
disseminando-as. Mas, obviamente que tais processos não se limitam – como, aliás,
tentei mostrar no ponto anterior – a sofrer os efeitos directos da experiência
espacializada, visto que a produção de identidade não depende apenas, nem sempre
discurso escatológico de base religiosa, que absorve o real num sistema de representação totalizante, numa escatologia secular a ideia de uma absoluta representação não pode apelar a uma entidade externa ao real (Deus) e, nessa medida, numa acção de emancipação radical o real terá de coincidir com um princípio de racionalidade absoluta por forma a que esse real deixe de se apresentar como uma positividade opaca com a qual nos confrontamos (Laclau, 1996: 1-2). 57 Como tenho vindo a referir, esse fenómeno continua a dar lugar a inúmeras reflexões onde se destacam os contributos da análise geográfica. David Sack – numa passagem referida por Giddens (1992) –comenta-o nos seguintes termos: “o sentido primário e integrador de lugar tem vindo a fragmentar-se em formas complexas e desconcertantes. O espaço está a tornar-se muito mais integrado, mas territorialmente fragmentado. Os lugares são específicos e únicos, mas em muitos sentidos parecem genéricos e semelhantes (…). A nossa sociedade armazena informação sobre lugares, mas nós temos pouco sentido de lugar. E as paisagens que resultam dos processos modernos parecem ser pastiches, desconcertantes, inautênticas e justapostas” (Sack, 1992: 642).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
168
primariamente, do observável ou das actividades concentradas num local (Marcus:
1992: 315)58.
Para situar a reflexão para além da visão tradicionalista e orientar o conceito de
comunidade numa perspectiva crítica, há que ter presente que, no fundo, em qualquer
grupo envolvido em algum processo temporal relativamente duradouro, na grande ou na
pequena escala, haverá sempre algum tipo de partilha de valores e de objectivos. A
sociedade e o colectivo não resultam apenas da dimensão contratual construída na base
do interesse racional e individual dos seus membros, como sugerem alguns
individualistas mais radicais, nem resulta, em contrapartida, de uma total
homogeneidade ou acordo consensual.
Por vezes as discussões que envolvem a noção de “comunidade” orientam-se para
uma dimensão societal mais abrangente, nomeadamente quando se centram na escala
nacional, à semelhança, de resto, com o que acontece na teoria política em que a acção
do Estado e o papel das instituições governativas são tomados como factores de
promoção da regulação social, ou seja, instâncias produtoras de comunidade política
(Weber, 1944; Huntington, 1975). Neste quadro, a escola liberal sempre colocou a
ênfase no domínio das “oportunidades”, no papel da “escolha racional” e na liberdade
individuais, apresentando-as como o antídoto da comunidade “coerciva” apoiada em
valores tradicionalistas59. Segundo Robert Bellah, uma comunidade ou boa comunidade
58 George Marcus refere que a conotação da comunidade com a ideia de solidez e homogeneidade, seja ela dispersa ou concentrada num lugar, foi subsituída no quadro da modernidade pela ideia de que a produção de identidade não depende apenas ou sequer principalmente do observável num local ou numa diáspora. Mas, chama a atenção para a importância do poder integrador do Estado e da economia – nomeadamente através da inovação tecnológica – sobre os processos de dispersão e fragmentação identitária (Marcus, 1992: 315). 59 Vale a pena lembrar algumas da principais divergências entre liberais e comunitaristas. Os teóricos liberais, em especial no âmbito da teoria política, centram-se sobretudo no respeito pelos direitos individuais. Os indivíduos têm desenvolvem direitos morais uns face aos outros os quais servem de constrangimento perante o governo e perante os outros. A ideia de direitos morais baseada na igualdade moral, na igualdade perante a lei e no universalismo, no direito à propriedade individual constitui o principal garante da liberdade e da justiça, isto é, fornece a base de legitimidade do sistema político democrático. Ao contrário, os “comunitaristas” clamam que o que os liberais vêem como normas universais baseadas no carácter universal da humanidade, são de facto normas enquadradas por entendimentos partilhados de comunidades específicas. Os indivíduos não podem ser uma base firme de julgamento moral já que o mesmo é recolhido a partir da comunidade onde esses indivíduos estão inseridos. O indivíduo abstracto não existe e por isso a base da teoria moral é a comunidade e o seu bem, os indivíduos possuem direitos na mesma medida em que eles sirvam o bem comum. É a essa luz que os comunitaristas têm combatido as ideias liberais. “A ideia de direitos morais num universalismo vazio que erradamente abstrai da única base real de direitos morais, a comunidade. Apenas na base de uma concepção partilhada de boa-vida, apenas no quadro de uma substantiva comunidade política e ética (com uma cultura política específica) podemos alcançar vidas morais com significado e usufruir da verdadeira liberdade” (Cohen e Arato, 1994: 10).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
169
(Bellah et al., 1991) contém elementos de acordo e elementos de desacordo quanto ao
significado dos valores partilhados, bem como do que são ou devem ser os objectivos de
realização do bem comum: “uma boa comunidade é neste sentido uma forma de vida
inteligente e reflexiva na qual existe de facto consenso, mas onde o consenso pode ser
desafiado e muda, muitas vezes gradualmente, algumas vezes radicalmente, ao longo do
tempo porque a comunidade coloca continuamente a questão ‘que espécie de
comunidade é esta?’ nos termos do significado institucional que lhe dá valor e
substância” (Bellah, 1997: 388). Discutindo o problema da “comunidade” versus
“oportunidade”, este autor salienta a importância decisiva do papel das instituições
(jurídicas, pedagógicas, etc.) enquanto dimensão central sem a qual não existe de facto
“livre escolha”, sem a qual a vida comunitária dificilmente se poderia tornar efectiva nas
sociedades modernas e sem a qual estariam ameaçados os valores e padrões de vida
colectiva que permitem modelar o tipo de pessoa capaz de conquistar oportunidades.
Esta concepção neoliberal recusa como solução a ideia da “comunidade adquirida” (da
pequena tradição), mas ao mesmo tempo denuncia o excesso de individualismo e
advoga para as sociedades complexas a “comunidade escolhida”, enquanto sinónimo de
“bem comum”, uma comunidade plural e heterogénea, assente em pressupostos
semelhantes aos defendidos por Bellah, segundo os quais a recuperação da dimensão
comunitária passará mais pela acção institucional do que pelo reforço da actividade
associativa da sociedade civil ou pela acção dos movimentos sociais e das correntes
culturais. É a resposta institucional às supostas ameaças de “anomia” e deterioração das
estruturas sociais, uma resposta que já Durkheim tinha enfatisado e que John Dewey
retomou ao sustentar que as sociedades do século XX “invadiram e parcialmente
desintegraram as pequenas comunidades de épocas passadas, sem gerarem uma grande
comunidade” (Dewey, 1927, citado por Ferrara, 1997: 399). Esta orientação tem vindo a
animar alguns debates actuais entre liberais e comunitaristas, dando também lugar a
propostas mistas ou de compromisso, que, ao mesmo tempo, rejeitam a solução
individualista e o saudosismo idealista60 da comunidade tradicional (Bauman, 1997: 86).
60 Segundo Zigmund Bauman, uma das razões do sucesso dos autores “comunitaristas” prende-se com a ideia nostálgica que apresenta a “comunidade natural” como independente e geralmente em oposição ao Estado. Aquele autor acusa os filósofos comunitaristas de verem o Estado como se este estivesse abandonado a um papel de garante contra os factores de produção de risco que se colocam à existência humana: “ele cuida da liberdade, mas ao fazer isso deixa os indivíduos entregues a meios patentemente inadequados à sua luta para navegar por entre os riscos da liberdade no sentido de rumar até ao paraíso das ‘escolhas significativas’. Como outrora a nação, também agora a ‘comunidade natural’ se ergue em defesa desse sonho de segurança celestial. Esse céu localiza-se longe das estradas da exploração, em
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
170
Em alternativa à visão liberal que concebe a cidadania num sentido restrito de
defesa dos direitos políticos individuais assegurados pelo Estado, diversos autores
(Etzioni, 1994; Taylor, 1991; Mouffe, 1996) vêm propondo que o défice de comunidade
seja colmatado, não por formas atomizadas de intervenção, mas sim por modos de
participação colectiva em novas bases, em que se recusa a solução individualista e se
procuram novos caminhos de orientação emancipatória (Santos, 1994, 1995 e 1998;
Mouffe, 1996; Laclau, 1996; Ferrara, 1997; Bellah et al., 1991 e Bellah,1997; Bauman,
1996).
Para Boaventura Sousa Santos a comunidade é um dos princípios em que o
projecto da modernidade se apoiou (ao lado dos princípios do mercado e do Estado)
para levar a cabo a acção de enquadramento e regulação dos processos sociais. Todavia,
tal não impediu que a comunidade se constituísse como um princípio de representação,
de argumentação e de acção que permanece em aberto. Quer isto dizer que,
comparativamente com os princípios do mercado e do Estado, o princípio da
comunidade “foi o mais negligenciado nos últimos duzentos anos e tanto assim é que o
mesmo quase acabou sendo absorvido pelos princípios do mercado e do Estado. Mas
também por essa razão, é o princípio que permaneceu menos estorvado pelas
determinações (sistémicas) e está em melhor posição para ser envolvido numa dialéctica
positiva com o pilar da emancipação” (Santos, 1995: 23). Segundo Santos, apesar da
enorme diversidade dos elementos constituintes da comunidade, há um ponto que lhes é
comum: a sua capacidade de resistência. Assim, o lugar marginal que ocupou face à
acção predadora e racionalizadora do mercado e do Estado, tornou-a aberta a novos
contextos e preservou-lhe potencialidades de sentido emancipatório, as quais podem ser
activadas a partir das suas dimensões menos sujeitas à colonização pelo projecto da
modernidade: a participação, a solidariedade e o prazer. As comunidades inserem-se
hoje em redes comunitárias e não existem fora das determinantes estruturais das
formações sociais. Articulam-se com uma diversidade de locus de poder estrutural61.
Nessa medida, para se oporem aos poderes hegemónicos precisam de uma representação
lugares que os navegantes solitários já foram há muito desencorajados de visitar. Todavia, por mais ansiosos que estejam os comunitaristas de ‘enraizar’ esses lugares num genuíno ou inventado passado pré-moderno, é o moderno espírito de aventura, de explorar o inexplorado, de tentar o não tentado que os torna atractivos, tanto para os filósofos como para os seus leitores. Talvez desta vez...” (Bauman, 1997: 86). 61 Os seis espaços estruturais propostos por Santos são os seguintes: o espaço doméstico, o espaço produtivo, o espaço do mercado, o espaço da comunidade, o espaço da cidadania e o espaço mundo (Santos, 1995: 420-424).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
171
de si mesmas e de meios para ampliar as suas audiências e públicos. Enquanto parte de
processos de mudança sociocultural mais vastos, a acção emancipatória traduz-se na
recusa do discurso hegemónico colonizador62. Esta proposta de combate apoiada na
recuperação do princípio da comunidade só é possível com a emergência de um novo
paradigma de conhecimento emancipatório orientado no sentido do cosmopolitismo
contra-hegemónico e capaz de reconstruir a neocomunidade em espaços mais vastos de
solidariedade (Santos, 1995: 48).
A realização da comunidade significa, neste sentido, a presença de fórmulas
discursivas ou processos em construção que aspiram à conquista de uma nova forma de
identidade colectiva. Importa, também aqui, ter presente a dupla dimensão espaço/
tempo. Quer as instâncias do poder hegemónico que intervêm em nome da comunidade,
quer os actores que a pretendem preservar ou desenvolver, posicionam-na na história.
Tal como já se viu a propósito da dimensão narrativa das identidades, também aqui se
pode dizer que o processo de “destradicionalização” da comunidade constitui uma
forma de reinventar a tradição: “a redefinição e o retrabalhar do passado realmente cria
esse passado” (Morris, 1996: 224). A comunidade tornou-se, de resto, tema de reflexão
no preciso momento em que as bases da comunidade tradicional começaram a ser
ameaçadas pelo capitalismo.
É neste sentido que o estudo do movimento operário tem de ser situado entre a
comunidade pré-moderna em fragmentação e o programa político de formação da classe
proletária enquanto construção identitária (ou comunidade emancipatória) no quadro do
projecto da modernidade. Por outro lado, a acção colectiva vista num sentido
comunitário é marcada por orientações e subjectividades, ora dirigidas para a defesa das
raízes e do passado, ora num sentido prospectivo e projectadas para o futuro. A
distinção, formulada por Paul Morris, entre comunidades de descendência e
comunidades de ascendência é, a este propósito, sugestiva. As comunidades de
descendência correspondem a uma centragem nas origens e na tradição. Tendem a
defender a autenticidade das suas raízes no sentido em que a identidade dos seus
membros se apoia sobretudo nos valores e crenças particulares, cimentadas no passado e
62 As possibilidades de acção emancipatória a partir do princípio da comunidade traduzem-se na prática nas acções de resistência e de luta que os grupos oprimidos podem desencadear, uma vez que a comunidade é aqui entendida como uma neocomunidade inserida em processos de mudança histórico-social e não como a comunidade romântica onde impera a igualdade e o consenso ou a ignorância submissa.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
172
procuram preservar a sua diferença através das sucessivas gerações63. As comunidades
de ascendência, pelo contrário, correspondem a um sentido missionário e apoiam-se
principalmente na construção de uma retórica ou doutrina centrada num futuro desejado.
Apesar destes processos poderem ser observados em diferentes campos da vida social –
tais como a religião, a classe, a etnia ou a nação –, pode dizer-se que se trata, sobretudo,
de fórmulas discursivas que em geral se revestem de um conteúdo político e ideológico.
Enquanto as comunidades de ascendência se projectam para fora e para diante (são de
tipo centrífugo) e aspiram a uma totalidade, as comunidades de descendência projectam-
se para dentro e para trás (são de tipo centrípeto) e aspiram à recuperação de uma
identidade anterior, que supostamente pré-existe a qualquer construção (Morris, 1996:
238-243).
Convém, no entanto, ter presente a complexidade inerente a cada uma destas
orientações e interpretá-las num sentido dialéctico. Ou seja, nem sempre aquela
distinção é claramente tangível, já que qualquer dessas subjectividades contém
elementos de ambos os tipos (ascendente e descendente), os quais, por sua vez, se
inscrevem nos mitos e na retórica que acompanham cada um dos discursos
comunitaristas. Existem por vezes estreitas conexões, se bem que nem sempre nítidas,
entre motivações e ‘causas’, ou melhor, entre os ideais voluntaristas e os seus
fundamentos sociológicos. Se tomarmos o exemplo da classe enquanto projecto que
procura realizar uma identidade de tipo ascendente, existe uma apropriação metafórica
de elementos do passado ‘comunitário’ que é facilmente detectável, por exemplo, no
discurso em torno da utopia comunista. Paralelamente, e como atrás indiquei, as
orientações apoiadas na defesa da tradição não raro escondem processos de reconversão
que transportam uma lógica ascendente. Dir-se-ia que o discurso comunitário dirigido
numa lógica emancipatória e cosmopolita procura sobretudo articular estas duas
dimensões – que também poderiam ser vistas como a oposição raízes versus projectos
ou defesa territorializada versus procura da universalidade –, defendendo as origens mas
ao mesmo tempo adaptando-as e projectando-as no futuro e no exterior. Estaríamos
neste caso perante uma forma de localismo que tenta globalizar-se, como diria
Boaventura Sousa Santos.
1.2.3 - O problema do enquadramento espacial
63 O mesmo autor refere também que as comunidades de descendência apoiam-se geralmente em hierarquias menos estruturadas e coercivas do que as comunidades de ascendência.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
173
Um importante problema que desde sempre se colocou na análise histórica da
formação do operariado como classe, residiu na dificuldade em situar a classe, quer no
nível nacional, quer no nível local. No primeiro caso, muito embora esse tenha sido o
plano de eleição das abordagens estruturais (marxistas e não marxistas) ela pressupõe,
por um lado, que as “formações sociais” são um todo homogéneo modelado pela acção
institucional e pelo sistema produtivo “nacional”, mas, por outro lado, tem subjacente
uma visão idealista e liberal, segundo a qual as classes se estruturam na base de uma
miríade de indivíduos com características comuns que podem actuar racionalmente para
organizar os seus interesses de classe em acção colectiva. O problema é que na escala
nacional é impossível observar as classes em acção, já que qualquer espaço nacional
contém uma imensidão de contextos diversificados, culturas e formas identitárias e,
portanto, a classe não passa de uma abstracção. No caso da escala local – embora, como
mostrou Weber, seja difícil a acção de classe coincidir com a comunidade64 – é mais
fácil que a classe surja como uma entidade observável e envolvida em conflitos
concretos na base das similitudes locais, das circunstâncias particulares e dos interesses
partilhados em oposição ao enquadramento do capital ou do poder político (Calhoun,
1982: 15; veja-se também Thompson, 1987).
A questão do espaço continua, portanto, a ser crucial na articulação entre a classe
e a comunidade. Do mesmo modo que as relações de produção e de reprodução do
capitalismo não podem ser tomadas como entidades a flutuar no vazio, os processos
sociais de estruturação identitária – sejam eles baseados numa lógica comunitária, numa
lógica de classe, ou na base da articulação entre ambas – decorrem sob o ritmo da
estruturação espacial65. Efectivamente, esta questão prende-se directamente com a
relação entre a classe e a comunidade e liga-se ainda ao fenómeno dos tempos-livres que
aqui é tomado como elemento importante na estruturação das identidades de classe e/ou
64 No seu famoso texto “Classe, Status e Partidos”, Weber (1989) sustenta que, embora uma situação comum de classe possa fazer despontar uma acção de comunidade, não se trata de modo nehum de um fenómeno universal: “Toda e qualquer classe pode, pois, ser veículo de qualquer ‘acção de classe’, possível em inúmeras formas, mas não tem necessariamente de o ser, e em qualquer caso não constitui, por si própria, uma comunidade (…). Se, pois, as classes em si não ‘são’ comunidades, não é menos verdade que as situações de classe são engendradas meramente na base de um processo de agregação comunitária. Simplesmente, a acção comunitária que constitui a sua génese não é, no seu aspecto fulcral uma actuação dos participantes de uma mesma classe, mas sim uma actuação entre membros de diferentes classes” (Weber, 1989: 741). 65 A complexa unidade da divisão internacional do trabalho e a penetração do mercado capitalista afecta a vida das pessoas em múltiplas circunstâncias físicas da vida social, desde a esfera pública à vida privada, segundo a dinâmica geográfica do sistema capitalista como um todo. Tais processos variam muitíssimo de
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
174
de base espacial e comunitária. A atenção que os estudos sobre as comunidades
industriais da Inglaterra do século passado deram a aspectos como o alargamento da
educação primária, a mudança e a luta pela redução do horário de trabalho, etc., são
significativos a este respeito. Basta lembrar que tais aspectos já então reflectiam a
estreita conexão entre a luta da classe trabalhadora e a acção das instituições de
enquadramento na esfera da comunidade (Joyce, 1980; Thrift, 1996). As novas formas
de interacção e diferenciação social que emergiram desses processos inscrevem-se nas
estruturas de classe locais, ou seja, o importante a reter é que a expansão da indústria
moderna às comunidades rurais erigiu a fábrica num ponto fulcral para a experiência de
vida das colectividades, realçando a significância de cada localidade no capitalismo
moderno (Urry, 1981: 464).
Esta linha de reflexão ajusta-se bem ao estudo da acção operária e da emergência
da classe operária num contexto onde a expansão industrial ainda hoje permanece
articulada com a lógica rural, como no caso da presente pesquisa. Um contexto
semelhante ao que João Ferreira de Almeida tem presente quando faz referência ao
interconhecimento, à intensidade e continuidade que estruturam as colectividades rurais
através de relações estabelecidas no interior de fronteiras espaciais. Segundo ele, essa
reiteração de contactos “permite às classes e fracções de classe locais,
independentemente da diversidade dos seus sistemas de disposições e de
comportamentos, incorporar com eficácia os princípios de referência recíproca”
(Almeida, 1986: 257). Mas, se as comunidades outrora fechadas se viram cada vez mais
sujeitas aos ritmos impostos pela expansão urbana e industrial, nem por isso os espaços,
crescentemente estruturados em domínios mais amplos, complexos e multifacetados,
deixaram de moldar a vida social das populações e colectividades. Fábricas e escolas,
bairros operários e auto-estradas, centros comerciais e parques de diversões, etc., são
espaços diferenciados de relações sociais, marcados pelos ditames do capitalismo.
Como sugerem algumas abordagens da geografia humana, podemos, portanto, conceber
as formas de integração ou de conflito social – as disputas por uma parcela de terra, as
políticas de urbanização, os padrões regionais de industrialização, as concentrações
residenciais ou as alianças de classe em espaços territoriais como a nação, a região ou a
comunidade – à luz das articulações entre a análise marxista do capitalismo e o ponto de
lugar para lugar e ligam-se directamente às próprias transformações físicas que o capitalismo induz, cavando diferenças, estabelecendo canais de comunicação e novas formas de estruturação espacial.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
175
vista geográfico e espacial (Thrift, 1987 e 1996; Sibley, 1995). Na verdade, as múltiplas
interferências da dimensão espacial na estruturação das classes ligam-se de forma clara
ao problema da articulação entre os mercados e a urbanização, ou seja, entre o
capitalismo e as estruturas espaciais, como também mostraram Derek Gregory e John
Urry (1985).
É a essa luz que as conexões entre comunidade, classe e identidade nos
aconselham a fazer uso de instrumentos conceptuais que nos ajudem a inscrever os
processos sociais no espaço e no tempo. Por exemplo, o conceito de locale (local),
proposto por Anthony Giddens, encerra aspectos da relação espaço-tempo na construção
das representações e práticas sociais que importa ter presentes nesta reflexão.
Os locale referem-se aos usos do espaço e à forma como eles estruturam lógicas
de interacção que se revelam essenciais para especificar a contextualidade em que se
situam (Giddens, 1985: 271). Entendidos como as instâncias que asseguram a fixidez
das instituições, os locale combinam fluxos ininterruptos de prática humana no tempo e
no espaço, modelando as identidades grupais sob a forma de ritmos, práticas e
significados particulares (Pred, 1985: 337). As estruturas físicas – que podem ser as
mais variadas, desde a esquina de uma rua, o hall de entrada de uma vivenda ou o
pavimento de uma fábrica, até aldeias, cidades, regiões ou territórios nacionais – são
inseparáveis do significado simbólico que adquirem na vida social. Nessa media,
qualquer locale é internamente diferenciado, isto é, contém os seus próprios zonamentos
espaciais (ou linhas de regionalização internas), os quais são fundamentais na
constituição dos contextos da interacção (Giddens, 1989: 96)66. Cada locale não só é
distintamente apropriado segundo as habituais modalidades de demarcação social – a
idade, o sexo, a classe ou a etnia –, como constitui, ele mesmo, um importante
ingrediente na construção e reprodução dessas distinções. Os estudos inspirados em
Bourdieu (1979) já mostraram como os processos de organização do espaço (desde o
doméstico ao do consumo) transportam marcas de distinção social através das quais as
diferentes classes sociais produzem e reproduzem estilos de vida e práticas sociais
66 Algumas formulações do interacionismo simbólico, como a oposição entre a zona dos ‘bastidores’ e o ‘palco’ das representações na constituição do self (Mead, 1934) ou a demarcação entre regiões ‘da frente’ e regiões ‘de trás’ (Goffman, 1959), referidas por Giddens, constituem elementos que podem elucidar como o desempenho de determinados papéis se liga simultaneamente à ocultação ou ostentação de recursos de poder: “a diferenciação entre regiões da frente e regiões de trás não coincide em absoluto, com a divisão entre o fechamento de aspectos do self e a sua abertura. Estes dois eixos da regionalização
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
176
particulares. Outras abordagens centradas na cultura popular e nos consumos
simbólicos, nomeadamente os trabalhos de John Fiske, referem-se aos locale como
manifestações de resistência dos grupos oprimidos e da cultura popular, na sua
capacidade de subverter as formas hegemónicas de poder simbólico veiculadas pelos
mass media (Fiske, 1993). Voltarei a este assunto mais adiante (ponto 1.4.2). Importa,
para já, ter presente o problema da diversidade espacial e da dimensão comunitária,
problema esse que se liga directamente à compreensão do fenómeno histórico de
emergência da classe operária: os seus enraizamentos locais, as formas classistas e não-
classistas de acção colectiva e as influências da tradição artesanal são aspectos que nos
ajudam a compreender com um pouco mais de detalhe a questão da classe e da sua
génese.
1.2.4 - A formação da classe operária, a comunidade e a acção colectiva
Um dos pressupostos presentes no célebre estudo de E. P. Thompson (The Making
of the English Working Class, 1987 [1ª edição, 1963]) é a ideia de que a força do
proletariado tem as suas raízes mais profundas nas comunidades locais e no artesanato.
Diversos autores têm analisado a formação do movimento operário como o resultado do
choque entre a força de trabalho pré-industrial ameaçada de extinção e a modernização
industrial (Moore, 1978; Calhoun, 1982 e 1983; Kocka, 1991; Jones, 1989; Lopez,
1992). É na génese comunitária e na ligação identitária ao passado pré-industrial que
deverão procurar-se as causas do movimento de resistência do operariado. Ao lado das
influências do jacobinismo francês, a memória de um passado melhor terá levado o
movimento operário do século XIX a assimilar uma visão de futuro fundada no apelo
popular às aspirações dos trabalhadores enraizados nas comunidades locais (Calhoun,
1982: 9). O combate ao individualismo segundo o argumento de que este se fundamenta
em bases nacionais e nos princípios da ideologia burguesa e liberal justificava-se ainda,
na medida em que o mesmo não poderia, por esse motivo, beneficiar os trabalhadores no
contexto local. Como refere Calhoun (1982: 15), o individualismo significava, não a
independência mas a sujeição comum aos novos “amos”, detentores do capital. A
economia nacional triunfante era, assim, vista como sinónimo da perda das formas
tradicionais de entreajuda.
operam num complicado nexo de possíveis relações entre significado, normas e poder (Giddens, 1989: 102).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
177
A cultura e as experiências partilhadas no quotidiano assumem uma importância
fulcral na definição thompsoniana de classe. Segundo Thompson, para identificarmos
uma classe social é fundamental conhecer o seu processo de formação, ou seja, a classe
é antes de mais uma categoria histórica em que a experiência vivida é tomada como o
substracto material em torno do qual decorrem as condições sociais de existência. Uma
vez inseridos nos modelos culturais pré-existentes, os indivíduos desenvolvem
determinadas expectativas, as quais, por sua vez, produzem novas orientações político-
culturais, uma nova consciência e um sentido de pertença a um dado grupo social. A
consciência e a cultura aparecem aqui estreitamente ligadas, e este sentimento de
pertença é claramente imbuído de uma lógica comunitária, isto é, emerge de um sistema
de valores, interesses e crenças comuns cimentados em fortes sentimentos de
solidariedade. Trata-se de um processo de auto-identificação que decorre e se estrutura
segundo os princípios da co-determinação e da consciência (Anderson, 1985: 34),
ambos organizados no quadro de uma dada experiência.
De acordo com a definição fornecida por Thompson, “a classe acontece quando
alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas),
sentem e articulam a identidade dos seus interesses entre si e contra outros homens
cujos interesses diferem dos seus (e geralmente se lhes opõem). A experiência de classe
é determinada , em grande medida, pelas relações de produção em que os homens
nasceram ou nelas entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como
essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas
de valores, ideias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o
mesmo não ocorre com a consciência de classe” (Thompson, 1987: 10). O critério da
consciência de classe aparece, assim, como aquele que define as formas de identificação
entre os membros de uma classe. Deste modo, apenas faz sentido falar de classe quando
estamos perante um conjunto de indivíduos que se vêem a si mesmos como parte de
uma dada colectividade, fundada na comunidade de interesses, de ideias e de
experiências. Esta concepção é, portanto, claramente divergente da visão abstracta de
Marx, nomeadamente no que se refere ao conceito de “proletariado” enquanto sujeito
portador da emancipação.
No pensamento de Marx, a noção de “proletariado” é, como se sabe, parte
integrante da teoria do materialismo histórico, cujos pressupostos são altamente
devedores do idealismo de Hegel (Cohen, 1980). Núcleo central da própria noção de
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
178
classe, o proletariado é – mais do que um sujeito histórico real – o resultado da
construção teórica efectuada por Marx (Lovell, 1988: 17), tendo em vista a elaboração
de um princípio unificador para dar sentido a uma “classe” ou grupo, cujos contornos
são, social e culturalmente, confusos67: “Marx vê no proletariado a realização
contemporânea da universalidade, e é apenas nessa medida que lhe imputa significado e
missão histórica” (Avineri, 1968: 97). Caínzos Lopez (1992: 140 e ss.) considera que a
invenção do proletariado obedece a princípios idênticos ao da construção de um mito –
no sentido de Barthes (1984: 181) – e permitiu conciliar no pensamento de Marx as
influências da filosofia hegeliana com as da luta política e as ideias socialistas de
influência francesa: “a identificação do proletariado como sujeito revolucionário serviu
de fundamento da síntese entre filosofia e socialismo, na medida em que pôde
proporcionar o princípio de realização do seu fim comum: a universalidade como
unidade de essência e existência para a filosofia, e como interesse social para o
socialismo” (Lopez, 1992: 146). Efectivamente, tal elaboração teórica combinou a carga
valorativa que a noção já possuía no seu uso vulgar com um sentido vago e impreciso do
seu referente objectivo: a partir do termo francês “proletaires”, que envolvia tanto os
trabalhadores como os oprimidos, construiu-se uma visão inclusiva de amplos sectores
populares e com ela a legitimação de um projecto político orientado para o interesse
geral da comunidade (Lovell, 1988).
O novo significado do termo nasceu dos traços negativos da exclusão e privação
atribuídos à condição proletária. Por um lado, estes traços combinam características de
uma realidade difusa – trabalho industrial, consciência da exclusão, pobreza,
radicalismo político, jacobinismo etc. – que diz respeito a uma diversidade de grupos
sociais (em França, na Inglaterra, na Alemanha) e, por outro lado, fundem-se num
princípio unificador recolhido no contexto da assimilação crítica da dialéctica hegeliana
e no horizonte redentor materializado no princípio ético da realização universal da
história (Lopez, 1992: 172). Pode, pois, dizer-se que a invenção do proletariado no
pensamento de Marx foi o resultado da “invasão da política e da história pela metafísica
alemã” (Henry, 1976: 149), isto é, tratou-se de uma elaboração ideológica que procedeu
à liquidação – embora parcial – do referente histórico originário e à sua substituição por
67 A este propósito, Etienne Balibar, referindo-se à ideia de “população” no pensamento de Marx (considerada como a mediação par excellence entre as noções de “classe” e de “massa”), acrescenta que “a ideia de proletariado como ‘sujeito’ pressupõe uma identidade, seja ela espontânea ou adquirida como
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
179
um significado normativo e “a-histórico”, sem correspondência com a realidade
concreta68. Importa, contudo, salientar que a não correspondência não é sinónimo de
ausência de relação com a realidade empírica, já que, como assinalou Roland Barthes
(1984), o mito não oculta nem cria a partir do nada, mas antes constitui uma outra “fala”
que emana da recriação da realidade e que, por se afirmar como a rejeição da
interrogação, tende a rigidificar-se, sobrepondo à realidade dinâmica e heterogénea um
discurso unificador e absoluto. Neste sentido, o “proletariado revolucionário” é a
substituição da diversidade histórica das comunidades operárias pela unidade simbólica
de um supersujeito mítico.
Na base da conceptualização marxista do “proletariado” está a velha discussão da
articulação entre os “interesses” e a “acção” de classe69. Como se sabe, o idealismo
voluntarista de Marx e dos seus seguidores mais ortodoxos sempre tropeçou com este
problema. Diversas análises alternativas70 têm levantado o problema da racionalidade na
definição dos “interesses” dos actores sociais. Por exemplo, para Mancur Olson (1998)
– em A Lógica da Acção Colectiva (1ª edição, 1965) –, as teorias marxistas da acção de
classe erraram ao assumir que os indivíduos tendem a agir numa base racional na
perseguição dos seus interesses comuns. Para este autor, o interesse individual e racional
no seio do grupo tende a inibir a participação nas acções colectivas, em especial nos
resultado de um processo de formação e tomada de consciência , mas sempre já garantida pela condição de classe” (Balibar, 1994: 147). 68 Como assinala Villaverde Cabral – em O Proletariado: O Nome e a Coisa (1983) –, na França de finais do século XVIII, os proletários eram associados aos ociosos e indigentes que pretendiam escapar ao trabalho e à necessidade. Citando Marat e Babeuf, Cabral sustenta que o nome e a coisa, embora estejam relacionados, se desenrolam sob dinâmicas diferentes. Enquanto em França era a conotação com a pobreza, marginalidade, etc., em Inglaterra, só a partir da década de vinte do século XIX se começa a usar a expressão working classes (supõe-se que foi Robert Owen quem usou o termo pela primeira vez em 1813) associada à condição socioeconómica dos trabalhadores da indústria, embora continuasse a prevalecer a formulação plural e não uma working class unificada. A noção de proletário ressurgiria em França na sequência da revolta de Lyon de 1831, e a mesma passaria a ser abertamente conotada com o “novo” sujeito da história: “o conjunto dos proletários torna-se proletariado no título de uma brochura prudentemente anónima: Aperçu sur la question du prolétariat”. Sendo o nome “proletariado” de origem francesa e nunca se tendo vulgarizado nem sido assimilado pelos trabalhadores dos países anglo-saxónicos (continuou a ser um termo erudito), houve no entanto quem defendesse (Tom Nair, aliás, na linha de E. P. Thompson) que o falhanço do marxismo junto dos operários ingleses não se ficou a dever à ausência de consciência, mas antes a uma intensa consciência de classe que preservou a sua autenticidade fundamental, intensidade essa que está presente nos reflexos e nas atitudes – pré-requisito e melhor garantia do socialismo –, que se assume como um “reflexo de classe”, mas que, paradoxalmente, “em vez de servir de fundamento à revolução, como na filosofia marxista, serve pelo contrário de fundamento à ausência de revolução” (Cabral, 1983: 24). 69 Já atrás me referi a esta questão, a propósito do modelo de Erik Olin Wright (ver ponto 1.1.3). 70 As propostas alternativas de compreensão da acção colectiva e da complexidade das relações entre o indivíduo e o grupo ou entre o indivíduo e as estruturas sociais, abundam na literatura sociológica. Veja-se, entre outros: Touraine (1966 e 1973), Crozier e Friedberg (1977), Elster (1991), Calhoun (1983), Giddens (1975 e 1989), Parkin (1979), Cohen (1980 e 1987), Gilbert (1992).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
180
grupos ou organizações de maior dimensão, onde funciona uma lógica que Jon Elster
(1985) designou como o dilema do prisioneiro: um jogo em que o indivíduo “I” está de
um lado (decidindo por si se deve ou não envolver-se em determinada acção) e todos os
restantes do outro; cada um pensa no que tem a ganhar e a perder participando ou
abstendo-se; se todos os outros participarem e o indivíduo “I” se abstiver, este pode
beneficiar dos resultados da acção dos restantes; se todos os outros se abstiverem e ele
também, pode na mesma beneficiar ao evitar expôr-se a uma acção unilateral. É o
chamado síndroma do free-rider, segundo o qual, se todos os agentes na posição de “I”
pensarem assim, todos decidirão abster-se e a acção colectiva não terá lugar (Elster,
1991: 360). Todavia, outros factores tendem a impelir os membros de um dado grupo
para as acções colectivas, quando estas se dirigem à conquista de um benefício comum.
É o caso, por exemplo, das estruturas coercivas da organização, as formas de liderança e
os recursos mobilizáveis. A dimensão do grupo é importante na medida em que, para
Olson e outros, é sobretudo nos pequenos grupos ou colectividades que o envolvimento
espontâneo de todos os membros é maior. A dificuldade da acção de classe, definida em
termos económicos e na base do interesse individual, deve-se, não à falta de
racionalidade (consciência), mas à predominância do comportamento racional: “a acção
de classe não ocorrerá se os indivíduos que compõem uma dada classe agirem
racionalmente” (Olson, 1998: 96).
O problema da acção colectiva e dos movimentos de protesto de tipo classista é
que eles, embora muitas vezes sejam impelidos pelos constrangimentos e interesses
estruturados pelas relações produtivas, raramente podem ser desligados de formas de
acção e de dinâmicas de rebeldia ligadas a outras esferas da identidade colectiva. Por um
lado, a acção colectiva do operariado exige inúmeras negociações entre os trabalhadores
individuais no interior das suas estruturas organizacionais, em especial os sindicatos, de
modo a ultrapassar o problema da heterogeneidade interna dos trabalhadores, das suas
subjectividades, interesses e habitus individuais. Isto prende-se com a natureza
dialógica da acção colectiva por parte do operariado, como assinalaram Offe e
Wiesenthal (1984). Também os irmãos Tilly viram a importância da mudança estrutural
e da acção colectiva de grupos concorrenciais – lutas entre aldeias, vilas e comunidades
rivais – como factores que induzem a uma acção colectiva, sobretudo de tipo “reactivo”.
Mesmo no caso de uma acção de tipo “pró-activo”, como acontece na ocorrência de uma
greve, ela apoia-se, geralmente, em exigências que não puderam ser realizadas através
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
181
de outras formas de negociação ou resolução de conflitos71. Segundo os autores d’O
Século da Rebelião (Tilly et al., 1975), a generalidade das lutas colectivas ocorridas
desde os princípios do século passado são fundamentalmente fruto da expansão do
capitalismo e do reforço do Estado-nação. A acção de classe pode ser entendida como
derivando das capacidades de classe e não tanto dos interesses de classe. Os contextos
de industrialização tardia (ou os que caracterizaram os ambientes industriais da
Inglaterra até finais do século passado, por exemplo) dão muitas vezes lugar a
desajustamentos entre situações fabris onde os interesses do capital e do trabalho estão
fortemente polarizados e situações onde a classe não tem condições concretas para
poder agir colectivamente. Quer isto dizer que as “capacidades de classe” não estão
sempre estritamente enraizadas na produção: são em geral “modeladas por outros
factores, incluindo a persistência das comunidades tradicionais pré-existentes, a
vulnerabilidade do mercado de trabalho e a mudança na estrutura política das
oportunidades, os quais não se reduzem ao desenvolvimento das forças produtivas”
(Aminzade, 1984: 437).
A questão das trajectórias sociais veiculadas pela diversidade de origens e
experiências dos agentes que integram uma dada classe – o mesmo é dizer, as suas
identidades colectivas e individuais em estruturação –, constituem, também aqui, um
aspecto relevante. O conceito de habitus (Bourdieu, 1979), por exemplo, ajuda-nos a
perceber a forma como as práticas activadas pelos agentes sociais obedecem a processos
de “acção” e de “classificação” neles incorporados, ou seja, resultam simultaneamente
da experiência cultural sedimentada no subconsciente e dos mecanismos cognitivos da
percepção72. Tais experiências derivam não só dos contextos em que se inserem num
dado momento, mas das trajectórias vividas pelos agentes no âmbito de mudanças
estruturais modeladoras dos seus estilos de vida e sentimentos partilhados estruturadores
de uma dada identidade. Com efeito, como refere Ferreira de Almeida, “os efeitos de
trajecto derivam da história da classe. É necessário reconstituir o processo
71 Veja-se a este propósito, Adams e Raynaud (1983), Lima et al. (1992), Stoleroff (1988), C. Ferreira (1996), H. Costa (1998). 72 “Os esquemas do habitus [são] formas de classificação originais, devem a sua eficácia ao facto de funcionarem para além da consciência e do discurso, isto é, fora da avaliação e do controle voluntário: orientam praticamente as práticas, inscrevem o que vulgarmente chamaríamos os valores [que se reflectem] nos gestos mais automáticos ou nas técnicas do corpo aparentemente mais insignificantes, como os movimentos das mãos ou as formas de caminhar ou de se sentar ou de se mover, as maneiras de mexer a boca ao comer ou a falar e orientam os princípios fundamentais da construção e da avaliação do mundo social (…)” (Bourdieu, 1979: 543).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
182
transgeracional das lutas desenvolvidas em sucessivas conjunturas na dialéctica de
enfrentamento com outras classes e fracções” (Almeida, 1986: 89). Como se sabe, as
condições objectivas do espaço fabril, por mais “degradantes” que sejam, encontram
pela frente múltiplos factores que neutralizam as possibilidades de acção colectiva.
Especialmente em contextos de industrialização recente e sem uma experiência
significativa de luta, a diversidade de trajectórias e a presença de habitus individuais de
recorte rural conferem ao colectivo operário características de dependência e aceitação
inibidoras de qualquer envolvimento em formas de luta colectiva organizada.
Já em contextos onde a tradição artesanal e a cultura “oficinal” adquiriu raízes,
conforme mostram as várias abordagens históricas sobre a “formação da classe
operária”, sai reforçada a ideia de que a classe se ergueu sob os despojos do radicalismo
conservador do artesanato (Jones, 1989; Calhoun, 1982; Sewell, 1990 e 1992; e Joyce,
1991). A emergência da classe operária é muitas vezes interpretada como sinónimo de
um processo de conversão dos artesãos em elementos “politicamente activos”, o que
significa que os movimentos reivindicativos e os protestos políticos do século XIX nos
países ocidentais foram dominados pelos artesãos qualificados e não pelos operários das
novas fábricas industriais: “o movimento operário nasceu na oficina artesanal e não na
obscura fábrica satânica” (Sewell, 1992: 15). Tal distinção parece coerente com os dois
tipos de trabalho que Marx tinha em mente quando, nos Manuscritos, desenvolveu a sua
teoria da alienação, a saber, a contraposição entre o trabalho qualificado, artístico e
expressivo, de um lado, e o trabalho manual indiferenciado e desqualificado, do outro
(Marx, 1975a: 136-138). Todavia, foi o primeiro e não o segundo que fez emergir os
sectores mais activistas do operariado.
Esta ideia não é, no entanto, coincidente com a visão que sobressai na já citada
obra de E. P. Thompson (1987), onde é notória a concepção inclusiva de “classe
operária”, segundo a qual aqueles dois sectores da força de trabalho partilham uma
experiência geral unificadora que se traduz na alteração das suas condições de
existência e resultou da recomposição das relações sociais induzida pelo capitalismo
industrial. Efectivamente, a análise de Thompson parece dar por adquirido que tal
alteração qualitativa das condições de vida impôs uma lógica de modernidade sobre as
relações de produção e sobre o trabalho em geral (industrial e artesanal), de tal modo
que deixaria de fazer sentido continuar a usar a categoria de artesão no seu sentido mais
restrito. Por outro lado, a ênfase colocada na dimensão histórica leva o autor a uma total
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
183
rejeição da vertente estrutural: “se parássemos a história num dado ponto não teríamos
classes mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de
experiências” (Thompson, 1987: 11). Será este procedimento revelador do excesso de
simplismo de Thompson ou uma exigência da própria leitura historicista por ele
empreendida? Os autores do marxismo analítico – como Cohen (1980), Roemer (1982a,
1982b e 1986), Elster (1985) e Przeworski (1978 e 1991)73 – referem-se a esta visão
historicista, afirmando que a classe não é apenas um processo, antes se torna um
processo de formação cultural e política, sendo que este tem de ocorrer no âmbito de
uma estrutura que lhe dá sentido e que o alimenta. Elster reconhece, porém, que “devem
existir sub-processos que seguem dentro da estrutura e contribuem para a sua
constituição, distinguindo-a de outras estruturas” (Elster, 1991: 343).
A experiência histórica que Thompson procura dar conta não deixa de ser
fragmentária, se bem que a coberto de um discurso classista. Partir da evidencia
empírica das práticas culturais do operariado para substituir o conceito de classe pelo de
comunidade é um procedimento, no mínimo, falacioso. Para que tais experiências sejam
concebidas em termos classistas é, pois, necessário proceder à introdução de um
princípio integrador externo e objectivo (Lopez, 1992: 549). Tal tarefa terá
obrigatoriamente de contemplar uma dimensão estrutural, na medida em que, só a partir
do estabelecimento de critérios definidos analiticamente é possível procurar a dialéctica
das relações causais entre a situação de classe dos indivíduos e as suas práticas,
experiências e formas de consciência ou de acção. Dito de outro modo, “não podemos
sustentar que conhecemos essas estruturas sincrónicas de determinação enquanto não
pudermos mostrar, através de narrativas circunstanciais, como elas modelam e são
modeladas pelas acções reais no tempo histórico experienciado” (Sewell, 1990: 75).
Socorrendo-se de formulações de Althusser acerca dos múltiplos sistemas de autonomia
relativa, William Sewell refere ainda que a linguagem de classe não é a única disponível
para os trabalhadores, mesmo os que estão directamente enquadrados em estruturas de
classe. Entre os diferentes discursos a que os operários podem aderir num contexto
73 Muito embora haja, evidentemente, claras diferenças nas abordagens destes autores. Por exemplo, Cohen é em geral considerado funcionalista na sua visão da evolução histórica, enquanto Elster coloca menos ênfase na dimensão estrutural, preocupando-se sobretudo com a questão da escolha racional e do chamado individualismo metodológico. Já Przeworski, por seu lado, ao analisar os regimes sociais-democratas no capitalismo, apesar de fazer uso da teorias da “rational choice”, admite que no capitalismo moderno o poder das estruturas é um factor fortemente restritivo da escolha individual. A propósito desta corrente (na qual também se inclui Erik Wright) ver E. Chilcote e R. Chilcote (1992) e T. Mayer (1994).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
184
particular, o da classe concorre, por exemplo, com o da resignação74 sugerido por certas
correntes católicas, o da auto-realização, o do reformismo, o do nacionalismo, etc.: “os
discursos rivais podem não apenas permanecer na mesma classe, mas até na mesma
mente” (Sewell, 1990: 72). O que pode levar os operários a optar por um em detrimento
de outros depende de múltiplos factores conjunturais, estruturais e históricos, ou seja, o
que importa é, acima de tudo, ter presentes as experiências comunitárias dos
trabalhadores em diversas épocas históricas e procurar compreender como elas se
articulam e confrontam com a estrutura de classes vigente.
A reflexão precedente afigura-se fundamental para nos ajudar a direccionar a
análise do operariado inserido num contexto onde a acção colectiva decorre sob a
influência de identidades estruturadas entre o trabalho e a comunidade. Contudo, os
objectivos do presente estudo não se limitam a olhar a acção colectiva do operariado no
âmbito relativamente genérico da comunidade local, mas pretendem igualmente captar a
forma que os processos produtivos adquirem quando observados a partir do seu interior.
Nesse sentido, o mundo das relações laborais merece uma discussão mais detalhada, a
qual será aqui efectuada à luz das abordagens dos processos produtivos e dos regimes de
acumulação capitalista. Se o ponto de vista histórico é decisivo para articular as
experiências do passado nas configurações presentes das práticas e da acção social, o
ponto de vista das modalidades de poder e das tipologias de controle disciplinar que têm
vigorado no mundo industrial ao longo deste século afiguram-se temas incontornáveis
no estudo do operariado industrial. No ponto seguinte abordarei a questão dos regimes
de fábrica, pondo em destaque as análises de Harry Braverman e Michael Burawoy.
1.3 - Controle, consentimento e despotismo: regimes de acumulação e relações na produção
O espaço da produção foi, como se sabe, o ponto fulcral das análises de Marx
sobre o modo de produção capitalista e constituiu a esfera de eleição da luta de classes
entre o proletariado e a burguesia. São conhecidas as suas teses acerca das tendências do
capitalismo para a progressiva concentração, homogeneização e “imiseração” da força de
trabalho. De acordo com aquela perspectiva, a modernização do capitalismo iria fazer
74 Voltarei a esta questão mais à frente, a propósito da análise dos mecanismos de produção do consentimento nas relações de trabalho desenvolvida por Michael Burawoy (1979, 1985, 1991).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
185
com que os interesses de classe dos trabalhadores se tornassem cada vez mais propensos
à acção revolucionária. Mas, se tais tendências pareceram viáveis até às primeiras
décadas deste século, à medida que o capitalismo se foi expandindo elas tornaram-se
cada vez mais duvidosas. E isto porque em muitos aspectos, a transformação histórica –
nomeadamente no que diz respeito à mudança tecnológica e à crescente heterogeneidade
na divisão técnica do trabalho induzida, em boa medida, pelas novas tecnologias –
contrariou claramente aquelas previsões.
1.3.1 - Classe e processos produtivos, de Braverman a Burawoy
Diversas pesquisas no campo das ciências sociais forneceram diferentes caminhos
de reflexão sobre a problemática das relações de trabalho e a sua conexão com a questão
da acção de classe. Braverman (1974), Gutman (1977), Edwards (1979), Korpi (1981 e
1983), Offe (1984 e 1985a), Gordon et al. (1983), Dahrendorf (1982), Lash e Urry,
(1987), são alguns dos autores consagrados que estudaram esta problemática. Adam
Przeworsky (1991) procurou encontrar no nível macro das instituições políticas e do
sistema democrático pistas de explicação para compreender as razões que levaram os
trabalhadores dos países desenvolvidos a abdicar da acção revolucionária. Gordon,
Edwards, e outros acentuaram a importância da segmentação dos mercados e das
diferenças no interior dos processos de trabalho (Hyman, 1992), as quais promoveram a
divisão no seio dos trabalhadores, contribuindo, assim, para inibir a sua actuação
enquanto membros de uma classe.
Numa linha diferente, Michael Burawoy (1979, 1985), inspirando-se e criticando
Braverman (1974)75, analisa o processo de trabalho no capitalismo dando ênfase aos
efeitos políticos e ideológicos que emanam da própria esfera produtiva e se ligam aos
aparelhos de Estado76. Para Burawoy é fundamental o papel dos mecanismos internos ao
75 Pode até dizer-se que as análises de Burawoy são a este respeito uma resposta à investigação de Braverman. Enquanto este punha o acento tónico na opressão e dependência do operariado face ao poder crescente do capital, Burawoy vê antes os operários a entregarem-se e a produzirem eles mesmos os mecanismos de consentimento. Retomarei este assunto mais adiante (ponto 1.3.2). 76 Embora Burawoy veja a relação entre a produção e o Estado enfatizando sobretudo as suas articulações na esfera produtiva, convém recordar aqui as abordagens de autores como Bob Jessop e Claus Offe pelo realce que colocam nas vinculações entre o Estado e a economia. O Estado capitalista é entendido como um sistema com as seguintes características: a) situa-se fora do processo de produção e acumulação capitalista; por tal facto b), precisa, para subsistir, de obter meios e rendimentos criados fora do seu controle imediato; c) não sendo auto-suficiente nem auto-regulado é mandatário para preservar as condições necessárias à acumulação; d) como resultado disso, funciona à custa do capital e, por esse motivo, precisa de fazer equivaler os interesses nacionais aos do capital e assegurar o apoio popular necessário para que a acumulação prossiga o seu curso (Offe, 1984). São, portanto, evidentes as consequências desse processo sobre as classes, uma vez que é às estruturas do Estado que cabe assegurar
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
186
espaço produtivo e a forma como estes se articulam com as estruturas política e
económica mais gerais para explicar o consentimento dos trabalhadores face à
exploração. Algumas das concepções tradicionais sobre os regimes de fábrica,
nomeadamente o insucesso do modelo taylorista em impor uma total separação entre
concepção e execução, são abertamente confrontadas. Com base no conceito de relações
na produção, que distingue do conceito de Marx de relações de produção, aquele autor
estabelece que, enquanto este último conceito define o modo de produção capitalista, o
primeiro pode ser detectado em diferentes modos de produção, isto é, o “processo
capitalista de trabalho” é algo distinto do “processo de trabalho na sociedade capitalista”.
De acordo com esta concepção é necessário admitir que as relações sociais, políticas e
culturais que têm lugar no interior da fábrica podem obedecer a diferentes modalidades,
ou seja, apesar de ocorrerem em sociedades capitalistas, transportam muitas vezes
lógicas de acção e regulação não capitalistas. Estes fenómenos são, aliás, particularmente
visíveis em sociedades periféricas ou semiperiféricas, como a portuguesa (Santos, 1990,
1993, 1994).
Confrontando o pressuposto do antagonismo através do controle exercido pelo
capitalista sobre o operário, Burawoy sustenta que o processo de trabalho,
tradicionalmente visto somente na sua componente económica, deve ser visto nas suas
capacidades de modelação de novas subjectividades e identidades no trabalho (du Gay,
1996), através das experiências vividas pelo trabalhador e da sua capacidade
interpretativa dessa mesma experiência. A importância dos elementos políticos e
ideológicos no interior do processo de trabalho é realçada por Burawoy nos seguintes
termos: “as adaptações do dia-a-dia dos trabalhadores criam os seus próprios efeitos
ideológicos que se tornam elementos focais na operação do controle capitalista. Não só
não se pode ignorar a dimensão ‘subjectiva’ mas a própria distinção entre ‘objectivo’ e
‘subjectivo’ é arbitrária. Qualquer contexto de trabalho envolve uma dimensão
económica (produção de coisas), uma dimensão política (produção de relações sociais) e
uma dimensão ideológica (produção de uma experiência dessas relações). Estas três
as condições de consentimento ou “compromisso” entre capital e trabalho. “O Estado é interventor com limitações para assegurar as condições de acumulação” (Jessop, 1990: 46) e, como tal, o papel central que o poder de Estado tem de assumir na acumulação de capital liga-se, assim, à necessária adequação entre a reprodução da lógica económica e as respectivas classes em aliança sob protecção do sistema institucional do Estado. A acção ideológica e de intervenção cultural pode, porém, ser conduzida directamente pelo Estado, ou proveniente dos sectores da sociedade civil em que ele se apoia para sustentar o exercício da sua hegemonia (Gramsci, 1985; Laclau e Mouffe, 1985).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
187
dimensões são inseparáveis. Mais do que isso, elas são todas ‘objectivas’ na medida em
que são independentes das pessoas concretas que vêm para o trabalho, dos agentes
particulares da produção” (Burawoy, 1985: 39). É, portanto, errónea a ideia de uma
classe em si, definida em termos puramente económicos, sobre a qual viriam
posteriormente a inscrever-se, sob certas condições, os factores subjectivos vinculados à
superestrutura. Seguindo Thompson neste ponto, o autor afirma que “não há notícia
‘objectiva’ de qualquer classe, previamente ao seu aparecimento no palco da história.
(…) Assim, a classe torna-se o efeito combinado de um conjunto de estruturas
económicas, políticas e ideológicas situadas em todas as arenas da actividade social”
(Burawoy, 1985: 39). A centralidade do processo de trabalho é pois considerada sob
múltiplas perspectivas e não apenas em termos puramente económicos. Se,
aparentemente, esta asserção já estava presente na abordagem de Poulantzas, atrás
referida, é bom recordar que, ao contrário do registo abstracto e estrutural daquele autor,
a análise de Burawoy se dirige sobretudo às práticas sociais concretas, em unidades de
produção estudadas directamente – fazendo uso da observação participante –,
enfatizando as observações e vivências no micro-nível para questionar os pressupostos
abstractos das teorias existentes sobre o capitalismo. Além disso, como se observou
acima, os determinismos macro-sociais e macro-económicos são abertamente recusados.
Deste modo, ao contrário da visão estruturalista e abstracta, a orientação teórica de
Burawoy é centrada nos micro-fundamentos do capitalismo no espaço produtivo e não
nos macro-fundamentos da classe à escala da sociedade.
Apesar de apoiadas em perspectivas teóricas distintas, é possível detectar pontos
de aproximação entre as análises de Burawoy e Braverman. Um deles diz respeito à
ideia – desenvolvida na obra de Braverman, Labor and Monopoly Capital (1974) e
subscrita por Burawoy (1985) –, segundo a qual a localização das fronteiras de classe só
pode ser captada através do estudo da organização dos processos de trabalho. Estes
autores acentuam principalmente os impactos negativos da tecnologia sobre as
condições de trabalho e a tendência para a “degradação” dessas condições. Mas, mesmo
admitindo que o processo de alteração das fronteiras de classe (com o crescimento de
novos sectores da classe média) passou pelo acesso a empregos mais vantajosos por
parte de muitos filhos de trabalhadores manuais, é inegável que a evolução da
componente tecnológica e científica, teve também um alcance no terreno político-
ideológico: a penetração e o reforço desta dimensão na esfera produtiva, nomeadamente
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
188
ao criar a ideia de que a maior sofisticação técnica se traduz sobretudo na abertura das
oportunidades oferecidas aos trabalhadores mais qualificados e com maiores aptidões.
Daí se pode retirar que o êxito económico obtido foi conseguido não apenas pela
crescente inovação e eficácia tecnológica no campo da produtividade, mas sobretudo –
como sublinha Braverman –, porque conseguiu anular as capacidades de classe dos
trabalhadores. Esta é também a ideia de David Gordon (1983) e outros, quando chamam
a atenção para “a habilidade da classe governante para reproduzir a sua dominação do
processo de produção e minimizar a resistência dos produtores” (Mackenzie, 1982: 79).
Quer isto dizer que o sucesso da classe capitalista não pode desligar-se do insucesso e
fragilização da classe operária.
1.3.2 - Regimes despóticos e regimes hegemónicos
A compreensão das articulações entre a lógica capitalista e as dinâmicas do
trabalho no dia-a-dia da fábrica passa pela rejeição da ideia de uma total submissão da
força de trabalho. Se a dimensão coerciva pontificou nos regimes despóticos que
vigoraram na primeira fase do capitalismo, nos regimes hegemónicos, apoiados no
capital monopolista e na maior intervenção estatal, tem pontificado sobretudo uma lógica
de consentimento nas relações laborais. Neste quadro, dificilmente é defensável a noção
bravermaniana do trabalhador totalmente esmagado perante o inelutável aniquilamento
das componentes criativa e autónoma, típicas do antigo trabalho oficinal. A separação
entre execução e concepção, prefigurada no modelo taylorista, nunca foi demasiado
rígida e teve pouca tradução empírica nos regimes de fábrica. Uma das vantagem que o
modo de produção capitalista retirou desse modelo serviu na perfeição a necessidade
vital de obscurecer os mecanismos de transferência de mais-valia, condição fundamental
para a sua reprodução.
Demarcando-se de Braverman, Michael Burawoy – principalmente na sua obra The
Politics of Production, 1985 – sublinha que o que define o capitalismo não é a total
sujeição ao capital por parte da economia no seu conjunto. O princípio de totalidade
expressiva – atribuído por Braverman ao controle do processo de trabalho pelo capital
monopolista – é questionado por Burawoy, em especial no capitalismo monopolista: o
modo de produção é visto como uma instância determinante da vida “social, política e
intelectual” cuja essência comporta uma totalidade estruturada, com capacidade para
articular diferentes lógicas e encontrar diferentes formas de “reprodução das
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
189
combinações entre as relações de e na produção”. Mas, ao contrário do que acontece
com o referido conceito de Braverman, esta lógica reprodutiva nem sempre terá de estar
subordinada ao económico. A ênfase por este colocada no poder do capital monopolista
– visto como dominando tendencialmente toda a economia à medida que a sua expansão
vai interferindo e absorvendo as diferentes esferas da vida social –, leva-o, segundo
Burawoy, a confundir capital monopolista com capitalismo monopolista (Burawoy,
1985: 58). Ao contrário, a totalidade estruturada é “composta por diversas partes, cada
uma com a sua própria estrutura que ao mesmo tempo exprimem e escondem as relações
económicas, cada uma movendo-se na sua própria dinâmica histórica em relativa
independência face à economia (…). Na prática, muito embora as instâncias políticas,
jurídicas e ideológicas não estejam implicadas dentro do modo de produção capitalista,
elas são, apesar disso, necessárias para a reprodução das relações de produção” (ibidem:
60). Enquanto nos sistemas pré-capitalistas as relações de produção puderem, em certas
fases da história, ser reproduzidas por elementos extra-económicos – como, por
exemplo, a religião durante o feudalismo –, no modo de produção capitalista “as relações
de e na produção reproduzem-se (em princípio) elas próprias a partir delas próprias”.
Mas, embora as dimensões ideológica, política e legal estejam formalmente sediadas fora
da esfera económica, isso não diminui a sua importância nas relações que mantêm com a
actividade produtiva, como já se viu. Na passagem do capitalismo concorrencial para a
sua fase monopolista, a ciência e a tecnologia, enquadradas pela crescente concentração
do capital e intervenção estatal na vida económica77, não apenas contribuíram para
baixar os custos de produção e enfrentar a competitividade (aliando a organização
científica do trabalho à mecanização), mas ajudaram igualmente a criar condições para
travar a força sindical e a acção contestatária do operariado fabril. É aí que o papel do
Estado se torna decisivo, visto que uma das maiores dificuldades do capitalismo
avançado tem sido a sua incapacidade de fazer ajustar as mais-valias do capital às mais-
valias da força de trabalho (Offe e Ronge, 1975). Assim, perante situações de crise ou a
iminência de ruptura das forças reguladoras do mercado, a acção estatal vê-se obrigada a
procurar rearticular o capital improdutivo com a força de trabalho desempregada. Deste
77 Segundo o mesmo autor, “a estrutura legal, por exemplo, exerce funções decisivas de legitimação, ao mascarar as relações de produção, em especial através da criação de distinções entre pessoas e coisas, confundindo distinções entre diferentes tipos de coisas (coisas consumidas produtivamente – máquinas – e coisas consumidas improdutivamente – camisas), e diferentes tipos de pessoas (os que devem vender a sua força de trabalho e os que possuem os seus próprios meios de produção), e ao reconstruir os agentes da produção, ideologicamente apresentados como cidadãos ‘livres e iguais’” (Burawoy, 1985: 60).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
190
modo, acrescenta Burawoy, “a distribuição de mercadorias, em vez de aparecer como
inevitável e natural, torna-se objecto da luta política. O Estado deve procurar novos
caminhos para justificar os padrões de distribuição existentes e descobre-se a emergência
das políticas de preços e rendimentos” (Burawoy, 1985: 61).
Esta questão tem uma incidência directa nas dinâmicas do capitalismo,
nomeadamente nas suas formas de organização no tempo e no espaço. Os diferentes
modelos de regulação e acumulação – em geral identificados com diferentes ciclos
económicos e períodos de estabilidade ou de crise –, nomeadamente quando observados
à escala local ou regional, não podem deixar de evidenciar a multiplicidade de
vinculações inscritas nos processos socioculturais que lhes dão suporte (Gregory e Urry,
1985; Reis, 1992). Neste caso, o que me parece pertinente é ter presente as grandes
tendências do desenvolvimento económico ao nível do sistema mundial (Wallerstein,
1974, 1984; Amin, 1980, 1991), não tanto para as tomar como “causas”, não tanto para
verificar os seus “impactos”, nacionais ou locais (globalmente determinados), mas sim
para estudar o modo como contextos históricos particulares se articulam com essas
tendências globais, introduzindo-lhes novas linhas de complexidade. Os debates travados
ainda recentemente no âmbito da teoria económica sobre a crise do regime fordista78
forneceram interassantes contributos a este respeito.
Um ponto decisivo que não pode deixar de estar presente neste estudo é que a
importância dos dinamismos locais e as especificidades de cada contexto, tanto na forma
como localmente se vão configurando as modalidades de penetração do capitalismo
(Freitas et al., 1976), como no próprio processo de sedimentação temporal dos diferentes
78 As características fundamentais atribuídas ao fordismo são as seguintes: crescente desenvolvimento industrial e concentração do capital e da produção; maior conjugação estratégica entre a indústria, as instituições financeiras e as políticas estatais; reforço da racionalidade económica e o incremento da inovação tecnológica; ampliação das interdependências e deslocações de capitais à escala mundial, etc. A par destes aspectos, assistiu-se ao reforço da intervenção sindical e política da força de trabalho; ao surgimento de mecanismos mais eficazes de mediação e concertação de interesses de classe; ao aumento do poder de negociação; ao aumento do consumo de massa; a uma maior estabilidade da relação salarial, etc. Veja-se também, sobre a sociedade portuguesa, Santos (1994: 76-79) e Reis (1992: 30-36). Os debates em torno dos regimes de regulação fordista e pós-fordista permitiram uma compreensão mais aprofundada acerca da crise dos modelos de produção de massa e das potencialidades da especialização flexível (Aglietta, 1979; Boyer, 1989; e Lipietz, 1987). A problemática da teoria económica da regulação e flexibilização, apesar de se apoiar predominantemente em elementos de pendor macro-estrutural e abstracto, forneceu nos últimos anos importantes contributos para a superação da tradicional visão a-histórica e individualista da economia. Neste sentido, pode dizer-se que o próprio conhecimento científico, ao questionar e reelaborar certo tipo de modelos de análise económica, por exemplo, torna-se um factor de legitimação dos poderes dominantes mais do que uma representação da realidade (Piore e Sabel, 1984) e, como tal, devem livrar-se da tradicional pretensão de uma (impossível) correspondência absoluta com a ‘realidade’ (Resnick e Wolff, 1987; Graham, 1991).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
191
regimes de acumulação e regulação económica. Nessa medida, poder-se-á assistir, a
nível local, à assimilação de lógicas de organização que subvertem qualquer concepção
linear do tempo e da história, isto é, parece possível admitir a presença de dinâmicas
“anacrónicas”, mesmo quando se fala de esquemas de controle da força de trabalho ou de
sistemas de organização produtiva.
A análise dos regimes de fábrica empreendida por Burawoy, realça sobretudo a
importância dos trabalhadores e a centralidade da produção. Não pretendo abordar aqui
toda a complexidade conceptual de que o autor faz uso, mas antes atentar, por um lado,
nas distinções entre o regime paternalista e o despotismo de mercado do século passado
e, por outro, assinalar a evolução dos regimes despóticos para os regimes hegemónicos
do capitalismo avançado. Estas transições não foram, evidentemente, uniformes nem
generalizáveis, variando segundo uma multiplicidade de factores económicos, históricos,
demográficos, tecnológicos e políticos. A maior ou menor proletarização da força de
trabalho, as formas de articulação entre os processos de trabalho e as forças de mercado,
as formas de intervenção do aparelho legislativo e estatal, etc., são algumas das variáveis
que o autor tem em conta ao contrapor como exemplos distintos de transformação nos
regimes de fábrica as regiões do Lancashire em Inglaterra e da Nova Inglaterra nos EUA.
Estas experiências do século passado fornecem-nos interessantes pistas de interpretação
que parecem muito pertinentes para o estudo da região portuguesa do calçado.
O regime paternalista é apresentado como distinto do regime patriarcal. Enquanto
este último correspondia a uma etapa anterior onde a família era ainda dotada de bastante
autonomia, como aconteceu com o sistema artesanal da oficina familiar, o paternalismo
(ou regime paternalista) é apontado como traduzindo a progressiva sujeição desse
sistema à lógica fabril no quadro mais alargado da comunidade79. Esta modalidade
79 Uma das temáticas que está subjacente à lógica patriarcal das articulações entre a fábrica e a comunidade é, portanto, a família. E, com ela, o estatuto da mulher: quer pela acção que desempenhou e continua a desempenhar no seio da família (nas relações de produção antroponómica, como lhes chamou Daniel Bertaux, 1978: 120), quer enquanto sector fundamental que desde muito cedo alimentou a força de trabalho na indústria (em especial o sector têxtil), a posição da mulher na reprodução do capitalismo é fundamental, como têm vindo a mostrar os inúmeros estudos centrados na discriminação sexual. Como assinalou Heidi Hartman, os empregadores sempre olharam a mulher como mais dócil e menos independente do que a força de trabalho masculina. Para além da sua ancestral subordinação no seio da família, a mulher revelou-se, desde a primeira fase do capitalismo industrial, menos propensa à organização e participação colectiva do que o homem. E o homem, por seu lado, fez uso da actividade sindical, pelo menos em parte, tendo em vista minar a posição da mulher no mercado de trabalho. De resto, como acrescenta a mesma autora, a luta para alcançar algum grau de poder perante o patronato por parte do operário é de certo modo reforçada pelo seu hábito de comando dentro da família, assim como pelos seus privilégios na esfera pública e no Estado. Ao longo do desenvolvimento do capitalismo a
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
192
vigorou na Inglaterra na segunda metade do século XIX, em particular nas pequenas
cidades fabris de Lancashire, onde se desenvolveu a indústria algodoeira. Após as
intensas lutas sindicais das décadas de trinta e quarenta do século passado, chegou-se a
uma situação de compromisso de classe relativamente estável entre o patronato e as
estruturas sindicais e o controle patriarcal da produção ganhou um novo equilíbrio,
ficando cada vez mais vinculado à cultura comunitária. Com a progressiva extinção da
produção oficinal e familiar, o despotismo patriarcal foi substituído por um paternalismo
de tipo “neofeudal” sem passar pelo despotismo de mercado. Neste regime, “a família
era moldada, regulada e sujeita a apertada vigilância dos empregadores. Do governo pela
família evoluiu-se para o governo através da família. A comunidade também perdeu a
sua autonomia, passando de um bastião de resistência a um veículo de dominação”
(Burawoy, 1985: 95-98).
Por outro lado, o exemplo da Nova Inglaterra nos EUA, mostra-nos a emergência
de um regime de despotismo de mercado. Dada a escassez de mão de obra qualificada, a
ausência de tradição artesanal e a frágil capacidade de resistência dos trabalhadores, a
expansão dos processos mecanizados na indústria têxtil processou-se muito mais
rapidamente do que em Inglaterra, principalmente a partir dos anos vinte do século
passado. Uma parte importante da força de trabalho fabril foi inicialmente recrutada
entre jovens raparigas filhas de agricultores pobres (e só mais tarde entre imigrantes
irlandeses e franco-canadianos) em busca de independência financeira. Transferiam-se
para cidades como Lovell, onde viviam em habitações subsidiadas pela própria empresa
(as boarding houses), sob a responsabilidade de “matronas” ao serviço do patronato,
sujeitas a um policiamento moralista extremamente apertado na residência e à tirania
arbitrária dos supervisores e patrões dentro da fábrica. Ameaçadas de despedimento pelo
poder absoluto e pelas represálias que o patronato podia exercer80, totalmente
subordinação da mulher foi-se intensificando e, com a crescente separação entre a esfera doméstica face às esferas política e económica, o poder masculino reforçou-se, enquanto a situação da mulher tem em geral permanecido na dependência económica do homem (Hartmann, 1982). Por outro lado, se é verdade que nas últimas décadas se vem assistindo a um aumento de protagonismo da mulher na sociedade – em boa medida, aliás, no seguimento dos movimentos feministas despoletados a partir dos anos sessenta –, não é menos verdade que esse protagonismo esbarra com inúmeros obstáculos e mecanismos discriminatórios tendentes a impedir ou a travar o seu acesso a postos de chefia, tanto no mercado de trabalho como na política e na vida pública em geral. Veja-se, entre outros: Hartmann (1982 e 1987), Gamarnikow et al. (1983), Crompton e Mann (1986), Garnsey (1982), Walby (1986), Haraway (1992), Vicente (1998), Ferreira (1993 e 1998), Amâncio (1992 e 1994). 80 Burawoy refere a existência de acordos concertados entre os empresários da região que impediam a admissão de uma trabalhadora que tivesse saído em litígio com o antigo patrão. Os próprios capatazes e
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
193
dependentes do salário para subsistir, a sua capacidade de resistência era diminuta.
Apesar da comunidade solidária que se erguia a partir dos lares de habitação comum e da
participação nas lutas contra os cortes salariais e pelas dez horas de trabalho, tanto esta
força de trabalho feminina como a dos imigrantes encontravam-se em situação de grande
precaridade, sem alternativas de vida e por isso se sujeitavam a um regime fortemente
coercivo e discricionário, apoiado exclusivamente na lei do lucro (Burawoy, 1985: 99-
102).
Este tipo de regime foi característico do capitalismo liberal que vigorou sobretudo
até princípios do século. A acção reguladora que o projecto da modernidade procurava
levar a cabo deu lugar a uma expansão da lógica do mercado cuja pressão sobre a lógica
da comunidade se traduziu na total ou parcial absorção desta nas estratégias de
acumulação capitalista, tanto na primeira situação, em que o paternalismo não foi senão
um esquema de controle apoiado em laços de lealdade e dependência tradicionalista ao
serviço da ideia lucrativa, como na segunda solução, em que a debilidade dos laços
comunitários abriu mais facilmente o caminho à imposição de um liberalismo sem lei e
totalmente desumanizado. Pode porventura dizer-se que, apesar disso, a ideia de
emancipação da classe operária é corolário desse mesmo processo, como Marx e Engels
tentaram mostrar e a que os estudos históricos de Thompson acrescentaram abundante
evidência empírica. Ao longo desta fase de expansão do capitalismo industrial as
transições e mudanças ocorreram sob diferentes ritmos. Em certos contextos a
velocidade da mudança podia observar-se numa única geração: os ambientes tradicionais
dos dias de festa centrados na comunidade e na variação cíclica e sazonal das ocupações
em diversas actividades agrícolas rapidamente deram lugar a dinâmicas onde passou a
imperar a lógica produtiva da máquina industrial e a vida local começou a ser
comandada pelo relógio da fábrica. Um tipo de controle fabril que Weber designou como
de “disciplina militar” e que toma os trabalhadores, literalmente, como as “mãos”
intermutáveis, sendo recrutados enquanto tal pelo patronato industrial (Clegg, 1989:
175). Como defende Boaventura Sousa Santos, apesar do pilar da emancipação ter sido
ao longo deste período muitas vezes confundido com formas e manifestações pré-
modernas, estas foram desde cedo moldadas “pela vocação de globalidade e pela
responsáveis da produção estabeleciam o salário à peça e os níveis de produtividade exigidos com base em acordos tácitos inter-empresas.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
194
aspiração de racionalidade radical da existência inscritas no projecto da modernidade”
(Santos, 1994: 75).
No panorama de relativa estabilidade social e de crescimento económico acelerado
nas sociedades avançadas que caracterizou o período do pós-guerra81, os regimes
despóticos atrás referidos foram dando lugar ao capitalismo monopolista onde
pontificaram os regimes hegemónicos de acumulação. Neste período, a intervenção do
Estado passa a ocupar um lugar cada vez mais central, seja através da criação de políticas
sociais que passam a garantir as condições mínimas de reprodução da força de trabalho
independentemente da produção, seja através do reconhecimento de direitos laborais e
políticos. Como resultado de tais políticas o regime despótico de acumulação é cada vez
mais dificultado e, deste modo, as práticas coercivas tornam-se mais circunscritas. O
processo de trabalho, ou seja, os aparelhos políticos da produção são levados a procurar
encontrar formas de persuasão dos trabalhadores assentes na cooperação e no
consentimento.
1.3.4 - Relações de consentimento, sistemas de poder e novos despotismos
Embora, como sublinha Burawoy, também nos regimes hegemónicos a coerção
continue a estar presente, nestas condições passa a ser o consentimento que prevalece
sobre a coerção: “a aplicação da coerção não é apenas circunscrita e regularizada, mas a
própria imposição da disciplina e punição se torna ela mesma objecto de consentimento”
(Burawoy, 1985: 126). A importância do consentimento nos processos de trabalho e
regimes fabris apoia-se, pois, numa concepção das relações de produção que se distingue
da visão estrutural de Marx. Segundo Burawoy, as relações de produção “são sempre
combinadas com um conjunto de relações correspondentes nas quais homens e mulheres
participam, enquanto transformam as matérias-primas em objectos da sua própria
imaginação. É isto o processo de trabalho. Ele tem duas componentes analíticas distintas
mas concretamente inseparáveis – uma relacional e outra prática. Refiro-me ao aspecto
relacional do processo de trabalho como as relações na produção ou relações
produtivas” (Burawoy, 1979: 15). Esta dimensão diz respeito às práticas informais no
dia-a-dia da produção, as quais constituem um factor de legitimação das regras
instituídas e contribuem decisivamente para o obscurecimento de certos elementos do
81 Tal crescimento liga-se aos programas de recuperação económica, na sequência do Plano Marshall, num contexto em a luta de classes do operariado continuava a ser associada à ameaça do espectro comunista.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
195
processo produtivo, nomeadamente a exploração. A produção de bens não constitui
apenas um factor de produção e reprodução das relações sociais, mas simultaneamente
cria a experiência vivida dessas relações, ou seja, as condições de existência na produção
pressupõem uma relação real e uma relação imaginária resultante dessa relação vivida. A
experiência vivida apresenta o que é socialmente criado como algo “natural” e é neste
quadro que a ideologia deve ser entendida. Quer isto dizer que é a experiência vivida que
produz a ideologia e não o contrário. É, portanto, fruto dessa dimensão subjectiva, real e
imaginária simultaneamente, que a ideologia pode ser tomada como uma fantasia
concreta que organiza as representações e permite que as relações sociais e as vontades
colectivas sejam cimentadas (Therborn, 1980).
As formas de consentimento que emergem das vivências das relações na produção
são, em boa medida, criadas a partir da dimensão informal e de jogo que têm lugar no
dia-a-dia da fábrica. Quando se participa num jogo é necessário, por definição, aceitar as
suas regras e objectivos. As condições em que decorre o jogo no contexto do trabalho
capitalista não se podem explicar apenas por via das relações de produção. Não basta
saber que os trabalhadores vêm para o trabalho e que são expropriados pela extracção de
mais-valia. É preciso saber porquê e como o fazem. Ou seja, é preciso saber o que os
leva a aceitar a sua participação num tal sistema e a consentir a situação de exploração
em que se encontram. Os trabalhadores criam ou aceitam certas regras informais nas
relações de trabalho, apostam nelas e estabelecem para si mesmos certos objectivos
cobertos ou tolerados pelas regras vigentes. Por isso as defendem sempre que elas são
ameaçadas pela gestão. Segundo Burawoy, o jogo informal não existe apenas enquanto
luta organizada em disputa pelo poder nas zonas de incerteza que o processo de trabalho
deixa em aberto (Bernoux, 1985; Crozier, 1966; Crozier e Friedberg, 1977). O jogo não
é necessariamente uma expressão da afirmação das relações informais em oposição à
estratégia de gestão ou sobretudo uma actividade de sabotagem (Homans, 1950; Jermier,
1988; Collinson, 1992). Em geral as estruturas da gestão e os encarregados fabris estão
activamente empenhados na organização e facilitação dos jogos no trabalho, tanto mais
quanto eles interferem nos outputs da produtividade. A tese de Burawoy da teoria dos
jogos sustenta que os trabalhadores se envolvem numa luta concorrencial para atingir os
patamares de produtividade, com base no trabalho à peça (making out) e que contribui
para “a conciliação das relações de produção ao coordenarem os interesses dos
trabalhadores e da gestão”. Ao aceitarem participar em tal jogo, os operários são
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
196
seduzidos, como acontece em qualquer jogo, pela ideia de um resultado incerto
combinada com a ideia de um aparente controle racional, visto que essa opção aparece
como uma escolha em detrimento de outras. Embora o grau de controle seja
estreitamente circunscrito, os trabalhadores são impelidos diariamente para a fábrica
quando tudo o resto parece irrevogável. Quem estabelece as regras do jogo em primeiro
lugar? Pergunta-se. Isso é uma questão de luta, responde Burawoy. As práticas de jogo
informal inserem-se historicamente na luta do operariado pela autonomia mínima e pelas
condições de negociação e decorrem sobretudo em situações em que estão garantidos
certos limites salariais mínimos e certas margens de lucro. O jogo representa uma
espécie de elo de ligação entre a racionalidade individual e a racionalidade do sistema
capitalista e requer condições mínimas de autonomia e de incerteza, as quais derivam de
o processo de trabalho conter em si mesmo combinações específicas de força e
consentimento.
Para além destes traços genéricos, os regimes de fábrica – quer os despóticos, quer
os hegemónicos –, variam em função de diversos aspectos consoante as características
estruturais e os factores conjunturais e históricos das diferentes sociedades e regiões
onde se inserem. A maior ou menor intervenção estatal, o padrão de proletarização da
força de trabalho, as qualificações, a forma dos processos de trabalho, a tecnologia
empregue, a competitividade entre firmas, a dimensão das empresas e até os contextos e
comunidades residenciais são aspectos a ter em conta neste domínio. Por exemplo, nas
situações “onde os trabalhadores mantêm laços estreitos a formas de economia de
subsistência, vários regimes paternalistas com maior ou menor carácter coercivo podem
emergir para criarem bases adicionais de dependência dos trabalhadores nos seus
empregos” (Burawoy, 1985: 126). A variedade de dimensões e a complexidade das
estruturas organizacionais e tecnológicas utilizadas nas empresas constitui um factor
adicional, também ele de primordial importância e que interfere directamente com os
sistemas de poder que nelas vigoram.
Nas unidades produtivas de reduzida dimensão, dada a proximidade pessoal entre
os pequenos patrões e os seus empregados, tendem a afirmar-se sistemas de controle
baseados em laços de lealdade e afinidades pessoais, obscurecendo as relações de classe.
Esta situação, que Richard Edwards designou por sistema de controle simples (Edwards,
1979), é aquela que mais claramente condiz com a fase de nascimento e afirmação das
pequenas fábricas, funcionando segundo processos produtivos de tipo artesanal. Nestas
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
197
circunstâncias, é fácil prever que os “laços de lealdade se estendam para além da estreita
esfera do trabalho, legitimando as desigualdades de poder na base de uma autoridade
tradicional”. Estaremos, nestes casos, perante uma estratégia patronal de tipo
paternalista, nos termos definidos por David Goss (1991: 77).
O progressivo crescimento e complexidade organizacionais, acarretando um maior
peso das hierarquias intermédias (supervisão) e maiores investimentos técnicos
destinados a assegurar a rentabilidade económica – os sistemas de controle técnico, de
R. Edwards –, são muitas vezes acompanhados de políticas patronais que se traduzem
numa autêntica “obsessão lucrativa”. Quando a isso se junta uma conjuntura instável,
quando a mão-de-obra é particularmente vulnerável (por exemplo, constituída por
mulheres ou jovens recentemente admitidos e pouco qualificados), cria-se uma situação
de falta de alternativas e de forte dependência por parte dos trabalhadores. É, pois,
provável que estes factores favoreçam uma aquiescência que se traduz na sujeição ao
poder arbitrário sustentado, acima de tudo, pelo medo das sanções económicas. Esta é
uma forma de hiper-exploração que Goss designa por sweating (Goss, 1991: 84).
Finalmente, nas empresas de maiores dimensões, mais bem apetrechadas, mais
modernizadas, mais lucrativas e que dedicam maior atenção às estruturas internas, à
gestão planificada a longo prazo, etc. – naquelas que, na terminologia de Edwards,
correspondem aos sistemas de controle burocrático –, será de esperar encontrar relações
de poder que, além de combinarem aspectos dos dois modelos anteriores (paternalismo e
autoritarismo), reflictam também, em algum grau, práticas de negociação informal com
os operários. Assim, as atitudes coercivas e o sistema de incentivos postos em marcha
pelos proprietários podem aliar-se à presença de laços de lealdade entre dirigentes e
trabalhadores, operando nestes um sentido pragmático de “lidar com a situação”,
levando-os a evitar posturas conflituantes devido à construção de uma imagem do patrão
como “um tipo fixe”, embora essa imagem não transponha os muros da empresa para o
exterior. Uma realidade deste tipo pode ser designada por um modelo de autocracia
benevolente (Goss, 1991: 79).
Muito embora muitos destes fenómenos persistam hoje em muitas sociedades e
regiões do globo, as tendências mais recentes de globalização da economia vieram
conferir-lhe novos contornos. As teses da homogeneização do operariado há muito que
foram postas em causa, face às profundas alterações ocorridas nos mercados de trabalho
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
198
das sociedades do mundo inteiro. Lado a lado com a crescente heterogeneidade classista
da força de trabalho, o movimento operário tem vindo a enfraquecer (em especial na
Europa) e assiste-se à pulverização ou des-standardização (Beck, 1992: 140 e ss.) das
formas tradicionais de trabalho e de acção sindical nos principais sectores produtivos
(Hyman, 1975, 1988a, 1988b, 1992, 1994 e 1998; Hyman e Ferner, 1994; Regini, 1994;
Ruysseveldt e Visser, 1996; Costa, 1998; Ferner e Hyman, 1998). A expansão de
problemas como o desemprego de longa duração, a precarização da relação salarial e a
perda de peso do trabalho industrial – questões que remetem para a crise do fordismo e
do Estado-Providência (Offe, 1984; Esping-Andersen, 1996, Graham, 1991) ou o que
alguns designaram como “o fim do capitalismo organizado” (Offe, 1985a; Lash e Urry,
1987) – espelham o período de grande instabilidade que as sociedades ocidentais têm
vindo a experimentar, principalmente nas últimas duas décadas. A des-standardização
ou desagregação dos tradicionais processos de trabalho e o anunciado fim do
sindicalismo solidarista (Hyman, 1994: 156) emergem num panorama de tendências
mais ou menos inquietantes: a fragmentação e descentralização do processo produtivo, a
flexibilidade dos horários, o esbatimento de fronteiras entre trabalho e não-trabalho, a
pluralidade e flexibilidade de situações, o subemprego, etc., tendências estas que vêm
dando lugar a um novo modelo caracterizado pelo aumento da individualização das
relações sociais, da insegurança e do risco em diferentes níveis da vida social (Beck,
1992: 140-149).
Se, globalmente, a economia mundial assentou desde sempre em múltiplos
desequilíbrios entre centros e periferias, quando observada à escala nacional ou local, o
“centro” e a “periferia” justapõem-se, fazendo emergir situações chocantes e
discrepâncias sociais insustentáveis (do ponto de vista humano), de que são exemplo
alguns países do oriente onde as mais modernas tecnologias convivem lado a lado com
relações laborais próximas da escravatura. Daí que os processos de expansão do
capitalismo e da indústria devam ser entendidos num sentido polimórfico, isto é, embora
as regras do jogo possam ser semelhantes em termos sistémicos, a interacção a que os
mecanismos de mercado dão lugar quando se implantam num dado contexto espacial e
cultural adquirem as mais diversas configurações (Boyer e Hollingsworth, 1997). Mesmo
a elevação positiva dos indicadores económicos e a promoção de oportunidades para
certos segmentos sociais escondem, por vezes, os efeitos perversos sobre outros
segmentos, arrastados para situações de maior precarização e exclusão, como tem
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
199
acontecido, nomeadamente, em economias da União Europeia consideradas das mais
dinâmicas, como é, por exemplo, o caso da Irlanda (O’Hearn, 1998). E o problema é que
esses efeitos contrários parecem ser interdependentes uns dos outros, já que as diferentes
instituições, dinâmicas de desenvolvimento e formas de poder se tornaram
estruturalmente interligadas à escala global (Hirst e Thompson, 1996), fazendo com que
as assimetrias e clivagens sociais se combinem dialecticamente, através de constelações
de poder hegemónico e horizontes de possibilidade emancipatória, ambos vinculados às
características estruturais do capitalismo mundial (Santos, 1995: 455).
Estes fenómenos parecem vir reforçar as tendências já detectadas nos anos oitenta
– no quadro das orientações neoliberais personificadas pelo tatcherismo e o reganismo –
que levaram Burawoy a falar de uma nova forma de despotismo: “o novo despotismo é
fundado na base do regime hegemónico que veio substituir. É de facto um despotismo
hegemónico. Os interesses do capital e do trabalho continuam a ser coordenados, mas
onde o trabalho costumava ter concessões garantidas na base da expansão do lucro,
agora faz concessões na base da lucratividade relativa de um capitalista em relação a
outro” (Burawoy, 1985: 150).
É a esta luz que os estudos centrados na mudança e na natureza dos diferentes
regimes de acumulação ou formas de controle das relações laborais, não podem deixar
de contemplar a resistência criativa dos processos e práticas sociais que lhes dão forma
e os interesses contraditórios dos actores que neles participam. Das suas acções, sejam
elas adaptativas ou de resistência, ressaltam dinâmicas de poder que combinam
assimetricamente lógicas de constrangimento e de acessibilidade. Pode dizer-se que tais
lógicas transportam diferentes antagonismos, os quais podem ser simultaneamente
vinculados a diferentes linhas de estruturação espacial – espaços estruturais – como
sejam, o espaço produtivo, o espaço doméstico e o espaço da comunidade (Santos, 1995:
420-422). Uma abordagem dialéctica dos regimes de acumulação terá de ter presente não
apenas a reversibilidade dos determinantes causais (Resnick e Wolff, 1989) e os
múltiplos vectores espacio-temporais neles inscritos – a produção e o consumo, o
mercado e a comunidade, o local e o global, a estrutura e a conjuntura, o presente e o
passado –, mas também a importância dos processos sociais e da força organizacional e
política da acção colectiva. Ao estudarmos tais processos é fundamental tentar
compreender de que forma se compaginam e conjugam os diferentes tipos de clivagens e
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
200
lógicas de identificação que lhes subjazem e qual o grau de centralidade aí ocupada pela
esfera produtiva.
1.4 - Lazer, cultura popular e controle recreativo
Se o trabalho e os regimes fabris constituem uma dimensão central para o estudo
do operariado, das suas práticas e identidades, também a esfera do lazer, das actividades
festivas e do consumo se afirmou como um terreno incontornável, quer enquanto
elemento de ligação entre o espaço produtivo e o espaço da comunidade, quer enquanto
dimensão através da qual se estruturam múltiplas relações sociais. E estas podem ir da
colectividade de fábrica aos movimentos de luta e experiências associativas, da
identidade local à identidade nacional. Assim, através da análise das actividades
recreativas dos trabalhadores será possível compreender aspectos decisivos dos
processos de acção colectiva e das formas de adaptação e de resistência de que se
revestem os comportamentos e subjectividades – classistas e não-classistas – fora e
dentro da esfera produtiva.
1.4.1- Lazer e classes sociais
O “lazer” e o “ócio” constituem uma actividade da vida social durante séculos
circunscrita às classes dominantes e em particular à aristocracia. Sebastian de Grazia
entende o lazer, não como uma actividade social mas, acima de tudo, como um “estado
de alma”, uma capacidade transcendental, contemplativa e criativa do espírito humano,
própria do mundo dos pensadores, artistas e músicos que se distinguem pela constante
elevação da mente (de Grazia, 1962: 408 e ss.).
Porém, se esta concepção clássica parece adequar-se ao estudo das “classes
ociosas” (Veblen, 1970) das sociedades pré-industriais, pode dizer-se que, com o triunfo
da industrialização, o lazer sofreu profundas alterações. A modernidade reorientou-o no
sentido de uma actividade fugaz e estreitamente ligada ao campo laboral. Importa neste
caso captar o papel que desempenharam as actividades de tempo-livre dos trabalhadores
industriais na dinâmica cultural que acompanhou os processos de estruturação da classe
operária, contrapondo as tendências reguladoras e homogeneizantes às práticas culturais
de resistência enraizadas no quotidiano popular. Thompson (1987) e outros
investigadores ingleses (Jones, 1977, 1986 e 1989; Joyce, 1991; Davies, 1992)
chamaram a atenção para a importância das relações quotidianas da vida extra-trabalho
na afirmação de uma praxis cultural que se foi orientando para o convívio de rua, para o
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
201
pub, a taberna, o jogo e para um conjunto de formas de diversão e entretenimento
popular (Davies, 1992). Como adiante irei referir, foi em boa medida devido às
potencialidades de rebeldia dessas atmosferas que os estados fascistas e autoritários
deram tanta atenção ao “controle recreativo” do operariado.
É neste quadro que se torna necessário adoptar um entendimento menos selectivo
do conceito de “lazer” e orientá-lo para a análise das práticas de tempo-livre e das
expressões da “cultura popular” junto das classes trabalhadoras. A concepção de Chris
Rojek insere-se nessa perspectiva ao considerar que as culturas populares têm dado
provas de resistência à assimilação da ideologia da classe média, comprovando que só
em parte o capitalismo conseguiu civilizar as ocupações de lazer do mundo operário
(Rojek, 1985). Com efeito, algumas “vitórias” das classes populares no campo cultural
podem ser assinaladas nomeadamente quando certas práticas de lazer oriundas da cultura
popular dão entrada nos consumos das classes médias como, por exemplo, a taberna e
alguns desportos e modalidades de jogo que se afastam das características apontadas ao
lazer das elites – visto que nestas, as actividades lúdicas são bastante mais marcadas
pelas dimensões do repouso, da reflexão e da contemplação (Rosenzweig, 1983).
Parker e D’Epiney definem o lazer por referência ao campo do trabalho, ou seja, o
lazer é o “tempo livre das obrigações quer para si próprio quer para outros – o tempo
para realizar o prazer de cada um” (Parker, 1983: 10). Na classe média-alta predomina
um modelo de extensão, isto é, uma grande proximidade e mistura entre lazer e trabalho,
uma vez que muitas das actividades de tempos-livres são colocadas ao serviço da
carreira, no sentido de antecipar e modelar, sempre que possível, o futuro (D’Epinay,
1982: 217). No caso dos trabalhadores manuais, em contrapartida, dominam os violentos
ritmos de produtividade e a alienação é mais comum. Aí, verifica-se um modelo de
oposição, isto é, a prática do lazer é, ao invés, claramente distinta e até oposta à esfera
do trabalho, traduzindo-se numa ruptura ou numa fuga aos constrangimentos laborais,
como refere Parker (1983). Esta orientação instrumental relativamente ao vínculo
laboral, embora reflectindo a necessidade de resguardar a esfera familiar e de lazer face
ao campo laboral (Goldthorpe, 1969), anuncia ao mesmo tempo uma clara
interdependência entre os dois domínios. Mas é importante reconhecer que nos tempos
mais recentes se vem assistindo a uma crescente autonomização do campo do lazer e do
tempo-livre, que tende a criar a sua própria lógica em relação ao trabalho (D’ Epiney,
1991: 170; Pronovost, 1998).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
202
Muito embora continuem a surgir concepções diversas acerca da relação trabalho/
lazer – umas que acentuam o lazer como compensação ou oposição ao trabalho, outras
que põem a tónica no prolongamento entre os dois campos; umas pessimistas, que se
centram na desumanização do trabalho e na alienação, outras que salientam as vantagens
do acréscimo de tempos-livres proporcionado pelas novas tecnologias e modalidades
flexíveis de trabalho; umas sublinhando a mudança de valores e as suas consequências
em ambas as esferas, outras advogando a crescente ausência de relação entre elas –, pode
dizer-se, seguindo Pronovost (1998), que as tendências mais recentes se caracterizam
sobretudo pela diversidade de situações e pela mutação das orientações e subjectividades
face ao trabalho e ao lazer.
O problema da separação entre trabalho e lazer não se coaduna, porém, com
distinções simplistas. Diversas situações ambíguas têm sido mencionadas por autores
como de Certeau (1984) e du Gay (1996). Para o primeiro, os procedimentos tácticos de
consumo prendem-se com trajectórias erráticas cuja lógica muitas vezes transgride as
tradicionais demarcações entre dimensões como o tempo e o espaço, ou entre trabalho,
consumo e lazer. As práticas de consumo podem insinuar-se nas mais diversas esferas,
incluindo as do trabalho, complexificando a separação entre trabalho e não-trabalho. De
Certeau também salienta a importância que certas técnicas de consumo tácito assumem
na esfera económica. Refere o exemplo da secretária que escreve uma carta de amor
durante as horas de serviço ou do trabalhador que aproveita o tempo e os instrumentos
de trabalho para fabricar um objecto pessoal, tomando o tempo da empresa como o seu
próprio tempo, ou seja, estas ‘tácticas’ – que de Certeau ilustra com o exemplo da
‘peruca’ (La perruque), para acentuar a ideia de ‘mascarada’ ou ‘farsa’ a que os
indivíduos se dedicam no quotidiano82 – não obedecem à lógica do espaço laboral, antes
atravessam as suas habituais fronteiras de separação: “a linha divisória entre trabalho e
lazer deixa de ter lugar. Estas duas áreas de actividade seguem juntas. Repetem-se e
reforçam-se uma à outra” (de Certeau, 1984: 29). É neste sentido que se pode dizer que a
lógica por que se rege o consumo se diferencia da racionalidade da produção e, mais do
que as divisões espaciais, é a percepção temporal que está em causa: as linhas
multiformes, fragmentárias e “erráticas” com que os consumidores traçam percursos
insinuantes ou invisíveis mostram que, enquanto as estratégias produtivas dependem da
82 Estes aspectos foram, como se sabe, inicialmente tratados pela correntes do interaccionismo simbólico (Mead, 1934; Goffman, 1959).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
203
erosão do tempo através da imposição de uma ideia de lugar (um espaço circunscrito
onde impera uma dada lógica de poder), a dimensão das tácticas do consumidor recusa o
estabelecimento de um locus específico. O espaço da táctica é o espaço do Outro (du
Gay, 1996: 90), o que, uma vez mais, nos remete para a questão da identidade, atrás
discutida. Ou seja, a ambiguidade que envolve a articulação entre produção e consumo
liga-se ao problema da identidade na medida em que do cruzamento entre ambos
emergem, segundo Ernesto Laclau, “semi-identidades relacionais”, envolvidas em
“relações instáveis de imbricação” (Laclau, 1990: 24).
Para além da dimensão espacial, é igualmente fundamental a questão da percepção
do tempo: por exemplo a ambiguidade que essa percepção transporta, seja quando
introduz no âmbito familiar uma orientação importada da actividade laboral, seja
quando, ao contrário, inscreve no espaço produtivo tempos de evasão e tácticas de fuga
aos constrangimentos organizacionais e laborais83. Neste sentido, poder-se-á contrapor
ao mito do “consumidor passivo” o mito do trabalhador desqualificado e totalmente
determinado: “o mundo rotinizado e empobrecido do trabalho assalariado torna-se o
‘outro’ contra o qual ‘a tese dos prazeres do consumo’ constitui a sua própria identidade”
(du Gay, 1996: 88).
A articulação entre estas duas esferas da vida social – trabalho/lazer – invoca ainda
uma série de outras dimensões e linhas de abordagem: a diferente orientação para as
actividades de lazer consoante a evolução do ciclo de vida, a flexibilidade de horários, a
expansão e significado económico das indústrias ligadas ao lazer (apesar de não
anularem as clássicas distinções entre categorias e classes sociais em face das diferentes
oportunidades e modelos de lazer que se lhes oferecem) assumem-se como aspectos que
põem em evidencia a mudança de atitudes e de valores perante a esfera do lazer e a sua
relação com o emprego, e subscrevem as múltiplas e renovadas diferenciações sociais
que podem ser identificadas no campo das actividades de lazer (Pronovost, 1998: 110-
121).
Para autores como Elias e Dunning (1992), o lazer corresponde ao domínio das
actividades miméticas ou de jogo84 (onde os indivíduos podem participar, quer como
83 Tratarei esta questão no Capítulo 8, com base na metodologia da observação participante. 84 Estes autores consideram as seguintes actividades, abrangidas pelo espectro do tempo-livre: 1) as relações familiares e os trabalhos particulares; 2) o repouso; 3) as actividades biológicas; 4) as relações de sociabilidade [obrigações “sociais”]; e 5) as actividades miméticas ou de jogo. Só estas últimas são actividades de lazer, onde se incluem iniciativas como a ida ao teatro ou a um concerto, às corridas ou ao
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
204
espectadores, quer como intervenientes, exceptuando-se o caso de obrigação
profissional), isto é, àqueles contextos onde estão ausentes ou fortemente atenuadas as
restrições e o constrangimento, onde as emoções e a excitação se combinam com “uma
agradável sensação de segurança e onde o risco e a violência são reduzidos ao mínimo”
(Elias e Dunning, 1992: 108). A progressiva institucionalização dessas actividades – em
que o desporto de massas é talvez o exemplo mais óbvio – transformou-as em formas de
excitação controlada que funcionam como catarse capaz de compensar os
constrangimentos impostos sobre as rotinas da vida quotidiana. O lazer mimético serviria
assim de válvula de escape para as energias transgressivas ou contestatárias das classes
baixas, cujos efeitos se repercutem tanto no domínio do simbólico e das práticas
quotidianas como na acção política. As experiências dos estados autoritários dos anos 20
e 30, pela atenção que prestaram à organização disciplinada do lazer para os
trabalhadores (de Grazia, 1981) e em particular através da institucionalização e
massificação do desporto, parecem ilustrar esta orientação de forma particularmente
nítida, como mais abaixo mostrarei (ponto 1.4.3).
Uma concepção que segue de perto a visão que acabo de mencionar é a de Chris
Rojek, segundo o qual as relações de lazer se inscrevem numa englobante economia do
prazer cujo significado histórico original foi no sentido de facilitar a vigilância e o
controle das populações (Rojek, 1985: 177). Para além disso, convém não esquecer o
papel do lazer na estruturação das classes sociais, quer na análise histórica da emergência
da classe operária, como vimos (Thompson, 1987), quer, por exemplo, no estudo das
práticas e da acção cultural das novas classes médias ou dos novos movimentos sociais
(Offe, 1985b; Dawson, 1986 e 1988; Maheu, 1995). A organização social do lazer, além
de ser mediada pelas desigualdades de classe, sexo, etnia, etc., incorpora tanto a acção
dos mecanismos de mercado como a dominação estatal, mobilizando estes diferentes
dispositivos na absorção de parcelas simbólica e materialmente significativas das
culturas tradicionais (Dawson, 1991). O significado desse processo é que, nas nossas
sociedades, o lazer não pode desligar-se das estruturas de poder, das dinâmicas do
capitalismo e da acção do Estado (Clarke e Critcher, 1985; Bishop e Hoggett, 1986).
Neste sentido, pode dizer-se que a acção de regulação dirigida ao campo do lazer se
inscreve no fenómeno mais geral de reestruturação e massificação da cultura.
cinema, à caça, à pesca, jogar bridge, fazer montanhismo, apostar, dançar ou ver televisão (Elias e Dunning, 1992: 110).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
205
1.4.2 - Cultura popular e cultura de massas
Se quisermos remontar às raízes históricas da cultura popular teremos de referir-
nos à emergência da nação e, portanto, à ideia de povo. Como é sabido, só após a
Revolução Francesa e com o nascimento do Estado burguês se assistiu à entrada em cena
das massas populares enquanto actor social e histórico (Burke, 1991: 35; Hobsbawm,
1992: 76; Tilly et al., 1975; Tilly, 1996b). Mas, ao mesmo tempo que se impunham os
códigos da cultura burguesa sobre as novas classes médias em ascensão, cavava-se o
fosso cultural entre as camadas intermédias e o “povo”85. Tal processo viria a favorecer a
institucionalização de uma definição legítima e reconhecida de “cultura popular”86 da
qual beneficiou a estratégia estatal de “localizar, conter e incorporar as ‘multidões
perigosas’” (Silva, 1994: 105). Mas, paradoxalmente, e à medida que essa clivagem
ficava mais clara – principalmente ao longo do século XIX, com o crescimento das
cidades e a consequente expulsão das classes baixas dos centros urbanos para a periferia
–, algumas figuras oriundas do mundo burguês ou da velha aristocracia estabeleciam
uma relação de certo fascínio pelas expressões e costumes populares (Burke, 1992: 302-
305). Aí emergiram alguns dos novos estilos de vida descomprometidos e de inspiração
aristocrática – práticas assumidamente marginais como a vida “boémia” ou os “flâneurs”
de Paris, o “dandyismo” na Inglaterra, etc. – que se tornaram expressões de fascínio e
atracção pela diferença, instituindo novas modalidades de “gosto transgressivo”, dando
origem a formas de contracultura personificadas por artistas e “intelectuais” como
Balzac ou Baudelaire que se afirmavam em ruptura com o mundo civilizado e burguês
(Featherstone, 1992). A remissão para esses ambientes permite-me, desde logo, salientar
as ambiguidades que acompanharam o processo de “normalização” dos hábitos
populares.
85 O afastamento gradual das classes dirigentes no contacto com a “pequena tradição” desenvolveu-se sobretudo ao longo dos séculos XVII e XVIII. Segundo Peter Burke, por volta de 1500 “a cultura popular era uma cultura de todos; Uma segunda cultura para os mais instruídos e a única para o resto” (Burke, 1991: 376). Naquela altura as classes superiores depreciavam o homem comum, mas compartilhavam a sua cultura. “No entanto, em 1800 os seus descendentes tinham deixado de participar na cultura popular de forma espontânea, mas estavam no processo de descobri-la como algo de exótico e por isso interessante” (Ibidem: 396). 86 A ideia tradicional de “cultura popular” é coincidente com a da “comunidade harmoniosa” da “pequena tradição” das sociedades pré-industriais, a que me referi na primeira parte deste capítulo. Mas ao lado dessa visão bucólica e da ideia homogeneizante que subjaz à definição de “pequena tradição” dada por Redfield, importa ter em conta a realidade heterogénea da cultura popular da Europa moderna. Como assinalou António Gramsci, “o povo não é uma unidade culturalmente homogénea, mas antes está estruturado de um modo muito complexo” (in Burke, 1991: 69).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
206
Os rituais recreativos das culturas populares tradicionais foram, inicialmente, o
principal objecto de disputa cultural sobre o qual assentou o processo de
institucionalização do lazer. Além dos conhecidas razões político-sociais que levaram as
classes populares a ser reconhecidas como um importante actor da história da
modernidade, a afirmação da cultura popular ergueu-se sobre uma fissura ideológica
fundamental: de um lado, a “expressividade” do folk, que se reflecte na irreverência do
riso carnavalesco, segundo a expressão de Bakhtin (1984)87; do outro lado, a
“objectividade” mecanicista da cultura oficial, que se reflecte na própria invenção do
folklore (cujo significado na língua inglesa é o estudo do povo, dos seus costumes e
tradições) e se orienta, acima de tudo, para a racionalização e regulação social. Nos
países europeus, a noção de povo tende a ser usada num sentido exclusivo (Burke, 1992),
ou seja, ela evoca demarcação, quer do povo face às classes dominantes, quer da parte
destas face ao povo, considerado “ignorante”, “sujo”, “desordeiro”, etc. O povo é, assim,
visto como envolvendo uma variedade de alianças em mutação, cujo traço comum é a
sua permanente ausência de privilégios e a sua privação comparativa de recursos
económicos e políticos.
A pressão reguladora procura controlar o planeamento da acção social e cultural
mais vasta e readaptar as suas manifestações espontâneas em subculturas acomodadas,
através dos inúmeros mecanismos de poder disciplinar que se difundem pela sociedade
no seu conjunto, como mostrou Foucault (1977 e 1980). Na linha de Gramsci (1985),
podemos afirmar que o lazer se tornou um campo privilegiado de luta pela hegemonia
cultural, moral e política, cujo êxito passou pela acomodação dos valores e hábitos de
vida das classes subordinadas nos moldes da própria cultura dominante. A cultura
hegemónica não constitui uma entidade ou força exterior. Ela é hegemónica na medida
em que penetra as culturas dos grupos subordinados, remodelando-as, pirateando-as e
associando os seus membros aos valores e ideologias dominantes na sociedade. Contudo,
87 A cultura do “riso carnavalesco”, das celebrações populares da época renascentista, foi tomada por Bakhtin como a imagem subversiva que se opõe à cultura oficial. Em Bakhtin, o carnaval e o “corpo grotesco” simbolizam a subversão popular face à cultura dominante e à sua rigidez que procura, através do folclore, criar o “duplo disciplinado” do folk. Numa crítica ao regime soviético, à sua exaltação do “corpo funcional” e à forma displinada da cultura dominante, que reprime a paródia, a blasfémia e o obsceno, Bakhtin opõe a imagem apoteótica e desregrada do corpo grotesco, que se assume na comida gordurenta, nos contornos disformes, na bebida intoxicante e na promiscuidade sexual. O “corpo baixo” da impureza, da desproporção, está em oposição ao “corpo clássico”, que é estético, bonito, simétrico. Para este autor, a cultura do carnavalesco invoca, por um lado, uma visão do mundo que remete para a possibilidade de um segundo nascimento a partir do espírito do riso e, por outro lado, enaltece a celebração festiva e a
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
207
é preciso sublinhar que, no terreno cultural do quotidiano popular e na perspectiva aqui
adoptada, a cultura é actividade e é conflitualidade. Nela se recriam e se escondem
permanentes oposições, nela se justapõem e confrontam dialecticamente os elementos
“espontâneos” e os elementos “racionais” adaptados à cultura hegemónica (Heron,
1991). Os constrangimentos e as oportunidades, o conformismo e a criatividade, são
dimensões inseparáveis e inscritas no mesmo processo de estruturação cultural.
Poder-se-á então aplicar este entendimento dinâmico da actividade cultural às
questões do consumo e da cultura de massas? Sem dúvida que as formas modernas de
expressão cultural de massas continuam a revelar as características que lhe foram
apontadas pela Escola de Frankfurt, nomeadamente nas expressões artísticas de massas
como o cinema, a televisão, a música, etc. A sua divulgação é comandada pelas
indústrias da cultura, encorajadoras da passividade, da obediência e do autocontrole dos
consumidores, segundo uma orientação unidimensional (Marcuse, 1968) que se reflecte
nas diferentes instâncias que todo esse processo envolve: a produção, a recepção, os
agentes intermediários e o próprio “texto” (Abercrombie et al., 1990: 200). Deste modo,
como vêm assinalando vários sociólogos da cultura, as consequências da tendência
massificadora traduzem-se na generalização de formas de desclassificação cultural, bem
como na esteticização da vida e do consumo, aspectos estes que tendem a produzir nos
consumidores uma perda de sentido da história e uma descontextualização e disrupção
do tempo em perpétuos “fragmentos de presente” (Featherstone, 1992; Baudrillard, 1983
e 1991; Jameson, 1992). Uma outra formulação que me parece bem pertinente e actual
sobre as efeitos da massificação do consumo está bem expressa nas palavras de
Castoriadis (1998): ilustrando com o exemplo das crianças filhas da classe média, que se
“aborrecem como um rato morto” com as futilidades, os brinquedos e a diversidade de
gadgets a que têm acesso, para de seguida os abandonarem, isto é, olhando a devastadora
e imparável tendência para rapidamente se passar de uma inutilidade para outra, o
referido autor interpreta isso como “uma fuga desvairada perante a morte e a
mortalidade, as quais sabemos por outras vias que foram exiladas da vida
contemporânea. Ignora-se a morte, não há luto, nem público nem ritual. É isto que essa
acumulação de gadgets, que essa distracção universal procuram também esconder; aliás,
como sabemos pelas nevroses, elas estão, ainda neste caso, a representar a própria morte,
morfologia do “extra-ordinário” da cultura que corrói as instituições dominantes (Bakhtin, 1984; Lachmann, 1988).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
208
destilada a gotas e cambiada em pequenos trocos da vida quotidiana. Morte na distracção
ao olhar para um ecrã onde sucedem coisas que não se vivem e que nunca se poderão
viver” (Castoriadis, 1998: 154).
A carga negativista que encerra a noção de cultura de massas dificilmente lhe
permite dar visibilidade às formas transgressivas de apropriação da cultura dominante ou
às práticas de sentido criativo no domínio das culturas subordinadas. No seu sentido
clássico, o conceito – “cultura de massas” – é centrado na capacidade estratégica das
elites produtoras da “alta cultura” e nas “indústrias da cultura” cujo poder uniformizante
conduz os consumidores a apropriarem essas expressões passivamente e em modalidades
menores, deturpadas e retardadas (Santos, 1988). A ideia do consumidor passivo e
completamente manipulado parece, efectivamente, limitativa para os propósitos aqui em
causa. As análises de Bourdieu (1979), por exemplo, apesar de toda a atenção que
depositam na esfera do consumo – e do seu inegável contributo para a compreensão do
seu papel na produção e reprodução da diferenciação social nas sociedades de hoje –,
não conseguem dar visibilidade às formas de consumo ou às práticas culturais de sentido
transgressivo, eliminando a sua capacidade de contrariar as divisões sociais existentes e a
possibilidade dos grupos subordinados produzirem formas autónomas de expressão
cultural. Tal perspectiva tende a tomar os processos de estruturação das culturas
dominadas como um “pálido reflexo das culturas dominantes” (retomando aqui a
expressão de Maria de Lourdes Lima dos Santos, 1988).
É, pois, necessário dar atenção à dimensão irreverente e de resistência, contida na
cultura popular. Mesmo admitindo que o campo do consumo de massas esteja
subordinado à lógica produtiva, como sustentam os críticos da cultura de massas, se a
produção saturasse completamente o consumo, não faria sentido recorrer a termos como
o de “manipulação” (Miller, 1987). Se há algo que requer manipulação é porque de um
modo ou de outro tende a resistir ou a escapar a essa manipulação e logo, não é, à
partida, uma instância passiva. Na leitura de Foucault88, o poder é exercido onde existe
88 O conceito de poder disciplinar de Foucault refere-se a um poder de características difusas, um poder que não tem um centro específico, que penetra na sociedade através de canais mais ou menos invisíveis, mais ou menos subtis, num sistema capilar que tende a constituir os seus próprios alvos em veículos transmissores. Pode dizer-se que, num certo sentido, se trata de um poder que articula dialecticamente o controle e a resistência – onde o top-down e o bottom-up se cruzam e se complementam – apoiando-se sobretudo na racionalidade da ciência moderna e tendo em vista a docilização e normalização social. Na visão foucaultiana, o poder emana de relações sociais que tendem a impor um padrão disciplinar, inscrevendo-se na própria constituição do sujeito que sofre/ incorpora os seus efeitos e ao mesmo tempo os reproduz e os exerce (Foucault, 1980: 108).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
209
alguma liberdade e possibilidade de lhe resistir. Ou seja, para se ser bem sucedido na
obtenção do acordo ou da obediência é desejável ter-se conhecimento prévio dos
motivos por que se regem aqueles sobre os quais o poder pretende exercer-se (Foucault,
1982).
A concepção originária de de Certeau (1984) abarca na mesma noção de cultura
dinâmica e actuante, tanto a cultura popular, como a cultura de massas – ultrapassando a
clássica distinção entre alta cultura, cultura popular e cultura de massas – e permite que
os saberes chamados “menores”, os saberes não articuláveis em discurso, dêem lugar a
procedimentos em que os praticantes podem encontrar formas de organizar novos
espaços e linguagens e produzir rupturas transgressivas através de tácticas que procuram
transformar os acontecimentos em ocasiões (de Certeau, 1984). Para John Fiske, um
autor que, a meu ver, analisa a cultura de massas acentuando excessivamente a sua
vertente conflitual, a cultura é um processo constante de produção de significados que se
inscrevem nas diferentes experiências sociais e que interferem necessariamente nas
respectivas identidades sociais das pessoas envolvidas. Desta forma, os recursos da
cultura dominante (televisão, discos, vestuário, jogos de video, linguagem) contêm
linhas de força que são hegemónicas e se orientam para a defesa do status quo mas, por
outro lado, o poder hegemónico transporta ao mesmo tempo “linhas de força que são
apropriadas e activadas diferencialmente por pessoas diferencialmente distribuídas
dentro do sistema social” (Fiske, 1989: 2). É certo que as capacidades de “rebeldia
simbólico-interpretativa” a que se refere John Fiske são sobretudo observadas entre as
minorias étnicas e os grupos segregados da sociedade americana. Mas a sua abordagem
pode também aplicar-se a contextos mais vinculadas à “pequena tradição”, onde
germinam subjectividades ambíguas, situadas entre “contingências globais” e
“determinismos locais” capazes de resistir aos “monopólios da interpretação” através da
condensação de costumes e experiências do quotidiano (Santos, 1994: 96-97). Tal não
significa, evidentemente, considerar tais contextos imunes aos efeitos uniformizantes da
cultura de massas, mas pressupor que esses efeitos poderão, neste caso, adquirir mais
facilmente contornos de resistência simbólica ao combinarem-se com as identidades de
base local.
O que é desejável sublinhar, no quadro da presente reflexão, é a oposição entre a
procura de homogeneidade e estabilidade, por parte da cultura dominante, e a
heterogeneidade e diversidade de formas com que a cultura dos grupos dominados
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
210
permanentemente se reformula e resguarda, conforme sustentam diversos analistas desta
temática (Hall, 1981; de Certeau, 1984; Jameson, 1992; Hall e du Gay, 1996; Fiske,
1989 e 1993). Nas suas características híbridas a cultura popular configura a identidade
dos grupos que, de um modo ou de outro, se indignam com a sua condição de
subordinados (Fiske, 1989, de Lauwe, 1970), isto é, ela não só transporta os traços da
sua diferença como revela as marcas da sua própria exclusão pela comunidade
hegemónica. A cultura popular “conta as histórias que a ideologia hegemónica procura
apagar” (Schirato, 1993: 283). Uma vez mais, a concepção de de Certeau é interessante
a este respeito. As tácticas quotidianas dos consumidores poderão constituir novas
potencialidades para fazer face às estratégias de controle disciplinar das instituições do
poder hegemónico ao criarem formas mais ou menos subtis de lidar com as estruturas e
com os poderes que delas emanam sob a forma de práticas – tais como conversar,
caminhar, ler, ludibriar formalidades – que se insinuam fragmentariamente em espaços
diversificados, imprimindo-lhes uma lógica transgressiva (de Certeau, 1984; Dirlik,
1987; Frow, 1991; Thrift, 1996). Pode, portanto, dizer-se – parafraseando de Certeau –
que, enquanto a cultura dominante actua como um exército de ocupação, a cultura
popular resiste como um exército de guerrilha, através de comportamentos tácticos de
evasão ou de resistência.
É neste sentido dinâmico que tomo aqui a cultura popular, realçando o seu papel
activo e o seu carácter dúctil, ou seja, a sua capacidade de combinar as dimensões
adaptativa e transgressiva inscritas nas práticas e formas de expressão cultural dos
grupos subordinados. O próprio processo de subordinação que presidiu à emergência da
classe operária nas sociedades industriais liga-se directamente a esta discussão em torno
da cultura popular, tendo em conta que esta – como vimos através das análises de E. P.
Thompson – foi profundamente marcada pelos contextos de industrialização e pela
chamada cultura operária. Dito de outro modo, a capacidade de mobilização colectiva e a
força social e política dos movimentos sindicais do século passado e princípios deste
século, revelou desde logo esta dupla vertente, ou seja, a consciência de subordinação
vivida na fábrica e a clivagem de classe aí estruturada só adquiriu a sua verdadeira
expressão na medida em que a identidade operária se assumiu também enquanto
contracultura. Contracultura essa que se estruturou não só no espaço produtivo mas
simultaneamente no espaço doméstico e comunitário – as relações de vizinhança, os
laços de afectividade, o convívio informal de rua, o jogo, a taberna, etc. – fazendo
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
211
germinar sentimentos de exclusão, de exploração e de revolta e ao mesmo tempo laços
de solidariedade colectiva (Davies, 1992; de Lauwe, 1970).
Sem dúvida que tais experiências tiveram uma importante incidência nos processos
de dinamização da cultura popular e na alteração das práticas de lazer. Se no período
pré-industrial o enquadramento sociocultural do lazer popular se orientou
fundamentalmente pela lógica comunitária da tradição rural, com o reforço dos
processos de implantação industrial e das relações de mercado, a esfera festiva de base
comunitária sofreu um dinamismo assinalável. Foi principalmente nos contextos onde a
troca simbólica e as actividades lúdicas do povo mais se confundiam com a actividade
mercantil que a acção organizada do operariado mais se intensificou e a cultura popular
mais rapidamente ganhou contornos de uma rebeldia politizada e “ameaçadora” para a
ordem burguesa (Burke, 1992).
1.4.3 - O lazer popular e a comunidade nos regimes autoritários
Ao salientar o papel da cultura popular e as ambiguidades que ela encerra, procurei
mostrar como ela nos invoca permanentemente as vinculações entre produção e
consumo, entre indústria e comunidade, entre trabalho e lazer89. A importância das
actividades recreativas dos trabalhadores prende-se, portanto, com o seu significado
social, económico, cultural e político. Tal significado foi, como se sabe, bem
interpretado por parte dos regimes autoritários da Europa e por isso lhes concederam
uma atenção especial ao porem em marcha todo um programa de acção institucional e
doutrinária especificamente dirigido ao enquadramento e controle disciplinar das classes
trabalhadoras através do lazer.
No que respeita às políticas de “controle recreativo” (como, de resto, em vários
outros domínios) as experiências do fascismo italiano e do nazismo alemão, bem como
do franquismo e do salazarismo, tiveram óbvias implicações sociais na modelação da
cultura popular (de Grazia, 1981). Se é certo que a preocupação em disciplinar o
operariado foi prioritariamente dirigido à esfera produtiva, a acção repressiva e
89 O próprio ambiente fabril desde sempre transportou importantes aspectos lúdicos. Não só as relações de amizade, o jogo e as piadas entre amigos, as cumplicidades e brincadeiras, conferiram ao humor um importante papel de resistência e celebração festiva no interior da esfera produtiva (Westwood, 1984; Collinson, 1992), como as atmosferas sociais que rodearam a fábrica, as actividades recreativas durante os intervalos, os ambientes dos intervalos, da saída do trabalho ou da taberna e do quiosque ao lado da fábrica, constituem exemplos que parecem confirmar a afirmação de Stanley Parker, segundo o qual “as actividades de lazer (...) são o cimento das relações sociais no trabalho e a fábrica da cultura ocupacional” (in Dawson, 1986: 50).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
212
doutrinária do poder totalitário estendeu-se, como se sabe, muito para além do campo
laboral. A atenção que o estatismo autoritário dedicou às políticas de lazer e tempos-
livres visou fundamentalmente reforçar – através de doutrinas e “terapias sociais”
sofisticadas – a lógica disciplinar já em vigor no interior da fábrica. Tratou-se, assim de
uma estratégia de “taylorização do lazer operário” destinada à obtenção de níveis de
consentimento e aceitação popular, apoiada na dupla lógica do policiamento versus
persuasão e inspirada nas políticas do neopaternalismo industrial oriundas do fascismo
corporativo italiano (de Grazia, 62-66).
O exemplo italiano do dopolavoro (Opera Nazionale Dopolavoro90, criada em
1923 e inicialmente vinculada ao Ministério da Economia Nacional) espelha bem a
forma como os estados fascistas e corporativistas – em Itália como em Portugal na
década seguinte – organizaram as suas políticas sociais sob influência dos climas
reivindicativos e de efervescência revolucionária que os precederam. Pode dizer-se,
seguindo Vitória de Grazia, que foi sob esse pano de fundo que se justificaram tais
políticas, destinadas a servir de “resposta para as complicadas necessidades de um
capitalismo organizado para os trabalhadores se tornarem consumidores disciplinados,
assim como operários diligentes, conduzindo a uma vida familiar ‘racional’, e a um uso
do lazer de modo eficiente” (de Grazia, 1981: 2). Procurando fundamentar a sua acção
em bases científicas, o Estado fascista começou por penetrar as próprias estruturas do
sindicalismo autónomo, contando para isso com algumas figuras anteriormente ligadas
ao movimento operário91. Embora na sua fase inicial este projecto fosse lateral ao
movimento fascista, ele veio a ser incorporado pelos objectivos propagandísticos de
Mussolini que, deste modo, foram minando o sindicalismo socialista e fazendo germinar
a ideia de que a emancipação do operário seria conseguida não contra o capital mas
através do auto-aperfeiçoamento individual (físico e moral) e da harmonia entre as
classes. Uma lógica muito idêntica à do projecto salazarista do Estado Novo92.
90 “Obra Nacional dos Tempos-livres”, estrutura corporativa destinada à organização dos tempos-livres dos trabalhadores (equivalente à FNAT portuguesa). 91 Como foi o caso de Mário Giani que, sob influência das suas experiências profissionais nos meios do management americano – foi director da Westinghouse Corporation –, já tinha começado a propagandear (desde 1919) as vantagens das 8 horas de trabalho e dos tempos-livres para uma organização “científica” do trabalho. Mais tarde, o mesmo personagem (abdicando completamente do seu passado de sindicalista) viria a ser nomeado por Mussolini consul-delegado e director executivo da OND, estrutura dirigente dos Círculos Dopolavoro que entretanto se espalharam às empresas. 92 A doutrina em que assentou a edificação do Estado Novo, não só se rebelava contra as ideias “subversivas” inspiradas no socialismo ou no comunismo mas exprimia também uma rejeição, ou pelo menos uma travagem, das bases liberais do capitalismo. “O liberalismo morreu – exclamava Salazar – e
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
213
Organizações semelhantes à da citada OND foram sendo adoptadas pelos restantes
estados ditatoriais da Europa dos anos trinta93. A atenção dedicada especificamente aos
lazeres dos trabalhadores por parte desses regimes pode perecer anómala vista da
actualidade. Mas se nos situarmos nesse contexto histórico, e principalmente se tivermos
em conta o significado social da luta pela diminuição do horário de trabalho – a bandeira
das “oito horas de trabalho” tinha-se tornado o “grito de guerra” das massas, na segunda
década deste século –, facilmente se percebe a razão porque na Europa do pós-I Grande
Guerra se tornou familiar em muitos círculos empresariais e governamentais a referência
ao “problema do lazer do trabalhador” (de Grazia, 1981: 238). Foi, portanto, como
resposta a este problema que a “nova ordem” fascista procurou encontrar as terapias
adequadas.
Apesar de todas as diferenças e especificidades existentes entre as experiências da
Itália, da Alemanha e de Portugal, pode dizer-se que, em qualquer dos casos, a
intervenção estatal no campo recreativo tinha em vista disciplinar, não só a classe
operária, mas também o pequeno campesinato, não só a fábrica, mas também a
comunidade e a cultura de expressão popular em geral. E isso traduziu-se numa
crescente pressão sobre as comunidades tradicionais no sentido da sua total integração
nos mesmos princípios nacionalistas e disciplinares encarnados pelo Estado. Esta
orientação doutrinária e repressiva baseou-se na ideologia do “modernismo reaccionário”
que – na expressão de Ernst Junger, referindo-se ao caso alemão – pretendeu
“modernizar” a comunidade, apoiando-se na dicotomia comunidade-sociedade para
reconverter o mito da comunidade pré-industrial e medievalista numa “comunidade
esteticizada, uma gemeinschaft do Estado nacional (…) que não era apoiada na tradição
nós não somos livres, por consequência, de ter ou de não ter uma organização económica. Devemos adoptar uma. Porquê? Porque nos pareceu que ela nos daria a síntese desejável dos diversos interesses, o ponto de encontro dos representantes qualificados, a possibilidade de acordo substituída à luta de classes” (Salazar, La Route à Suivre, Secretariado Nacional da Informação, Lisboa, 1958, citado por Albert Pasquier, L’Economie du Portugal, Librerie Générale de Droit et de Jusrisprudence, Paris, 1961, pp 54, in Alfredo Marques, 1980: 35). Mas, ao mesmo tempo, o enquadramento ideológico em que passou a ser envolvida a actividade laboral denota claramente o combate que o regime desencadeou à organização da classe operária e às suas estruturas sindicais. O Estatuto do Trabalho Nacional é, a este respeito, um documento fundamental – talvez mais do que a Constituição de 1933 –, onde a prática política e a orientação doutrinária do Estado Novo são postos a claro. “Damos a este termo [trabalho] uma significação muito ampla: fazemos entrar nesta categoria económica todo o esforço de ordem intelectual ou física que intervém e que é útil, directa ou indirectamente, ao processo de produção, do professor ao governante, do agente da ordem ao simples operário” (Salazar, 1966, in Marques, 1980: 39). 93 Tais como, a estrutura nazi “Força pela Alegria” (KDF, em 1933), a FNAT portuguesa (em 1935), a organização da ditadura grega de Metaxas, “Saúde dos Trabalhadores” (“Ergatixi Estia”, em 1937) e a franquista “Educación y Descanso” (em 1938).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
214
mas na invenção da tradição, dirigida pelo nacionalismo e pelos interesses do Estado
Alemão” (Lash, 1990: 83).
Objectivos semelhantes presidiram à política turística e cultural do salazarismo,
empreendida pelo Secretariado da Propaganda Nacional (mais tarde reconvertido em
Secretariado Nacional de Informação), dirigido pelo ideólogo António Ferro (aliás, em
estreita colaboração com o próprio Salazar que, a partir de meados dos anos trinta passou
a envolver-se directamente na promoção do turismo, seguindo o exemplo de Mussolini),
desencadeando a conhecida campanha de reaportuguesamento de Portugal. Dirigida
sobretudo às comunidades rurais, esta colorida e nostálgica campanha ruralista – na qual
se inseriu o “Concurso da Aldeia mais Portuguesa”, bem como as encenações idílicas
das danças populares como o “Verde Gaio” e em geral a promoção dos chamados
“Ranchos Folclóricos” – propunha-se, nas palavras de Salazar, promover “o culto das
boas, sãs, fecundas tradições nacionais, tão próprias para nos darem originalidade e
carácter… [em] homenagem ao próprio espírito criador da raça lusitana…”. Uma
imagem e uma valorização do país para atrair o turismo, levando-o a apreciar o Portugal
passivo, ordeiro e alegre na sua “naturalidade” campesina: como dizia António Ferro,
“Portugal é um cofre de velhas e coloridas coisas que não é difícil trazer à superfície,
flauta rústica onde dormem velhos ritmos e melodias e um dos mais sugestivos guarda-
roupas da Europa. Medite-se, por exemplo, no interesse turístico dos trajes sempre
frescos das suas raparigas, dos seus grupos de cantadores e cantadeiras…” (in Pina,
1988: 153). A acção estatal e a pressão disciplinadora que se exerceu sobre a cultura
popular – promoção do “folclore”, do “teatro para trabalhadores”, etc. – tiveram uma
incidência notória, quer na modelação da referida imagem “alegre” e inofensiva da
comunidade local, quer no enquadramento e “reinvenção” das suas formas tradicionais
de expressão festiva, ou seja, esses processos ilustram o impacto do estatismo autoritário
sobre a comunidade e a esfera do lazer popular.
São conhecidas as inúmeras actividades desenvolvidas pela Fundação Nacional
para a Alegria no Trabalho (FNAT) no campo da acção social, cultural e recreativa,
cujos princípios se afirmavam em torno de valores como o “génio da raça”, e a firmação
dos “bons costumes da moral católica”, por forma a evitar “que o abuso da diversão
exterior comprometa a coesão da célula familiar, [e ela] se extravie dos seus deveres” e
tendo em vista enquadrar o povo no seio das corporações “com vista ao seu
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
215
aperfeiçoamento físico, intelectual e moral” (Brochura da FNAT, s/d)94. A força da
tradição católica e dos novos meios de comunicação de massas, ajudaram a que a
ideologia da resignação e da contenção do consumo chegasse junto de sectores
significativos da força de trabalho. Como se sabe, este estado de coisas prolongou-se em
Portugal muito para além do pós-Guerra. Enquanto nos regimes democráticos da Europa
crescia o acesso a novas formas de lazer e padrões de consumo no quadro do
desenvolvimento socioeconómico e da edificação do Estado-Providência – com o
aumento dos índices de mobilidade social e o crescimento das classes médias –, nos
regimes fechados e conservadores como o português, a propaganda estatal, além dos
objectivos gerais de obtenção do consentimento, continuava a apostar na preservação do
consumo das classes populares no baixo nível, através da pedagogia de contenção, da
travagem dos “gastos supérfluos” e do controle dos hábitos de consumo das famílias
trabalhadoras: “fazer algo de melhor do que fora feito antes e proporcionar serviço diário
que só dinheiro não possa recompensar. O dinheiro, mais tarde ou mais cedo, enfada;
(…) a única felicidade que vale a pena conhecer é a alegria do dever cumprido”
(programa radiofónico “Meia Hora de Cultura Popular”, Dezembro de 1949, citado por
Kuin, 1994).
Apesar das estruturas do Estado Novo dirigidas à promoção turística e à
organização dos tempos-livres (a FNAT e a Mocidade Portuguesa, por exemplo) terem
sofrido influência e até mantido contactos directos com as suas congéneres europeias
(nomeadamente as alemãs), a sua implementação não foi isenta de contradições. No caso
das estruturas de lazer e de enquadramento juvenil, por exemplo, chegou até a haver
contestação clara aos que defendiam uma cópia fiel do modelo alemão (Kuin, 1993)95.
Também a modelação exercida ao nível das comunidades locais não foi linear e
uniforme. Mesmo no contexto de sistemas políticos fortemente autoritários, a articulação
entre o Estado e as comunidades exigiu alguma sagacidade e subtileza. Não obstante a
lógica homogeneizante e nacionalista dos aparelhos corporativos, e a componente
94 Recorde-se que os filiados na FNAT eram obrigatoriamente sócios de um Sindicato Nacional (corporativo), de uma Casa do Povo ou Casa de Pescadores. As estruturas de base eram, nas empresas os Centros de Alegria no Trabalho (CAT) e na zona de residência os Centros de Recreio Popular (CRPs). As Casas do Povo e as Casas de Pescadores eram, segundo os estatutos, considerados CRPs. 95 No caso da Mocidade Portuguesa, Simon Kuin refere-se ao contraste entre o discurso mobilizador dos dirigentes e a prática muito mais moderada de enquadramento institucional. Os programas de intercâmbio entre aquela estrutura portuguesa e a Juventude Hitleriana (Hitlerjugend), sofreram a oposição, primeiro tácita e mais tarde (a partir de 1938) aberta das estruturas da Igreja portuguesa (que se opunham a que “o ídolo pagão do estatismo totalitário seduza a alma generosa da nossa mocidade…”) (in Kuin, 1993: 582).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
216
repressiva em que se basearam, eles sempre se debateram com múltiplas contradições e
formas heterogéneas veiculadas pelos “seus” sub-aparelhos localmente sediados. Tal
como nos regimes democráticos o Estado-Providência corporativo teve de lidar com as
lógicas e dinâmicas próprias da administração local promotoras da fragmentação
(Dunleavy, 1984: 49), também nos regimes de tipo fascizante a força do caciquismo e
das suas bases de apoio – a influência das famílias “notáveis” e do paternalismo já
enraizado nas comunidades (Loureiro, 1991) – introduziram por vezes nas agências
locais de enquadramento estatal orientações comunitárias que, embora aceitando os
ditames do Estado, foram levadas a fazer concessões à própria lógica das comunidades.
O Estado Novo de Salazar, apesar do seu centralismo, deparou-se por vezes com a
necessidade de fazer cedências às administrações “periféricas” perante os poderes que
moviam e a implantação que detinham junto das populações: “através dos influentes, o
regime contactava e controlava os campos e as vilas do país interior e comprometera-se
por isso a não perturbar as estruturas sociais, económicas e culturais que permitiam essa
mediação, isto é, as bases desses poderes periféricos” (Ramos, 1986: 134). Quer isto
dizer que a submissão ao Estado nacionalista não deixou de afirmar – e de certa maneira
inscrever nas próprios aparelhos institucionais –, em maior ou menor grau, a capacidade
das identidades locais e a força cultural que lhes subjazia.
Em suma, estas experiências do estatismo autoritário desencadearam uma acção
sistemática de inculcação ideológico-cultural especialmente dirigida ao campo do lazer e
da cultura popular, cujos efeitos políticos foram inegáveis na esfera laboral – no rescaldo
de ciclos de grande agitação política e acção reivindicativa do movimento sindical
autónomo –, e cujo alcance no terreno da cultura e do consumo de massas se prolongou
muito para além do período de vigência desses regimes. Os seus mecanismos
institucionais articularam a comunidade local e o Estado nacional em novos moldes,
apesar dos arranjos particulares que por vezes os acompanharam. Tais experiências
tiveram um evidente efeito neutralizador da acção classista do movimento operário, mas,
ao mesmo tempo, contribuíram para fornecer novas conexões entre a esfera produtiva e a
do consumo, entre as identidades do trabalho e da comunidade.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
218
Capítulo 2
HIPÓTESES DE TRABALHO E METODOLOGIA
2.1 - Hipóteses de partida
A perspectiva de análise em que me apoiei na realização deste estudo pressupõe,
como tenho vindo a referir, a existência de múltiplas combinações entre a classe e a
comunidade, as quais permitirão compreender as formas de acção e de produção
identitária dos trabalhadores da indústria do calçado e das colectividades locais da zona de
S. João da Madeira. É na base das variadas formas de articulação entre a produção e o
consumo, entre o trabalho e o lazer, entre a economia e a cultura que terão de se encontrar
as principais linhas de interpretação sociológica para as formas aparentemente ambíguas e
contraditórias que definem o operariado do calçado desta região industrial.
Ao mesmo tempo, o passado histórico constitui uma dimensão fundamental que
procurei equacionar, no sentido de perceber as formas de estruturação e os traços
específicos – quer no quadro estrutural mais amplo, quer no terreno das práticas e
subjectividades – desta classe trabalhadora. Deste modo, é importante saber, em primeiro
lugar, até que ponto e de que maneira as experiências vividas em certos momentos da
história local deram lugar a uma identidade classista ou que tipo de mecanismos impediu
que a mesma se tornasse relevante em termos culturais e políticos. Em segundo lugar, só
equacionando essa dimensão se poderão compreender os principais processos de mudança
na região e de que modo eles foram ou não marcantes na estruturação da memória
colectiva dos trabalhadores. Qual o papel das experiências de luta vividas nos princípios
deste século – nomeadamente pelo sector chapeleiro – na emergência de uma cultura com
contornos de “aristocracia operária”? Que processos contribuíram para a sua posterior
reconversão e esbatimento? É possível ver, através das formas populares de expressão
festiva, a mistura de referências e a ductilidade de lógicas culturais e identitárias resultante
da penetração da indústria e do mercado no seio das culturas tradicionais? Que incidência
terá tido esse processo no domínio das formações de classe locais? Que outras dinâmicas
concorreram para impedir a emergência de uma identidade de classe com verdadeira
expressão social e política? Qual o papel do bairrismo local e de que forma ele estimulou
o paternalismo em detrimento da classe? Que factores favoreceram a acção do Estado
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
219
Novo a nível local e qual o impacto das suas políticas de controlo recreativo sobre os
trabalhadores?
Torna-se necessário procurar possíveis respostas a estas interrogações para que elas
nos ajudem a compreender algumas das especificidades e contradições que actualmente
acompanham a expansão da indústria do calçado na região. Tanto no passado como na
actualidade, este contexto socioeconómico continua a ser atravessado por tendências
contraditórias – a produção industrial e o mundo rural, o mercado e a comunidade
tradicional, a presença do Estado e as redes primárias e familiares, o sindicalismo e as
lealdades locais, etc. –, as quais se inscrevem no contexto cultural envolvente sob a forma
de redes de relações sociais em constante estruturação e fragmentação. De um lado, um
tecido industrial flexível que estende os seus mecanismos de suporte para diferentes
direcções e espacialidades, que os move de uns lugares para outros, que se implanta no
seio da família com o trabalho domiciliário, que liga as maiores empresas às inúmeras e
minúsculas unidades produtivas semi-clandestinas que se dispersam entre diferentes
comunidades. De outro lado, uma força de trabalho animada pela luta constante pela
renovação das formas de subsistência, procurando pôr em marcha novas estratégias de
acumulação, em que o trabalho industrial não é incompatível com as actividades agrícolas,
em que a relação salarial na fábrica não é incompatível com as mais diversas formas
informais de actividade económica. Neste conjunto extremamente maleável de formas de
ligação entre a indústria e as comunidades, torna-se impossível identificar estruturas
rígidas e práticas de classe bem definidas.
Uma primeira hipótese de partida que formulei prende-se justamente com a
abordagem das relações e práticas de classe deste operariado: pressupõe que as formas de
adaptação e de resistência se preservaram na base de uma constante ligação e
interdependência entre o trabalho industrial e as comunidades. Tal situação tende a
favorecer a preservação de sistemas de poder de índole paternalista apoiados em lógicas
identitárias ambivalentes e intermutáveis – estruturadas na transposição de fronteiras entre
a fábrica e a comunidade – em que a experiência vivida em cada uma dessas esferas é
fortemente impregnada pela experiência incorporada a partir da outra.
Uma segunda hipótese, diz respeito mais estritamente às relações de trabalho e
pressupõe que as transformações neste campo decorreram em três fases, as quais
correspondem a distintos regimes de acumulação: a fase de arranque da industrialização –
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
220
de finais do século passado até à queda da 1ª República –, em que o liberalismo
económico foi acompanhado pela emergência de uma lógica paternalista enraizada na
tradição artesanal e em que as experiências de classe foram marcadas pela “aristocracia
operária” da indústria de chapelaria; a fase de estagnação salazarista em que as políticas
autoritárias promoveram e se apoiaram no discurso bairrista promovido pelas novas elites
da vila industrial – e do qual a lógica nacionalista do Estado Novo tentou apropriar-se –,
deixando no entanto espaço para pequenas bolsas de “fordismo” (o caso da indústria
metalomecânica Oliva) onde a consciência de classe operária ganhou algum significado a
partir de meados do século; e, finalmente, uma fase que se desenvolveu a partir de finais
dos anos sessenta, de características “pós-fordistas”, cujo sector impulsionador foi o
calçado e que foi estruturando um modelo de massificação operária, com uma mão-de-
obra fragmentada e precarizada, vinculada aos habitus rurais, que se afasta da militância
sindical e em que a resistência passiva que promove é largamente suplantada pela lógica
do consentimento no interior da fábrica, onde prevalecem modelos de poder de tipo
despótico-paternalistas.
Uma terceira hipótese – continuando a considerar as mesmas três fases – dirige-se
às grandes linhas de mudança que ocorreram na esfera comunitária e das relações de lazer:
na primeira fase vigorou sobretudo o modelo rural, em que as festividades permaneciam
associadas ao “tempo natural” dos ciclos agrícolas, mas ao mesmo tempo assiste-se à
penetração das relações de mercado e à sua acção modeladora sobre a cultura popular, em
que os efeitos disciplinares do trabalho industrial são secundados pela crescente acção
moralista das elites locais face aos costumes do povo (considerados “desbragados”); na
fase seguinte, a incidência dos costumes e consumos burgueses fez-se sentir, a
moralização tutelada pelo Estado salazarista tornou-se mais notória e o enquadramento
institucional do recreio popular forneceu algumas bases para a expansão de novas formas
de lazer da classe trabalhadora local; na última fase, a massificação dos consumos ganha
maior expressão nas comunidades locais e a lógica mercantilista acompanha a expansão
dos contextos industriais, mas, embora os seus efeitos adaptativos estejam em
crescimento, não deixam de ter lugar ambientes populares e formas de expressão cultural
próximas do “carnavalesco”, onde a tradição e as culturas locais misturam a irreverência
popular com a estética uniformizante da cultura de massas.
Uma quarta hipótese desenvolve-se na base da mútua permeabilidade entre estas
duas dimensões – da produção e do consumo – e considera que as expressões pontuais da
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
221
cultura operária se dissiparam no seio de uma cultura popular mais dispersa e polifacetada,
estruturada em espaços mistos de ruralidade e urbanidade, onde a comunidade combina
dialecticamente práticas e formações pré-modernas com os efeitos da lógica moderna
produzidas pela dupla acção da produção e do consumo, dando lugar a um tecido
sociocultural em acelerada recomposição.
Finalmente, uma quinta hipótese refere-se ao processo de formação e fragmentação
de classes e considera que as formas classistas que este operariado evidencia não serão
“puramente classistas”96, antes revelarão a natureza dúctil e ambígua de uma categoria
social que na sua heterogeneidade e nas suas posições contraditórias desenvolve práticas e
subjectividades ambivalentes, cujas capacidades de acção em termos colectivos não são
suficientemente fortes para combater a lógica despótica e exploradora a que se sujeita,
mas cujos códigos culturais e sentido identitário não são suficientemente fracos para ver
no patrão o seu protector. Por isso, é de prever que o aparente esbatimento de formas de
luta não significará a total ausência de expressões de rebeldia.
2.2 - Orientação metodológica
Para a ciência moderna, o conhecimento cientifico é, como se sabe, construído em
ruptura com o senso comum. Quer isto dizer que, no caso das ciências sociais, as
subjectividades e atitudes dos actores ou categorias sociais em estudo são tomadas como
parte dos determinantes estruturais em que os indivíduos estão mergulhados e dos quais
não se dão conta, segundo o conhecido princípio da não consciência. O cientista, pelo
contrário, e dado o domínio que detém do vasto arsenal teórico e metodológico ao seu
dispor, é situado num plano superior e regra geral aparece como que imune face às
armadilhas do senso comum. Ele posiciona-se no lugar da razão. É tido como o produtor
da verdade, enquanto os agentes sociais que ele estuda vivem no mundo da illusio, da
“ilusão bem fundada” durkheimiana (Bourdieu). Esta concepção dominante da prática
científica caracteriza-se não apenas pelo viés positivista mas inclusivamente pela posição
privilegiada que é atribuída ao cientista (neste caso ao sociólogo) no acesso à “verdade”, e
que exige a remoção das “pré-noções” e a denúncia da illusio que define o senso comum.
Embora bem ciente das incontornáveis “rasteiras epistemológicas” a que estarei exposto –
qualquer que seja a orientação privilegiada –, ao adoptar uma postura compreensiva e
96 No sentido do marxismo clássico, ou seja, não são estruturadas unicamente através das relações de produção. Muito embora, como é evidente, o conceito de classe seja muitas vezes perspectivado num sentido mais abrangente, incluindo a esfera da comunidade, como acontece com E. P. Thompson.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
222
auto-reflexiva no manuseamento dos diferentes instrumentos metodológicos utilizados,
pretendi assumir uma perspectiva crítica destinada a questionar e confrontar a concepção
que acabo de referir.
Apesar de fazer uso de uma variedade de técnicas de recolha de informação – umas
eminentemente quantitativas, como é o caso de inquérito por questionário, outras
abertamente qualitativas, como a observação participante –, procurei, no entanto, articulá-
las na base de uma estratégia metodológica que obedece a um princípio comum: a de
privilegiar uma orientação compreensiva e reflexiva. Tal orientação, procurando em
primeiro lugar questionar e analisar o objecto de estudo, pretende ao mesmo tempo
questionar o próprio investigador na sua relação com o terreno e, na medida do possível,
dar conta das ambiguidades que esse processo encerra. Se quisesse catalogar a
metodologia adoptada, diria que ela se aproxima do “método de caso alargado” (Burawoy,
1991), a que mais adiante farei referência. Inspirando-me nessa orientação, procurei, por
um lado, centrar-me no detalhe e na minúcia das diversas situações observadas e, por
outro lado, pretendi inserir esses cenários sociais num quadro estrutural e histórico mais
amplo, tendo em vista utilizá-los como ilustração dos efeitos localizados – e nessa medida
dotados de características particulares – das tendências transformadoras ocorridas na
sociedade portuguesa ao longo dos últimos cem anos, em especial naquilo em que as
mesmas tiveram uma incidência directa nesta região e nas dimensões abrangidas pela
pesquisa.
Passarei então a apresentar uma breve discussão acerca da metodologia qualitativa
que privilegiei na elaboração do estudo. Refiro-me aos problemas que se ligam à
sociologia compreensiva, à relação macro-micro e ao método de caso alargado, a que atrás
aludi. Procurarei no final deste tópico sistematizar as várias técnicas a que recorri, em
função das diferentes dimensões analíticas que integram a pesquisa.
2.2.1 - Compreensão e auto-reflexão
A metodologia nas ciências sociais não é apenas uma mera ferramenta que o
investigador utiliza objectivamente para testar as suas hipóteses, tal como o social não
pode ser visto pelo investigador como simples objecto que ele mobiliza ou usa de forma
racional e utilitária. O social não está unicamente no objecto de estudo, e não basta
reconhecer cinicamente que o cientista é também ele um ser social para que o problema
esteja resolvido. Não só o sociólogo é um ser social como o processo de conhecimento
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
223
que ele procura levar a cabo é um processo social. Para desenvolver uma sociologia auto-
reflexiva, é inevitável que este entendimento seja extensível ao próprio trabalho de
pesquisa, de modo a questionar o vasto conjunto de riscos e de contradições que ele
encerra. Importa, portanto, considerar a prática de investigação enquanto processo social
orientado por uma dada estratégia, mas sujeito a uma infinidade de contingências. A
estratégia seguida e os procedimentos adoptados devem, pois, ser expostos a avaliação do
mesmo modo que o são os resultados obtidos. Sendo certo que este tipo de problemas se
levanta nos mais variados contextos de investigação, é evidente que quanto maior for o
grau de envolvimento do investigador com os sujeitos sociais sob observação, mais
pertinentes eles se tornam. Por isso, a presente discussão vem a propósito das diversas
situações de observação directa utilizadas durante a pesquisa, mas ganha um significado
especial no caso da observação participante realizada na fábrica.
Quer os actores ou agentes em estudo, quer o próprio investigador orientam as suas
acções e percepções segundo o esquema de disposições sócio-cognitivas e afectivas
modeladas pelo mundo vivido das suas experiências e trajectórias. A acção social não é
mera estratégia. O comportamento humano resulta do desdobramento de linhas de acção
que obedecem a regularidades e padrões de conduta socialmente inteligíveis e coerentes,
mesmo que não se limitem a seguir conscientemente um dado conjunto de regras com
vista a alcançar objectivos premeditados (Bourdieu e Wacquant, 1992: 25).
Para a sociologia compreensiva de Bourdieu, a principal diferença na estratégia de
pesquisa não é entre uma ciência que introduz no seu seio os pressupostos subjectivos do
investigador e uma ciência que não os introduz mas sim, entre uma ciência cujos efeitos
implícitos passam adiante sem que o investigador se dê conta deles ou uma ciência em que
o mesmo está alertado para eles e procura revelá-los o mais abertamente possível de modo
a que esses efeitos perversos sejam por ele controlados e incorporados na análise
(Bourdieu, 1996: 18). Quando o investigador mergulha no contexto da pesquisa, é
necessário procurar os efeitos arbitrários dessa intrusão, os quais são inerentes à própria
forma como ele se apresenta. Ele deve tentar situar e contextualizar as expectativas dos
observados e, ao mesmo tempo, esclarecer o modo como se estabelece a interacção e as
razões que levam uns a colaborar e outros a recusar entrar nesse tipo de intercâmbio.
Nesta mesma linha, outros autores, como Fowler, chamam a atenção para o facto de que,
quando o sociólogo trabalha dentro de uma instituição, ele tende a criar mecanismos de
protecção contra os enviesamentos a que o seu trabalho está sujeito, incluindo o do
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
224
próprio estatuto “soberano” do cientista: “uma condição da compreensão é a constante
interrogação dos pressupostos tomados por adquiridos que nos autorizam a mover-nos no
mundo social como peixe na água” (Fowler, 1996: 11). A reflexividade baseia-se num
sentimento e num olhar sociológico que habilita o investigador a perceber e a dirigir no
terreno os efeitos da estrutura social em que a pesquisa está a decorrer, mas não se pode
dissociar a construção do objecto, do instrumento de construção do objecto e da sua crítica
(Wacquant e Bourdieu, 1992: 30). Acresce que o conhecimento é sempre situado e
produzido a partir de uma perspectiva parcial que, em situação, canaliza de modo
selectivo e definido dimensões sociais (concepções de justiça social, por exemplo)
diversificadas que são constitutivas de um contingente de subjectividades (Haraway,
1992). Quer isto dizer que, qualquer que seja a modalidade cognitiva de que falamos, o
processo de construção do conhecimento contém sempre uma dimensão autobiográfica, e
esta não é redutível à reflexividade, tal como a entende Bourdieu.
2.2.2 - O macro e o micro
Uma segunda preocupação que esteve presente na elaboração deste estudo diz
respeito à articulação entre os níveis de análise macro e micro. Desde logo, o facto de a
abordagem incidir no contexto específico da indústria do calçado assenta num pressuposto
de raiz metodológica e que remete para esta questão. A razão de ser desta delimitação
espacial prende-se com a ideia de que o processo de estruturação industrial constitui uma
importante base de modelação de práticas e subjectividades sociais, ou seja, a lógica
estrutural e sistémica desse processo é fortemente marcada por uma estratégia macro-
económica, mas a sua especificidade local e a coerência sociocultural que daí resultaram
ao longo do tempo devem-se, em boa medida, às formas particulares de acção dos agentes
e das comunidades, no modo como se adaptaram ou resistiram à sua implantação.
Embora, como lembra Giddens, se devam distinguir analiticamente os sujeitos e a
estrutura, o que importa é ter presente que a mudança depende das formas de articulação
entre ambas. Para compreender a transformação há que atender às linhas de continuidade e
descontinuidade no tempo e no espaço e conceber os sujeitos não como meros “suportes”
mas sim como elementos com “capacidade de monitorização reflexiva” sobre as estruturas
em que estão inseridos. Na prática, os sujeitos são parte integrante da estrutura e por isso,
embora estas imponham fortes limites e obstáculos ao conhecimento e à acção dos
indivíduos, as acções ou reacções que eles desenvolvem face às pressões exteriores são
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
225
geradoras de mudança, muito embora essa mudança possa ser contrária às suas intenções.
É nesse sentido que a estrutura pode ser vista como uma “ordem virtual” que se refere às
“propriedades de estruturação” (Giddens, 1989: 13), as quais tendem a assegurar as
necessidades de reprodução sistémica, mas, dadas as múltiplas pressões e adaptações que
encerram, são obrigadas a uma permanente reconstituição dessas propriedades (cf. Fine,
1991 e 1992; Collins, 1981).
Tal como a macroestrutura e a acção dos actores sociais são duas componentes de
um mesmo processo, a estruturação e a mudança têm implicações tanto no nível micro
como no macro. A manter-se esta distinção, ela só tem sentido se nos posicionarmos no
cruzamento entre os dois níveis para levar a cabo um conhecimento multifacetado e
complexo do mundo social mais vasto. É, pois, necessário estabelecer pontes que
permitam ver a forma como as dicotomias acção/ estrutura e micro/ macro, são
impregnadas uma pela outra (Fine, 1991: 162). Se nos situamos, por exemplo, no micro
nível das organizações, a análise do poder e dos seus efeitos exige que se observe o
exercício do constrangimento não só enquanto resultado da interiorização de normas e
valores aí sediados, mas ao mesmo tempo enquanto efeitos da estrutura societal que
modelam a organização a partir do exterior. Enquanto o constrangimento opera
internamente, tanto pela coerção como pela interiorização individual da disciplina, as
contingências da realidade exterior operam independentemente da percepção, impondo
limites ao sucesso almejado pelo esforço individual de agenciamento. A exterioridade é a
estrutura persistente, incontornável, que exerce os seus efeitos dramáticos sobre os
actores, mesmo quando estes não os reconhecem ou o analista não fala deles. É nessa
dupla articulação que se afirmam as bases ou os macro-fundamentos da micro-estrutura
(Fine, 1991). Não se trata de os indivíduos não poderem agir “como eles querem”, mas
sim de ter em conta que a percepção incorpora constrangimentos no comportamento. É o
nosso entendimento do mundo material, ou seja, na prática, é a actuação das pessoas num
sentido macro-sociológico que está em causa, já que a própria aprendizagem é a leitura do
mundo social através de tipificações de situações, de instituições, de ideias, etc., vistas
num sentido unitário e concebidas intuitivamente como efeitos da macro-estrutura. “O
mundo micro e macro são colocados num equilíbrio delicado. A liberdade do actor
individual é ilusória, mas através dessa profunda ilusão torna-se real para todos os efeitos.
As estruturas tornam-se reais e aceites como tais por aqueles que se encontram em
interacção com as suas manifestações. Os efeitos da estrutura não são ilusórios, mas,
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
226
apesar disso, as imagens que caracterizam a estrutura podem ter um charme fantástico”
(Fine, 1991: 165).
2.2.3 - O método de caso alargado
A importância das dimensões que acabo de referir pode ser enquadrada no
procedimento metodológico mais geral que foi privilegiado na presente pesquisa: o
chamado “método de caso alargado”, desenvolvido e aplicado em vários estudos de
campo, entre outros, por Boaventura Sousa Santos (1983 e 1995) e Michael Burawoy
(1979, 1985 e 1991; Burawoy e Lukács, 1992). Esta perspectiva está intimamente ligada
às questões que acabei de referir. A orientação metodológica que persegue destina-se a
contrariar os tradicionais métodos positivistas, opondo a generalização pela quantidade e
pela uniformização, a generalização pela qualidade e pela exemplaridade. Boaventura
Sousa Santos sintetiza bem as suas vantagens na seguinte passagem: “em vez de reduzir
os casos [em estudo] às variáveis que os tornam mecanicamente semelhantes, procura
analisar, com o máximo de detalhe descritivo, a complexidade do caso, com vista a captar
o que há nele de diferente ou mesmo de único. A riqueza do caso não está no que há nele
de generalizável, mas na amplitude das incidências estruturais que nele se denunciam pela
multiplicidade e profundidade das interacções que o constituem” (Santos, 1983: 11-12).
O método de caso alargado (extended case method) é discutido por Burawoy em
articulação com o método da “teoria apoiada” (grounded theory), tradicionalmente
utilizado pelos estudos etnográficos. Ambas as perspectivas incorporam o micro e o
macro, considerando estes dois níveis como mutuamente implicados na realidade. A
primeira centra-se numa situação social concreta procurando compreender as forças
particulares que a moldam, evitando assim o problema da generalização; enquanto a
grounded theory “pode construir o macro a partir das suas micro generalizações, o método
de caso alargado pode fazer emergir generalizações através da teoria reconstruída”
(Burawoy, 1991: 274). Ou seja, o contexto é visto como indissociável e reflexivamente
ligado às situações, e a sua invocação e explicitação deve ser feita de modo relevante para
conferir unidade às situações no quadro de uma realidade estruturada. Através desta
abordagem é possível demarcarmo-nos dos procedimentos que adoptam um excessivo
relativismo, segundo o qual parece não existir um mundo real mas apenas múltiplas
situações de acordo com as perspectivas particulares e, por outro lado, no que toca à sua
procura de características invariantes que tendem a universalizar todas as situações sociais
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
227
com base nesses princípios universais (a comunicação, a racionalidade, o tabu do incesto,
etc.). Enquanto a grounded theory descobre generalizações abstraindo-as do tempo e do
espaço, ou seja, pondo em marcha uma estratégia indutiva que leva a explicações
genéricas, o método de caso alargado visa construir explicações genéticas, isto é,
explicações com base em resultados particulares. “No modo genético, o significado de um
caso refere-se ao que ele nos diz acerca do mundo no qual está inserido. Qual será a
verdade acerca do contexto social ou passado histórico para que o nosso caso tenha
assumido as características que nós observámos? O significado refere-se aqui ao
significado societal. A importância do caso único recai sobre o que ele nos diz sobre a
sociedade como um todo mais do que acerca da população de outros casos similares”
(Burawoy, 1991: 281).
O método de caso alargado, embora também adopte uma análise situacional97, evita
os efeitos do relativismo e do universalismo, olhando a situação como fortemente
modelada a partir de cima. Pretende-se dar conta da generalização “através da
reconstrução das generalizações existentes, isto é, da reconstrução da teoria existente”
(Burawoy, 1991: 279). Procurei, no entanto, não ficar preso à ênfase, talvez excessiva, que
Burawoy coloca no consentimento e nas capacidades de modelação vindas de cima e por
isso não deixei de atender às formas de resistência dirigidas de baixo para cima. No
cruzamento entre estas duas lógicas contrárias – o top down e o bottom up – deverão
encontrar-se as especificidades deste tecido sociocultural, e é a essa luz que pretendo
explicar as suas características ambíguas. Significa isto que as formas particulares que
assumem as relações entre a classe e a comunidade ou entre a produção e as identidades
culturais locais nesta região devem dizer-nos alguma coisa acerca dos processos de
mudança estrutural mais vastos, mas as suas principais linhas de transformação histórica
podem assumir formas discrepantes nos níveis nacional e local. A metodologia de
Burawoy conduz directamente às questões da dominação e da resistência, aspectos estes
que, como já enunciei, ocupam um lugar central na presente tese. Adopta-se, portanto,
aqui uma perspectiva que se assume como herdeira da metodologia compreensiva e
multicausal de Max Weber. O método de caso alargado, ao reconstruir uma situação social
como única, coloca a atenção na sua complexidade, na sua profundidade e na sua
97 Porém, diferentemente da etnometodologia – que em geral trata o poder sobretudo através dos modos como ele se realiza nas situações no interior do micro contexto, colocando a ênfase nas variáveis que podem ser manipuladas na situação imediata – a presente orientação metodológica não menospreza as forças mais amplas procurando ver como elas limitam a mudança e criam os meios de dominação na esfera micro.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
228
amplitude. A causalidade torna-se assim múltipla, envolvendo uma interconexão entre a
situação social e o seu contexto de determinação, tentando descobrir os macro-
fundamentos da micro sociologia e os micro-fundamentos da macro sociologia. Uma
forma de evitar o determinismo e o descritivismo é dar visibilidade às práticas e
subjectividades observadas, adquiram elas a forma de adaptação e consentimento face aos
mecanismos de poder ou o carácter de resistência e transgressão em face da lógica
hegemónica – seja ela de base classista, estatal, cultural ou outra – que tais mecanismos se
destinam a servir.
2.2.4 - As técnicas de recolha utilizadas
Foi, portanto, à luz deste tipo de preocupações que procurei conjugar as técnicas
utilizadas, qualitativas e quantitativas. O facto de há vários anos ter começado a estudar o
sector do calçado nesta região (Estanque, 1991, 1992, 1993 e 1994) facilitou imenso a
realização deste projecto de pesquisa. Os contactos e ligações prévias que mantive com
diversas fontes e observadores locais, assim como a própria reflexão já realizada, foram
fundamentais para levar a cabo o presente estudo. Assim, numa primeira fase, a observação
sistemática, as entrevistas não estruturadas e conversas informais, a observação participante
em ambientes populares e celebrações festivas, e a análise documental de monografias,
jornais e revistas locais foram os instrumentos privilegiados.
A análise histórica apoiou-se, evidentemente, em diferentes fontes documentais,
nomeadamente jornais locais, monografias, comunicados, anúncios e ilustrações diversas
(Capítulos 4 e 5). No caso da resistência operária durante o salazarismo, foram realizadas
algumas entrevistas a antigos militantes ainda vivos e socorri-me também de um documento
escrito, autobiográfico de um dos mais destacados dirigentes do sindicato do calçado. Trata-
se de uma história de vida que descreve com assinalável detalhe os problemas e angústias
desse operário num clima de perseguição e até de prisão e tortura a que foi sujeito por volta
de meados do século (ver Capítulo 5). Esta foi, portanto, uma fonte de informação de grande
importância para a compreensão da resistência sindical desse período, nesta região. Os
ambientes festivos e recreativos foram abordados a partir de discursos em que por vezes é
nítida a orientação normativa dos observadores, eles mesmos membros activos da
comunidade local. Assim, por exemplo, na abordagem das comunidades tradicionais e suas
expressões festivas (Capítulo 4), recorri a diversas monografias elaboradas por esses
observadores privilegiados (nalguns casos, por figuras da terra e em geral publicadas por
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
229
instituições locais), procurando dar atenção ao viés subjectivo ou moralista que surge em
algumas dessas descrições, tomando-o como um elemento do próprio processo de
normalização e enquadramento cultural, quer na análise das experiências laborais, quer no
campo dos lazeres populares. Quer isto dizer que os discursos centrados nos
comportamentos populares são por vezes vistos como uma espécie de contraponto moral das
práticas efectivas que estão sob avaliação. Este aspecto prende-se, no fundo, com um
problema que não é novo nas ciências sociais e que diz respeito à escassez de fontes e
testemunhos directos, quando se trata de estudar as classes subordinadas e o seu passado
histórico. Em geral, apenas os grupos dominantes, escolarizados e poderosos, nos deixam
legados escritos. Essa lacuna poderá, portanto, ser compensada desde que a leitura das fontes
possa ser sujeita ao distanciamento crítico e ao seu enquadramento no contexto mais geral da
pesquisa, de acordo com os pressupostos que anteriormente apresentei.
No que se refere aos aspectos da análise mais centrados na actualidade, socorri-me de
instrumentos como a observação participante, o inquérito por amostragem, análise
documental, entrevistas e observação directa. Esta última técnica foi sobretudo utilizada nos
casos em que se pretendeu retratar os ambientes públicos (cafés, tabernas, festas, etc.).
Diversas entrevistas foram realizadas a operários, proprietários do sector do calçado,
dirigentes sindicais e da associação patronal, além das inúmeras conversas informais com
trabalhadores de variadas empresas. Por vezes acompanhei jovens trabalhadores nas suas
ocupações de lazer (bares, discotecas, festas populares, etc.) a fim de compreender algumas
das actuais tendências dos comportamentos juvenis neste campo. O sindicato do sector do
calçado e os seus mais destacados dirigentes prestaram um apoio que merece realce por
terem permitido o acesso a ambientes e situações laborais que de outra forma dificilmente
seriam detectáveis (Capítulo 7).
O inquérito foi aplicado a uma amostra representativa da população activa, com idades
entre os 18 e os 70 anos. A amostra foi constituída por 300 indivíduos, seleccionados entre a
população dos três concelhos estudados, tendo-se seguido os procedimentos de
representatividade e aleatoriedade que garantem uma margem de erro de 5%, para um nível
de confiança de 95% (ver Anexo Metodológico do Capítulo 6). O questionário, bem como o
modelo teórico utilizados nesta abordagem (que se apoia na teoria de classes de Erik Olin
Wright), foram os mesmos que se adoptaram no estudo sobre a estrutura de classes em
Portugal, num projecto recentemente concluído (Estanque e Mendes, 1998). Esta vertente de
análise destina-se, por um lado, a fornecer uma visão mais sistematizada da estrutura de
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
230
classes da região do calçado e, por outro lado, permitiu-me articular a análise histórica e
qualitativa com as conclusões fornecidas por esta leitura estrutural, ao mesmo tempo que
possibilitou também a sua comparação com os resultados nacionais. Desde modo, não
obstante o modelo de análise se apoiar aqui numa técnica quantitativa, a interpretação dos
dados insere-se na orientação analítica mais geral do método de caso alargado.
A observação participante foi adoptada tendo em vista uma abordagem mais em
profundidade das relações de trabalho numa empresa do sector do calçado98 (Capítulo 8). A
selecção desta unidade foi efectuada a partir de um leque relativamente restrito de
alternativas, na sequência de contactos por carta que dirigi a um conjunto de cerca de vinte
empresas, explicando os meus objectivos. De assinalar é ainda o facto de a minha aceitação
pelo proprietário ter passado por uma negociação em que me comprometi a realizar,
paralelamente aos meus próprios interesses de pesquisa, um diagnóstico da situação social e
das atitudes dos operários perante o trabalho e a empresa.
Trabalhei como operário durante um período de cerca de três meses, cumprindo todos
os horários, executando diversas tarefas na linha de montagem e sujeitando-me o mais
possível a todos os condicionalismos inerentes ao processo produtivo. Os inúmeros
problemas com que me deparei durante esta fase da pesquisa – quer de natureza científica,
quer pessoal e humana, se é que estas duas vertentes se podem desligar – são
detalhadamente relatados no capítulo anexo ao da análise dos resultados (Capítulo 8-A),
apresentado sob a forma de Diário de Campo. Por esse motivo não vou aqui alongar-me
neste assunto. Como se sabe, uma das maiores dificuldades que este método levanta diz
respeito ao período de integração e aceitação do investigador no seio do grupo que vai
estudar. O esforço necessário para conquistar a aceitação é, como a antropologia cultural já
mostrou, um dos aspectos mais importantes do método de observação participante. “Raro é o
etnógrafo que, durante esse período de adaptação, não tenha sentido uma forte reacção
pessoal de desgosto, agressividade e até repulsa pela população escolhida” (Geertz, citado
por Pina Cabral, 1983: 331). Se as experiências de campo vividas pelos antropólogos, em
especial no estudo das sociedades tribais, contêm um grau de exigência, de dureza e se
sacrifício pessoal (até pela sua duração) incomparavelmente superior às dificuldades que eu
próprio vivi na fábrica, o mundo operário e o quotidiano fabril levantam um outro tipo de
98 Tratou-se de uma pequena fábrica, com cerca de 55 trabalhadores, sediada em SJM. A empresa foi criada no início dos anos oitenta e é actualmente dotada de um conjunto de equipamentos tecnológicos bastante avançados. Como na maioria do sector, a sua produção é sobretudo destinada à exportação para a Europa, Oriente e América do Norte.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
231
problemas. Nomeadamente, os que se prendem com a questão da intensidade dos
antagonismos sociais aí presentes e que tornam extremamente difícil a gestão das opções que
o investigador tem pela frente na aproximação aos trabalhadores. Os conflitos de interesse e
as contradições de classe em que ele tem de se posicionar, a necessidade de construir e
preservar laços de confiança mútua com diversos sectores rivais entre si, tornam-no um alvo
de permanente desconfiança num contexto em que os campos opostos estão claramente
demarcados. Por outro lado, numa fábrica de pequenas dimensões torna-se impossível
preservar o anonimato. Colocado entre o desejo de me assumir como um trabalhador
“normal” e a premência de ser aceite pelo grupo, tornou-se necessário ir aos poucos dando
conta dos meus objectivos para que os operários me começassem a olhar como alguém que
estava do lado deles, apesar de, em rigor, nunca ter sido considerado como um igual. Sendo
o problema do poder um factor decisivo a todos os títulos, quando se pretende estudar as
estruturas de poder e ao mesmo tempo é preciso que o investigador use o poder que o seu
próprio estatuto lhe confere, entra-se num tipo de jogo simbólico extremamente difícil de
gerir.
Com todas as nuances e contingências que foram decorrendo (como relatarei no
Capítulo 8-A), consegui conquistar a simpatia geral dos trabalhadores e criar afinidades com
muitos deles, mas o reverso disso foram as desconfianças e dificuldades que surgiram na
minha relação com o patrão e alguns dos encarregados. Esta situação confirma a pertinência
e a relevância que continua ter a questão do whose side are we on (H. Becker), que não é só
um problema de escolha, mas o resultado da própria presença num terreno com estas
características (e, em geral, em qualquer terreno). Esta foi, pois, uma das mais ricas
experiências humanas que já vivi enquanto sociólogo, e é porque neste caso a experiência
pessoal e o trabalho de pesquisa são aspectos que se encontram intimamente imbricados um
no outro que se torna fundamental ter presente a dimensão compreensiva e auto-reflexiva
desta pesquisa, como referi no início.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
232
Capítulo 3
POPULAÇÃO E ESTRUTURA INDUSTRIAL: BREVE CARACTERIZAÇÃO 3.1 - Traços genéricos
O desenvolvimento industrial de S. João da Madeira assentou inicialmente na
indústria de chapelaria, como já foi referido. Mas, apesar de esta ter sido a indústria mais
implantada em SJM na viragem do século, o calçado começou nessa altura a ganhar um
crescente significado. Com o progressivo declínio da indústria chapeleira, principalmente
a partir dos anos quarenta deste século, este sector industrial passou progressivamente a
assumir o estatuto preponderante, que ainda hoje detém nesta região.
[[[[FIGURA 3.1 - Mapa da Região]]]]
O papel impulsionador da indústria local, bem como o seu significado económico,
social e cultural, estendeu-se muito para além dos estreitos limites administrativos deste
pequeno concelho (de uma única freguesia). Por isso, a análise dirige-se a uma zona
territorial mais ampla que, neste caso, inclui os concelhos circundantes de Santa Maria da
Feira e Oliveira de Azeméis, os quais desde sempre alimentaram a força de trabalho da
indústria sanjoanense. É sobretudo em direcção a eles que o sector tem continuado a
expandir-se nas últimas décadas.
Tendo presente a importância da pequena agricultura familiar como complemento
na reprodução da força de trabalho industrial ao nível desta região (Reis, 1987, 1988 e
1992; Ferrão, 1987; Santos, 1993) e, ao mesmo tempo, a enorme facilidade de instalação e
mobilidade tecnológica do sector do calçado, pode perceber-se a complexidade dos
fenómenos, quer económicos, quer culturais que ficam expostos aos efeitos induzidos
pelos processos de implantação e deslocação desta actividade produtiva99. Pode dizer-se
99 A preponderância do sector do calçado nesta região permite pensar os seus efeitos estruturadores tanto em termos económicos como no âmbito sociocultural mais vasto. Estudos efectuados em Itália (Garofoli, 1983) e também em Portugal (Reis, 1987 e 1992; Ferrão, 1987) têm salientado a importância das “áreas-sistema” e dos “sistemas produtivos locais”. Trata-se de “áreas fortemente especializadas no seu conjunto (predomínio de calçado, vestuário, equipamento agrícola, etc.), mas com uma acentuada divisão do trabalho entre empresas no seu interior (especialização por fases de fabrico, componentes, equipamento necessário, etc.) (in Ferrão, 1987: 62). Como também assinalou José Reis, estes contextos e espacialidades apoiam-se nas suas próprias especificidades e dinâmicas e, por isso apelam não só a análise do mercado de trabalho mas
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
233
que, em especial nos últimos trinta anos, o dinamismo do sector decorre sob duas lógicas
que se completam uma à outra: primeiro, a absorção de força de trabalho
permanentemente renovada e recrutada nos sectores mais jovens das comunidades rurais
circundantes; segundo, a própria difusão das unidades produtivas, seja pela deslocação de
dependências das maiores unidades para a periferia do núcleo tradicional, seja pelo
surgimento de novas pequenas fábricas de cariz doméstico. Por um lado, a referida
maleabilidade permitida pelos recursos técnicos empregues e pela fragmentação do
processo produtivo e, por outro lado, a própria maleabilidade de uma força de trabalho
relativamente desprotegida e vinculada ao espaço rural. Estas duas vertentes constituem,
portanto, duas faces de um mesmo processo.
O interesse sociológico da indústria do calçado deve-se não só ao seu enorme
significado na economia nacional mas principalmente à complexidade dos processos
sociais e culturais em que se apoia. Sendo um dos mais importantes sectores exportadores,
o calçado apresenta-se como dos mais modernos, mas ao mesmo tempo pratica níveis
salariais dos mais baixos do país e nele subsistem situações de grande precaridade social.
Se se pretende estudar os processos de estruturação de classe que aí ocorrem dever-se-á ter
em conta as especificidades desta região e as ligações inextrincáveis entre a dinâmica
industrial e a dimensão sociocultural e identitária nas suas múltiplas vertentes.
3.2 - População, sectores de actividade e estrutura industrial
3.2.1 - Evolução demográfica
Basta reparar na evolução demográfica da região ao longo deste século para termos
uma ideia da sua vitalidade económica.
também das “estruturas industriais locais, dos seus modos de mobilização da força de trabalho, dos processos de adensamento das relações inter-industriais, dos tipos de mão-de-obra que requerem, das actividades em que competem no mercado de trabalho nacional e internacional. (…) A presença de uma estrutura social específica, com formas próprias de regulação e de racionalidade, reordena a nível local a inter-relação com os espaços mais vastos, pelo que o ‘produto final’ nunca é o resultado linear da dominação de um polo” (Reis, 1987: 26).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
234
GRÁFICO 3.1 - Evolução da população residente para os três concelhos (milhares de habitantes)
0
50
100
150
200
250
1900 1920 1940 1960 1981 1991 1997
SMFeira
Ol Azem
SJM
Total
Fontes: 1900 a 1981, INE, in Caetano (1986); 1991, INE/ Censos; 1997, INE in Jornal Público, 27/11/97, 2 e 3/12/97. Nota: O concelho de S. João da Madeira só foi criado em 1926, pelo que só existem estatísticas a partir da 1930.
Actualmente com mais de duzentos mil habitantes nos três concelhos, este
crescimento contínuo expressa bem o dinamismo industrial e o seu enorme poder atractivo
em relação às populações das freguesias rurais da região, o que, aliás, se enquadra no
fenómeno mais geral de concentração urbana e industrial no litoral português. Para além
disso, o desenvolvimento das vias de comunicação e a proximidade do centros produtores
de Aveiro e do Grande Porto, ao facilitarem enormemente a mobilidade de e para esses
centros, ajudaram também a expansão industrial. Os dados respeitantes à distribuição da
população activa são significativos quanto ao peso do sector secundário nesta região, em
comparação com a situação do país.
3.2.2 - Sectores de actividade
De facto, é clara a enorme importância das actividades do sector secundário, que nos
três concelhos rondavam em 1991 os 70% da população activa, um valor muito acima do
peso desse sector nas estatísticas nacionais (38,5%). Em contrapartida, o terciário, com
26,4% e 27,1% em Oliveira de Azeméis e Santa Maria da Feira, respectivamente, está
ainda bastante abaixo da média nacional, muito embora seja de referir que em S. João da
Madeira (sem dúvida devido aos limites urbanos do concelho), a população do terciário é
percentualmente superior aos valores dos outros dois concelhos (38,3%).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
235
QUADRO 3.1 - Distribuição da população activa, segundo o sexo, por sectores de actividade (1991)
População Activa
(N) Primário
(%) Secundário
(%) Terciário
(%) Área
Geográfica HM H M HM H M HM H M HM H M
Continente 3 945 520 2 353 403 1 592 117 10,5 11,2 9,5 38,5 43,6 30,8 51,0 44,8 60,2
SM Feira 57 118 33 084 24 034 2,2 1,6 3,0 70,7 73,0 67,5 27,1 25,3 29,4
Ol. Azem. 33 260 19 061 14 199 4,1 3,1 5,4 69,5 72,9 64,9 26,4 24,0 29,6
SJ Madeira 9441 5 180 4 261 0,3 0,4 0,2 61,3 64,2 57,9 38,3 35,4 41,9
Região* 99 819 57 325 42 494 2,7 2,0 3,6 69,4 72,2 65,7 27,9 25,7 30,8
Fonte: INE, Recenseamento Geral da População * Somatório dos três concelhos considerados.
Os números quase insignificantes do sector primário, embora reveladores do
apagamento deste sector enquanto actividade económica principal, não devem fazer-nos
esquecer o significado económico e social das actividades agrícolas da região, em especial
o da pequena agricultura complementar que, como atrás assinalei, constitui um suporte
muito importante do rendimento familiar. Em relação à presença da força de trabalho
feminina na população activa, ela situa-se nos 43% nesta região, um valor ligeiramente
acima da média nacional (cerca de 40%, em 1991). De destacar é o facto de o peso
percentual das mulheres incidir sobretudo no sector secundário, com 67%, valor bem
próximo do peso dos homens (69%), e que representa mais do dobro do valor para o
continente (31%). Adiante referirei o caso concreto do calçado, onde o número de
mulheres é superior ao dos homens. Em relação à distribuição por sexo no secundário e no
terciário, a situação é, pois, claramente distinta quando contrapomos os dados da região
com os do continente. Enquanto neste último caso a maior presença feminina recai
sobretudo no sector terciário, na região ela representa apenas cerca de 31%, apenas cinco
pontos mais do que os homens.
Importante é ainda ter presente as taxas de desemprego na região. De acordo com os
dados do Censos de 1991100 o desemprego situa-se em valores pouco relevantes: 3,1% em
SJM, 2,7% em Santa Maria da Feira e 2,1% em Oliveira de Azeméis, sendo que a situação
de desemprego atinge mais as mulheres do que os homens (com os valores do sector
feminino a situarem-se cerca de um ponto percentual acima dos homens, ou seja,
respectivamente com taxas de 3,7%, 3,4% e 2,8% para os mesmos concelhos).
100 Segundo o INE, os dados mais recentes do Inquérito ao Emprego são pouco fiáveis quando desagregados por concelho.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
236
3.2.3 - Estrutura industrial
Quanto à estrutura da indústria transformadora, refira-se, em primeiro lugar alguns
dados acerca do volume da força de trabalho para o distrito de Aveiro, os quais
evidenciam o já assinalado peso do sector secundário (55% no total do distrito e cerca de
70% nos três concelhos). Dados de 1995 coligidos pela Associação Industrial do Distrito
de Aveiro, indicam aproximadamente os seguintes números: 49.000 trabalhadores
empregados no sector “têxtil, vestuário e calçado”; 36.000 nos “produtos metálicos”;
23.000 na indústria de “madeiras e cortiça”; 16.000 nos “minerais não metálicos”; 11.000
na indústria de “alimentação e bebidas”; 7200 na “indústria metalúrgica”; 6.400 na
“indústria química”; e 6000 nas indústrias de “papel e artes gráficas”. No caso dos três
concelhos aqui em análise, a nível da indústria transformadora o calçado é claramente o
sector que absorve maior volume de emprego (entre 23.000 e 27.000 trabalhadores,
consoante as fontes), seguindo-se-lhe o ramo da indústria da cortiça (que se centra
sobretudo no concelho de Santa Maria da Feira, com cerca de 600 empresas e empregando
10.000 trabalhadores), os produtos metálicos (5.300 trabalhadores) e os têxteis e vestuário
(2.800 trabalhadores)101.
3.3 - O sector do calçado
3.3.1 - Dimensão das empresas
Em relação ao calçado, para além de ser o sector que tem vindo a revelar um dos
maiores índices de crescimento da indústria portuguesa nos últimos vinte anos102,
interessa sobretudo atentar em algumas das características da sua estrutura produtiva.
Como se sabe, as pequenas empresas são aqui predominantes. Os dados do Quadro 3.2
mostram que cerca de 86% das empresas possuem menos de cinquenta trabalhadores
(dados de 1991), tendo o seu número global103 crescido acentuadamente ao longo dos anos
101 Dados mencionados na publicação O Distrito de Aveiro: quem somos, do Douro ao Buçaco, edição do Governo Civil de Aveiro, Julho de 1995. 102 A produção (VBP) em 1994 foi estimada em 330 milhões de contos, representando um crescimento anual médio de 28%. Quanto às exportações , que correspondem a cerca de 80% da produção nacional do sector revelaram em 1995 uma taxa média de crescimento anual de 35% nos últimos vinte anos, o que representa, para o mesmo ano, 8,1% do total das exportações da indústria transformadora portuguesa (quando em 1973 se limitava a 1,2%). Em 1974 as exportações de calçado foram de 3,6 milhões de pares (555 mil contos), enquanto em 1995 esse valor se situava nos 76 milhões de pares (o que correspondeu a 235 milhões de contos). Ainda quanto ao volume emprego, o sector cresceu cerca de 7% ao ano no mesmo período, absorvendo em 1995 à volta de 60.000 trabalhadores a nível nacional (in A Indústria Portuguesa de Calçado, edição APICCAPS, Porto, 1997). 103 É de admitir que estes números fornecidos pelas estatísticas do Ministério do Emprego sejam bastante inferiores à quantidade real de unidades produtivas. Efectivamente, de acordo com dados do Sindicato do Calçado, em 1990 existiam nos três concelhos, cerca de 1100 fábricas, embora parte delas não estivessem formalmente registadas.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
237
oitenta. As empresas com mais de cinquenta trabalhadores assumiam um peso relativo de
15% nesse ano, sendo que na comparação concelhia o caso de S. João da Madeira revela
uma maior presença das empresas de maior dimensão (24% com mais de 50
trabalhadores) em relação aos concelhos vizinhos, o que confirma o poder estruturante
daquele núcleo fundador.
QUADRO 3.2 - Número de empresas de fabrico de calçado, segundo a dimensão
(para os anos de 1982 e 1991)
DIMENSÃO DAS EMPRESAS
Ano de 1982 Nº Trab. → 0 - 4 5 - 19 20 - 49 50 - 99 > 99 Total SM Feira 26 57 38 14 7 142 Oliv. Azem. 51 152 67 14 3 287 SJMadeira 21 43 46 25 7 142
Total 98 252 151 53 17 571 (%) (17,2) (44,1) (26,4) (9,3) (3,0) (100,0)
Ano de 1991 SM Feira 36 78 56 28 15 213 Oliv. Azem. 93 216 98 23 8 438 SJMadeira 24 50 55 30 11 170
Total 153 344 209 81 34 821 (%) (18,6) (41,9) (25,5) (9,9) (4,1) (100,0)
Fonte: MESS, Quadros de Pessoal, 1982 e 1991.
Tendo presentes estes dados quanto ao número de empresas do sector, importa agora
observar a distribuição da força de trabalho em função da dimensão das mesmas.
Atentando no Quadro 3.3 (abaixo), pode constatar-se desde logo a discrepância
entre o pequeno número das empresas de maior dimensão (as quais não são, apesar disso,
grandes unidades) e a quantidade significativa de trabalhadores que empregam, no seu
conjunto. Quero com isto dizer que os referidos 15% de empresas com mais de 50
trabalhadores, absorvem 55,3% da força de trabalho ou – numa leitura ainda mais evidente
–, os 4,1% de unidades produtivas com cem ou mais trabalhadores são responsáveis por
31% do emprego no sector. Curioso é ainda o facto das 153 empresas com menos de 5
trabalhadores ocuparem no total 420 trabalhadores, o que dá uma média inferior a 3
indivíduos por unidade.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
238
QUADRO 3.3 - Número de trabalhadores ao serviço, segundo a dimensão das empresas (para os anos de 1982 e 1991)
DIMENSÃO DAS EMPRESAS
Ano de 1982 Nº Trab. → 0 - 4 5 - 19 20 - 49 50 - 99 > 99 Total SM Feira 80 621 1177 987 1391 4256 Oliv. Azem. 152 1658 1996 883 448 5137 SJMadeira 60 466 1462 1616 1098 4702
Total 292 2745 4635 3486 2937 14095 (2,1) (19,5) (32,9) (24,7) (20,8) (100,0)
Ano de 1991 SM Feira 85 801 1648 1938 4006 8478 Oliv. Azem. 267 2301 2970 1452 1300 8290 SJMadeira 68 539 1695 2209 1894 6405
Total 420 3641 6313 5599 7200 23173 (1,8) (15,7) (27,2) (24,2) (31,1) (100,0)
Fonte: MESS, Quadros de Pessoal, 1982 e 1991.
Ao invés, os 7200 empregados das 34 maiores unidades traduz-se num valor médio
de 212 trabalhadores por empresa. No global, a força de trabalho distribui-se por unidades
de diferentes dimensões, mas, como se pode observar, a grande maioria trabalha em
empresas de pequena dimensão: 31% em empresas com mais de cem empregados e cerca
de 45% em empresas com menos de cinquenta empregados. Estas simples indicações
reflectem a enorme heterogeneidade que caracteriza a indústria do calçado. O importante
não é simplesmente ver a variedade em termos do “tamanho” das empresas, mas sim ter
presente a diversidade das estruturas produtivas e dos ambientes laborais que se vivem no
sector.
3.3.2 - Níveis de instrução e de qualificação profissional
A situação dos trabalhadores do calçado segundo os níveis de escolaridade e as
categorias socioprofissionais são aspectos igualmente importantes para a sua
caracterização. Pelo que atrás ficou dito acerca da estrutura industrial do sector, já se
adivinhava que nela predominam os trabalhadores de menores recursos escolares. Os
dados referentes a estes três concelhos confirmam plenamente essa ideia. Basta verificar
que perto de 60% dos empregados do sector não têm mais do que a quarta classe e apenas
cerca de 2,5% possuem habilitações superiores ao ensino secundário, para concluirmos
que a dita modernização do sector tem, por enquanto, um significado muito reduzido no
que diz respeito às qualificações escolares dos trabalhadores. Na verdade, o que fica claro
é que se trata de uma indústria cujas potencialidades e vigor competitivo se deve antes do
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
239
mais ao trabalho intensivo e aos baixos níveis salariais da massa de trabalhadores que nele
se empregam.
QUADRO 3.4 - Distribuição dos trabalhadores do calçado, segundo os níveis de instrução (para o ano de 1991)
NÍVEIS DE INSTRUÇÃO *
Concelhos < Ens. Primário
Primário Prepar. Secund. Compl. E.Técnico Médio/ Superior
N/S TOTAL
SM Feira 329 (3,9)
4094 (48,6)
3175 (37,8)
268 (3,2)
128 (1,5)
31 (0,4)
6 (0,1)
377 (4,5)
8408 (100,0)
Ol. Azem. 231 (3,0)
4518 (57,9)
2258 (29,0)
194 (2,5)
90 (1,2)
35 (0,4)
14 (0,2)
452 (5,8)
7792 (100,0)
SJ Madeira 362 (5,9)
3352 (54,7)
1926 (31,4)
213 (3,5)
123 (2,0)
70 (1,1)
38 (0,6)
52 (0,8)
6136 (100,0)
TOTAL 922 (4,1)
11964 (53,6)
7359 (33,0)
675 (3,0)
341 (1,5)
136 (0,6)
58 (0,3)
881 (3,9)
22336 (100,0)
Fonte: MESS, Quadros de Pessoal, 1991. * Os números entre parêntesis são os valores percentuais para cada concelho, dos diferentes níveis de instrução.
Também no que toca à estrutura das qualificações por categoria socioprofissional, os
dados reflectem essa mesma situação. De um modo geral verifica-se que o grosso dos
empregados se situa nas categorias mais baixas, mas esta constitui à partida uma indicação
que é comum à generalidade da indústria. O que, todavia, é mais revelador dos traços de
taylorismo dos sistemas produtivos vigentes neste sector é a sua escassez de quadros e de
chefias intermédias. Se atendermos a que a quase totalidade dos dirigentes coincide com
os próprios proprietários das empresas (que, como se sabe, também possuem níveis de
instrução bastante baixos) e ainda a que o pessoal “qualificado” (segundo os critérios do
Ministério do Emprego que aqui se utilizam) se insere, na sua maioria, nas tarefas
produtivas da linha de montagem torna-se, uma vez mais, evidente o que acima já se
disse, ou seja, o peso esmagador do pessoal que integra funções produtivas com
baixíssimas exigências em termos de qualificações técnicas.
QUADRO 3.5 - Distribuição dos trabalhadores do calçado, segundo os níveis de qualificação e o sexo (1991)
NÍVEIS DE QUALIFICAÇÃO
Qs méd/ dirig* Chef interm Pess Qual SemQ/Nqual* TOTAL
Concelhos H (%)
M (%)
H (%)
M (%)
H (%)
M (%)
H (%)
M (%)
H (%)**
M (%)**
SM Feira 44 (1,5)
17 (0,3)
117 (4,0)
28 (0,5)
1731 (58,8)
598 (10,9)
927 (31,5)
4785 (87,5)
2943 (100,0)
5465 (100,0)
Ol. Azem. 46 (1,3)
3 (0,07)
77 (2,1)
25 (0,6)
2354 (65,5)
566 (13,5)
993 (27,6)
3559 (87,7)
3592 (100,0)
4200 (100,0)
SJMadeira 45 (1,6)
3 (0,09)
133 (4,7)
40 (1,2)
1752 (62,1)
291 (8,8)
802 (28,4)
2932 (88,5)
2822 (100,0)
3314 (100,0)
TOTAL 135 (1,4)
23 (0,2)
327 (3,5)
93 (0,7)
5837 (62,4)
1455 (11,2)
2722 (29,1)
11276 (86,9)
9357 (100,0)
12979 (100,0)
Fonte: MESS, Quadros de Pessoal, 1991. * Nestes casos procedeu-se à agregação de duas categorias a partir da referida fonte.
** Excluiu-se a situação “ignorado”, que corresponde a 481 (HM). Por esse motivo, os valores percentuais somados não atingem de facto os 100,0%. Manteve-se no entanto essa indicação apenas para facilitar a leitura.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
240
Um outro aspecto que merece atenção, a partir dos dados do Quadro 3.5, refere-se à
distribuição sexual pelas diferentes categorias socioprofissionais. Se de um modo geral as
qualificações dos trabalhadores são baixas, no caso das mulheres fica claro que nesta
actividade industrial elas são, efectivamente, vítimas de discriminação no acesso aos
postos de trabalho mais qualificados (ou melhor, menos desqualificados), como indicam
os dados acima. Tal situação é ainda mais notória se atendermos à elevada presença de
mão-de-obra feminina neste sector, o que, no caso da região em estudo, corresponde a
cerca de 58% de mulheres contra 42% de homens. Para os três concelhos, 87% das
trabalhadoras integra a categoria mais baixa da tipologia, enquanto os trabalhadores detêm
aí um peso de apenas 29%. No nível de pessoal qualificado, pelo contrário, o peso das
mulheres é na ordem dos 11%, contra 62,4% dos homens. A situação é idêntica para os
três concelhos, onde as mulheres trabalhadoras estão praticamente afastadas de todos os
cargos de chefia. Além disso a mão-de-obra feminina, efectuando em muitos casos tarefas
iguais às do sector masculino, aufere vencimentos claramente mais baixos, ao abrigo de
um sistema que o sindicato vem denunciando mas que continua em vigor104.
Refira-se finalmente que a população trabalhadora é relativamente jovem,
especialmente no caso das mulheres. A partir de uma recolha de dados das quinze maiores
empresas do sector (efectuada em 1991), observou-se que as operárias com menos de 26
anos de idade detinham mais de 65% dos postos de trabalho e os homens na mesma
camada etária, cerca de 47%. Quanto à taxa de sindicalização, era nessa altura bastante
elevada (cerca de 60%105 dos trabalhadores, segundo fonte sindical), mas como veremos
104 Esta tabela, negociada entre o sindicato e a associação patronal, apresenta dois conjuntos de categorias profissionais com designações distintas (A – aplicada aos homens; B – aplicada às mulheres), mas que, à excepção das costureiras, que praticamente são só mulheres, correspondem a tarefas idênticas. A nomenclatura das categorias aparece sempre no masculino (Costureiro, Gaspeador, etc.), procurando, desse modo, iludir a efectiva discriminação. Apenas a título de exemplo, vejam-se as diferenças salariais respeitantes ao ano de 1990 (só para os trabalhadores de 1ª destas categorias):
Homens – tabela A – Salário/base desta categoria em 30/6/90: 46.300$00/mês. Cortador; Acab/Verific.; Montador; Operador Máquinas; Maleiro. Mulheres – tabela B – salário/base na mesma data: 41.200$00/mês. Gaspeador; Acabador; Prep/Montagem; Preparador; Costureiro.
(Fonte: Sindicato dos Operários do Calçado, Malas e Afins dos Distritos de Aveiro e Coimbra) 105 Este valor terá entretanto baixado substancialmente. Segundo informação da direcção sindical, em 1998 a taxa de filiação situava-se entre os 35 a 40%. É de sublinhar, contudo, a natureza flutuante do volume de inscrições, pelas razões a seguir apontadas. Mas, em todo o caso parece evidente a quebra de filiação geral, tal como tem acontecido em quase todos os sectores laborais, em especial naqueles em que se tem assistido a um maior acréscimo do volume de emprego, como é o caso do têxtil, vestuário e calçado. Neste último (tomado globalmente) a filiação situava-se, no período de 1991-1995, nos 31%,
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
241
(Capítulo 7), isso não se traduz em níveis de mobilização ou de militância significativos.
A filiação acontece muitas vezes em alturas em que o trabalhador é vítima de processos
disciplinares ou de atitudes discricionárias do patrão e precisa de ajuda sindical,
nomeadamente apoio jurídico, mas pouco tempo depois deixa de pagar as quotas. Os
sindicalizados com as quotas em dia correspondem a cerca de 35% dos filiados. É do
domínio público que as situações de incumprimento das leis laborais abundam no sector e,
nomeadamente, o recurso ao trabalho infantil. Num inquérito aplicado em escolas do
ensino preparatório (crianças com 11 e 12 anos) no concelho de Oliveira de Azeméis,
registou-se que cerca de 20% das crianças inquiridas “preferem ir trabalhar”, em vez de
continuarem os estudos. Além disso, o índice de respostas das que referiram ser o trabalho
a principal ocupação dos tempos livres foi, em alguns casos, “assustadoramente elevado”,
segundo as responsáveis deste levantamento (Baltazar, 1990: 95). Também o sindicato do
calçado identificou no ano de 1990 mais de 800 casos de trabalho infantil na zona, muitas
vezes tendo lugar em caves cujo acesso é feito através de um alçapão devidamente
disfarçado a fim de iludir a fiscalização. O crescente combate que tem sido dado nos
últimos anos a algumas destas situações, desde os efeitos da expansão da escolaridade
obrigatória ao alargamento das políticas sociais em diferentes domínios, pode estar
actualmente a esbater alguns dos problemas laborais e sociais que se escondem por detrás
dos animadores resultados económicos do sector do calçado.
enquanto a filiação geral nacional era no mesmo período de 36%, segundo o estudo de Conceição Cerdeira (1997: Quadro 2, p. 51).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
242
Capítulo 4
INDUSTRIALIZAÇÃO, MOVIMENTO OPERÁRIO E TRADIÇÃO FESTIVA
NA VIRAGEM DO SÉCULO
A referência à história local é fundamental por dois motivos: em primeiro lugar,
porque permite sistematizar as principais etapas de evolução do processo de
implantação industrial na região e a sua incidência sobre os modos de vida das
populações; e, em segundo lugar, porque o passado histórico ocupa um papel fulcral na
construção das subjectividades, ou seja, não é apenas a história, mas também a narrativa
subjectiva dessa história que reestruturam as comunidades locais. Falar da emergência
da classe operária no contexto local é admitir que os operários não só estão sujeitos aos
mesmos constrangimentos estruturais como, no plano subjectivo, são levados a adoptar
práticas e representações semelhantes. Como já foi referido, pressupõe-se que essa
dupla vertente (estrutural e subjectiva) se repercute no campo da produção e no campo
do consumo, na economia e na cultura, no trabalho e nos tempos-livres.
O presente capítulo centra-se no período que vai do último quartel do século
passado quando surgiram em SJM as primeiras indústrias modernas até finais dos anos
vinte com a derrota da 1ª República e o consequente destroçar do movimento operário.
Na primeira parte refiro-me à dimensão industrial e ao movimento associativo (em
particular à forma como ele se manifestou a nível local) e na segunda parte centro-me
nas práticas culturais e na tradição festiva das comunidades da região, terminando com
uma referência à questão do bairrismo.
4.1 - A chapelaria, o calçado e o movimento operário local
Ao longo da Idade Média, SJM foi um pequeno aglomerado rural como tantos
outros, inserido durante séculos no vasto condado senhorial das Terras de Sta. Maria da
Feira106, no qual permaneceu enquadrado até ao ano de 1801. Só nesse ano, e na
sequência da nova divisão administrativa, a então aldeia foi integrada como freguesia do
concelho de Oliveira de Azeméis, onde se manteve até à obtenção da autonomia
concelhia (em 1926). Dois anos antes tinha conquistado o estatuto de vila.
106 O outrora designado “território santamariano” compreendia as terras situadas entre a margem sul do rio Douro e o norte da bacia do Vouga, fazendo fronteira a sul com o Caima e nele se inseriam os actuais
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
243
À entrada do último quartel do século passado Pinho Leal referia-se, no seu
Portugal Antigo e Moderno (1875) às actividades comerciais e industriais da freguesia
de SJM, indicando que “nela residem os maiores negociantes de manteiga nacional” e
que “o primeiro negociante de cavalos de Portugal é desta freguesia” e ainda que
“exporta em grande escala, para o Porto, Estremadura, Alentejo e Espanha, os seus
chapéus de lã de óptima qualidade, e também exporta constantemente para o Porto, gado
bovino para embarque, géneros agrícolas, madeiras, lenhas, etc.”. O mesmo autor
salientava ainda que à excepção da própria cidade de Aveiro SJM era então a localidade
mais comercial do distrito, devendo-se todo esse progresso ao “génio empreendedor, ao
amor ao trabalho, à energia e coragem de seus habitantes”, prevendo ainda o seu
desenvolvimento: “tudo leva a acreditar que a povoação de S. João da Madeira (que
nem ainda tem foro de vila!) será, ainda nos nossos dias, uma das primeiras do distrito
(…) sobretudo se o governo, atendendo ao grande desenvolvimento (…) mandar abrir as
estradas de que precisa, para chegar ao apogeu da sua prosperidade” (Leal, 1875: 20-
22). Esta exaltação do espírito empreendedor das populações da região começava então
a dar substância ao discurso paternalista das novas elites industriais e constituiu um
importante factor de promoção do espírito bairrista em SJM, tema a que voltarei na
parte final deste capítulo. Importa para já situar a análise no arranque da industrialização
e no movimento operário deste período.
Tratando-se de um fenómeno de natureza societal e global, a estruturação do
tecido industrial e das classes sociais encontra, sem dúvida, nas instâncias regionais e
locais mediações fundamentais – de natureza cultural, económica e social – que lhe
conferem uma complexidade e configuração específicas. O estudo desse fenómeno pode
permitir-nos pôr em relevo novas vertentes da nossa história social recente, uma vez que
a dimensão local permanece estreitamente vinculada às tendências mais gerais do
processo de industrialização e do movimento operário emergente em Portugal. Apesar
das suas características dispersas e da sua fragilidade (Mónica, 1986), as experiências
sindicais e organizativas desta fase constituíram uma etapa fundamental na formação da
classe operária portuguesa. Para além do incontornável impacto disruptivo desse
processo sobre as culturas tradicionais, em regiões como esta, a implantação da
racionalidade capitalista não deixou de se apoiar em inúmeras contradições,
nomeadamente as que derivam do necessário esforço de adaptação às comunidades
concelhos de Gaia, Gondomar, Castelo de Paiva, Arouca, Oliveira de Azeméis, Vale de Cambra,
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
244
socioculturais pré-existentes. Sem esse esforço, os resultados económicos teriam sido
certamente muito diferentes.
O âmbito regional deste estudo justifica que a análise seja situada, num primeiro
momento, no âmbito mais genérico da indústria local. Mas, são sobretudo as indústrias
da chapelaria e do calçado que merecem maior atenção. A primeira, porque foi o
primeiro sector responsável pela industrialização da localidade e pelas primeiras
movimentações operárias que aí tiveram lugar. Os operários da chapelaria foram, por
assim dizer, os primeiros porta vozes dos trabalhadores industriais da região e, portanto,
o primeiro factor da sua estruturação enquanto classe social. Ao longo do século XIX, a
chapelaria foi-se deslocando progressivamente para o norte do país, ao mesmo tempo
que decaíam as fábricas sediadas em Lisboa e, nas primeiras duas décadas do século
XX, a vila de SJM acabou por se impor como o principal núcleo industrial deste sector.
Quanto à segunda, o sector do calçado, encontrava-se igualmente em franca
expansão desde finais do século. Esta, foi efectivamente a indústria que – dadas as
próprias características do processo produtivo e a sua tradição artesanal e familiar – teve
maior impacto na dispersão da mão-de-obra pelas comunidades rurais da zona, tendo
esta ligação permanecido até à actualidade. Em todo o caso, as primeiras estruturas
associativas da sapataria (refiro-me ao associativismo de ofício que ao longo da Idade
Média foi enquadrado pelas irmandades religiosas), são contemporâneas ou antecedem
mesmo as da chapelaria107. Muito embora seja meu objectivo focalizar a análise em SJM,
não pode esquecer-se que a estruturação do seu tecido industrial sofreu uma notável
Estarreja, Ovar e Espinho (cf. Leal, 1875: 267 e Vários, Monografia do Vale do Vouga, 1983). 107 Nos primórdios da organização profissional do ‘Officio de Çapateyro’ da região Norte está a Irmandade Religiosa de S. Crispim e S. Crispiniano, sediada no Porto. Sob a designação de Palmeiros, nome atribuído na Idade Média aos romeiros e peregrinos regressados da Palestina ou de passagem para o lugar santo de Santiago de Compostela, ficou conhecida a confraria dos sapateiros cuja sede se instalou em 1592 (sob Compromisso assinado por Filipe II de Espanha) no também chamado Hospital dos Palmeiros. Os santos Crispim e Crispiniano, então reconhecidos na Europa como os protectores do Ofício de Sapateiro, deram o nome a esta Confraria que albergou e protegeu os confrades Sapateiros e Surradores/Curtidores do Porto, angariando grande prestígio na vasta Comarca de Entre Douro e Minho, influenciando toda a actividade económica do Norte e Centro e assumindo-se como uma das mais representativas forças corporativas do Reino (Mesquita, 1988: 10). No caso dos Chapeleiros há que notar que “até à extinção da organização corporativa dos mesteres (em 1834), é possível que o termo não tivesse sequer chegado a entrar na terminologia regimental, aparecendo o ofício de chapeleiro sob a designação de ‘sirgueiro’ [= o que, em Lisboa, vendia chapéus, segundo o Dicionário de Morais]” (Mónica, 1979: 885). Anteriormente, os ‘sirgueiros’ surgem organizados no ofício de São Miguel-o-Anjo, enquanto os ‘sombreireiros’ [= fabricante ou vendedor de sombreiros, ou chapeleiro, segundo o Dicionário de Morais] pertenciam à bandeira de Santa Rufina e Santa Justa, isto segundo a regulação da Casa dos Vinte e Quatro por D. João III, em 1539. Mais tarde, no alvará de 1771 que reorganizou a representação dos ofícios, os sirgueiros continuaram sob a bandeira de São Miguel, mas foram subdivididos em dois ofícios, os ‘sirgueiros de chapéus’ e os ‘sirgueiros de agulha’. Por outro lado, os ‘carapuceiros’, não estavam junto dos sombreireiros mas com os alfaiates (Mónica, 1979, nota 94: 884).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
245
influência das cidades do Porto e de Aveiro e, por isso mesmo, faz todo o sentido situar
a abordagem do movimento operário e do processo de industrialização no âmbito mais
vasto da zona inserida no triângulo Aveiro - Porto - Braga.
4.1.1 - A primeira fase de industrialização: a chapelaria e o calçado
A indústria chapeleira
A produção chapeleira tem em Portugal uma longínqua tradição, embora até ao
século XVIII predomine a produção artesanal, caracterizada pela enorme dispersão de
pequenas oficinas dedicadas fundamentalmente à fabricação de chapéus rústicos de lã
grossa ou de pano, utilizadas nas lides da vida rural. Como refere Filomena Mónica, só
com a política pombalina, a partir de meados do século XVIII, se tenta modernizar esta
actividade em termos industriais, com a criação de unidades dedicadas à produção de
chapéus de luxo que até aí eram importados, principalmente de França (Mónica, 1986:
24). No âmbito do incremento industrial desencadeado pelo Conde da Ericeira e pelo
Marquês de Pombal, surge em 1759 a primeira indústria a introduzir como matéria-
prima o pêlo de coelho e de lebre, a “Real Fábrica dos Chapéus” situada na Quinta da
Garamela, perto da vila de Pombal (Amaral, 1967: 93). Este produto, cuja importação
havia sido proibida a fim de estimular a produção nacional, viria mais tarde a constituir
a base principal de fabrico de chapéus ‘finos’, pautando-se pelas exigências da moda
procurada pelas classes privilegiadas e pelo gosto citadino. Entretanto, o sector da
chapelaria foi-se concentrando no Norte do país ao longo do século XIX, ao mesmo
tempo que as pequenas “fábricas” e oficinas da capital iam desaparecendo ou perdendo
importância108.
108 Devido às exigências técnicas no tratamento químico das peles, daqui resultaria mais tarde o aparecimento da “indústria do pêlo”, em estreita dependência do sector da chapelaria, a cujas vicissitudes derivadas da dispersão e descoordenação viriam a culminar, já nos anos 40 do século XX, com a fundação da Cortadoria Nacional do Pêlo, Lda., com sede em S. João da Madeira. Até meados do século XIX, os dados mais remotos referentes à chapelaria reportam-se ao Inquérito às Fábricas do Reino, elaborado em 1814 que regista a existência de 35 fábricas de chapéus distribuídas por Elvas, Évora, Guarda, Lisboa, Moncorvo, Porto, Setúbal, Torres Vedras e Viseu, figurando à cabeça da lista Lisboa, com 21 unidades, seguida de Torres Vedras com cinco e o Porto com três (in Mónica, 1986: 24). Note-se, porém, que o termo ‘fábrica’ tinha então um sentido diferente da conotação actual, pois indicava mais o processo de fabricação do que o tipo de unidade produtiva, que hoje possui. Nesse período, as oficinas artesanais concentravam-se na zona de Alfama em Lisboa (Macedo, 1982: 94). Produziam manualmente chapéus de palha, de pano e de lã grossa, dando resposta ao mercado nacional, excepto no que se referia à parcela de modelos mais sofisticados, como os de plumagem e de castor, que eram importados pelas classes aristocráticas. Essa importação chegou a ser proibida pela Lei Pragmática de 1677 e mais tarde reautorizada, em 1692 (Macedo, 1982). Veja-se também, sobre a indústria de chapelaria, Bonifácio, 1980.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
246
A primeira indústria de chapéus que se conhece em SJM, surgiu em 1802 e era
propriedade de J. Gomes de Pinho. Além desta, nasceram, ao longo do século passado,
diversas fábricas, atingindo em 1862 um total de quinze unidades, distribuídas pelos
seguintes locais: lugar das Vendas, com 5 fábricas fundadas nos anos de 1820, 1848 e
1858; lugar de Casaldelo, com 5 fábricas fundadas em 1802, 1822, 1833 e 1853; lugar
de Pedaço, com duas fábricas fundadas em 1852; lugar de Quintã com uma fábrica
nascida em 1859; lugar de Corgas, com uma fábrica criada em 1842; e, lugar das
Fontainhas, com uma fábrica fundada em 1848 (Amaral, 1967: 127). Os dados referidos
por Filomena Mónica indicam que na década de 1860 existiam no distrito de Aveiro
“600 pessoas ligadas à chapelaria de lã. Nas oficinas trabalhavam cerca de 500 pessoas
de ambos os sexos, das quais 230 eram menores, auferindo apenas uma gratificação
proporcional ao tempo que tinham de ofício” (Mónica, 1986: 27).
Quer na chapelaria, quer no calçado o trabalho domiciliário e a pequena
agricultura familiar sempre funcionaram como importantes complementos na
viabilização destas indústrias na região. Devemos portanto interrogar-nos não quanto à
existência destas práticas em finais do século passado, tanto mais que se trata de um
contexto de pequeno campesinato, mas sim quanto à força persistente da lógica rural
que tem conseguido manter até aos dias de hoje uma estreita conexão com a
implantação industrial. Reportando-se a finais do século passado, Fátima Bonifácio
assinala a importância deste fenómeno em contraponto com o crescimento da
chapelaria. O Inquérito Industrial de 1881, embora destacando as três maiores unidades
industriais que no distrito de Aveiro empregavam 28, 26 e 8 pessoas (produzindo a
primeira 48 mil chapéus por ano e as duas últimas, 12 mil e 3 mil, respectivamente),
indica que, ao lado destas três fábricas, existiam mais 800 pessoas ocupadas no fabrico
de chapéus de lã, que “trabalhavam anualmente, com mais ou menos continuidade, ou
em casa, ou em pequenas fábricas “ (Bonifácio, 1980). Ainda de acordo com este último
estudo, referem-se como principais locais de concentração da chapelaria no distrito,
nesse mesmo período, Oliveira de Azeméis, Vila da Feira e SJM. A tendência do sector
apontava então para uma ampliação da dimensão das indústrias e consequente
diminuição relativa do trabalho ao domicílio, mas a matéria-prima continuava a ser a lã.
É só nos finais do século, em 1891, que aparece em SJM a primeira fábrica de
chapéus de pêlo. Tal como a fábrica de Pombal significou o início de uma viragem nesta
indústria ao nível nacional, também esta nova empresa sanjoanense – Oliveira, Palmares
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
247
e Cª. – constituiu o arranque da “moderna” indústria chapeleira na vila de SJM, a qual
chegou a atingir no ano de 1909 uma produção de cerca de 150.000 chapéus109. O
crescimento e a importância local desta fábrica foram enormes nesta altura e em 1914,
fruto da iniciativa do seu fundador, teve lugar uma remodelação e ampliação das suas
instalações com a construção de um novo edifício de grandes dimensões equipado com
as mais modernas máquinas existentes na época. Nascia então, sob nova designação,
aquela que constitui ainda hoje a maior unidade do país: a “Empresa Industrial de
Chapelaria”.
Muito embora o seu arranque tenha desencadeado um dos mais significativos
movimentos de contestação a nível local, o seu proprietário tornou-se uma figura grada
da vila. Foi condecorado pelo governo de Salazar com a medalha de ‘Mérito Industrial e
Agrícola’ e recebeu o título de ‘Comendador’; desempenhou o cargo de provedor da
Santa Casa da Misericórdia; instituiu um fundo para assistência aos pobres; e fundou
também um asilo para crianças órfãs. Alvo de homenagens da população (que lhe
mandou erigir um busto) e do município (que atribuiu o seu nome a uma das principais
ruas) como actos de “reconhecimento e gratidão” pela sua acção pioneira de
impulsionador da indústria local e também pelos seus actos de “benemérito e de
altruísta” (Revista Terras da Nossa Terra, ano 21, 1984; e Amaral, 1967: 128).
O exemplo deste industrial favoreceu o processo de ampliação e mecanização de
outras unidades industriais – levando alguns analistas a sublinhar a importância decisiva
desta vila em matéria de chapelaria, cuja evolução foi “rápida e sempre crescente” – e
fez com que, principalmente desde princípios deste século “todos os problemas ligados
à indústria e comércio da chapelaria, se fizessem sentir em especial nesta terra, na
medida em que, entre todas as outras que se dedicavam ao fabrico de chapéus, foi ela a
que mais evoluiu (…) mercê das suas características próprias, com o seu espírito de luta
e amor ao trabalho (…)” (Amaral, 1967: 134). A natureza “laboriosa” da população
local era, como atrás referi, um aspecto já nesta época bastante enfatizado em diversos
documentos como, por exemplo, numa publicação datada de 1919: “a indústria da
chapelaria, que vem exercendo há mais de um século e que há dez anos tomou um tão
grande incremento, que tornou esta freguesia a primeira do concelho e uma das
principais do distrito. O seu povo, que também se dedica ao comércio, é activo e de tão
entranhado bairrismo, que não conhecemos outro que se lhe compare, não se poupando
109 Segundo informação do proprietário, José António de Oliveira Júnior (in Anais do Município de
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
248
a sacrifícios quando se trata do progresso da sua terra” (Arede, 1919: 122). Outras
fontes confirmam que este período foi de grande impulso do sector chapeleiro a nível
local: em 1909 a Associação de Classe de SJM queixava-se que a situação global da
indústria era péssima e “a chapelaria de lã vai definhando anualmente” – talvez fruto da
concorrência das fábricas mais modernizadas do Porto – e em 1910 não existia ainda
qualquer mecanização nesta localidade; passados apenas sete anos, segundo os dados
referentes a 1917, SJM surge já na frente do sector, com 18 fábricas e 712 operários (L.
Costa, 1987: 36).
As várias vicissitudes que o sector atravessou, nomeadamente os problemas
ligados à imposição de pautas aduaneiras (em 1892)110, estiveram na base das principais
movimentações associativas dos chapeleiros na viragem do século. Mas, apesar da
resistência contra a mecanização da indústria ter tomado, em alguns casos,
características inspiradas no “ludismo”111, o processo de modernização era irreversível e
foi este sector produtivo de chapéus de pêlo e de feltro (os chamados artigos “finos”)
que progressivamente se impôs aos tradicionais métodos de fabrico artesanais. Outras
crises viriam a surgir mais tarde, já no período salazarista, originando novas tentativas
de reorganização, então sob a tutela do Estado Novo, às quais adiante farei referência.
A indústria do calçado
A situação do ramo do calçado em finais do século passado não diferia muito da
chapelaria. Os relatórios oficiais da época referem-se ao estado frágil e insipiente da
produção de calçado em moldes “industriais”, mas sublinham a sua importância
socioeconómica (Recenseamento Industrial, 1890). O regime de trabalho era
predominantemente artesanal e domiciliário, apenas permanecendo nos estabele-
cimentos os oficiais cortadores, as mulheres e os menores. Ao fabricante domiciliário,
um par de calçado acabado demorava cerca de 14 horas a ser executado e no final
recebiam aproximadamente 600 réis por cada um, pago pelos industriais (apenas
referente ao preço da mão-de-obra, já que as peles eram levantadas na fábrica já
cortadas). A indústria estava “tão dividida, tão deslocada, extremamente mesquinha e
Oliveira de Azeméis, 1909, p. 148). 110 Primeiro reivindicadas pelas associações operárias e mais tarde contestadas, segundo Filomena Mónica (1986). 111 Este conhecido movimento foi desencadeado em Inglaterra nos princípios do século XIX pelos artesãos (principalmente os do sector têxtil) contra a introdução de máquinas na indústria. Recorreram muitas vezes a métodos violentos, destruindo as máquinas durante a noite e desaparecendo sem deixar rasto. A sua acção de luta contra o maquinismo que estava a acabar com a arte e os ofícios, lançando no desemprego milhares de operários, era efectuada em nome de um mítico General Ludd.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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enfezada, num tal grau de atraso nos processos de fabrico, disseminada por milhares de
miseráveis oficinas, à beira duma maior invasão dos calçados mecânicos provenientes
das grandes fábricas estrangeiras, para cuja defesa era importante, com toda a urgência,
que se procedesse à aplicação no calçado importado, duma elevada taxa aduaneira”
(Inquérito Industrial de 1881 in Mesquita, 1988: 84). Em finais do século XIX as
“fábricas” de calçado existentes eram pouco mais do que estruturas embrionárias de
organização e coordenação de uma produção dispersa, domiciliária e totalmente
elaborada segundo a tradição artesanal dos ancestrais sapateiros. A produção de calçado
em moldes industriais começou a concorrer com a chapelaria, não tanto pela quantidade
de mão-de-obra que directamente absorvia mas justamente porque arrastava atrás de si
um leque variado de situações de emprego precário e de trabalho ao domicílio,
funcionando em geral sob condições humanas de extrema dureza. Uma situação que,
como se sabe, se manteve em larga medida até aos dias de hoje.
Em SJM a primeira unidade industrial de calçado nasceu por volta de 1880112,
inicialmente dedicada “ao fabrico de botas por encomenda, (...) empregando 5
operários” (O Regional, 31/7/85). Foi, contudo a fábrica de Manuel Gomes da Silva (a
“Gomes e Filhos”, sediada em Lisboa) que nessa mesma década introduziu os primeiros
equipamentos mecânicos no fabrico de calçado. Em 1887 esta empresa possuía nove
máquinas de costura e uma variedade de outras, chegando a fabricar cerca de 100 pares
por dia113. Mas a produção “em série” que este pioneiro de Lisboa tentou desenvolver
não conseguiu obter êxito em SJM devido à falta de escoamento e às elevadas despesas
de importação de boa parte das matérias-primas114. Nessa época, Portugal era,
literalmente, um país de “pé descalço” e o mercado brasileiro vinha sofrendo a forte
concorrência de outros centros produtores, como a Inglaterra, a Alemanha e a França.
Em 1897 surgiria na vila uma outra empresa que marcou a expansão posterior da
indústria de calçado em SJM. Fundada por Vitorino Tavares Lisboa, a sua produção foi,
numa primeira fase, destinada a feiras e mercados da região, sobretudo em Espinho e
112 Trata-se da “Sapataria da Moda”, que foi criada por um antigo sapateiro, Gaspar de Almeida Pinho e segundo a fonte consultada, foi fundada entre 1880 e 1883. 113 A firma “Gomes e Filhos”, situada na Rua dos Fanqueiros em Lisboa era propriedade de Manuel Gomes da Silva. Além das máquinas de costura tinha introduzido outras para as seguintes funções: cortar sola; coser sola; palmilhar; cortar tacões; apertar saltos; tornear saltos; máquina de contrafortes. Este industrial possuía ainda uma segunda unidade no Porto, com 25 operários e um depósito em Espinho. 114 Importavam-se na última década do século passado materiais como: couros envernizados; pelicas pretas; peles de cabrito pretas; saltos; formas; fios de coser; ilhoses; colchetes; botões; e fivelas. No
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Ovar, para onde, inicialmente, era levada a pé pelas recoveiras (O Regional, 31/7/85).
Mas é sobretudo com o eclodir da I Guerra Mundial que a indústria começa de facto a
expandir-se sob o impulso deste último industrial, abastecendo as tropas do exército
português estacionadas na Flandres. O grande aumento das encomendas levou outros
sapateiros a criar as suas pequenas indústrias, alguns deles, de início, produzindo para o
próprio Tavares Lisboa, num surto de crescimento que arrastou uma vasta rede de
fabricantes que iam de Braga a Oliveira de Azeméis (O Regional, 31/7/85). Apesar
disso, em 1920 apenas existiam em SJM quatro unidades industriais de calçado, número
este que foi aumentando ao longo dos anos 20 e atingiu um total de 16 fábricas em 1930
(Martins e Sousa, 1944). A progressiva implantação do sector do calçado em SJM viria
a introduzir novos elementos em termos do significado e das consequências do processo
de industrialização a nível local. Um dos aspectos a que me refiro prende-se, não com as
relações contratuais domiciliárias de tipo informal, mas com o facto de às características
artesanais deste tipo de indústria se somar a grande facilidade do seu desmembramento,
permitindo a instalação de pequenas unidades com custos relativamente baixos e sem
necessidade de ocupação de grandes superfícies, o que não era o caso, por exemplo, da
chapelaria. Foi assim que, a partir desta altura as pequenas unidades do sector (fábricas
de pequena e média dimensão nuns casos, ou oficinas de carácter familiar – as
chamadas “sapatarias” – que são criadas para alimentar as maiores empresas, noutros
casos) começaram a nascer, não só na própria vila como em muitas aldeias vizinhas que
continuavam a viver predominantemente da pequena agricultura familiar. Arrifana,
Santiago de Riba-Ul, Vila Chã de S. Roque, Cucujães, Escapães e Nogueira do Cravo,
além da rival e também vizinha vila de Oliveira de Azeméis, contam-se entre as
primeiras povoações que a partir da década de 20 seguiram o núcleo de SJM na difusão
da produção de calçado: “(…) as unidades de fabrico situavam-se em qualquer sítio,
fosse ou não o mais aconselhado, sem grandes preocupações de criar condições de
trabalho para os empregados. Muitos faziam encomendas a tarefeiros que recebiam à
peça (…). Trabalhava-se até 14 horas por dia, a família inteira, para satisfazer os
pedidos dos industriais” (Oliveira, 1989).
4.1.2 - Condições de vida do operariado nos princípios do século
mercado interno eram adquiridos: solas; pelicas brancas; peles de vitela brancas; atanados; e elásticos (Recenseamento Industrial de 1890).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
251
A imagem do operário e o seu modo de vida eram aferidos nesta época pela figura
do operário da chapelaria, cujas dificuldades e condições de vida são bem ilustradas no
romance Unhas Negras, de autoria do sanjoanense João da Silva Correia. Apesar de se
tratar de uma versão ficcionada da realidade social de SJM, esta obra retrata com grande
realismo o dia-a-dia do ambiente operário deste período115, com a indústria da chapelaria
como pano de fundo. Vejamos uma passagem em que um pequeno patrão (Sarmento)
dialoga com um operário (Ferreira), a propósito das consequências da mecanização que
a nova empresa iria introduzir:
“Percebendo a emoção do operário ante a ameaça terrível, senhor Sarmento carregou semblante desolado, emudecendo. Parecia que pouco faltava para chorar. Depois de longa expectativa, sempre continuou: – Olhe que eu, Ferreira, tenho passado noites inteirinhas sem pregar olho, só no receio do dia de amanhã. E não é apenas por mim (deixe-me dizer-lhe...). É por mim e pelos meus operários! Nova pausa, e semblante sempre carregado de amargura. Por fim, de maneira ainda mais tétrica, lá desembuchou: – No dia em que a Fábrica Nova puser a funcionar a tal maquinaria moderníssima vinda lá da Alemanha ou dos infernos, que vomita chapéus impecáveis às dezenas ou até às centenas por fornada, quase que sem encargos de mão-de-obra, nesse dia que já não vem longe, o que nós todos temos a fazer, meu caro Manuel Ferreira, mas todos, já não é tratar de um hipotético horário de oito horas de trabalho. A coisa fica resolvida por natureza! E o que temos a fazer é amarrar as mãos na cabeça e deixarmo-nos ir para o fundo, como macaco em ribeira. Não estou a carregar o quadro de tons sombrios... Ah!... Não vale a pena! As cores são essas mesmo! Que diabo!... (…) – Se eu fosse operário fazia como os tecelões de Lancashire, na Inglaterra, quando lá apareceu o primeiro tear mecânico. Punha em pé de guerra todos os meus companheiros, ia com eles à Fábrica Nova e antes mesmo das maravilhosas máquinas nos reduzirem à miséria, reduzíamos nós as máquinas a sucata. Perante estas palavras, Manuel Ferreira coçou de novo a cabeça numa hesitação cruel, cogitando: ‘como se não bastasse o mar bravo das angústias que tinham a vencer dia por dia, ainda aparecia agora, para cúmulo, o pesadelo da Fábrica Nova. Porque – pensava – o seu patrão não estava a exagerar. Se as tais máquinas eram coisa tão perfeita como se dizia... adeus fulas; adeus apropriagens; adeus toda essa complicada engrenagem de sacrifícios mediante a qual os pobres ainda tinham a sua oportunidade de trocar sangue por pão’” (Correia, 1953: 68-70). Nos diálogos vivos destes personagens ressaltam as clivagens locais entre os
proprietários industriais: de um lado os das fábricas grandes e mecanizadas; de outro os
115 Numa crónica do jornal local em 1954 afirma-se que aquele romance espelhava bem “o sofrimento, digamos socialmente injusto e até cruel dos operários chapeleiros da nossa terra, nos alvores deste século” (O Regional, 2/5/54).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
252
das pequenas e tradicionais oficinas. Esta estratificação entre os empresários favorecia
situações como a anterior que parece corresponder a uma aliança de classes entre
pequenos patrões e operários contra o “inimigo comum” prefigurado pelos pioneiros da
maquinaria moderna na região. Mas o desenvolvimento da produção “moderna” de
chapéus de “luxo” (em pêlo), parece ter também aprofundado as contradições no seio da
classe: os operários da produção moderna, ou seja, “do fino”, de um lado; e os das
oficinas tradicionais, “do grosso”, de outro.
“– Fala-se para aí em oito horas de trabalho, em regalias ao operariado, em coisas e loisas; só não se fala bem a sério é dos desgraçados da lã, tão castigados de fadigas, afinal de contas, que nem direito têm de dormir a noite inteira na cama, como todos os demais filhos de gente arrecebida. Os do fino, perto de vocês são uns lordes! – Todos querem qualquer coisa... – sentenciou Pimpão [operário] sempre lentamente – Eles, os do pêlo, dão saltos de corça pelas oito horas de trabalho; enquanto nós, os do grosso, já éramos felizes se, em vez de cinco, nos deixassem descansar, de fio a pavio, sete noites por semana (…)” (Correia, 1953: 13-14). Para além da ambiguidade das relações entre patrões e operários o que sobressai
destas passagens é a submersão das unidades produtivas na lógica tradicional das
comunidades locais e a força das afinidades pessoais a entrar em choque com os novos
antagonismos classistas em emergência. Note-se que nesta altura as relações sociais
eram ainda muito marcadas por vínculos de tipo senhorial. O capitalismo emergente não
apagara a proximidade dos laços entre trabalhadores pobres e pequenos patrões ou
artesãos remediados. Perante situações de extrema pobreza, o paternalismo dos
pequenos proprietários, partilhando o mesmo espaço comunitário, levava-os muitas
vezes a atitudes protectoras e filantrópicas face aos mais miseráveis.
Também os assalariados do calçado viviam, por altura da queda da monarquia, em
condições extremamente degradantes. De acordo com a Inquirição da Situação do
Operariado (1910), as despesas semanais relacionadas com a alimentação típica de uma
família operária do sector do calçado – efectuada à base de produtos como: pão de trigo;
broa; arroz; feijão; azeite; unto de porco; couves; café – somavam cerca de 3$900 (três
mil e novecentos réis); o rendimento para o mesmo período de uma semana era, em
média, para um sapateiro em regime domiciliário de 3$000 e para uma mulher
gaspeadeira no mesmo regime, entre 1$200 e 2$500; depois de deduzida a renda da
habitação (1$800 réis mensais) e despesas com vestuário, com a saúde, com as crianças,
etc., facilmente se vê que não poderia haver lugar para artigos como a carne, o peixe, o
leite ou a fruta (Mesquita, 1988: 90).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
253
As condições de vida da classe operária – fosse na chapelaria, no calçado ou
noutro sector – eram extremamente duras, os aprendizes começavam a trabalhar com 9
ou 10 anos, sem qualquer “paga” nos primeiros tempos, passando ao fim de vários
meses ou mesmo de um ano, a receber aproximadamente 20 réis por dia. Os horários de
trabalho eram igualmente variados, mas podiam oscilar entre as 11 e as 16 horas diárias.
4.1.3 - Associativismo e clivagens ideológicas na chapelaria e no calçado
No que se refere à vertente associativa, para além das estruturas de tipo mutualista
e corporativo da era pré-industrial, alguns autores assinalam como sendo as primeiras
estruturas autónomas do sector chapeleiro (após a extinção dos mesteres): a Associação
Fraternal de Chapeleiros e Sirgueiros de Lisboa (criada em 1853); e a Associação de
Trabalho dos Chapeleiros Lisbonenses (1865). Contudo, os seus estatutos mantinham
ainda uma base corporativa, incluindo os donos de fábricas e de lojas, oficiais de fula,
sirgueiros de agulha e operários e aprendizes das mesmas artes (Mónica, 1979: 885). No
movimento associativo repercutiam-se, como não podia deixar de ser, todas as
contradições que desde os anos setenta do século XIX até à queda da Monarquia
atravessaram a sociedade portuguesa, nomeadamente as clivagens sociais, políticas e
ideológicas que se digladiavam na base das diferentes correntes de opinião que
fervilhavam em todos os campos da vida social – católicas, socialistas, republicanas,
integralistas e anarquistas (veja-se Mónica, 1979; Cruz, 1980; Cabral, 1979; Freire,
1992).
A fragmentação do associativismo das velhas corporações profissionais, devido à
emergência das novas ideologias “de classe”, não deixava de constituir uma
preocupação dos industriais desta primeira geração. O sector do calçado dá-nos também
exemplos disso. A direcção da Associação Industrial dos Logistas de Calçado de Lisboa
(presidida por Manuel Gomes da Silva) afirmava em 1890 ter como objectivo central
travar a “propaganda socialista [que] tem procurado criar associações de classe, em que
são admitidos exclusivamente operários, estas são principalmente destinadas à
resistência contra os patrões e procuram fundos para alimentar greves”. Talvez que o
maior avanço na mecanização e na concentração das profissões em Arruamentos de
Officios na capital, favorecessem o germinar de ideologias revolucionárias116. O relatório
116 Ao contrário do que acontecia em Lisboa, na estrutura urbana do burgo do Porto não se instituíram os arruamentos de ofícios (Carta Régia de D. João I, no ano de 1395), antes se mantiveram escalonados em Oficiais, Mestres, Obreiros e Aprendizes. Também na cidade de Lisboa, data de 1563 um acordo com o Prior e Cabido da Igreja Paroquial de S. Mamede de criação da Confraria dos Sapateiros de Lisboa,
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
254
anual daquela associação assinalava “o ódio ao capital, alimentado pelos jornais
sindicais que advogam que as fábricas deviam pertencer aos operários”, apesar de
reconhecer, naquele ano de 1890, que “a relação entre operário e patrão não está ainda
muito degradada (...)”. Todavia, a associação já se apercebia dos sinais da insubmissão
operária e alertava para a necessidade de dar atenção “não apenas aos salários, porque os
trabalhadores vivem empilhados em imundas habitações” (Mesquita, 1988: 85).
A imprensa operária de influência socialista – por exemplo, os jornais O Protesto
Operário e O Chapeleiro – advogava, na viragem do século, o combate, não só ao
patronato mas também aos “operários apáticos” e conciliadores, considerados
“amarelos”, a fim de “consolidar uma organização, criar uma força, constituir um poder
que se possa opor às prepotências, à força e ao poder capitalista” (O Chapeleiro,
8/10/1905 citado por Mónica, 1979: 892). A dinâmica do Partido Socialista até à
implantação da República, oscilando embora entre a descrença na ideia republicana e a
sua aceitação como um “mal menor”, chegou a obter um largo controle no seio dos
operários da chapelaria, nomeadamente através da Federação Nacional dos Operários
Chapeleiros Portugueses, com sede no Porto. Embora os socialistas tenham, por vezes,
sido conciliatórios perante a força dos anarquistas e participado em iniciativas
conjuntas, os chapeleiros foram, no dizer de Filomena Mónica, “dos poucos que
resistiram ao fascínio do anarco-sindicalismo” (1986: 57). Estes vinham, entretanto,
ganhando terreno, principalmente após a consolidação do novo regime republicano,
alcançando uma hegemonia crescente no seio do movimento operário português (nas
várias tentativas de unificação associativa) juntamente com os socialistas e outras
correntes na organização dos vários congressos nacionais117, entre 1909 e 1925. Ponto
culminante desta acção foi a fundação da Confederação Geral do Trabalho (CGT),
criada em 1919, em Coimbra (Freire, 1992: 126). Braga da Cruz (1980) assinala ainda a
importância fundamental do associativismo de inspiração cristã que deu origem aos
círculos operários católicos (CCO) situando a sua evolução em três fases: a primeira
enquanto os Curtidores se agrupavam na Confraria das Almas sediada na Igreja Matriz de S. Pedro de Alfama. 117 Segundo os dados de João Freire, ocorreram sete congressos nacionais interprofissionais neste período: Congresso Operário Sindical e Cooperativista (Lisboa e Porto, 1909); 2º Congresso Sindicalista/criação da União Geral dos Trabalhadores (Lisboa, 1911); Congresso de Tomar/criação da União Operária Nacional (1914); conferências da UON (Lisboa e Porto, 1917); Congresso de Coimbra/fundação da CGT (1919); Congresso da Covillhã (1922); e Congresso de Santarém (1925). Ainda de acordo com as estimativas deste autor, o número de efectivos sindicalizados terá atingido o seu ponto alto em 1922, o período mais forte da CGT e talvez do movimento operário no seu conjunto, com cerca de 90 mil filiados, em 162 sindicatos (Freire, 1992: 128 e 212).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
255
fase surge em meados do século passado, e dedicou-se a combater o liberalismo e a
reflectir sobre formas de intervenção na vida política, admitindo então transformar-se
em “partido católico” (é a fase do associativismo católico anti-liberal); a segunda fase
correspondeu ao período de lançamento dos primeiros Círculos Católicos Operários
(CCO) em 1898 até à implantação da República (é a fase do ‘sindicalismo’ católico
anti-socialista); e a terceira fase é uma fase de intervenção política organizada, já em
plena República, que culmina com a criação do Centro Católico Português, em 1917, o
qual viria, já no tempo da ditadura, a transformar-se na Acção Católica118. Dirigidos
pelas elites clerical e aristocrática, os CCO procuraram disputar o controle do
operariado às forças rivais e acabaram por se confundir com o Partido Nacionalista,
embora formalmente se procurassem manter fora da dinâmica política desse partido
conservador e católico, criado em 1903 (Cruz, 1980: 148).
Quanto ao associativismo na indústria do calçado, ele teve um papel de grande
relevo na afirmação da corrente libertária e anarco-sindicalista, principalmente a partir
da acção desenvolvida por algumas associações deste sector sediadas no Porto. Recorde-
se que o nascimento do anarquismo operário tem sido apontado como originário da onda
de greves de 1903 nesta cidade, tendo no início a encabeçá-lo os activistas oriundos do
pequeno artesanato, nomeadamente do sector do calçado. Alguns deles tornam-se
conhecidos activistas (e legaram-nos importantes obras autobiográficas), como foram os
casos de Manuel Joaquim de Sousa, um prestigiado líder operário, e José da Silva, um
activista sindical do sector, que foi um dos primeiros aderentes do Partido Comunista
Português (Cabral, 1979: 215). Por altura do triunfo da República, já era possível
identificar diversas organizações de classe no sector da sapataria: Associação de Classe
dos Operários Fabricantes de Calçado (com 195 sócios em 1909); Associação de Classe
dos Operários Manufactures de Sapatos e Fancaria do Porto (103 sócios); Associação de
Classe dos Operários Tamanqueiros Portuenses (91 sócios); Associação União de
118 A partir do momento em que as estruturas eclesiásticas se aperceberam das ameaças ideológicas a emergir na sociedade – o liberalismo “materialista”; o perigo socialista e revolucionário; e o anti-clericalismo republicano – que viriam a abalar profundamente o poder da Igreja sobre a sociedade, puseram em marcha toda uma campanha de agitação, organização e acção doutrinária, mobilizando recursos e influências em todos os terrenos da vida social. Momento decisivo dessa campanha, que viria a inverter a acção persecutória cada vez mais violenta de que a Igreja vinha sendo alvo ao longo dos vários governos republicanos, foram as aparições de Fátima em 1917. Vasco Pulido Valente comenta a forma como o número de testemunhas das aparições evoluiu de escassas dezenas para largos milhares de pessoas entre a primeira e a terceira aparição, afirmando que “não se conhece o mecanismo pelo qual se passou de 60 para 100 mil pessoas, ainda que nele esteja o verdadeiro segredo de Fátima”. Também Filomena Mónica sustenta que Fátima foi, a partir de então, o pólo da reacção da Igreja (in Oliveira, 1994).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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Classe dos Operários Fabricantes de Calçado de Fancaria do Porto. Assinale-se ainda a
Associação de Classe dos Operários Sapateiros e Defesa das Classes Trabalhadoras, que
publicou em 1910 e 1911 o jornal O Sapateiro, dirigido por Manuel Joaquim de Sousa.
Em artigo de análise à situação na indústria, o autor (Mário Franco) refere-se à crise no
sector e ao problema mais preocupante do operariado de então: a ameaça da máquina.
Considera “o desarmamento alfandegário” como “um verdadeiro descalabro para a
indústria da sapataria”, pois que, segundo a sua leitura, favoreceu o surgimento de
fábricas de calçado mecanizadas em Lisboa e Porto, “introduzindo bruscamente na
indústria da sapataria a mecânica, que, se por nós, operários, não deve ser condenada,
não deixou contudo de fazer a paralização de muitos braços e ao mesmo tempo baratear
os preços da mão-de-obra”119. Eis algumas das principais reivindicações das diferentes
associações: a luta pelas 8 horas de trabalho por dia e por um Diploma Profissional
(Associação de Classe dos Operários Tamanqueiros Portuenses); a criação de uma
Instituição de Previdência centralizada, a redução do horário de trabalho para 8 horas
diárias e um salário mínimo para homens, mulheres e aprendizes, de 800, 500 e 300 reis
diários (Associação União de Classe dos Operários Fabricantes de Calçado de Fancaria
do Porto); e um horário de 9 horas por dia, com uma hora para almoço e que os
trabalhadores do sector fossem todos sindicalizados (Associação de Classe da Indústria
dos Cortumes do Porto) (Mesquita, 1988: 92-94).
4.1.4 - Movimento grevista e acção operária na chapelaria e no calçado
Segundo José Tengarrinha, as estruturas associativas dificilmente conseguiam
enquadrar os protestos operários, sendo estes em geral de carácter espontâneo. O
movimento organizado “só nos últimos cinco anos do século XIX começa a exercer
influência positiva, embora ainda débil, na movimentação grevista e só após 1915 se
pode afirmar com segurança que a influência da organização operária se faz sentir na
movimentação grevista com considerável grau de firmeza e amplitude” (Tengarrinha,
1981: 597). A estrutura sindical era, porém, usada como meio de enquadramento legal
dos processos reivindicativos e, ao mesmo tempo, como elemento de coordenação e
organização da acção colectiva. O despoletar de um conflito de trabalho, mesmo que o
119 Aquele articulista regista, ainda, para o princípio da última década do século passado, as várias associações de defesa da classe dos sapateiros espalhadas pelo país, as quais, além das atrás indicadas no Porto e em Lisboa se distribuíam pelas localidades: Viana do Castelo, Braga, Guimarães, Porto, Coimbra, Setúbal, Beja, Faro; Olhão; Silves, Santarém, Évora e Borba, tendo esta última sido aprovada apenas em 1913 (Mesquita, 1988: 89).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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seu surgimento derivasse de descontentamentos acumulados ou motins fortuitos, era
uma oportunidade para os sindicatos ampliarem a sua base de apoio com a criação de
novos núcleos associativos que nasciam na sequência do conflito (Freire, 1992: 143).
A nível global, o movimento operário foi, no caso do sector chapeleiro, bastante
activo neste período e de grande significado na formação da consciência operária em
Portugal. Mas, como se sabe, a orientação predominante assentava em valores pré-
industriais. Na raiz dos protestos esteve a defesa da tradição artesanal, a autonomia
sobre os processos de produção e a posse de um saber e de um status de ofício que se
viam ameaçados com a emergência do capitalismo. De acordo com o estudo de
Filomena Mónica (1979), foi o processo de mecanização e a organização capitalista do
trabalho que empurraram esta camada “aristocrática” do operariado para importantes
lutas contra o “maquinismo” e de resistência ao processo de proletarização. As
chamadas “greves gerais”120 de princípios do século – a da Covilhã em 1902, a de
Coimbra em Março de 1903 e, em Maio do mesmo ano, a chamada “greve dos
tecelões”, no Porto – adquiriram uma importância significativa, quer pelo exemplo que
espalhavam no meio operário de outras regiões, com os inevitáveis efeitos de
propagação, quer pela acção repressiva a que por vezes davam origem, quer ainda pelas
fracturas profundas que a instabilidade política daí resultante introduzia entre as forças
instaladas no poder ou que acerrimamente o disputavam. José Tengarrinha registou a
nível do país – entre 1871 e 1920 – a ocorrência de inúmeras greves, que distribui por
três períodos temporais (correspondendo aos principais marcos na mudança entre
diferentes conjunturas políticas): na primeira fase, entre 1871 e 1886, 140 greves, que
equivalem a uma média anual de 8,8; na segunda fase, entre 1887 e 1908, 1428 greves,
com uma média anual de 64,9; na terceira fase, de 1909 a 1920, ocorreram 3068
greves121, o que perfaz uma média anual de 255,7. Mas, conforme o autor alerta, à
elevada frequência não correspondeu necessariamente o mesmo grau de sucesso no
resultado, isto é, só a partir dos últimos seis anos do século anterior é que a curva da luta
sindical começa a inverter-se no sentido ofensivo, numa linha de vitórias com tendência
geral ascendente e que sobe bruscamente nos anos que antecedem a revolução
republicana, continuando depois a acentuar-se (Tengarrinha, 1981: 593).
120 Que, embora confinadas a uma região ou cidade, abrangiam vários sectores produtivos. 121 Segundo os dados de Edgar Rodrigues (1981a: 295), só em 1918 ocorreram 108 greves (27 das quais bem sucedidas). No quadro apresentado por este autor verifica-se ainda que entre 1912 e 1922, os anos de maior incidência grevista são, a seguir àquele e por ordem decrescente: 1919 (48 greves); 1920 (39); 1912 (35); 1917 (26); 1922 (22); 1913 (19); etc.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
258
Perante o agitado panorama do movimento operário deste período a nível
nacional, importa saber até que ponto ele se fez sentir em SJM. No que respeita aos
chapeleiros sanjoanenses, as repercussões locais do movimento grevista foram sempre
de carácter pontual. Os dados existentes dão conta de três iniciativas grevistas de
carácter local, neste sector, entre 1900 e 1920: a primeira ocorreu em Agosto de 1904
numa fábrica de chapelaria, cuja duração e resultados se desconhecem (Mónica, 1979:
945); o conflito em 1914 na fábrica “Oliveira, Palmares e Cª”; e finalmente, em Junho
de 1918, há notícia de uma greve de chapeleiros em SJM, por aumentos salariais
(Rodrigues, 1981a: 166).
O conflito de 1914 em S. João da Madeira
Não sendo possível separar a acção colectiva do operariado local da conjuntura
reivindicativa mais geral pretende-se, porém, dar especial atenção aos momentos mais
significativos de agitação social no contexto industrial de SJM. Merece destaque
especial, neste caso, o movimento de 1914 de contestação à instalação da nova fábrica
de chapelaria uma vez que as suas repercussões foram muito para além do âmbito
sectorial e local. A oposição à fundação da “Fábrica Nova”, como era conhecida na vila
a Empresa Industrial de Chapelaria (atrás refenciada) foi, aliás, um acontecimento com
importantes repercussões nacionais, dando lugar a vivas polémicas nos jornais e no
movimento sindical.
Na tarde do dia 3 de Novembro de 1914, uma comissão de operários dirige-se à
fábrica acompanhada por uma multidão de cerca de um milhar de pessoas, munidas de
varapaus, machados, caçadeiras e chuços. Em atitude ameaçadora, arrombam a porta
principal e um grupo penetra no escritório, pressionando o patrão a aceitar por escrito
todas as suas exigências (O Radical, de 4, 7 e 14/11/1914; O Chapeleiro 22/11 e
6/12/1914; Mónica, 1979 e 1986). Este foi o momento culminante de uma situação que
se vinha desenrolando com a introdução de nova maquinaria e a contratação pela
empresa122 de técnicos especializados vindos da Alemanha. A revolta dos trabalhadores
sanjoanenses vinha já sendo acicatada pelo principal jornal da classe, O Chapeleiro,
(ver nºs de 18/10 e 1/11/1914). As principais deliberações foram tomadas no comício
que antecedeu esta iniciativa:
“Entre as suas resoluções foi tomada a da nomeação de uma comissão para se entender com a firma Oliveira, Palmares e Cª a fim de ela demitir uns operários alemães e pedir-lhes a elaboração de uma tabela de preços. Houve muita atenção
122 A qual continuava a ser conhecida pelo antigo nome, “Oliveira, Palmares e Cª.”
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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por parte dos industriais; porém, tendo todos os assistentes acompanhado a comissão, e como esta se demorasse, houveram comentários e até que é disparado um tiro de dentro da fábrica para multidão. Esta, numa ânsia de defesa e desagravo, invade a fábrica, até que nessa altura a comissão, fazendo conhecer as atenções dos industriais, conseguiu a retirada dos manifestantes, visto as reclamações terem sido atendidas com a palavra de honra dos industriais” (O Chapeleiro, 3/11/1914). A evolução do acontecimento foi detalhadamente relatada e debatida pelos órgãos
sindicais dos dias seguintes. Embora a leitura da situação fosse nuanceada como é
natural segundo o quadrante político-ideológico das diferentes fontes, através delas
podemos ver não só o sentimento de resistência ao maquinismo que dominava o
operariado “oficinal” – aqui como noutras regiões – mas também algumas das
contradições que penetravam no seio da classe. Uma vez mais, é notória a presença dos
laços de afinidade e lealdade entre operários e patronato, como as que sobressaem no
romance Unhas Negras, atrás citado. Para além disso, pode também observar-se que
estes acontecimentos revelam não apenas a força das identidades cimentadas no “ofício”
mas ao mesmo tempo como elas são atravessadas por múltiplas clivagens, que vão dos
antagonismos classistas aos processos de reestruturação da identidade local e
nomeadamente através do discurso de cariz bairrista, nesta altura já em emergência em
SJM.
Além do porta voz sindical já citado (O Chapeleiro), dois outros jornais da região,
registam os acontecimentos do dia 3 de Novembro: um de inspiração republicana, com
sede em Oliveira de Azeméis (O Radical) e outro que se reivindicava “bissemanário
democrático” (A Opinião) da mesma localidade. Também O Primeiro de Janeiro se fez
eco desta rebelião.
Para O Radical, “o sócio principal, sr. António José de Oliveira Júnior, ouvindo
as reclamações que lhe eram feitas e temendo um ataque à sua vida, responsabilizou-se
por escrito a ceder a essas reclamações (…). Não é legal, nem justo, nem racional que, à
força, se queira impedir o funcionamento do livre comércio (…). Tais actos são fora da
lei, são anárquicos e sendo assim, não podem, ter o aplauso do público (…) (O Radical,
7/11/1914). O Primeiro de Janeiro refere por sua vez que nos tumultos sobressaíam as
mulheres “que em altos brados pediam trabalho e pão para os seus filhos”, indicando em
crónica datada do próprio dia dos acontecimentos que se tratava de uma multidão de
“talvez umas quinhentas pessoas”, corrigindo dois dias depois este número para
“superior a 800”. Por último, A Opinião começa por se referir-se à “importantíssima
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
260
fábrica de chapéus” em que os maquinismos até então utilizados foram substituídos por
outros mais aperfeiçoados, sendo por isso “obrigados a dispensar grande número de
operários”, salientando as características luxuosas das novas instalações, os requisitos
de conforto e os “progressos modernos” que o novo e amplo edifício contemplava
“dotando assim o país com uma edificação que em todos os sentidos o honra!”
(8/11/1914). O mesmo jornal passa depois ao relato e análise dos acontecimentos:
“(…) Os operários, como é de prever, não acolheram benignamente tão arrojada empresa. Há já alguns dias que a fábrica trabalhava em experiências, devendo começar a funcionar de vez na quarta-feira passada. Na terça-feira, porém, começaram a aparecer nas imediações da fábrica, diversos grupos de operários, os quais conseguiram a adesão de outras classes ao movimento que iam iniciar e, depois de terem reunido na Associação de Classe, dirigiram-se ao edifício da fábrica a apresentar as suas reclamações. A direcção mandou subir ao escritório uma comissão de entre eles, ficando de fronte do edifício multidão considerável de homens e mulheres. Enquanto, porém, a comissão parlamentava com a direcção da fábrica, de dentro foi disparado um tiro, que, diz-se, veio furar o guarda-chuva de um operário. Presume-se, e no meu entender é verdade, que este exaltado procedeu por conta própria (…) A multidão rompeu então em vaias, protestos, apupos, etc., manifestação que se prolongou por algum tempo, ao fim do qual e à ordem do sr. regedor debandaram todos. É para lastimar tanta demora da parte do sr. regedor em comparecer ali, pois forçosamente que uma alteração da ordem pública, prolongada durante uma hora e meia, devia ter-lhe chegado ao conhecimento… No dia seguinte e ao cabo de ‘demarches’ entre as duas partes, chegou-se a um acordo (…)” (A Opinião, 5/11/1914). Ainda segundo o mesmo articulista, a principal responsabilidade destes
acontecimentos deveria atribuir-se à acção ludibriosa de “alguns ambiciosos” que se
teriam servido dos operários, ao verem na nova fábrica uma fonte de concorrência e os
seus interesses ameaçados: “(…) os operários estão sendo manejo de alguém que não se
conforma com o avanço do progresso (…) alguém que aconselha uma multidão de
desgraçados a praticar uma acção revoltante e indigna (…)”.
Um dia depois desta revolta, trocou-se uma intensa correspondência entre o
patronato e a Associação de Classe dos operários chapeleiros local. Esta, é, para
Filomena Mónica, “reveladora das ambições operárias, quer quanto às relações laborais,
quer no que respeita à mecanização (discriminando entre as máquinas que poderiam ser
utilizadas sem grande prejuízo para os operários e as que, pelo contrário, provocariam
desemprego)” (Mónica, 1979: 927). Cerca de 24 horas decorridas, a comissão de
operários recebia da direcção da empresa uma missiva onde se afirmava que “satisfazia
por completo as aspirações da classe e daquele povo”, anunciando-se que os dois
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
261
técnicos alemães tinham deixado SJM “ontem às 10 horas da noite”. Manifestando a
intenção de suspender o trabalho mecânico, o “ofício” terminava, conciliador e
aparentemente até submisso, enfatizando que “(…) desejamos que essa Associação, de
acordo com a classe, nos diga as condições em que devemos trabalhar, sem ficarmos
sujeitos a novos tumultos” (O Chapeleiro, citado por L. Costa, 1987: 46).
Nessa altura parecia, de facto, existir uma total concordância entre ambas as
partes, com a associação operária a mostrar, em resposta imediata, “o seu mais profundo
reconhecimento pelo modo altruísta como V. Exas. resolveram pôr termo ao conflito” e
adiantando – entre os cinco pontos da proposta, onde se indicavam as máquinas que
poderiam funcionar e as que deveriam ser desactivadas – o reconhecimento pelo “acto
solene” que os patrões acabavam de praticar, atitude “digna de registo e por tal cumpre a
todos os chapeleiros desta florescente terra, fervorosamente aplaudir os seus autores,
que são V. Ex.as.” (L. Costa, 1987: 47).
A dissensão e o clima de “desassossego” iriam, contudo, regressar com a chegada,
dias depois, de uma força militar vinda de Ovar e polícia cívica de Aveiro, declarando-
se então o “estado de sítio” em SJM, com recolher obrigatório às 20 horas. Foi nesta
situação que a vila foi encontrada quando, a 8 de Novembro chegava do Porto uma
comissão de 8 chapeleiros a fim de participar nas negociações entre a classe e os
industriais. À excepção da empresa que despoletou o conflito, os proprietários das
fábricas locais estiveram ao lado dos operários, negociando com a “Oliveira, Palmares e
Cª.” um acordo de aquisição de artigos (feltros) àquela firma por forma a que pudesse
“comprometer-se a dar trabalho aos seus operários”. Por entre boatos e intimidações, os
dias seguintes foram decorrendo “sentindo-se instalar entre os chapeleiros a divisão,
com alguns a propor que a firma (…) fosse desobrigada do compromisso tomado com a
classe” (L. Costa, 1987: 48), compromisso esse que, entretanto, começara a ser posto
em causa pelos seus responsáveis, afirmando que o haviam assinado sob coacção.
Sectores da opinião local que o jornal A Opinião parecia corroborar, incentivavam os
responsáveis da dita fábrica a repor as máquinas em funcionamento e a recomeçar o
trabalho. Foi, com efeito, o bissemanário oliveirense que “com muito prazer” divulgou
o acordo final entre as duas partes:
“Admitir todos os operários, com um salário (mínimo) de 500 réis diários e 200 réis para as mulheres; Beneficiar com a quantia de 400$000 réis anuais o cofre de uma associação beneficente, que se fundará e para a qual todos os operários serão obrigados a contribuir com uma quota convencionada;
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
262
Cumprir à risca a lei sobre acidentes de trabalho” (A Opinião, 19/11/1914). Passados dias, a 24 de Novembro, O Primeiro de Janeiro dava conta de que o
movimento operário estava normalizado em SJM: “A polícia retirou hoje, ficando ainda
a força militar. O digno administrador também se encontra ainda cá. A fábrica mecânica
começou hoje a trabalhar (…)”. Em Janeiro do ano seguinte (O Chapeleiro, 22/1/1915),
ainda o jornal da classe manifestava esperanças de retrocesso: “na Oliveira e Palmares,
lá vão botando mão do material antigo (…)”. Mas era mais uma ilusão reveladora da
ingenuidade operária da época e talvez da força e confiança que os industriais pioneiros
desta vila continuavam a inspirar nos operários e na população. O prestígio de António
de Oliveira Júnior (o proprietário da empresa) não parece, de facto, ter sido abalado. O
romance local a que atrás fiz referência presta-lhe homenagem e de certo reflecte a aura
de filantropo que as populações locais foram construindo em torno deste personagem
que, como outros industriais da época, se tornou um “notável” de referência na
sedimentação do orgulho local. Silva Correia enaltece-lhe as qualidades pessoais
referindo que “era ele quem acalmava o fervor mais exaltado dos outros sócios (…).
Viera do meio dos operários; amava-os como irmãos; e porque os amava, sabia
compreender as suas mortificações e anseios pela conquista da triste côdea” (Correia,
1953: 68).
A luta dos sapateiros
A acção colectiva dos trabalhadores do calçado, tal como a dos chapeleiros terá,
portanto, de ser enquadrada neste contexto de instabilidade social, sem esquecer,
contudo, que a par das situações de maior radicalismo, permanecia o dia-a-dia de
trabalho em que as dificuldades e a miséria das condições de vida não se traduziam em
revolta organizada, mas sim em aceitação e conformismo. Com isto não pretendo
minimizar o facto de o sector do calçado e cortumes (embora constituindo um exemplo
típico do trabalho de cariz artesanal e domiciliário) estar já nesta fase a integrar-se
progressivamente na lógica industrial, pois as tarefas ao domicílio ou à empreitada
enquadravam-se já na lógica capitalista. O próprio movimento sindical chamava a
atenção para o poder dos empresários de maior dimensão, a demonstrar a força da lei
lucrativa sobre o trabalho à tarefa. Como refere Villaverde Cabral, “são raras as
associações que não precisam o facto de que, mesmo quando o trabalho era efectuado
em casa do operário, era trabalho feito para um patrão e, muitas vezes, para uma fábrica
equipada com maquinaria moderna. O calçado era, mais uma vez, típico deste tipo de
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
263
organização do trabalho” (Cabral, 1979: 295). Neste sentido, adianta o mesmo autor, o
artesanato propriamente dito não detinha um significativo peso “na produção de cada
ramo, a não ser nos casos das zonas rurais onde a grande indústria não tinha ainda
penetrado”. Estas são algumas das razões aduzidas por Cabral para se poder considerar
que, apesar da pequena dimensão e da dispersão das unidades produtivas, o calçado se
situava (ao lado de indústrias como as do vestuário, construção, cortiça, madeiras e
também a chapelaria) no núcleo do proletariado português desta altura que, “fornecia a
principal fonte de recrutamento da maioria dos dirigentes e militantes, e é ele que
assegura a nível colectivo – nomeadamente no âmbito das palavras de ordem de ‘greve
geral’ e da luta pelas 8 horas – a ligação entre os trabalhadores qualificados e
indiferenciados (…). Apesar da sua fraca concentração e da sua relação artesanal com o
processo de trabalho, ou talvez por isso, é esta fracção que parece conferir ao
movimento reivindicativo o carácter de massa e o carácter insurreccional, mais do que
revolucionário no sentido político preciso, que tomaram as lutas operárias por
objectivos materiais entre 1910 e 1920, e posteriormente” (Cabral, 1979: 294-296).
Os documentos autobiográficos do dirigente sapateiro José Silva (1971)
exemplificam alguns casos de luta sindical no sector do calçado neste período. A
propósito de uma greve de sapateiros ocorrida em 1920 no Porto, refere aquele
sindicalista que “as ‘brigadas de vigilância’ tiveram de entrar em acção contra os
industriais que queriam manter as oficinas em laboração e contra os ‘amarelos’ que não
acataram desde logo a ordem de greve do sindicato, àqueles obrigando-os a encerrar as
oficinas e a estes arrebatando-lhes a obra recebida para a executarem nos seus
domicílios: as ‘brigadas’ cortavam-na em tiras com as suas próprias facas do ofício,
inutilizando-as por completo” (Silva, 1971,vol.1: 67).
As reivindicações das Associações de Classe do sector do calçado giravam neste
período em torno das duas questões desde sempre consideradas as principais bandeiras
de luta do movimento operário: o salário e o horário de trabalho123 (Freire, 1992: 141).
Apesar de não fazer parte das justificações explícitas da acção reivindicativa do
movimento sindical, o desejo de uma maior racionalidade da vida económica que
unificasse o mercado nacional em termos de preços, salários e custos (que variavam ao
sabor dos particularismos de cada região), estava subjacente nos processos de luta pela
justiça nas remunerações salariais. Nos congressos associativos era comum debaterem-
123 Embora, evidentemente, surgissem atrás destas, toda uma série de outros motivos de protesto.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
264
se as questões da “uniformização” e “nivelamento” de salários nos diferentes sectores
produtivos. A questão do horário de trabalho e, nomeadamente, a luta pelas 8 horas de
trabalho foi, desde os anos oitenta do século passado, um dos mais gritados slogans nas
manifestações operárias do dia 1º de Maio, revelando que a ideia expressa na célebre
fórmula “3 x 8” – 8 horas para dormir; 8 horas para a vida familiar, social e actividades
fisiológicas; e 8 horas para trabalhar – estava já bastante enraizada nos sentimentos
colectivos da classe operária (Freire, 1992: 141).
Talvez mais do que os acontecimentos é o clima de dramatização dos processos
de luta e a própria produção discursiva por parte dos líderes sindicais o principal
elemento estruturador da identidade de classe do operariado. Para além de vividas
intensamente pelos intervenientes directos, o carácter apoteótico das acções de massas é
sempre marcado pelas figuras carismáticas que as lideram e foi, em boa medida, com
base na exaltação recorrente das lutas passadas que se escreveu a história do movimento
sindical. A própria cultura operária é em parte produto desses processos de construção
simbólico-discursiva que se inscrevem na memória das colectividades trabalhadoras.
Todavia, no contexto de SJM a cultura operária foi pouco mais do que embrionária (e,
nesta altura, largamente marcada pela influência da chamada “aristocracia operária” dos
chapeleiros). Muito embora nas primeiras décadas deste século sectores significativos
dos trabalhadores do calçado tivessem estado envolvidos na luta sindical, o posterior
declínio e quase desaparecimento do sector chapeleiro contribuiu para a progressiva
dissipação dessas experiências enquanto símbolo de modelação de uma identidade,
digamos, genuinamente classista. Já no caso do calçado, essa memória, para além de
pouco enraizada, foi-se esbatendo à medida que o sector cresceu e as posteriores
gerações de trabalhadores foram transportando para as fábricas referências culturais que
continuavam impregnadas de ruralidade.
4.2 - Cultura, festa e tradição nas comunidades locais
As experiências do movimento operário a que acabo de fazer referência só
poderão ser cabalmente entendidas se enquadradas na lógica comunitária e rural que
subjaz às identidades culturais do semi-operiado fabril deste período. A importância da
vertente festiva e de lazer é aqui abordada em dois sentidos complementares: primeiro,
enquanto expressão identitária onde se revela a adesão das populações à tradição local;
segundo, enquanto dimensão estreitamente vinculada aos efeitos da regulação social e
socioeconómica mais geral. Quer o impacto da industrialização e do mercado de
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
265
trabalho, quer a acção de enquadramento “civilizacional” dirigida às comunidades por
parte do Estado e apoiada nas elites locais, são aspectos que interferem na modelação da
“cultura popular”. Como foi assinalado no primeiro capítulo, esta noção é aqui
entendida num sentido dialéctico e dinâmico onde se combinam paradoxalmente
elementos de ‘acomodação’ com elementos de ‘resistência’. Ou seja, a cultura popular
resulta de uma espécie de ‘resposta’ ao impacto da normalização imposta às
comunidades, uma resposta simultaneamente adaptativa e transgressiva face à cultura
hegemónica e à lógica dominante (Gramsci, 1985; de Certeau, 1984; Burke, 1992).
Pode dizer-se que se assiste neste período à emergência de uma “cultura popular” que se
vai modelando perante os efeitos cruzados de diferentes factores: a força da tradição
comunitária local; a lógica de “modernização” desencadeada pela burguesia industrial
apesar de sustentada numa moral paternalista; a acção dos diversos mecanismos de
mercado; e a acção institucional do Estado e da Igreja (desde o enquadramento
administrativo à acção deliberada de manipulação que se vai impor a partir dos anos 20,
com o triunfo do salazarismo).
É no quadro dessa acção de modelação que as formas de cultura tradicional se
tornaram objecto de atracção e manipulação e ao mesmo tempo se afirmaram como um
factor decisivo na fertilização das novas formas culturais de raiz popular que ganham
consistência à medida que o mercado, o Estado e o capital penetram na região. Nas
últimas décadas do século passado a dimensão lúdica e festiva do quotidiano popular
pautava-se, por um lado, pelo ritmo dos ciclos agrícolas – onde prevalecia uma
concepção de tempo cíclico e a demarcação entre trabalho e lazer era vagamente
perceptível – e, por outro, pelo calendário religioso. A festa, a brincadeira e a
celebração colectiva desenrolavam-se segundo uma lógica de sacralização da dimensão
profana da vida social, em que a crença religiosa e o paganismo popular se misturavam,
por vezes contrariando a própria acção institucional da Igreja.
Não seria ajustado conceber a transformação dos costumes populares num sentido
evolucionista e, menos ainda, pressupor a existência prévia de qualquer espécie de
“cultura popular no estado puro” ou “tradição genuína” sobre a qual viriam a sobrepor-
se as instâncias estatais ou “civilizacionais”. Os processos de recomposição cultural são
muito mais complexos e contêm sempre no seu seio diversos “arranjos” e sincretismos,
mesmo no âmbito estritamente local. Qualquer identidade se estrutura por referência a
algo que lhe é estranho e, logo, é necessário posicioná-la face a esse Outro. Nesse
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
266
sentido, a reestruturação da cultura popular resulta de um conjunto variado de forças e
interferências estruturais que colocam as colectividades tradicionais perante diversos
dilemas e ambiguidades: a religiosidade católica face à ancestralidade de certas crenças
populares com toda a sua carga de paganismo; a identidade comunitária tradicional face
às novas contradições de classe que resultam da implantação industrial; o impulso para
a reprodução cultural face à necessidade de adesão a novas rotinas e de obediência a
novas regras resultantes dos apelos da economia capitalista e da atracção pela fábrica124.
Alguns dos registos documentais125 a que recorri ilustram bem essa duplicidade ao
colocarem o próprio observador e articulista – geralmente um padre, um professor ou
um autodidacta local – na dupla posição de “cronista” e agente “moralizador” dos
costumes. Merece a pena, no entanto, apresentar alguns cenários populares dessa época,
dada a riqueza descritiva dessas práticas populares de celebração festiva. Não cabe aqui
destrinçar as formas culturais da tradição local daquelas que emigraram a partir de
outras comunidades já que muitos rituais de semelhante recorte ganharam raízes em
diversas regiões portuguesas, os quais terão porventura surgido indepen-dentemente uns
dos outros (Coelho, 1993: 375).
Das modalidades deste tipo mais enraizados nesta região destacam-se: a dança
dos ditos, que se inseria nos chamados “grupos carnavalescos” e que incluía danças,
diversos instrumentos musicais e elementos teatrais de natureza satírica, entre os quais a
figura do “bobo da festa”; o jogo do pau, um simulacro de combate guerreiro disputado
entre grupos rivais, acompanhado com grande entusiasmo pela assistência que se
dividia em apoio de cada uma das equipas envolvidas na contenda; as festas das
colheitas, como as desfolhadas, que tinham lugar nas casas dos lavradores, finda a
debulha do milho, realizando-se o baile na própria eira, onde pontificava a figura do
cirandeiro; as vistas, que antecediam o casamento e ocorriam na casa da família da
noiva (incluindo jantar, cantares à desgarrada, baile, etc.) e em que os convidados
levavam consigo “diversas dádivas ou oferendas” para os noivos (Pereira,1982); as
tombalhadas, que consistiam em rituais que simulavam lutas entre rapazes e raparigas,
carregadas de erotismo e alguma violência; as contradanças, que eram actuações em
grupo, de danças e cantares (Mota, 1991: 245).
124 Um outro campo de características ambíguas (que irei referir no último ponto deste capítulo e que se situa num contexto de mais acelerada pulverização das comunidades tradicionais) refere-se à articulação entre a construção da identidade local (de cariz “bairrista”) da então vila de SJM e o discurso nacionalista. 125 Monografias locais e artigos publicados nos jornais da região.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
267
O fim do ciclo produtivo agrícola foi desde sempre uma ocasião de celebração e
de comunhão entre o Homem e a Natureza, de cuja fertilidade depende a subsistência. A
exuberância que estes festejos por vezes adquiriam traduz a homenagem ao poder
divino e espiritual pelo culminar de mais um ano fértil. Um acto de consagração pleno
de simbolismo em que o povo celebra o fruto recolhido da terra enquanto “dádiva” de
Deus. A religiosidade e o misticismo populares acompanharam de perto as actividades
festivas do povo e essa conjugação contribuiu decisivamente para a divulgação de
práticas recreativas que, com o avanço da modernização (da produção bem como dos
modelos de consumo), foram progressivamente perdendo o seu lado místico em favor
do hedonismo e do consumo massificado. Contudo, algumas destas festividades
agrícolas continuaram a ocupar o seu lugar no Portugal rural – pelo menos até aos anos
sessenta deste século – apesar de terem perdido muito do seu ancestral vigor. Nos anos
vinte e trinta a sua prática nesta região era generalizada. As músicas tradicionais eram
animadas com instrumentos como a viola, violão, o cavaquinho e tambores atraindo a
presença da juventude. Em muitos casos a classe trabalhadora misturava-se com as
classes remediadas nessas ocasiões. As famílias dos lavradores mais ricos rivalizavam
entre si no aparato festivo e na ostentação da fertilidade produtiva através dos actos
“beneméritos” aos seus assalariados. No caso das desfolhadas, uma figura central era a
dos cirandeiros, rapazes que ainda não tinham ido à inspecção militar e que, segundo a
tradição, não eram autorizados a participar em igualdade de circunstâncias naquelas
festas, estando sujeitos a ser apanhados pelos mais velhos que podiam aplicar-lhes os
mais diversos castigos. Usavam, por isso, uma capa com um capuz cobrindo a cara, só
com os olhos a descoberto e geralmente andavam armados com uma racha (pau de
madeira), a fim de não serem identificados e de se prevenirem contra os mais velhos,
seus adversários. Na época apropriada, estes rapazes mais jovens percorriam todas as
noites os serões das redondezas onde decorriam as desfolhadas a fim de darem o
alecrim a cheirar às raparigas.
“(…) Homens e mulheres, rapazes e raparigas e até as crianças aninham-se onde podem e onde calha ou onde convém à roda da pilha das espigas. Na parede, a clássica candeia de azeite ou petróleo. E as raparigas cantam. Cantam vinte, trinta modas diferentes, todas as que sabem. Geralmente a duas vozes: – um grupo encarrega-se de começar; o outro de botar. Botar, é cantar uma terceira menor acima das que começam. (…) Os cirandeiros aproveitam para se fazerem notar, entram, fazem piruetas, dizem chucarrices, esforçam-se por ter graça, o que raras vezes conseguem. Ou melhor: – há sempre no grupo das cantadeiras uma certa pessoa que acha sempre
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
268
muita graça a tudo o que certo cirandeiro disser ou fizer. É claro que é ali que o cirandeiro vai desfolhar, depois de se dar a conhecer. E é igualmente claro que essa fica dispensada de cantar no resto do serão. Para o fim já se canta pouco. Porque estejam fatigadas as cantadeiras? Simplesmente porque já estão todas ocupadas em objecto que lhes adita mais. De repente, um do grupo ergue-se de um salto, triunfante de gozo. – Um rei! Um rei! O felizardo teve a sorte de encontrar uma espiga de milho vermelho. E isto confere-lhe um direito que se não discute. Sem perda de um instante, o bafejado da fortuna aproxima-se dos assistentes, um por um, enlaça-lhes os braços ao pescoço, aperta quanto pode, face contra face e estala um chi (beijo). Há chis de todas as cambiantes afectivas: há-os ensonsos, há-os respeitosos, há-os de pura pragmática para não fazer desfeita, e há-os quentes, efusivos, denunciadores (…)” (Sousa, 1958: 537-538). O jogo e a sedução sexual ocupavam, como sempre acontece na festa popular, um
lugar de destaque, como se pode ver. Em certos casos, o lado sensual e brejeiro é a parte
mais importante da brincadeira, como por exemplo, no caso das tombalhadas (um ritual
ligado à produção do linho). Tal como acontecia noutros jogos, a forma como se
procedia à escolha dos parceiros directos deixa transparecer que as etapas de
aproximação amorosa entre rapazes e raparigas passavam muitas vezes pela
participação em brincadeiras como esta. Nas tombalhadas tratava-se simplesmente de o
rapaz agarrar repentinamente uma rapariga, “fingindo-se esta muito surpreendida e
enervada face a tal atrevimento”. A reacção imediata traduzia-se num esboço de luta em
que a rapariga estava obviamente condenada a ser “vencida”. De facto, ela acabava,
regra geral, por ceder e ambos caíam por terra com os braços e as pernas enlaçados.
“Não se sabe bem com que artes, davam um jeito conjugado de rolar pelo chão, rolavam
– ou seja, tombalhavam – sobre o campo do linhar sem se descomporem, sem que
ninguém pudesse perceber que é que eles firmavam na terra para poderem operar o
rolamento. O divertimento era porém fresco de mais para que pudesse persistir (…)”
(Sousa, 1958: 342).
4.2.1 - Expressividade popular, religiosidade e mercado
À medida que se foi adensando a actividade económica na região, nas primeiras
décadas deste século, acentuou-se como é natural a complexificação e fluidez de
diversos tipos de troca, quer material quer simbólica. As feiras e mercados de base
regional adquiriram nesta altura grande dinamismo. Além de espaços de troca, esses
contextos constituíam lugares de prazer que, embora ainda ligados à atmosfera comunal,
não se limitavam a ser meros guardiões da tradição local. O processo de transformação
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
269
da tradição popular passou pela germinação destes ambientes, transformados de certa
maneira em palcos de intersecção de culturas.
Os sinais mais evidentes da crescente aceleração da mudança nos costumes
tradicionais revelam-se não só no impacto da industrialização e do mercado em geral,
mas no próprio facto de a cultura dominante passar a dedicar maior atenção à
necessidade de “civilizar” os hábitos populares, empregando meios de pressão mais
poderosos. O próprio surgimento de algumas obras etnográficas sobre a tradição popular
– as quais procuravam encontrar os vestígios mais ou menos característicos ou “típicos”
do povo português – é, em si mesmo, ilustrativo do processo de domesticação ou de
reinvenção da tradição rural comunitária (fenómeno que, de resto, se ligou estreitamente
ao discurso nacionalista). A enorme riqueza documental desses trabalhos e o
inquestionável mérito de alguns dos clássicos da etnografia portuguesa – J. Leite de
Vasconcelos (1882) e Adolfo Coelho (1993 [1ª ed. 1898]), entre outros – não altera o
facto de esta produção científica se integrar na orientação mais geral de
institucionalização dos hábitos populares, transformando-os em objectos mais ou menos
“pitorescos” e “folclóricos” capazes de ser exibidos enquanto património da cultura
nacional. Um processo que, dir-se-ia, corresponde ao que Michel de Certeau designou a
propósito da reinvenção da cultura popular como uma tentativa de retratar “a beleza do
morto” (de Certeau, 1984).
Nesta estratégia de moralização dos costumes populares, a Igreja católica
desempenhou, como se sabe, um papel decisivo. A ambiguidade da relação da Igreja
face à emergência de cultos de raiz local e comunitária revela-se por vezes numa atitude
hesitante entre a acção de oposição aberta e a estratégia de apropriação, sendo esta a
opção possível nos casos em que tais práticas persistiam em fazer parte dos hábitos de
vida das comunidades. Em tais situações a instituição recorria a processos de depuração
tendentes a retirar àqueles rituais os elementos que escapavam ou questionavam os
poderes constituídos (Silva, 1994: 156 e 158).
Algumas expressões da “alegria popular” podem ilustrar o carácter ambíguo da
relação do povo com a religião oficial e, paralelamente, a importância da acção
institucional na adaptação da tradição popular às grandes transformações sociais que
estavam em curso. O peso da Igreja Católica e a influência que detinha junto das
comunidades não impediu, pois, a existência de inúmeras situações em que a
espontaneidade popular subvertia a sua acção normativa. Como referia uma das
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
270
monografias consultadas, “(…) hoje a maioria das festas têm mais de pagãs que de
cristãs. Bem se esforçaram os padres por proibir arraiais, danças, espectáculos, bandas
de música, rifas por ocasião das festas religiosas. O resultado tem sido pequeno, ao
menos por agora. (...)” (Sousa,1958: 531). O esforço da Igreja no sentido de separar as
águas entre a fé e a festividade secular parecia na verdade ter pouco êxito. A
religiosidade popular celebra a sua fé juntando aos ritos religiosos o paganismo
incrustrado nos hábitos de vida do povo. Ao contrário, o combate do catolicismo oficial
a essa mistura “promíscua” parece mostrar que a devoção e a postura moral propagada
pela estrutura eclesiástica entravam muitas vezes em choque com a expressividade
festiva e “carnavalesca” da cultura popular (Bakhtin, 1984; Featherstone, 1992). Os
arraiais, as danças e os foguetes deixam transparecer uma euforia que não está disposta a
sujeitar-se totalmente aos mandamentos do prior. A grande adesão das populações às
actividades paroquiais não significava que o povo estivesse disposto a abdicar das suas
ancestrais formas de exuberância festiva. Nas monografias desta região são recorrentes
as referências às manifestações de alegria, à adesão ao espírito de festa por parte das
camadas populares:
“ (…) sempre que se aproximava mais uma festança nas redondezas, é vê-los (…), os rapazes de casaco ao ombro e cacete na mão, as raparigas de saia ensacada e trouxa à cabeça, aí vão eles para a festa mesmo com o sol a prumo e suor a cair em bica, nestas ocasiões a fadiga desaparece por completo. (…) É uma alegria! (…) Seguem-se os grupos uns aos outros – uma viola, uma harmónica, uma pandeireta e o indispensável bombo, e estão os ingredientes reunidos para animar a ‘tropa’ – e se a caminhada é longa e a sede e a fome apertam, farejam-se os farnéis e molha-se a garganta na taberna mais próxima. –Vamos p’rá Festa! Não vem daí? –Estão prontos? Então vamos lá com Deus. E a caravana de novo se põe em marcha. E isto para S. Lázaro, em 2ª feira de Páscoa, e isto para o Senhor dos Aflitos, no 1º domingo de Maio, e isto para a Rainha Santa, a 20 de Agosto, e isto para S. Domingos da Serra, a 8 de Setembro, e isto para a Santa Eufêmea, a 16 de Setembro, e isto para o S. Cosme, no primeiro domingo de Outubro, para não falar já no Senhor da Pedra, na Senhora da Ajuda e em La Salette. Chegam a casa moídos, arrasados. – Ai! Santa Eufêmea bendita, que se não fossem os vossos milagres... Tão longe e então uns caminhos... Só quem dever. Mas no ano seguinte lá estão todos caídos. Já devem outra vez (...).” (Monografia de Romariz. Sousa,1958: 532). Segundo o mesmo documento, o popular lema pão e circo assumiria nesta zona a
versão “meia canada de verde e o naco de regueifa saboreados num arraial” – os meios
fundamentais para lubrificar a alegria do “Zé povinho” (a conhecida figura que Bordalo
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
271
popularizou, como caricatura do modo de ser do povo português). Em ocasiões de festa,
o espírito de reinação colectiva parecia transcender por completo a lógica de contenção
que os tempos difíceis daquela época aparentemente aconselhariam.
Para além de geralmente acompanharem as datas de celebração religiosa, as festas
comunitárias podiam ainda ter lugar a propósito de qualquer outro motivo merecedor
das atenções locais. A visita de um conterrâneo bem sucedido nos negócios, o regresso
de um emigrante enriquecido no Brasil, por exemplo, era motivo suficiente para a
preparação de uma festa de recepção, com toda a “pompa e circunstância”. Mesmo a
habitual festa local em honra de um venerado santo era geralmente acompanhada do
habitual “foguetório”, seguido do respectivo baile ou “arraial” na aldeia (Pereira, 1982).
Como mais adiante se verá, a emigração para o Brasil teve nesta região um importante
papel durante este período. E isto, tanto no que se refere ao impacto económico gerado
pelo investimento na terra de alguns emigrantes regressados como na vertente simbólica
e cultural, dada a influência que tiveram na redefinição de papéis e estilos de vida nas
aldeias e na introdução de novos padrões de referência culturais junto das populações126.
Nos anos vinte começam a proliferar na região as tunas e bandas filarmónicas. Na
monografia de Oiã salienta-se a grande importância da tuna local:
Para a festa inaugural foi contactado um animador “já com experiência”, que dinamizou a sessão que teve lugar numa eira. Em coreto improvisado, “feito de troncos de pinheiro e tábuas, com os costumados adornos de verduras, incluindo folhas de nespereira, deu novo alento a este agrupamento, que chegou a competir em concursos e certames fora da sua freguesia, apesar de o meio de deslocação utilizado ser a bicicleta. Com os instrumentos às costas, os mais leves, porque os outros eram transportados à cabeça por mulher apalavrada para o efeito” (Monografia de Oiã. Mota,1991: 245). Alguns destes agrupamentos, embora de precária existência, revelam não só a
grande iniciativa popular no campo das diversões como a rivalidade latente entre as
comunidades vizinhas. A fonte acima citada refere dois agrupamentos de jazz – Os
Teimosos e Os Vencedores de cujos repertórios faziam parte cantigas como: “O
Cochicho”, “Ó Rosa Arredonda a Saia”, “Sebastião Come Tudo”, etc. – nascidos da
extinção de tunas e que actuavam em arraiais e bailes da região, onde regularmente se
126 A emigração a que me refiro era nesta altura mais ligada aos estratos de uma burguesia bem sucedida economicamente. Muitos emigrantes recém enriquecidos ou que reforçaram a sua riqueza nos negócios que desenvolveram no Brasil regressaram à terra neste período e outros, mesmo enquanto estiveram ausentes, participaram activamente em iniciativas locais de grande significados social e económico. No caso de S. João da Madeira a acção filantrópica de algumas dessas figuras foi marcante em muitos
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
272
confrontavam “numa rivalidade sã” (Mota, 1991). Estes ambientes mostram como as
festas e os arraiais constituíam importantes elos de contacto entre as comunidades da
região e favoreceram o surgimento de novas formas de identificação fundadas na
assimilação de estilos de vida diversificados.
4.2.2 - Alguns contrastes de classe: a vida quotidiana na viragem do século
Na viragem do século as diferenças classistas – nesta região como noutras –
continham ainda muitos dos traços de uma sociedade predominantemente rural, a viver
a lenta transição entre os vestígios do regime senhorial e o capitalismo emergente. As
classes dominantes cingiam-se à aristocracia decadente que, com a queda da Monarquia,
foi cedendo parte dos seus privilégios de status aos sectores da burguesia – agrária,
comercial, industrial e financeira – economicamente dominantes. Nas diferentes regiões
do interior, as elites locais reuniam-se em torno da burguesia agrária, de alguma
aristocracia em reconversão, dos pequenos industriais em emergência e em alguns casos
da hierarquia da Igreja. As frágeis classes médias alimentavam-se sobretudo da pequena
burguesia comercial e industrial, do frágil funcionalismo administrativo e alguns poucos
“intelectuais” de extracção burguesa ou aristocrática. A força das lealdades locais
permitia o desenvolvimento do caciquismo e, em regiões como esta, o proteccionismo
caritativo de alguns notáveis ajudava a preservar o conformismo e a relativa passividade
das classes trabalhadoras.
Entre os hábitos de vida tradicionais e camponeses e as novas tendências da
sociedade moderna em germinação, a experiência operária e sindical jogou – também
no terreno cultural – um papel de relevo. Mas, nesta altura, a luta colectiva do
operariado sanjoanense era ainda um elemento pouco relevante na estruturação das
identidades de classe e tinha pouca tradução no campo dos estilos de vida. Não obstante
poder afirmar-se que em Portugal, como noutros países europeus, o povo é em geral
mais identificado com as classes pobres do que com a nação, nesta fase da vida
portuguesa a correspondência entre as colectividades populares e a cultura operária
apenas terá tido algum significado nos maiores núcleos de concentração industrial –
como Lisboa, Porto, Braga, Setúbal, Marinha Grande –, mas não tanto em contextos
como este, onde a ruralidade era mais vincada.
Faria por isso pouco sentido aplicar a esta região a ideia de Thompson segundo a
qual, perante os assomos de modernidade que a industrialização introduziu, a classe
aspectos e tiveram um notável impacto no desenvolvimento do sentimento bairrista apoiado na adesão aos
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
273
trabalhadora terá passado a sentir “uma identidade de interesses colectivos em oposição
aos interesses dos dirigentes e industriais da época” (Thompson, 1963: 12). Pode até
concluir-se que os factores de resistência e sedimentação da identidade classista que se
viveram neste período da história local foram, em termos políticos, extremamente
frágeis e precários127.
Alguns elementos recolhidos nos documentos consultados para este período
permitem-nos ter uma noção, ainda que parcial, dos modos de vida dos principais
grupos sociais na viragem do século a partir da observação dos comportamentos nos
tempos-livres. Atente-se no modo como o narrador descreve certos aspectos do
quotidiano, a ilustrar o contraste entre as atmosferas agitadas do povo e a postura sóbria
ou pretensiosa dos ambientes elitistas.
“(…) Quem viaja em caminho de ferro, observa todos os dias este contraste: se entra numa carruagem de primeira ou mesmo de segunda classe encontra uns excelentíssimos senhores encasacados, meio enterrados nas almofadas, sempre sisudos e calados, tão absorvidos na leitura dum livro ou dum jornal que mal se dignam levantar os olhos para o novo companheiro de viagem que, bota de elástico, os saúda ao entrar. Em terceira classe, em que só viaja gente pobre, a atmosfera é outra – tudo fala, tudo gesticula, tudo canta, tudo ri. Ao fim de cinco minutos todos são conhecidos e amigos. O pior são as pulgas. As pulgas e os protestos da pituitária. Se não fora isto, a viagem em terceira classe seria a viagem ideal. Pobretes mas alegretes. (…) Um pobre nem quieto nem calado. E se o prolóquio, só porque o é, é um dogma que se não discute, referido a um pobre – chega a ser um axioma de intuição imediata, tratando-se de uma pobre e particularmente de uma pobre solteira (…). Estas poderão suportar tudo. Estar caladas é que não. E se andam em grupos, palestram, murmuram, ralham, jogam-se remoques, cantam, dão gargalhadas, contam novidades ou devaneios. Se trabalham sem companhia, porque seria um mau sintoma andarem a falar ou rir-se sozinhas, cantam a solo. Caladas é que não. (Sousa,1958: 531-532). Equacionando a própria posição de classe do observador pode perceber-se a
ambiguidade dos status de classe média e do seu sentido estético, por um lado, perante
os segmentos elitistas e, por outro, perante o povo. A irrequietude e “extravagância”
atribuídas às camadas populares deixa perceber a proliferação dos contrastes de
natureza estética nos sectores sociais mais desfavorecidos. Tratava-se, afinal, do
novos valores do progresso e da modernidade. Voltarei a esta questão no final deste capítulo. 127 Como se verá no capítulo seguinte, apesar dos momentos de luta e resistência durante o salazarismo, as actividades de lazer dirigidas pelo Estado Novo às classes trabalhadoras neutralizaram a sua escassa politização e ajudaram a desenvolver uma cultura de classe de características defensivas e politicamente amorfa. Embora tais processos se prendam neste caso com a natureza autoritária e corporativa do regime de Salazar, os resultados terão sido semelhantes ao que Stedman Jones aponta ao papel desempenhado
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
274
habitual quadro colorido e policromático que define as culturas populares quando estas
extravasam o âmbito da comunidade tradicional. É a condição social dos “pobres” que
surge como o referente em relação ao qual o observador se demarca. Na sua atitude
transparece a condenação moral dos modos “rudes” e da “falta de civismo” desta
categoria social. Mas, por outro lado, surgem referências em que subjaz alguma crítica
social em relação à “rigidez” das classes superiores, personificadas nos “senhores
sisudos e sempre calados” que viajam nas carruagens de primeira classe do comboio da
linha do Vouga (inaugurada em 1908).
O ambiente de agitação, de comunicabilidade e alegria aparecem em claro
contraste com os modos “educados” e formais. Embora se detecte um certo efeito de
sedução – que parece espelhar a capacidade de afirmação da cultura popular –, o que
sobressai é o conteúdo moralista e a demarcação do narrador face ao ambiente de
“alvoroço”, de “barulho” e de falta de higiene de uma condição de classe considerada
“mal comportada”. Esta dimensão das relações quotidianas da vida extra-trabalho
revela-se, assim, ilustrativa de uma praxis cultural em que as classes médias em
emergência já se distanciavam abertamente das formas de diversão mais “grotescas” das
classes baixas. Era este o sentido exclusivo, da cultura do “povo pobre”, onde se podiam
agrupar o artesão, o operário, o pequeno camponês, os vendedores de feira e de um
modo geral, os pobres, cujos modos de vida denunciavam a sua condição de
subordinados. Neste contexto, as características sociais e culturais obedeciam a
dinâmicas distintas dos ambientes apontados por Thompson como tendo fornecido as
bases de estruturação da cultura operária: a importância da concentração industrial em
torno da cidade que levou o proletariado industrial de primeira geração a ser
progressivamente empurrado para os guetos e periferias urbanas com todo o rol de
condições de precaridade e de miséria a eles associados.
Na região do calçado a “pequena tradição” comunitária continuou a afirmar o seu
papel estruturante da cultura popular e a incutir-lhe abundantes elementos dos modos de
vida pré-modernos. A identidade de classe do operariado mantinha-se, pois, numa
situação de grande debilidade, uma vez que os trabalhadores da indústria permaneciam
pelo ‘pub’ e o ‘music hall’ ingleses, fazendo com que o lazer se tenha tornado uma esfera de consumo massificado e de despolitização da classe operária (Jones, 1989: 236).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
275
fortemente vinculados às identidades tradicionais128, o que lhes conferia, como atrás se
disse, contornos típicos de um semi-proletariado de características rurais.
Recorrendo aos relatos acerca dos usos do vestuário podem ilustrar-se algumas
formas de demarcação entre as classes superiores e populares, ao mesmo tempo que se
podem observar novos e interessantes elementos sobre os espaços quotidianos de
sociabilidade. São bem visíveis as distâncias sociais entre esses dois mundos. Para além
da ostentação de uns e da precaridade de outros – a oposição entre a ociosidade da
“classe de lazer” e a escassez das classes produtivas (Veblen, 1970) –, os usos do traje
por parte dos diferentes grupos sociais espelham também linhas de diferenciação social
muito significativas. Constituem, por exemplo, uma indicação fundamental de como as
formas de monitorização do corpo evocam o sentido estético e o poder simbólico que
nele se inscreve.
Enquanto nos estratos sociais superiores se tende a esbater a demarcação entre o
traje de passeio e o do dia-a-dia – de resto, uma redundância, tratando-se de uma classe
“ociosa” –, nos segmentos populares o vestuário domingueiro oscila por vezes entre os
usos tradicionais e a imitação das modalidades que se vão expandindo às classes
médias, muito embora esta última tendência fosse nesta altura ainda imperceptível, em
especial fora dos meios urbanos. De acordo com as fontes consultadas, as mulheres e
raparigas – por exemplo as trabalhadoras do campo ou “lavradeiras” – usavam, aos
domingos e sobretudo em dias de festa, saia preta com barra de veludo, blusa
normalmente de cor lisa e enfeitada com rendas e avental igualmente de renda, lenço de
lã estampada ou em cachené, chapéu preto de veludo, sem aba. Muitas vezes colocavam
um “lencinho bordado” ou iam sem avental. Em dias de trabalho usavam blusas com
flores estampadas, miudinhas, aventais de riscado e também de chita, tamancos e
chapéu velho de veludo preto. Por sua vez, o homem comum (o trabalhador) usava, em
dias de festa e ao domingo, fato de lã com jaqueta, colete e calça, cinta geralmente
preta, sempre de botas e chapéu de aba revirada para cima. Se havia romaria, os mais
novos usavam pompons, (borla esférica de fios de lã tosquiados) coletes garridos com
seda ou tecido adamascado. Se o rapaz era solteiro a cinta era, em princípio, muito mais
garrida. Nos dias de trabalho, os homens usavam camisas de riscado com “carcela” até
ao meio do peito, calças e coletes normalmente de tecidos rústicos, como os cotins em
tons de cinzento, com padrões às riscas, enquanto as costas eram de tecidos de riscado e
128 No caso em estudo, como veremos adiante, a desestruturação das identidades tradicionais serviu em
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
276
calçavam tamancos. Como agasalho o gabão, de “sorrudo” castanho, solto, ou atado
com tira do mesmo pano, ou cordão. Assim vestiam os trabalhadores do campo – a
maioria do povo da região (Mota, 1991: 289).
No caso das classes dominantes, os ricos proprietários de terras, por exemplo,
usavam nos passeios domingueiros ou em dias de festa, os chapéus de coco, o casaco
cintado, calça justa de riscas e calçavam botas de meio cano. No inverno era comum em
finais do século passado o uso do “gabão” que começou por ser apanágio dos lavradores
ricos. Também conhecido por “varino”, o gabão consistia de uma peça de pano forte
(em estamenha ou burel) de cor castanha ou negra, comprido até aos tornozelos, com
mangas largas e um capuz para cobrir a cabeça.
Na época balnear era possível contemplar a postura desta categoria social nos
passeios familiares de fim de tarde. A monografia do Furadouro retrata estes senhores,
em “passada firme”, com uma das mãos a agarrar a “fina bengala de bambú”, enquanto
a corrente de prata prende o “cebolão” (relógio) ao bolso do colete. Por vezes
“retorciam com deslevo as longas pontas da bigodaça ou acariciavam com esmerado
cuidado o pequeno ‘cavanhaque’ [pêra] que, na maior parte das vezes, emoldurava o
rosto. Fumavam um paivante [cigarro ou cigarrilha] com todos os vagares e trocavam
impressões sobre as últimas ocorrências municipais (…)” (Laranjeira,1984: 527-533).
Quanto às “damas” das classes superiores, apenas foi possível recolher uma referência
ao vestuário apropriado aos banhos de mar: “uma larga baeta solta, de flanela ou
estamenha azul ou castanha, aconchegada ao pescoço, de manga comprida e rematada
na parte inferior por uma fita branca de nastro. Geralmente a fatiota de banho
compunha-se de duas peças: blusa e calça comprida, a roçar o peito do pé, seguras estas
duas partes do vestuário por fortes e largos botões. Uma ou outra banhista calçava
chinelos de pano, seguros com cordões, enquanto a cabeça era defendida por uma
folhuda touca, apertada a toda a roda pela clássica fita branca, considerada “elemento de
reforço e segurança além de dar uma certa elegância”. (Laranjeira, 1984).
A utilização da praia (neste caso a praia do Furadouro)129 para fins de repouso ou
“retemperamento” era privilégio exclusivo das camadas sociais mais abastadas da
região. Muitas das famílias desses estratos aí despendiam uma parte do mês de
parte de alimento ao bairrismo que durante a 1ª República se foi desenvolvendo em SJM. 129 Este espaço foi, desde que tais actividades se começaram a expandir às classes médias e baixas, o lugar privilegiado pela população desta zona nas suas deslocações de férias ou nos fins-de-semana. Aí se viria a instalar, já nos anos 70, o “Parque de Campismo do Furadouro” que pertence ao Clube de Campismo de S. João da Madeira, fundado em 1953.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
277
Setembro. A população trabalhadora – o pequeno camponês, o artesão ou o assalariado
–, além de não possuírem os meios económicos para poderem despender semanas em
banhos de mar (ou em terapia termal), essa não era sequer uma aspiração. O contacto
com a praia obedecia a outros fundamentos.
O sentido espiritual e regenerador do banho era sobretudo justificado pelo
misticismo e religiosidade populares. A relação com o mar e a dimensão ritualista e festiva
evidenciada em acontecimentos como o “banho de S. João” parece marcada pelo sentido
de catarse colectiva que passava pela autoflagelação do corpo no contacto nocturno com
as águas. Quer as classes superiores quer as populares, fundamentavam as idas à praia por
razões de saúde fossem ou não acompanhadas por prescrição médica130, visto que, ao povo
bastava-lhe a crença místico-religiosa para justificar a necessidade e a eficácia
“terapêutica” do contacto com o mar (beatificado que estava pela influência do santo nas
datas ajustadas).
As famílias das classes superiores tomavam os seus banhos diários “de
manhãzinha cedo e em jejum” (entre a 7 e as 9 horas da manhã), com as temperaturas da
água bastante baixas. Nos relatos que consultei, referem-se as meninas e senhoras a
serem transportadas numa cadeira com o auxílio de dois banheiros que seguravam “a
paciente” e a mergulhavam nas águas logo que chegava a onda sem areias (chamada
“onda macha”). Faziam-no uma, duas ou três vezes conforme a resistência ou a
gravidade da doença a debelar. Algumas raparigas iam em correria de grupo ao encontro
das vagas, “com muitos gritinhos estridentes” e após o trémulo mergulho “sorviam em
largos haustos o ar fresco da manhã. Noutros casos, o banheiro arremessava a celha a
transbordar de água sobre o corpo da infeliz banhista que, quase desfalecida,
estremunhada de frio (…) mal conseguia esboçar um ai!” (Laranjeira, 1984).
Quanto às “classes populares”, os “banhos de S. João” constituíam nessa época,
uma das poucas ocasiões em que o mergulho nas águas salgadas se generalizava e era
colectivamente partilhado pelas populações. A popularidade e fama deste ritual festivo,
de acordo com a fonte consultada, “pedia meças a qualquer festarola das redondezas”.
Recorrendo aos mais diversos meios de transporte, as populações afluíam à praia em
grandes grupos e tomavam o banho colectivo à meia-noite, num ambiente de “grande
euforia” colectiva. Segundo a crença popular, o “banho santo” destinava-se a expurgar
130 No caso das estâncias termais, como assinala Claudino Ferreira, a sua ocupação pelas classes populares fundava-se sobretudo na prescrição medicinal, enquanto as classes superiores se orientavam mais para o lazer e o ócio (Ferreira, 1995).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
278
ou prevenir os vários tipos de febres, mazelas, ataques das viroses e outros males
demoníacos (Laranjeira, 1984: 527-533).
Estes registos não esgotam, obviamente, a enorme heterogeneidade e
complexidade de práticas culturais e recreativas das comunidades desta região – num
período em que as grandes transformações socioeconómicas operadas na sociedade
portuguesa penetravam cada vez mais os diferentes campos da vida social –, mas
ilustram o significado social das actividades lúdicas das populações desta zona. Embora
o núcleo de concentração industrial de SJM não constituísse um espaço urbano de
grande dimensão, era já inegável o crescente impacto da actividade fabril. A aceleração
dos fluxos de mobilidade entre os diversos lugares e vilas da região, a interconexão
entre estilos de vida tradicionais e a difusão mercantil e comercial para a orla das
comunidades rurais, etc., foram modelando as práticas e referências identitárias do
semi-operariado cujos modelos culturais de enquadramento se tornavam, assim, cada
vez mais amplos, maleáveis e diversificados, muito embora o impacto da cultura
operária e da luta sindical estivesse longe de se assemelhar aos contextos de grande
concentração industrial e urbana. Como já referi, as experiências desse tipo surgiram
pontualmente em SJM, mas foram em larga medida disseminadas pelos ambientes
rurais pré-existentes. A emergência do discurso bairrista em torno da vila nos princípios
do século é apenas mais um elemento de complexidade que deve ser considerado a este
propósito.
4.2.3 - O discurso bairrista e o novo estatuto de vila e de concelho
Entre as circunstâncias históricas que levaram SJM a constituir um exemplo bem
sucedido de industrialização destaca-se o facto de estar situada junto das principais vias
de comunicação que ligavam as cidades mais importantes da faixa litoral (Lisboa,
Coimbra, Aveiro, Porto)131. Essa localização privilegiada terá permitido aos
sanjoanenses desenvolver canais de comercialização bastante eficazes, nomeadamente
de produtos agro-pecuários produzidos na zona, como por exemplo, o caso da manteiga
(L. Costa, 1987) e, a partir de finais do século, também do calçado e da chapelaria.
Apesar dos limites acanhados do concelho (e única freguesia), SJM apresentou um
grande crescimento demográfico ao longo deste século132, em grande parte resultante
131 Não só as estradas como a via férrea que chegou aí nos princípios do século (1908). 132 A sua população presente evoluiu da seguinte forma: 4.400 habitantes (números aproximados) em 1920, para 5.400 (1930); 7.400 (1940); 9.200 (1950); 11.900 (1960); 14.000 (1970); 16.200 (1981); 18.452 (1991) (Fonte: Caetano, 1986, vol. II; e INE, Censos de 1991) (ver Capítulo 3).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
279
dessa actividade comercial e do desenvolvimento industrial assinalado. O forte efeito de
atracção que estas actividades exerceram sobre as populações vizinhas deu lugar a
significativos fluxos de migração pendular, fazendo aumentar largamente a população
flutuante da localidade. Este dinamismo económico e a conquista da autonomia
concelhia – subtraíndo-se, assim, ao concelho da vizinha Oliveira de Azeméis –
contribuíram para acirrar a rivalidade relativamente àquela localidade133.
Efectivamente, o crescimento demográfico de SJM desde cedo reflectiu a sua
capacidade de atracção das populações rurais da região e a vila rapidamente cresceu até
aos limites do concelho (de apenas 6,5 km2), que hoje coincidem com os da cidade134. O
discurso localista ou “bairrista” foi largamente justificado por efectivos acréscimos de
bem-estar material da população no seu conjunto e daí o importante significado desse
discurso no sentir do povo sanjoanense.
Desde que surgiram em SJM os primeiros empresários, os seus propósitos
modernizantes sempre se afirmaram em nome de valores de cariz filantrópico, apelando
à lealdade e ao “espírito empreendedor” dos trabalhadores locais, louvando a iniciativa e
abnegação das “gentes sanjoanenses” em prol do “progresso” da sua terra, o que
permitiu que o desenvolvimento económico se revestisse cada vez mais de uma retórica
paternalista e “bairrista”. Nos primeiros anos do regime republicano os grupos de
“notáveis” conseguiram mobilizar largos sectores da população trabalhadora para
reivindicarem junto dos poderes públicos o estatuto de vila e de concelho. A capacidade
unificadora desse discurso, quer dizer, a sua força ideológica, impôs-se sobre a bandeira
do trabalho e em nome dos objectivos do progresso e da modernização. Os próprios
períodos de crise em que os problemas sociais e as clivagens de classe se tornaram mais
visíveis foram incorporados por essa linguagem bairrista e paternalista – sem dúvida, o
melhor lenitivo contra a linguagem classista e sindical – e sempre secundada pela
actividade de beneficência dos endinheirados “notáveis” locais. A promoção a concelho
surge, assim, em 1926, como o resultado “natural” do desenvolvimento industrial da
vila. No preâmbulo do decreto-lei que consumou essa decisão (Dec. Lei de 11 de
Outubro de 1926), pode notar-se o reconhecimento oficial do significado económico da
vila:
133 Mais recentemente voltou a verificar-se uma situação semlhante por ocasião da obtenção do estatuto de cidade, atribuído em simultâneo a ambas as povoações (aprovado na Assembleia da República em Maio de 1984). 134 Além de S. João da Madeira, esta situação só acontece com as cidades de Lisboa, Porto e Entroncamento (cf. Salgueiro, 1992).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
280
“Considerando que a Vila e freguesia de S. João da Madeira, do concelho de Oliveira de Azeméis, com as suas numerosas fábricas e oficinas, que empregam alguns milhares de operários, constitui hoje o centro industrial mais importante do distrito de Aveiro e sustenta activas e grandes transacções com o país e as colónias, para o que dispõe de meios de comunicação, mantendo também muito notáveis e benéficas instituições de carácter social, criadas pela iniciativa particular; Considerando que o desenvolvimento económico e social de S. João da Madeira está sendo prejudicado, pela sua inferior categoria administrativa a qual não permite a criação dos estabelecimentos de crédito indispensáveis ao seu movimento industrial, à realização de medidas de carácter higiénico e social em benefício da população, como o abastecimento e canalização de águas, a construção de casas económicas para operários e o desenvolvimento de outras instituições já existentes; (…)” (Revista Aveiro e o seu Distrito, edição da Junta Distrital de Aveiro, 1973).
Esta importante vitória era o culminar da adesão da população trabalhadora a um
discurso que parecia adequar-se bem às características rurais e artesanais do semi-
proletariado emergente. Ao conseguir canalizar grande parte das representações e
expectativas colectivas das populações para o reforço da identidade local e do
sentimento “bairrista”, tal orientação teve como correlato o progressivo definhar da já
débil identificação popular com a cultura operária e sindical. Mesmo nos momentos de
maior agitação reivindicativa dos princípios do século, a fragilidade do sindicalismo
autónomo levou a que, como vimos atrás, os sentimentos de luta fossem mais animados
pela oposição entre “grandes” e “pequenos” patrões, do que, de um modo genérico,
entre patrões e operários. Este aspecto foi-se acentuando à medida que se assistiu ao
crescimento do sector do calçado, um ramo onde, como sabemos, predominam os
pequenos patrões. Deste modo, o discurso favorável à identidade local converteu-se em
ideologia bairrista ao serviço da burguesia local e apoiada no pequeno patronato e nos
sectores da classe média em desenvolvimento.
É importante referir o papel que tiveram algumas das referidas figuras de
“notáveis” em SJM nas primeiras décadas deste século – no contexto de conquista da
autonomia municipal – e que, por isso mesmo, são hoje celebradas como os grandes
beneméritos e arautos do desenvolvimento local. Isto, tanto no campo económico como
no que diz respeito à fundação de algumas das principais instituições locais de protecção
social. Esta vertente é reveladora de como a sociedade local se movimentou numa
direcção que, partindo das iniciativas das elites privilegiadas e aparentemente orientada
por valores de carácter assistencial, parecia ir ao encontro das necessidades económicas
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
281
dos grupos mais desapossados. Tais iniciativas, ao intervirem na protecção social da
população trabalhadora, desempenharam ao mesmo tempo um papel civilizacional de
relevo, no sentido em que se afirmaram como elementos apaziguadores das potenciais
clivagens e conflitos de classe, contribuindo dessa forma para o aperfeiçoamento dos
instrumentos locais de enquadramento.
Como se pode verificar consultando a lista de “beneméritos” (ver Anexo 1), uma
parte da riqueza económica destes sanjoanenses foi conseguida através da emigração
para o Brasil na segunda metade do século passado. A sua ligação cultural à região
trouxe muitos de volta e/ou manteve-os em permanente contacto com a terra. No apoio
às instituições de assistência parece por vezes residir uma disputa pelo prestígio em
concorrência com o sector nobiliárquico dos herdeiros das casas senhoriais da freguesia,
através dos títulos – “Conde”, “Visconde”, “Comendador” – conseguidos à custa do
sucesso económico com o qual puderam afirmar o seu “altruísmo” em favor do povo e
dos seus sectores mais desfavorecidos.
Porém, as iniciativas locais não se limitaram aos auxílios pecuniários dos
“notáveis” que fizeram fortuna no Brasil. Da documentação consultada sobressai uma
longa lista de personalidades que se destacaram pela sua iniciativa, quer na capacidade
de coordenar esforços para fazer face às dificuldades com base nos próprios recursos da
população, quer na sua força reivindicativa, pressionando as instituições governativas e
o Estado no sentido de obter benefícios para a localidade.
Várias foram as comissões que se constituíram e as iniciativas de carácter social
levadas a cabo desde os princípios do século: a Comissão de Construção do Hospital,
criada por delegação do benemérito Francisco José Luís Ribeiro, por vontade
testamental e após a sua morte (em 1913), tendo o hospital sido concluído em 1915; a
fundação da Santa Casa da Misericórdia (1921), na qual se integrou o anterior hospital e
que permitiu a sua ampliação135; a Associação Desportiva Sanjoanense (1924); o Grupo
135 A criação do Asilo-Creche, por iniciativa de António José de Oliveira Júnior (1926); a Maternidade de Santa Maria, financiada pelo Conde de Dias Garcia (1926); a criação do Banco Hospitalar, com consultas e serviços de urgência destinados aos pobres (1928); e o Recolhimento de Velhos Inválidos, também apoiado pelo Conde Dias Garcia (1930). O Hospital e sua ampliação foram edificados com os fundos fornecidos pela colónia de sanjoanenses no Brasil (além de Dias Garcia): Viscondessa de SJM; Albino Bordalo Garcia; Manuel Ferreira Azevedo Garcia; Manuel e Joaquim Dias Garcia; Albino e Manuel F. Dias Garcia; António e Manuel Leite da Silva Garcia; e Manuel Gomes da Costa (Martins e Sousa, 1944). Apesar destes melhoramentos, o velho hospital rapidamente se revelaria insuficiente perante as necessidades da população. Por isso no início dos anos 50 consolida-se a ideia de construir um novo hospital. Uma vez mais o esforço de alguns beneméritos foi decisivo para que esta inciativa pudesse ter êxito, a qual teve também o apoio da Santa Casa e do Estado. Os industriais António Pinto de Oliveira, Benjamim Valentim da Silva e António Espírito Santo Diamantino doaram o terreno para o
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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Patriótico Sanjoanense136 que lutou pela elevação ao estatuto de Vila (1924) e de
Concelho (1926); no âmbito da Santa Casa da Misericórdia e funcionando nas
instalações do hospital, foi criado o Asilo-Creche Santo António (1926), dedicado ao
abrigo de órfãos; a Maternidade de Santa Maria, também integrada na Santa Casa
(1928), destinada ao auxílio das parturientes pobres; a criação do Banco Hospitalar
(1928); a comissão que fundou a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários
de SJM (1928); a fundação do Colégio Castilho, onde se leccionaram os vários níveis de
ensino, desde o primário ao secundário e comercial (1929); a “Comissão Pró-Parque”
que promoveu o arranjo da mata e logradouros (por iniciativa de Serafim Leite e da
Junta de Freguesia) e ainda a construção da capela de Nossa Senhora dos Milagres,
situada no parque com o mesmo nome (1930); a Comissão da Conferência de S. Vicente
de Paulo que nos anos 40 viria a promover uma nova creche para as crianças pobres,
com o apoio de emigrantes do Rio de Janeiro. A estas iniciativas, outras se seguiram ao
longo dos anos. Em tais acções estava presente uma orientação marcadamente
paternalista e caritativa, em particular dirigida à sublinhada precaridade da “situação
material dos operários”. Uma das monografias que consultei refere-se ao período dos
anos 20 e 30 como uma época em que se procuraram conjugar esforços visando
desenvolver alguns mecanismos de protecção, como a “fixação de salários mínimos,
contratos colectivos de trabalho, higiene e segurança nas fábricas, prevenção dos
acidentes de trabalho e doenças profissionais e elevação do padrão de vida geral”
(Martins e Sousa, 1944). Curioso é também o facto de ter sido um clérico – o padre
jesuíta Serafim Leite – a revelar em primeiro lugar uma atenção aos aspectos lúdicos e
de repouso como factor a considerar no campo da intervenção social, ao alertar, em
1926, para as “vantagens da construção dum parque que servisse para distracção e
retemperar as forças do operariado e de toda a pessoa que trabalha” (Revista Vida
Portuguesa, 1985).
Ao longo deste capítulo procurei ilustrar algumas das dinâmicas culturais e
socioeconómicas que tiveram lugar nesta região desde finais do século passado até
efeito, a Santa Casa da Misericórdia coordenou o processo através do seu Provedor local (António José Pinto de Oliveira primeiro, e Benjamim Valente da Silva depois) e o Estado, através dos Ministérios das Obras Públicas e da Saúde e Assistência, teve a maior comparticipação fianceira. O Hospital Novo foi oficialmente inaugurado no dia 25 de Outubro de 1966. 136 Do qual fizeram parte: Dr. Renato Araújo; António Henriques; Genuíno Silva; Dr. Joaquim Milheiro; Manuel Luís da Costa; Inocêncio Leal; José Correia; Padre Almeida e Pinho; Augusto Palmares. Este último, industrial de chapelaria, foi quem, juntamente com o Dr. Renato Araújo constituiu a comissão
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finais da década de vinte deste século. Tais dinâmicas traduziram-se, por um lado, na
estruturação de novas clivagens classistas induzidas pela penetração industrial e pela
emergência das estruturas sindicais e da linguagem de classe, embora as principais lutas
operárias aí despoletadas continuassem a ser animadas por uma lógica pré-moderna e de
resistência à mecanização. Por outro lado, os impactos da actividade mercantil e
industrial sobre as identidades tradicionais foi visível na esfera das práticas culturais e
das actividades festivas e traduziu-se em novos e mais complexos padrões de
enquadramento sociocultural. Apesar desse processo não deixar de revelar o apego
popular aos costumes do passado e até aspectos ilustrativos do novo sentido de rebeldia
associado à experiência fabril, o discurso moralista e bairrista promovido pelas novas
elites locais, bem como as velhas afinidades de cariz paternalista vigentes nas
comunidades e na produção artesanal, contribuíram para neutralizar a identidade de
classe emergente e fragilizar a sua capacidade mobilizadora, mantendo-se as
subjectividades do semi-operariado em larga medida subordinadas à lógica local e aos
interesses patronais personificados pelas proeminentes figuras de “beneméritos”.
que, em reunião com representantes do governo, apresentou os argumentos para a realização daquele “acto de justiça” (Revista Vida Portuguesa, Out., Nov., Dez./1985).
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Capítulo 5
SOB A TUTELA DO ESTADO NOVO: ACÇÃO COLECTIVA E PRÁTICAS DE LAZER, ENTRE A REGULAÇÃO E A RESISTÊNCIA
Continuando a centrar-me nos processos de articulação entre a indústria e a
comunidade, passarei agora a dar maior atenção ao papel do Estado durante o regime
salazarista, e à forma como ele se conjugou com certas forças de base local para levar a
cabo a sua acção reguladora e disciplinar junto dos trabalhadores e das populações da
região. Na primeira parte deste capítulo refiro-me à reorganização industrial levada a
cabo a partir de finais dos anos 20, destacando o caso da chapelaria e do calçado, bem
como a empresa de máquinas de costura “Oliva”, dada a sua estreita vinculação à
política do “condicionamento industrial” e o seu significado a nível local. A partir das
biografias de dois destacados activistas locais procurarei ilustrar alguns momentos da
resistência político-sindical na clandestinidade. Na parte final do capítulo pretende-se
retratar certos cenários do quotidiano de SJM, em especial nos anos quarenta e
cinquenta e no que se refere ao campo do lazer e tempos-livres. A forma como o Estado
Novo – através da sua doutrina conservadora – procurou modelar as práticas culturais
das populações é abordada a partir do discurso moralista e da postura “civilizada” das
elites locais em relação a certos hábitos populares, aspectos estes que serão observados
a partir de extractos de artigos da imprensa local.
5.1 - Impactos locais do condicionamento industrial
Em termos económicos, a sociedade portuguesa encontrava-se em finais dos anos
20 numa situação de grande debilidade, arrastando ainda os mesmos problemas que
remontavam ao último quartel do século passado. Apesar do desenvolvimento
verificado em alguns sectores produtivos (têxtil, químico, moagens, curtumes,
conservas, etc.), quer a ausência de uma política de modernização da agricultura, quer o
não incentivo ao desenvolvimento de certos sectores básicos da indústria durante as
primeiras décadas deste século (como a siderurgia e o ramo energético, por exemplo),
contribuíram para o carácter desequilibrado e até especulativo do capitalismo português
neste período (Silveira, 1982: 344)137. Alguns analistas (Rosas, 1992) consideram que as
137 Como é sabido, a doutrina salazarista rejeitou e combateu o liberalismo por recear que este expandisse na sociedade o chamava de “interesses imediatos e particularistas”, isto é, quer os interesses dos sectores mais dinâmicos da burguesia industrial, quer os interesses do movimento operário e do sindicalismo autónomo, isto em nome dos superiores interesses do Estado e da nação. Mas, apesar da propaganda
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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medidas de política económica seguidas durante a primeira fase do Estado Novo foram,
acima de tudo, respostas de carácter conjuntural: umas dirigidas às contradições e
indefinições estruturais a nível interno, e outras à crise internacional pós-1929, a nível
externo. Levar por diante um programa coerente com as bases ideológico-doutrinárias
do novo regime e ao mesmo tempo pôr em ordem as inúmeras contradições
socioeconómicas que atravessavam o país, não era tarefa fácil: liberalismo económico e
intervencionismo estatal, interesses da burguesia agrária e das fracções ligadas à
indústria, problemas da produção e do comércio, interesses do capital e do trabalho,
interesse nacional e interesse privado, progresso técnico e ordem moral, etc., constituem
alguns dos antagonismos que mais contribuíram para protelar a definição de uma
verdadeira “política industrial” do Estado Novo. Segundo Fernando Rosas, só a partir
do pós-guerra essa estratégia se tornou relativamente clara.
Em S. João da Madeira, as consequências mais notórias do novo regime fizeram-
se sentir no desmantelamento do sindicalismo autónomo e na reorganização dos sectores
industriais mais influentes a nível local, tais como as indústrias de chapelaria, de
cortadoria e do pêlo, do calçado e ainda do ramo metalúrgico, através da empresa
“Oliva”. A tutela estatal e a sua tentativa de proteger os sectores mais viáveis da
economia – para além das contradições no terreno burocrático e administrativo138 –
passou pelo incremento da política de favores e de “compadrio” com que uma pequena
fracção da burguesia industrial foi contemplada pelo salazarismo139. A política de
reordenamento industrial foi desenvolvida em conjugação com representantes dos
proprietários, os quais não deixaram em certas ocasiões de levantar dúvidas e até
nacionalista e da recusa do regime em proceder a uma industrialização moderna, a defesa dos interesses da classe capitalista é bem visível em diversas passagens dos discursos de Salazar a referência a seres “superiores”, como os detentores da riqueza: o “homem rico” e o “produtor rico”, é considerado como “uma espécie de administrador dos bens dos incapazes, tornando fecunda a riqueza pela sua acção, pela sua iniciativa, pelas suas qualidades de dirigente e de chefe” (in Marques, 1980: 37). 138 Como procurou mostrar Rui Ramos (1986), ao estudar as relações entre o Governo central e o Governador Civil de Vila Real, apesar da natureza autocrática do Estado Novo, não deixaram de existir elementos contraditórios e de negociação entre diferentes sensibilidades políticas ou interesses privados. “A complexa rede de Administração territorial, a multiplicidade de instituições oficiais de vária natureza e a babel burocrática acabavam por tornar esse Estado, aparentemente centralizado e reduzido a um comando único, um espaço muito fluído, poroso, em cujas múltiplas cavidades e articulações os interesses privados e regionais encontravam meios de cultura própria para funcionarem como poderes” (Ramos, 1986: 13). 139 A empresa metalomecânica Oliva tem sido apontada como um dos casos de atenção e de favorecimento do Governo de Salazar. A íntima ligação que foi estabelecida entre a acção da FNAT e o Organismo Recreativo da Oliva, confirma esta simbiose. Ao lado dela surgem nomes como a Companhia Portuguesa de Celulose, a Fábrica Têxtil de Vizela, a Fábrica de Cerâmica de Valadares, a Fábrica de Loiças de Sacavém, etc. (Loureiro, 1991).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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timidamente insinuar desacordos perante a metodologia seguida pelos representantes
estatais.
O sector da chapelaria
É só nos finais dos anos 30 que surgem os programas de reestruturação, a cargo de
Comissões de Reorganização nomeadas oficialmente, por decreto governamental. Para a
indústria de chapelaria foi criada em 1938 uma destas comissões, já que o referido
sector se vinha progressivamente concentrando em S. João da Madeira, em particular
desde o início dos anos 30. Segundo Ferreira dos Santos (1948: 17), no princípio da
década de 40 estavam aí sediadas 75% das unidades fabris e 80% da produção nacional
de chapéus (por exemplo no ano de 1945 produziram-se 891.916 peças no distrito de
Aveiro para um total nacional de 1.128.385), empregando 1212 operários (num total de
1775 trabalhadores a nível nacional). A crise da chapelaria estava directamente ligada ao
problema da escassez e da qualidade das matérias-primas, como era o caso das peles
cujo processo de preparação, secagem e tratamento químico constituíam um campo
específico que exigia recursos técnicos próprios. A partir de 1941, a referida comissão
viria a encarregar-se também da reorganização da Indústria do pêlo e da cortadoria, uma
vez que os problemas do sector chapeleiro estavam estreitamente ligados àquele
sector140. Na sequência do trabalho da referida comissão, foi decidida a fusão das
pequenas e dispersas unidades numa única empresa que ficou sediada naquela vila: a
Cortadoria Nacional do Pêlo, L.da.141
Apesar do enquadramento legal e dos moldes autoritários em que tais processos
assentavam, nem sempre a acção das delegações oficiais de reorganização obtinha o
total acordo dos industriais da terra. Ao secundarizarem por completo o poder e a
iniciativa de muitos proprietários locais, algumas intervenções e comentários públicos
de condenação chegaram a surgir como uma forma de resistência dos interesses locais
140 Em particular ao problema das importações de matéria-prima, agravado pelo clima de guerra na Europa, pondo a claro a situação caótica que se vivia na indústria de peles. 141 Em 15 de Setembro de 1943 foi publicada em Diário do Governo (Dec. nº 33.049) a autorização para a concentração das indústrias de cortadoria, mas só em Maio de 1944 foi efectivamente criada a nova companhia, com um capital de três mil contos. Refira-se ainda que esta reestruturação redundou na absorção das antigas unidades existentes não só em S. João da Madeira mas também em Braga, na altura o segundo maior pólo da indústria (bem como da chapelaria). Por isso, a Cortadoria Nacional do Pêlo manteve também em funcionamento uma secção naquela cidade até à altura da sua falência e encerramento, em 1964. Em 1960 seria inaugurado um novo edifício na sede de S. João da Madeira o que reflecte a evolução que ao longo desses anos a indústria foi alcançando, evolução essa que ficou a dever-se não só ao esforço de aperfeiçoamento técnico verificado a partir dos anos 40, mas também ao crescimento da produção de pêlo destinada à indústria de lanifícios, durante a década seguinte e a uma penetração no mercado internacional (França, Inglaterra, Turquia, Canadá, Bélgica) que no início dos anos 60 começou a ser significativa (cf. Amaral, 1967; e F. dos Santos, 1948).
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face à arrogância do Estado. Um leitor “anónimo” citado no jornal O Regional, socorria-
se de passagens dos discursos de Salazar para contestar – embora com a timidez e o
“respeito” que convinha acautelar – o modo centralista com que os representantes
governamentais actuavam: “ninguém hoje se lembra de, numa economia nacional que se
pretende ordenada, estabelecer como princípio fundamental a concorrência sem limites.
Por outro lado, o monopólio assusta – assusta porque tende para o abuso, como toda a
força descontrolada, porque tende para a estagnação, como toda a actividade sem
estímulo, porque, como disse Poincaré, onde está o monopólio, aí começa o socialismo
(…)”. Ao citar estas palavras de Salazar, o referido proprietário chapeleiro não deixou
de sublinhar que os industriais “aceitam a reorganização, mas querem-na mais humana e
mais justa. Querem que os deixem administrar aquilo que é seu e que estranhos nunca o
poderiam fazer melhor” (Jornal O Regional, 31/10/1948).
Não obstante os resultados conseguidos na exportação, cujo aumento maior se
verificou entre os anos 1943-46 (alcançando números anuais superiores a 350 mil peças
exportadas), a produção chapeleira desceu depois para níveis muito mais baixos na
década de 50142. O consumo interno, que, nos anos 30, se situou em torno dos 800 mil
chapéus por ano, baixou bastante a partir de meados do século, agravando as
dificuldades desta indústria devido, entre outros factores, ao fenómeno da moda. Os
industriais do sector falavam então da “moda dos descarapuçados”. Uma “moda” que,
apesar dos esforços em contrário, se tornou avassaladora para a chapelaria, visto que o
uso generalizado do chapéu foi desaparecendo de modo irreversível.
O crescimento do sector do calçado
Ao longo deste período, e principalmente a partir da década de 30, outros sectores
industriais vinham a ganhar peso e significado em S. João da Madeira, entre os quais as
indústrias do calçado e da metalurgia143 que cada vez mais disputavam à chapelaria a
posição hegemónica no que toca à absorção de mão-de-obra e ao peso económico que
foram conquistando no tecido industrial da região. Como referi antes, a indústria do
calçado começou a crescer significativamente em S. João da Madeira nos princípios dos
anos 20. As características artesanais deste sector e a sua enorme mobilidade, tornam
142 Situando-se as exportações em valores que rondavam as 25 mil unidades e a produção global na ordem dos 500 mil, para voltar a subir nos anos 60, com a exportação a estacionar em valores próximos dos 130 mil, a partir da entrada de Portugal na EFTA. 143 Além destas actividades podem destacar-se outras indústrias neste período existentes em S. João da Madeira: indústria têxtil; madeiras; fabrico de lápis de escrever; brinquedos (em madeira e chapa); velas
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praticamente impossível uma quantificação rigorosa do número de unidades e de
trabalhadores144. Umas fontes referem que nos princípios dos anos 30 existiam nesta vila
22 fábricas de calçado, número que foi aumentando para 70 em 1940, e 110 em 1949 (O
Regional de 31/7/85), outras indicam números bastante inferiores, registando uma
evolução de 4 para 16 empresas ao longo da década de 20, crescendo para 39 unidades
em 1940, 61 em 1945, 106 em 1950 e 116 em 1959 (Graça, 1960)145. Segundo os dados
de 1940, o número total de trabalhadores do calçado para esse ano, era de 2.000 pessoas,
sensivelmente o dobro da quantidade ocupada na chapelaria. Isto numa altura em que a
população activa do concelho era de 2.810 pessoas, a comprovar que a capacidade de
absorção de mão-de-obra deste pequeno núcleo industrial transcendia os limites do
concelho146 (Martins e Sousa, 1944: 118).
A capacidade atractiva da indústria de S. João da Madeira sobre as populações
vizinhas era, de facto, notável já neste período, ocupando as actividades produtivas que
aqui tenho procurado destacar os principais focos de atracção da força de trabalho
arrancada às suas raízes rurais. Um inquérito municipal realizado em 1953 registou que
2.657 trabalhadores se deslocavam diariamente dos lugares mais variados dos concelhos
circundantes para trabalhar nas fábricas da vila147.
Apesar da conhecida política de contenção do desenvolvimento industrial, a
actividade económica destes sectores permitiu que a localidade continuasse a ser
apontada como exemplar a esse nível. Vejamos uma imagem emblemática que os
relatores locais gostam de referir, por ela retratar, a seus olhos, a caminhada dos
sanjoanenses no sentido do progresso e da modernização.
“Pelas 7,30 horas da manhã ou a partir das 5h da tarde, é um espectáculo impressionante ver o buliço das ruas e largos, numa avalanche de operários que
de cera; fabrico de chapéus de chuva; papelão e cartonagem; e outras ligadas ao calçado como é o caso das borrachas, tintas e vernizes, tratamento de peles, etc.. 144 Por isso se compreende que diferentes fontes revelem, por vezes, discrepâncias enormes. 145 Quanto à evolução da produção, segundo a monografia de S. João da Madeira, ela foi de 160 mil pares em 1934, 170 mil em 1935, 200 mil em 1938 e 210 mil em 1939 (Martins e Sousa, 1944). 146 Segundo os dados oficiais, citados pela monografia local, a população total de S. João da Madeira era, em 1940 de 7.398 habitantes, dos quais 2.583 tinham menos de 14 anos. Recorde-se que o concelho, criado em 1926 possui uma única freguesia circunscrita a uma área de apenas 6,48 km2 (coincidente com os limites urbanos da povoação) o que o tornava, já nessa altura, um dos concelhos de maior densidade populacional, com 1.141,7 h/km2. 147 Segundo Graça (1960), os principais lugares de proveniência dos trabalhadores são os seguintes: Ul, Oliveira de Azeméis, Santiago de Riba-Ul, S. Martinho da Gândara, Cucujães, Vila Chã de S. Roque, Pindelo, Carregosa, Nogueira do Cravo, Cesar, Fajões, Macieira de Sarnes (do concelho de Oliveira de Azeméis); Arrifana, Escapães, Sanfins, Fornos, Mosteirô, Vila da Feira, Milheirós de Poiares, Espargo, Pigeiros, Romariz, Souto (do concelho de Vila da Feira); Codal, Vila Cova do Parrinho, Vale de Cambra (concelho de Vale de Cambra); Escariz (concelho de Arouca); S. Vicente de Pereira (concelho de Ovar).
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enche as estradas e caminhos da freguesia em direcção às fábricas ou de regresso a casa. À hora de almoço a animação é dominada pelo desfile de mulheres, com os cestos à cabeça, transportando o almoço para os seus ‘homens’, pais ou irmãos. É na verdade um panorama cheio de cor, de vida e ‘pitoresco’. Depois, é um espalhar alegre por todos os locais que possam servir para merendar, pois os refeitórios quase não existem! (…)” (Martins e Sousa, 1944). Para além do retrato social que sobressai neste tipo de descrições, é importante
reparar na carga valorativa – e por vezes abertamente moralista – destes observadores148,
um elemento fundamental com que a doutrina oficial procedeu à pintura do regime,
num quadro de exaltação das virtudes do trabalho destinado a obscurecer os seus efeitos
mais dramáticos. Mas, apesar do viés apologético destes testemunhos, o observador
local não deixa de evidenciar algum paternalismo face à realidade do mundo operário, o
que se liga também ao fenómeno do bairrismo, já assinalado. O caso do calçado, pelas
características particulares já referidas, foi-se tornando um poderoso factor de
mobilidade profissional, nomeadamente das comunidades agrícolas para o sector
industrial. Além de, numa primeira fase, ter absorvido volumes significativos de força
de trabalho recrutada nos meios rurais, começou ele próprio a expandir-se para as
comunidades envolventes, numa segunda fase. A partir de finais dos anos trinta e ao
longo das décadas seguintes, as pequenas unidades de fabrico de calçado – as chamadas
“sapatarias” ou “fabriquetas” – estendiam-se cada vez mais às diferentes aldeias e
freguesias vizinhas: Arrifana, S. Tiago de Riba-Ul, Fiães, Escapães, Nogueira do Cravo,
etc. Espaços de reduzidas dimensões, com recursos técnicos insipientes e em geral de
carácter doméstico, como as que ainda hoje proliferam na região, mas que em alguns
casos deram lugar a verdadeiras fábricas. Alguns documentos da década de 40 relatam
que nessa época era frequente “ver-se um operário guindado à categoria de patrão,
graças às suas aptidões para o trabalho e iniciativa” (Martins e Sousa, 1944: 102). Daí a
concorrência que se desencadeou no seio do sector – principalmente nesta parcela das
minúsculas “fabriquetas” que se instalam em condições mais rudimentares – o que,
aliado à falta de preparação e espírito empresarial e ao desejo obsessivo de lucro fácil de
muitos dos pequenos patrões levava a que, com a mesma facilidade com que surgiam,
desaparecessem sem deixar rasto. Este aspecto prende-se também com as situações de
abuso, a total ausência de regalias para os operários, as condições desumanas em que
148 Retomarei esta questão na segunda parte deste capítulo (ponto 5.2), a propósito da dimensão recreativa.
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funcionavam estas unidades, a exploração de mão-de-obra infantil, etc., fenómenos que,
como se sabe, continuam presentes na região.
Todavia, apesar do crescimento do número de fábricas não ter abrandado no pós-
guerra (de 1945 até ao final da década houve um aumento de 45 fábricas e o número de
operários no sector do calçado atingiu os 7.000), no final dos anos 40 a crise económica
e a falta de escoamento dos produtos ameaçou o sector e trouxe o desemprego, a miséria
e a fome a SJM. Os empresários locais mais influentes organizaram-se, criando a
“Comissão de Defesa da Indústria do Calçado” que se propunha tomar em mãos o papel
de coordenação e dinamização que o “Grémio dos Industriais de Calçado” não estava a
cumprir. Segundo as queixas de alguns industriais, aquele órgão corporativo estava
praticamente inactivo. Aquela Comissão chegou a dirigir-se a Salazar, numa exposição
(em 24/3/49) que apelava à intervenção estatal a fim de ser encontrada solução para os
problemas que o sector atravessava: começava por fazer os convenientes elogios ao
Presidente do Conselho, considerando-o “o Homem que dumas terras abandonadas
levantou um dos Impérios mais florescentes e respeitados do mundo inteiro”, e a seguir
acrescentavam: “(…) no momento em que estão prestes a empalidecer e a murchar
alguns frutos desse formidável trabalho de ressurgimento nacional e [por essa razão
pediam] a atenção do Mestre para os graves problemas que afligem a indústria”.
Realçando os avanços conseguidos antes da II Guerra Mundial na afirmação dos seus
produtos no estrangeiro e sem deixar de recordar que “já há quatro” esperavam pela
concretização de um ofício onde se prometia que “o assunto da exportação está sendo
estudado”, expunham a situação do sector, em seis pontos:
“1 - A fome, a verdadeira crise, já entrou nos lares de sete mil operários que trabalham na indústria do calçado.
2 - Os patrões mantiveram até agora as oficinas em laboração durante 2 ou 3 dias por semana.
3 - Fechadas definitivamente as portas do crédito, os industriais não podem pagar salários, nem solver os compromissos comerciais com outros sectores.
4 - A tuberculose, provocada por deficiente alimentação, já atingiu cerca de 80% da população operária.
5 - Para o rendimento líquido de 8.000 contos que o Estado colhe anualmente, S. João da Madeira concorre com 45%.
6 - S. João da Madeira tem actualmente em stock mais de cem mil pares de calçado, cuja venda urgente é o único remédio capaz de evitar a falência de 63 dos 110 estabelecimentos industriais que ali se dedicam ao fabrico do calçado” (Jornal O Regional, 14/8/1949, p. 2).
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Estas iniciativas não obtiveram, evidentemente, a resposta desejada por parte de
Salazar. Só a entreajuda e a caridade das instituições locais de assistência e de alguns
dos mais influentes notáveis atenuaram a miséria e a doença que a classe trabalhadora
da região atravessou neste período. Já no início dos anos 60, o governo interviu
(Portaria nº 17.880 de 4/8/1960) através do Ministério da Economia, no sentido de “pôr
em ordem” o sector do calçado, para o que se propunha suprimir algumas fábricas sem
viabilidade e incrementar a componente mecânica das mais viáveis.
O maior esforço de modernização do sector está, porém, relacionado com a
criação da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA, fundada em Janeiro de
1959) a que Portugal aderiu. A abertura da economia ao comércio internacional veio
permitir a introdução de tecnologias mais avançadas e concorrenciais, em particular nos
sectores virados para a exportação, como era o caso do calçado. É no seguimento desta
tentativa de modernização que, em 1965, o governo organiza em S. João da Madeira a
“III Exposição Técnica de Calçado”, subordinada ao tema genérico “A Normalização”.
Ainda na mesma altura, foi instalado o Centro de Formação Profissional da Indústria do
Calçado (resultado de um protocolo entre o Grémio dos Industriais de Calçado e o
Fundo de Desenvolvimento de Mão-de-Obra), dedicado ao ensino das áreas do design,
da costura e do corte e orientado para auxiliar com meios técnicos e humanos as
empresas mais competitivas.
A indústria metalúrgica e o caso da “Oliva”
A breve referência a esta empresa deve-se fundamentalmente ao facto de ela ter
representado um papel peculiar no contexto do operariado sanjoanense no período do
Estado Novo. A “Oliva” não só se enquadra num sector industrial que tradicionalmente
tem gerado uma força de trabalho qualificada e bastante combativa no terreno sindical e
político, como a nível local terá sido a primeira unidade a introduzir um tipo de relação
salarial que, por razões diversas, se aproximou do regime fordista149 que neste período
vigorava na Europa desenvolvida. Para além da importância económica que adquiriu,
esta grande empresa assumiu-se como uma fonte de emprego estável de grande
significado na vida das populações desta zona. Propriedade de um ex-industrial de
149 Talvez mais correctamente pudéssemos falar de um espécie de “ilha de fordismo”. Como assinala José Reis (1992), dado o carácter datado e em certo sentido conjuntural do sistema fordista que se afirmou na Europa do pós-guerra, não faz sentido falar-se de um fordismo periférico. Efectivamente, esta referência serve apenas para designar um sistema que em Portugal teve pouca correspondência, em especial neste
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chapelaria, António José Pinto de Oliveira150, esta firma teve a sua origem numa outra
empresa local – “A. J. Oliveira, Filhos & Cª. L.da” –, fundada em 1925. A sua principal
actividade foi, desde essa altura, a fundição de banheiras para esmaltar, radiadores e
caldeiras de aquecimento central. Empregando inicialmente 20 homens, em 1934
absorvia já 200 trabalhadores. O seu maior impulso verificou-se durante os anos 30 e
40, tendo beneficiado da protecção estatal o que contribuiu decisivamente para o
posterior processo de reestruturação e ampliação151. A inauguração oficial da nova firma,
após a referida “refundação”, com a introdução da secção de máquinas de costura, teve
lugar no dia 8 de Julho de 1948, altura em que a empresa integrava 540 trabalhadores,
dos quais cerca de metade foram admitidos durante este processo de ampliação. Nos
anos 50 e 60 a empresa chegou a funcionar em regime contínuo, com 3 turnos, e a
população fabril atingiu, em 1966 o seu apogeu, integrando então cerca de 2000 pessoas
ao seu serviço.
período, mas que pontualmente teve algum significado em certos sectores e em algumas grandes empresas, nomeadamente nos anos sessenta. 150 Este proprietário era natural de S. João da Madeira e gozava já de algum prestígio local devido à sua anterior actividade, estando também envolvidos nesse processo alguns familiares seus (dois cunhados) com negócios em África e no Brasil que, no entanto, nunca desempenharam na empresa qualquer função executiva. 151 No âmbito do Condicionamento Industrial foi aprovada alguma legislação dedicada directamente a esta empresa, que lhe concedia o direito exclusivo ao fabrico de máquinas de costura (Alvará nº 4 de 16 de Dezembro de 1942). As suas actividades desenvolveram-se a um ritmo assinalável, incluindo, além das máquinas de costura, tubos de aço para canalizações (Alvará nº 7 de 10 de Setembro de 1943), motores de pequena potência e outras actividades de fundição. As diferentes fases de ampliação coincidiram com a introdução de novas secções de fabrico que não pararam de crescer ao longo do período que vai dos anos 30 até finais dos anos 50: material de aquecimento central (em 1934); secção de esmaltagem de banheiras e materiais de ferro fundido (1938); fabrico de máquinas de costura (1948); fundição de ferro maleável (1950); galvanização de acessórios (1953); produção de tubos de canalização (1954); nova secção de esmaltagem (1955). Em relação a cada um destes produtos, era garantida a isenção de direitos de importação para o material destinado à construção e montagem das instalações das respectivas secções. A legislação previa ainda que tais empreendimentos seriam objecto de protecção contra o “dumping”, o que resguardava a empresa face à concorrência, quer interna, quer externa. Um estudo económico que analisa o caso da “Oliva”, considera que a prosperidade inicial não teve a continuidade pretendida dado ter começado a escassear a visão do fundador e a envelhecer o quadro de pessoal técnico e de engenheiros que ele desenvolvera ao longo das décadas de 40, 50 e 60. Efectivamente, “os herdeiros do Sr. Oliveira [os filhos], não transportando consigo o carisma empresarial do pai, limitaram-se a usufruir dos dividendos que a empresa pôde distribuir até finais da década de 50. (…) À medida que a idade do Sr. Oliveira avança, a função empresarial desloca-se para aqueles que fazem parte da tecno-estrutura”. Neste caso foi decisivo o papel de Gil da Silva (um dos engenheiros que integrou a Direcção), que, de acordo com alguns antigos responsáveis “projectou na expansão da empresa em mercados mais amplos a sua própria projecção social e económica. Só que o capital continuou concentrado nas mãos de uma família e não de uma infinidade de accionistas que, se quisessem, se poderiam desfazer dos títulos de propriedade na Bolsa da Valores. E, naturalmente, a família Oliveira nem estava disposta a caucionar com o seu património o recurso a capitais alheios, nem a prescindir da sua posição maioritária no capital da empresa, para que esta pudesse proceder a significativos aumentos do seu capital social com a entrada de novos sócios capitalistas” (Loureiro, 1991: 280).
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Mais do que a esmagadora maioria dos proprietários de calçado (dada a dispersão
do sector e a debilidade económica dos pequenos industriais em geral), o exemplo da
Oliva serve-nos sobretudo para mostrar que a protecção legislativa e estatal dedicada a
alguns industriais por parte do Estado corporativo passava principalmente pela rede
clientelar que vinha sendo promovida nas diferentes regiões do país, em especial
naquelas em que a expansão industrial, dado o seu impacto crescente na
consciencialização dos trabalhadores, poderia dar lugar a novos focos de subversão
operária. Para além do vínculo estreito entre o patrão da “Oliva” e as estruturas do
regime, a grande concentração operária da empresa e o volume de trabalhadores que
absorvia justificaram que a empresa se tornasse um campo privilegiado de atenções por
parte das instituições corporativas, quer com os vários tipos de incentivos e regalias
salariais aos seus trabalhadores, quer ainda através das políticas sociais e culturais do
regime coordenadas pela Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT). Mais
adiante (no ponto 5.3) esta dimensão será referida com maior detalhe.
A grande maioria da força de trabalho (cerca de 70% nos anos sessenta) era
proveniente de aldeias e lugares dos concelhos vizinhos. Um dos meus entrevistados,
que foi admitido na “Oliva” com 14 anos, em 1947, comentava que, naquele tempo, ser
trabalhador deste empresa era em si mesmo um símbolo de status. Segundo este ex-
dirigente sindical, “até havia rapazes que nesse tempo, quando conheciam alguma
rapariga que lhes perguntasse onde é que trabalhavam diziam que trabalhavam na Oliva,
mesmo quando não era verdade…”. A entrada deste trabalhador para a empresa
coincidiu com a sua expansão e o início da produção de máquinas de costura. No
processo de admissão terá sido decisiva a influência de um primo, trabalhador mais
antigo e bastante conceituado, que terá feito o respectivo “pedido” aos responsáveis.
Conquistar um emprego na “Oliva” significava obter não só mais estabilidade laboral,
mas sobretudo regalias sociais e salariais mais elevadas. Como referiu aquele
entrevistado “nós nessa altura ganhávamos na Oliva bastante mais do que o contrato e
os salários eram muito mais elevados que os dos trabalhadores nos outros sectores”
(Entrevista no Outeiro, Leiras - Pindelo, 8/1/94).
5.2 - Exemplos de resistência operária local: militância sindical e política durante o salazarismo
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
294
Quer a imagem disciplinada, ordeira e “alegre” com que a propaganda do Estado
Novo nos apresentava o trabalhador industrial, quer aquela que nos apresentava o
“proletariado” inserido num quadro de permanente revolta e luta colectiva, constituem
estereótipos fortemente impregnados de ideologia. Além de caricaturais, estes exemplos
são ilustrativos da forma como a ideologia salazarista e fascista, por um lado, e a
ortodoxia comunista, por outro, pretenderam conotar a classe operária. Como é sabido,
tais encenações tiveram, qualquer delas, um impacto notório nas subjectividades e nas
práticas dos trabalhadores, contribuindo para produzir formas de identificação – por
exemplo com a nação ou com a classe – socialmente significativas e, por isso mesmo,
merecem ser incorporadas na análise.
Porém, ao lado dos efeitos concretos destas construções doutrinárias, é sabido que
o operariado desde sempre transportou uma variedade de situações sociais onde se
misturam a aceitação e a luta colectiva, a pobreza e o sucesso económico, a
solidariedade e o individualismo. Uma das ideias-chave da presente tese é justamente a
de que, nesta região, a oscilação entre essas duas tendências foi particularmente nítida
desde finais do século passado. Neste ponto darei maior atenção às experiências de
resistência organizada do operariado ao longo do período salazarista, utilizando, como
já disse, extractos de entrevistas e histórias de vida de dois activistas sindicais de S.
João da Madeira, ambos ligados ao sector do calçado.
Comecemos por referir um pouco da biografia dos dois trabalhadores a que me
refiro: António Ribeiro Lima, trabalhador do calçado e militante comunista (Entrevista
em S. João da Madeira, em 14/9/93, na sua residência); António da Costa Santos –
conhecido por “Carreirinha” – operário do calçado, fundador do Sindicato dos
Manufactores de Calçado do distrito de Aveiro (Documento autobiográfico).
António Lima nasceu em 1916 e começou a trabalhar com 8 anos. De manhã
estava na escola e à tarde trabalhava no calçado, como aprendiz. Começou por preparar
as “cerdas” para pontear o calçado, na fábrica “Airosa” (nos anos 20 era uma das mais
importantes em S. João da Madeira), onde esteve 2 meses e ao fim desse tempo
começou a trabalhar em casa de um sapateiro que exercia a actividade em regime
domiciliário. Esteve lá cerca de 3 anos, aprendeu a pontear e pouco depois, já com
alguma experiência, começou a palmilhar.
“Em 1932 comecei a trabalhar por minha conta, em minha casa (…), eu nessa altura já começava a fazer um calçadito jeitoso (...). Mas nessa fábrica trabalhavam lá uns sete ou oito (mais uns 28 a 30 que iam já buscar o material
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
295
e trabalhavam em casa, como eu). Esse patrão da fábrica “Airosa” e quase todos, nessa altura, usavam umas senhas, onde assentavam os erros dos operários, e quando recebiam no fim da semana era-lhes descontado (...). Éramos nós que tínhamos de comprar os fios, os pregos, a cera (...), que na altura chamávamos as miudezas. Acontece que, como os operários se sentiam prejudicados com os descontos que ele lhes fazia, umas vezes com razão, mas muitas delas só porque ele achava que o sapato não estava lá muito ao seu gosto (…), muitos de nós, quase todos, em vez de palmilhar com 4 fios, como o patrão queria, palmilhávamos com três.
Uma ocasião, isto aconteceu por volta do ano de 1939, houve lá um problema (...) o patrão chegou-se a mim e perguntou-me: ‘com quantos fios estás tu a palmilhar?’ Eu como sabia que ele era torto tive que dizer a verdade: – digo, olhe estou a três. Responde logo ele: – desmancha já isso e faz a 4 fios! Ora eu, como não queria deitar por terra todo aquele trabalho e sentindo que o que ele pagava não chegava a nada, comecei a pensar em meter o outro fio por cima da sola mas sem despregar e descoser o que já estava feito. Passado um bocado ele vem outra vez ao pé de mim e pergunta: – então já desamanhaste o sapato? Eu disse – ainda não…
– Desmancha isso já! Ordenou ele. Eu, que então já tinha uns vinte e tal anos, estava cada vez estava mais revoltado, disse – não desmancho ! Ele insistiu: desmancha isso já! Começámos ali a teimar até que eu agarrei no sapato e bati com ele com toda a força em cima da mesa, peguei numa faca – ha! seu filha da puta que eu mato-te já! – e o gajo fugiu, desapareceu e foi-se esconder lá para dentro. Mas eu tinha consciência que estava a fazer aquilo só para o assustar, que eu já queria era vir-me embora dali. Passado um bocado, estava eu lá ao pé da banca, que dava, assim, para o corredor que ia até à porta da rua e vi-o a chegar-se ao pé da porta (mas ainda estava com medo) [... risos] e gritou para mim: vai-te embora meu malandrito que em minha casa não entras mais ! Eu fui-me embora. Mas passado tempo ele foi-se queixar ao Governador Civil, que ainda se dava com a minha família. Ele chamou-me lá e admoestou-me. Como ele me conhecia e também não gostava lá muito do patrão, não passou daí. Só me disse – ‘ameaçaste o Sr. Santos Silva (que era o patrão) e agora se ele aparecesse morto tu eras o culpado perante a lei’…” (Entrevista a A. Lima, SJM, 14/9/93).
António “Carreirinha” nasceu a 21 de Maio de 1908, filho de um operário
sapateiro e mãe doméstica. Foi o quarto filho de 12 irmãos (seis rapazes e seis
raparigas). Aos seis anos entrou na escola e aos nove fez a terceira classe. No ano
seguinte, porém, a doença do sarampo deteve-o durante três meses, o que o impediu de
ir às aulas, não tendo concluído a quarta classe. Foi então, com 10 anos, trabalhar como
aprendiz do pai. Vejamos algumas passagens do detalhado documento autobiográfico
que deixou:
“(...) Esquecido de tudo o que tinha aprendido na escola, sentia-me por vezes inferiorizado em relação aos meus companheiros de mocidade. Foi, creio bem, aos
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
296
18 anos que, sentindo-me penalizado por esta situação, comecei a ficar consciente e a pensar na vida e no futuro. (…) Há muito tempo que a situação das massas trabalhadoras me preocupava, mas eu trabalhava em casa e, como eu, muitos outros. O trabalho ao domicílio não propiciava encontros e uma defesa comum dos nossos interesses pois, mesmo nas oficinas, embora houvesse legislação, não se cumpria o horário de trabalho. (…) Mas, a falta de procura, originada pela crise económica, levou os industriais a deixarem de dar trabalho para casa e a preferirem os poucos operários que tinham nas oficinas. (…) Numa quarta-feira do ano de 29 consegui, porém, trabalho na firma Aliança Industrial de Calçado Lda. Familiarizei-me de imediato com os companheiros, ao mesmo tempo que consegui a confiança dos três patrões (…)” (Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).
Quando as humilhações no trabalho se conjugam com uma personalidade
irreverente é muito provável que a atitude de revolta comece a tomar forma e a
percepção da injustiça se desenvolvesse. Parece-me interessante registar as
circunstâncias que levaram estes trabalhadores, já minimamente despertos para a
importância da luta colectiva, a estabelecer os primeiros contactos com a mensagem do
movimento comunista que, como se sabe, estava nesta altura a ganhar terreno no seio do
operariado português. Estes aspectos são importantes, não só para que se percebam as
dificuldades de organização e de mobilização nestas condições, mas também para que, a
partir da descrição destes breves episódios, possamos a pouco e pouco ir clarificando
alguns dos traços da vida quotidiana do operariado desta zona e dos diferentes
obstáculos que se levantavam à luta colectiva.
“Um dia, creio que numa manhã de domingo do ano de 1929, ao passar em frente da Capela de Stº. António, deparei com um grupo de homens. Qual não foi o meu espanto, vi um dos homens desligar-se dos outros, encarrapitar-se no muro que ladeava a Capela e começar a falar! Aproximei-me e escutei o que o homem dizia. O tema da palestra era a Internacional Anarquista e ele pretendia angariar fundos destinados ao Socorro Vermelho. Acabado o comício, o homem prometeu voltar um mês depois, se os presentes arranjassem um local de reunião. Foi a primeira vez que ouvi falar de política. Intrigado com tudo aquilo que tão familiar pareceu ao homem, quando eu não conseguia compreender o que era o sindicalismo e muito menos o que significava o “Socorro Vermelho”. Fiquei, assim, ansiando pela vinda do homem, mas este acontecimento fez-me dar a volta à cabeça (…).” (Documento Autobiográfico de A. Carreirinha). Na sequência deste episódio, viria a ser fundada, ainda em 1929, uma Associação
dos Manufactores de Calçado. Esta teve, contudo, uma vida curta. Foi extinta com a
publicação do Estatuto do Trabalho Nacional e substituída pelo sindicato corporativo,
do qual este sindicalista viria a ser o fundador, a convite do Presidente da Câmara.
Embora formalmente enquadrado nas estruturas corporativas, o Sindicato Nacional dos
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
297
Operários Sapateiros do Distrito de Aveiro manteve alguma margem de autonomia e em
certos períodos conseguiu algumas vitórias para a classe, em grande parte devido à
liderança deste trabalhador e mais tarde também à influência do Partido Comunista
Português que, entretanto, ele próprio ajudou a criar.
Como era normal neste período, as células locais do partido sofreram a
perseguição da polícia política e mais tarde a maioria dos seus militantes foi presa e os
precários embriões organizativos foram desmembrados. Mas, nos anos que antecederam
a greve do sector do calçado de 1943 tiveram um papel decisivo, nomeadamente no
próprio decurso desse processo, como adiante se verá.
Quanto a António Lima, as primeiras experiências laborais vividas desde a
infância, levaram-no também a agudizar o sentido da solidariedade e desde cedo tomou
consciência de que a contestação do operariado era o único meio de resistência e de luta
contra as injustiças sociais e económicas. Circunstâncias diversas conduziram-no
igualmente a tomar contacto com o partido comunista, no início dos anos 40.
“Um dia estava eu com um amigo quando apareceu então esse tal rapaz que me aliciou para o Partido (PCP). Mas não me aliciou logo: mostrou-me o Avante! Esse rapaz era o Adelino, que depois falou comigo, me aliciou ao partido, disse-me que eu não devia ter agido assim (…). Que o caminho era lutar, mas juntamente com os outros.
– Depois disso (já que tinha sido despedido), para onde foi trabalhar?
– Depois disso ainda estive numa outra fábrica (do Almeida e Santos que era da Legião), trabalhando na fábrica. Pouco tempo passado, havia muito mal-estar, salários muito baixos, ele só pagava quando queria, havia crise no calçado e então fui já eu que comecei a convencer os outros que era melhor ir para as minas do que estar ali (nessa altura havia umas minas de volfrâmio ali para a zona de Arouca) e como os outros ninguém gostava do patrão, todos se queixavam, até que um dia fomos todos embora, deixámos a fábrica, só lá ficou um que era primo e também era da Legião. Fomos para a mina, mas aquilo era também muito difícil, e pagavam mal (…).
Depois disso, fomos alcunhados de comunistas e foi difícil voltar a arranjar trabalho, mas ainda fui para um outro patrão do calçado onde me aguentei mais de um ano porque me dava bem com o patrão, ele era boa pessoa, até jogava às vezes uma sueca connosco. E eu também já sabia bastante do ofício e como ele me respeitava, comecei a entusiasmar-me com aquilo e estive lá até à altura da greve (1943). Aí eu já sabia melhor como me orientar, já lia o Avante, estava melhor informado e então comecei a conversar com os companheiros, a reivindicar, etc. Aí já me sentia um todo poderoso, era o melhor operário, o patrão gostava de mim porque eu fazia a obra melhor (…)” (Entrevista a António Lima, SJM, 14/9/93).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
298
Quaisquer destes activistas estiveram, portanto, ligados ao PCP, mas foi
Carreirinha quem primeiro integrou a organização partidária. Foi também através deste
que A. Lima se aproximou do partido, juntamente com outros, durante a fundação das
primeiras células comunistas em S. João da Madeira. É preciso, pois, voltar um pouco
atrás para referir o processo de aproximação daquele operário às fileiras do comunismo.
Em 1936, a guerra civil espanhola servia de barómetro à temperatura política
europeia e mesmo mundial. Apesar da situação de miséria que se vivia no país, Salazar
organizava recolha de géneros que depois eram enviados, como dádivas, para a Espanha
de Franco, em comboios especiais. Esta situação não agradava a muitos simpatizantes
portugueses do exército republicano que se ofereciam para combater o franquismo,
como foi o caso de Carreirinha. Razões diversas impediram-no de realizar esse
objectivo e por isso, em finais dos anos 30, como ele recorda no citado documento,
sentia-se “cada vez mais apreensivo com a sorte da humanidade”.
“Há algum tempo atrás ouvira um sindicalista meu amigo, Manuel Alves da Costa, falar de comunismo. Não me abri com ele, mas isso obrigou-me a pensar e a encontrar o caminho: a revolução do proletariado. (…)
Numa manhã de domingo de 1938, um homem de estatura regular, tez morena, com uma cicatriz num dos lados da cara, simpático e atraente, bateu-me à porta. Estava sozinho em casa, a trabalhar e não me podia alongar muito em conversas. Mesmo assim falámos bastante sobre diversos assuntos. Por fim ele disse-me: – Amigo, preciso de falar contigo em pormenor e pelo que estou a ver só poderá ser da parte da tarde.
Acertado o encontro, o homem retirou-se e à tarde foi um longo encontro, uma longa conversa… O mais importante foi termos combinado nova reunião para daí a quinze dias, em que eu lhe apresentaria algumas pessoas. Assim, voltámos a conversar, com mais dezasseis amigos, sobre a política nacional e outros temas. Ao dispersar, cada um foi para seu lado e eu fiquei só com o visitante, que me disse o que queria de mim. Identificou-se como o Pinto da Carris, funcionário do Partido Comunista Português que via em mim a pessoa indicada para organizar o Partido em S. João da Madeira. Foi o dia mais feliz da minha vida! (…)
Foi com oito camaradas que iniciei o partido em S. João da Madeira. A organização foi-se estendendo pelas freguesias circunvizinhas e alargou-se o Comité Local. Formaram-se células em várias unidades fabris; as mais importantes na indústria de sapataria, as mais débeis nas de chapelaria e guarda-sóis. Também aos sindicatos dos sapateiros, chapeleiros e vidreiros, o partido chegou.
Em Oliveira de Azeméis havia três intelectuais que eram responsáveis pelo organismo local. Na Vila da Feira foi organizada uma célula, composta por três operários e um antigo marinheiro. Em Arrifana os camaradas estavam isolados e o mesmo acontecia em Couto de Cucujães. Todos eles viriam a ser controlados por mim. Em S. Tiago de Riba-Ul havia dois elementos ligados a Oliveira de
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Azeméis, e em Bustelo, a organização, orientada pela célula do Sindicato Vidreiro, tinha camaradas com muita experiência e era bastante boa. Em Nogueira do Cravo a célula era orientada por elementos da Direcção do Sindicato dos Sapateiros e, como a sede era em S. João da Madeira, estava em contacto permanente comigo (…)” (Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).
Veja-se ainda o relato do mesmo trabalhador a propósito de um episódio que
ocorreu em Dezembro de 1939, relacionado com a tentativa de celebração do dia da
Restauração da Independência, celebração essa cuja organização foi disputada entre o
PCP e a delegação local da Legião Portuguesa:
“No dia 15 de Novembro de 1939 reuniu o Comité Local, com um único ponto na ordem de trabalhos: ‘A análise dos locais onde se faria a distribuição dos panfletos em relação ao 1º de Dezembro’. Claro que esta distribuição era à escala nacional e era a orientação do Comité Central que, dias antes, nos tinha enviado a respectiva propaganda e as indicações para as organizações que controlávamos. (…)
A Legião Portuguesa também tinha decidido comemorar o 1º de Dezembro em todo o país. Em S. João da Madeira o Núcleo Legionário era o mais numeroso do Distrito de Aveiro e decidiu fazer exercícios de campanha, desfile e discursatas no Parque de Nossa Senhora dos Milagres.
Depois de termos percorrido todo o perímetro de S. João da Madeira, terminámos o nosso trabalho no Parque de Nossa Senhora dos Milagres. Espalhámos por todo o parque centenas de panfletos e cada um com uma pedrinha em cima para que se mantivesse no mesmo lugar. Até nos ramos das árvores se penduraram panfletos!
Na manhã do 1º de Dezembro a fanfarra e as autoridades locais desfilaram, em farda de gala, para o Parque, para assistirem à missa na Capela. Foi um espectáculo impressionante! O comandante dos legionários, Sr. Joaquim de Almeida, empregado superior do escritório do Sr. A. Henriques [o Presidente da Câmara], ficou tão desorientado que mandou toda a sua tropelha, em debandada, para o Quartel. A mesma atitude tiveram os outros.
Foi assim que acabou a manifestação fascista no dia 1º de Dezembro de 1939. Desse dia em diante, o Comité Local começou a notar que “bufos” e legionários de tudo faziam para localizar a organização, obrigando-nos a constante vigilância para a defender (…)
Retomei, de imediato, o trabalho partidário, fazendo com outro camarada a distribuição, a pé, num raio de 8 km, de propaganda em relação à situação política interna e externa. (…)” (Documento Autobiográfico de A. Carreirinha). Como atrás se disse, em 1929 havia sido criada a Associação dos Manufactores de
Calçado, de cuja direcção fez parte Carreirinha. Inicialmente, a acção desta estrutura
limitou-se a uma débil tentativa de obter do Governo Civil do distrito o cumprimento do
horário de trabalho de 8 horas nas oficinas do calçado, o qual continuou, porém, a ser
boicotado pela maioria dos patrões.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
300
Extintas todas as estruturas associativas autónomas ao abrigo do novo Estatuto
Nacional do Trabalho, seguiu-se a edificação dos Sindicatos Nacionais que, no caso de
S. João da Madeira, foi activada pelo Presidente da Câmara152, o qual convidou
Carreirinha para encabeçar a Direcção do novo sindicato do calçado. Aparentemente,
parece contraditório o convite ter sido dirigido a alguém com ideais tão radicais como
os deste sindicalista, por parte de uma figura que, apesar de identificada com a sua terra
e ter no passado dirigido a luta pela conquista do estatuto concelhio, não deixava de ser
um homem do regime. Talvez devido ao facto de ser conhecida a anterior experiência
organizativa de Carreirinha, por, também ele, ser uma figura respeitada em termos
profissionais, trabalhando nesta altura por conta própria na sua oficina doméstica, mas
certamente, porque as suas ideias políticas e filiação partidária só mais tarde viriam a
definir-se e a ser conhecidas.
Todavia, a dimensão comunitária e a presença das redes familiares153 estão
constantemente presentes neste contexto. Repetem-se os exemplos de afinidades
“transversais” que subvertem os habituais antagonismos da luta de classes. Por outro
lado, o facto de este dirigente ter sido, ele próprio, um pequeno proprietário (embora em
alguns períodos da sua vida profissional tenha sido assalariado, como atrás se viu)
mostra bem a natureza instável e a grande mobilidade deste tecido produtivo154. Mas isso
não parece ter diminuído a importância do seu papel de líder sindical local e a sua
adesão à causa comunista que, mais tarde, lhe viriam a custar vários anos passados na
prisão e repetidas torturas da PIDE155. Vejamos um extracto do diálogo entre o referido
presidente da câmara e este trabalhador:
“– Sabe Sr. Santos, eu também fabrico calçado, mas a indústria de sapataria está bastante desorganizada e dispersa. É necessário organizá-la e concentrá-la. Por isso me lembrei de si e o chamei.”
– Mas que posso eu fazer?
– Pode organizar o Sindicato dos Sapateiros, que abranja todo o distrito de Aveiro (…).
152 Prestigiada figura local que, além de ser um conhecido industrial de chapelaria e também de calçado, vinha desempenhando esse cargo desde a criação do Município, em 1926. 153 Refira-se que este proprietário e Presidente da Câmara (António Henriques) se dirigiu a Carreirinha por intermédio da esposa deste que o conhecia pessoalmente, uma vez que trabalhava na chapelaria e comercializava chapéus fabricados na firma daquele industrial. 154 Já no período pós-25 de Abril, também alguns dirigentes sindicais se tornariam pequenos patrões no sector do calçado. 155 Embora esta designação tenha surgido apenas em 1946, em substituição da então Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), por facilidade de identificação, preferi usar a fórmula actualmente mais conhecida da polícia política do Estado Novo.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
301
Enganava-se, porém, o Sr. A. Henriques ao pensar que com esta astuta manobra me atrelava ao seu carro e teria um sindicato a tratar de problemas do patronato e frontalmente oposto aos interesses dos trabalhadores! De facto, apesar do meu bem-estar de então, nada me faria esquecer a situação de miséria dos meus companheiros de classe. (…)
Tentei escolher o melhor elenco possível para a direcção do sindicato, aquele que defendesse coerentemente os direitos da sua própria classe. Consegui uma direcção alargada, isto é, com elementos de S. João da Madeira, S. Roque e Nogueira do Cravo. Andávamos de porta em porta e, no espaço de um mês, fizemos quatrocentos e cinquenta associados! (…)
(Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).
Do estudo atento do depoimento deste sindicalista pode retirar-se o carácter
ambíguo com que se pautou a actuação do sindicato por ele liderado. Por um lado,
tratava-se, como já referi, de um organismo corporativo obrigado a funcionar segundo o
quadro legal vigente, mas, por outro lado, procurava orientar-se com suficiente subtileza
para não trair a consciência revolucionária dos seus dirigentes mais influentes. As
principais acções desenvolvidas pela estrutura sindical, e sempre segundo a leitura deste
activista, só teriam lugar em finais da década de 30. Aí, destacam-se a luta pelo
cumprimento das 8 horas de trabalho diário, o fim do pagamento de alguns materiais de
fabricação, a tentativa de atenuar o forte peso do trabalho domiciliário no sector e,
ainda, algumas medidas de carácter assistencial e de protecção dos associados. O auge
da actividade deste sindicato seria a greve de 1943, após a qual foi desmantelado.
“A direcção obteve em 1940 uma grande vitória sobre o patronato com a garantia do período de 8 horas de trabalho, a semana inglesa e a abolição dos pagamentos, por parte dos operários, das “miudezas” (fio, lixa, pregos, tinta, cera, etc.) que passaram a ser custeadas pelos industriais. (…)
No segundo ano de exercício, a direcção do Sindicato contratou um médico que prestava assistência aos associados e familiares, uma vez por semana na Rede Social. Aos operários que trabalhavam em casa, o sindicato, em caso de sinistro de trabalho, atribuía um subsídio semanal de 25$00 (um terço do seu ordenado). (…)
Foi uma luta titânica a que consignou a prática do período de 8 horas de trabalho diário. Os operários que até aí trabalhavam em casa, com toda a liberdade de gerirem o seu tempo, não estavam dispostos a ir para a fábrica sem que o salário fosse aumentado, pois recebiam à peça. Pela nossa parte, fizemos, em vão, inúmeras tentativas junto do Ministério das Corporações, do Ministério do Comércio e Indústrias e da Presidência do Concelho. A última foi em Lisboa, em casa do Ministro do Comércio e Indústria, Dr. Pedro Teotónio Pereira, que nos encaminhou para o Delegado do Tribunal Nacional do Trabalho, em Aveiro, Dr. Afonso de Aragão. (…)
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(…) Tendo, antes de partir para Lisboa, convocado uma Assembleia Geral para as 6 horas de segunda-feira, encontrávamo-nos, porém, a essa hora no Porto e sem grandes novidades. Às 8 horas chegámos à sede do sindicato, o ambiente era escaldante. Os associados estavam excitadíssimos, faziam perguntas e mesmo exigências, sobre o aumento a dar pelo patronato, no caso das 8 horas de trabalho nas oficinas. Consegui, com dificuldade, que se acalmassem e me escutassem, mas passei um mau bocado quando anunciei que o aumento era impossível, pois o Governo estava na disposição de intervir no assunto e os industriais negavam também tal aumento.
Aproveitando o momento mais tranquilo, disse:
– Camaradas, a solução está nas nossas mãos.
– Mas como? – perguntavam uns.
– Não é impossível, não é impossível – repeti – em casa tendes todo o tempo à vossa disposição. Tendes pombas e perdeis todos os dias bastante tempo à volta delas. Precisais, assim, de 16 ou mesmo 17 horas para dar por pronto um par de sapatos, com a agravante de estardes isolados de tudo o que vos rodeia, com a agravante dos patrões fazerem de nós tudo o que lhes dá na real gana. Ao contrário, na fábrica, se a produção baixa bastante, isso obriga o patrão a não satisfazer as encomendas a tempo e horas. Como resultado, o patronato terá necessidade de procurar mão-de-obra e, forçado a adquiri-la, terá de melhorar a remuneração do operário. Fixem bem: a procura de mão-de-obra encarregar-se-á de dar força às nossas reivindicações. Temos ainda pelo nosso lado a certeza de que, com o tempo, o operário acabará por fazer um par de sapatos em 8 horas, ou até menos. Eu próprio já o consegui, e não sou diferente de vocês”.
Assim acabou, com saldo positivo, esta agitada reunião. (…)
A Direcção do Sindicato dos Manufactores de Calçado do Distrito de Aveiro nunca se submeteu ao sistema Corporativo de Salazar. Sempre primou em combatê-lo.(…)
Eu, na qualidade de Presidente da Direcção do sindicato, cheguei a Vereador da Câmara Municipal de S. João da Madeira, cujo Presidente era o Sr. A. Henriques. É certo que aquilo era uma fantochada: quando se reunia, o Presidente trazia no bolso os assuntos resolvidos, era só fazer a acta, assiná-la e nada mais” (Documento Autobiográfico de A. Carreirinha). Antes de me referir à greve dos “sapateiros” de Agosto de 1943 em S. João da
Madeira, é conveniente recordar que estes acontecimentos não estão de todo desligados
do clima de descontentamento geral que se vivia no país. Enquanto a Europa e o mundo
se debatiam contra a ameaça nazi-fascista, em plena guerra mundial, em Portugal
imperava a generalização da miséria no seio do operariado, o aumento da repressão e a
lei da censura.
No início da guerra, a situação da classe operária era particularmente difícil (veja-
se Rosas, 1990). A escassez de géneros alimentares e consequente tentação
especuladora traduziam-se na subida da inflação e diminuição do poder de compra dos
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
303
trabalhadores (que o governo tentaria mais tarde minimizar com a instauração do
sistema de racionamento através da distribuição de senhas). A criação do “abono de
família” (em Agosto de 1942) e a introdução do correspondente desconto no já tão
magro salário do operário veio a ter consequências opostas ao efeito pretendido,
ajudando a precipitar a onda de greves de finais desse ano, acicatando ainda mais a
contestação e ajudando a politizar o movimento na seguinte reedição do surto grevista,
em Julho de 43. Entretanto, a falta de higiene e de salubridade nas habitações operárias
dos meios urbanos, as doenças e epidemias (as doenças infantis como a diarreia e a
enterite; a tuberculose; a sífilis; o tifo; etc.) que alastravam por todo o país, agravavam
as condições de miséria do povo para níveis insuportáveis. Além da contenção geral dos
salários, o governo de Salazar aumentava as medidas repressivas visando obrigar os
trabalhadores a suportar a crise, nomeadamente ao instituir o trabalho extraordinário
obrigatório (sendo as horas pagas a 50%) e a imposição de níveis salariais mínimo e
máximo.
Também em S. João da Madeira a situação de carência se fez sentir de forma
dramática na vida das famílias operárias, e isso não foi certamente alheio à grande
adesão que obteve a greve de 1943. Porém, ao contrário das zonas industriais de Lisboa,
por exemplo, aqui persiste a presença da pequena agricultura familiar e, talvez mais
importante do que isso, o “factor local” foi – como tenho defendido ao longo do
presente estudo – um importante elo de aproximação entre o operário e o patrão o que,
nos períodos de crise mais profunda, se traduziu na promoção de formas locais de
protecção e solidariedade social as quais se tornaram um factor de suporte e de
regulação não menosprezável, mesmo quando efectuadas à margem das instituições
corporativas do Estado.
Por esta altura (1940), existiam em S. João da Madeira alguns bairros operários
cuja construção foi subsidiada por empresas locais em articulação com o município e
com apoio governativo. Houve fábricas que desenvolveram formas de assistência aos
trabalhadores mais carenciados, chegando algumas delas a assinar acordos em que era
dada “preferência e melhores honorários aos que tenham maiores encargos de família e
criando para esta um subsídio durante a invalidez do seu chefe”. Apesar das evidentes
clivagens classistas a nível local, vários indícios mostram que nesta pequena vila – que
se pretendia identificar com o “amor ao trabalho” e a união em prol do “progresso” – as
injustiças sociais mais flagrantes pareciam ferir o orgulho “bairrista” dos notáveis e
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
304
ricos industriais da terra. A vertente filantrópica em que se fundava o paternalismo de
base local parecia, pois, acentuar-se nos períodos de crise social e económica mais
agudos. Através da leitura dos jornais locais da época – e não obstante a sua vinculação
ideológica ao regime –, encontrei diversos artigos de denúncia da situação de penúria
em que vivia a classe trabalhadora local. O conteúdo de alguns deles parece até ir para
além da mera atitude piedosa.
“Está-se acentuando em S. João da Madeira a falta de géneros de primeira necessidade e de tal modo que assume um aspecto grave se considerarmos que esta terra é um meio operário, em razão das muitas indústrias aqui existentes, tendo por isso muita população. O Sindicato Nacional dos Operários Chapeleiros já pediu às instâncias superiores que fosse feito em S. João da Madeira o racionamento dos géneros, tal como já se pratica nos vizinhos concelhos de Vila da Feira e, ao que parece, também em Oliveira de Azeméis. É que, por meio das senhas, todos participarão numa distribuição de géneros, sem elas, nada feito. Quaisquer pessoas, até mesmo de fora da terra são servidas e cada qual apanha o que pode, e como pode… O milho está caríssimo. O que há, produzido nesta vila e concelho, não chega para o consumo da terra. Há outros concelhos onde talvez o milho abunde por serem regiões produtivas deste cereal e de menor consumo. Sermos abastecidos desses concelhos, eis o que seria de desejar (…)” (Jornal O Regional, 11/11/42).
A agudização da crise e a precária situação de muitas empresas, com a restrição
salarial, a acumulação de stocks devido à falta de escoamento e de matérias-primas,
estavam a lançar muitas famílias operárias para situações extremamente dramáticas.
Com a fome e a miséria a alastrar, a preocupação maior dos trabalhadores era defender o
emprego e o salário. Por isso a greve dos operários do calçado em S. João da Madeira,
constituiu uma luta dirigida mais contra o Estado do que contra o patronato. Para além
da abolição dos descontos, e da exigência do pagamento das horas extraordinárias ao
preço justo, os operários pretendiam que o Estado garantisse o fornecimento de
matérias-primas para a indústria poder funcionar. Esta greve foi a mais importante deste
período na região, tendo surgido já no rescaldo das movimentações desencadeadas em
Lisboa nos princípios da década de 40. Os surtos grevistas de 42 e 43 tinham criado no
país um clima de agitação laboral, com particular incidência na cintura industrial de
Lisboa – envolvendo no seu ponto máximo 50.000 trabalhadores –, o qual chegou a
fazer estremecer o governo, conforme se retira dos alertas lançados a Salazar por um
conhecido discípulo seu: “(…) está-se a criar um ambiente favorável a qualquer coisa
que já se anuncia em voz alta (…). Por toda a parte só se houve dizer: ‘isto está na
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
305
última, é o fim!’ (…)” (M. Caetano citado por Rosas, 1990: 380). Para além dos
diversos motins que neste período tiveram lugar – nomeadamente as inúmeras revoltas
de assalariados rurais e pequenos camponeses –, embora se baseassem em
reivindicações de carácter laboral e económico foram, segundo Fernando Rosas,
adquirindo um peso político cada vez maior, à medida que crescia a influência do PCP
no movimento operário e iam sendo conhecidos os avanços das tropas aliadas, no
cenário de guerra. A notícia da queda de Mussolini em Itália levou os sectores mais
politizados a aumentar as expectativas em relação a um possível fim do próprio
salazarismo. É neste quadro político-social que o papel das estruturas organizativas do
PCP se tornou decisivo na acção mobilizadora dos trabalhadores do calçado em Agosto
de 1943, nesta vila. A. Carreirinha dá-nos conta das movimentações partidárias que
estiveram na base da sua preparação.
“Desde o 1º de Maio de 1943 que fazia parte do Comité Regional do Norte. Na primeira reunião que tive neste orgão, estiveram presentes os seguintes camaradas: Alberto (José Gregório), Aurélio (José Martins), Gomes (Pires Jorge), Rosa (Cândida Ventura) e Pedro (António da Costa Santos).
Nesta reunião foi deliberada a greve em S. João da Madeira, para anunciar que o Partido Comunista Português se forja e tempera no combate, nos grandes movimentos das massas operárias e camponesas, para o derrube da ditadura fascista de Salazar.
(…) Era com impaciência que aguardávamos a chegada do dia 5 de Agosto de 1943. Na noite que o antecedeu, espalhámos milhares de manifestos a convidar os trabalhadores à greve.
Pelas 8 horas da manhã, muitos operários não se apresentaram ao trabalho, concentrando-se em lugar previamente combinado. Dividiram-se em grupos e, de fábrica em fábrica, foram incitar os outros trabalhadores à greve. Antes do meio dia estavam na rua os operários de todas as fábricas. De tarde, aderiram à greve os operários de Cucujães, S. Roque, Nogueira do Cravo, Milheirós de Poiares, Arrifana, Escapães e outras localidades.
Pelas 15 horas encontravam-se na rua 2500 operários que, de fábrica em fábrica iam dialogando com a Gerência de várias firmas, esclarecendo os objectivos da greve – dado o malogro do entendimento entre os industriais e a Direcção do Sindicato, por melhor salário e melhores condições de vida, melhor racionamento e distribuição dos géneros alimentares e o não pagamento, por parte dos operários, das chamadas “miudezas” que deveriam ser consideradas matéria-prima na fabricação do calçado e, portanto, estar a cargo dos patrões” (Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).
Na organização da greve participou igualmente o seu camarada António Lima:
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
306
“Comecei a dar-me com os Carreirinhas, participava nas reuniões de preparação da greve, distribuíamos o Avante, quando ele vinha. Aproveitávamos a falta de materiais que nessa altura havia, para reivindicarmos, por vezes até com o apoio de alguns patrões (…)
Lembro-me que [no dia da greve] lá na minha fábrica praticamente todos os trabalhadores pararam e saímos de lá juntos, descemos a uma outra fábrica ao lado onde os trabalhadores se juntaram a nós e então seguimos para a “Pinto de Oliveira”. Lá não havia organização (do partido) mas havia outra coisa, uma grande parte das raparigas que lá trabalhavam eram muito minhas amigas, chamei uma que eu conhecia e disse – vamos todos lá para cima (junto à Câmara), vamos à greve! e elas vieram.
Fomos também à antiga fábrica de onde eu fui despedido e eles também vieram! No fim já éramos umas boas centenas de trabalhadores que íamos pelas ruas e já era uma força muito grande. A GNR, que era cá de S. João e alguns guardas eram conhecidos dos operários, demoraram a actuar e isso também ajudou a ganhar tempo (…). Mas depois já ao fim da tarde, veio o exército que chamaram de Aveiro e ali fomos surpreendidos, e acabou aí a greve!” (Entrevista a António Lima, SJM, 14/9/93).
Carreirinha descreve ainda como terminou esta manifestação operária, com a
repressão da guarda e do exército, as prisões de dezenas de grevistas e a perseguição aos
militantes comunistas que se seguiu, com o “estado de sítio” declarado na vila e a forte
presença da PIDE a seguir os passos dos que conseguiam identificar como “cabecilhas”
do movimento o que, evidentemente, para a polícia e para o regime, era sinónimo de
liderança comunista, fosse-o de facto, ou não.
“(…) Por volta das 17 horas, os manifestantes foram surpreendidos por uma força da GNR de S. João da Madeira, que formou em quatro grupos, tentando encostar toda a gente às casas.
Eu, que ia na cauda da manifestação a lançar palavras de ordem, logo que me apercebi do que estava a suceder, avancei pelo meio dos manifestantes até encontrar os responsáveis do local e aconselhei-os a, na esquina seguinte, tentarem a fuga. Um soldado da GNR tentou impedi-los ameaçando-os com a arma, mas em vão.
Quanto a mim, continuei na cauda. Foi então que se aproximou um guarda e me deu voz de prisão fazendo questão, contudo, de saber a razão porque estava ali.
– O senhor também é grevista!
– Está enganado. Eu sou o Presidente da Direcção do Sindicato – e identifiquei-me com o cartão de membro da Direcção – estou a aconselhar ordem e nada mais.
Pediu desculpa e mandou-me em paz. Porém, foram presos 150 grevistas. Às 18 horas chegou ao centro da Vila uma Brigada da PIDE, chefiada pelo subdirector da Corporação do Porto, capitão Cardoso dos Santos. Às 21 horas chegou uma companhia de Infantaria do quartel de Aveiro e, no dia seguinte, todos os postos
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
307
da GNR do distrito vieram reforçar o dispositivo militar que manteve o estado de sítio em S. João da Madeira, durante trinta dias. (…)
A PIDE agira com muita perícia no dia da greve. Embora entre os 150 presos não se encontrasse nenhum camarada, o capitão Cardoso dos Santos começou a seleccionar os que lhe pareciam mais ingénuos. Um dos operários, de Cucujães, conhecido por Chico da Vira, ao ser interrogado pelo capitão, disse quem o tinha convidado para a greve. Era o camarada Alberto Lopes da Silva que a polícia não encontrou em casa. Prenderam então um irmão dele, o Jorginho. Através deste, souberam várias coisas do Partido e chegaram ao Cocheiro que, como militava há muito tempo, sabia bastante da Organização. Foi ele que, através dos dados que forneceu, levou à prisão de um grande número dos melhores quadros do Partido (…)” (Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).
Perante o clima de repressão que se seguiu à greve de 1943 e face ao total
desmembramento das débeis estruturas locais do PCP, os dois activistas que prestaram
estes depoimentos passaram a uma situação de semi-clandestinidade, trabalhando como
funcionários do partido. A. Lima conseguiu escapar à prisão nessa altura e andou muitos
anos pelo norte do país, sempre ligado ao trabalho partidário, nas indústrias têxtil e do
calçado, em Guimarães, Famalicão, Vila do Conde, Vizela. Acabou por ser preso no
Porto em 1958. Nessa altura já Carreirinha tinha sofrido as agruras da prisão, o que
aconteceu pouco depois da greve de 43. No mesmo documento descreve-nos
detalhadamente os episódios que levaram à sua detenção, quando se encontrava
escondido em casa dum camarada, médico, em Oliveira de Azeméis:
“(…) Instalei-me em casa dele e de dia não saía, estudando os problemas do sector. Todo o trabalho era feito de noite e fora de casa.
No dia 11, pelas 2 horas da tarde, preparava-se o camarada para ir visitar um doente e eu para tomar o caminho de Ovar, quando bateram à porta. Eu que estava no fundo da sala de jantar, apercebi-me da discussão entre o doutor e o visitante. Passados alguns momentos, o camarada voltou muito irritado e de intestinos transtornados pelo que se meteu na casa de banho por uns vinte minutos.
Eis quando, com grande rompante, entrou um homem e gritou:
– Polícia!
Depois de dar uma volta por toda a casa, perguntou à criada:
– O Sr. doutor?
– O Sr. doutor está na casa de banho!
Eu não perdi a serenidade. Tinha comigo uns apontamentos e, num abrir e fechar de olhos, introduzi-os debaixo da toalha de mesa, colocando a taça de fruta por cima. Em cima do sofá estava ainda o meu chapéu e vária propaganda do Partido.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
308
O PIDE, depois de se certificar que o outro estava na casa de banho, voltou-se para mim:
– Faça o favor de se identificar.
Não respondi, dei-lhe o meu cartão de identidade. O camelo deu um salto de contentamento e gritou em alta voz:
– Isto é, como se costuma dizer, com uma cajadada matar dois coelhos! Está preso!
Deixou o doutor. Agarrou-me fortemente e tirou-me o cinto.
– Aviso-te! Ao mais pequeno gesto mato-te como quem mata um cão danado!
E assim me conduziu para a GNR. Sabia já há alguns dias – por um bilhete que o meu irmão Alberto (camarada Oscar), me deixou num esconderijo de um velho muro em torno de uma tapada de meu pai – que em S. João da Madeira a PIDE desmantelava a Organização, todos os dias se faziam prisões e que ele próprio esperava ser preso a qualquer momento (…)” (Documento Autobiográfico de A. Carreirinha). Foi brutalmente espancado nos calabouços da GNR de Oliveira de Azeméis e no
mesmo dia foi transferido para a Penitenciária do Porto, juntamente com outros
camaradas seus, igualmente feitos prisioneiros na sequência da greve. Nessa mesma
noite conseguiu que o levassem às urgências do Hospital de Stº António devido aos
graves ferimentos resultantes das agressões, tendo o médico de serviço sugerido o
internamento, logo recusado pela polícia. No regresso do hospital foi conduzido à
presença do médico de Oliveira de Azeméis que o acolhera, também ele preso. Foram
ambos interrogados e novamente agredidos, na presença um do outro.
Carreirinha foi libertado em Agosto de 45, na conjuntura política do pós-guerra em
que Salazar parecia mostrar alguns indícios de “abertura” – permitindo às oposições
uma importante reunião, donde resultou a fundação do Movimento de Unidade
Democrática (MUD), que congregou as diferentes tendências oposicionistas e seria, por
algum tempo, tolerado pelo Governo – prometendo eleições “tão livres como em
Inglaterra” (Rosas, 1992: 57). Contudo, é sabido que estes períodos duravam pouco e
eram mais comuns nas fases que antecediam actos eleitorais, após os quais se seguiam
as perseguições e a repressão voltava a mostrar a sua face mais violenta. A segunda
experiência na prisão que Carreirinha voltaria a sofrer surgiu, precisamente, na
sequência do movimento pró-candidatura do general Norton de Matos para as eleições
presidenciais que, em S. João da Madeira, proporcionou novas expressões de
descontentamento popular, em 1948, em apoio àquele candidato (que, como se sabe,
viria a desistir, em Fevereiro do ano seguinte).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
309
A organização de um comício do candidato do regime, no Porto, levou à passagem
por esta vila de inúmeros autocarros, provenientes de diversas regiões, transportando o
povo aliciado pelos partidários da União Nacional em manifestação de apoio ao
Marechal Carmona.
“ (…) Em S. João da Madeira começaram a passar por volta das 9 horas da manhã. No largo central, como de costume e em especial ao domingo, estacionavam centenas de pessoas. As camionetas vinham ornamentadas com várias bandeiras: a Nacional, a da Legião Portuguesa e a da Mocidade Portuguesa. Os seus ocupantes traziam no chapéu e na lapela do casaco as insígnias do regime, dando vivas ao Carmona. Esta cantilena exasperou a multidão que engrossava cada vez mais e começou a gritar: Norton de Matos! Norton de Matos! Norton de Matos! A estrada foi atravessada por duas grandes faixas dizendo: Avante com a candidatura de Norton de Matos à Presidência da República! Nesse dia houve futebol e no final do desafio os adeptos vieram para a manifestação. Eram já milhares de pessoas. A meio da tarde os responsáveis pelo organismo local [do PCP] decidiram ir de passeio até Cucujães para terem alibi em caso de prisões e apuramento de responsabilidades por parte da polícia.
Quando a noite chegou, os manifestantes estavam ainda mais entusiasmados. Alguns traziam bandeiras. Entretanto, os ‘carmonistas’ começaram a passar de regresso. Não passou camioneta nem automóvel que não fosse forçado a parar. Os sopapos eram fortes e bastantes. Os carros dos ministros, escarrámo-lhes nas trombas. Quando a GNR entrou em acção, viu-se impotente para dispersar a multidão. Chegaram a fazer fogo, mas o resultado foi enfurecer as massas, pois um manifestante foi ferido e teve de ser conduzido ao Hospital de Stº António, no Porto. Só às 2 horas da manhã, reforçados pelas corporações de Oliveira de Azeméis e Espinho conseguiram acabar e desmantelar a manifestação” (Documento Autobiográfico de A. Carreirinha).
Este acontecimento foi repetidamente assinalado por diversos entrevistados como
tendo contribuído para reforçar uma certa imagem de rebeldia com que SJM chegou a
ser conotada nesta fase. Experiências desta natureza tornaram-se marcantes para
despertar a consciência social e política de alguns activistas sindicais da zona. Um
sindicalista que entrevistei – operário metalúrgico na “Oliva” –, refere que quando
frequentava a escola primária (precisamente no início dos anos 40), “era elogiado pela
professora pelas redacções que fazia em apoio da ideologia do regime” (Entrevista no
Pindelo/SJM, a António Augusto Silva, 8/1/94). Porém, a pouco e pouco, este operário
metalúrgico foi tomando consciência da situação política do país. Por altura do
movimento em torno da candidatura de Norton de Matos (então já adolescente),
começou a sentir que tinha sido “utilizado” durante os seus tempos de escola. Na
campanha eleitoral de 1948, A. Silva apercebeu-se que alguns dos notáveis da terra
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
310
faziam uma grande pressão sobre as pessoas para que votassem em Carmona o que o
terá levado a simpatizar mais com Norton de Matos. Mais tarde, com as candidaturas de
Quintão Meireles e Ruy Luís Gomes (na sequência da morte de Carmona, em 1951)
mas, sobretudo, com a campanha de apoio à candidatura de Humberto Delgado – que
em SJM obteve grande adesão e onde o “General sem medo” ganhou oficialmente as
eleições (em 1958) – assumiu conscientemente uma atitude mais activa e crítica.
Um outro campo associativo que teve também alguma influência no despertar da
consciência democrática foi a actividade local da Juventude Operária Católica. A ela
esteve ligado o activista da “Oliva” que atrás referi. Segundo este trabalhador (A. Silva),
além dos operários metalúrgicos também os do calçado e da chapelaria integravam o
organismo local da JOC nos anos 50. Nessas reuniões discutiam-se muitos dos
problemas sociais da época, num ambiente de grande liberdade, uma vez que o padre
(que coordenava aquela estrutura) nem sempre estava presente e assim tinham lugar
“discussões de nível mais alargado e bastante avançadas para altura (…)” (A. Silva,
Entrevista citada, 8/1/94).
Os anos 50 foram, no entanto, caracterizados pela estagnação ou mesmo declínio
das iniciativas das oposições contra o Estado Novo. A isso não será alheio o facto de
terem sido presos os principais dirigentes do PCP (Militão Ribeiro e Álvaro Cunhal, em
1949), bem como o facto de o regime ter então conseguido algum apoio tácito das
democracias ocidentais, no contexto da “guerra fria” e com a criação da NATO a que
Portugal também acabara de aderir. Além disso, o surto de crescimento económico
parecia proporcionar alguma “melhoria relativa” das condições de vida dos
trabalhadores (Rosas, 1992: 74). Todavia, esta precária evolução positiva continuou a
apoiar-se numa estrutura industrial em grande parte de cariz “oficinal” e artesanal.
Apesar de alguma concentração industrial e crescimento urbano, a lenta recomposição
operária que nasceu dos sucessivos planos de fomento tutelados pelo Estado Novo só na
década de sessenta se traduziria em alguma movimentação reivindicativa. Nos anos
cinquenta, para além da referida animação propiciada pela candidatura de Delgado, a
acção contestatária foi insignificante.
Em SJM apenas merecem referência algumas movimentações que visaram a
obtenção da “semana inglesa”. Neste período, o horário de trabalho em vigor na
indústria era de 48 horas por semana (8 horas por dia de segunda a sábado) mas, como
já foi referido, nos sectores artesanais como o do calçado, onde proliferava o trabalho ao
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
311
domicílio, o período laboral era muito superior ao que os horários formais estabeleciam
(como ainda hoje acontece). Porém, alguns industriais adoptaram esse sistema, por
iniciativa própria, como afirmava um jornal local da época, advogando a generalização
do descanso ao sábado de tarde:
“Não nos parece necessário procurar argumentos para provar como é benéfico e agradável este horário de “semana inglesa”. A experiência de algumas empresas da nossa terra que adoptam este horário há já alguns anos é suficiente, por si só, para mostrar que o regime de semana inglesa, não trazendo inconvenientes aos patrões, beneficia largamente o operário, dando-lhe tempo para tratar dos seus assuntos particulares com os cuidados que eles exigem. Os operários que trabalham já sob este regime não escondem a sua satisfação e são invejados, neste particular, por aqueles que ainda o não têm” (Jornal O Regional, 16/4/53).
Na empresa metalúrgica “Oliva” o regime de semana inglesa foi conseguido nos
finais da década de cinquenta, mas inicialmente o tempo correspondente às tardes de
sábado era distribuído pelos restantes dias úteis. Muito embora as regalias sociais
fossem maiores do que noutras empresas e as estruturas de organização e controle dos
tempos-livres desempenhassem aí um papel de relevo (como mostrarei mais adiante),
aquela empresa viria a conhecer alguns movimentos de luta a partir de finais dos anos
sessenta. Em 1968 teve lugar uma greve por aumentos salariais e em 1971 pela alteração
do horário de trabalho e pelo 13º mês, lutas essas que tiveram resultados favoráveis aos
trabalhadores. A chapelaria já tinha entrado em declínio irreversível e não se conhecem
quaisquer acções de protesto operário do sector, neste período.
Quanto ao movimento sindical do calçado – e recordando que a capacidade
reivindicativa do sindicato corporativo terminou na sequência da greve de 1943 –, só no
período posterior ao 25 de Abril de 1974 seria criada a nova estrutura sindical da classe
(o Sindicato dos Operários da Indústria do Calçado, Malas e Afins dos Distritos de
Aveiro e Coimbra), o qual tem vindo, desde então, a desenvolver uma intensa actividade
organizativa junto do operariado do sector156.
5.3 - Controle Recreativo e Práticas Culturais no Estado Novo
No campo do lazer, tal como na esfera produtiva, a acção legislativa e o controle
por parte do Estado fizeram-se sentir de forma sistemática na região. Através dos
poderosos mecanismos de enquadramento de que dispunha o aparelho de Estado –
especialmente tendo em conta a sua natureza autoritária –, as actividades lúdicas e de
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
312
lazer tornaram-se objecto de uma intervenção moral e doutrinária imposta de forma
suprema e que atingiu praticamente todas as esferas da vida social. Como foi referido no
Capítulo 1, as políticas culturais do Estado Novo não deixaram de sofrer uma clara
influência das experiências italiana e alemã, onde as doutrinas de docilização dos
tempos-livres tinham sido desenvolvidas anteriormente. Todavia, o nacionalismo de
Salazar procurou fundamentar-se naquilo que considerava ser o “sentimento profundo
da realidade objectiva da Nação portuguesa”. Na senda do seu projecto de erradicação
da conflitualidade social, o ditador excluía a sociedade civil de toda a participação na
vida política. A apologia da Nação157 baseava-se nas instâncias definidas como as
“células-base” do corpo do Estado – a família, a freguesia e o município – procurando
orientá-las num sentido integrativo e orgânico, por forma a exercitarem, no plano
individual, a hierarquia, a disciplina e a obediência, enquanto valores “naturais” que não
careciam de justificação.
Não obstante o nacionalismo de recorte católico tentar desde cedo afirmar-se
como genuinamente apoiado na essência da portugalidade, algumas ambiguidades se
insinuaram nos primeiros anos do regime. Resultado das múltiplas pressões oriundas de
diversos sectores – desde o movimento nacional-sindicalista aos grupos de activistas
sociais católicos –, a ideia de incentivar um movimento de massas de características
fascistas e totalitárias, à semelhança dos sistemas congéneres de Itália e Alemanha,
chegou a ser perfilhada por alguns apoiantes da Nova Ordem. Tais propostas acabaram,
no entanto, por ser afastadas tanto pelos sectores católicos como pelo próprio Salazar.
As celebrações da festa do trabalhador no 1º de Maio, que foram reatadas no início dos
anos 30 (após terem sido interrompidas em 1914) deixam transparecer algumas dessas
ambiguidades. Organizadas por associações patronais, pelos sindicatos nacionais, pela
Acção Católica e outros organismos corporativos, as festas do Trabalho Nacional – cujo
momento culminante deste período terá sido a celebração de Braga, em 1934 – não
tiveram nem a continuidade nem o impacto desejável nas grandes cidades e, nos anos
posteriores, apesar de se manterem os desfiles, os cortejos de carros alegóricos em
algumas cidades (Viana do Castelo, Torres Vedras, Cartaxo, Tramagal) e as entradas
gratuitas para os operários e suas famílias, a festa da “concórdia corporativa” em que se
156 A questão da acção sindical na indústria do calçado, e sua articulação com as estruturas de poder no seio das empresas, nos tempos mais recentes, será analisada no Capítulo 7.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
313
tinha procurado transmutar o 1º de Maio, perdeu progressivamente fôlego e no início
dos anos 40, de 1º de Maio, restou, no âmbito oficial, o nome do jornal da FNAT
entretanto criado (1939) e uns quantos rituais dispersos, sem impacto social de relevo. A
Festa do Trabalho deixa de realizar-se oficialmente (Valente, 1997).
5.3.1 - Instituições estatais e festividades locais
Como atrás se viu, a industrialização de SJM vinha sendo apoiada num discurso
de “progresso” e de “modernidade” promovido pela burguesia industrial local,
principalmente desde o início dos anos 20. Os efeitos dessa dinâmica económica e desse
discurso, tiveram uma incidência notável sobre as comunidades da zona, ao mesmo
tempo que, com o avanço do projecto salazarista, o paternalismo local e o sentimento
bairrista emergente ganharam novo fôlego. A acção disciplinadora da fábrica e a pressão
normativa da ideologia produtivista estenderam-se às mais diversas actividades da
esfera comunitária, nomeadamente ao domínio das práticas culturais e de lazer.
Algumas instituições estatais do aparelho corporativo vão-se instalando em SJM a
partir dos anos 30. À repressão política e ao desmantelamento do associativismo
operário seguiram-se a difusão doutrinária e a imposição de modalidades de tempo-livre
ordeiras e disciplinadas. A Legião Portuguesa (1937), a Mocidade Portuguesa (1938) e a
FNAT (1951) participaram zelosamente na implementação desse projecto. As
iniciativas de assistência e a actividade filantrópica dos notáveis locais – que haviam
liderado a recente conquista do estatuto concelhio para a vila de SJM – ajudaram a criar
um clima particularmente favorável à dissuasão da luta colectiva do operariado. A
conciliação de classes era promovida em nome do “progresso da terra” e dos “superiores
interesses da Nação”.
A imprensa periódica local é aqui uma das fontes privilegiadas, não só por
constituir um campo de observação da vida quotidiana, mas também por se tratar de um
poderoso veículo de difusão da ideologia oficial e de defesa dos interesses da burguesia
local. Iniciativas institucionais, como por exemplo uma Festa da Mocidade Portuguesa,
eram objecto de um tratamento cuidadoso pelos jornais locais e tornaram-se palcos
privilegiados de exposição das “ilustres figuras”, fossem elas representantes estatais ou
personalidades proeminentes da terra (da autarquia ou da indústria). Os artigos na
157 Vista como “uma entidade moral” fruto do trabalho de “sucessivas gerações, ligadas por afinidades de sangue e de espírito, e a que nada repugna crer esteja atribuída no plano providencial uma missão específica no conjunto humano” (Oliveira Salazar, in Ramos do Ó, 1992:392).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
314
imprensa não se poupavam aos mais rasgados elogios: “(…) No teatro Progresso de
Cucujães, foi levado a efeito um Sarau Literário e Musical, pelos filiados no Centro nº 4
da Mocidade Portuguesa de S. João da Madeira, com a gentil colaboração das alunas do
Colégio Castilho, em benefício da ‘Casa da Mocidade’ da Ala de Aveiro (…)”. A acção
da Mocidade Portuguesa é constantemente enaltecida pelo seu papel na defesa dos
valores da “(…) fé patriótica, renascimento católico, culto da tradição e realismo
político” (O Regional, 31/10/1948).
O campo dos lazeres constitui, assim, uma dimensão indissociável da afirmação
do bairrismo local. Tal processo exprimiu a reestruturação da cultura local em torno
desse discurso e sob os efeitos cruzados da industrialização, das experiências do
trabalho na fábrica e das políticas institucionais do Estado. O campo do lazer e dos
tempos-livres teve, a este propósito, um papel fundamental enquanto espaço de
conflitualidade cultural entre as raízes tradicionais e populares e a lógica institucional.
De um lado, as celebrações religiosas misturadas com o paganismo popular
continuaram a suceder-se, mas, à medida que a vila de SJM se desenvolve e reforça o
seu estatuto na região, as instâncias da administração local e o reforço da acção
institucional do Estado, com o apoio da Igreja e da burguesia local, foram
progressivamente instrumentalizando as festividades tradicionais em prole dos
objectivos doutrinários do regime. De outro lado, a acção do aparelho repressivo
conferiu maior eficácia ao controle normativo sobre a classe trabalhadora local,
incentivando a construção de padrões de conduta fundados na ordem, na submissão e na
reverência face ao poder. No plano dos tempos-livres, a promoção de formas culturais
dirigidas sobretudo para a distracção e a “alegria” popular obedeceu a uma estratégia
calculada de afastamento dos trabalhadores da acção sindical e política, bem como de
tudo aquilo que, de um modo ou de outro, pudesse pôr em causa os fundamentos
fascizantes do regime.
Uma das celebrações populares com maior tradição e impacto junto das
populações eram as “Festas Sebastianinas”. Estas, já vinham sendo realizadas desde
1919, mas sofreram uma significativa evolução nas primeiras décadas do período
salazarista. Organizadas em honra do mártir S. Sebastião, foram inicialmente
dinamizadas por um grupo de ex-combatentes da I Grande Guerra que, deste modo,
“quiseram homenagear o santo da sua fé”, após o seu regresso dos campos de combate.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
315
Muito embora desde sempre estivesse ligada à Igreja, a simplicidade inicial destes
festejos populares foi evoluindo à medida que, com a implantação do novo regime, se
sujeitavam a um controle institucional mais apertado. Originalmente, estas festas
duravam dois dias, o sábado e o domingo. “No sábado, arraial nocturno, no domingo as
habituais festas religiosas na Igreja Matriz, a procissão e o arraial até altas horas da
madrugada” (O Regional, 28/7/1942). Mais tarde, prolongaram-se por mais um dia,
passando a procissão a ter lugar na manhã de segunda-feira, seguindo-se uma missa,
após a qual tinha lugar a “Tarde das Merendas”, em que o povo se reunia em convívio
colectivo no Parque de Nossa Senhora dos Milagres. Esta celebração, transformada no
acontecimento festivo mais representativo da vila de SJM, repetiu-se, ano após ano, até
que em 1943 passaram a ter como patrono o santo protector dos chapeleiros – S. Tiago –
, o que levou a que passassem a ser designadas por “Festas da Vila”. Além destas,
tinham também lugar nesta altura outras festas de menor impacto, mas de grande
tradição como eram os casos da “Festa do S. João da Ponte” (em finais de Junho), da
“Festa dos Passos”, que também incluía procissão e tinha lugar no fim da Primavera, e
ainda da “Festa de Nossa Senhora dos Milagres”, cujo palco era a capela com o mesmo
nome, situada no parque. Todas elas têm um carácter religioso mas, evidentemente,
nelas se misturavam variados aspectos lúdicos de conteúdo secular e pagão. Em torno
destas iniciativas procurou-se projectar o nome da terra e reforçar a sua influência
económica e cultural na região, ou seja, a crescente sujeição à lógica institucional
procurou sempre combinar a dimensão tradicional com a implementação de um discurso
bairrista e localista que se afirmava em nome do progresso e da modernidade.
Por outro lado, a atitude paternalista em relação às dificuldades económicas dos
trabalhadores continuava a ser visível em alguns sectores da elite local. Nas fases de
crise económica mais aguda, como aconteceu no período da guerra, as festas locais
deixaram de se realizar com a regularidade habitual. Em 1950, perante o agravamento
da crise nas indústrias locais da chapelaria e de calçado, “um grupo de senhoras”
dirigiu-se ao jornal O Regional, a fim de protestar contra a intenção de se realizarem as
Festas da Vila nesse ano. O jornal foi sensível a tais protestos, fazendo-se eco das razões
das ditas senhoras sob o título de primeira página: “Festas e Mais Festas”.
“(…) têm muita razão essas senhoras. Basta de festas. (…) As chamadas festas do concelho são pobres de tudo. Junta-se aqui dinheiro, dezenas de contos, que vai todo para fora em pagamento de foguetes, embandeiramentos, músicas e coisas da mesma insignificância (…).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
316
O povo, dizem alguns, precisa de festas e de aqui a vantagem em realizá-las.
Dá vontade de chorar quando se ouvem barbaridades destas. O povo pode gostar de se divertir mas só se divertem aqueles trabalhadores que sintam cheia a sua barriga e a dos seus filhos (…)” (O Regional, 18/6/1950).
Este apelo à protecção dos mais carenciados enquadrava-se na mesma lógica de
“contenção” promovida pelo Estado salazarista. Os volumosos gastos investidos nestas
iniciativas pareciam ser vistos como uma ostentação perante a situação miserável de
muitas famílias, o que, aparentemente, perturbava a moral paternalista dos industriais
locais.
5.3.2 - As formas locais de lazer e a moral dominante
Já vimos que nos estados autoritários, como o português, as políticas recreativas
dirigidas às classes trabalhadoras tinham como objectivo principal conter o acesso ao
consumo e, ao mesmo tempo, assegurar a reprodução de comportamentos dóceis e
disciplinados. Seja o lazer visto como uma fuga aos constrangimentos do trabalho
(Parker, 1983) ou como um campo de acção através do qual a dominação estatal procura
estender-se da fábrica para fora da fábrica (de Grazia, 1981), a interacção entre o lazer e
o trabalho dificilmente pode ser ignorada, mesmo quando a análise se dirige a
populações operárias.
Quando nos anos 50 algumas vozes se faziam ouvir em SJM a reivindicar as
vantagens da “semana inglesa”, elas apareceram como uma continuação do
associativismo católico herdado de finais do século passado (personificado nos anos 30
pela “Acção Católica”), virado para a defesa da família e da sua devoção religiosa,
muito embora sempre enaltecendo a pretensa vocação produtivista dos sanjoanenses. A
ideia da “laboriosidade” pretendia veicular o espírito de sacrifício, de dedicação e de
entrega “disciplinada”, “cumpridora” e “leal” da população trabalhadora, o que, como se
sabe, vai ao encontro da postura ordeira que o regime procurava impor ao operariado.
Ao longo dos anos 30 e 40, os jornais locais sempre retomaram o lema do trabalho e o
discurso “moralizador” em prole do progresso, mas ignorando sistematicamente a
opressão e a pobreza em que o país se achava mergulhado. Efectivamente, nos contactos
que estabeleci com diversos membros da comunidade local ficou clara a ideia de que
sectores significativos da força de trabalho comungam deste orgulho colectivo quando o
nome da terra é apontado como um exemplo para o país (cf. O Regional, 1/1/1944).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
317
Nota-se, porém, que o controle moralista não conseguiu anular por completo as
orientações de afastamento e transgressão face à acção das instâncias oficiais e dos seus
intermediários locais. Daí o seu esforço, constante e repetido, para docilizar e modelar
os hábitos populares, quer dirigindo-se directamente às classes baixas e ao operariado,
quer procurando expurgar das classes médias os elementos culturais mais insubmissos e
“inadequados”. Veículos privilegiados desse esforço de enquadramento foram os
principais jornais locais: O Regional e O Sanjoanense. Estreitamente ligados aos
maiores industriais da terra, foram em boa medida sustentados pela publicidade das
empresas da região e protegidos pelo poder autárquico, dando voz às figuras mais
influentes da vila.
Através dos diversos escritos e comentários aí publicados pode, por um lado,
detectar-se o tipo de pressão moralista a que determinadas práticas e costumes sociais
eram sujeitos por parte destes veículos de inculcação cultural e, por outro lado, é
possível registar a orientação de resistência que tais comportamentos transportavam face
à acção normativa da moral dominante e dos seus intermediários locais. As camadas
jovens e os trabalhadores da indústria foram, por razões diversas, alvos privilegiados
dos referidos comentaristas. Ao mesmo tempo, a crítica a certos hábitos da “mocidade”
deixa perceber o sentido da mudança nos costumes locais e a diferença de mentalidades
das gerações mais jovens. Nos anos 40, os cafés, o cinema, o teatro e a dança
começavam a atrair os filhos da burguesia e da classe média local para práticas que
pareciam perturbar a códigos convencionais.
“(…) Cedendo com irreflexão ao poder atractivo das mil diabólicas invenções preparadas com os olhos fechados à prevenção, os rapazes que já não são crianças mas que ainda não são homens, malbaratam o mais precioso capital que é o tempo e a saúde em ocupações impróprias de si, desde as mais fúteis às mais deprimentes ocupações que não os honram, que não os edificam, que não os melhoram e das quais menos ainda resulta a sombra de um benefício para a comunidade. Os cafés, os prostíbulos, os teatros, os jogos, formam a urdidura grosseira da sua vida. Companhias suspeitas abastardam-lhes o falar, que é pesado e grosseiro, e os modos que são sacudidos e despidos de todo o cunho amável e se uma cousa e outra derivam do pensamento que os gera, portas adentro do cérebro, pode qualquer um avaliar como será esse pensar, que na posse de um analfabeto já não encontraria fortes motivos que o justificassem.
Entrementes, as raparigas (…), que fazem elas? Nada, absoluta e redondamente nada. Lançam o seu tempo e sua habilidade pela janela, a que permanecem horas esquecidas, dias inteiros, a ver não se sabe o quê, a sorrir para quem passa, pessoas que ao afastar-se vão pensando coisas tristes delas, se são criaturas
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ajuizadas ou crivando-se de epítetos afrontosos, de suspeições atrevidamente infundadas, se são pessoas igualmente de cérebro semi-oco.
De noite realizam soirés, dançam, excitam-se em loucuras que, por serem consideradas honestas pelos crédulos papás, nem por isso, no fundo, são menos para temer, tanto sob o ponto de vista material como sob o ponto de vista moral (…)” (O Regional, 19/4/42).
Os “conselhos” dirigidos a estas categorias de classe média eram, contudo,
relativamente condescendentes e moderados. A atenção dedicada às actividades da vida
mundana transportava uma dupla preocupação: uma de ordem material, que pretendia
acautelar o esbanjamento de tempo e de meios económicos em actividades ociosas, as
quais supostamente se afastavam da lógica produtivista que era apanágio de uma terra
de industriais e trabalhadores; outra de ordem moral, que pretendia assegurar as regras e
a postura adequada aos estilos de vida da elite local procurando impor às novas fracções
em ascensão padrões de comportamento ajustados àquele estatuto. Por outro lado, as
ideias, então em voga, da “mente sã em corpo são”, que no quadro das políticas
recreativas do regime se traduziam na celebração de uma moral disciplinada e de um
físico sadio, estavam igualmente presentes no discurso público local.
Vejamos uma pequena peça do citado periódico onde a dança surge como tema de
reflexão. Neste caso pretende-se encontrar justificação, se possível com argumentos
“científicos”, para a prática da dança, questionando-se o autor sobre as suas vantagens e
desvantagens, o que é bom ou o que é condenável, quer do ponto de vista moral, quer no
que se afirmava serem as exigências do bem-estar físico.
“Faz bem dançar? Faz mal dançar? Senhores pesados, de digestão difícil, exageram-lhe os defeitos, como as raparigas namoradeiras lhe exageram as virtudes; médicos cautelosos aconselham ir aos bailes mas não dançar, a meninas cloróticas, desbotadas. Se incluirmos, porém, as perturbações emocionais que dela podem advir, tanto como de outros espectáculos bem inocentes, a ‘dança fisiologicamente muito aproximada da marcha’, como afirmava Arnould – afasta-se notavelmente dela pelo seu fim. Ela procura mais a leveza e a graça dos movimentos do que a energia. Ora, estas qualidades da graciosidade têm o seu valor e não há dúvida que a prática das boas atitudes contribui para a regularidade do desenvolvimento cultural.
Eis ainda o que diz o Dr. Virgílio Manúcio: ‘a dança é salutar. Ela impõe-se porque não reclama esforço mas graça e leveza, elegância, predicados próprios da mulher. Além disso, suas evoluções, seus passos, seu ritmo, estimulam os músculos e a sensibilidade de maneira que além de ser um passatempo agradável é saudável e útil ao organismo’.
A pessoa que dança põe em acção, sucessivamente, todos os músculos, e é obrigada a conservar-se em uma posição perpendicular e airosa, movendo os
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membros com graça e harmonia de que resulta certo grau de vigor em todo o corpo. Muito convém, pois, à mocidade este saudável exercício, que não só lhe fortifica a constituição mas também lhe apruma o corpo e a cabeça, abaixa os ombros e tira atrás as espáduas, ampliando assim a caixa toráxica” (O Regional, 1944/45).
A invocação da ciência surge aqui como meio de legitimação da tese favorável à
prática da dança. Mas esse argumento de inspiração médica não deixa de servir de apoio
à defesa da “graça, beleza e elegância”, atributos que se juntam à desejável “posição
airosa” da mulher. O mesmo moralismo dirigia-se à estética do corpo no sentido de
adequá-la às exigências de “aprumo” na esfera pública. Este tipo de preocupações
indicia que as classes médias locais continuavam a denunciar comportamentos próximos
das expressões populares mais grotescas. A condenação de certas posturas da mulher,
por exemplo, parece revelar que não era fácil a incorporação das poses contidas e
civilizadas da “delicadeza feminina” adequadas a um estatuto social elevado. No
comentário que se segue, os comportamentos criticados referem algumas poses das
mulheres, consideradas impróprias por não corresponderem aos critérios da sociedade
“bem comportada”, o que, uma vez mais, nos permite perceber como certas práticas
resistiam a adoptar as formas padronizadas que a moral burguesa lhes pretendia
imprimir. Embora a atitude conservadora que estes articulistas evidenciam os faça
invocar formas e hábitos de um passado mítico (supostamente mais disciplinado), é de
crer que em SJM a força simbólica do discurso convencional em defesa dos “bons
costumes” terá sido particularmente marcante durante esta fase do Estado Novo.
“A delicadeza antiga, de há 40 anos, faz um contraste flagrante com a libérrima desenvoltura de agora. As crenças de então, que ouviam proclamar dogmas absolutos como o que afirmava não dever uma senhora, em público, dar sequer mostras de sentir a necessidade imperiosa de se coçar, verificam hoje, seja onde for, mesmo numa loja, num carro de passageiros ou à beira dum passeio, que muitas delas se coçam francamente, seja qual for o sítio do corpo, mesmo nas barrigas das pernas, com o ruído próprio das unhas sobre as meias de seda. Há homens que notam silenciosos o contraste e admirados tiram naturalmente daí as conclusões mais depreciativas para as sobreditas damas. Convenho em que os recatos de então fossem excessivos, mas como classificar as iniciativas de agora? (…)
Alguém, cujo nome se ignora, definiu o pudor afirmando ser ele a graça mais tocante que pode embelezar uma pessoa. Inversamente, a falta de pudor, ainda mesmo que não seja exibida com premeditação, por acinte, etc., é o maior ultraje que se pode infligir à dignidade colectiva.
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Mulher que faça gala, como tantas fazem, da sua falta de sentimentos e portanto alheia ao recato vem a tornar-se mais fastidiosa, mais incomodativa se é que não mais repugnante que a outra que não pode ser senão como é, infelizmente para ela. Não há palavras tão expressivas na sua antinomia como pudor e impudor. Nem todas as damas, infelizmente, se dão conta desta verdade” (O Regional, 11/7/1948). Neste caso fica claro que a imagem de feminilidade em construção neste período
não só assentava na postura recatada e dócil da mulher, como veiculava a lógica de
demarcação dos papéis sexuais assente no modelo patriarcal de sociedade que o projecto
da modernidade vinha promovendo. Os processos de mudança socioeconómica e
cultural do capitalismo aparecem nesta região como que condensados num período de
tempo historicamente curto e, portanto, dão lugar a transformações mais intensas e
rápidas fazendo emergir contradições – opondo diferentes classes sociais e estilos de
vida, espacialidades rurais e urbanas, subjectividades modernas e pré-modernas –
ancorados em modelos culturais e temporalidades bastante distintas. Quer se tratasse das
jovens descendentes da classe média a procurar assimilar modos de vida burgueses, quer
dos trabalhadores de origem rural que começavam a adoptar padrões de conduta mais
próximos dos lazeres massificados, estamos perante processos em que se fazia sentir a
mesma pressão moralista que pretendia compaginar modelos aceitáveis pela elite local e
em conformidade com as exigências do corporativismo salazarista.
Por exemplo, o hábito dos trabalhadores tomarem a sua refeição ao ar livre
suscitava também chamadas de atenção para a defesa da higiene, mas denunciava
simultaneamente a preocupação com a exposição “pública” de costumes considerados
pouco civilizados. Estes comentários denunciam, por um lado, a preocupação com a
limpeza e a imagem dos espaços urbanos da vila de SJM, mas, por outro lado,
constituem retratos ilustrativos da precaridade da classe operária, dos seus modos de
vida semi-rurais e da falta de estruturas das empresas.
“Achando adorável uma bela merenda sob uma relva fofa, um repasto sob os braços frondosos de um carvalho secular; todavia, encontrando-se um operário atirado sobre uma pedra, seja num degrau ou numa calçada, mas geralmente à beira das estradas, ingerindo a sua refeição do meio-dia, é contra o nosso hábito e por demais penoso para o nosso espírito.
É muito triste ver esse homem misturando ao seu alimento, micróbios de toda espécie, que além de degradante aos olhos daqueles que passam, ainda é uma desumanidade que se contribua para aumentar o número dos tuberculosos.
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Como obreiro do nosso progresso deve ter esse operário merecimentos, fazendo juz a uns momentos de tranquilidade para a conservação do seu físico e, por conseguinte, ter direito a um local adequado às suas refeições.
A nós sanjoanenses de tradição essencialmente cristã, não nos fica bem continuar a permitir esses espectáculos tão prejudiciais à saúde e aos foros de civilidade de que se ufana a nossa vila.
Até o adro da nossa Matriz, cuja grama e jardim tão prejudicados já pela falta de trato, de chuva e de água, serve para o repasto de numerosas pessoas que, numa falta de respeito à Igreja, ali deitam papéis, ossos, espinhas e cabeças de carapaus.
Não desconhecemos que alguns dos senhores industriais de São João têm em seus estabelecimentos refeitórios e até cantinas. Mas falta-nos uma lei exigindo rigorosamente o seu uso em geral, proibindo a que esses repastos continuem à beira das sarjetas (…) (O Regional, 17/8/58).
A taberna
A taberna constitui um espaço tradicionalmente conotado com a proliferação de
costumes desregrados das classes baixas. A afinidade que desde sempre manteve com o
operariado pôs em evidência o seu papel na estruturação do lazer popular e na
modelação da cultura da classe operária (Davies, 1992: 168). Em diversos períodos
históricos foi palco de muitos excessos e por vezes foco de atracção de intelectuais e
artistas em ruptura com as convenções e o elitismo das classes dominantes, situações
que, sem dúvida, exemplificam o poder atractivo dos ambientes boémios de
expressividade popular158. A importância social e política da taberna liga-se directamente
às situações de precaridade e pobreza que sempre acompanharam as classes baixas,
muito embora seja discutível, como assinalou Stedman Jones, se o seu significado
favoreceu a rebeldia popular ou o conformismo do operariado (Jones, 1989). Em
Portugal, apesar de Lisboa e Porto ocuparem os lugares centrais de germinação deste
tipo de estabelecimentos, eles foram crescendo um pouco por todas as zonas de
concentração operária, em especial a partir dos finais do século passado. No caso de S.
158 Nos meios urbanos das grandes cidades, a taberna foi também um campo de mistura classista que no século passado chegou a acolher artistas, músicos, “intelectuais” que, atraídos pela vida “boémia”, mostravam o seu desprezo pelos valores da classe dominante, aderindo às formas “insubmissas” e “carnavalescas” da cultura popular (Stallybrass e White, 1986). Quer no divertimento e na boémia, quer na germinação da revolta popular e da contestação colectiva, as tabernas foram durante séculos vistas com desconfiança e tornaram-se alvo de perseguição e de controle legislativo, juntamente com as “casas de passe” e a prática da prostituição. Mas, ao mesmo tempo, a sua actividade e influência não pararam de crescer, surgindo em diversos períodos da história das monarquias europeias (França, Espanha, Portugal) como lugar de refúgio e de “perversão” de figuras gradas da corte e de parlamentares durante o constitucionalismo monárquico na procura do anonimato, na fuga ao stress que a vida pública lhes impunha. Muito embora a conotação com o ambiente “promíscuo” dos estratos mais baixos da sociedade seja inegável, a taberna constituiu também, em diversos períodos da história e em particular desde o século passado, um campo de mistura classista.
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João da Madeira, o facto de este ser um tema que, ao longo das décadas de 40 e 50,
ocupou repetidamente as atenções dos jornais locais é, por si só, revelador do
significado social e cultural da taberna, como espaço privilegiado da classe
trabalhadora.
“A taberna é, de um modo geral, um estabelecimento fatídico para as classes baixas da sociedade. Apesar disso, o número de tabernas cresce constantemente, sem que ninguém até agora tenha procurado por termo a semelhante multiplicação! Estas baiúcas escuras e nauseabundas, pululam igualmente por vilas e aldeias de todo o país! Há regiões, onde qualquer indivíduo que junte uns patacos ou traga alguns contos de réis do Brasil, logo monta uma tasca onde os operários, mendigos e viciosos da localidade e redondezas vão deixar o melhor dos seus parcos lucros ou salários. As pessoas que se dedicam a este género de comércio muitas vezes se julgam ‘beneméritas’ quando é certo que melhor empregariam os seus capitais em empresas frutuosas e mais decentes. Mesmo na melhor das hipóteses, a taberna é um centro de má língua, de conflitos e desordens, onde o carácter se rebaixa e onde se adquirem os piores vícios. Mas quando o dono da locanda não tem escrúpulos, então a taberna torna-se um coito de imoralidade e degradação. Com efeito é nestas lojas que se reúnem os indivíduos da mais baixa condição social, bebericando e jogando, desperdiçando em poucos momentos o que lhes custou muito a ganhar e certamente lhes faz falta em casa” (O Sanjoanense, 30/9/42).
Apesar de se viver nessa altura uma fase de crise económica profunda – em plena
II Guerra Mundial –, inclusive com grande escassez de bens alimentares, tal facto não
parece ter feito diminuir a frequência das tabernas. Continuemos a atentar nos artigos
destes agentes locais, observando a moralidade paternalista que lhes subjaz, mas sem
deixar de notar que tais ambientes pareciam representar simultaneamente um choque
cultural e uma ameaça política latente para a burguesia e os restantes estratos
estabelecidos da sociedade local.
“(…) Aqueles que mais se queixam da mesquinhez dos salários são muitas vezes os que mais frequentam a taberna, embriagando-se miseravelmente, arruinando a saúde, a bolsa e comprometendo a normalidade da sua descendência. (…)
É na taberna que o homem começa muitas vezes a odiar a sociedade e a ordem pública. Os dementadores vapores do álcool são propícios a todas as loucuras. Uma grande parte dos crimes registados no país têm a sua origem na taberna. Quando não são perpetrados dentro dela, nasceram, pelo menos, de discussões nela travadas. Porque a verdade é esta: se há indivíduos de vinho bom, há outros a quem o vinho torna maus e perigosos.
Quantos cidadãos a taberna perde? Quantos lares desfaz? Há homens tão insensatos que chegam a levar as próprias esposas na sua companhia, para as tabernas a fim de nelas se embriagarem em conjunto! Ora se um homem bêbado é desprezível, uma mulher etilizada é repugnante!
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
323
Mas há gente tão inconsciente que acha graça em viciar os outros no alcoolismo, pagando do seu bolso, vinho e aguardente a crianças e mendigos, para ver e gozar as tropelias que eles, porventura, façam!
O homem que se habitua à taberna vai progressivamente perdendo o amor ao trabalho e à economia. Emborcando copos atrás de copos, gasta quanto dinheiro leva e, ao regressar a casa, cambaleante e grotesco, encontra sempre pretexto para insultos e pancadas. Há indivíduos que passam todo o tempo disponível do trabalho, não em casa ou no seu quintalório, mas na taberna, gesticulando, vociferando e praguejando. Gritam contra a sua condição, contra a sua miséria, contra os seus farrapos. Mas que fazem eles senão agravar a pobreza em que vivem? (…)
Por isso o ressurgimento moral e físico da Nação depende, em grande parte, do combate a essas baiúcas onde o homem se deseduca e animaliza. Como medida de saneamento recomendava-se a proibição da abertura de novas tabernas, autênticas ou disfarçadas, pois há muitos estabelecimentos que, embora com um aspecto mais decente, são tão perigosos como tabernas tradicionais (O Sanjoanense, 30/9/42).
Este período foi particularmente difícil para os sectores mais pobres da população
sanjoanense. Os surtos de fome e de doença – a tuberculose, nomeadamente –
forneceram razões acrescidas para que o espaço da taberna continuasse a ser alvo de
crítica. As carências com que se debatia o operariado, embora merecendo alguma
atenção e caridade dos mais abastados, não deixavam de ser em parte justificadas pelos
caminhos de perdição e de vício em que se deixavam enredar muitos chefes de família.
Chegou-se mesmo a apelar à restrição do número de tabernas por via legal e a denunciar
de forma violenta o “egoísmo” dos comerciantes que viviam “à custa da desgraça
alheia”. Mas tais intentos eram geralmente de nulo efeito. A profusão de tabernas em S.
João da Madeira não parece ter diminuído. No mesmo periódico repetiam-se as crónicas
a denunciar o elevado número desses estabelecimentos onde muitos operários
despendiam parte significativa do seu magro salário: “para uma população de oito mil
almas há cerca de cinquenta tabernas, onde o operário deixa grande parte da sua féria
semanal, reservando para a sua própria alimentação e para a da família uma parte
insignificante para prover, sequer, às mais elementares necessidades” (O Sanjoanense,
30/9/1945).
Chegaram até a ter lugar acaloradas polémicas sobre se o espalhar da tuberculose
residia na violência dos trabalhos fabris ou antes no alcoolismo e na deficiente
alimentação. Vozes, de duvidosa imparcialidade interrogavam-se, desde logo induzindo
a resposta: “porquê, se o clima é bom e o operário ganha, por via de regra, o suficiente
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324
para ter uma alimentação razoável?”159 (O Sanjoanense, 30/9/1945). O apertado controle
político, num contexto de perseguição aos dirigentes sindicais que haviam preparado a
greve do calçado em 1943, deixava pouco espaço para que uma opinião de denúncia da
violência fabril pudesse ser divulgada. Por isso, a tese do “vício” e da
“irresponsabilidade” do “chefe de família” teria de vingar. Todavia, a referida polémica
não deixa de mostrar uma vez mais a importância simbólica, cultural e política que a
taberna ocupou enquanto atmosfera cultural do mundo operário.
Cinemas e cafés
Ao contrário da taberna, a divulgação do cinema e do teatro de revista atraíram
clientelas dissemelhantes e aí se reflectia também alguma conflitualidade cultural. Ao
longo dos anos 30 e 40, o cinema e o café tornaram-se em SJM importantes espaços de
ampliação da esfera pública e a sua frequência rapidamente se estendeu da burguesia
local a outras camadas sociais, em especial os sectores mais jovens. O cinema ou o
teatro emergiram como campos de sociabilidade que se vinham juntar ao café e a outras
espacialidades festivas de carácter público. A primeira metade da década de 40, em
especial, constituiu a época de ouro do então prestigiado Cine-Teatro Avenida160, situado
no coração da vila, que estabelecera contrato com a companhia de teatro de Chaby
Ribeiro, de Lisboa.
A adesão crescente por parte do público à frequência regular do cinema chegou a
provocar protestos de algumas famílias de prestígio local, que alertavam contra a “falta
de civismo” e a “má educação” de alguns sectores do público. Esta preocupação com os
“maus hábitos” revela bem o esforço de acomodação e de imposição de condutas
condizentes com os hábitos da “boa sociedade” burguesa, em franca expansão na
159 Esta foi a frase que esteve na origem da referida polémica. Apenas tive acesso a posteriores respostas do mesmo autor, que procurou justificar-se argumentando que não afirmou que todos “os operários ganham bem”, pois, certamente existem muitos casos que negam essa afirmação, mas tais casos seriam apenas excepções. O certo é que a precaridade das condições de vida dos trabalhadores, em especial neste período, terá provocado alguma indignação face àqueles argumentos. 160 Inaugurado em S. João da Madeira em 1925, sob o impulso de um emigrante no Brasil, Avelino da Silva Martins, este cinema-teatro viria a perder o seu fulgor inicial a partir dos anos 50, vindo mais tarde a ser demolido. A título de exemplo, eis algumas das fitas em exibição neste espaço ao longo de um mês: No domingo dia 9 de Maio de 1943, era apresentado com uma matiné às 15h e soiré às 21,30h, O Gato e o Canário, interpretado pelos “conhecidos e excelentes artistas Bob Hope e Paulette Goddard”, conforme referia a notícia que acrescentava tratar-se de um filme com qualidades infalíveis para conquistar o público e onde “as cenas divertidíssimas, o mistério e a emoção, andam de mãos dadas”. No domingo seguinte, dia 16/5/43, era exibido O que o Tempo Não Levou – “um filme emotivo e humano, que faz rir e chorar (…), duma realidade assombrosa, que revela a vida de sacrifício duma mulher que amou loucamente”. No dia 30 do mesmo mês surgia, apresentado como “uma notável alta comédia, romântica e apaixonante”, Os Homens que a Amaram, com Loretta Young e Conrad Veidt – onde uma mulher
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
325
localidade. A pressão para disciplinar a “rudeza” de costumes dos populares “sem
maneiras” deu, a dada altura, lugar a um folheto divulgado num jornal local, no qual se
anunciavam os “12 defeitos” que o público cinéfilo deveria evitar:
1º- Ler em voz alta as legendas do filme que se está a exibir.
2º- Entrar na sala de projecção 10 minutos depois de principiada a sessão.
3º- Não querer gratificar o empregado que em poucos segundos vos indica atenciosamente o lugar.
4º- Levar lanches para o cinema, comer desalmadamente durante o espectáculo e deitar os papeis para o chão.
5º- Durante os intervalos percorrer a sala de lés-a-lés olhando o público insistentemente para tentar descobrir alguma cara conhecida.
6º- Cantarolar em surdina a canção que nesse momento se ouve no écran.
7º- Não estar quieto na cadeira, dando a impressão de que tem qualquer coisa a incomodá-lo.
8º- Ir ao cinema com o namoro... e aproveitar discretamente a escuridão do ambiente.
9º- Contar ao parceiro do lado, calma e distraidamente, o desfecho da película.
10º- Levar ao cinema (as senhoras, claro) chapéus parecidos com a torre Eiffel.
11º- Fumar junto das portas que dão entrada para a sala de projecção.
12º- Dizer inconveniências ou assobiar quando no écran se exibe uma cena de amor (O Regional, 14/7/46).
A profusão deste tipo de discurso é reveladora da expansão da classe média local e
de que muitos destes espaços de convívio se foram tornando acessíveis à classe
trabalhadora. O Pavilhão Gimno-Desportivo do clube local, inaugurado com a devida
solenidade em 1952, permitiu não só a expansão do desporto (nomeadamente o hóquei-
patins e o basquete), como a realização de várias celebrações e cerimónias oficiais nas
quais o povo trabalhador era chamado a estar presente. Em 1958 era inaugurada uma
nova sala de espectáculos, o “Cine-Teatro Imperador” (que ainda hoje se mantém), num
período em que se assistia ao declínio do Cine-Teatro Avenida. Apesar de às cerimónias
públicas de maior impacto afluírem todas as categorias sociais – permitindo que as
figuras públicas colhessem aí um importante capital de simpatias –, a estratificação
social estava desde logo instituída através da diferença de preços dos bilhetes de acesso
sacrifica o seu amor e a sua felicidade à arte a que se consagrou mas, sendo esposa e mãe, “porque preço vai pagar esse sacrifício?” (O Regional, vários números, Maio de 1943).
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(plateia, camarotes, 1º balcão, 2º balcão). No entanto, alguma mistura interclassista era
inevitável e daí os repetidos apelos à contenção e à “postura cívica” acima assinalados.
Alguns cafés locais disputavam nesta altura as atenções da burguesia sanjoanense:
o Café S. João, inaugurado em 1951, com secções de salão de chá e outras mais
restritas, incluindo a sala de “Reservados”, e o “Restaurante - Retiro Regional”,
destinado a “satisfazer os mais exigentes frequentadores”, localizado na Praça Luís
Ribeiro (o centro da vila); o Café Império (que até finais dos anos 30 era conhecido por
“Casa Natal”), situado no mesmo largo, mas no lado oposto, igualmente dotado de
várias secções, entre as quais uma sala de jogos e um salão de chá.
O campismo
Em finais dos anos 40, o desenvolvimento do campismo e a criação de várias
colónias balneares no quadro da política estatal dos tempos-livres, contribuíram
enormemente para a popularização da praia enquanto espaço de lazer. A imprensa
sanjoanense começava a publicitar a abertura de restaurantes na praia do Furadouro que
se vinha tornando o local de veraneio preferido das populações da região. Embora a
actividade campista em Portugal já estivesse em evolução desde os princípios do século
(sob influência da maçonaria), é só a partir dos anos 40 que a sua estrutura organizativa
começa a tomar corpo à escala nacional e surgem as primeiras iniciativas legislativas
nesse campo. Desde o primeiro acampamento organizado que se conhece, realizado em
1908 – em Chã das Abrotegas, na serra do Gerês, por iniciativa da revista Ilustração
Portuguesa – até às tentativas de movimentos da oposição ao salazarismo (o MUD
juvenil, em particular) que nos anos 40 penetraram nos clubes e estruturas organizativas
em disputa com a Mocidade Portuguesa, houve algumas etapas importantes no percurso
que levou esta actividade a ocupar um papel fundamental na expansão do turismo de
massas161.
“Por esse Portugal fora, em praias ou serras, junto de rios, à sombra de velhas árvores, por terrenos escalvados ou aprazíveis courelas verdes, já ninguém estranha ver, com a sua indumentária por vezes exótica, em que há um pouco de tudo, o campista, alegre pelo contacto da natureza, comungando a sua paz, esquecendo o bulício dos grandes centros.
161 Refira-se, por exemplo, o I Congresso de Campismo Desportivo (em Belas, 1940), a criação da Carta Campista Nacional (1942), a portaria que criou a Federação Portuguesa de Campismo (1945), a fundação do primeiro parque de campismo instalado no país (na Quinta de São Gonçalo em Carcavelos, 1949). Mas é só no início dos anos 60 que o campismo é oficialmente instituído como actividade turística (Decretos-Lei nºs 43.305 e 43.306 de 14/2/61) e passa então a ser directamente controlado pelo Secretariado Nacional de Informação (SNI) (cf. Campino, 1983).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
327
Desporto salutar, o campismo é, pelos múltiplos aspectos de que pode revestir-se – a pesca, a caça, o alpinismo, etc. – aquele que mais benéficos efeitos traz a quem queira retemperar forças gastas. Isto justifica o incremento que tem tomado e o grande número de adeptos que cruzam, hoje, em todas as direcções, Portugal. E é consolador ver esses grupos que se revigoram ao mesmo tempo que tomam contacto com os hábitos da gente do povo, ouvem suas expressões e ficam por isso mais próximos dos problemas do ruralismo.
De resto, vai já longe o tempo em que o ‘globe trotter’ era olhado com a superstição da dúvida, e, hoje, todo o campista compreende que uma saudação franca a quem por ele passe em qualquer aldeia é motivo de confiança e de júbilo para o povo. E não há, da parte deste, senão aquele mínimo de curiosidade que as inovações trazem sempre aos espíritos simples.
Compreendendo a salutar prática deste desporto e as vantagens da sua divulgação, acaba o SPN [Secretariado de Propaganda Nacional] de editar o ‘Roteiro Campista de Portugal’, em que se enumeram muitos dos locais apropriados para o praticar, ao mesmo tempo que se descreve, para cada um, certa faceta mais apropriada, e onde não faltam, felizmente, nem os conselhos úteis a quem jornadeia, nem o afoutoso incitamento para que se pratique o campismo” (O Regional, 6/9/42).
No que se refere a SJM, sugiram no início dos anos 50 as primeiras estruturas
organizativas do campismo, quando foram criadas em simultâneo duas associações
locais dedicadas ao campismo: o “Clube de Campismo de S. João da Madeira”; e o
“Núcleo Campista Labor” (fundadas no mesmo mês, respectivamente a 8 e a 29 de
Agosto de 1953). O Clube de Campismo é a entidade responsável pelo Parque de
Campismo do Furadouro, construído nos anos 70 e situado junto àquela praia. O Núcleo
Campista Labor, evidencia a sua vinculação à Igreja e a orientação espiritualista que
adoptou:
“É na natureza, observando os sublimes espectáculos que ela nos oferece, que mais se sente o criador. Quem não ficará enlevado ao contemplar a grandeza incomparável de um céu estrelado, o espectáculo infinito do mar, revolto ou espelhado, ao experimentar a calma profunda da mata silenciosa, ouvindo os seus rumores, tenuíssimos se a natureza é serena, ou impetuosos quando os elementos se desencadeiam? (…)” (Boletim Informativo nº. 1, Fevereiro de 1958). Como assinalou um estudioso da evolução do turismo em Portugal, o campismo
foi durante muito tempo um campo onde as instâncias governativas e os movimentos
oposicionistas travaram “um longo braço de ferro” (Pina, 1988: 129). Não foi possível
provar a natureza destas diferentes concepções acerca do campismo em SJM. Tanto
pode pensar-se na maior ou menor ligação às estruturas da Igreja Católica, na orientação
mais ou menos autónoma face às instituições do regime (nomeadamente a FNAT e a
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
328
Mocidade Portuguesa), ou até em eventuais divergências de natureza política, como
podendo explicar aquele divórcio associativo.
O desporto
A Associação Desportiva Sanjoanense (ADS) foi fundada em 1924, numa altura
em que se repetiam as iniciativas locais pelo desenvolvimento de infraestruturas em
diversos domínios, na sequência da conquista da autonomia concelhia162. A partir dos
anos trinta assistiu-se à popularização crescente de algumas modalidades desportivas em
SJM – o futebol, o hóquei-patins, o atletismo, etc. –, e tal facto não pode desligar-se dos
investimentos do Estado Novo nas políticas de regulação do lazer popular. Uma das
preocupações prioritárias da ADS foi a criação de um novo campo de jogos destinado a
substituir o “campo da Vista Alegre”, até então utilizado com carácter provisório. Em
20 de Julho de 1924 era inaugurado o “Campo de Jogos de Além Rio”, designação que
em 1939, após vários melhoramentos então levados a cabo, seria substituída pela de
“Campo de Jogos Conde Dias Garcia”. Ao longo dos anos 20 e 30 sucederam-se as
iniciativas organizativas e financeiras visando o melhoramento e a modernização das
estruturas da ADS. Angariação de donativos, alargamento do número de associados,
cedência de terrenos, empréstimos, etc., foram preocupações dos muitos animadores da
organização desportiva local. O nome do Conde Dias Garcia viria a ficar registado no
moderno estádio inaugurado em 6 de Setembro de 1964 – o “Campo Desportivo Conde
Dias Garcia”, o que se deve sobretudo ao facto de ter sido a mais importante fonte de
financiamento do clube. Além de uma avultada doação inicial, financiou mais tarde a
ampliação das instalações desportivas (incluindo a construção de um moderno pavilhão)
e perdoou diversas dívidas de que entretanto se tornara credor. As modalidades
praticadas pelo clube estavam inicialmente limitadas ao futebol, mas em 1928 eram
abertas as secções de basquetebol e atletismo e, anos mais tarde, as de andebol, voleibol
e hóquei em patins.
O hóquei começou a ser praticado em 1948 em espaço improvisado e,
inicialmente, inseria-se na campanha de angariação de fundos para a construção do
ringue de patinagem, que viria a ser construído no início do anos 50, devido ao apoio
decisivo de Daniel Nicolau da Costa. No dia 22 de Julho de 1952 foi inaugurada a
primeira fase do pavilhão dos desportos, que incluía o novo ringue de patinagem,
acontecimento que deu lugar a grande manifestação de regozijo, com uma festa que teve
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
329
a participação de mais de 2.000 pessoas. Esta ocasião possibilitou também uma
homenagem ao clube na qual participaram associações desportivas como a Académica
da Amadora, o Clube Atlético Campo de Ourique, o Estrela e Vigorosa Sport e o Clube
Infante de Sagres, tendo então sido disputado um pequeno campeonato entre essas
equipas.
Nesta altura, o desporto ocupava já um lugar de relevo na expansão dos lazeres,
com destaque para o futebol, mas, no âmbito local, o associativismo desportivo
misturava-se muitas vezes com outras actividades recreativas. Em termos de resultados
futebolísticos, a Sanjoanense (para além da participação do clube nalguns torneios
regionais, na sua fase inicial onde conquistou a Taça La-Salette, organizada em Oliveira
de Azeméis) teve a sua época áurea nos anos 60, quando a equipa foi campeã nacional
da II divisão de futebol em 1965/66, tendo disputado o Campeonato Nacional da I
divisão nas épocas de 1946/47 e 66/67 a 68/69. A melhor classificação no campeonato
principal foi um 10º lugar em 67/68 e esteve presente nos quartos de final da Taça de
Portugal nas épocas de 64/65 e 66/67. No hóquei em patins, a ADS foi campeã da II
divisão nacional em 1978/79 e disputou a final da Taça de Portugal com o Futebol
Clube do Porto na época de 1983/84. Também no basquetebol e no voleibol, o clube
obteve alguns sucessos desportivos, resultado da evolução que teve ao longo dos anos
60 e 70, instalando-se desde então nos escalões superiores destas modalidades
amadoras.
5.3.3 - A acção da FNAT em S. João da Madeira e o caso da “Oliva”
A FNAT merece aqui uma referência mais detalhada devido não só à importância
geral que teve na organização de significativas franjas dos trabalhadores portugueses,
mas em especial pela implantação que conseguiu em SJM através da empresa “Oliva”163.
Organismo fundamental do Estado Novo, esta instituição (fundada em 1935),
desenvolveu inúmeras actividades no campo da acção social, cultural e recreativa,
tendo-se tornado um veículo muito poderoso em termos de inculcação ideológica e de
acção organizativa dos hábitos de recreio dos trabalhadores. Entre as suas inúmeras
actividades contam-se a criação de colónias de férias para trabalhadores, passeios e
162 Todavia, o clube que lhe deu origem, o Sporting Club de S. João da Madeira, fora criado dois anos antes (1922), dedicado apenas à prática do futebol. 163 Já me referi antes (ver atrás, o ponto 5.2) à ampla protecção de que esta empresa beneficiou do regime, no quadro da política do Condicionamento Industrial. Trata-se agora de centrar as atenções no impacto local desta actividade organizativa e da carga doutrinária de que se revestia.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
330
excursões, desporto amador, ginástica, música, teatro, palestras, etc.164. Num dos
programas radiofónicos da época afirmava-se: “fazer algo de melhor do que fora feito
antes e proporcionar serviço diário que só dinheiro não possa recompensar. O dinheiro,
mais tarde ou mais cedo, enfada; (…) a única felicidade que vale a pena conhecer é a
alegria do dever cumprido” (programa radiofónico “Meia Hora de Cultura Popular”,
Dezembro de 1949, citado por S. Kuin, 1994).
Como atrás indiquei, a FNAT foi introduzida em S. João da Madeira através da
influente empresa de máquinas de costura “Oliva”. A relação privilegiada que esta firma
manteve com as estruturas do regime e a influência local do seu proprietário tornaram-
se elementos decisivos da acção do Estado corporativo junto da classe trabalhadora e
das comunidades da região. O aliciamento dos trabalhadores para hábitos como viajar,
fazer campismo, frequentar a praia, participar numa peça teatral da empresa, etc., foram
iniciativas fundamentais para reforçar a eficácia da propaganda oficial. Ao beneficiar de
particular protecção por parte do regime, a Oliva soube tirar proveito dos meios ao seu
dispor, tornando-se um modelo de referência na região. A notoriedade do seu
proprietário ajudava a consolidar as estruturas corporativas, ao mesmo tempo que
reforçava o seu estatuto e o seu poder devido a “tão elevados benefícios que dava aos
seus trabalhadores”. A imprensa local era incansável no permanente aplauso às
iniciativas directa ou indirectamente ligadas à empresa ou ao seu principal responsável.
Exemplo nacional e local, ao apoio estatal acrescentavam-se as sucessivas campanhas
que os periódicos da terra lhe dedicavam. O discurso patriótico e nacionalista veio,
assim, encaixar-se no sentimento bairrista que, como já referi (Capítulo 4), começou a
ganhar relevo pouco depois da queda da monarquia. O “grande exemplo” da “Oliva” e
do seu “benemérito proprietário” pretendia no fundo exaltar a laboriosidade dos
164 Nos seus princípios programáticos, a FNAT afirmava-se contra as tendências universalizantes por serem consideradas um risco para o Homem, levando-o a “perder o pé”. Por isso, propunha-se zelar pela “conservação do tipo nacional de cada povo”, preservando as suas características essenciais, “o génio de cada raça”, o seu “estilo próprio e a sua tradição”, em defesa do nacionalismo do regime, da coesão da célula familiar, dos “bons costumes”, da “moral católica”, procurando enquadrar o povo no seio das corporações do Estado, “com vista ao seu aperfeiçoamento físico, intelectual e moral”. (FNAT - Os Princípios, as Realizações e as Perspectivas, edição do Gabinete de Divulgação, ano XX, 1935-1954). Os filiados na FNAT eram obrigatoriamente sócios de um Sindicato Nacional (corporativo), de uma Casa do Povo ou Casa de Pescadores. As estruturas de base eram, nas empresas, os Centros de Alegria no Trabalho (CAT) e, na zona de residência, os Centros de Recreio Popular (CRP). As Casas do Povo e as Casas de Pescadores eram, segundo os estatutos, considerados CRPs. A partir de 1940, as actividades da FNAT sofreriam um novo impulso propagandístico, nomeadamente com o recurso sistemático aos programas de rádio por si coordenados, como as palestras designadas por “Meia Hora de Cultura Popular”, a propósito das quais os centros filiados neste organismo passaram a
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
331
sanjoanenses, os passos dados pela vila “em direcção ao progresso” e as capacidades
empreendedoras dos seus industriais.
Em Julho de 1946 sob o título de primeira página do Regional, “A Operosidade
Industrial de António José Pinto de Oliveira”, afirmava-se:
“As oficinas metalúrgicas Oliva – a Fundição, como vulgarmente se diz – são qualquer coisa de formidável da nossa terra e até do nosso país. Os pavilhões oficinais que num forte e impressionante agrupamento ocupam vasta área de terreno e chamam a si atenção de quem, pela estrada ou pelo caminho de ferro, atravessa a nossa vila, não dão uma ideia exacta, por maiores que sejam as conjecturas que se tirem do seu aspecto exterior, do que é e do que vale este notável e importantíssimo estabelecimento fabril. Uma vez lá dentro, em visita às múltiplas secções, tudo quanto se vê excede a expectativa de quem quer que seja” (O Regional, 14/7/1946).
A atenção que os cronistas locais dedicavam a iniciativas deste tipo e a presença
maciça das populações nas paradas oficiais que tinham lugar no centro da vila sempre
que havia motivo para mais uma visita ministerial (ver fotografias da época, no final
deste capítulo), mostram a importância política que tais acontecimentos adquiriam, quer
no contexto local, quer mesmo a nível nacional. Daí, o aparato propagandístico e o tom
bajulador deste discurso de autoglorificação (aliás, em perfeita sintonia com o que se
passava na imprensa nacional, cada vez mais sujeita à censura e ao controle directo por
parte do governo). Era parte da estratégia com que o Estado repressivo se enfeitava, de
modo a seduzir as populações para sentimentos bairristas e nacionalistas, e para
comportamentos resignados ou bajuladores do poder.
Dois anos mais tarde, nova cerimónia, desta vez a pretexto da inauguração da
nova unidade produtiva da mesma empresa (a secção de máquinas de costura),
oficialmente inaugurada em 8 de Julho de 1948. Como era hábito em situações
semelhantes, a presença do Senhor Ministro, do Senhor Presidente da Câmara e do
Senhor Governador Civil do distrito eram razões de peso para que a “apoteose” fosse
total. O citado jornal exuberava, titulando: “Conforme fora anunciado, inaugurou-se no
passado dia 8, com a presença do Sr. Ministro da Economia, a Fábrica de Máquinas de
Costura Oliva”165.
organizar audições colectivas. Deste modo o discurso moralizador ampliava substancialmente as suas audiências aos sectores não alfabetizados dos trabalhadores (Kuin, 1994). 165 O artigo, reproduzido a partir do jornal O Comércio do Porto, assinalava que o ilustre membro do Governo chegou à vila pelas16 horas, tendo antes disso sido recebido pelo “chefe do distrito de Aveiro” (o Governador Civil), o vice-presidente da Câmara de S. João da Madeira e outras personalidades locais. “O
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
332
“À porta do imponente edifício fabril, prestavam a guarda de honra, o corpo activo dos Bombeiros Voluntários de S. João da Madeira e um grupo de filiados da Mocidade Portuguesa. Quando o Sr. Ministro da Economia (Dr. Daniel Barbosa) desceu do seu automóvel, a banda de música daquela progressiva terra tocou o ‘Hino Nacional’, ouvindo-se depois vivas que foram uma apoteose a quem, sem demonstrar fadiga, aparece a todos os acontecimentos que merecem a sua presença a fim de lhes dar, como representante do Governo, carácter oficial. (…) A vedar a entrada, a bandeira dos ‘Castelos e Quinas’ e a bandeira da Fábrica. E o simbólico acto inaugural, que foi sublinhado com bastantes ovações, consistiu no afastamento dessas bandeiras que, no entanto ficaram ali, como ex-libris de patriotismo e de trabalho a imporem-se à admiração de centenas de convidados. Nos seus postos, para que a visita fosse elucidativa, os operários faziam demonstrações (…).
[Mais adiante, o articulista destaca o discurso comovido do Sr. Presidente do Conselho de Administração – António José Pinto de Oliveira…]
(…) O tema das concisas palavras do homenageado foi o das relações entre o capital e o trabalho, a técnica e a mão-de-obra. Prestando justiça aos que servem a sua obra e cujo esforço tão bem tem sabido avaliar e recompensar, disse, em suma, que a principal razão do êxito dos seus empreendimentos, tem sido a dedicação, a boa vontade, o zelo, o espírito de bem servir dos seus cooperadores, desde os mais humildes operários e empregados até aos mais categorizados colaboradores e sócios, a todos exortando a persistir, sem desalento, no comum esforço criador, para bem da indústria daquela casa, de São João da Madeira e de Portugal” (O Regional, 11/7/1948).
Em 2 de Fevereiro de 1951, é fundado o Centro de Cultura e Recreio Oliva (um
dos muitos Centros de Alegria no Trabalho – CATs – vinculado à FNAT). Tiveram
então início as actividades desportivas como a pesca, o atletismo, o ténis de mesa e o
jogo de damas. Mais tarde foi introduzida a ginástica, o futebol, e a natação. Exibiram-
se centenas de filmes (16 mm) em sessões semanais e promoveram-se “palestras” sobre
variados temas. O grupo de teatro foi um dos pólos de maior dinamismo no campo das
actividades recreativas e culturais dos trabalhadores da Oliva.
No seu período áureo (anos 60) o Centro de Recreio Oliva desenvolveu intensa
actividade, chegando a atingir mais de 1600 sócios, o que correspondia a mais 90% dos
trabalhadores da empresa. Além do grupo de teatro, foram também criados um Orfeão,
uma Banda de Música, um Conjunto Musical e um Grupo de Variedades, que animaram
variadíssimos espectáculos em diversos pontos do país, geralmente a convite de
associações congéneres. Quer os organismos para-militares do regime, como a Legião
Portuguesa e a Mocidade Portuguesa (ambas com delegações em SJM), quer entidades
carro dos representantes do Governo foi seguido desde Lisboa, por cerca de vinte e cinco automóveis com convidados da fábrica Oliva”.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
333
locais como o “Cine-Teatro Avenida” colaboravam assiduamente com o CAT da Oliva
na realização de festas da empresa.
Eis algumas das principais iniciativas desportivas e recreativas que o CAT
desenvolveu ao longo dos anos 50 e 60:
– Em 1951, a Oliva participou pela primeira vez nos campeonatos nacionais de atletismo organizados pela FNAT tendo a sua equipa conquistado o 1º lugar (contra duas equipas de Lisboa: a Carris e a Papelaria Fernandes)166.
– Em Junho de 1955, o Centro promoveu um passeio fluvial pela Ria de Aveiro, em lancha motorizada que transportou os participantes (120 pessoas) entre o Forte da Barra e S. Jacinto; o programa incluía ainda uma visita ao miradouro de S. Jacinto e à respectiva mata, “uma das regiões mais lindas da Ria de Aveiro” (carta da Empresa de Transportes da Ria de Aveiro, de 2/6/1955).
– Em 1956, uma representação do CAT esteve presente com um atleta seu no “Festival de Inauguração do Estádio Olímpico do Sporting Club de Portugal”, que teve lugar em Lisboa, no dia 10 de Junho desse ano (cartas do Solar dos Leões-10/5/56 e do Sporting Club de Portugal-26/5/56).
– Em 1957 (27 de Setembro), realizou-se uma excursão a Viseu, levada a cabo em comboio de 3ª classe especialmente fretado à CP-Caminhos de Ferro Portugueses, cuja locomotiva foi para o efeito minuciosamente engalanada, ostentando a sigla com o nome da empresa na parte frontal.167
Para além destas actividades, a Oliva participou regularmente nos campeonatos
distritais e nacionais inseridos nos organismos da FNAT. Nessas competições, bem
como nos variados torneios a nível interno e inter-empresas, os operários-desportistas
eram levados a integrar essas competições168 através das estruturas coordenadas pelo
“Centro”, apesar das recompensas materiais serem praticamente inexistentes.
Nos anos 60 começaram a organizar-se férias na praia para os filhos dos
associados na recém inaugurada “Colónia Balnear Infantil Dr. Oliveira Salazar”, na
Gala, Figueira da Foz. Anualmente era organizada pelo Centro uma excursão de pais e
familiares àquela praia em visita aos seus filhos. Para além disso, a actividade
excursionista da Oliva era variada: Braga, Viseu, Figueira da Foz, Lisboa, Setúbal,
Algarve constituíam alguns dos destinos mais repetidos, mas também houve programas
166 A equipa era composta por um dos nossos entrevistados, o Sr. Silva (Tenente), Zeferino e Manuel Pinho (Entrevista no Pindelo, 16/1/94). 167 Após um processo de negociação de preços, que não parece ter sido muito fácil, a proposta da CP fixou-se num custo “muito especial” de 35$00 por passageiro, em comboio de 3ª classe e para um número mínimo de 400 pessoas. Na primeira carta, datada de 31 de Julho, a data prevista para realização da viagem era a 27 de Agosto e o preço que se propunha era de 58$00 por passageiro e um mínimo de cobrança pelo comboio de 13.920$00. Na segunda, de 25 de Agosto, refere-se que a iniciativa “se prevê para o mês de Setembro” e assinala-se que “foi resolvido aplicar ao referido comboio o preço muito especial de 35$00 por passageiro”.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
334
que incluíram a Espanha, embora excepcionalmente. A preocupação disciplinar é visível
na própria forma de organização dessas excursões. As directrizes a seguir e o detalhe
dos programas eram extremamente rigorosos, quer quanto ao cumprimento de horários,
quer quanto a outros pormenores: “manter todos os carros sempre em fila e chegando
todos à mesma hora nas respectivas paragens”. O “director da excursão” deveria
entregar antecipadamente o programa e o itinerário ao condutor e apresentar-lhe “o
guia” da excursão, a única pessoa que poderia dar ordens de paragem e arranque
(Boletim O Centro, nº 30, Fevereiro de 1968). Em 1969 foram visitadas as instalações
da empresa Efacec, em Braga: “ao som de algumas marchas da Oliva transmitidas pela
aparelhagem sonora instalada no carro nº 1, todos foram tomando conta dos seus lugares
dentro da melhor ordem e a partida foi rigorosamente cumprida (…)”, confirmando-se
mais uma vez “o espírito de disciplina, pontualidade e boa camaradagem” com que os
excursionistas tinham cumprido o plano de viagem (Boletim O Centro, nº 49, Setembro
de 1969).
Sem dúvida que estes programas desenvolvidos pelo salazarismo, no quadro das
políticas recreativas, tiveram grande impacto sobre os trabalhadores da região, não só no
adestramento das suas práticas produtivas e disciplinares, mas também na própria
modelação de hábitos de consumo e de lazer massificado que continuavam a ganhar
terreno junto das classes desfavorecidas. A diminuição do horário de trabalho, a
conquista da semana inglesa, o direito a férias pagas, juntamente com o
desenvolvimento das vias de comunicação e dos transportes, favoreceram a crescente
procura de novos passatempos e a emergência de estilos de vida cada vez mais
próximos dos padrões urbanos.
A generalização do uso da praia, o excursionismo, o desporto, o campismo, a
divulgação do romance radiofónico, dos “serões para trabalhadores”, do cinema e teatro
e, de um modo geral, a política turística implementada por Salazar e António Ferro,
constituíram um poderoso conjunto de meios de aceleração da mudança nos costumes
populares. A expansão dos lazeres e a sua progressiva mercadorização caminharam de
par com a força crescente da indústria turística e a importância da acção institucional
que lhe foi dirigida pelo Estado Novo. Mas, ao lado das tendências massificadoras e no
seu próprio seio moveu-se sempre a influência das culturas subordinadas e o seu
carácter transgressivo e popular. Embora predominantemente circunscritas às periferias
168 Segundo um antigo trabalhador da empresa, por mim entrevistado, dedicavam-se a elas com enorme
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
335
suburbanas, as classes populares foram-se apropriando de alguns espaços e modalidades
recreativas num sentido que nem sempre obedecia aos padrões institucionais em vigor.
Na década de sessenta, actividades como o campismo, o passeio domingueiro, a
excursão e o piquenique assumiram-se, cada vez mais, como palcos onde floresceram as
atmosferas populares. Neles pontificavam as famílias alargadas, a agitação ruidosa das
redes multigeracionais, a negação de fronteiras entre o público e o privado. Cenários
sociais que se aproximam, por vezes, do sentido “carnavalesco” atribuído a algumas
formas de cultura popular na sua exuberância festiva. O Furadouro, como outros lugares
de veraneio, tornou-se um espaço de peregrinação de fim-de-semana absorvido quase
por completo pelas classes baixas, em que o sol e a praia se complementam com a feira,
o carrossel e a sardinhada no pinhal. Num período em que, a nível nacional, os estádios
de futebol atraíam cada vez mais as camadas populares e os adeptos d’ “A Sanjoanense”
exultavam com a permanência do clube na 1ª divisão por três épocas consecutivas (entre
1964 e 1967). Paralelamente, o associativismo de bairro ou de aldeia continuou a
animar as comunidades locais com os seus arraiais, as suas bandas, as tunas, os clubes
desportivos e recreativos, etc., a sublinhar que o recreio popular se desenvolveu numa
estreita vinculação entre a tradição e a modernidade, entre a regulação e a resistência.
Em suma, pode dizer-se que o impacto da acção do Estado Novo na modelação
dos modos de vida dos trabalhadores e das comunidades locais em SJM foi
particularmente marcante desde os anos trinta (como de resto aconteceu na sociedade
portuguesa de um modo geral). Mas, apesar dos poderosos efeitos da acção ideológica
do regime e não obstante, por outro lado, a fraca capacidade de luta do operariado local,
a acção repressiva não deixou de se assumir em toda a sua plenitude nas (raras) ocasiões
em que a revolta e o protesto colectivos assumiram proporções mais radicais (como no
Verão de 1943). Embora pontuais, essas acções de resistência político-sindical deram
expressão a contradições de natureza socioeconómica. Mas as disputas no terreno
sociocultural manifestaram-se em geral de forma mais subtil. Na verdade, a actividade
organizativa e de enquadramento ideológico dirigida à esfera recreativa, principalmente
quando observada à luz das políticas turística e cultural do regime, tiveram um
significativo alcance na estruturação das modalidades de consumo e dos hábitos de lazer
dos trabalhadores, mas ao mesmo tempo não deixaram de se deparar com abundantes
expressões de rebeldia e de resistência por parte das classes populares.
entusiasmo, o que é elucidativo da força deste programa.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
336
Capítulo 6
A ESTRUTURA DE CLASSES NA REGIÃO DO CALÇADO:
MOBILIDADE SOCIAL, CONSCIÊNCIA DE CLASSE, ATITUDES E PRÁTICAS
Este capítulo centra-se na análise da estrutura de classes desta região169, fazendo
uso do modelo teórico de Erik Olin Wright. Trata-se, como referi na introdução, de uma
abordagem idêntica – quer quanto à metodologia utilizada, quer quanto ao modelo de
análise – à utilizada na pesquisa sobre as classes sociais em Portugal (Estanque e
Mendes, 1998), mas aplicada a uma amostra representativa da população activa desta
região, tendo em vista a comparação entre os níveis regional e nacional.
Muito embora o conceito de estrutura de classes se dirija geralmente para a escala
nacional (Wright, 1997a: 378), se tivermos em conta as características próprias do
sector industrial do calçado, se aceitarmos a coerência sistémica dos processos de
produção em que se apoia e os seus efeitos estruturantes sobre o tecido socioeconómico
e cultural desta zona, fará todo o sentido pressupor a existência de uma estrutura de
classes de base regional. Tal pressuposição vai, de resto, ao encontro da formulação de
Erik Wright, ao considerar que qualquer sistema de relações sociais estruturado na base
de factores como as relações de produção, as credenciais escolares e qualificações
técnicas, e os recursos organizacionais ou de autoridade, pode ser considerado como
uma estrutura de classes concreta170. Estamos, assim, perante um nível intermédio que
pode ser visto em articulação com a estrutura de classes nacional e interpretado à luz
dos factores históricos e socioculturais inscritos no contexto local. Foi esse o
procedimento que aqui adoptei.
Além de caracterizar a estrutura das localizações de classe a nível regional
(abrangendo os três concelhos já referidos), serão abordados aspectos como: a
mobilidade social intergeracional, as subjectividades e atitudes dos indivíduos quanto à
169 Recorde-se que o inquérito utilizado foi o mesmo da pesquisa de base nacional, embora a amostra tenha sido especificamente dirigida para esta região. Como já foi referido, a mesma circunscreve-se aos concelhos de S. João da Madeira, Santa Maria da Feira e Oliveira de Azeméis. Muito embora se presuma que a presença esmagadora da indústria do calçado neste espaço territorial contribui para lhe conferir coerência sistémica, é evidente que uma tal lógica não coincide totalmente com a divisão administrativa. Por isso, recordo, recorre-se ao termo “região” apenas por uma questão de facilidade linguística. Para uma discussão teórica do conceito de região, ver Giddens (1989: 89-118). 170 Com este procedimento será possível captar alguns dos particularismos sectoriais e regionais que, de outro modo, ficariam omissos no conjunto dos resultados globais do país. Wright procura contrariar a rigidez que tem conotado o conceito com uma base territorial nacional. Afirma que o mesmo pode apontar
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
337
sua auto-identificação de classe, a consciência de classe, as opiniões em relação ao
Estado, as experiências associativas e de participação em protestos e ainda a questão dos
consumos e actividades de lazer. Os resultados serão cruzados com as diferentes
categorias de classe identificadas a partir do modelo de Wright. Além de permitir captar
a estrutura de classes da região, o recurso ao inquérito por amostragem171 permite ao
mesmo tempo conferir um outro tipo de sistematicidade ao estudo das práticas e
atitudes, já que a análise se situa, agora, num âmbito mais abrangente.
6.1 - Caracterização da estrutura de classes da região
De acordo com os resultados do estudo sobre as classes sociais em Portugal
(Estanque e Mendes, 1998), a sociedade portuguesa revelou-nos uma estrutura de
classes substancialmente dissemelhante da das sociedades mais desenvolvidas com as
quais os dados portugueses foram comparados, nomeadamente a Suécia e os EUA. Os
maiores contrastes situam-se no elevado peso da pequena burguesia (22,6% em que
mais de metade pertence ao sector rural), e da categoria “proletária” (com 46,5%)172.
Enquanto a pequena burguesia tradicional, apesar de estar em declínio é ainda muito
significativa, a “classe média”, pelo contrário, não obstante o seu notório crescimento173
(quer quando comparada com , continua a ter um peso estatístico pouco relevante no
conjunto da população activa portuguesa. O proletariado, por sua vez, além do elevado
peso percentual assinalado é em boa medida constituído por camadas relativamente
jovens da força de trabalho e, nessa medida, está longe de se apresentar como uma
categoria em declínio.
Mas, se o estudo nacional comprovou a importância que continuam a ocupar os
sectores mais desapossados dos assalariados portugueses (46,5%), no caso da
subamostra desta região a categoria “proletária” é, sem dúvida, uma localização de
classe com um peso morfológico quase esmagador (60,2%). Efectivamente, a estrutura
para uma variedade de níveis, admitindo que se fale, por exemplo, da estrutura de classes de uma região, de uma empresa X ou da estrutura de classes mundial (Wright, 1997a: 378). 171 Para os critérios de construção da amostra e operacionalização da tipologia das classes, ver Anexo 2 (Tabelas 6.1 e 6.2). 172 Recorde-se que os dados correspondentes revelam, no caso da Suécia, 5,4% para a “pequena burguesia” e 43,5% para os “proletários”, e nos EUA os valores não são muito distantes destes, com 6,9% para a “pequena burguesia” e 39,9% para os “proletários” (cf. Wright, 1985: 195). 173 Como é evidente, os dados obtidos para a estrutura de classes actual não permitem qualquer comparação. Por isso, quando digo que há crescimento da “classe média” estou não só a ter presentes estudos anteriores, nomeadamente, os de Marques e Bairrada (1982) e Ferreira de Almeida et al. (1994), mas também a informação relativa à classe do pai a que mais adiante farei referência (ver à frente Quadro 6.4).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
338
de classes da região – desenhada a partir do modelo de análise de Wright – apresenta-se
bastante mais polarizada do que a estrutura de classes do país. Tal resultado prende-se,
certamente, com o facto de se tratar de uma zona de forte implantação industrial e onde
proliferam sectores de mão-de-obra intensiva, como o do calçado.
TABELA 6.1 - Distribuição da força de trabalho pela matriz das localizações de classe (%s totais das amostras nacional e regional)
Recursos em meios de produção
Proprietários Não proprietários (assalariados)
1.Capitalistas/ Burguesia Portugal 0,8% Região 2,3%
4.Gestores Qualifi- -cados Portugal 2,6% Região 0,7%
7.Gestores Semi- qualificados Portugal 1,2% Região 0,3%
10.Gestores Não Qualificados Portugal 2,6% Região 2,7%
+
2.Pequenos Empresários Portugal 7,1% Região 7,0%
5. Supervisores Qualificados Portugal 1,0% Região 0,3%
8.Supervisores Semiqualificados Portugal 0,8% Região 0,0%
11. Supervisores Não Qualificados Portugal 5,3% Região 2,7%
Recursos
> 0 Organi- zacionais
3.Pequena Burguesia Portugal 22,6% a) Região 19,1% b)
6.Técnicos Não Gestores Portugal 3,6% Região 0,7%
9.Trabalhadores Semiqualificados Portugal 5,8% Região 4,0%
12. Proletários
Portugal 46,5% Região 60,2%
_
+ > 0 –
a) PBagric 12,4% b) PBagric 6,4%
Credenciais/Qualificações
Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal Portugal: N = 1101; Região (SJM, VF, OA): N = 299.
Como podemos observar na tabela acima, as localizações de classe média quase
desaparecem, enquanto a pequena burguesia apresenta um valor próximo do valor
correspondente para país (19,1 para 22,6%). A categoria dos “pequenos empresários”
(aqueles que empregam de 1 a 9 assalariados) acompanha igualmente o resultado
nacional (7,0 para 7,1%), enquanto a localização dos capitalistas tem um peso que quase
triplica o da mesma categoria à escala nacional (2,3 para 0,8%).
O maior impacto regional da localização dos “capitalistas” surge em coerência
com a já assinalada importância das pequenas empresas nesta zona industrial, uma vez
que, como sabemos, os critérios de construção desta tipologia estabelecem o número de
dez ou mais assalariados na delimitação entre os “pequenos empresários” e os
“capitalistas”. Por isso, tal como no caso da amostra nacional, os “capitalistas” são de
facto pequenos empregadores que, na sua grande maioria, têm menos de 50
trabalhadores (na amostra da região cerca de 90% dos inquiridos trabalham em
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
339
empresas com menos de 50 assalariados). Em todo o caso, a maior fragmentação da
propriedade não faz atenuar a concentração de trabalhadores assalariados em empregos
onde os recursos em qualificações e credenciais estão ausentes e, portanto, a
proletarização da força de trabalho constitui um traço marcante da estrutura de classes
da região. Recorde-se que os concelhos em análise têm vindo a crescer em população
activa ao longo das últimas décadas ao mesmo tempo que os sectores secundário e
terciário também aumentaram significativamente, ao contrário do sector primário que na
década de oitenta diminuiu quase 50% em termos de absorção de população activa
(INE, Censos 1991). O dinamismo industrial da região e o declínio da actividade
agrícola leva a que o peso relativamente elevado da pequena burguesia (19,1%) não se
deva tanto ao peso do sector rural como acontece no país genericamente considerado.
Enquanto na amostra nacional a actividade agrícola ocupa metade da pequena burguesia
(12,4% num total de 22,6%), nesta região o seu peso não vai além dos 6,4%, isto é,
representa apenas cerca de um terço do valor da pequena burguesia. Ainda no que diz
respeito às categorias intermédias dos assalariados, ou seja, aquelas que incorporam
recursos significativos em credenciais escolares ou qualificações, é notório o seu
reduzido peso na subamostra da região comparativamente com os resultados nacionais.
Efectivamente, o quadro de resultados obtido vai ao encontro do que já se conhecia
para o sector do calçado quanto à escassez de quadros e chefias intermédias e
qualificadas na gestão das empresas. Apenas os gestores não-qualificados possuem um
peso percentual idêntico ao resultado nacional. Para além dos supervisores não-
qualificados, cujo número corresponde, em termos relativos, a cerca de metade do peso
da mesma categoria a nível nacional (2,7 para 5,3%), todas as restantes categorias mais
qualificadas estão claramente subrepresentadas na matriz geral. Desde as que mais se
aproximam do operariado qualificado (célula 9 da matriz, com 4%) até à dos gestores
qualificados (célula 4 com apenas 0,7%), as restantes localizações que poderemos
incluir na classe média, todas elas possuem um peso relativo nitidamente inferior às
mesmas categorias da amostra nacional. Dada a já assinalada fraca representação das
categorias intermédias na amostra da região e tendo em vista atenuar a excessiva
dispersão dos resultados, procedeu-se aqui a agregações entre diversas categorias, pelo
que a matriz de análise é baseada numa estrutura reduzida das localizações de classe.
Deste modo, consideram-se ao todo cinco categorias de classe174: 1. Patrões; 2.
174 Os critérios de operacionalização são os seguidos no modelo de Wright, quer na matriz geral das doze
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
340
Pequena Burguesia; 3. Gestores e Supervisores; 4. Técnicos e Trabalhadores
Qualificados; e 5. Proletários.
No quadro seguinte (Quadro 6.1) pode observar-se a distribuição sexual entre as
diferentes categorias de classe. Desde logo, é visível que as mulheres estão mais
representadas nas posições mais desapossadas de recursos e menos nas categorias
detentoras de propriedade ou de autoridade. No caso dos proletários, o sector feminino
ocupa na região um peso relativo superior ao dos homens em mais de dez pontos
percentuais (66,4 das mulheres para 56,4% dos homens), ao contrário do que acontece
no país, onde os proletários são uma categoria em que o peso relativo das mulheres é
inferior ao dos homens. Esta diferença substancial é um importante indicador da
discriminação da mão de obra feminina no tecido industrial da região, principalmente no
que se refere à sua evidente exclusão dos postos de trabalho investidos de autoridade.
Esta situação é particularmente nítida no sector do calçado onde, apesar da maioria da
força de trabalho ser feminina, os lugares de chefia e supervisão são quase
exclusivamente ocupados por homens (ver atrás, dados para o sector no Capítulo 3). No
que se refere aos patrões (empregadores), pelo contrário, persiste na região uma menor
representação de mulheres, sendo neste caso a diferença ainda mais vincadamente
favorável aos homens do que no país, como se pode observar no Quadro 6.1, abaixo.
Em relação à pequena burguesia, a tendência geral mostra que se mantém na região a
maior presença de mulheres nesta categoria de classe, embora com valores ligeiramente
atenuados em face dos resultados do país. No entanto é importante notar os resultados
do desdobramento efectuado quando se destaca o sector agrícola dentro desta
localização. Quer na amostra nacional quer na regional a diferença favorável ao sexo
feminino torna-se bastante mais notória na subcategoria rural, ou seja, as mulheres na
condição de pequeno-burguesas superam os homens em termos relativos, mas tal
tendência fica a dever-se principalmente ao seu maior peso relativo na vertente rural
dessa condição.
localizações de classe, quer no modelo simplificado, neste caso com apenas cinco categorias. As razões desta condensação devem-se sobretudo à pequena dimensão da amostra o que fez com que algumas das categorias integrassem um número extremamente reduzido de indivíduos. Se tal já acontecia na amostra nacional, por maioria de razão, na subamostra regional, algumas das localizações intermédias – dado o fraco peso das posições qualificadas e semiqualificadas da força de trabalho – tornavam-se estatisticamente irrelevantes. Assim, além dos “patrões”, que correspondem ao somatório das células 1 e 2 (capitalistas e pequenos empresários), juntámos o conjunto dos gestores e supervisores (células 4, 7, 10 e 5, 8 e 11 da matriz geral) e ainda os técnicos não gestores com os trabalhadores semiqualificados (células 6 e 9). Apenas a pequena burguesia e os proletários se mantiveram iguais, dado o seu significativo peso
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
341
O contraste a este respeito é bem mais visível na amostra regional, pois, ao nível do
país, também na pequena burguesia não-agrícola o género feminino está mais presente do
que o masculino, embora de forma menos marcante. Isto parece dizer-nos que entre as
famílias com pequena propriedade agrícola, quando um dos membros do casal se torna
assalariado é preferencialmente o homem que o faz, ficando a mulher a trabalhar na
exploração rural, o mesmo fenómeno já identificado por outros estudos de caso (Lourenço,
1991).
QUADRO 6.1 - Distribuição das localizações de classe, segundo o sexo dos
inquiridos. Comparação entre a amostra nacional e a da região (%s relativas e totais)
Distribuição segundo o sexo Categorias de classe PORTUGAL REGIÃO
Hs Ms TOTAIS Hs Ms TOTAIS
1.Patrões 10,0 5,3 7,9 13,8 1,8 9,4
2.Pequena Burguesia 20,4 25,4 22,6 18,6 19,8 19,1 PB Não-Agrícola 9,6 11,1 10,2 15,4 8,1 12,7
PB Agrícola
10,8 14,3 12,4 3,2 11,7 6,4
3.Gestores e Supervisores 14,4 12,5 13,5 9,0 2,7 6,7
4.Técn e Trab. Qualificados 7,5 11,9 9,4 2,1 9,0 4,7
5.Proletários 47,7 45,0 46,5 56,4 66,7 60,2
TOTAIS 100,0 (55,6%)
100,0 (44,4%)
100,0 (N=1101)
100,0 (62,9%)
100,0 (37,1%)
100,0 (N=299)
Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal.
Essa lógica parece de facto prevalecer na região em estudo onde, como se vê no
quadro acima, na pequena burguesia não-agrícola, os homens estão claramente mais
representados do que as mulheres, o que não acontece no caso da amostra nacional
(onde as mulheres têm maior peso, com 11,1% para 9,6% de homens).
Em relação às categorias assalariadas intermédias (que nesta tipologia reduzida
são apenas duas), pode dizer-se, em primeiro lugar, que os resultados da região mostram
valores claramente inferiores aos das mesmas categorias a nível da sociedade
portuguesa, a sublinhar o que atrás foi referido a propósito do reduzido peso da classe
média nesta região. Na verdade, como se pode ver, as diferenças são nítidas, com 6,7%
para a categoria dos gestores e supervisores (contra 13,5% a nível nacional) e 4,7% para
os técnicos e trabalhadores qualificados (contra 9,4% a nível nacional). As
desigualdades sexuais agravam-se bastante em desfavor das mulheres já que, como se
percentual. Para mais detalhes quanto aos critérios de operacionalização da matriz geral da estrutura das localizações de classe ver no final deste capítulo o Anexo Metodológico - Tabelas 6.1 e 6.2.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
342
observa no quadro acima, nas posições de poder (gestores e supervisores) a força de
trabalho feminina está muito menos representada do que a masculina, com uma
diferença de 2,7 para 9%, enquanto nos resultados nacionais tal diferença é bem mais
pequena (12,5 para 14,4%). Já no que se refere às categorias com mais recursos em
qualificações ou credenciais escolares (técnicos e trabalhadores qualificados), a amostra
regional parece acompanhar os resultados apurados para o país ao mostrar uma
diferença bem visível, não obstante o frágil peso relativo da referida localização de
classe (com 2,1% dos homens contra 9% das mulheres). Deste modo, poder-se-á dizer
que na amostra regional surgem tendências no mesmo sentido da amostra do país mas,
no que se refere às diferenças sexuais, as discrepâncias aparecem relativamente mais
nítidas. Em suma, a força de trabalho feminina tende a apresentar-se em posição
vantajosa nas situações em que estão em jogo recursos intermédios ou elevados em
qualificações mas sem o controle de recursos organizacionais, ou, dito de outro modo,
possuem credenciais mas não autoridade (o caso dos técnicos e trabalhadores
semiqualificados), enquanto nas posições de supervisão e de gestão – com ou sem
credenciais mas sempre com recursos de poder – são em geral os homens que aparecem
favorecidos. Isto acontece quer na amostra nacional quer na regional, sendo neste último
caso a diferença ainda mais visível.
QUADRO 6.2 - Níveis de instrução por categorias de classe. Comparação entre a
amostra da região e a nacional (% categoria de classe)
Níveis de instrução para a região e o país (*)
Categorias de classe até 4ª Classe
Preparat 5º-8º
Secund 9º-11º
Complem 12º
Sup ou Freq
TOTAIS
Patrões 53,6 (54,7)
10,7 (17,4)
21,4 (15,1)
3,6 (3,5)
10,7 (9,3)
9,4 (7,9)
Peq. Burguesia 66,7 (70,6)
21,1 (18,0)
7,0 (5,3)
1,8 (2,0)
3,5 (4,1)
19,1 (22,6)
Gestores/Superv 55,0 (19,9)
20,0 (15,1)
15,0 (17,1)
10,0 (13,0)
0,0 (34,9)
6,7 (13,4)
Técnicos/Trab SQ 14,3 (2,0)
7,1 (5,0)
7,1 (11,9)
7,1 (17,8)
64,3 (63,4)
4,7 (9,3)
Proletários 43,3 (40,7)
31,1 (28,7)
18,3 (19,5)
3,9 (7,9)
3,3 (3,1)
60,2 (46,8)
TOTAIS 48,2 (42,2)
25,4 (21,4)
15,7 (14,9)
4,0 (7,8)
6,7 (13,7)
100,0 (100,0)
Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal. Região: N=299; País: N=1086. (*) Os números entre parêntesis são as percentagens da amostra nacional.
A partir do cruzamento da tipologia das categorias de classe pelos níveis de
escolaridade e camadas etárias poderemos obter um conhecimento mais detalhado da
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
343
população desta região. Nos dois quadros seguintes observa-se uma predominância dos
baixos níveis de instrução em todas as categorias – excepto no caso dos “técnicos e
trabalhadores semiqualificados” – e sobressai o contraste entre os níveis etários mais
elevados dos proprietários e a maior juventude dos assalariados. Tendencialmente, os
resultados acompanham os da amostra nacional, mas, por vezes, deparamo-nos com
situações particulares nas categorias intermédias. Isto é, tanto nos “gestores e supervisores”,
como nos “técnicos e trabalhadores semiqualificados”, as diferenças são notórias. Em parte,
isso deve-se ao facto de ser nessas categorias que a amostra regional revela menor peso
percentual de assalariados.
Os técnicos e trabalhadores semiqualificados possuem um peso percentual muito
reduzido na região (apenas 4,7%, como se lê na coluna da direita do quadro). Os níveis
de instrução desta categoria acompanham parcialmente a distribuição nacional, mas
verifica-se que as maiores percentagens relativas se concentram nos níveis extremos
(onde os valores são superiores aos da amostra nacional), enquanto nos níveis
intermédios (preparatório, secundário e complementar) possuem menor significado na
amostra regional. Os baixos níveis de instrução nesta categoria técnica são muito mais
notórios na região do que no país (14,3% para 2%). Também os gestores e supervisores
têm menor significado na região do que no país (6,7% contra 13,4%) e revelam níveis
de instrução igualmente muito baixos. Em termos globais verifica-se que há na região
um maior peso de força de trabalho com baixos níveis de instrução e,
consequentemente, menores percentagens de activos com escolaridade elevada. Pode
ainda confirmar-se que, quer na amostra regional, quer na nacional, os mais baixos
volumes de credenciais escolares se situam nas categorias proprietárias (patrões e
pequena burguesia). A localização dos proletários revela também, como seria de
esperar, baixos índices de escolarização em ambas as amostras mas, ainda assim, não
tão baixos como os daquelas categorias. Uma situação aparentemente anómala é a dos
gestores e supervisores que na região são muito menos escolarizados do que na escala
nacional. Isto prende-se, em parte, com as agregações efectuadas, mas é também um
reflexo do tipo de estrutura industrial desta zona, como atrás foi referido.
Para concluir esta caracterização genérica da amostra, vale a pena fazer referência à
distribuição dos níveis etários pelas categorias de classe (Quadro 6.3, abaixo). Em primeiro
lugar, é notório o contraste entre a juventude do sector assalariado contra a maturidade da
categoria patronal e um ainda maior envelhecimento da pequena burguesia. Os patrões,
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
344
embora com maior peso na camada mais idosa do que na mais jovem (não existem patrões
com menos de 26 anos na amostra da região), os valores percentuais mais elevados
distribuem-se pelas camadas intermédias, ou seja, na dos 36 aos 45 e na dos 46 aos 55 anos.
No caso da pequena burguesia a tendência estende-se mais para as camadas mais idosas, o
que obviamente, vem secundar o conhecido processo de envelhecimento dos sectores
tradicionais desta classe, nomeadamente o caso da pequena agricultura e do pequeno
comércio de base familiar.
QUADRO 6.3 - Níveis etários para a amostra da região, segundo a categoria de classe
(% categoria de classe)
Níveis etários
Categorias de classe < de 26 anos
26-35 36-45 46-55 > de 55 anos
TOTAIS (N)*
Patrões 0,0 14,3 39,3 28,6 17,9 9,4(28)
Peq. Burguesia 3,5 10,5 21,1 36,8 28,1 19,1(57)
Gestores/Superv 0,0 50,0 40,0 10,0 0,0 6,7(20)
Técnicos/Trab SQ 21,4 14,3 28,6 35,7 0,0 4,7(14)
Proletários 25,6 36,1 18,9 13,9 5,6 60,2(180)
TOTAIS (N)* 17,1(51) 29,1(87) 23,1(69) 20,4(61) 10,4(31) 100(299)
Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal * Os números entre parêntesis são valores absolutos.
Porém, nota-se também alguma presença de jovens nesta localização de classe, a
mostrar simultaneamente alguma revitalização a que se vem assistindo noutros sectores de
trabalho autónomo, quer no ramo dos serviços, quer em actividades de carácter artesanal ou
industrial. Quanto aos gestores e supervisores, são a única excepção à anterior afirmação de
que os assalariados são jovens em comparação com os proprietários. Efectivamente, os
gestores e supervisores podem considerar-se uma categoria jovem (principalmente
atendendo a que ocupam cargos de autoridade) dado que 90% se distribui pelas camadas
etárias situadas entre os 26 e os 45 anos e 50% possui menos de 36 anos. Este resultado
parece, de facto ir de encontro de observações fornecidas por outras fontes segundo as quais
as chefias das pequenas empresas desta região conquistaram as suas posições devido
sobretudo a uma aprendizagem adquirida através da experiência laboral e, desse modo, as
posições de autoridade alcançadas passam muito pelos laços de lealdade e vínculos
informais que estabelecem com o pequeno patronato. Com os técnicos e trabalhadores
semiqualificados a distribuição etária revela maior peso na camada mais jovem (21,4%)
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
345
enquanto nos níveis intermédios (entre os 46 e os 55 anos) se verifica uma maior
concentração desta categoria (35,7%). Finalmente, a localização proletária, e tal como
acontece para o país, revela ser uma categoria globalmente jovem (e feminizada, como se
viu), com as camadas etárias mais baixas a revelarem maior peso percentual: 25,6% situam-
se na camada entre os 18 e os 25 anos e 36,1% entre os 26 e os 35 anos.
Estas indicações devem, portanto, ser vistas no quadro de um contexto industrial
em expansão ao longo das últimas décadas, o que – em especial no caso do calçado – se
liga igualmente ao carácter instável das pequenas unidades produtivas, dada a facilidade
de instalação dos meios tecnológicos a que recorrem. Muito embora, como tenho vindo
a mostrar, o dinamismo da actividade industrial desta zona não deixe de se apoiar em
notórias desigualdades e contradições de classe, tal processo parece ser secundado por
diversos mecanismos que funcionam como factores de regulação social e têm um efeito
estabilizador, quer no terreno das práticas de classe, quer mesmo na reprodução de uma
estrutura de classes que objectivamente permanece idêntica ou tem evoluído muito
lentamente.
Uma das hipóteses colocadas no início da presente dissertação postulava que,
nesta zona, os processos sociais estruturados ao longo do tempo se traduziram numa
estreita articulação entre os factores de mercado e os factores culturais enraizados na
tradição local, fazendo emergir sistemas de práticas socioculturais em que a resistência e
a adaptação se encontram intimamente misturadas, o que se traduz em práticas e
subjectividades de natureza dúctil e ambígua. Na análise que se segue sobre a
mobilidade social intergeracional, continuarei a ter presente essa hipótese, bem como a
importância das articulações entre a vertente estrutural e a subjectiva nos processos de
mudança (continuando a socorrer-me do modelo de Erik Olin Wright).
6.2 - Mobilidade social intergeracional
A partir dos dados da subamostra e com base em critérios ligeiramente adaptados,
foi possível construir uma tipologia das localizações de classe idêntica para inquiridos e
para os seus pais, a fim de interpretar os processos de mobilidade social que tiveram
lugar entre estas duas gerações (ver, Anexo 2 - Tabela 6.3)175. Considerou-se como
175 Uma vez que a amostra apenas é representativa para a situação de classe actual (e não para a classe de origem), a informação disponível para a situação profissional dos ascendentes é, obviamente, menos detalhada do que a respeitante aos indicadores de classe dos inquiridos. Por esse motivo, os critérios utilizados para a construção da tipologia da mobilidade social são necessariamente uma simplificação do modelo geral das localizações de classe.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
346
referência para a classe de origem a localização de classe do pai. Embora admitindo a
inevitável arbitrariedade desse critério, seguiu-se o pressuposto clássico de tomar o
“chefe de família” como o principal elemento definidor da condição de classe do grupo
doméstico. Como se pode observar no Quadro 6.4, a estrutura das localizações de classe
dos pais dos nossos inquiridos (ver os totais na linha de baixo) dá-nos, desde logo, uma
ideia da evolução da estrutura de classes ao longo do tempo. Uma primeira indicação
mostra-nos que a configuração da tipologia não é, grosso modo, muito dissemelhante da
que se refere à geração actual.
QUADRO 6.4 - Mobilidade social intergeracional com base na classe do pai
(% categoria de classe actual)
Categoria de classe do pai
Categoria de classe actual
Patrões Peq. Burg Gest/Sup Técn/TSQ Prolet TOTAIS* (N)
Patrões 28,0 24,0 0,0 4,0 44,0 10,9(25)
Peq. Burguesia 9,1 50,0 2,3 0,0 38,6 19,1(44)
Gestores/Superv 14,3 0,0 14,3 0,0 71,4 6,1(14)
Técnicos/Trab SQ 40,0 30,0 0,0 10,0 20,0 4,3(10)
Proletários 2,9 21,9 3,6 1,5 70,1 59,6(147)
TOTAIS (N) 9,1(21) 26,5(61) 3,5(8) 1,7(4) 59,1(136) 100(230)
* Como baixou o número de respostas válidas para a construção da classe do pai, as percentagens totais surgem aqui ligeiramente diferentes. N/S, N/R = 69 Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal
Os proletários são a categoria com maior peso percentual em relação ao conjunto
das restantes posições (59,1%), seguindo-se-lhe a pequena burguesia (26,5%) e a
categoria patronal (9,1%). De facto, comparando estes resultados com os da classe actual
verifica-se que os assalariados não-proletários (digamos, da “classe média”) se mostram
as categorias com menor peso e também aquelas em que as diferenças face às da actual
geração são mais significativas, em termos relativos. Os patrões revelam uma subida de
9,1 para 10,9%, a pequena burguesia uma descida substancial de 26,5 para 19,1%, os
gestores e supervisores (3,5% para 6,1%) e os técnicos e trabalhadores semiqualificados
(1,7% para 4,3%) aumentam significativamente em termos relativos e os proletários
mantêm-se estáveis, com uma subida pouco perceptível, de 59,1% para 59,6%. A
categoria proletária, que já era fortemente maioritária na geração anterior, não diminui o
seu peso, antes o reforça ligeiramente. Eis, portanto, os dois traços mais marcantes da
estrutura de classes desta região: primeiro, um peso razoável da pequena burguesia,
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
347
actualmente próximo do valor encontrado a nível nacional (22,6%) e uma presença
bastante superior da categoria mais desapossada de recursos, o proletariado (que a nível
nacional detém, como vimos 46,5%); segundo, uma estrutura de classes que,
globalmente, não mudou significativamente na passagem de uma geração para outra. A
referida quebra da pequena burguesia e o aumento (assinalável em termos relativos mas
diminuto em termos absolutos), das já mencionadas categorias de classe média, aparecem
sobretudo como tendências que acompanham a evolução da estrutura de classes nacional
na sua recomposição ao longo das últimas décadas. O mesmo poderá dizer-se quanto à
subida ligeira dos empregadores (patrões), muito embora neste caso, o próprio dinamismo
e as características da indústria local contribuam decisivamente para o crescimento do
número de pequenos patrões.
Se globalmente a estrutura classista da região se mantém, como vimos,
relativamente estável, os mesmos resultados mostram-nos um quadro bastante dinâmico
no que se refere aos fluxos de mobilidade social intergeracional. Na verdade, através da
leitura do quadro anterior podem observar-se importantes transferências de indivíduos
entre diferentes categorias de classe à luz da localização de classe dos seus pais. Os
movimentos entre a pequena burguesia, o patronato e o proletariado são significativos, se
bem que – paradoxalmente ou talvez não – as mesmas categorias revelem
simultaneamente altos índices de “autoreprodução” dentro da mesma classe. Vejamos
como: na perspectiva da abertura de fronteiras intergeracionais temos o (pequeno)
patronato com 24% de origem pequeno burguesa e 44% proletária; a pequena burguesia
com 38% de origem proletária; e 21,9% dos proletários, por sua vez, com uma origem de
classe pequeno burguesa. Quanto ao fechamento/ reprodução, verificamos que a categoria
proletária é aquela em que as barreiras de classe parecem mais eficazes, isto é, na sua
grande maioria os proletários (70,1%) são filhos de pais igualmente proletários; a
pequena burguesia revela 50% de “autorecrutamento”; e em relação aos patrões, são 28%
os que se mantêm na classe de origem. Significa isto que, apesar da relativa abertura da
estrutura das localizações de classe, quando a mesma é vista numa perspectiva temporal,
ou seja, comparando o volume de transferências entre pais e filhos, a impermeabilidade
das fronteiras de classe é, em certas situações, um facto bem visível. O caso mais
evidente é o do proletariado, que se debate com importantes barreiras impeditivas da sua
descolagem para posições de maiores recursos. A única percentagem de indivíduos desta
categoria oriunda de outra localização que merece realce é a de 21,9% dos proletários
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
348
cujos pais eram pequeno-burgueses. Os restantes números são pouco significativos. No
entanto, somando esses 21,9% com os outros valores chegamos a um total de 30% de
proletários com origem noutra classe, o que, numa formulação simples poderia ser visto
como um valor de mobilidade social descendente, já que esta é a categoria mais
desapossada na presente tipologia.
Porém, não deve esquecer-se que este é um modelo topológico e relacional e não
uma pirâmide de hierarquias. Nesse sentido, não só as mudanças ocorridas não podem
simplesmente ser vistas como o resultado do reconhecimento das aptidões individuais,
mas, mais do que isso, há que ter em atenção a mudança estrutural e a consequente
recomposição da estrutura das classes regional ao longo do tempo, o que se liga à
mudança mais geral da sociedade portuguesa e do mercado capitalista, nacional e
internacional.
Aparentemente, pode dizer-se que quanto à impermeabilidade das fronteiras são,
por ordem decrescente, os proletários, a pequena burguesia e os patrões que revelam mais
claramente uma lógica de autoreprodução. Como já se viu, a actual localização proletária
tem 70,1% de origens nessa mesma classe, a pequena burguesia 50% e os patrões 28%.
Todas as categorias de classe da geração actual têm uma origem de classe vincadamente
marcada pela categoria proletária. A única excepção a esse respeito é a categoria dos
“técnicos e trabalhadores semiqualificados”, maioritariamente oriunda da classe patronal
(40%) e da pequena burguesia (30%) e que revela menos ligação ao proletariado (apenas
20% tem aí a sua origem). Quer esta categoria, quer a dos gestores e supervisores estão,
como se sabe, pouco representadas na presente amostra e, portanto, são mais susceptíveis
de distorções. No entanto, vale a pena determo-nos brevemente na análise destes
números, na medida em que eles poderão elucidar certos traços da estrutura de classes
desta região.
No caso dos gestores e supervisores é curioso verificar que a sua esmagadora
maioria tem uma origem proletária (71,4%). Um dado que sem dúvida está ligado ao
facto de a maioria desta localização possuir, como se viu atrás, níveis de instrução
bastante baixos, ou seja, trata-se quase exclusivamente de gestores e supervisores não-
qualificados, pessoas que, como referi antes, foram promovidos a posições de chefia a
partir da experiência e da sua dedicação à empresa e não com base em credenciais
conquistadas no sistema educativo. Ao contrário, no caso dos “técnicos e trabalhadores
semiqualificados”, a sua condição deve-se sobretudo à forte presença de níveis de
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
349
educação elevados (recorde-se que 64,3% desta categoria possui frequência ou curso de
ensino superior). Poder-se-ia pensar que estamos perante jovens recém licenciados ou
ainda a frequentar o ensino superior e ocupados em posições transitórias no mercado de
trabalho. No entanto, os valores da subamostra parecem ligeiramente diferentes dos
resultados do inquérito nacional a esse propósito (cf. Estanque e Mendes, 1998). Aqui,
esta categoria não é tão jovem como isso, distribuindo-se sobretudo pelas categorias
intermédias (cerca de 64% situa-se na camada etária entre os 36 e os 55 anos e cerca de
36% tem mais de 46 anos) o que me leva a pensar que as credenciais escolares são ainda
muito pouco reconhecidas como um critério importante no regime de contratações e/ou
de promoções nas empresas privadas da região. Refira-se que 64% desta categoria (a dos
técnicos e trabalhadores semiqualificados) trabalha para o Estado e apenas cerca de 35%
nas empresas privadas. No que se refere ao sector administrativo do Estado, as
credenciais escolares parecem ser importantes no acesso aos postos de trabalho mas, em
contrapartida, só muito lentamente e escassamente facilitam o acesso a posições dotadas
de autonomia e autoridade organizacional (isto tendo em conta os critérios deste modelo,
em que as duas categorias aqui agregadas são despojadas de autoridade formal. Ver atrás
Tabela 6.1).
6.3 - Auto-identificação de classe e consciência de classe
Os resultados que acabei de apresentar reflectem, como se viu, uma estrutura
regional de classes bastante dinâmica, estreitamente dependente de um capitalismo que
nas últimas três décadas se tem vindo a revitalizar em boa medida com base na indústria
exportadora do calçado. Para compreender as modalidades de consentimento e rebeldia
dos trabalhadores desta região há que atender ao efeito dos processos de transformação
social mais amplos e à forma como os mesmos se articularam historicamente com os
sistemas culturais e simbólicos das comunidades tradicionais desta zona (aspectos
abordados nos dois capítulos anteriores). O ponto de vista em que me coloco para a
abordagem das atitudes subjectivas, pressupõe que as barreiras de classe – isto é, os
limites e condicionalismos introduzidos pela estrutura das classes – interferem sobre as
opiniões e as práticas individuais.
Já ficou claro no capítulo teórico que o presente estudo rejeita qualquer
determinação directa da estrutura de classes ou da dimensão económica sobre a
consciência dos trabalhadores. Na verdade, a estrutura de classes está sujeita a
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
350
permanentes alterações, não só devido à dinâmica económica geral (local, nacional e
global), mas também às práticas colectivas e organizativas dos trabalhadores (portanto, ao
efeito da sua luta), do patronato e do Estado, ou seja, à maior ou menor eficácia dos
mecanismos de negociação e concertação (Ferreira, 1996). As subjectividades dos
diferentes actores dependem, portanto, de variadíssimos factores. Ao lado dos recursos
directamente vinculados à localização de classe ocupada nas relações de produção,
persistem os factores sociais e culturais ligados à tradição comunitária, à lógica familiar e
às actividades complementares de diversos tipos, económicas e não-económicas. Assim,
ao chamar a atenção para as subjectividades e atitudes individuais, pretendo não só ter
presente o efeito que uma estrutura de classes com estas características – aparentemente
aberta e indutora de oportunidades de mobilidade individual – poderá exercer sobre os
trabalhadores e as populações, mas, ao mesmo tempo, sublinhar a ideia de que tais
atitudes e subjectividades são simultaneamente marcadas por factores não classistas.
Tendo em vista comparar os resultados regionais e nacionais a este propósito, apresenta-
se o quadro abaixo (Quadro 6.5), onde se contrapõem os valores referentes à identificação
subjectiva dos inquiridos com a “classe trabalhadora” e com a “classe média”176.
A primeira constatação é a de que os resultados da amostra nacional são claramente
mais favoráveis a uma identificação com a classe trabalhadora, enquanto na região
prevalece a classe média como principal referência. A identificação subjectiva com a
classe média aplica-se a todas as categorias de classe ao nível desta região.
QUADRO 6.5 - Auto-identificação de classe, comparação país - região
(%s por categorias de classe) Auto-identificação com a «classe trabalhadora» e com a «classe média» PORTUGAL REGIÃO
Categorias de classe cl Trab cl Média cl Trab cl Média
Patrões 42 55 10 91
Pequena Burguesia 62 34 31 63
Gestores/ Superv 33 61 23 77
Trab/Técn Semiqualif 27 73 0,0 100
Proletários 62 33 34 65
TOTAIS 53 43 27 72
Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal N/S, N/R: País - 48 (N=1053); Região - 165 (N=134).
176 Devido aos valores insignificantes das opções “classe média alta” e “classe alta”, os mesmos não são incluídos neste quadro.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
351
Se nos resultados para o país a preferência pela classe média já era maior no caso
dos patrões e dos assalariados das categorias intermédias (mas claramente inferior nos
proletários e na pequena burguesia), na subamostra regional a preferência é sempre no
sentido da classe média e de maneira inequívoca para todas as localizações.
No caso dos proletários, a identificação com a classe média praticamente duplica
(65% contra 34% que se identificam com a classe trabalhadora) e o mesmo acontece no
caso da pequena burguesia, com uma diferença de 63% para 31%. Estes resultados não
deixam de ser reveladores. Mas, mais do que uma atitude de fuga ao estatuto de
trabalhador eles espelham sobretudo uma atitude de fuga à identificação com a “classe
trabalhadora”. Tal orientação é coerente com aquilo que observei em múltiplas
entrevistas locais onde sobressaiu a importância das estratégias de mobilidade
ascendente e de acumulação por parte das famílias trabalhadoras. A origem operária de
uma parte significativa dos actuais patrões da indústria (nomeadamente do ramo do
calçado) ajuda, em parte, a explicar tal fenómeno. Mas ao mesmo tempo não deixa de
ser surpreendente a valorização de aspectos como o factor trabalho, a labuta familiar, o
esforço pessoal e espírito de sacrifício, etc., factores que parecem reflectir a sua
importância simbólica, ao espelharem o orgulho de se ter levado uma vida “digna”, uma
vida de trabalho que no final acaba por ser compensatória. Provavelmente tal sentimento
de orgulho só assume um significado positivo na medida em que na situação concreta de
cada família ou de cada trabalhador o acesso a um melhor padrão de vida em termos
económicos continue a apresentar-se como viável. Ainda que o enquadramento
objectivo na condição “proletária” seja inegável, enquanto as expectativas de ascenção
parecerem possíveis do ponto de vista subjectivo, a correspondência entre a condição de
classe e a consciência de classe muito dificilmente poderá verificar-se. Mas essa é
apenas uma vertente do problema. E isto porque ao lado das questões socioeconómicas
que se prendem directamente com a profunda imbricação entre um mundo industrial e
moderno e um mundo rural e pré-moderno há ainda a dimensão temporal e a forma
como as actuais subjectividades (estruturadas dentro e fora da fábrica) lidam com o
passado histórico e as experiências de luta do operariado local. Esse passado traduz-se
num registo selectivo e em boa medida ideologicamente fabricado pelos poderes
institucionais (locais e nacionais)177 e ao mesmo tempo num processo de alheamento em
relação às lutas operárias dos chapeleiros de princípios do século. A opacidade a que
177 Veja-se no Capítulo 4 a referência ao paternalismo e bairrismo locais, nos princípios deste século.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
352
essa experiência foi votada não deriva apenas da distância temporal assim como não é
apenas devido à maior proximidade histórica do período agitado de 1974/75 que muitos
trabalhadores continuam a recusar qualquer identificação com a cultura sindical e
revolucionária.
Vale a pena recordar que a concepção aqui proposta toma a consciência de classe
como um aspecto particular da subjectividade concreta dos indivíduos, e não no sentido
essencialista que a ortodoxia comunista atribuía à classe operária, a qual pressupunha a
existência de uma falsa consciência, por oposição a uma verdadeira consciência de
classe, no fundo, a consciência fundada no interesse pelo modelo socialista de
sociedade178. Ou seja, a consciência de classe refere-se sobretudo a conjuntos de
consciências individuais que, por via da sua partilha comum de condições de vida
marcadas pelo mesmo tipo de mecanismos de classe, tendem a favorecer a emergência
de certas subjectividades, práticas sociais e estratégias de acção. Para os efeitos da
análise empírica aqui em causa, trata-se principalmente de apurar a orientação
ideológica de diferentes categorias, a partir das opiniões manifestadas por conjuntos de
indivíduos analiticamente inseridos numa dada localização de classe.
Começo por referir alguns dos items utilizados no inquérito como indicadores da
consciência de classe. O critério que presidiu à selecção destes indicadores ficou a
dever-se, antes de mais, à necessidade de combinar analiticamente elementos
directamente ligados ao campo laboral (relações de produção) com elementos ligados à
vida social mais geral. Concretamente, temos: no primeiro caso, as questões da
democracia interna das empresas, da participação dos trabalhadores, a questão do lucro
e as representações alternativas ao actual sistema, a questão da colectivização das
empresas (autogestão) e o problema da greve; no segundo caso, estão algumas questões
que vão no sentido de clarificar as representações sociais e atitudes dos inquiridos
quanto às causas da pobreza e da criminalidade. As questões foram apresentadas sob a
forma de afirmações e os resultados correspondem às percentagens de respostas
concordantes com cada uma delas. Outro aspecto decisivo diz respeito à distinção
previamente estabelecida entre formulações abertamente críticas face ao actual sistema
– orientações de sentido emancipatório ou radical –, isto é, abertamente críticas em
relação ao modo de produção capitalista, à disciplina produtiva, à ausência de
democracia participativa e à lógica do lucro (estas são as questões directamente
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
353
orientadas para a esfera produtiva); e formulações claramente de índole individualista
ou que apelam aos valores tradicionalistas da lealdade ou da dependência face à
autoridade instituída – orientações de sentido liberal ou conservador –, e que vão ao
encontro da ideologia patronal (estas são as questões mais orientadas para a sociedade).
Mais à frente irei cruzar estes items com as categorias de classe. Para já, vejamos
os resultados globais no que se refere às subjectividades de orientação radical (Quadro
6.6), comparando os dados da região com os do país. Em primeiro lugar, do conjunto
das quatro frases (afirmações) consideradas, o volume de respostas concordantes é
sempre bastante inferior para a região.
QUADRO 6.6 - Grau de concordância com opiniões de cariz radical/emancipatório
(%s de concordância para o país e a região )
Afirmações PAÍS REGIÃO
A) Se isso fosse possível, os empregados deveriam participar na escolha dos directores e gestores
68,4 55,0
B) É possível uma sociedade moderna funcionar bem, sem que haja a procura do lucro
41,4 10,8
C) Se lhes fosse dada uma oportunidade, os trabalhadores poderiam gerir as empresas sem precisarem dos patrões
40,7 23,2
D) Os trabalhadores em greve têm razão em impedirem os colegas não grevistas de irem trabalhar
43,3 19,1
Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal
Numa primeira leitura, pode concluir-se que, em termos gerais, a população da
região se mostra pouco sensível a orientações de sentido emancipatório. Comparando os
resultados regionais com os da amostra nacional, em todas as questões formuladas o
volume de respostas é claramente inferior na amostra da região (recorde-se que as
percentagens se referem às respostas favoráveis para cada pergunta). Comparando os
índices de respostas favoráveis para as quatro formulações, verifica-se que, tal como
acontece para a amostra nacional é a primeira afirmação que merece maior
concordância, isto é, quer no caso da região, quer da população portuguesa, a maioria
concorda com a ideia de que os empregados deveriam, caso isso fosse possível,
participar na escolha dos directores e gestores das empresas ou instituições em que
trabalham. Há portanto aqui uma sensibilidade maioritariamente favorável à democracia
178 Sigo aqui a concepção de Wright (1989: 243) no seguimento, aliás, de formulações adiantadas noutro local (cf. Estanque, 1997: 98-99; e Estanque e Mendes, 1998).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
354
participativa na vida interna das organizações, sendo que, como referi atrás, essa
maioria é mais clara no caso da amostra nacional (68,4% para 55,0%). Já no que
concerne à possibilidade de uma sociedade funcionar bem sem ser na base da lógica
lucrativa, a força de trabalho desta região evidencia uma nítida rejeição perante um tal
cenário. Se a nível do país as respostas favoráveis continuam a ser significativas,
embora minoritárias (com 41,4%), no caso da região o valor baixa drasticamente para
apenas 10,8%. Esta referência à questão do lucro – que, ao lado da propriedade privada
dos meios de produção, é, como se sabe, a pedra angular da lógica capitalista –, pode,
pois, ser vista como um indicador ilustrativo da percepção subjectiva de modelos
alternativos ao sistema socioeconómico vigente. Apesar de não haver qualquer
referência explícita ao “socialismo”, parece no entanto que tal cenário continua presente
no imaginário de muitos portugueses. Mas, em relação à subamostra desta região não
pode retirar-se a mesma conclusão. Estreitamente relacionada com essa questão surge a
formulação seguinte, que admite – embora sempre como hipótese abstracta – a
possibilidade de os trabalhadores poderem gerir as empresas sem precisarem dos
patrões. Neste caso, a percentagem de respostas afirmativas é claramente abaixo dos
50%, quer na região, quer no país, no primeiro caso com 23,2% de concordância e no
segundo com 40,7%. Esta afirmação é, porventura, aquela que mais claramente terá
levado os nossos inquiridos a recordar as experiências por que passou a sociedade
portuguesa no pós-25 de Abril de 1974. De facto, ao cruzar os resultados desta resposta
com os níveis etários na amostra regional, verificou-se que é nas camadas com mais de
35 anos que é mais evidente uma atitude discordante quanto à possibilidade de os
trabalhadores poderem gerir as empresas sem a presença dos patrões. Voltarei a este
tema no capítulo seguinte, a propósito da análise ao contexto político de S. João da
Madeira no período revolucionário. Por agora, é importante referir que estes resultados
poderão estar ligados à conotação de “bastião anticomunista”, que então foi atribuída à
vila de SJM, na sequência dos primeiros incêndios à sedes dos partidos de esquerda que
aí tiveram lugar no “verão quente” de 75. Tais episódios terão tido um impacto
significativo em amplos sectores populares, inclusivamente no seio dos trabalhadores
industriais. É, portanto, sintomático notar como são sobretudo as camadas mais jovens
que hoje se mostram menos marcadas pelo preconceito ideológico que recusa a
capacidade dos trabalhadores em gerirem as empresas. Quanto à última formulação, que
se refere à acção de piquetes de greve nas empresas, é uma das que mais tende a
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
355
evidenciar as clivagens de classe, como se verá. No conjunto das respostas verifica-se,
também neste caso, uma fraca concordância na subamostra regional (19,1%), bastante
inferior ao resultado do país (43,3%), o que igualmente confirma a já assinalada
fragilidade da cultura operária e a desconfiança face ao activismo sindical.
Antes de passar à análise comparativa entre as diferentes localizações de classe,
comparemos os resultados precedentes com os do quadro seguinte (Quadro 6.7), onde se
apresenta um outro conjunto de items, estes assumidamente de valência liberal ou
conservadora. Obviamente, já era de esperar que a um baixo volume de respostas
concordantes com as questões anteriores correspondesse um elevado volume de respostas
de sentido “conservador”. Todavia, a partir dos items do quadro abaixo podemos verificar
a coerência dos anteriores resultados e ao mesmo tempo aprofundar a análise. Ao
contrário do que acontecia nas questões anteriormente mencionadas, neste conjunto de
formulações, os valores regionais estão mais equilibrados com os nacionais. Além disso,
apenas em duas das frases os volumes de concordância são inferiores na região. São elas
as correspondentes aos items C) e D).
QUADRO 6.7 - Grau de concordância com opiniões de cariz conservador/liberal
(%s de concordância para o país e a região)
Afirmações PAÍS REGIÃO
A) Uma das principais razões da pobreza é porque muitas pessoas pobres não têm inteligência para competir
53,0 85,7
B) Uma das principais razões da pobreza é porque muitas pessoas pobres não querem trabalhar
66,4 90,9
C) Para fazer baixar a criminalidade os tribunais deveriam dar penas mais pesadas aos criminosos
84,9 81,9
D) Se os pais castigassem mais os filhos enquanto pequenos, haveria menos crime e delinquência
49,0 28,7
Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal
Começando pela última, a afirmação de que “se os pais castigassem mais os filhos
enquanto pequenos haveria menos criminalidade”, a amostra regional revela-se menos
concordante (28,7%), do que a nacional (49%). Se, no caso da amostra nacional, essa
atitude é mais visível nos sectores mais idosos e menos escolarizados, já na amostra
regional, onde a população é mais jovem mas também menos escolarizada, torna-se
difícil saber-se com rigor qual desses efeitos estará aqui presente ou se os mesmos se
poderão neutralizar mutuamente. Pode apenas dizer-se que a população da região se
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
356
mostra menos conservadora do que a população portuguesa na defesa de uma educação
mais autoritária e tradicionalista. Quanto ao item C) – a ideia de que “para fazer
diminuir o crime devem aplicar-se penas mais pesadas aos criminosos” – os resultados
da região são menos concordantes do que no país, embora com uma diferença de apenas
3%. O importante a reter é que mais de 80% de ambas as amostras (regional e nacional)
concorda com essa opinião. Relativamente às outras duas formulações incluídas no
quadro acima – items A) e B) –, qualquer delas tem um conteúdo liberal, apontando
razões individuais como justificação para a existência de pobreza. É pobre quem não
tem inteligência para competir no mundo de hoje e/ou quem não quer ou não gosta de
trabalhar. Um discurso ideológico que objectivamente vai ao encontro dos interesses de
quem conquistou na vida “um lugar ao sol”, em coerência com a pura lógica de
mercado. Porém a consciência social das classes trabalhadoras é, como se sabe,
permeável a lógicas subtis e a força das ideologias é tão poderosa que leva muitas vezes
os mais oprimidos a justificar a opressão servindo-se dos argumentos dos próprios
opressores. Seja como for, cabe ao cientista social, mais do que enveredar por caminhos
moralistas, tentar encontrar a via adequada para interpretar tais fenómenos. Os
resultados são claros a este respeito, mostrando a concordância da maioria dos
portugueses com as duas afirmações, quer a nível nacional, quer de forma ainda mais
inequívoca no caso da subamostra da região: 85,7% para a primeira formulação e cerca
de 91% para a segunda.
Passemos agora à análise dos mesmos resultados mas desta vez comparando-os
para as diferentes localizações de classe. Neste caso, embora continue a fazer referência
aos resultados nacionais, centrar-me-ei sobretudo na região. Genericamente já se viu
que, enquanto as atitudes mais radicais obtiveram pouca adesão ao nível da região, as
orientações de cariz conservador revelaram grande acolhimento.
Observemos então as principais clivagens de classe, a este propósito. Nota-se,
desde logo, que as categorias mais desapossadas de recursos partilham mais abertamente
orientações emancipatórias do que as categorias privilegiadas. Ou seja, se compararmos
as respostas da localização proletária com as dos patrões, vemos que, de um modo geral,
os primeiros são claramente mais radicais do que os segundos. Se o grau de radicalismo
aumentasse na mesma medida em que nos movemos ao longo da tipologia das
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
357
categorias mais dotadas de recursos para as mais desapossadas179, dir-se-ia que se
confirma a hipótese da determinação da estrutura de classes sobre a consciência de
classe. Porém, desde o início que procurei rejeitar pressupostos lineares e unicausais,
pois, só uma análise pluridimensional pode dar visibilidade a uma realidade social tão
complexa e multifacetada como esta.
Prossigamos, pois, o nosso caminho. Contrapondo proletários e patrões facilmente
se percebe – como atrás se viu – que os primeiros são genericamente mais radicais (ou
seja, mais críticos do sistema) do que os segundos. Todavia, ao considerar as cinco
localizações de classe aqui em causa, é necessário ponderar outros factores. Vejamos
como.
Começando pela análise das formulações de orientação radical, verifica-se
efectivamente que o grau de adesão às afirmações de valência emancipatória tende a
aumentar quando se percorrem as diferentes categorias no sentido vertical e na direcção
de cima para baixo: patrões; pequena burguesia; gestores e supervisores; técnicos e
trabalhadores semiqualificados; e proletários. Dos primeiros para os últimos parece
notar-se uma crescente adesão a cada uma daquelas afirmações. Não pode, porém,
esquecer-se que as agregações efectuadas entre as diferentes categorias (resultado da
fraca representatividade de algumas delas na região), impedem a identificação de
diferenças significativas no campo das atitudes, nomeadamente entre categorias com
elevados recursos educacionais e as menos escolarizadas180.
Na comparação entre os resultados da amostra nacional e os da região para cada
categoria de classe, o grau de concordância é – em todos os items e em todas as
categorias de classe – maior no primeiro caso, o que, aliás, está em coerência com o que
atrás se viu sobre os resultados globais. Para além da mais fraca adesão regional, nota-se
também uma maior divergência entre as diferentes localizações de classe (em especial
no caso das categorias proprietárias comparadas com as dos assalariados). Deste modo,
poder-se-á pensar que, ao nível da região, a propriedade de meios de produção é um
179 Isto é, considerando a matriz geral das doze localizações, se percorrêssemos a grelha na diagonal, da célula superior esquerda para a inferior direita. Ver no início deste capítulo, Tabela 6.1. 180 No presente modelo simplificado das localizações de classe as diferenças no critério das credenciais apenas são visíveis entre os proletários e a categoria que aqui se designa como “técnicos e trabalhadores semiqualificados”. É devido a estas agregações que fui forçado a fazer que os resultados da consciência de classe são mais coerentes do que os detectados na abordagem que anteriormente efectuámos, com as doze localizações de classe e onde se verificou uma configuração com maiores índices de consciência anti-capitalista nos gestores qualificados, nos supervisores (semiqualificados e não-qualificados) e nos técnicos não gestores (Estanque e Mendes, 1998).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
358
factor determinante na consciência subjectiva dos indivíduos (pelo menos é-o de forma
mais nítida do que a nível nacional, como revelam os números do Quadro 6.8).
QUADRO 6.8 - Comparação entre atitudes de valência radical/emancipatória, por categorias de classe (%s de concordância para o país e a região)
Afirmações*
Categorias de classe
A) Se isso fosse possível, os empregados deveriam participar na escolha dos directores e gestores
B) É possível uma sociedade moderna funcionar bem, sem que haja a procura do lucro
C) Se lhes fosse dada uma oportunidade, os trabalhadores poderiam gerir as empresas sem precisarem dos patrões
D) Os trabalhadores em greve têm razão em impedirem os colegas não grevistas de irem trabalhar
PAÍS REG PAÍS REG PAÍS REG PAÍS REG
Patrões 47,1 33,3 27,3 7,2 21,5 3,4 19,7 0,3
Peq. Burguesia 66,7 39,5 43,4 2,4 29,7 1,9 45,1 17,8
Gestores/Superv 65,6 58,8 37,1 15,8 31,7 10,0 37,1 15,0
Técnicos/Trab SQ 78,1 72,7 41,2 20,0 40,4 36,4 29,0 21,4
Proletários 71,4 60,6 45,0 12,6 51,3 30,3 51,8 18,0
TOTAIS 68,4 55,0 41,4 10,8 40,7 23,2 43,3 19,1
Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal * No caso da amostra regional as não-respostas e recusas (N/S; N/R) variam entre 2 e 30 e no caso da amostra nacional entre 37 e 243, consoante os items (dado que se tratou de perguntas autónomas). Os valores das células referem-se às percentagens de respostas concordantes para cada uma das formulações.
Quanto à possibilidade de a sociedade poder funcionar sem a procura do lucro e
das empresas serem geridas pelos trabalhadores, a diferença de atitudes é
particularmente nítida: enquanto os patrões e a pequena burguesia revelam percentagens
quase sempre abaixo dos cinco pontos, nas posições assalariadas as respostas sobem
para valores geralmente três ou quatro vezes superiores. É claro que se trata de
diferenças relativas e estamos a lidar com percentagens muito baixas, mas a
regularidade com que tais diferenças surgem não deixa de ser uma indicação que merece
ser levada em conta181. Geralmente, os empregadores tendem a mostrar-se mais abertos
181 Deliberadamente, foi deixada de fora desta análise uma questão referente ao “demasiado poder das grande empresas no país” e ainda uma outra que afirmava que “as grandes empresas beneficiam os seus proprietários à custa dos trabalhadores e consumidores” (cf. Estanque e Mendes, 1998). Quer no país quer na região essas questões revelaram um grau de concordância esmagador, sem contudo se detectarem diferenças significativas entre as respostas dos assalariados e as dos empregadores, o que, obviamente se prende com o elevado peso global do pequeno patronato e com o facto de estes se sentirem preteridos (em apoios do Estado e da banca, nomeadamente) face à influência dos grandes empresários.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
359
perante questões colocadas de forma abstracta e vaga, como é o caso, por exemplo do
primeiro item (A), “se isso fosse possível…” – que teve a concordância de 47,1% dos
patrões a nível nacional – mas, quando confrontados com problemas que apontam
directamente para as relações laborais como, por exemplo, as questões do lucro ou da
greve, a sua condescendência diminui ou desaparece, como os números anteriores bem
expressam (Quadro 6.8). Também de forma mais visível do que nos resultados do país,
a pequena burguesia da região distancia-se face às atitudes dos assalariados. Por
exemplo, relativamente à possibilidade de um modelo de sociedade sem o princípio do
lucro e à prática da autogestão, a pequena burguesia desta região mostra-se
vigorosamente contra do que o pequeno patronato.
A categoria de classe que dá mostras de uma maior adesão a essas atitudes é a dos
“técnicos e trabalhadores semiqualificados”, surgindo quase sempre os proletários em
segundo lugar. No entanto, apenas no que toca à ideia da participação dos trabalhadores
na escolha dos seus directores e gestores (item A) existe uma clara maioria favorável,
com 72,7% de respostas concordantes, seguindo-se os proletários, também em maioria
clara, com 60,6% de respostas afirmativas. Esta é, aliás, a única das quatro formulações
em que as três categorias assalariadas se mostraram maioritariamente concordantes. Em
todas as restantes questões, os assalariados de menores recursos (proletários e técnicos e
trabalhadores semiqualificados) são geralmente mais favoráveis do que as categorias
proprietárias mas, ainda assim, os números são quase sempre bastante abaixo dos
50%182. Não pode portanto dizer-se, a partir destes resultados, que se verifica uma
consciência anti-capitalista por parte da classe trabalhadora, mas apenas que,
comparativamente aos empregadores e à pequena burguesia (ou mesmo em relação à
localização intermédia dos gestores e supervisores), os mais desapossados são mais
críticos em relação ao sistema. Acresce que entre as duas categorias de classe sem
autoridade nas relações de produção (“proletários” e “técnicos e trabalhadores
semiqualificados”) há uma diferença substancial entre a amostra nacional e a regional.
Enquanto a nível do país são os proletários que (à excepção do primeiro item) se
mostram mais concordantes com as afirmações críticas, no caso da região são em todas
as questões os “técnicos e trabalhadores semiqualificados” quem mais partilha essas
afirmações. Ou seja, a ausência de posições de autoridade combinada com a posse de
182 Excepções são, neste caso, a maioria dos proletários da amostra nacional que concordam com as afirmações C e D.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
360
níveis elevados de credenciais escolares resulta em atitudes subjectivas mais
contestatárias.
Mas, ainda que estes indicadores sejam pertinentes para a análise da consciência
de classe, eles não permitem, como disse, tirar conclusões definitivas. Ao longo da
presente dissertação tenho evitado estabelecer uma separação rígida entre a esfera
laboral e a da comunidade, acentuando antes a forma como ambas as dimensões, vistas
na sua mútua permeabilidade, podem ajudar-nos a compreender os aspectos específicos
da classe trabalhadora do calçado. Embora as identidades colectivas do operariado
sejam em larga medida estruturadas no espaço da produção, são-no sempre na base de
referências, valores e habitus – considerem-se eles de classe, comunitários ou de
trajectórias pessoais – que os indivíduos incorporaram nas suas experiências de vida,
sempre multifacetadas. O impacto das culturas locais e dos mecanismos de inculcação
sobre as percepções subjectivas faz-se sentir no interior da produção e fora dela. Nesse
sentido, pode dizer-se que as práticas ou as subjectividades de classe não são de facto
exclusivamente “de classe”. A classe é, enquanto categoria analítica, um conceito em
reformulação e, enquanto fenómeno sociológico, uma dimensão da vida social
fortemente impregnada por elementos exteriores às relações de produção.
A apresentação dos resultados relativos a afirmações que considerei de sentido
conservador ou liberal, apesar de situadas num nível relativamente genérico, podem
igualmente ser analisados à luz da problemática da consciência de classe. Interpretando
os resultados do quadro seguinte (Quadro 6.9) o que sobressai é, antes de mais, a grande
homogeneidade das respostas entre as diferentes categorias de classe. Além da
proximidade dos índices de concordância ser evidente, há mesmo situações em que as
localizações mais desapossadas, como os proletários, revelam índices de adesão às
atitudes conservadoras muito semelhantes aos do patronato (ao contrário do que
acontecia nas formulações de sentido emancipatório, anteriormente vistas). A opinião
quanto à falta de inteligência dos pobres como justificação da sua condição é ilustrativa
a esse respeito (mais claramente no caso da amostra nacional), assim como a afirmação
favorável a uma educação autoritária – com base no castigo dos filhos enquanto
pequenos – como forma de diminuir a criminalidade vai nesse sentido (principalmente
na amostra regional). Estas duas situações mostram que a localização proletária
evidencia por vezes índices de conservadorismo muito idênticos ou até mais acentuados
do que os do patronato, um resultado que difere bastante dos anteriores quanto às
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
361
orientações radicais. Apenas nos dois últimos items (C e D) as respostas concordantes
da amostra regional revelam valores inferiores aos resultados do país.
QUADRO 6.9 - Comparação entre atitudes de valência conservadora/ liberal, por categorias de classe, para o país e a região (%s de concordância)
Afirmações
Categoria de classe
A) Uma das principais razões da pobreza é porque essas pessoas não têm inteligência para competir
B) Uma das principais razões da pobreza é porque muitas pessoas pobres não querem trabalhar
C) Para fazer baixar a criminalidade os tribunais deveriam dar penas mais pesadas aos criminosos
D) Se os pais castigassem mais os filhos enquanto pequenos, haveria menos crime e delinquência
PAÍS REG PAÍS REG PAÍS REG PAÍS REG
Patrões 51,9 92,3 75,6 100,0 88,6 83,3 49,3 21,5
Peq. Burguesia 66,1 85,4 79,6 91,3 92,9 90,8 73,5 34,6
Gestores/Superv 50,4 73,7 61,1 100,0 72,8 75,0 43,9 30,0
Técnicos/Trab SQ 30,3 71,4 44,9 71,4 72,2 61,5 29,4 7,1
Proletários 53,8 87,4 65,1 89,9 87,3 81,1 44,3 29,8
TOTAIS 53,0 85,7 66,4 90,9 84,9 81,9 49,0 28,7
Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal
Ou seja, no que se refere a infligir castigos aos filhos como terapia para o crime, a
população da região mostra-se mais renitente do que a sociedade portuguesa no seu
conjunto. Dir-se-á que a adesão de categorias de classe como a dos proletários a atitudes
conservadoras parece sublinhar a força das ideologias, visto que, apesar das distâncias
sociais “objectivas”, os sistemas simbólicos e discursivos em que se movem as classes
mais exploradas se apresentam aqui bastante consonantes com os valores de uma
mentalidade burguesa e “novo-rica”.
6.4 - Opiniões sobre a sociedade e os problemas sociais
A questão da estatização de diversos serviços e empresas foi inserida no
questionário com a introdução de uma pergunta destinada a saber se os inquiridos eram a
favor ou contra uma gestão estatal ou privada em diferentes empresas ou serviços183. Os
resultados nacionais revelaram valores claramente mais favoráveis à gestão pelo Estado
por parte das diversas categorias de classe. Destacaram-se sobretudo a pequena burguesia
183 Para cada um desses serviços ou sectores – como os correios, a EDP, os transportes ferroviários, as universidades, as escolas secundárias, hospitais, banca, etc. –, pedia-se aos inquiridos para indicarem a sua preferência relativamente a uma gestão estatal, privada ou mista.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
362
(em especial o sector agrícola) e os proletários como as categorias mais favoráveis à
estatização. Por outro lado, os técnicos não-gestores e os gestores qualificados
apresentaram-se como os menos favoráveis à estatização. Esses resultados foram
interpretados como reveladores de que os sectores populares – estando embora
geralmente mais alheados da vida política e institucional – constróem subjectividades
tendentes a ver no Estado o principal garante de segurança e de protecção, enquanto, por
outro lado , os segmentos das novas classes médias (técnicos não-gestores, gestores e
quadros da administração pública) se mostram mais sensíveis às deficiências e bloqueios
da máquina burocrática ao mesmo tempo que parecem acreditar mais nas virtudes do
capital privado (cf. Estanque e Mendes, 1998: 178).
No caso da subamostra regional, a atitude pró-estatização é menos evidente. Apenas
quanto aos hospitais, escolas secundárias, bombeiros e transportes urbanos, os valores
obtidos confirmam a tendência estatizante. A distribuição dos resultados pelas categorias
de classe não permite, porém, estabelecer distinções significativas. Em actividades como
os correios, os transportes ferroviários, a EDP e a banca, por exemplo, as respostas
oscilaram entre os 20% e os 40% sem que se detectassem quaisquer regularidades entre as
categorias de classe. Deve, portanto, reter-se que ao nível desta região a tendência
favorável à gestão estatal da economia obtém pouca adesão, ou seja, há uma maior
atracção pela lógica de mercado e da privatização. Já se viu como a economia
concorrencial é, neste contexto, particularmente forte. Daí que, a referida dependência
simbólica e ideológica relativamente ao papel do Estado na economia seja pouco
significativa.
Passemos agora à análise das opiniões sobre as desigualdades sociais na sociedade
portuguesa, continuando a comparar os resultados regionais com os nacionais. A pergunta
referia-se neste caso à situação do país, pedindo-se uma opinião sobre se, em comparação
com o passado recente (desde há cerca de dez anos atrás), as desigualdades sociais são
hoje184 mais acentuadas ou menos acentuadas. Vejamos o Quadro 6.10. Os resultados
mostram que enquanto para a maioria da população do país (52,5%) as desigualdades
sociais estariam mais acentuadas, enquanto para a amostra regional apenas 40,9% partilha
essa opinião.
Como se vê, os valores não apresentam diferenças muito marcantes quando
comparamos as diversas categorias de classe de ambas as amostras. Apenas é de realçar o
184 Isto é, à data de aplicação do questionário, em meados de 1995.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
363
caso dos proletários, que revelam resultados mais discrepantes na comparação entre as
duas amostras.
QUADRO 6.10 - Opinião sobre as desigualdades sociais
(%s por categorias de classe) Opiniões comparadas País/ Região
Categorias de classe Mais acentuadas
Menos acentuadas
Iguais
PAÍS REG PAÍS REG PAÍS REG
Patrões 37,8 34,6 47,6 42,3 14,6 23,1
Peq. Burguesia 44,0 36,4 40,4 41,8 15,6 21,8
Gestores/Superv 60,6 60,0 28,4 30,0 11,0 10,0
Técn/ Trab SQ 61,0 66,7 26,2 25,0 12,8 8,3
Proletários 54,7 39,1 27,6 46,8 17,7 14,1 TOTAIS 52,5 40,9 31,9 43,1 15,6 16,0
Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal
Para além disso, os patrões e a pequena burguesia evidenciam também algumas
discrepâncias, embora mais débeis. Na amostra nacional é maior a percentagem dos
patrões que concorda que as desigualdades são mais acentuadas (37,8% contra 34,6% da
amostra da região) mas, paradoxalmente, é também maior o número dos que afirmam
que as desigualdades são menos acentuadas (47,6% contra 42,3 % da amostra da
região). E isto porque na amostra regional as categorias proprietárias indicaram um
número mais elevado de respostas neutras, afirmando que a situação se mantém
idêntica, ou seja, que as desigualdades não se agravaram nem diminuíram.
Nos proletários, parece sobressair a mesma tendência já referida a propósito da
consciência de classe. De facto, os resultados reforçam a ideia de que a classe operária
desta zona se mostra mais conformada ou mesmo parcialmente “satisfeita” com a sua
própria situação socioeconómica. Mais abaixo procurarei confrontar estes resultados
com a opinião sobre as expectativas em relação ao futuro. Como se pode ver no quadro
anterior, enquanto no país uma maioria de 54,7% de proletários é de opinião que as
desigualdades sociais estão mais acentuadas, na região apenas 39,1% da mesma
categoria partilha essa opinião. E os números invertem-se claramente quando se passa
para a opinião contrária, com apenas 27,6% da categoria proletária do país a concordar
que as desigualdades estão menos acentuadas contra 46,8% ao nível da amostra
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
364
regional185. Se, quanto às desigualdades sociais do país, os trabalhadores desta região
denunciam um certo optimismo, ou pelo menos, um menor dramatismo do que a
população nacional, a opinião recolhida sobre as expectativas da família em relação ao
futuro próximo, vem reforçar essa mesma ideia. Veja-se a esse propósito o quadro
seguinte (Quadro 6.11). Os resultados confirmam aquele optimismo, já que a opinião
quanto ao futuro dos próximos anos é francamente animadora: 68,3% acredita que a
situação da família irá melhorar (contra apenas 50,7% da população do país).
QUADRO 6.11 - Opinião sobre a situação económica da família para os próximos
anos (%s por categorias de classe)
Opiniões comparadas País/ Região
Categorias de classe será melhor será pior ficará na mesma PAÍS REG PAÍS REG PAÍS REG
Patrões 48,1 68,1 24,7 4,5 27,3 27,3
Peq. Burguesia 27,6 44,7 39,0 6,4 33,5 48,9
Gestores/Superv 62,2 77,8 11,9 11,1 25,9 11,1
Técn/ Trab SQ 57,1 66,7 15,3 0,0 27,6 33,3
Proletários 57,0 74,4 14,3 6,7 28,7 17,9 TOTAIS 50,7 68,3 20,2 7,1 29,1 24,7
Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal N/S, N/R: país - 95; região - 44.
À excepção da pequena burguesia, uma classe cuja maioria não espera ver
melhorada a sua situação económica (principalmente no país, mas também nesta
região), todas as outras categorias de classe são muito optimistas a esse propósito, não
se verificando grandes diferenças entre si. Os proletários são ainda mais optimistas do
que os patrões (74,4% para 68,1%) e só são ultrapassados nessa expectativa positiva
pelos gestores e supervisores, com 77,8% de respostas nesse sentido. No caso da
amostra nacional, verifica-se igualmente um sentido positivo, principalmente nas
localizações dos assalariados. Logo, estes resultados – quer os da região quer os do país
–, contrariam claramente o estereótipo de que os portugueses são pessimistas.
Se, por um lado, as expectativas face ao futuro traduzem a forma como as pessoas
se posicionam em relação à sociedade, por outro lado, as representações em relação à
sociedade são também indicadores preciosos da forma como as pessoas encaram as suas
185 Deve, porém, ter-se em conta que essa opinião optimista apenas o é em termos relativos, já que, os 39,1% de respostas negativas (de que as desigualdades se agravaram) somados aos 14,1% de respostas neutras constituem uma maioria de 53,2%.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
365
perspectivas de vida e os seus próprios problemas. Esta questão coloca-se na análise do
próximo quadro de resultados. Os valores que aí se apresentam (ver Quadro 6.12)
referem-se a uma pergunta colocada no questionário em que se pedia aos inquiridos para
seleccionarem, por ordem de prioridades, os três problemas sociais que na sua opinião
deveriam merecer maior atenção da parte do governo. A mesma questão foi igualmente
incluída no inquérito nacional, mas não se apresenta aqui o respectivo quadro de
resultados (cf. Estanque e Mendes, 1998: 183).
A partir da listagem de problemas sociais apresentada, os resultados mais
relevantes para a população activa portuguesa foram os seguintes, por ordem
decrescente de importância (enquanto 1º problema): os serviços de saúde (29,8%), o
desemprego (20,8%), e a pobreza (14,7%). Com algumas excepções, estes resultados
distribuem-se de forma relativamente uniforme pelas diferentes localizações de classe.
Além disso, é apenas de referir que o ensino mereceu também alguma preocupação,
principalmente por parte das categorias mais escolarizadas, assim como os baixos
salários e a falta de casas, principalmente por parte dos proletários. Vejamos então os
resultados do Quadro 6.12 relativos à subamostra da região. Em termos globais
sobressaem como problemas mais assinalados, na primeira opção (1º problema), os
serviços de saúde (21,7%), os baixos salários (21,4%) e o desemprego (14,9%). Como
segunda opção (2º problema) aparecem, por ordem decrescente, o desemprego (23,5%),
os serviços de saúde (17,3%) e o ensino (11,1%). Comparativamente com os resultados
nacionais acima referidos surge, antes de mais, a maior preocupação com os baixos
salários em detrimento do item referente à pobreza. Já se sabe que a pobreza se liga
directamente à questão do nível salarial, assim como ao desemprego. Mas, a atenção
dedicada aos baixos salários é sintomática da realidade da região onde os salários
praticados na indústria se situam efectivamente abaixo da média nacional. No que toca à
distribuição dos resultados pelas categorias de classe refira-se que, no caso do
proletariado, a preocupação com os baixos salários é maior do que em qualquer das
outras categorias, seguida de perto pela questão dos serviços de saúde, surgindo o
desemprego em terceiro lugar. Curiosamente, em relação ao desemprego, os proletários
parecem de facto menos preocupados do que as restantes localizações (exceptuando os
patrões). A pequena burguesia dá também uma atenção assinalável aos baixos salários
(23,2%) e também ao desemprego (17,9%).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
366
O patronato mostra-se mais interessado na resolução dos problemas ligados aos
serviços de saúde (21,4%), à corrupção (17,9%), aos problemas do ensino e aos baixos
salários (ambos com 10,7%). Não é possível identificar as respostas referentes a
“outros” problemas, que, no caso dos patrões atingem 17,9% de referências.
QUADRO 6.12 - Principais problemas da sociedade (%s por categorias de classe)
Categorias de classe(problemas sociais assinalados em 1º e em 2º lugar)
Problemas
Patrões Pequena Burguesia
Gest/ Superv
Técn/ Trab SQ
Proletários TOTAIS
1ºPr 2ºPr 1ºPr 2ºPr 1ºPr 2ºPr 1ºPr 2ºPr 1ºPr 2ºPr 1ºPr 2ºPr
Serviços de Saúde 21,4 18,5 12,5 17,3 35,0 15,0 21,4 35,7 23,2 15,9 21,7 17,3
Ensino 10,7 14,8 3,6 5,8 - 15,0 21,4 28,6 6,8 10,2 6,8 11,1
Lentidão Tribunais 3,6 - 1,8 3,8 - - - - 0,6 1,1 1,0 1,4
Insegur nas Ruas 7,1 11,1 1,8 - - 5,0 - - 2,8 2,8 2,7 3,1
Falta prot Velhice - 3,7 3,6 13,5 - 5,0 - - 4,0 5,1 3,1 6,2
Pobreza 7,1 3,7 10,7 9,6 5,0 10,0 - - 5,1 8,5 6,1 8,0
Falta de Casas - 3,7 1,8 3,8 5,0 10,0 - - 4,5 4,5 3,4 4,5
Corrupção 17,9 18,5 12,5 3,8 5,0 5,0 - 7,1 3,4 2,3 6,4 4,5
Poluição - 3,7 1,8 - - - - - 1,1 3,4 1,0 2,4
Desemprego 3,6 7,4 17,9 23,1 25,0 20,0 28,6 7,1 13,6 27,8 14,9 23,5
Baixos Salários 10,7 11,1 23,2 5,8 10,0 5,0 14,3 14,3 24,3 11,9 21,4 10,4
Outros 17,9 3,7 8,9 13,5 15,0 10,0 14,3 7,1 10,7 6,3 11,5 7,6
N = 295 (1º problema) e N = 289 (2º problema) Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal
É sintomático que, mesmo os patrões, refiram os baixos salários como um dos
problemas de relevo. Na verdade, conforme pude comprovar através de entrevistas a
alguns empresários, perante essa questão apressam-se geralmente a reconhecer os
baixos níveis salariais praticados. Mas, de seguida justificam a situação com a “crise” e
os problemas da indústria. Uma afirmação que é recorrente no caso dos patrões do
calçado. Efectivamente – e como também se verá no Capítulo 8, centrado na observação
participante – é notório o esforço dos proprietários para se mostrarem sensíveis (em
termos de opinião) aos problemas sociais e preocupados com o bem-estar dos
trabalhadores. Esta questão, ao lado da preocupação com a corrupção (17,9%) é também
algo que nos deve fazer reflectir. Se, no primeiro caso, se trata do discurso paternalista
do pequeno e médio patronato (cuja prática se caracteriza sobretudo pelo autoritarismo
em relação aos trabalhadores), no segundo (a questão da corrupção) estamos perante
uma atitude patronal de descontentamento em relação às instituições políticas e à prática
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
367
governativa. Como os números indicam, essa é uma preocupação principalmente das
categorias de classe proprietárias (patrões e pequena burguesia).
Quanto às localizações intermédias, refira-se, primeiro, a atenção dedicada pelos
gestores e supervisores aos problemas de saúde, o que parece ligar-se ao facto de esta
ser uma categoria com uma média etária relativamente mais avançada. Em segundo
lugar, a maior preocupação com o desemprego é partilhada por aquela categoria e pelos
técnicos e trabalhadores semiqualificados. Este resultado não deixa de ser curioso, já
que normalmente são os mais desapossados de recursos as maiores vítimas da falta de
empregos186. No caso desta região, além do desemprego ser globalmente pouco
significativo (como se viu no Capítulo 3), a oferta de emprego é menor para as
categorias mais qualificadas, o que se liga à natureza da estrutura industrial de um sector
fortemente apoiado na mão-de-obra intensiva. Acresce que, os técnicos e trabalhadores
semiqualificados são uma categoria jovem, com recursos escolares mais elevados e com
naturais expectativas de promoção. Quanto aos gestores e supervisores, embora com
posições relativamente estabilizadas no mercado de trabalho, sentem como uma ameaça
o discurso da crise e o espectro das falências, principalmente tendo em conta a média
etária relativamente avançada desta categoria.
Relativamente aos problemas indicados pelos inquiridos como segunda prioridade
(o segundo problema), continuam a surgir o desemprego e a saúde como factores de
maior preocupação, antes de outras questões como os baixos salários e o ensino, por
exemplo. Tal como já acontecia no caso da primeira prioridade, em relação ao ensino
são as categorias com mais elevados níveis de escolaridade que maior importância lhe
atribuem. Também os baixos salários, o desemprego e a pobreza continuam a assumir-
se como os temas a suscitar maiores preocupações.
6.5 - Atitudes políticas, práticas associativas e acções de protesto
As orientações políticas e o grau de envolvimento em estruturas organizativas,
bem como em acções de protesto público, poderão ajudar-nos a perceber a relação entre
as posições ocupadas na estrutura de classes e a maior ou menor participação dos
membros de cada categoria na intervenção social e política. Começarei com a análise
das orientações político-ideológicas no leque de posições de “esquerda”, de “centro” e
de “direita”. Esta tipologia resulta de uma escala colocada no questionário que oscilava
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
368
entre o valor 1 (posição totalmente de esquerda) e o valor 7 (posição totalmente de
direita); o valor 4 correspondia a uma posição neutra (de centro). Dada a concentração
das respostas em posições moderadas – uma vez que a grande maioria oscilava entre os
valores 4 e 6 –, decidiu-se agregar as diferentes tendências nestas três opções187. No
quadro abaixo comparam-se os valores obtidos para a região e para o país. Numa
primeira leitura sobressai, desde logo, a maior tendência de esquerda na amostra
regional em comparação com os resultados do país (49,8% para 37,5%)188.
QUADRO 6.13 - Distribuição das atitudes políticas segundo a categoria de classe, comparação país - região (%s por categorias de classe)
PORTUGAL* REGIÃO**
Categorias de classe Esq Centro Direita Esq Centro Direita
Patrões 24,6 40,7 34,6 46,1 23,1 30,8
Pequena Burguesia 26,1 27,6 46,3 52,2 23,9 23,9
Gestores/ Superv 32,9 27,1 40,0 35,3 41,2 23,5
Técn/ Trab Semiqualif 46,0 33,7 20,4 61,5 23,1 15,4
Proletários 43,4 33,6 22,9 50,3 27,2 22,4
TOTAIS 37,5 32,6 29,9 49,8 26,9 23,3
* País: N/S, N/R = 110 (N=991); **Região: N/S, N/R = 50 (N=249)
186 O que é também comprovado pelos resultados da amostra nacional, onde são os proletários que mais assinalaram o desemprego como a principal fonte de preocupações (cerca de 26%). 187 Considerei os valores de 1 a 3 como “de esquerda”, os valores de 5 a 7 como “de direita” e o valor 4 como “de centro”. Com base neste critério, agregaram-se as respostas e construiu-se o quadro a seguir apresentado. Ver no final, Anexo 1, pergunta 191. 188 Na verdade, estes resultados têm uma correspondência bastante fiel em relação àquilo que se verificou nas eleições legislativas de Outubro de 95, altura em que o PS reforçou a sua influência nos três concelhos, tendo subido substancialmente em todos eles (cerca de 20 pontos percentuais), e assistiu-se a uma descida muito acentuada do PSD em relação a 1991. Os resultados verificados nesta eleição foram de facto particularmente favoráveis ao PS e foram-no ainda mais nesta região do que no país. Números aproximados, em Stª. Maria da Feira o PS teve 49% dos votos, contra cerca de 38% para o PSD, em Oliveira de Azeméis, o PS teve cerca de 42%, contra 40% do PSD, e em S. João da Madeira, o PS aproximou-se dos 50%, enquanto o PSD desceu de 50 para pouco mais de 30% relativamente a 1991. Quanto ao CDS-PP, também no mesmo período, subiu cerca de 4% em média, situando-se o seu peso eleitoral (em eleições legislativas) nos cerca de 12%. Em relação às eleições autárquicas, o CDS-PP tem em geral mais força eleitoral nesta região, à excepção do concelho de Stª. Maria da Feira, onde se situa na ordem dos 6-7%. Nas autárquicas de 97 estabilizou nesse concelho, subiu substancialmente em Oliveira de Azeméis (em relação a 1993, passou de 9 para 20% na Assembleia Municipal, de 7 para 14% nas Assembleias de Freguesia, e de 10 para 15% na Câmara Municipal) e no caso de S. João da Madeira, onde desde 1979 detém a presidência da Câmara com Manuel Cambra (que apesar dos problemas que teve com a justiça em meados da década de 80, continuou a ter a confiança dos sanjoanenses, embora sem maioria absoluta) a manter a presidência nas últimas eleições, apesar da significativa descida, ficando com uma vantagem inferior a 2% em relação ao PS (33,17% para 31,32%). Entretanto o PCP-CDU, o máximo que conseguiu em Outubro de 95 foi manter os cerca de 5% de votos em SJM, estabilizando a sua magríssima implantação nos outros dois concelhos.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
369
Aparentemente, o autoposicionamento político parece contradizer os resultados
atrás apresentados acerca das atitudes radicais e conservadoras. Dado que o inquérito foi
aplicado na região numa altura próxima do acto eleitoral de Outubro de 1995, é possível
que se tenha feito sentir o efeito do discurso eleitoral. Mas, apesar da identificação com
a esquerda ser superior na amostra regional do que na nacional em todas as categorias
de classe, as maiores discrepâncias referem-se às duas categorias proprietárias. No caso
dos patrões, a percentagem dos que se identificam com a esquerda é de 46,1% contra
apenas 24,6% na amostra do país e no que se refere à pequena burguesia o resultado é
de 52,2% na região contra 26,1% no país. Também em relação aos técnicos e
trabalhadores semiqualificados as respostas favoráveis a uma identificação com a
esquerda passam de 46% na amostra do país para 61,5% na amostra da região e no caso
dos proletários o resultado sobe de 43,4 para 50,3%. Os gestores e supervisores são a
única categoria que, apesar de subir em relação ao resultado do país, se mantém nos
35,3%, o que faz com que essa seja a única categoria de classe que, em termos relativos,
se situa maioritariamente ao “centro” (41,2%).
Os posicionamentos político-ideológicos podem ser uma indicação interessante
para equacionar as subjectividades de classe com as respectivas práticas. Nessa medida,
interessa dar atenção ao envolvimento e participação dos indivíduos em estruturas
organizadas ou em iniciativas colectivas a fim de se avaliar o significado sociológico
dessas práticas. Dito de outro modo, há que ter em conta as acções concretas em que os
sujeitos se inserem para que se possa aferir o seu significado sociológico. A questão do
associativismo é um campo importante para desenvolver uma análise dessa natureza. O
tipo de práticas associativas pode indicar não apenas o sentido estratégico da acção
colectiva, mas também algo acerca das experiências socioculturais dos indivíduos e dos
seus modos de vida. Pode dizer-se – na linha do pensamento weberiano – que as classes
puramente económicas raramente dão lugar a acções colectivas e, portanto, quando tais
acções têm lugar é de esperar que os indivíduos nelas envolvidos, além de serem
detentores de recursos ou interesses económicos semelhantes, partilhem ainda certas
formas de identificação subjectivas baseadas na experiência quotidiana de um mesmo
contexto sociocultural. A acção colectiva nunca é totalmente racional e menos ainda
quando os trabalhadores partilham os mesmos modos de vida comunitários dos
ambientes habitacionais que rodeiam as fábricas. Importa então cruzar a divisão
classista com as práticas efectivas dos indivíduos para que se possa aferir a importância
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
370
do factor classe e, porventura, a sua articulação com outros factores na orientação dessas
práticas e das subjectividades colectivas que lhes são inerentes.
No quadro seguinte podem observar-se os índices de participação associativa das
diferentes categorias de classe. São sobretudo os sindicatos e as associações recreativas
e culturais que revelam maiores índices de filiação. Os resultados destes dois tipos de
associativismo reflectem as múltiplas articulações entre a classe e a comunidade.
Embora, evidentemente, não se possa captar a heterogeneidade de cada tipo de
associação, verifica-se, desde logo, que o associativismo recreativo é mais claramente
transclassista do que o sindicalismo. Poder-se-ia dizer que se trata de uma redundância.
Mas é importante notar como, ao lado de outras menos visíveis, essa é uma tendência
claramente comprovada nestes resultados.
QUADRO 6.14 - Experiências de Associativismo (%s por categorias de classe)*
Tipos de associação
Categorias de classe Recreativa/ Cultural
Religiosa Profissional Partido Político
Sindicato
Patrões 21,7 6,7 11,8 5,3 0,0
Peq. Burguesia 10,2 2,6 5,6 0,0 0,0
Gestores/Superv 40,0 20,0 22,2 30,8 30,0
Técnicos/Trab SQ 16,7 0,0 40,0 28,6 49,6
Proletários 14,0 4,4 0,0 2,4 32,7
TOTAIS (N) 15,7(242) 5,0(161) 6,8(148) 5,8(156) 23,4(295)
* Os valores das células correspondem às percentagens de respostas “sim”, ou seja, dos inquiridos que afirmaram pertencer a cada associação, por categoria de classe. As opções não são exclusivas pelo que o somatório pode ultrapassar os 100%. Os valores totais de cada coluna são as percentagens totais de respostas ‘sim’ para cada associação e os números absolutos (N) são o total de respostas (‘sim’ e ‘não’) para cada tipo de associação.
Quanto à actividade recreativa e cultural, a categoria de classe mais representada
são os gestores e supervisores (40%) seguida dos patrões (com 21,7%), mas também os
técnicos e os proletários têm aí uma significativa presença, embora com menor grau de
adesão do que aquelas categorias. Quer isto dizer que o tradicional enraizamento
bairrista e localista do associativismo popular consegue agregar posições de classe
relativamente heterogéneas em torno das actividades de lazer. Por exemplo, o relativo
peso dos patrões nestas associações é revelador da já assinalada lógica paternalista. Para
além de muitos deles serem oriundos da classe trabalhadora, a sua condição de
proprietários não acarreta neste contexto (da actividade recreativa e associativa) um
reposicionamento social em oposição aos operários manuais como em geral acontece
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
371
nos meios populares mais marcados pela cultura sindical. Também os gestores e
supervisores parecem absorvidos na mesma lógica comunitarista. O “activismo”
associativo que tem lugar no bairro ou na aldeia é sem dúvida uma vertente que
favorece o adensar dos laços transclassistas e as relações de lealdade dentro e fora do
espaço produtivo.
A significativa participação dos gestores e supervisores na actividade partidária
(30,8%), tal como dos técnicos e trabalhadores qualificados (28,6%), deixa, por outro
lado, transparecer um mais elevado grau de conciencialização política por parte das
categorias mais dotadas de recursos educacionais. Em todo o caso, não é de excluir que
haja aqui objectivos estratégicos mais evidentes. Do meu ponto de vista, tais objectivos
assentam em lógicas distintas, tanto mais que a primeira categoria (gestores e
supervisores) é mais adulta e detém uma posição de poder, enquanto a segunda (a dos
técnicos e trabalhadores qualificados) é mais jovem e não a detém. Pode postular-se
que, enquanto para os primeiros a filiação partidária terá contribuído para assegurar as
posições vantajosas que detêm e portanto a actividade politico-partidária terá sido
sobretudo de natureza instrumental, no caso dos segundos – com capital educacional
mas sem poder nem uma carreira assegurada –, trata-se mais de um empenhamento
contestatário e activo, que visa pressionar as instituições no sentido de obterem do
sistema oportunidades de carreira adequadas aos recursos técnicos que possuem.
Vejamos se a filiação sindical e as experiências de participação em protestos
corroboram ou não esta hipótese.
O associativismo sindical revela maiores índices de filiação ao nível da região do
que na sociedade portuguesa, o que se prende sem dúvida com o papel mediador e
protector que os sindicatos têm vindo a assumir nesta zona industrial. São as categorias
mais desfavorecidas que fornecem a maioria efectiva dos trabalhadores sindicalizados,
mas em termos relativos (por categoria de classe) não são os proletários os mais
activistas. Como se sabe os mais explorados raramente são os mais contestatários e,
mesmo no que se refere ao sindicalismo operário, as estruturas dirigentes do movimento
sindical foram quase sempre dirigidas pelos sectores mais qualificados e escolarizados
do trabalho industrial. Essa realidade reflecte-se nos resultados regionais tal como já era
visível nos resultados da amostra nacional: com 49,6% de filiação sindical, a categoria
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
372
dos técnicos e trabalhadores semiqualificados é a mais representada, seguida dos
proletários, com 32,7% e dos gestores e supervisores, com 30%189.
A análise dos índices de participação em acções de protesto nos últimos anos
articula-se directamente com esta questão.
QUADRO 6.15 - Participação em acções de protesto nos últimos 2 anos
(%s por categorias de classe)
Acções de protesto
Categorias de classe Manif. sindical
Manif. política
Desfile de protesto
Comício Greve *
Patrões 0,4 1,6 2,6 14,3 7,4
Pequena Burg 3,6 5,6 1,9 10,9 3,8
Gestores/Superv 10,0 10,5 10,5 13,5 20,0
Técnicos/Trab SQ 21,4 14,3 16,3 14,3 50,0
Proletários 16,7 4,5 2,8 11,3 20,2
TOTAIS (N) 9,5 (294) 5,5 (292) 3,8 (292) 11,6 (293) 17,4 (287)
* A pergunta sobre a greve não continha qualquer limite temporal, simplesmente se perguntava: “já alguma vez participou numa greve?”. Os valores percentuais referem-se apenas às respostas afirmativas (‘sim’ = participou). Os números absolutos (N) são os totais de respostas ‘sim’ e ‘não’.
Como mostra o Quadro 6.15, a greve parece ser a principal forma de protesto, mas
há que ter em atenção o facto de a pergunta sobre a greve, ao contrário das outras
formas de protesto, ter sido formulada sem se reportar a nenhum período específico de
tempo – perguntava-se apenas se “já alguma vez participou numa greve” –, enquanto a
referência às outras formas de intervenção se situava nos últimos dois anos. Pode,
portanto, concluir-se da leitura do quadro que o índice de participação em acções de
protesto colectivo é bastante baixo. Além da greve, são os comícios partidários e as
manifestações de carácter sindical as iniciativas que mais gente mobilizaram nos
últimos dois anos. Em termos comparativos por categoria de classe são os técnicos e
trabalhadores semiqualificados que revelam maior presença relativa em todas essas
iniciativas. Globalmente surgem em segundo lugar os gestores e supervisores e a seguir
os proletários. Quanto aos patrões apenas se mostram relativamente participativos no
189 É preciso notar que 84,2% dos gestores e supervisores da amostra regional trabalham em empresas privadas ao contrário do que acontece na amostra nacional em que a maioria desta categoria (bem como dos técnicos e trabalhadores qualificados) são funcionários da administração pública. Na amostra regional apenas os técnicos e trabalhadores semiqualificados estão na sua maioria vinculados ao Estado (64,3%).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
373
que se refere à presença em comícios190. Para além disso, a participação em comícios
distribui-se de forma mais ou menos uniforme pelas diferentes categorias, situando-se a
pequena burguesia e os proletários nos níveis mais baixos de participação e com uma
diferença pouco significativa. Esta é já uma indicação que pode ilustrar a tendência
geral em que o exercício da cidadania se restringe, na prática, ao cumprimento do direito
de voto. Os técnicos e trabalhadores semiqualificados dão mostras de maior
mobilização, com maior percentagem de filiação sindical e maior participação em
greves e em desfiles de protesto. Para além da clivagem entre assalariados e
proprietários dos meios de produção, repete-se aqui a oposição entre as fracções que têm
alguns recursos educacionais e as do operariado mais proletarizado: enquanto os
técnicos e trabalhadores semiqualificados se aproximam mais das posições de classe
média – principalmente por integrarem também a categoria dos “técnicos não-
gestores”191 –, e por isso aderem mais a formas de protesto não-sindicais e não-políticas,
os proletários apenas manifestam uma adesão significativa a formas de luta como a
manifestação sindical. Quanto à presença em manifestações políticas ou desfiles de
protesto são as duas categorias intermédias – isto é, os assalariados que possuem mais
recursos escolares ou posições de autoridade – as únicas que se afirmam de algum modo
sensíveis a tais formas de protesto. Nesta matéria, os proletários apresentam valores
semelhantes aos dos patrões e da pequena burguesia. A marca classista dos proletários
apenas se reflecte em formas de protesto como a participação em manifestações de
carácter sindical (apesar de inferior à dos técnicos e trabalhadores semiqualificados) e a
relativa adesão a greves.
A escassez de participação popular nas diferentes modalidades de contestação
prende-se com algumas das contradições estruturais já identificadas na sociedade
portuguesa192, e que nesta região se fazem sentir de forma particularmente notória. As
intensas experiências dos movimentos populares do pós-25 de Abril não deixaram de
190 Obviamente, os 7,4% de participação em greves por parte dos patrões seriam uma incongruência se não fosse a questão se dirigir a um passado que pode ser relativamente longínquo e por isso remeter para uma anterior condição social de trabalhadores assalariados. 191 Recorde-se que na tipologia reduzida que aqui se utiliza os técnicos não gestores e os trabalhadores semiqualificados integraram a nova categoria dos “técnicos e trabalhadores semiqualificados” (ver atrás Tabela 6.1). 192 O facto de em Portugal a experiência democrática ter pouco mais de duas décadas; a já assinalada articulação persistente entre lógicas modernas e pré-modernas, entre actividades industriais e agrícolas; as características ambivalentes da acção estatal e das relações entre o Estado e sociedade (conforme apontado por Santos, 1994); e, por fim, o facto de os movimentos sociais despoletados em 1974 terem misturado lógicas de “velhos” e “novos” movimentos; são, todos eles, aspectos que se situam entre os traços estruturais a que me refiro.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
374
cavar clivagens ideológicas que ainda hoje se pressentem. A componente “nova” dos
movimentos sociais (a ecologia, o pacifismo, o feminismo, a democracia participativa,
etc.) foi sempre bastante débil e deixou-se contaminar pela lógica dos “velhos”
movimentos, sem conseguir criar suficiente implantação nos sectores mais conscientes
das novas classes médias, elas próprias ainda bastante frágeis na nossa sociedade. O
acentuado défice de cidadania numa sociedade semiperiférica, em que o próprio Estado
encerra lógicas discrepantes, e tendo em conta as formas “providenciais” que vêm sendo
desenvolvidas na última década (embora reveladoras da centralidade do Estado na
sociedade portuguesa), são aspectos que favorecem a persistência de uma atitude por
parte das classes baixas (sobretudo em meio rural) – cultural e historicamente enraizada
na sociedade e que o regime salazarista acentuou – caracterizada pela subserviência face
ao poder. O peso das solidariedades primárias e a acção da “sociedade providência”
(Nunes, 1995) continuam a fazer-se sentir, enquanto que, paradoxalmente, essa mesma
sociedade providência continua a projectar no Estado elevadas expectativas na
resolução de problemas sociais e económicos, ao mesmo tempo que se mantém
relativamente afastada da intervenção político-social (Mozzicafreddo, 1997; Cabral,
1997; Santos, 1994 e 1998). Além disso, há que ter em conta os problemas do
desemprego, da pobreza, da criminalidade, da exclusão social, etc., o que, perante a
tendência geral de massificação dos consumos, se traduz no que Boaventura Sousa
Santos definiu como a colonização da comunidade pelo princípio do mercado, saindo
assim reforçado o pilar da regulação em desfavor do pilar da emancipação (Santos,
1994). Os efeitos perversos de um Estado-Providência ainda débil e repleto de
contradições conferem, no entanto, uma acentuada eficácia aos mecanismos sociais e
simbólicos produtores de conformismo e de indiferença no terreno da intervenção cívica
e, sobretudo, no terreno da cidadania social e política.
6.6 - Consumos e práticas de lazer
Quer os bens de consumo material, quer as actividades de lazer e tempo-livre, são
aspectos fundamentais a ter em conta. A expansão do acesso a muitos dos equipamentos
domésticos que hoje em dia são familiares às classes médias e trabalhadoras e a
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
375
normalização dos comportamentos e hábitos de lazer, constituem traços marcantes das
actuais tendências consumistas193.
Não obstante os particularismos que situam ainda a sociedade portuguesa numa
posição de relativo atraso face aos países mais desenvolvidos, os resultados recolhidos
neste capítulo comprovam que Portugal se integra nessa tendência geral de forma
notória. Através do tipo de consumos é possível observar tanto o poder económico
como o próprio estilo de vida e os recursos culturais de cada grupo social, ou seja, a
dimensão social e simbólica que se inscreve nas preferências, nas escolhas e nos gostos
é igualmente reveladora de clivagens classistas. Como mostrou Bourdieu, as diferentes
componentes do capital (económico e simbólico-cultural) inserem-se em trajectórias e
habitus sociais e de classe cujo significado é simultaneamente incorporado e
objectivado, demarcando espaços, impondo distinções e lógicas exclusionárias,
produzindo e reproduzindo desigualdades e barreiras de classe (Bourdieu, 1979).
QUADRO 6.16 - Bens e equipamentos domésticos segundo a categoria de classe
(% por categoria de classe)*
Categorias de classe
Bens materiais equipamentos domésticos
Patrões
Peq Burg
Gest/ Superv
Técn/ TraSQ
Prolet TOTAIS
Casa própria 92,9 91,2 50,0 78,6 63,8 71,6
Forno Micro-Ondas 21,4 15,8 10,0 28,6 10,0 13,0
Máquina de lavar roupa 92,9 86,0 95,0 92,9 80,6 84,3
Máquina de lavar louça 39,3 14,0 30,0 42,9 8,9 15,7
Aspirador 96,4 78,9 75,0 92,9 78,3 80,6
Televisão a cores 100,0 96,5 100,0 100,0 96,7 97,3
Vídeo gravador 78,6 56,1 60,0 85,7 52,2 57,5
Aparelhagem de som 67,9 50,9 75,0 92,9 60,6 61,9
Câmara de vídeo 35,7 8,8 20,0 28,6 10,0 13,7
Computador pessoal 28,6 10,5 5,0 50,0 5,6 10,7
Automóvel próprio 96,4 78,9 90,0 100,0 75,0 79,9
Casa de férias 21,4 1,8 10,0 11,4 1,7 5,1
N=299; Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal.
* Os valores das células correspondem às percentagens, para cada categoria de classe, daqueles que mencionaram possuir (ou a família directa em que se integram) o respectivo bem.
193 Se a importância do consumo foi desde sempre um factor decisivo para a expansão do capitalismo à escala universal, e se o impacto da ideologia consumista já estava presente no pensamento de Marx quando se referiu ao fetichismo das mercadorias como factor de alienação, pode dizer-se que o próprio Marx ficaria atónito se pudesse testemunhar a força e os contornos que o poder atractivo do consumo de massas alcançou sobre as classes trabalhadoras nos finais do século XX.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
376
É a esta luz que a presença de certos bens consumo e de certas práticas recreativas
no questionário aplicado a esta região deve ser interpretada. Começo por me referir aos
equipamentos domésticos e bens de longa duração. Mais adiante abordarei a questão das
actividades de lazer. No Quadro 6.16 acima, as diferentes localizações de classe são
cruzadas com uma lista de items referentes à primeira questão. Verificamos desde logo
que, enquanto alguns dos items se apresentam comuns à generalidade das categorias de
classe, outros permitem-nos detectar claras diferenças. Não obstante a referência
genérica à massificação do consumo, atrás efectuada, qualquer análise mais detalhada
não podia deixar de detectar as demarcações classistas que os diferentes objectos de
consumo reflectem. Ou seja, ao lado de certos padrões uniformizantes são detectáveis os
efeitos de selecção, de exclusão e de desigualdade inerentes a qualquer sociedade de
classes. Neste caso é importante notar que a designação dos equipamentos é omissa
relativamente ao seu custo real. Por exemplo, ser proprietário de um automóvel Renault
5 ou de um Volvo poderá traduzir uma distância social tão grande como a diferença de
poder económico entre um proletário e um capitalista, apesar de ambos possuírem carro.
Esse é um tipo de problema que não foi possível evitar, dada a forma como esta questão
foi tratada no inquérito.
Apesar disso, os resultados obtidos não deixam de ser significativos. Pode dizer-
se que equipamentos como a máquina de lavar roupa, o aspirador, a televisão e o
automóvel surgem como altamente acessíveis a todas as categorias de classe (tal como
já acontecia na amostra nacional). Em relação à posse de habitação própria, embora
algumas categorias de classe revelem índices mais baixos do que outras, os valores são
em geral relativamente elevados, o que, sem dúvida, nos obriga a ter presente o sistema
de créditos para aquisição de casa própria e toda a política de habitação que vigora no
nosso país. Já quanto à posse de uma segunda habitação (a casa de férias) as diferenças
de classe são notórias, com a categoria patronal a mostrar ser a que possui maior poder
económico (21,4% possui uma segunda habitação). Gestores/supervisores e
técnicos/trabalhadores semiqualificados apresentem valores bastante mais baixos (10%
e 11,4%) e nos casos da pequena burguesia e do proletariado são insignificantes os que
têm acesso a casa de férias. Para além das diferenças de poder económico que os
diversos equipamentos revelam, há que atender, como referi atrás, ao significado
simbólico que alguns deles encerram para certos segmentos sociais. O equipamento de
vídeo e a aparelhagem de som, por exemplo, apesar de se mostrarem acessíveis à
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
377
maioria dos membros de todas as categorias de classe, sugerem diferentes formas de
relacionamento pelas diferentes localizações de classe. A conotação marcadamente
urbana ou de classe média destes utensílios explica o facto de os sectores menos
alfabetizados os colocarem em plano secundário nas suas necessidades materiais. É o
que pode retirar-se das diferenças nos níveis de consumo por parte da pequena
burguesia e do proletariado (que se situa na casa dos 50% em relação ao video e à
aparelhagem), bastante mais baixos do que os patrões e a classe média. Um capital
económico elevado ou médio combinado com doses semelhantes de capital escolar/
cultural parece favorecer a aproximação a equipamentos mais conotados com as classes
médias urbanas. Interpretação semelhante poderá aplicar-se a equipamentos mais
“sofisticados” ou que entraram mais recentemente na lógica de consumo de massas, tais
como, o forno micro-ondas, a máquina de lavar louça, a câmara de vídeo e o
computador pessoal. As diferenças na propensão ao consumo são muitas vezes
reveladoras do grau de familiaridade com certas tecnologias porventura mais exigentes
em recursos escolares e em volume de capital cultural, os quais invocam, por isso
mesmo, estilos de vida de que as classes populares se mantêm arredadas. As distinções
entre as diferentes categorias de classe são, a este propósito, reveladoras. A demarcação
entre a localização de classe dos patrões, por um lado, e a dos técnicos e trabalhadores
semiqualificados, por outro, parece ir ao encontro de condições que incorporam
volumes significativos de capital económico e cultural, mas, enquanto no caso dos
patrões é o primeiro que é hegemónico, na categoria dos técnicos a situação é a inversa.
Os resultados são, apesar disso, relativamente próximos para estas duas categorias,
revelando consumos claramente mais elevados do que nas restantes situações. Em suma,
no que toca ao consumo de bens como computadores, câmaras de vídeo, máquinas de
lavar louça ou fornos micro-ondas, os proletários (e secundariamente a pequena
burguesia) estão bem distantes da classe patronal e dos técnicos/trabalhadores
semiqualificados.
Passemos agora à análise das actividades de lazer, com a qual terminarei este
capítulo. O quadro seguinte (Quadro 6.17) mostra-nos um conjunto de actividades de
tempo-livre praticadas pelas diversas categorias de classe, seja diariamente,
semanalmente ou mensalmente. Veja-se, numa primeira leitura, as actividades mais
praticadas e as menos praticadas. No primeiro caso estão, por ordem decrescente, o
consumo televisivo, as visitas a familiares, dar um passeio de carro, ir ao café e ir a
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
378
mercados ou a feiras locais. Em qualquer destas actividades, as categorias de classe no
seu conjunto mostram uma regularidade assinalável, com valores sempre acima dos
50%. Por seu lado, as práticas menos referidas são as visitas a museus e monumentos, as
idas a bailes e festas populares, a frequência do cinema ou teatro, praticar um desporto,
idas ao restaurante, leitura de livros e jornais, praticar jogos de mesa e idas a bares e
discotecas.
As diferenças de classe que mais sobressaem são: a categoria dos técnicos e
trabalhadores semiqualificados é a que mais parece entregar-se a actividades lúdicas,
enquanto os patrões e a pequena burguesia revelam uma mais escassa dedicação a
ocupações de tempo-livre.
QUADRO 6.17 - Ocupações de lazer/ tempo livre, segundo a categoria de classe
(% por categoria de classe)
Categorias de classe
Ocupações de lazer/ tempos livres
(*)
Patrs
Peq Burg
Gest/ Superv
Técn/ TraSQ
Prolet TOTAIS (N)
Ver televisão D 89,3 91,2 85,0 100,0 94,4 93,0(298)
Ir ao café/taberna D 75,0 40,7 70,0 84,6 63,3 61,6(292)
Ler jornal/revista D 39,3 25,9 50,0 53,8 25,1 29,7(190)
Ler um livro D 14,3 3,8 10,0 58,3 7,2 27,0(279)
Ir ao hipermercado S 25,9 39,6 55,0 61,5 44,3 43,2(289)
Visitar familiares S 92,9 94,7 95,0 84,6 88,3 90,1(296)
Trabalhos agrícolas S 30,7 54,9 47,3 28,6 32,9 37,8(270)
Dar um passeio de carro S 89,3 78,2 75,0 100,0 76,7 80,4(292)
Ir ao rest c/ fam/amigos S 35,7 16,3 25,0 41,7 15,6 19,4(288)
Ir ao cinema/teatro M 14,3 5,7 0,0 53,9 21,1 18,2(286)
Praticar desporto M 7,4 17,0 25,0 38,5 19,5 19,1(283)
Assistir espect. desportivo M 35,7 25,0 50,0 30,8 34,6 33,8(281)
Ir a feiras/mercados M 32,1 56,4 75,0 46,2 59,4 56,6(293)
Praticar jogos de mesa M 28,5 26,9 55,0 16,6 23,7 26,6(281)
Ir à discoteca/bar M 7,2 11,5 26,3 41,7 38,5 29,6(280)
Ir a bailes/festas popular M 10,7 15,1 10,0 8,3 14,2 13,5(189)
Visitar museus/monum M 7,4 2,0 5,0 7,7 3,0 3,6(279)
Ver filmes no vídeo M 57,1 45,3 45,0 58,3 44,7 46,6(283)
(*) D=diariamente; S=semanalmente; M=mensalmente. Fonte: Inquérito às Classes Sociais em Portugal
Os técnicos e trabalhadores semiqualificados revelam ser os mais assíduos nos
items de frequência diária como o consumo televisivo, as idas ao café (84,6%), leitura
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
379
de jornais ou revistas (53,8%) e ler livros (58,3%), assim como passeios de carro e idas
semanais ao restaurante com a família ou amigos (respectivamente 100% e 41,7%). São
também as actividades de lazer mais urbanas, tais como, a ida regular ao cinema ou ao
teatro (53,9% de frequência mensal), praticar um desporto (38,5%), ir à discoteca ou a
um bar (41,7%) e ver filmes em video (58,3%), as mais partilhadas pelos técnicos e
trabalhadores semiqualificados.
Os patrões, por seu lado, são os menos frequentadores de discotecas, da prática
desportiva, das idas a feiras e mercados, da ida ao hipermercado e também os que
menos efectuam trabalhos agrícolas nos tempos livres. Além disso, revelam níveis
relativamente baixos no que toca a idas ao cinema ou teatro. Por sua vez a pequena
burguesia, uma classe também pouco dedicada ao lazer – principalmente tendo em conta
que em geral se dedica a um negócio de base familiar – manifesta os mais baixos
índices de frequência de museus e monumentos, de leitura de livros, de idas ao café e
ainda de assistência a espectáculos desportivos. Os únicos casos em que a pequena
burguesia parece mais dedicada do que as outras categorias às actividades mencionadas
é, ironicamente, a sua entrega aos trabalhos agrícolas (também nos tempos livres) e a
participação em bailes e festas populares. Surge aqui claramente o efeito do universo
rural de uma parte da pequena burguesia194. No entanto, a elevada frequência de feiras e
mercados e os hábitos semanais do passeio de carro e visitas a familiares parecem
revelar a mistura de práticas e de referências urbano-rurais, os quais são partilhados
pelos diversos sectores (agrícola, industrial, comercial e artesanal) da pequena
burguesia. O consumo de programas televisivos, visitas a familiares, passeios de carro,
assistir a espectáculos desportivos e ver filmes no vídeo, são as actividades que se
distribuem de maneira mais uniforme pelas diferentes categorias de classe. Não surgem
clivagens de classe nestes domínios. Mas as demarcações nos padrões de consumo
recreativo entre as diferentes categorias de classe tornam-se claras em questões como: a
leitura (de jornais, revistas ou livros), onde sobressaem os técnicos e trabalhadores
semiqualificados como os maiores consumidores e os proletários e a pequena burguesia
como os que mais rejeitam esses hábitos; as idas semanais ao restaurante, em que
sucede uma situação idêntica embora, neste caso, também os patrões sejam dos clientes
194 Note-se que, o facto do sector agrícola ser minoritário na região não significa que o trabalho na terra e as lides campesinas não estejam ainda bem presentes no dia-a-dia dos indivíduos incluídos em diversas categorias de classe. Mesmo os proletários têm na pequena agricultura complementar um importante suplemento salarial, como se sabe.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
380
mais assíduos; as idas ao cinema ou teatro, em que, uma vez mais, os técnicos são os
maiores consumidores (53,9%). Ainda quanto a essa actividade, os gestores e
supervisores situam-se ao lado da pequena burguesia como as categorias mais
indiferentes; no que respeita às idas a discotecas e bares, os técnicos são ainda os mais
assíduos, mas, neste caso, os proletários seguem-nos de perto, enquanto os patrões e a
pequena burguesia são as localizações que mais se afastam dessa actividade.
Como conclusão deste capítulo, pode dizer-se que o recurso ao modelo estrutural
de Wright me permitiu traçar uma visão mais sistemática da configuração da estrutura
das classes na região industrial do calçado, bem como das orientações subjectivas e
práticas sociais da força de trabalho. Os resultados obtidos revelaram uma estrutura das
localizações de classe bastante dicotomizada (em que o peso estatístico dos proletários e
dos capitalistas é nitidamente superior e o das categorias intermédias muito inferior em
comparação com a amostra nacional), enquanto as subjectividades e as práticas
evidenciadas pelas diferentes categorias de classe são relativamente discrepantes em
variados items, a comprovar a interferência de múltiplos factores culturais, históricos e
identitários na sua estruturação. Convirá sublinhar que só adoptando uma perspectiva
estrutural foi possível assinalar certas clivagens e barreiras de classe – que traduzem
fortes desigualdades de recursos estruturalmente interdependentes –, embora a mesma
não seja suficiente para explicar as percepções subjectivas e os comportamentos dos
actores. Penso, por isso, que a análise apresentada neste capítulo adquirirá maior
relevância se for tomada na sua conexão com a abordagem histórica já apresentada e nos
ajudará, nos próximos capítulos, a dirigir o olhar para esferas mais íntimas da vida
social dos trabalhadores da região do calçado.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
381
Capítulo 7
ENTRE A EMPRESA E A COMUNIDADE: AS RELAÇÕES CAPITAL/TRABALHO
E A MASSIFICAÇÃO DO CONSUMO
Este capítulo centra-se nos sistemas de poder em vigor na indústria do calçado e
destina-se a esclarecer a forma como tais sistemas reflectem algumas das articulações
entre a fábrica e a comunidade anteriormente referidas. Procurarei contrapor as
orientações e as práticas dos principais actores em presença no mundo produtivo –
patrões, operários e sindicato – e interpretá-las à luz das especificidades históricas e
socioeconómicas do sector do calçado no contexto cultural envolvente. Na segunda
parte do capítulo (ponto 7.2) apresentarei ainda algumas das tendências mais recentes no
campo dos consumos e do lazer observadas a partir do envolvimento directo em
actividades recreativas e espaços lúdicos frequentados pela classe trabalhadora da
região.
7.1 - Os actores locais: a ambiguidade das relações entre patronato,
operariado e sindicato
Uma das questões que comecei por formular, a propósito do sector produtivo do
calçado, foi a seguinte: tratando-se de uma realidade económica onde a intensidade da
exploração sobre os trabalhadores é tão evidente, porquê uma conflitualidade laboral tão
ténue? Uma possível resposta a esta questão obriga-me a privilegiar a temática do poder
e a dar atenção à forma como os sistemas de controle instalados nas fábricas se
articulam com os modelos socioculturais das comunidades locais195.
Os dados recolhidos em SJM, por meio de observações sistemáticas e entrevistas,
permitem lançar alguma luz sobre tais questões, nomeadamente nas atitudes que os
patrões deixaram transparecer relativamente aos seus empregados e ao sindicato do
sector, do qual sobressaiu a sua representação da história local da indústria do calçado.
Uma representação que se exprime, claramente, na permanente exaltação do auto-
esforço dos actuais empresários, empreendida por eles mesmos – e no orgulho, que
exibem ostensivamente, de terem subido na vida “a pulso” –, bem como na, igualmente
enaltecida, capacidade empreendedora das laboriosas populações locais (genericamente
195 A questão dos regimes de acumulação e as diversas tipologias em torno dos sistemas de controle, do paternalismo e dos regimes despóticos e autocráticos (discutidas no Capítulo 1) são particularmente relevantes a este propósito (Burawoy, 1979 e 1985; Hyman, 1975; Gutman, 1977; Edwards, 1979; Goss, 1991).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
382
consideradas). A referência a esse passado mitificado está hoje presente na memória
colectiva local, que parece partilhar largamente essa visão épica da dedicação ao
trabalho. As palavras de um bem sucedido proprietário local196 exemplificam esse tipo
de discurso:
“(…) Não havia horário de trabalho, nem férias, nem subsídio, nem previdências, (…) tudo era feito à mão: os palmilhados, os aviamentos, os saltos e as patas eram cavacados à faca, depois grosados (...) dava-se goma, polia-se, passava-se num seixo, tingia-se a sola, queimava-se a cera com ferros próprios e, por fim, tirava-se a cera com um pano envolvido no polegar, até ficar brilhante. (...) Os dedos e as mãos dos trabalhadores ficavam disformes, cheios de calosidades por causa das sovelas e do puxar das linhas. O peito, na junção das costelas, ganhava uma cova motivada pelo esforço para segurar o sapato entre o peito e os joelhos (...) era a luta pela sobrevivência. Patrões e operários sentiam no duro da vida que alguma coisa estava errada… Mas, numa conjugação de esforços foi-se lutando até às conquistas dos nossos dias (…) (O Regional, 31/7/85). Este discurso de glorificação do trabalho parece assumir-se hoje como um
mecanismo tendente a facilitar o processo de flexibilização e precarização das relações
laborais, legitimando assim os sistemas de poder praticados na indústria. Uma tal
imagem começou, como se viu, a ser promovida nas primeiras décadas deste século (ver
Capítulos 4 e 5) pelas instituições dominantes (desde o Estado às associações patronais,
autarquias, jornais locais, etc.), tendo ficado inscrita no emblema do município: “A
Cidade do Labor”. É uma narrativa que espelha ao mesmo tempo o já referido bairrismo
local que, ao longo do tempo, se tornou uma força ideológica de inegável alcance nas
subjectividades e nas práticas sociais das populações. O crescimento industrial e
consequente processo de reestruturação das comunidades tradicionais favoreceram o
desenvolvimento desta ética do investimento produtivo e do trabalho árduo, actualmente
partilhada por amplas camadas do operariado. Culturalmente condicionado, este
fenómeno afirma-se em estreita conexão com os aspectos socioeconómicos resultantes
dos vários mecanismos de compensação ligados à economia doméstica e às
solidariedades de vizinhança, concorrendo assim para a preservação de estruturas de
poder de incidência paternalista, inibidoras da contestação colectiva e da luta de
classes.
Mas a propensão ao investimento no trabalho e na acumulação deve-se ainda a
outros factores; um deles prende-se com as origens sociais dos pequenos e médios
196 Este industrial é um dos sócios fundadores de uma prestigiada empresa local, tecnologicamente evoluída e integrando nesta altura mais de 300 trabalhadores.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
383
patrões. Muitas das pequenas fábricas de calçado continuam a funcionar em anexos, por
norma situados nas traseiras das habitações, em condições de extrema precaridade e sem
qualquer existência legal197.
A forma como muitas vezes se processa a criação de uma pequena unidade
produtiva foi-me sintetizada por observadores locais nos seguintes termos: “há muitos
casos de famílias que possuem terra, juntam uns tostões, vendem uns terrenos e vêm
para a indústria” (comerciante de calçado); “muitos operários da nossa fábrica de
calçado conseguiram abrir a sua pequena empresa (...). À custa dos trabalhadores que lá
aprenderam a profissão, devem ter nascido mais de 30 fábricas (…) fez-se ali gente
muito competente (…) e alguns ainda continuam.” (industrial de calçado, – entrevista
colectiva, SJM, 23/3/90).
Um boa parte dos actuais pequenos patrões do calçado passaram por experiências
pessoais deste tipo. Esta realidade, ou seja, o facto de o pequeno patronato ter em geral
uma origem social de famílias trabalhadoras ajuda a difundir a ideia de que o sucesso
económico de cada um depende, fundamentalmente, de aspectos como o esforço
conjugado do grupo doméstico na acumulação de riqueza (baseado no modelo patriarcal
de autoridade) e uma prática produtiva orientada para a aceitação, a disciplina e a
dedicação; prática essa que os patrões reforçam quando se assumem como
“trabalhadores” competentes e exemplos a seguir por quem aspira a “subir na vida”. Por
muito que esta ideia seja refutável – e sem dúvida que o é –, o certo é que argumentos
deste tipo são partilhados não só pela generalidade dos proprietários como possuem um
significativo acolhimento entre a própria classe trabalhadora. É neste quadro que se
deve entender a dificuldade manifesta em aceitarem qualquer tipo de diálogo com as
estruturas representativas dos trabalhadores, em especial se tiverem um vínculo sindical.
A mentalidade da generalidade dos pequenos empresários apenas reconhece dignidade
aos trabalhadores “leais” e “diligentes” perante a empresa e a entidade patronal que lhes
dá emprego.
Mas os industriais do calçado estão longe de constituir uma categoria social
homogénea, mesmo aceitando que, regra geral, possuem uma origem social baixa. Os
pequenos sucessos dos pequenos proprietários não são suficientes para que possam
confundir-se com a posição privilegiada da ínfima minoria dos “grandes” industriais
(como se viu no Capítulo 3, só cerca de 4% das empresas têm mais de 100 empregados),
197 Segundo o sindicato do calçado, estas unidades semi-clandestinas estão estimadas em cerca de mil nos
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
384
cuja solidez económica e estatuto social já lhes permitiram estabelecer o corte com a
classe de origem. Reforçam agora a sua notoriedade investindo na educação dos filhos,
preparando-os para assumir “naturalmente” a condição de classe em que nasceram, sem
terem que a conquistar, como aconteceu com os seus pais. O investimento nas
credenciais académicas dos filhos198 é uma forma de reequilibrar a inconsistência de
status da sua própria geração (a dos pais), que possui capital económico mas não capital
cultural significativo. Alguns dos industriais incluídos na camada mais inovadora
consideram que a proliferação das pequenas empresas é prejudicial para o sector:
“Há uma grande impreparação da classe empresarial. O nível de educação que [os pequenos proprietários] possuem é muito baixo, somos todos vítimas dos tempos, da mão-de-obra barata (…). Era fácil ganhar dinheiro e por isso há muitos patrões antiquados, sem espírito empresarial e sem preparação. Uma grande parte dos pequenos patrões do calçado são antigos operários sem instrução.” (industrial, entrevista em Arrifana, 12/2/90). Para além de serem, efectivamente, estruturas de base familiar, as pequenas e
médias unidades produtivas do sector do calçado tendem a desenvolver uma lógica
corporativa em que a ideia de harmonia surge como que naturalizada, enquanto o
conflito e a presença de estruturas sindicais são vistos como elementos perturbadores
dessa “harmonia natural” e, por isso, absolutamente rejeitados e combatidos.
As atitudes do patronato em relação ao sindicato do calçado enunciam claramente
essa lógica. Elas fundam-se, portanto, numa representação não democrática da vida
interna das empresas e são ilustrativas do modelo de poder que considerei numa das
hipóteses de partida, o modelo de autocracia paternalista. É nessa base que o sindicato
surge como elemento demoníaco, guiado por inconfessáveis desígnios destrutivos em
relação às empresas e seus proprietários.
De um modo geral, todos os industriais entrevistados vincaram bem o respeito que
têm pelos direitos de liberdade de reunião dos trabalhadores, mas logo acrescentaram
que os seus empregados rejeitam, por vontade própria, as directrizes sindicais, uma vez
que “se sentem recompensados” com as condições de trabalho existentes. Uma
proprietária, referindo-se a uma greve do sector, afirmava que teria havido conflitos
entre os seus trabalhadores e representantes do sindicato quando estes “queriam entrar
três concelhos em análise. 198 Por outro lado, é legítimo esperar que esta geração mais jovem de proprietários seja mais capaz de desenvolver novos processos de mudança no tecido industrial do sector, introduzindo estilos de gestão mais modernizados e pondo em prática estratégias de afirmação e reconhecimento social fundados na capacidade inovadora e na competitividade das suas empresas no mercado internacional.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
385
na empresa e obrigar os trabalhadores a aderir à greve. Mas eles não deixaram”
(Entrevista em Orreiro, SJM, 30/1/90). Um outro empresário referia-se àquela estrutura
de classe nos seguintes termos: “o sindicato defende os que não sabem trabalhar, os que
fazem parte da minoria improdutiva, dado que os bons trabalhadores já estão a ganhar o
dobro do ordenado que eles estão a pedir!” (Entrevista em Santa Maria da Feira,
12/2/90). A estas afirmações poder-se-iam juntar muitas outras que vão no mesmo
sentido: “quando foi da greve, os trabalhadores não queriam aderir... foram quase
obrigados pelo sindicato!” (Arrifana, 30/1/90); “o sindicato está atrasado, procura
apoiar-se nos trabalhadores mais políticos e não naqueles que são melhores!” (SJM,
16/2/90)
Os empresários do calçado parecem transpor para a empresa uma orientação que
espera ou exige dos seus empregados uma relação de lealdade semelhante à que tem
prevalecido na estrutura familiar e nas culturas comunitárias tradicionais. A lógica
paternalista do patronato resiste até onde pode à filiação sindical dos trabalhadores mais
combativos, e mostra toda a sua intolerância perante qualquer atitude reivindicativa,
especialmente em relação àqueles que teimam em participar nas actividades sindicais;
uma atitude que pode entender-se como uma manifestação do vínculo autoritário que
articula a ética do patriarca familiar com a prática exploradora do patrão.
O sector feminino da força de trabalho enfrenta geralmente obstáculos acrescidos,
sem dúvida devido à sua ancestral posição submissa no seio da família. Daí que, quem
personifique simultaneamente a condição feminina e a de activista sindical desencadeie
frequentemente atitudes despóticas por parte dos patrões (e dos encarregados). Como
dizia uma operária (entrevistada à porta da empresa): “ao mínimo descuido começam
aos berros. Cheguei um dia 6 minutos atrasada e tiraram-me os 60$00 do subsídio de
almoço e a sopa que nos dão (...). E eu até não costumo chegar tarde nem nunca falto!”
(ex-delegada sindical, Arrifana, 30/1/90). Uma outra trabalhadora, também sindicalista,
com quem conversei nas instalações do sindicato, queixava-se que “os encarregados
falam com duas pedras na mão! Abusam porque somos mulheres, somos mais fracas.
Com os homens não falam assim. Mas eu cá não me calo, quando sei que estou dentro
da razão.” (Entrevista no sindicato, em 13/12/89). Contudo, não se conhecem casos em
que estas atitudes despóticas dessem origem a formas de solidariedade ou contestação
colectiva, espontânea ou organizada, por parte dos trabalhadores.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
386
As greves do sector na região tornaram-se, de certo modo, rotineiras. Ocorrem
praticamente todos os anos na sequência da negociação do contrato de trabalho. O
motivo principal é o aumento salarial, mas é de crer que, a coberto das divergências
explícitas a esse nível, se escondam razões sociológicas mais profundas (Adams e
Reynaud, 1983: 135), tais como a necessidade de demonstração de força por parte do
sindicato e o receio, por parte da associação patronal, de que uma fácil negociação
possa fomentar o espírito reivindicativo. Paralelamente a este aspecto, pode ainda
pensar-se que o sindicato, estando inserido entre um espaço produtivo com pouco
dinamismo organizacional e uma intervenção negocial condicionada por forças
económicas regionais e pelas características específicas da força de trabalho do calçado,
investe acima de tudo nas instâncias de negociação sectorial (cf. Marques e Ferreira,
1991: 37).
A fim de compreendermos as percepções e comportamentos do operariado deste
sector, poder-se-á perguntar o que faz com que muitas mulheres e homens assalariados
do calçado saiam da fábrica às 6 horas da tarde (onde já trabalharam 9 horas) para, logo
após o jantar, passarem mais 3 ou 4 horas a coser gáspeas na “fabriqueta” do vizinho. O
que faz com que muitas crianças fujam à escola para se esconderem em caves, onde
trabalham dias inteiros? O que leva tantas famílias a realizar no domicílio diversos
trabalhos e acabamentos pagos à peça, socorrendo-se do trabalho dos filhos ainda em
idade escolar?
Um dos interlocutores locais que entrevistei, referindo-se ao sentido materialista
de operários e patrões, afirmava-se preocupado com a mentalidade predominante na
região, segundo ele, pouco sensível à cultura e obcecada pelo enriquecimento material:
“as possibilidades financeiras dos industriais, mesmo aqueles já de um certo gabarito
(...), não são acompanhadas pela evolução no aspecto cultural! Regra geral em S. João
da Madeira há, de facto, muita pressa em se ganhar dinheiro! É talvez uma questão de
competição, não sei (...)” (informador local, SJM, 15/2/90)199.
Algumas operárias com quem conversei à porta das fábricas, no café ou no
refeitório, queixavam-se repetidamente dos baixos salários, mas sempre acrescentando
que “apesar de ser pouco é melhor do que nada!”. Uma delas era gaspeadeira (Oficial de
1ª) e recebia em 1990 cerca de 38 contos por mês, incluindo o prémio de 4.000$00 que
199 Este informador foi vereador da Câmara a seguir ao 25 de Abril de 1974. Além da sua postura de velho democrata e activista das tertúlias sanjoanenses na época da 2ª Guerra Mundial, deixou claro o seu distanciamento crítico acerca dos diversos problemas locais, apesar de ser um “filho da terra”.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
387
já conquistara: “na família somos 6 irmãos e todos trabalham no calçado. Também
tenho uma filha que trabalha aqui na empresa” (Arrifana, 30/1/90). Outra operária
queixava-se também do ordenado, mas em contrapartida acrescentava: “o ambiente é
bom e gosto de trabalhar aqui, não tenho razões de queixa dos patrões” (Zona Industrial
de Travessas/SJM, 23/3/90). Mesmo aquelas que dizem que “devíamos ganhar mais e
trabalhar menos horas por semana”, deixam transparecer na sua expressão a ironia quase
embaraçada de quem pede o impossível, de quem afinal já se sente satisfeito por ter “um
trabalho certo e um salário a horas”, como reconhecia uma delas. Outras expressam
mais claramente, nos seus desabafos, atitudes de anuência ou de lealdade para com o
poder patronal: “eu cá não me queixo dos patrões, e se não fossem algumas invejosas, já
tinha um prémio maior! (...) o trabalho não me mete medo! O ordenado não é muito mas
vai chegando. Tenho quatro filhos e já todos trabalham!” (SJM, 12/12/89).
À excepção dos activistas sindicais, raramente os trabalhadores se referem ao
“autoritarismo” das chefias e dos patrões como motivo de descontentamento. O
“excesso de trabalho” também nunca foi mencionado como problema. Num inquérito
que nesta altura apliquei em quatro médias e grandes empresas da zona, foram indicadas
as seguintes fontes de preocupação, por ordem decrescente de importância: um bom
ordenado (72 respostas); segurança no emprego (66); solidariedade e amizade (52);
respeito das chefias (41); dialogar sem medo (38).
Quanto ao sindicato, este é por vezes motivo de polémica entre as operárias, apesar
de reconhecerem que “faz falta”. Uma trabalhadora afirmava que aquele organismo
podia ser mais forte, mas reconhece que:
“A culpa não é do sindicato, é do povo!, porque não são unidos! Umas vão pelo sindicato, outras não vão!… quando vêem que os patrões não são lá muito do acordo, dizem mal é do sindicato. Eu já fui delegada sindical, mas já não sou. Fui eleita mas não quis ser!! Já não quero andar a gastar saliva a lutar pelas outras! Porque agora é assim: eu para mim sei-me desenrascar! Agora, as outras que façam o mesmo!” (Arrifana, em 23/3/90).
Outra referia-se às delegadas sindicais sublinhando que “é preciso que sejam educadas!
(...) Algumas não têm educação! (...) Não podemos fazer só aquilo que elas querem! (...)
Muitas falam em nosso nome e depois ficam melhor e calam-se!”. Seguidamente
referiu-se, com visível orgulho, a uma filha com vinte anos, também trabalhadora numa
empresa do sector: “(...) agora está bem! Fez cursos da CEE e vai passar para 50 e tal
contos. Toma conta do armazém lá da fábrica e ninguém a chateia!” (Orreiro/SJM,
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
388
12/12/89). Uma mulher, com cerca de 50 anos, aproveitava a meia hora que resta após o
almoço para ir fazendo em tricot uma camisola de lã. Ao seu lado estava uma revista
aberta onde se distinguiam algumas amostras de cosméticos destinados ao comércio
informal: “vendo às colegas que me encomendam, mas algumas só têm é inveja. Não há
muita união, umas fazem greve outras não. Querem é passar a escova no encarregado!
Não vale a pena!...” (Arrifana, 30/1/90).
Nestes breves depoimentos, registados principalmente nas empresas médias do
sector, pode perceber-se algum individualismo e concorrência entre os trabalhadores,
bem como o relativo isolamento ou neutralização dos activistas sindicais. Estes, por seu
lado, também se queixam de “alguns” colegas, que consideram “graxistas” para com o
patrão. Como dizia um delegado sindical, “há muitos ‘escovinhas’ que se calam logo
que recebem prémios maiores, e mesmo alguns que já foram delegados e participaram
em lutas com os operários!... depois, ganham mais e calam-se!” (delegado sindical,
entrevista no sindicato em 12/2/90). Quer as fortes pressões do patronato, a que os
activistas estão sujeitos, quer a falta de mobilização e de solidariedade por parte dos
colegas de trabalho levam muitas vezes à abdicação da luta sindical. Muitos ex-
dirigentes trocaram a militância pela actividade económica por conta própria. O actual
líder do sindicato do calçado, embora negando que os trabalhadores sejam submissos,
reconhece de certo modo o sentido individualista dos trabalhadores e até dos (ex-)
dirigentes sindicais:
“Há muitos casos em que o patrão faz uma perseguição sistemática aos delegados sindicais. Depois, a questão do salário (…), os prémios que por vezes são retirados e isso conta muito! Depois, há a imagem que o próprio sindicato e as suas direcções transmitem aos trabalhadores. Por exemplo, se nós olharmos para as direcções que têm passado pelo sindicato, muitos dos antigos dirigentes do período de 1974/75 são hoje patrões! A malta que nesse período esteve na direcção são agora quase todos patrões” (Dirigente sindical, SJM, 23/3/90).
Poder-se-á daqui deduzir que a actividade sindical facilita a cooptação? A julgar
pelas palavras deste dirigente, essa tendência foi particularmente notória no período
pós-revolucionário quando, como aconteceu em muitos outros sectores da sociedade
portuguesa, os grandes radicalismos entraram em refluxo e a lógica pragmática e
individualista começou a ganhar terreno. Mas a fraqueza da actividade sindical, o risco
que comporta uma prática de contestação aberta ao patronato e a relativa
desmobilização dos trabalhadores, são aspectos que “desaconselham” os operários mais
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
389
conscientes a “dar a cara” pelo sindicato no interior das empresas. As acções de
represália continuam a repetir-se diariamente.
Contudo, os índices de filiação no sindicato do calçado – entre os 35% e os 40% –
são, ainda assim, bastante significativos no actual contexto. Do conjunto das
observações e das conversas com os trabalhadores ressalta a ideia de que a procura do
sindicato se deve, em grande parte, à necessidade de segurança e protecção sentida pelos
operários200. A estrutura sindical é não só a única instância capaz de levar a sua voz para
a mesa das negociações com o patronato, como constitui um suporte inestimável para os
associados, sempre que um problema laboral é despoletado. Na sede do sindicato os
trabalhadores recebem todo o tipo de apoios, quer jurídicos, quer burocráticos201. A
participação sindical reduz-se geralmente à simples inscrição; mas como não faltam
exemplos a mostrar que qualquer imprevisto pode abalar o “estado de graça” que o
operário mantém na empresa, o organismo da classe torna-se uma retaguarda decisiva
na defesa dos interesses do trabalhador. Convém sublinhar, a este propósito, que uma
boa parte dos operários, embora estejam filiados, deixam-se atrasar no pagamento da
quota mensal e só quando voltam a ter problemas na empresa se apressam a pedir
auxílio ao sindicato. Nessa altura, ou actualizam os pagamentos em dívida ou
reinscrevem-se, pagando um mínimo de três anos de quotas (as quais equivalem a uma
taxa de 0,5% do respectivo salário mensal), condição exigida pelo sindicato para que a
assistência jurídica possa ser gratuitamente prestada ao trabalhador nos seus diferendos
com a entidade patronal202.
A estratégia predominante no seio dos trabalhadores – perante a empresa, o
sindicato e o trabalho na indústria – não pode deixar de ser entendida no contexto
cultural mais vasto, onde a lógica de acumulação familiar e a procura das mais diversas
complementaridades económicas tendem a neutralizar a contestação organizada: numa
região onde predominam as famílias com três e quatro filhos, os prémios de
produtividade, o trabalho ao domicílio, a agricultura complementar, etc., tornam-se
200 Nas eleições para a direcção do sindicato para o biénio de 1990/92, estavam inscritos nos cadernos eleitorais 15.885 associados e votaram 6.480. Note-se que a generalidade das mesas de voto se localizam nas próprias empresas. 7 Os esclarecimentos sobre o pagamento de horas extraordinárias, as dúvidas sobre situações de baixa por doença, faltas justificadas, indemnizações, etc., ou até mesmo o preenchimento dos impressos do IRS, por exemplo, são motivos que, conforme pude observar, levam diariamente os operários aos guichés do sindicato. 202 Sublinhe-se que a actualização das quotas é, nessas circunstâncias, a única despesa que o trabalhador terá de suportar, visto que todas as custas do processo, bem como o necessário apoio jurídico (incluindo a disponibilização do advogado), ficam a cargo da estrutura sindical.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
390
factores que, no conjunto, permitem “compensar” o baixo salário que cada membro do
grupo doméstico aufere individualmente. Pode dizer-se, portanto, que esta lógica
doméstica é tanto mais válida quanto se trate de famílias com poucos meios económicos
e educacionais, cujos padrões e expectativas de consumo se pautam pela necessidade de
subsistência e pela vontade de aforro para fazer face a um futuro incerto. Mas se a
cultura que leva os operários a procurarem mais trabalho à saída da fábrica203 os levasse,
em vez disso, a reivindicar o direito ao descanso, ao lazer e ao consumo, a contestação
ao poder e ao enriquecimento patronal seria sem dúvida mais notória.
7.2 - Os usos do lazer e a massificação do consumo
Já anteriormente me referi ao campo do consumo enquanto forma de regulação
social que, ao lado de outros factores, contribui para a neutralização da consciência de
classe e da participação sindical por parte do operariado. Vejamos agora como algumas
modalidades recreativas e de consumo têm vindo a evoluir nesta região ao longo das
últimas décadas.
Principalmente desde os anos oitenta vem-se assistindo na sociedade portuguesa a
uma vertiginosa expansão dos consumos de massas e a um extraordinário reforço dos
meios audiovisuais – e da televisão em especial – os quais assumem um papel cada vez
mais decisivo na modelação dos estilos de vida. Não só as classes médias revelam o seu
deslumbramento pelo universo de símbolos e ecrãs que nos cerca (Moreira, 1984), como
importantes sectores das classes populares aderem, de forma crescente, à força sedutora
da televisão.
Todavia, o impacto aparentemente uniformizante dos consumos materiais e
simbólicos sobre as mais diversas categorias sociais não significa que se apaguem as
distinções entre elas. É sabido que, apesar da força dos média, os processos de
apropriação funcionam sob lógicas contraditórias e fortemente diferenciadoras. As
camadas populares desenvolvem modalidades de consumo tendentes a reproduzir as
203 A este propósito, repare-se na nota do Diário de Campo sobre um “restaurante-cantina” que funciona ao lado de uma das maiores empresas de calçado, em Arrifana: “o dono é operário da Rohde, onde trabalha por turnos, geralmente das 15 às 24 horas. A mulher foi também operária dessa empresa, mas desempregou-se quando o negócio começou a prosperar e era necessário assegurar o seu funcionamento. Também os seus pais, que são reformados, ajudam ao serviço na hora do almoço. Mais curioso ainda foi notar que, pouco depois das 12,30h, o número de pessoas do lado de dentro do balcão duplicou. Soubemos depois que duas jovens operárias do calçado aí trabalham diariamente na hora do almoço. Muitos operários e operárias servem-se apenas da sopa, antes ou depois da sanduiche, outros comem a refeição completa servida no restaurante. O pagamento é geralmente efectuado no fim do mês” (Arrifana, 30/1/90).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
391
identidades comunitárias e de classe a que se encontram vinculadas mas, no mesmo
passo, revestindo-as de novos contornos e formas culturalmente readaptadas.
Fenómeno que merece realce nesta região é a presença maciça das classes
populares nas feiras e mercados, bem como a sua entrega à actividade agrícola nos
fins-de-semana. Estas constituem ocupações tomadas como de “tempo-livre” e
parecem ser bastante atractivas para as populações, sobretudo no caso das camadas
mais idosas. Mas a chegada das grandes superfícies comerciais está, aparentemente, a
disputar a hegemonia aos mercados tradicionais. Na verdade, as camadas sociais
menos favorecidas continuam a frequentar a tradicional feira local, mas a ida regular
ao hipermercado ou ao “shopping” revela uma crescente adesão. Paralelamente, o
associativismo de bairro ou de aldeia continua a assumir uma significativa vitalidade.
Segundo dados recolhidos junto dos três municípios, existiam nos princípios da
década de noventa 262 associações populares na região, distribuídas pelas seguintes
actividades (por ordem decrescente): associações desportivas (83); bandas, grupos
corais e tunas (45); danças e cantares (42); associações columbófilas (40);
associações recreativas (21); associações culturais e de defesa do património (13);
grupos de teatro (12).
Como referi no Capítulo 5, este tipo de associativismo popular foi, ao longo de
várias décadas, sujeito a uma sistemática acção institucional por parte do Estado
Novo. A promoção do folclore tornou-se um importante suporte de promoção da
indústria turística e, nesse sentido, a reivenção da tradição orientou os lazeres
populares no sentido da crescente docilização face à cultura dominante (ver também
Capítulo 1). Contudo, a racionalização crescente das práticas recreativas não
significa a total submissão da cultura popular. Ela continua a procurar sobreviver
através da participação nos processos de luta pela hegemonia cultural. A generalidade
das associações, desde os clubes desportivos aos grupos folclóricos, bandas musicais,
etc. (umas mais centradas na exaltação da tradição, outras mais viradas para a
dinamização do espaço comunitário), continuam a expressar modos de articulação
entre a tradição e a modernidade.
A actividade mercantil, principalmente sob a forma de “economia subterrânea”,
estende-se às zonas industriais de maior concentração operária: os quiosques e as bancas
de venda dos mais diversos artigos, colocados junto às portas das maiores fábricas,
conferem a estes ambientes uma atmosfera semelhante à das romarias populares, onde
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pontuam os carrosséis, a música, as máquinas de jogos, etc. Nos intervalos do almoço
ou na hora da saída da fábrica os trabalhadores mergulham nestes cenários festivos que,
ao mesmo tempo, funcionam cada vez mais sob o comando da lógica mercantilista. O
mercado está hoje presente em todos os espaços sociais, desde o trabalho ao lazer, desde
a fábrica à sala de estar. Estas atmosferas oferecem formas de sociabilidade em que o
consumo e a celebração se misturam e em que a racionalidade (da fábrica e do mercado)
se transmuta numa momentânea irracionalidade. Se o consumo já contém, em si mesmo,
uma carga ritualista e um sentido de evasão, nestes contextos chega a confundir-se com
a feira ou a festa tradicional, dando lugar a ambientes de euforia e exaltação, cujo
significado simbólico e cultural são indiscutíveis. No espaço de transposição entre o
trabalho e o lazer as regras e a disciplina dão lugar a uma intensa expressividade, onde o
clima de libertação e de convívio espontâneo é bem o espelho da complexidade e das
contradições socioculturais que atravessam o mundo operário desta região.
No entanto, estas formas de sociabilidade popular decorrem em paralelo com a
presença persistente dos vínculos comunitários tradicionais, o que contribui para que
uma parte substancial dos tempos-livres seja ainda canalizada para actividades de
carácter produtivo, embora exteriores à fábrica. Ou seja, uma boa parcela do tempo de
lazer e inclusivamente o período de férias, continua a ser ocupada em actividades
laborais sob a forma de trabalho “paralelo” ou, ainda, nas lides domésticas. Os trabalhos
agrícolas na pequena propriedade familiar, ou mesmo as ocupações produtivas exercidas
a título informal no domicílio durante o fim-de-semana, são neste caso particularmente
significativos. Se é certo que a orientação para o consumo cresceu bastante nas últimas
décadas, com ela cresceu também a orientação para a poupança familiar e a necessidade
de trabalhar muito mais do que o mero cumprimento do horário normal.
A proliferação de cafés, mini-mercados e casas de petiscos assumem muitas vezes
formas mistas, onde as vertentes “moderna” e “tradicional” são difíceis de distinguir.
Nas áreas suburbanas e rurais, a taberna está em vias de extinção e há muito começou a
ser substituída por espaços mais consentâneos com os modelos de consumo hoje
dominantes. Mas, nesta região é ainda possível descobrir ambientes semelhantes aos das
antigas tabernas ou mercearias. Já não é tanto o espaço onde se vende o vinho a copo ao
balcão, lado a lado com os produtos de mercearia, como era comum há duas décadas.
Estes estabelecimentos têm vindo a reconverter-se em espaços compósitos de novo tipo;
por vezes o mini-mercado, o salão de jogos e o café convivem com resquícios
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
393
adulterados daqueles espaços tradicionais; enfim, cenários compostos das referências
mais variadas que espelham uma espécie de barroquismo pobre e sem critério. A
mesclagem de ícones de consumo que povoa estes ambientes – onde a inevitável
televisão está ao lado do bilhar ou da mesa de matraquilhos, onde os calendários e
outros elementos figurativos podem exibir uma Nª. Senhora ao lado da semi-nudez de
uma jovem modelo que publicita a marca de um motociclo, onde ao lado dos
tradicionais aforismos populares do tipo “Queres fiado? Toma!” se alinham as
bandeirinhas clubísticas do Futebol Clube do Porto, etc., etc. –, assume-se como um
sistema de signos de referência popular mas, paradoxalmente, revelador da adaptação
cultural que as identidades comunitárias têm vindo a sofrer ao longo do tempo.
O que resulta destes processos não é, no entanto, necessariamente a absoluta
passividade. Já vimos como tal passividade é inquestionável quer no terreno político
quer no da contestação colectiva. Mas, no domínio dos comportamentos quotidianos, ou
seja, no campo das práticas culturais, não é difícil encontrar indicadores que evidenciam
uma dimensão transgressiva. Por vezes estes espaços são palco de germinação de
subculturas juvenis onde o sentido da irreverência se instala. Ao lado dos
comportamentos lúdicos mais modernos e massificados pode estar presente o grupo de
amigos reformados que continua a afirmar os velhos hábitos dos jogos de mesa. O café
e o salão de jogos podem tornar-se espaços de germinação da delinquência. Os jovens
de ambos os sexos usam-nos (ver abaixo, o Caso 2) como locais de encontro onde têm
lugar as mais variadas transações. Noutros casos, o café/taberna acolhe grupos
organizados que desenvolvem actividades de lazer de índole tradicional, planeando aí os
seus encontros e campeonatos (ver abaixo, o Caso 3), ou celebrando acontecimentos
festivos de diversos tipos. Vejamos alguns destes ambientes que procurei retratar no
meu Diário de Campo:
Caso 1 - café “Top-Charm”. Situa-se numa rua estreita que vai confluir com a estrada principal de ligação entre Sta. Maria da Feira e SJM. Afixados na porta da rua estão os anúncios de festejos para breve, em cartazes de média e grande dimensão e cores bem garridas: a) Nadais - Escapães: Nª Sra. das Necessidades e Festa das Cerejas. Programa: - procissão das velas; - grupos folclóricos; - Banda; - Dino Meira (13, 14 e 15 de Junho de 92); b) Portela - Romariz: Grandes Festas de Nª. Sra. da Silva (6, 7 e 8 de Junho de 1992); c) Arrifana - Vila da Feira: VIII Festival de Folclore, conjunto Estrelas Brancas (18 de Julho de 92)” (Cartazes de Divulgação).
À hora do almoço o lugar torna-se bastante agitado e ruidoso, dentro e fora do estabelecimento, dado o volume de trânsito que circula no exterior. Existem duas
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portas estreitas que dão acesso ao café. Por uma delas entra-se directamente na sala de jogos, onde existe uma máquina de flippers, uma mesa de bilhar, outra de matraquilhos e um jogo de vídeo. A partir da segunda porta tem-se acesso ao café propriamente dito onde, além do balcão e das mesas e cadeiras, existe uma montra com bonecos e outras bugigangas e, no outro canto, uma arca de gelados. Do lado esquerdo de quem entra há um mostruário de “cassetes-pirata”.
É domingo. Os rapazes, ainda adolescentes, parecem ansiosos de afirmar a sua masculinidade: bebem cerveja ao balcão, enquanto aguardam a vez para jogar flippers, ao mesmo tempo que três raparigas jogam matraquilhos em grande algazarra. Uma criança entra apressada e dirige-se ao sr. Rui (o proprietário) que de imediato sai para fora do balcão, abre a porta da montra e retira de lá um saco com um fardo de solas de sapatos, após o que o rapazito desaparece, rua fora, com ele debaixo do braço.
À direita da porta principal, ao longo da parede, entre a entrada e o balcão, existe um banco corrido. Aí estão sentadas três mulheres, cujas idades variam entre os 45 e 50 anos. Maquilhagem bem vincada, unhas de vermelho vivo, estão a beber galões. Duas delas conversam ruidosamente, falando em simultâneo, enquanto uma terceira, de fisionomia forte, olha para a televisão (situada por cima da porta de entrada), ao mesmo tempo que mastiga um “queque” e vai abanando com a cabeça em sinal de concordância com qualquer afirmação desgarrada que sobrou do diálogo.
O espaço parece ter sido aproveitado de modo a ser mais do que um café: há algumas prateleiras com produtos de mercearia (detergentes, desodorizantes, dentífricos, etc.). Nota-se o grande à-vontade no trato entre o sr. Rui (do lado de dentro do balcão) e os clientes (homens) que se aproximam: “é café?” – pergunta-lhes. Entretanto, podem ouvir-se algumas brejeirices a propósito do taco do bilhar. O ambiente é bastante agitado e na atmosfera misturam-se os mais variados sons: o trânsito na rua, a TV, as conversas dos clientes, as máquinas de jogo, etc. (Arrifana, 30 de Setembro de 1992 ).
Caso 2 - café/snack-bar “Lagomas”. É dia feriado e período eleitoral (eleições autárquicas). Encontro-me no interior do café, situado no rés-do-chão de um prédio novo. Um grupo de jovens está junto da escadaria da entrada. A seu lado, três ou quatro motorizadas estão estacionadas. O café é espaçoso e bem iluminado dada a abundância de vitrinas onde surgem a grandes letras pintadas de vermelho, além do próprio nome do café, os principais produtos de consumo fornecidos pela casa: “hamburgers”, “churrasco”, “tostas-mistas”, “rissóis”, “leitão da Bairrada”.
No interior, estende-se um longo balcão em “L” virado para a porta principal. Do lado de dentro deste encontra-se o proprietário do estabelecimento (o senhor Manuel) que aparenta uma idade que rondará os sessenta anos. Ao contrário do aspecto novo e moderno do espaço, o comerciante revela um aspecto desmazelado: arrastando as pantufas de pano a cada passo, veste umas calças de pijama cinzentas, em tecido turco, com uma barba de três dias onde, à semelhança do cabelo escorrido, abundam as manchas grisalhas. Toda a sua expressão exprime saturação. Irrita-se com um grupo de jovens que querem jogar bilhar e estão a fazer barulho. Estes calam-se por escassos segundos, enquanto organizam as bolas de snooker sobre a mesa, preparando novo jogo. De imediato, continua a
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excitação verbal. Certas atitudes destes adolescentes parecem claramente sofrer a influência da presença das raparigas (da mesma faixa etária) reunidas a curta distância. Alguns cadernos escolares estão sobre uma mesa e sobre eles um blusão de pele e um capacete. Um rapaz que integra este grupo está junto à máquina de jogos (flippers) situada a um canto ao fundo da sala; entretanto chama as raparigas para participarem no jogo, sugestão seguida sem demora pelas três jovens. Um outro foco de atracção é a TV, onde passa uma série americana. Entretanto, dá-se um corte na corrente eléctrica. Aumenta a agitação dos jovens em volta da mesa de bilhar.
Lá fora, nas escadas junto da entrada, continua o outro grupo (que referi no início), em conversa. Vestidos predominantemente de jeans, camisas de flanela com quadrados, mãos nos bolsos, chegados a um canto da escadaria, protegem-se dos chuviscos desta tarde cinzenta de Dezembro. Ouvem-se, a espaços, algumas gargalhadas; num fragmento percebe-se que contam histórias em torno do sexo oposto “…mas a outra era ainda mais descarada (…)”. Retomada a corrente eléctrica, o grupo de raparigas volta ao entretenimento, com a máquina de flippers, que tinham interrompido. Alguém reclama com um grito ao sr. Manuel que volte a ligar a televisão. Accionado o respectivo dispositivo, percorrem-se em seguida os diversos canais até se fixar num jogo de basquetebol acabado de iniciar, em que jogam as selecções de Portugal e de Marrocos.
Surge entretanto na rua em frente ao café uma caravana da campanha eleitoral, onde se integram alguns automóveis de grande cilindrada – VW Passat, Alfa Romeo, Rover, etc. –, além de outros, menos potentes. A este pretexto, os jovens à porta atiram mais algumas graças para o ar: “há aí tanto campo para cavar!...” e riem em grupo.
Mais tarde, movido pela curiosidade de observar o espaço do piso inferior do café, ainda por desvendar, dado o vai-e-vem dos jovens (do mencionado grupo que há pouco jogava bilhar), com as meninas a revezarem-se, de tempos a tempos, no sobe-e-desce da escadaria interior, desci à cave onde me foi possível registar a existência de duas mesas de pingue-pongue num espaçoso salão. Não havia jogo, no momento, a não ser o “jogo amoroso” entre os dois adolescentes que se estendiam em ofegante abraço sobre uma das mesas (Aldeia de Samil, 8/12/1993).
Caso 3 - A taberna d’ “Os Amigos da Malha”. Os “Amigos da Malha” nasceram da reunião regular de um grupo de trabalhadores que se encontram semanalmente numa velha taberna situada no bairro de S. João da Ponte, por sua vez localizado na saída sul de SJM, nas proximidades da “Zona Industrial nº 1”. Desde a sua criação (em 1987) que usam este espaço como “sede”. O estabelecimento possui duas divisões acessíveis à clientela: na primeira, junto à entrada, situa-se o balcão, construído em madeira pintada de cor verde azeitona e forrado por fora com material sintético vermelho escuro, almofadado e ornamentado com tachas douradas formando losangos. Ao balcão servem-se os habituais petiscos da casa: moelas, orelheira, pastéis de bacalhau, etc. Na sala interior, toda revestida (paredes e tecto) com ripas de madeira de cor escura, existe um espaço onde sobressaem taças, insígnias, fotografias de provas, festejos e convívios dos vários torneios dos “amigos da malha”.
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Algumas empresas locais patrocinam por vezes as equipas de trabalhadores que participam nos campeonatos do jogo da malha. Variados anúncios respeitantes a esta modalidade podem ver-se afixados na parede, em sítios bem visíveis, a anunciar os futuros encontros. Os amigos reúnem-se assiduamente na taberna, e em especial sempre que termina um dos encontros disputados no espaço fronteiro, isto é, quando a equipa joga “em casa”.
O jogo e a dinâmica geral desta pequena “colectividade” desenrola-se quase exclusivamente no espaço da taberna. As relações de convívio entre estas pessoas decorrem geralmente em volta da mesa, com o copo na mão, onde muitas das piadas e brincadeiras só podem ser entendidas por quem, como os membros do grupo, se conhece desde há anos. Canta-se o fado, dizem-se versos de improviso ou previamente preparados. Os encontros na “tasca” repetem-se várias vezes durante a semana para os que vivem nas proximidades e, para os restantes, sempre que existem actividades e triunfos ou derrotas para celebrar ou relativizar. É um ambiente exclusivamente masculino, onde as brejeirices estão permanentemente presentes. Nas várias conversas que mantive com os membros do grupo afirmaram-me que a competição existe apenas como forma de amizade, de convívio e desportivismo. Porém, uma vez à volta da mesa e quando se aproxima a hora da última rodada, sente-se que a estratificação das competências também está presente no seio do grupo.
O sr. Ângelo, que parece ser o líder, capitaliza claramente a sua versatilidade em actividades tão diversas como o jogo da malha, o artesanato, a cantar o fado, a escrever versos, etc. (profissionalmente subiu há alguns anos de estatuto: de operário passou para a categoria de vendedor). Ainda no interior da taberna podia ver-se um aviso manuscrito, afixado na porta, onde se lia: “convocam-se voluntários para proceder à limpeza do rio a fim de preparar as festas do S. João da Ponte” (realizadas de 20 a 24 de Junho de 1992).
Caso 4 - festas do “S. João da Ponte”. O grupo de “convivas” que acabei de referir (“Os Amigos da Malha”) participa também na dinamização destas festas tradicionais de SJM. No dia em que acompanhei as suas actividades pude verificar que, cerca das 10 h da manhã já o sr. Ângelo e alguns dos seus amigos andavam a cortar arbustos e a aprontar o terreno à volta do pequeno ribeiro, quase sem água, que passa por baixo da velha ponte romana situada junto à entrada sul da localidade. No domingo seguinte – em finais de Junho – fiz uma visita à festa do S. João da Ponte.
Quando cheguei ao local podiam ouvir-se as músicas do Dino Meira, misturadas com as do Roberto Leal e com as marchinhas bem ritmadas que jorravam dos variados sistemas de som existentes no recinto. O espaço da festa está decorado com postes de madeira enfeitados com ramos e grandes flores de cartolina, onde predomina o amarelo e o vermelho. As famílias, bem como alguns grupos de jovens, percorriam a via principal em passada lenta e com os rostos suados. No vestuário predominam as camisas às riscas já em desalinho, os sapatos empoeirados, as calças de tecido e as gravatas domingueiras desapertadas, indumentária que, grosso modo, parece ser típica do adulto casado e pai de filhos em idade escolar. Nas meninas, sobressaem os vestidinhos bem arranjados ou a saia e camisete de golas arredondadas e um ou outro tecido rendilhado, meias ao
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meio da perna, por vezes um sapato de verniz a brilhar. Grupos de mulheres ciganas vagueiam com filhos ao colo e outros de tenra idade seguem-nas, pedindo entretanto alguns trocos a quem passa. Nos grupos de jovens, predominam os blusões e as gangas novas, alguns usam camisolas dobradas sobre os ombros, por cima das camisas de manga curta e cores garridas, fumam e transportam garrafas de cerveja, gesticulam, falam mais alto à passagem das raparigas, também adolescentes, que passeiam em pequenos grupos pela avenida abaixo.
Durante a tarde, junto à pequena ponte romana, navegam pequenas barcaças alugadas para um breve passeio fluvial no rio, agora navegável (devido à prévia instalação de uma comporta de madeira que serve de barragem ao débil fio de água que corre no minúsculo riacho). Nas proximidades da ponte está instalado o palco de madeira onde o conjunto musical se prepara para dar início ao baile.
À medida que o sol declina em mais um dia de intenso calor, o ambiente transmuta-se lentamente de feira em arraial nocturno. A actividade dos carrosséis e o fervilhar das famílias em passeio ao longo da avenida principal vai, a pouco e pouco, dando lugar a um ritmo mais tranquilo, com as pessoas a procurar as esplanadas improvisadas para beberem mais uma cerveja e, nalguns casos, para encomendar as febras grelhadas destinadas ao grupo de amigos ou familiares. O estribilho das aparelhagens de som tende, aos poucos, a ser substituído pelo ritmo mais compacto do grupo musical que afinava já os instrumentos colocados no palco de madeira, a preparar o baile que se antevia.
É já ao lusco-fusco, com o fundo do céu avermelhado no horizonte para lá do recorte dos prédios mais altos da cidade, que o baile se inicia. Os populares, casais, filhos e jovens, rapazes e raparigas, rodeiam o recinto, num aglomerado de cerca de uma centena de pessoas. Começa a música, surpreendentemente estilo rock. Passados alguns minutos, um pequeno grupo de jovens começa a movimentar o corpo numa dança individualizada que procura seguir o ritmo bem batido dos dois guitarristas e do baterista em cima do palco. A música vai-se prolongando em ciclos mais ou menos repetitivos, mas os jovens – duas raparigas e quatro rapazes entre os 16 e os 20 anos – a dançar na zona central do recinto de terra batida continuam sós. Bastante mais ao largo, a assistência, composta maioritariamente por jovens à mistura com algumas crianças e adultos, forma um círculo. Mas apesar do contexto festivo, as pessoas parecem demasiado apáticas. Todos olham os músicos, por vezes falam uns com os outros, em pequenos grupos, configurando no seu todo uma massa cada vez mais compacta e expectante. A música interrompe-se, recomeçando pouco depois, agora mais adequada a uma dança de pares, mais tradicional, a imitar um estilo dos anos cinquenta. Os mesmos jovens não desistem e a estes juntam-se mais dois ou três pares de idades entre os 40 e os 50 anos. Entretanto o povo, as várias dezenas de indivíduos ali reunidos continuaram persistentemente como espectadores passivos. Aguardei ainda mais três ou quatro músicas mas nada se alterou” (Diário de Campo, SJM, 21/6/92). É notório, através da observação destes ambientes, que a esfera dos consumos e
dos lazeres continua a ocupar um papel de relevo na reconstrução das identidades
sociais e pessoais. O consumo e o lazer não podem, portanto, continuar a ser olhados
como meros artefactos triviais da cultura contemporânea, nem como campo que se
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398
possa considerar totalmente subordinado à esfera produtiva. Por isso, as práticas que
nele decorrem e as identidades que nele são estruturadas devem ser interpretadas não só
do ponto de vista da sua inserção no quadro comunitário, mas também da sua
repercussão sobre as relações sociais na esfera do trabalho.
Como se viu ao longo deste capítulo, é na base da articulação entre essa dupla
vertente – a produção e o consumo – que se mantêm e reproduzem as lógicas de poder,
as quais decorrem sob orientações subjectivas e estratégias de acção extremamente
heterogéneas e fragmentárias. É o que acontece na relação que se desenvolve entre os
principais actores colectivos aqui presentes: o sindicato, o patronato e os trabalhadores.
Por um lado, os sistemas de controle que prevalecem nas empresas são sobretudo de
cariz autocrático-paternalista e reflectem-se em comportamentos tendencialmente
conformistas e atomizados por parte da força de trabalho. Por outro lado, os padrões de
consumo, embora transportem elementos de rebeldia, são marcadamente enquadrados
pela lógica geral de massificação e deixam transparecer a importância do sentido de
evasão e de fuga aos constrangimentos da fábrica. Ao mesmo tempo, a forma como
parte dos tempos-livres são ocupados – em actividades produtivas paralelas – revela
também o peso simbólico do esforço produtivista e a orientação para a acumulação
económica promovida pela família, principalmente nos sectores mais enraizados no
mundo rural. Não obstante a filiação sindical ser significativa em termos formais, no
que respeita aos índices de participação e militância torna-se evidente a fraqueza do
sindicalismo e a fragmentação da força de trabalho. Em suma, tanto no campo da
produção industrial como nos espaços de consumo e das actividades lúdicas, continua a
estar presente a dupla marca da modernidade e da tradição, a qual favorece a reprodução
deste tipo de interconexões entre a indústria e a comunidade, cujos efeitos mais
evidentes se traduzem na precarização das relações de trabalho, na fragilização das
capacidades de classe e no consequente reforço dos mecanismos indutores de
consentimento e aceitação. São esses mecanismos que passarei a observar a partir das
vivências no interior de uma fábrica de calçado.
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Capítulo 8 RESISTÊNCIA, CONSENTIMENTO E EVASÃO NUMA FÁBRICA
DE CALÇADO
[[[[Nota: o Capítulo 8 aparece na versão em papel intercalado com o Capítulo 8-A, alternando-se aí as páginas pares e ímpares, dando-nos, assim, um efeito de espelho entre a análise (neste capítulo) e os extractos do Diário de Campo (no capítulo seguinte)]]]]
Este último capítulo refere-se ao estudo de caso efectuado com base no método de
observação participante (a empresa é aqui designada por Walky). Analisam-se as
práticas, discursos e formas de acção dos trabalhadores no quotidiano da empresa,
sublinhando, por um lado, as pressões e os mecanismos de poder a que estão sujeitos e,
por outro, as subjectividades e comportamentos de resistência ou de fuga face a essas
pressões. Tanto a resistência como o consentimento serão observados a partir das
múltiplas formas de articulação entre a fábrica e a comunidade, designadamente a forma
como os trabalhadores evidenciam nas suas práticas e atitudes os efeitos das
experiências vividas nesses dois campos. Trata-se, assim, de compreender de que
maneira a esfera da produção e da comunidade se permeiam mutuamente e o modo
como nelas se inscrevem e se combinam as dimensões adaptativa e transgressiva.
A primeira questão a abordar neste capítulo diz respeito à caracterização e análise
dos aspectos mais ligados ao ritmo produtivo e às formas de pressão que daí derivam;
em segundo lugar, analisarei o sistema de poder na sua dupla dimensão, isto é, por um
lado, a hierarquia formal e o estilo autocrático dos seus métodos e, por outro lado, as
reacções dos operários face a tal sistema; na parte final procurarei interpretar o papel do
humor, do jogo sexista e das múltiplas formas de fuga que os trabalhadores põem em
marcha face à pressão da linha de montagem e à disciplina fabril; serão ainda analisadas
algumas das práticas de lazer dos operários, quer fora da fábrica, na sua relação com as
diversas formas de consumo, quer nos momentos de intervalo, no período de almoço e à
saída do trabalho, enquanto formas miniaturizadas de lazer que transportam consigo um
significado simbólico importante.
8.1 – A importância da linha de montagem no processo de fabrico
Como se sabe, o modelo taylorista de organização do trabalho, apesar das
inúmeras críticas a que foi sujeito a partir dos anos trinta, continuou a ser uma fonte de
inspiração importante para grande parte dos proprietários industriais do mundo inteiro.
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400
Em Portugal, embora o taylorismo (como de resto toda a indústria moderna) tenha sido
débil e tenha entrado tardiamente no país, a adesão da classe empresarial a muitos
desses princípios é bem visível em certos sectores produtivos, e o do calçado é, sem
dúvida, um deles. Ao observarmos os movimentos dos trabalhadores na linha de
montagem podemos testemunhar a violência do ritmo produtivo, e somos levados a
pensar nos efeitos alienantes da produção mecanizada sobre o operário. Nesta empresa,
não só os processos mecanizados e o ritmo de trabalho se assemelham àquele modelo,
como o tratamento objectivo dos trabalhadores mostra bem que estes são vistos pelos
responsáveis da gestão como meras peças do sistema.
A estrutura funcional da empresa é bastante simples: o proprietário exerce as
funções de director e gere directamente a componente comercial, contacta clientes e
trabalha com dois ou três colaboradores mais próximos – a contabilista (que é a esposa
do proprietário), uma responsável de marketing e relações públicas e o responsável geral
da produção – a secção de design/modelagem funciona autonomamente com dois
trabalhadores qualificados, assim como a do armazém; há depois o gerente da produção
(também designado por encarregado geral), que tem a seu cargo todo o processo de
fabrico; a seguir (abaixo deste na hierarquia) posicionam-se os três encarregados
responsáveis por cada secção; estas dividem-se em “corte e costura”, “pré-fabricados”
(ou “palmilhados”) e “montagem” (que inclui os acabamentos). Há ainda a responsável
pelo trabalho ao domicílio, o mecânico e três empregados de escritório. O restante
pessoal é constituído pelos operários e operárias manuais (com categorias diversas) e
por algumas raparigas que são aprendizes. Ao todo, a empresa possuía nesta altura 55
empregados, dos quais 20 são homens e 35 são mulheres. Destas, apenas duas, a esposa
do patrão e a responsável pelo trabalho domiciliário, possuem alguma autonomia e
autoridade. Todas as chefias intermédias são ocupadas por homens.
Vale a pena assinalar a importância de certos postos de trabalho, pelas
consequências que daí advêm na estruturação das relações de poder informal. Há,
efectivamente, determinadas operações que, pelas exigências técnicas que lhes são
inerentes, permitem que os trabalhadores possam fazer uso do seu saber com vista a
ampliar a escassa margem de autonomia que o sistema hierárquico formalmente lhes
atribui. Um dos postos onde tal situação se coloca de forma contundente é o dos
chamados “pregadores” (os “oficiais” da montagem), situados na zona imediatamente a
montante do posto onde eu próprio trabalhei durante a maior parte do tempo da minha
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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estadia na empresa. Trata-se propriamente da “montagem” do sapato, isto é, são os
operários que ocupam esse posto que efectuam as tarefas de esticar as componentes da
parte superior do calçado, fixá-las na posição adequada da palmilha (parte interior do
sapato) e, no caso de modelos mais sofisticados, executar cuidadosamente os “bicos” e
“tacões”, (isto é, “pregá-los”, seja efectivamente com o auxílio de pregos, seja com
batimentos sobre as zonas que vêm revestidas de cola). É possível realizar este trabalho
manualmente ou com o auxílio das respectivas máquinas, dependendo do modelo em
causa. Trata-se das tarefas minuciosas que dão forma ao calçado e essa minúcia exige
habilidade manual e capacidade para lidar com equipamentos mecânicos de relativa
complexidade, os quais têm de ser adaptados à medida de cada modelo. Quer no caso da
execução manual, quer na execução mecânica, a habilidade, destreza, capacidade
pessoal e conhecimento da função são aspectos decisivos. Alcançá-los requer uma longa
preparação e em geral só com muita experiência se conseguem elevados níveis de aper-
feiçoamento e rapidez na execução destas tarefas (esta é a posição que mais se aproxima
do velho sapateiro artesanal). A importância nuclear dos postos dos “pregadores” faz
com que eles sejam melhor remunerados, e é também por isso que, como mostrarei mais
adiante, estes trabalhadores ocupam uma posição especial nas relações de poder entre os
operários e as chefias.
Pode dizer-se que o caso do calçado é um daqueles sectores em que a automação é
assaz limitada. Mesmo nas tarefas mais mecanizadas, a componente manual tem um peso
significativo. Em todas as posições da linha de montagem essa componente está
presente, muito embora haja umas que são mais facilmente efectuadas do que outras.
Enquanto, por exemplo, arrancar pregos, dar cola nas palmilhas, desenformar, etc, são
tarefas em geral fáceis, os postos em que se trabalha com máquinas semi-automáticas ou
apenas mecânicas, como o caso da cardagem, já oferecem mais dificuldade e exigem mais
preparação e formação. A experiência que eu próprio tive na cardagem e batimento dos
bicos (tarefas de execução mecânica) permitiu-me comprovar até que ponto o esforço e a
pressão prolongadas têm efeitos marcantes sobre o trabalhador, quer em termos físicos,
quer psíquicos. No entanto, devido às constantes mudanças nos processos de fabrico, com
a alteração de modelos e a necessidade das mesmas não provocarem quebras significativas
na produtividade, essas readaptações obrigam não só a que os trabalhadores saibam lidar
com diferentes procedimentos, como por vezes exige que tenham de mudar
temporariamente de função. A produção de amostras (destinadas a exposições em feiras
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402
internacionais) é uma forma de a empresa criar os seus próprios modelos e tentar impor a
sua imagem em certos segmentos do mercado, mas, ao mesmo tempo, é também uma
forma de tirar partido da sua estrutura produtiva, relativamente leve, e da qualidade dos
seus trabalhadores. As amostras – sempre constituídas por pequenas quantidades de um
dado modelo – são introduzidas na produção nos momentos de transição entre duas
encomendas, ou quando há atrasos na chegada de componentes. É neste quadro que a
“flexibilidade” aparece como uma necessidade premente neste sector industrial.
Compreende-se, por isso, o regozijo dos patrões com a recente legislação nesse sentido.
Na verdade, a chamada “polivalência” traduz-se aqui sobretudo numa maior margem de
manobra para o patronato, no sentido de pôr e dispor do trabalhador segundo as exigências
produtivas da empresa e sem que o operário ou as suas estruturas representativas sejam
ouvidos. Tratando-se de uma empresa de pequenas dimensões, como esta, obviamente que
a quantidade e o tamanho das encomendas estão condicionados pela sua capacidade de
resposta; daí a necessidade de recorrer a esquemas de subcontratação, produzindo parte
das encomendas de empresas maiores e por vezes também subcontratando outras
empresas ou recorrendo ao trabalho em regime domiciliário.
A secção de montagem assume um estatuto central dentro da empresa, visto ser aí
que são realizadas as principais operações do processo produtivo. Nessa medida, o
encarregado da montagem, quer pela sua responsabilidade acrescida, quer pelos recursos
técnicos que em princípio deve controlar, detém também um estatuto particular. A este
aspecto se ligam, aliás, os problemas e dissensões em que o mesmo se vê envolvido,
seja com os seus subordinados, seja com os colegas (os outros encarregados) ou até
com o próprio patrão. Abordarei adiante essa questão, a propósito das relações de poder.
O encarregado deve observar o andamento das diferentes operações da linha no seu
conjunto e, quando necessário, executa ele próprio algumas delas, ajudando o operário
que num dado momento esteja a ficar atrasado. Como responsável da montagem, cabe-
lhe controlar o trabalho de cada posto e exigir que cada trabalhador o execute com a
qualidade e rapidez exigíveis. O encarregado personifica perante os trabalhadores a
figura do disciplinador. É ele que pressiona, é ele que exige sempre mais, é ele que
controla a velocidade da linha, é ele que manda fazer. Apesar disso, e sendo
formalmente investido de poder sobre os operários, a força ou fraqueza do seu poder é
na prática fortemente aferida pelo seu próprio saber-fazer. Como mostrarei mais à
frente, do ponto de vista dos subordinados, quem manda deve saber executar tão bem,
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
403
ou melhor, do que quem obedece. Segundo a maioria destes operários, não é esse o
caso do seu chefe directo. As suas atitudes selectivas, os seus “caprichos”, os gritos
dirigidos sempre com mais arrogância para o elo mais fraco da cadeia, etc., já chegaram
a provocar situações de extrema violência e descontrolo em algumas operárias. Casos
em que o cansaço físico e psicológico atingiram níveis insustentáveis, com as
trabalhadoras a largar repentinamente o posto de trabalho, rompendo em soluços e
correndo para o pátio traseiro da fábrica. Situações dessas são justificadas como “uma
crise de nervos” em relação à qual o próprio encarregado se vê forçado a ser
condescendente, tal é o dramatismo do problema e a força simbólica que ele suscita.
Estes são casos esporádicos, mas significativos. Momentos destes têm normalmente
lugar sobretudo nas ocasiões em que a necessidade de completar uma encomenda faz
acelerar os ritmos de trabalho para níveis anormalmente elevados. Tratando-se de
situações que põem em risco a saúde de um trabalhador, é compreensível a cautela dos
responsáveis. Por outro lado, isto mostra até onde pode ir a entrega e a aceitação dos
operários, depositando na empresa níveis de esforço que, regra geral, não são
recompensados nem economicamente nem em termos de reconhecimento. Compreende-
se por isso que os mais conscientes se sintam autenticamente sugados pela empresa.
8.2 - Disciplina, poder, consentimento e resistência
Sendo a fábrica industrial o lugar por excelência das relações de produção
capitalistas, é nela que se estrutura o antagonismo fundamental entre as classes polares
(capitalistas e operários). Mas, como referi no quadro teórico, esse antagonismo não só
se exprime em regimes da acumulação distintos como em formas de poder que podem
variar em função de múltiplos factores, adquirindo em geral características específicas
que têm que ver com a própria estrutura da empresa, o seu estilo de liderança, a sua
história e o contexto em que está mergulhada. Nesta empresa prevalece um sistema
disciplinar onde as dimensões autocrática e paternalista surgem intimamente ligadas,
mas onde a primeira tende a impôr-se à segunda. De facto, para além da pressão
disciplinar e da intensidade do ritmo produtivo, os mecanismos de negociação não estão
intituídos, a actividade das estruturas sindicais é fortemente restringida – ainda que de
forma mais ou menos disfarçada – e os poucos activistas que existiram na empresa
foram alvo de perseguição, tendo alguns deles acabado por sair. Estamos perante um
modelo semelhante ao já referido sweating (Goss, 1991). O significado deste termo
inglês – suando – ilustra bem a lógica aqui em vigor, uma lógica apoiada na constante
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
404
pressão sobre os trabalhadores, colocados numa posição de falta de alternativas e nessa
medida levados a sujeitar-se ao poder arbitrário do patronato. A demarcação entre quem
manda e quem obedece, o carácter prescritivo com que as ordens são transmitidas, a
tonalidade autoritária do discurso, a total ausência de diálogo, etc., são as situações que
mais sobressaem no dia-a-dia da actividade da fábrica. Todavia, se é verdade que não
existe uma resistência explícita, visível e organizada, não é menos verdade que,
observando mais de perto este ambiente laboral, os sinais de resistência tácita, subtil e
latente estão abundantemente presentes e assumem as mais variadas formas.
8.2.1 - O patrão e os operários
A abordagem das relações de poder não tem que ser, nem deve ser, tomada numa
perspectiva unidimensional. O poder está presente em múltiplas situações e
assume variadíssimas formas. Mesmo no caso de uma fábrica, onde o poder patronal se
reflecte em todo o conjunto de interacções que ocorrem no seu seio, é necessário traçar
diferentes percursos interpretativos para captar com mais detalhe os contornos de que se
reveste. Deste modo, para além da relação de poder se assumir fundamentalmente
através do antagonismo de classes que liga o capital e o trabalho, analisar a interacção
directa entre um proprietário em concreto e os seus operários poderá permitir uma
compreensão mais profunda do modo como as dimensões estrutural e subjectiva se
entrecruzam, e verificar até que ponto a relação “pessoal” se adapta ou contraria a lógica
sistémica que lhe serve de fundamento. Se no caso das micro-empresas de base
doméstica faz sentido adivinhar a força dos laços de lealdade, no caso de uma unidade
com as características desta (que adopta em pleno o modelo de gestão industrial), a
lealdade entre os operários e o patrão parece estar completamente ausente. É certo que,
nas várias conversas que mantive com o proprietário, a referência a esse elemento surgiu
de forma recorrente. Fosse para enaltecer as suas preocupações sociais com os
trabalhadores, fosse para recordar – com evidente nostalgia – as fases iniciais de
desenvolvimento da empresa, em que o ambiente interno era “mais familiar”. Nesse
sentido, a referência à ideia de lealdade assume-se mais como um ingrediente da retórica
do patrão do que como o reflexo de uma prática efectiva.
A maneira como o proprietário procura encontrar incentivos à produtividade é
ilustrativa da sua atitude face aos operários e aos direitos destes como trabalhadores. Por
exemplo, no que se refere à necessidade de disponibilizar maiores incentivos salariais
para promover a motivação e a produtividade, os seus argumentos vão no sentido de
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
405
que: não é possível dar aumentos porque a situação financeira da empresa não o
permite; os aumentos, ou mesmo uma redefinição dos prémios de produtividade,
causariam problemas e rivalidades; com a actual situação ter um emprego já é bom; os
operários são pagos acima da tabela e ainda há prémios de assiduidade, o que mais
ninguém faz; é necessário aguentar “este ano” (1995) e para o ano dar-se-á um aumento
maior e aproveita-se para acabar com esse prémio. Estas justificações não são, como é
óbvio, transmitidas directamente aos operários; se o fossem, o mais provável seria os
trabalhadores ouvirem e calarem. Provavelmente reforçariam a atitude que muitos já
revelam acerca deste assunto, desabafando para os seus botões ou para o parceiro do
lado “essa música não me faz dançar…”. A “conversa” das eternas dificuldades não
tem qualquer credibilidade quando se olha para os sinais exteriores de riqueza que são
diariamente exibidos aos trabalhadores, tais como: a carrinha Mercedes que usa
diariamente, o seu Porsche de colecção, o Volvo da esposa, a quinta, a vivenda
recentemente recuperada, etc. Adiante analisarei em detalhe as atitudes e respostas dos
trabalhadores face ao poder dominante na empresa. Os principais motivos do seu
descontentamento resumem-se a três: primeiro, os baixos salários; segundo, os critérios
de pagamento e de selecção de quem faz horas extraordinárias; terceiro, a falta de
diálogo e de reconhecimento pelo trabalho efectuado, ou seja, o autoritarismo das
chefias.
No discurso patronal é notória a ausência de referências aos operários. Na sua
linguagem, os trabalhadores são apenas meros acessórios. Ou melhor, eles são
importantes, sim, mas enquanto peças necessárias a ter em conta na contabilização da
produtividade. São antes de tudo um referente quantitativo. Por outro lado, as atitudes
deste proprietário face ao sindicato do calçado não se afastam das posições patronais
analisadas anteriormente (Capítulo 7). O sindicato é acusado de ser manipulador,
esquerdista e de fazer tudo para “dar cabo das empresas”. Refere-se um
acontecimento que teve lugar dois anos antes em que alguns dirigentes sindicais vieram
à empresa falar com os trabalhadores para que estes aderissem à greve que então estava
em curso: “queriam forçá-los a alinhar na greve quando o pessoal não queria e até
pedras atiraram cá para dentro”. Na versão do sindicato, o que se passou foi que o patrão
quis impedir uma reunião que era legal, tentou recusar a entrada dos dirigentes e
escondeu uma parte dos trabalhadores na cave para que não aderissem à greve. O
resultado foi uma divisão entre os trabalhadores em que apenas cerca de metade fizeram
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
406
greve. A partir desse episódio a direcção deixou de proceder aos descontos para o
sindicato. Hoje são poucos os trabalhadores sindicalizados e menos ainda aqueles que
pagam regularmente as suas quotas. Os que o fazem vão directamente à sede do
sindicato. De acordo com a direcção do sindicato, esta prática tem vindo a generalizar-
se, em obediência a uma directiva da associação patronal. A relativa diminuição do
número de trabalhadores sindicalizados e o crescimento daqueles que, continuando
inscritos, há muito deixaram de pagar as suas quotas são aspectos que parecem
comprovar aquela acusação (muito embora se saiba que isso se prende com as actuais
tendências da fragmentação e macanização do mercado de trabalho em geral). Como
acontece em muitas empresas da região, o sindicato é acusado de estar ao serviço de
partidos de esquerda e de não contribuir para a defesa do sector ao promover greves
“por motivos políticos”, ao reivindicar coisas irrealistas e ao tentar obstruir a
flexibilização e modernização das empresas. A isto os sindicalistas respondem com a
denuncia do autoritarismo patronal, apontam a presença de partidos políticos na
direcção da associação da associação industrial do calçado – a APICCAPS, que
acusam de ser dominada pelo PSD: “se há militantes partidários na associação porque é
que não pode haver no sindicato?”, perguntam.
Do ponto de vista do patrão, o operário ideal será aquele que nunca chega atrasado
nem sequer um minuto, que está sempre pronto a fazer horas extraordinárias – aos dias
de semana ou aos fins-de-semana, mesmo quando só é avisado na própria hora –, que
trabalha afincadamente sem nunca sair do seu posto, que não vai à casa de banho fora
dos intervalos, que nunca falta nem fica doente, que não se importa de abdicar das férias
familiares em favor da empresa, que compreende as dificuldades económicas e se
mostra reconhecido e admirador fiel do patrão. Em suma, o operário perfeito é aquele
que, mais do que ser competente, nunca reclama e que rejeita abertamente o sindicato.
Assim, o pendor paternalista do discurso patronal − por exemplo, quando desabafa:
“muito eu gostaria de lhes poder pagar o dobro daquilo que eles ganham…” − apenas
comprova a enorme distância entre o discurso e a prática. Além disso, ficou claro nas
várias conversas que mantivemos, que este proprietário parece observar cuidadosamente
alguns do seus operários: revelou estar atento não só à “performance” produtiva dentro
da fábrica mas, inclusivamente, às situações da vida particular de alguns trabalhadores.
E não são certamente os visados que lho vão contar, desde logo, porque isso acontece
sobretudo em relação àqueles cuja “falta de entrega” gera mais desconfianças ou (como
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
407
se verá) quando se trata de um líder de opinião considerado politicamente identificado
com as forças obstaculizantes da empresa (leia-se, com os comunistas).
Sendo SJM uma comunidade pequena não é difícil imaginar formas de “controle
social” que, embora com a necessária discrição, permitem que o patrão procure, sempre
que tal se justifique, encontrar na vida privada dos seus subordinados as causas de
comportamentos tomados como “estranhos” ou “anormais”. Por exemplo, quando a
falta de dedicação ou de pontualidade denunciam alguma instabilidade é em nome do
interesse do próprio operário – e da empresa, claro –, que se procuram “acompanhar”
essas situações. Porém, o papel pedagógico ou moralista que alguns empresários se
auto-atribuem não é, concerteza, efectuado na lógica de uma “cultura de empresa”
moderna e participativa, que trate os seus empregados como membros da mesma
“família”. É sobretudo a lógica autocrática que prevalece. Esta vertente parece ilustrar a
forma como o paternalismo autoritário se reforça na base da constante procura de
ajustamento entre o poder instituído na fábrica e as suas estruturas no seio da comunidade mais vasta.
Quanto ao argumento da crise e das dificuldades, ele não é, evidentemente, nem
partilhado nem compreendido pelos trabalhadores. Mesmo os encarregados se mostram
pouco ou nada sensíveis a tais justificações. Da parte dos operários, como já referi, a
observação atenta aos sinais exteriores de riqueza do patrão é para eles a maior evidência
do seu enriquecimento à custa da sua própria exploração. Nem o mais apelativo discurso
faria demovê-los dessa certeza, muito embora a ausência de qualquer relação dialogante só
possa acentuar a sua revolta surda. Este operariado pode ser, e é, pouco politizado, pode
ser, e é, desconfiado em relação ao sindicalismo, pode ter uma consciência de classe pouco
politizada e adoptar práticas individualistas e de retraimento. Mas, tal não significa que
não saiba que é vítima de exploração e que os patrões enriquecem a expensas do seu
próprio esforço. Uma das frases que um operário me transmitiu nos primeiros dias da
minha presença na fábrica deu logo a ideia do que representam os constrangimentos
vividos na fábrica. Dizia ele, algo indignado e procurando clarificar a sua posição: “nós
quando vimos para aqui, não quer dizer que gostemos disto!”. A ausência de luta aberta
contra a exploração pode eventualmente ter o seu equivalente funcional na procura de
soluções individuais, mas como tal objectivo dificilmente se torna viável, prevalece a
aspiração ávida de sair da fábrica logo que se possa. O pressuposto dos laços de lealdade,
da adesão aos objectivos patronais não se verifica de modo nenhum. A situação do
trabalhador manual é subjectivamente sentida como uma necessidade, mas não como
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
408
uma fatalidade. Muito embora a maioria permaneça na fábrica durante décadas ou para o
resto da sua vida activa (nesta, ou
noutra) a ambição de a abandonar quando for possível, nomeadamente compensando os
baixos salários com outras actividades, permanece bem vincada em muitos trabalhadores.
O argumento patronal das dificuldades financeiras da empresa é, pois, recebido pelos
operários com gestos de insatisfação e indiferença ou com o sorriso sarcástico de quem
conhece de cor essa conversa falaciosa.
Entre os operários e o patrão os contactos directos praticamente não existem. Não
há conversas nem trocas de palavras, e só raramente se esboça um bom dia quando o
patrão se aproxima de algum posto em particular. Além das situações – raras, e
normalmente pelas piores razões –, em que um operário pode ser chamado ao seu
gabinete, os contactos são imperceptíveis. O proprietário da Walky parece lamentar que
se tenha perdido alguma informalidade que chegou a existir quando em tempos se
fizeram convívios e festas na empresa204. Mas a falta de “diálogo” de que o patrão se
queixa e a falta de “diálogo” de que se queixam os operários parecem constituir duas
subjectividades que passam ao lado uma da outra sem se tocarem. Representam a forma
como a construção identitária é efectuada a partir da oposição entre o Nós e o Outro
(Bauman, 1996: 37-53). A interdependência estrutural que liga o operário e o patrão
adquire, no domínio subjectivo, a forma de discursos rivais em que cada um deles se
torna impossível de traduzir pelo adversário. Embora no campo da consciência de classe
se trate de um contexto bem diferente daqueles em que predominava o velho discurso
militante, da classe contra classe, a linguagem simbólica que se inscreve nos gestos e
comportamentos deste colectivo parece exprimir uma certa forma de identidade fundada
nas relações de poder inerentes à exploração de classe. É uma linguagem de classe
(Jones, 1989) que se assume como um jogo de monólogos e de silêncios carregados de
sentido e marcados por subjectividades antagónicas. Se para o patrão o “diálogo” é
apenas um sinónimo de adesão incondicional aos seus objectivos, para os trabalhadores
é o desejo de verem compreendidas as suas carências e respeitadas as suas
competências205. Muito embora as relações directas entre operários e encarregados se
204 Numa ocasião, dada a ausência de encomendas, alguns trabalhadores ocuparam-se de diversos arranjos na quinta particular do patrão, por eles recordado sobretudo pelo seu lado lúdico. 205 A pretexto de um pequeno inquérito que apliquei aos operários, e onde se incluíam questões relacionadas com a sua atitude em relação à empresa e às chefias, um dos operários quis saber se os resultados do inquérito eram para o patrão ficar a saber: “é bom que eles saibam para verem como os
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
409
revistam de nuances variadas (como iremos ver mais adiante), a demarcação entre os
dois campos não oferece dúvidas: para os trabalhadores, as acções do encarregado têm a
sua principal sede nos interesses do patrão.
Episódios como o da afixação do calendário das férias em que os operários se
depararam com a decisão consumada de terem de utilizar uma das semanas de férias
logo a seguir à Páscoa (porque isso dava jeito ao patrão) ilustram bem o
descontentamento dos trabalhadores face a este tipo de autoritarismo206. Foram muitos
os comentários a que pude assistir, em especial durante os intervalos, embora sempre à
boca pequena e sob a forma de desabafo individual: “é só à vontade deles!”, “é tudo
como eles querem!”, “tem algum jeito irmos de férias agora, quando os maridos estão a
trabalhar?”, “nunca somos ouvidos nem achados…”. Outros faziam observações mais
irónicas: “este ano vamos todos para o Algarve pela Páscoa!”, “só espero que nos
paguem logo o subsídio de férias…”, “vamos ver se não haverá ainda alterações à
última hora, como é costume…”. Alguns trabalhadores faziam contas certificando-se
se a totalidade dos dias assinalados correspondia ao que tinham direito.
Pode ainda referir-se, a título de exemplo, o que se passou no Verão do ano
anterior (1995): o pessoal foi “convencido” a abdicar de uma semana de férias devido a
uma encomenda que foi devolvida por um cliente importante. Esse trabalho foi pago aos
operários pelo dobro (além do respectivo subsídio de férias), mas os encarregados ainda
hoje se queixam de não terem sido compensados, bem como do facto de o próprio
patrão não ter cancelado as suas férias. Um operário olhava um dia para o recibo de
ordenado onde se informava que a empresa tinha aumentado o seu capital social em
mais algumas dezenas de milhar de contos. Comentava sozinho sacudindo o papel com
as costas da mão: “pfff!… aumento do capital social!, quero que se fff… o capital
social!! Se nos dessem mais algum é que não faziam favor nenhum!!…”. Em seguida
referiu-se ao esbanjamento do patrão dizendo que ele “para umas coisas tem dinheiro,
trabalhadores se sentem”. Quanto à falta de diálogo, não tem dúvidas, “toda a gente sabe que não há diálogo. Quem disser que há, está a mentir”, acrescentou o mesmo trabalhador. 206 No principio de Março, numa terça-feira às 8 horas da manhã, os trabalhadores depararam-se com o calendário das férias afixado junto ao relógio de ponto. Das quatro semanas de férias a que têm direito (22 dias úteis), foram programadas duas para o mês de Agosto, uma no Natal e a outra, para surpresa de todos, logo em Abril, na semana a seguir à Páscoa. Alguns dias de férias que restavam foram ainda distribuídos, um a um, pelas alturas do ano em que, devido a feriados, se “faz a ponte” com o fim-de-semana. De acordo com a lei em vigor, os patrões escolhem um período até duas semanas e os trabalhadores o tempo que resta, mas a lei diz também que o período de férias deve ser gozado entre Maio e Outubro de cada ano, a não ser que haja concordância de ambas as partes para um período diferente. Neste caso, não tendo existido qualquer diálogo prévio, os operários mostraram a sua indignação – embora apenas em termos de desabafo individualizado – por ninguém ter auscultado a sua opinião.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
410
para outras nunca tem”. Muitos contestam que o patrão tenha patrocinado uma equipa
de futebol da zona e alguns afirmam que houve jogadores de futebol que receberam
ordenados pagos pelo patrão (que fez parte da direcção desse clube): “para essas tretas,
quando é para se armar, há dinheiro. Para os que deixam aqui o coiro é que não há!”.
8.2.2 - Os encarregados e as relações de poder: uma posição de fronteira
A propósito da relação entre o patrão e os encarregados, começo por recordar
algumas das posições patronais relativamente a um dos encarregados (CR) que é um dos
mais antigos colaboradores da empresa, mas acusado de incentivar os seus subordinados
à reivindicação. CR é considerado como um indivíduo “de esquerda”, o que, neste
contexto, não é certamente uma mera coincidência. Na verdade, aquele responsável deu
mostras de ser o único chefe de secção que parece identificar-se mais com os
operários do que com a estratégia da direcção. Nos seus comportamentos quotidianos
permanece em geral junto dos trabalhadores, conversando com eles nos intervalos;
como vai almoçar a casa, não acompanha os outros colegas nas idas ao restaurante; nas
duas reuniões que fiz com os encarregados – com o acordo do patrão e tendo em vista a
dinamização da participação e do diálogo – foi sempre o primeiro a sair e mostrou-se
pouco colaborante; das várias conversas que tive com ele, embora mostrando
cordialidade, sempre me pareceu um pouco desconfiado o que, sem dúvida, se prende
com as boas relações que eu próprio mantinha com o patrão; na visita que fiz à empresa
já depois de terminada a pesquisa, e após a dissensão que houve entre mim e o patrão, a
sua abertura e simpatia para comigo foram muito maiores. Vários comentários
comprovaram que este encarregado tem de facto a confiança da maioria dos operários:
“é o único que está do lado dos trabalhadores e é capaz de dizer que não ao patrão. Os
outros falam por trás, mas quando chegam ao pé dele já não dizem nada, abanam com a
cabeça e concordam com tudo o que ele diz”. Um dos colegas de CR, demarcando-se,
afirmava que se ele tem razão em certas coisas também não é admissível que alguém
com a posição de encarregado esteja sempre no contra. “Ele refugia-se nos operários,
dá-se bem com eles mas, apesar disso ser positivo, não se pode perder o sentido do
dever, dada a posição de responsabilidade que se detém”. Em geral o posicionamento
dos outros em relação a CR reflecte a posição de “pivot” que este simbolicamente
ocupa no delinear das contradições entre as chefias e o sector operário. Um outro
encarregado com quem conversei regularmente (AB), embora manifestando uma
posição de alguma simpatia pela actividade sindical, demarca-se também do sindicato
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
411
do calçado e assume: “isto aqui, quando se é encarregado é-se logo um lacaio do patrão
(…), quanto a isso não há nada a fazer!”. Tudo isto nos mostra como a relação entre o
patrão e os encarregados é em grande medida aferida pelo posicionamento destes face
aos operários, uma indicação que, ao mesmo tempo, comprova como o antagonismo de
classes está presente na empresa e é subjectivamente equacionado pela entidade
patronal. Há, evidentemente, diferenças no relacionamento entre o proprietário e os
encarregados. A preferência do patrão vai sobretudo para o “gerente da produção” (ou
encarregado geral) e é com ele que têm lugar as conversas mais detalhadas sobre os
problemas da empresa. Em todo o caso, não obstante essas diferenças, pareceu-me
evidente que nenhum dos encarregados adere totalmente às posições da direcção e, mais
do que isso, o que é claro é que eles − embora preservando um discurso e uma atitude
consonante com o cargo de autoridade que ocupam− não passam o seu tempo a pensar
na empresa. Quando saem dos portões tentam esquecer o trabalho, como qualquer outro
trabalhador. É, aliás, um pouco por isso que o patrão se queixa de falta de diálogo.
Efectivamente, mesmo os mais próximos colaboradores do proprietário raramente
dão cobertura às suas posições ou, se a dão, é porque se sentem a isso obrigados e não
por lealdade. Isso é visível em muitos dos seus desabafos e comentários. Um deles
(AB), ainda no início, colocava-se numa posição critica face à “conversa do patrão” e
mostrava-se descrente das suas repetidas afirmações, como por exemplo a de que “é
preciso semear primeiro para colher mais tarde”. Afirmando que podia concordar com a
ideia, acrescentou: “só que nós andamos a semear, a semear, há muitos anos e não
colhemos nada (...), quando se semeia e a terra não dá nada, ao fim de pouco tempo o
agricultor tem de virar costas e dizer bar’ da merda!...”. Na sua opinião, o patrão tem por
vezes “umas ideias um bocado esquisitas...” e sublinhava que ele é muito contraditório e
inconsequente nas suas posições. Deu o exemplo da situação das férias do ano passado,
atrás referida, assumindo que no início discordou mas mais tarde reconheceu que estava
errado e que essa foi uma solução necessária. Mas o que mais o preocupava era a
incoerência do patrão ao não querer pagar aos encarregados por esse trabalho. Uma
reacção muito sintomática foi visível quando o interpelei a propósito do desejo do
patrão em desenvolver a motivação dos trabalhadores. Primeiro riu-se. Perante a meia
resposta que já estava contida naquele gesto, perguntei-lhe: “é possível mais motivação
sem aumentos de salário?”. A resposta saiu de pronto: “isso? Nem pensar (...)
Motivação!?...” e fez um gesto escondendo o soluço sarcástico: “não se esqueça que o
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
412
pessoal não tem aumentos há dois anos (…). Evidentemente que, perante isto, o pessoal
tem razão para estar descontente! Faz o seu trabalho, cumpre com as suas obrigações
mas é claro que a motivação não pode ser muita”.
A posição dos encarregados é, efectivamente, a mais ambígua no âmbito do
sistema de poder da empresa. É o lugar de fronteira que marca a clivagem classista entre
o operário e o capitalista. A subjectividade destas posições intermédias de chefia parece
dilacerar-se entre os antagonismos de classe e os laços de lealdade pessoal: de um lado,
a empresa e o patrão que lhes delega poder, mas ao mesmo tempo sobre eles impõe
constrangimentos e deles exige uma entrega e dedicação que colide com os seus
interesses e motivações pessoais; do outro lado, os operários seus subordinados, a quem
estão ligados no dia-a-dia, a quem reconhecem dificuldades económicas, que tentam por
vezes proteger, mas que têm de controlar e que sentem olhá-los como o “inimigo”. Um
ponto em que todos parecem de acordo é sobre o discurso pessimista do patrão. Acham
que é um exagero. Apesar das crises, dizem, “as coisas não estão tão negras como ele
quer fazer crer”. Além disso, para eles a atitude demasiado negativa do proprietário é
que torna as coisas efectivamente difíceis207.
Mais adiante irei centrar-me nos jogos de poder entre os encarregados e os seus
subordinados dando uma atenção mais detalhada ao caso da linha de montagem. O
encarregado desse sector personifica, mais abertamente do que os outros, o sistema de
poder autocrático em vigor na empresa. Não creio que isso se deva apenas a aspectos do
seu carácter ou estilo pessoal, até porque, como espero ficar claro, as características e as
exigências que obrigatoriamente estão presentes na linha de montagem traduzem-se em
dificuldades acrescidas, quer na dimensão técnica, quer na gestão do pessoal. Contudo,
o estilo e a própria trajectória pessoal de FI conferem-lhe uma postura muito própria e as
suas relações com os outros adquirem contornos específicos. A sua atitude um tanto
rígida, formalista e, acima de tudo, a pretensão de querer mostrar-se conhecedor de
todas as matérias, o tom paternalista que imprime no seu discurso, etc., denunciam um
estilo que corresponde um pouco à imagem estereotipada do militar de formação. Estes
atributos, somados à sua baixa escolaridade – ao nível do ensino primário, apesar de ter
frequentado vários cursos de formação profissional –, fazem com que as “certezas” que
manifesta espelhem sobretudo uma grande insegurança mesmo aos olhos dos seus
colegas mais directos, e até do patrão, a sua imagem é a de um indivíduo teimoso e
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
413
autoritário. Num jantar, em que participei com os vários encarregados, chegou a ser alvo
de chacota por parte dos colegas: em jeito de brincadeira imitavam os seus tiques e as
frases que gosta de repetir: “eu explico, eu explico…”; e riem-se nas suas costas.
Todavia, mesmo no caso de FI, o alinhamento com as posições patronais não é tão
óbvio como possa parecer. É mais uma posição ambivalente que, no entanto, adquire
contornos muito próprios. Não obstante a fama que tem junto dos operários, o
encarregado da montagem, evita mostrar-se bajulador do patrão. Pelo contrário. Procura
contrariar a ideia dos que o acusam de ser “graxista”, de ter subido à custa disso e de
estar sempre a querer evidenciar-se junto do patrão. Nas conversas que manteve comigo,
ou quando se aproximava das operárias nos intervalos, referia-se por vezes aos
“interesses do patronato”(em geral) como a causa das carências dos operários, falando
mesmo do desejo de “enriquecimento fácil” como a razão dos baixos salários. Este
discurso, que é geralmente partilhado pelos trabalhadores e pelos restantes
encarregados, parece, contudo, ser parte da sua estratégia pessoal para atenuar o relativo
isolamento em que se encontra. Em relação a mim, para além da cordialidade da sua
relação, essa tónica parecia tornar-se mais ostensiva à medida que a minha proximidade
com os trabalhadores aumentava. Avaliando a sua prática e os seus comentários e tendo
em conta os vários pontos de vista de outros interlocutores (subordinados, colegas, etc.),
parece claro que este encarregado é particularmente vulnerável à posição ambivalente
em que se encontra. Não apenas àquela que deriva directamente do seu estatuto ambíguo
(enquanto chefe de secção), mas à de quem precisa de gerir uma condição
particularmente complexa, que se torna ainda mais complexa pela própria
vulnerabilidade da sua estrutura psicológica. Trata-se afinal de alguém que tem de
mostrar eficácia produtiva e capacidade de comando, mas, ao mesmo tempo, um
constante e polifacetado conhecimento técnico. A necessidade de “provar” o seu saber-
fazer. E esta é uma importante fonte de autoridade na relação com os operários. Não
apenas porque é necessário mostrar dedicação à empresa e ao seu proprietário, mas
porque a pressão que inevitavelmente tem de exercer sobre os operários precisa, de
algum modo, de ser compensada com gestos de aproximação e cumplicidade face às
exigências e descontentamento destes, nomeadamente na questão salarial. Como a
seguir irei mostrar, esta última orientação em relação aos subordinados parece ter pouco
sucesso.
207 O encarregado geral revela sempre uma posição mais conciliadora e dialogante, atitude essa que o leva
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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8.2.3 - Os encarregados e os operários: jogos de poder
Situar a forma como se configuram as relações de poder entre os operários e os
encarregados é reconhecer que os operários têm poder. Ou seja, é reconhecer que eles
estão longe de ser meras peças da máquina produtiva ou meros repositórios de um poder
unidireccional que sobre eles é exercido. Retomando aqui Burawoy, deve recordar-se
que o taylorismo nunca conseguiu, na prática, consumar por completo a separação entre
concepção e execução. Os responsáveis da gestão, embora tenham chamado a si o
controle do conhecimento técnico, não conseguiram nunca monopolizá-lo. Trata-se
assim de reconhecer uma nova oposição entre o conhecimento apropriado pela direcção
e o conhecimento dos trabalhadores. É a parte que lhes cabe do seu saber-fazer que lhes
permite pôr em prática processos mais ou menos subtis que tendem a contrariar as
regras da hierarquia e, de certo modo, recriar “a unidade entre concepção e execução”. O
processo de produção capitalista não se limita, como já foi assinalado, a estruturar
objectivamente uma classe. Do mesmo passo, modela subjectivamente as identidades
colectivas e individuais através da experiência vivida pelos trabalhadores no processo de
produção. As relações na produção, além de não serem uniformemente determinadas
pelo modo de produção capitalista, traduzem-se em experiências específicas, em jogos
informais que podem assumir-se como formas ideológicas ou, digamos,
“micropolíticas”, cujo efeito pode ser o de conciliar as relações de produção, dando
lugar ao que Burawoy designou de “fabricação do consentimento”. Porém, neste caso,
tal consentimento não é totalmente conseguido. Assim, além de se olhar o espaço
produtivo como transcendendo o seu conteúdo económico, mesmo num contexto de tipo
despótico conseguem-se esculpir alguns espaços de liberdade (Crozier e Friedberg,
1977) com base no saber técnico, nas regras do jogo que se aprendem a dominar, na
subtileza da pequena sabotagem, etc., ou seja, há zonas de incerteza (Bernoux, 1985)
em que a relação de poder se inverte pontualmente. Noutro sentido, a prática repetida do
“jogo” informal transmuta a necessidade numa forma de liberdade (Burawoy, 1985).
As formas que tal “jogo” adquire na empresa são visíveis sobretudo na relação
entre o grupo operário e as chefias directas. É nesta interacção que se desenha uma das
ambiguidades deste operariado, reveladora de que, apesar da sua consciência de classe
“precária”, apesar da sua identidade “fragmentada”, se trata não apenas de uma classe
“em si” mas de uma classe que, nas suas atitudes e práticas no espaço produtivo, pode
a ser acusado pelos operários e pelos próprios colegas de falta de coragem.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
415
até certo ponto ser considerada uma classe “para si”. Uma classe que não apenas
consente passivamente a exploração, mas resiste a ela. Porventura à sua maneira, mas
tenta preservar-se; porventura não de forma aberta e organizada, mas através da
“guerrilha”; porventura não politicamente, mas culturalmente, na estruturação identitária
que tem lugar no quadro das relações na produção. Trata-se, talvez, de uma forma que
se aproxima do que Lenine designou como “instinto de classe”. Uma forma que, além
disso, nos deve levar a relativizar a excessiva ênfase no consentimento.
É precisamente porque o jogo das relações simbólicas de poder é carregado de
ambiguidades, é porque a colectividade operária parece transportar um poder que não
sabe que possui (mas que os seus adversários conhecem de perto), é por isso, digo, que a
estratégia dos encarregados é em geral muito cuidadosa na relação com os operários.
Digo cuidadosa, mas não necessariamente branda. O encarregado da montagem, ao
relatar-me aspectos da sua experiência inicial, ilustra situações dessas. Sublinha a sua
preocupação em que tudo saia bem feito, mas também as dificuldades em levar os
trabalhadores a fazer as coisas segundo “o método correcto”. Reconhece que o operário
que já está no seu posto há vários anos tem uma experiência muito grande, mas refere
também a sua luta constante para combater os “vícios”, enfatizando que tentam sempre
fazer as coisas à maneira deles: “por vezes da maneira mais difícil, até para eles”. E isto
porque, sublinha, “além de se cansarem mais, rendem menos”. Fala dos primeiros
tempos como encarregado em que, afirma, alguns lhe tentaram “fazer a vida negra (…).
Estavam sempre a apalpar o pulso. Se sentiam que era mole abusavam logo (…) Havia
coisas em que ainda tinha pouca prática, mas sempre fui procurando melhorar, até saber
fazer bem, como hoje, qualquer operação na linha de montagem. Quando é preciso
mostrar, sento-me ao lado do operador e mostro-lho como se deve fazer (…)”.
Reconhece que, por vezes, embora as coisas não saiam exactamente como ele queria,
deixa passar. “Mas, esclarece: “eu apercebo-me!, (…). Eles pensam que não, mas eu se
fecho os olhos é porque quero (…)”. A propósito dos gritos que por vezes dá para
chamar a atenção desta ou daquela operária, tem uma explicação: “dantes eu costumava
chegar ao pé delas e chamar a atenção. Dava a volta pelos diferentes postos e
controlava as coisas. Mas comecei a perceber que elas me queriam trocar as voltas.
Quando eu me ia dirigir a alguma que estava a conversar ou a fazer asneira, elas
percebiam e nessa altura mudavam de lugar. Outras vezes eram as outras que ficavam
atrás de mim que me chamavam quando eu me encaminhava para um certo posto (…)”.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
416
Esta acção de resistência ou, nas suas palavras, de “boicote” ao papel do “responsável”,
levou-o nessa altura a fazer uma reunião com todos os trabalhadores (dos acabamentos e
montagem) em que anunciou as novas regras: “a partir de agora ninguém sai do seu
posto de trabalho sem minha autorização. Se vejo alguém fora do posto sem motivo, vai
imediatamente lá para fora”. Outras afirmações suas, que me foram transmitidas durante
uma reunião com todos os encarregados, são bem reveladoras da visão que tem do seu
próprio papel e dos operários que chefia. Usando sempre um tom irrefutável e
paternalista explicou: “é preciso ter uma linguagem técnica para toda a gente dizer da
mesma maneira”; “não se pode dar a entender ao subordinado que ele tem razão porque
se ele pensa que sabe mais, perde o respeito”; “se ele é incorrecto é preciso ser firme e
não dar parte de fraco”; “eu sou um encarregado! E como encarregado [ênfase], como
profissional que sou, ensino como se faz!, não se pode mostrar fraqueza, se apalpam e
sentem que é mole (...)”; “estão aqui para trabalhar e não para dar opiniões (...)!”
Como já ficou claro, o encarregado da secção de montagem merece aqui uma
atenção especial na medida em que ele é a figura que mais obviamente personifica a
presença do poder da empresa junto dos operários. Embora haja aqui uma dimensão
individual, é fundamental sublinhar que é principalmente devido ao alto grau de
exigências e de complexidade – quer em termos técnicos (dadas as múltiplas tarefas, a
diversidade de equipamentos mecânicos e semiautomáticos), quer humanos (porque o
grosso da força de trabalho se concentra neste sector), quer económicos (porque os
níveis de produtividade dependem sobretudo da capacidade de resposta da linha) – que a
referida secção e o encarregado que a dirige espelham muito das contradições e
clivagens sociais presentes no processo de produção fabril. O papel decisivo ocupado
por FI − bem como muitas das dificuldades que enfrenta e até a posição “delicada” que
detém no quadro das relações de poder da empresa − passa principalmente por estes
aspectos.
Segundo me foi relatado, outros encarregados que anteriormente ocuparam o
mesmo cargo tiveram dificuldades identicas ou até superiores. É, aliás, precisamente por
haver consciência das funções decisivas que ocupa no processo productivo e na gestão
das tensões laborais que os trabalhadores no seu conjunto procedem ao “estudo”
minucioso do comportamento e da personalidade de quem ocupa essas funções. É,
portanto, natural que o processo de promoção deste encarregado, desde que entrou na
empresa há cerca de 10 anos, seja objecto de crítica por parte de mitos. No início
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
417
trabalhou ainda como “montador” e também nos “palmilhados”, como operário, mas
uns meses depois tornou-se chefe da montagem. Dizem os seus críticos (que são, no
fundo, a generalidade dos seus subordinados e também alguns dos seus colegas) que ele
já veio destinado a ser encarregado, apenas esteve uns meses a “fazer rodagem” em
alguns postos. Os trabalhadores afirmam que há alguns anos, quando havia reuniões
gerais com mais assiduidade, enquanto os outros ficavam sentados junto dos
trabalhadores do seu sector, o FI “ia lá para cima, para ao pé do patrão (…). Queria-se
armar em bom, em importante...”. Alguns, à boca fechada, dizem que “é uma besta” e
que muitas vezes “não sabe o que anda a fazer”. Acusam-no de ser obcecado pela
produção, mas, ao mesmo tempo, de não tomar atenção às inevitáveis oscilações na
produtividade (em função de cada modelo de calçado), mantendo o ritmo elevado na
linha quando devia esperar, e de ser demasiado exigente em certos momentos (por
exemplo no início de um novo modelo) e, noutras alturas, “facilitar” a qualidade em
favor da quantidade. É também contestado por ser parcial nas suas relações com os
subordinados, de dirigir as actitudes autoritárias sobretudo às mulheres, enquanto em
relação a outros é “tolerante”.
Enfim, os comentários desfavoráveis repetiam-se e ele sem dúvida sabia disso ou,
pelo menos, parecia adivinhá-lo. Desabafava por vezes junto de mim como que a
justificar-se afirmando que “as preocupações são muitas” e reconhecendo que em outras
alturas “dizem-se coisas que não se deviam dizer”. Refere a constante pressão do
proprietário, que exige dele níveis de produtividade nem sempre possíveis de alcançar.
De facto, o patrão parece observar e registar atentamente qualquer gesto que lhe
pareça sinal de facilitismo na linha de montagem. Se nota que em algum posto há
“tempos mortos”, não se esquece mais tarde de atirar ao chefe do sector que há pessoal
“a arranjar as unhas…”, forma curiosa de denunciar o trabalhador que aproveitou algum
subterfúgio momentâneo para abrandar o ritmo. Esta dependência dá algum crédito aos
que afirmam que os “berros” do encarregado se fazem sentir em especial quando o
patrão está por perto. Isto permite-nos reforçar a ideia de que não se trata tanto de um
autoritarismo pessoal, mas de toda uma lógica disciplinar fundada num regime
autocrático onde o ritmo produtivo tem de se traduzir na constante “transpiração” do
operário.208
208 Em ocasiões de maior aperto, ou seja, quando é necessário apressar a entrega de qualquer encomenda, “pede-se” a algumas trabalhadoras que fiquem a fazer horas extraordinárias até às 20 h ou mais tarde, se for necessário. Ficar a cirandar, é o termo por que é conhecido o trabalho extraordinário. A decisão e selecção
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
418
Os métodos autoritários em vigor na linha de montagem foram repetidamente por
mim presenciados. De facto, as raparigas mais jovens são as vítimas preferenciais.
Embora seja, até certo ponto, compreensível que por serem mais inexperientes possam
errar mais, parece claro que há aí uma selectividade calculada. O poder masculino
sobrepõe-se ou articula-se com a dominação de classe, mantendo a mão-de-obra
feminina como o sector mais precarizado da força de trabalho. Nessa medida, o
autoritarismo assume sempre formas mais arrogantes quando é dirigido às mulheres.
Um dia, o chefe da montagem chamou uma das operárias e pediu-lhe para desenformar
umas botas (amostras) quando ela se encontrava junto das embalagens. Como naquele
momento estava a acabar outra tarefa respondeu: “já vou”. Pouco depois, e como não
visse a sua ordem seguida de imediato, o encarregado foi junto dela e gritou-lhe: “mas o
que é que eu estou aqui a fazer?!”. Numa fúria crescente, que para mim era até então
fora do comum, gritava: “queres ir lá para fora? Queres?!”. Essa é uma forma de
punição que vigora na empresa. Uma trabalhadora pode ser mandada para a rua durante
um período de tempo variável, sendo-lhe depois descontado esse tempo no ordenado. É
inegável que as atitudes mais autoritárias são sempre dirigidas aos mais vulneráveis, em
particular às raparigas mais jovens para quem o grito de longe é o método mais
frequente: “vem cá contar-me essa que eu também queria ouvir!”; “então o que é que eu
sou aqui afinal?... Aquilo que eu digo é para se fazer ou quê?!”. Tal como com estas
raparigas jovens – conhecidas na fábrica pelo “pessoal de Alvito” – assisti a outras
situações de grande violência, sempre dirigidas a trabalhadores de menores recursos. O
tio António (o meu companheiro de posto de trabalho) e a Rosa são exemplo disso. Em
ambos os casos, o encarregado mostra-se particularmente irritado com o facto de
olharem para o chão quando lhes dirige alguma reprimenda. Vi-o a gritar para o meu
colega de posto: “Olhe para mim! Olhe para mim carago! Porque é que não olha para
mim?”. O caso da Rosa é semelhante. São trabalhadores sem qualquer instrução escolar
e cujas marcas de ruralidade saltam à vista. A sua postura corporal perante a posição de
poder com que são confrontados imprime-lhes no rosto uma expressão semelhante à de
do pessoal é, em geral, feita no próprio dia. O encarregado geral dirige-se individualmente aos trabalhadores (as mulheres dos acabamentos são as mais requisitadas) com um papel na mão a fim de anotar o nome das que ficam para o prolongamento. Quando lhes é pedido para ficarem até mais tarde, a maioria aceita, mas nota-se que o fazem a contra-gosto. Algumas recusam, o que requer uma justificação convincente, caso contrário podem ficar “queimadas”. As jovens de Alvito, quando ficam “a cirandar” são transportadas até à zona de residência pela carrinha da empresa. Uma compensação acrescida. Mas isso não impede que se assista às recorrentes manifestações de contrariedade: sentem que o trabalho extraordinário é mal pago e são por vezes obrigadas a alterar os seus planos familiares.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
419
crianças desprotegidas e envergonhadas quando repreendidas em público. Estes casos
são o oposto da atitude dos jovens mais qualificados e instruídos que trabalham na linha
de montagem. Enquanto que estes evidenciam sinais de segurança, indiferença e até de
autoridade – inerentes ao capital educacional e às qualificações técnicas que possuem –,
os primeiros demonstram embaraço, retraimento e medo. Mas, apesar de tudo, também
o tio António se mostra repetidamente revoltado com o chefe. Quando o andamento da
linha era demasiado violento, explodia: “ele não vê que isto está atrasado?!”. Chateava-
se, ficava vermelho de irritação e protestava: “se não vem desligar a máquina e parar
isto, deixa-se seguir tudo pr’á frente e pronto! (…)”. Noutras ocasiões, tanto o tio
António como os outros, adoptam uma atitude deliberada de “deixa andar”. Se vêem
que o encarregado não toma atenção à excessiva velocidade da linha, como sabem que
não ganham nada em protestar abertamente e também não querem ser cooperantes em
excesso, abrandam o ritmo de propósito e ficam “nas calmas”, como que a assobiar para
o ar, fingindo que não percebem o que se está a passar. Nota-se o prazer que sentem
quando vêem o encarregado em apuros. Esta é, evidentemente, uma forma de resistência
comum à generalidade do trabalho operário. Mas aqui assume traços muito próprios.
“Ele sabe a quem as faz!”, comentava o Paulo a propósito da lógica selectiva que
preside aos comportamentos despóticos do seu chefe. Com os homens, de um modo
geral, não existem atitudes ostensivamente arrogantes. As excepções que pude constatar
foram o tio António e o Pedro, sendo este acusado pelos seus colegas de “dar confiança
demais” ao encarregado. Da observação diária que efectuei ao longo deste periodo pude
confirmar que as reprimendas do encarregado se dirigem principalmente a quem se
mostra mais solícito e dele mais se aproxima. Pequenos desentendimentos e situações
de tensão com os meus colegas “pregadores” assumem em geral contornos bastante
mais subtis. Essas situações quase sempre se devem a problemas técnicos do fabrico.
Como já disse, o facto de os pregadores ocuparem um posto decisivo, o facto de serem
homens, ainda jovens, com alguma qualificação, e sem dúvida também por não
mostrarem medo na relação com o chefe (usando a sua linguagem, “não lhe dão
confiança”), são aspectos que contribuem decisivamente para que a relação com o
encarregado assuma de facto uma forma diferente. Vejamos alguns exemplos. Em dada
altura detectou-se que as sandálias estavam a sair com as gáspeas assimétricas e o FI
mandou desmontar algumas delas, instruindo os operários para manterem os
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
420
“ponteados” da parte direita e esquerda do extremo das tiras da frente à mesma distância
da palmilha. Como é costume, ficaram a olhar para a “obra” que tinham nas mãos,
aceitando a solução proposta, mas pareciam desconfiados acerca da sua eficácia. A aura
de certeza que o chefe coloca quando dá a sua opinião contrasta claramente com a falta
de confiança que os outros apontam nas suas competências. No caso dos homens da
montagem é opinião unânime que ele entende pouco de cada operação em particular.
Com isso estão, evidentemente, a querer afirmar a sua própria competência técnica, ou
seja, o domínio em relação a um posto que é “o seu”, aquele onde trabalham todos os
dias. Um dos pregadores tentava executar as instruções recebidas. Mais um pequeno
retoque, com o encarregado ao lado, este disse: “está bom”; enquanto o primeiro
acenava com a cabeça num gesto concordante balbuciando, pouco convicto: “está bom”.
Após o outro virar costas, ao passar ao meu lado com a sandália na mão para a colocar
no carrinho, acrescentou: “está uma merda, mas enfim…”. Minutos depois, os três
operários comentavam entre si que aquilo assim estava ainda pior, dizendo que o
problema era do molde que estava mal feito, pois, pregando as extremidades das tiras
horizontais à mesma distância ficava a tira vertical (do meio da gáspea) descentrada. O
Pedro era o que falava mais alto com desabafos de contrariedade e protesto e isso
acabou por chamar novamente a atenção do encarregado, desencadeando assim mais
uma reprimenda: “quando se dá uma ordem é para se cumprir! Não é para se ficar a
discutir!”. Quando o FI se aproximou já os outros dois pregadores (João e Paulo)
estavam ao largo, sentados nos seus postos. Apercebi-me que enquanto o chefe ralhava
com o Pedro, estes dois trocavam sorrisos e olhares cúmplices entre si. Explicou-me um
deles mais tarde que quando querem “criar confusão” arranjam uma forma de “atiçar”
aquele colega contra o encarregado. “Nós começamos a picá-lo, fazemos soltar as
cachorras e pronto… quando as cachorras começam a rosnar está a confusão armada!”
As cachorras rosnaram, o “domador” apareceu, deu dois berros e pouco depois já se
podia ver o Pedro a trabalhar sossegado. Minutos depois olhou para mim de longe e
esboçou um sorriso como que a dizer: “não há nada a fazer. Se ele diz que é assim,
assim se fará”. Mas não ficam convencidos. Mais tarde ainda voltaram a especular se
“amanhã ou depois” não os mandariam desfazer a “obra” e fazer tudo de novo. Muitos
detectam erros mas não chamam a atenção porque acham que “não ganham para isso”.
Os desabafos repetem-se: “ele não liga nada”; “ele agora quer duma maneira mas daqui
a bocado se lhe der na cabeça já quer outra coisa (…). Às vezes por causa duma
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
421
cagadela de mosca faz para aí um barulho do carago! Agora aparecem as palmilhas
neste estado, com uma bela merda de trabalho e não dizem nada!!!...”. Esta revolta
surda, bem como as atitudes de boicote e de chacota expressam a convicção dos
operários de que o encarregado, apesar dos seus “ares de conhecedor” é de competência
duvidosa. É sintomático o prazer dos operários ao relatarem situações como esta: um
sapato não está bem, o chefe pede a um dos operários para dar um jeito e este diz:
“deixe ficar aí”. Passado algum tempo mostram-lhe novamente o mesmo sapato que
supostamente estaria arranjado mas que em rigor não alteraram nada, e ele responde:
“está bem assim, mete na linha, manda p’rá frente!”. E divertem-se com isso.
Estes episódios são bem ilustrativos do significado simbólico das cumplicidades e
da rebeldia tácita dos trabalhadores face à lógica da empresa. O papel do trabalho na
contrução das identidades de grupo passa muito por situações deste tipo. Os momentos
de tensão, de resistência e de trangressão sublinham bem o carácter dinâmico das
relações de poder e mostram que não estamos perante uma atmosfera de total
passividade ou de mera aceitação por parte do trabalhador. Trata-se antes, de um jogo
em que os actores se fazem valer dos mais diversos meios para marcar pontos face ao
adversário, nomeadamente, no caso dos operários é visível uma atitude aparentemente
passiva, mas que é na verdade uma estratégia que passa por dissimular a aceitação. É, no
fundo, uma defesa face a possíveis represálias e uma forma de “disfarce” tendente a
enganar o adversário e a guardar para si próprios alguma margem de manobra. Além
disso, há mesmo situações em que a relação parece inverter-se, com a posição
dominante a surgir pontualmente como a dominada. Já se sabe que os trabalhadores
detêm um certo poder na medida em que a empresa e as chefias precisam deles, não
apenas para estarem presentes no posto de trabalho mas para que, em maior ou menor
grau, se dediquem efectivamente e apliquem de facto as suas capacidades no processo
produtivo. Tratando-se de um caso onde não existem instrumentos formais de
negociação, isto é, onde o trabalhador não tem nenhum meio de afirmar abertamente os
seus interesses, as suas respostas podem surgir como uma docilidade resignada ou
assumir esta forma de “rebelião contida”. O carácter de jogo recobre-se de uma
simbologia e de uma expressividade muito subtis. O retraimento controlado ao longo do
tempo parece por vezes prestes a explodir, enquanto que noutras ocasiões assume
contornos mais corrosivos onde a transgressão é sobretudo marcada pela subtileza.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
422
Um dos meus interlocutores referia-se à forma persuasiva de aproximação de um
dos encarregados quando um dia o chamou explicando-lhe que deveria começar a
aprender a trabalhar com uma nova máquina: “vens para aqui e vais começando a
praticar, vais aprendendo…”. O trabalhador ouviu em silêncio mas no seu íntimo, como
ele disse, “fiz-lhe um manguito!”, como que a dizer o que pensava, ou seja: “tu queres é
que eu me esfole aqui a fazer bicos, a fazer tacões, a fazer tudo...”. O encarregado calou-
se e ele, como se não percebesse que a ideia era começar nessa altura a experimentar a
referida máquina, voltou para o seu lugar de trabalho sem dizer nada. O chefe
também não insistiu e as coisas continuaram na mesma. O mesmo operário, referindo-se
a uma “obra fina” (calçado mais sofisticado) que dias antes tinha dado vários problemas
por causa das rugas, mostrava-se revoltado com o facto de os responsáveis terem estado
a ajudar no posto ao lado e ninguém ter notado as dificuldades que estava a ter. Estava
extenuado, a querer arranjar os tacões num material dificílimo de montar: “empurrava
daqui, puxava dali, a minha camisola já toda encharcada” e ninguém dizia nada.
“Depois saíram de lá, passado um bocado passa o FI ao pé de mim a perguntar: então
isso já está melhor agora? Eu que já estava cheio reagi – está melhor como!? Porque é
que havia de estar melhor?!”. A reacção foi, como se diz na gíria local, “soltar as
cadelas!...”. Outra fonte de descontentamento é a prática da mudança inopinada da
posição das máquinas (sempre decidida unilateralmente pelo encarregado): “tem algum
jeito estar a trabalhar de costas para a linha?!… Nesse dia se ele me diz alguma coisa
saltava logo!... Tem algum jeito aquilo?...”; desabafava comigo aquele trabalhador.
Pontualmente, a revolta acumulada pode dar lugar ao protesto descontrolado e
assumir formas de conflito aberto. Mas trata-se sempre de reacções individuais. É o
carácter atomizado de uma classe que não actua enquanto tal. Prende-se com isso a não
politização dos conflitos e a lógica fragmentária das identidades laborais. As situações
de ruptura surgem normalmente quando as partes envolvidas têm alguma proximidade,
ou seja, quando a discrepância do poder formal é, de algum modo, neutralizada pela
informalidade das relações. Um outro trabalhador ainda jovem, mais escolarizado do
que a média e com bastante antiguidade na empresa, relatou-me um problema com os
“moldes” que o envolveu a ele e ao encarregado da montagem. Após terem falado
calmamente no armazém – que fica na cave e onde não há outros operários –, tendo-se
esclarecido que o erro já vinha de trás, subiram as escadas e quando chegaram junto da
secção de corte o conflito reacendeu-se: “à frente de toda a gente começa a gritar
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
423
comigo, a dizer que eu não tomei atenção. Mas com uns modos que me fizeram perder a
cabeça. Chego-me ao pé dele e gritei tão alto como ele. De cara a cara, disse-lhe:
‘Olha, tu, vai-te fff…!’ Ele ficou assim meio atarantado e perguntou: ‘O quê, o quê?
Isso é comigo?’ – sim é contigo! E sai da minha frente! E virei-lhe as costas, porque eu
naquele momento se ele insistia ia-lhe à cara! Ele ficou a gaguejar para o ar e eu virei-
lhe as costas. Ficou a dizer, comigo ninguém fala assim...blá, blá!...”.
Pude comprovar que este incidente não teve outras consequências de maior e hoje
os dois contendores continuam a relacionar-se normalmente. Também testemunhei que
aquele operário, apesar de muito mais jovem, trata por tu o referido encarregado. Isso
deve-se em parte ao facto de não estar na sua dependência directa e, por outro lado, à
atitude de uma certa tendência deste responsável de se aproximar dos que possuem uma
escolaridade mais avançada ou que, de algum modo, são detentores de um “saber-fazer”
potencialmente concorrente com o seu.
Para além disso, a questão da “virilidade” deve ser aqui equacionada. A força
física, a coragem, a capacidade de enfrentar a dureza da vida, o mostrar que se “tem
tomates”, constituem ingredientes que fazem parte do discurso e do imaginário
masculinos na base de uma lógica que simboliza a posição dominante do homem tanto
perante o trabalho como perante a mulher. Apesar da presença maioritária de mulheres
na indústria do calçado, as relações na produção são manifestamente caracterizadas pela
masculinidade. A hegemonia do discurso masculino, a rudeza das relações entre os
trabalhadores, o jogo sexual e a linguagem de índole machista constituem características
bem presentes nesta empresa. Existe uma demarcação de espaços entre ambos os sexos
e, em certa medida, as próprias mulheres entram nesse mesmo jogo sem o alterarem
substancialmente. Adiante voltarei a esta questão, quando abordar a sensualidade e o
romance na fábrica (ponto 8.4, caso 5). Em todo o caso, estas reacções de “desrespeito”
podem ser toleradas não só por serem excepções, mas porque o esforço produtivo e a
capacidade dos seus diferentes intervenientes tende a sobrepor-se à disciplina formal,
em particular porque situações como aquela anunciam a importância das relações
informais e a sua inevitável interferência na cadeia hierárquica.
A procura de afirmação de poder pelos encarregados e a luta tácita que travam
diariamente com os seus subordinados assume formas bem ilustrativas do carácter
dinâmico das relações de trabalho. Na fábrica, como noutros contextos, os actores em
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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posições de subordinação nunca são totalmente dependentes e por isso, como refere
Giddens, há uma dialéctica de controle que dá lugar a constantes desequilíbrios, vira-
gens e cedências que alteram continuamente a distribuição do poder (Giddens, 1982:
32). A observação desta empresa comprova bem a relativa fluidez do sistema e mostra
que os trabalhadores não são, nem meros suportes do modo de produção, nem
simplesmente lubrificantes de uma estrutura imutável. Os elementos de rigidez e de
maleabilidade do sistema de controle são duas faces da mesma moeda. Ou seja, muito
embora as relações de produção se preservem no tempo e reproduzam a lógica
capitalista, o que se passa no dia-a-dia do espaço fabril, as relações na produção numa
fábrica em concreto, espelham uma realidade social vulnerável à multiplicidade de
processos, de negociações, de estratégias de mercado, etc., em que a unidade produtiva
está mergulhada. Todas as partes participam activamente em todo esse jogo, quer
aceitando as suas regras ou fazendo-as cumprir, quer resistindo-lhes e contrariando-as.
A força ou a vulnerabilidade da empresa em termos económicos resulta desses múltiplos
efeitos. Quando, por exemplo, uma empresa é levada à falência ou expande as suas
capacidades produtivas, estamos perante o culminar de um conjunto de processos
desse tipo, no qual participaram os diferentes actores a ela directa ou indirectamente
ligados. As lutas diárias que aí são travadas, sejam elas conduzidas de forma aberta
(reivindicativa, política, sindical) ou apenas sob uma resistência latente e continuada,
têm consequências tanto económicas como na alteração das relações de força e,
portanto, no sistema de poder que lhes é inerente. Assim, se um olhar mais superficial
pode dar-nos a ilusão de uma absoluta estagnação, uma observação mais atenta não
deixa de revelar como os diferentes intervenientes participaram activamente na
estruturação das relações de trabalho num processo vivo e dinâmico composto de
múltiplas rupturas e continuidades. Essa dinâmica é bem visível na análise das relações
de poder entre as chefias intermédias e os trabalhadores desta fábrica.
Já atrás afirmei que os encarregados parecem evidenciar o desconforto de quem
caminha na fronteira. A clivagem incontornável entre quem pertence ao grupo operário,
ou com ele é identificado, e quem está “do outro lado” obriga a opções claras. E se
alguém, por força das coisas, tem de persistir na ambiguidade, vê-se na necessidade de
fazer uso de uma ginástica desgastante. O mesmo responsável (AB) que um dia me
disse que um chefe é sempre visto como “lacaio do patrão” revelou perceber bem a
lógica dominante e mostrou até o seu sentido crítico face aos mecanismos de exploração
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
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em que está inserido. AB mantém relações de alguma proximidade com os operários,
muito embora tal não aconteça com os seus subordinados directos. Um dos
trabalhadores que lhe é mais próximo confidenciou-me que, quando está junto do seu
sector a sua postura se altera totalmente, procurando salvaguardar as distâncias perante
os seus subordinados (que são sobretudo mulheres). Outro aspecto curioso e sintomático
é o facto de ele almoçar no próprio balneário porque, segundo diz, não se sente bem a
comer no refeitório em frente às operárias. Na sua opinião, elas reparam em tudo e
comentam tudo: “se um tipo come com o garfo ou com a colher, se come sandes ou
comida quente, etc. (…). Não se pode dar muita confiança”. Prefere suportar o
isolamento e o mau cheiro – pois o balneário fica na mesma divisão das casas de banho
– a ter de enfrentar os olhares, ou seja, a partilha do espaço de informalidade e de
descompressão que é o refeitório.
Já no caso de CR, o encarregado dos “pré-fabricados” (que, como referi atrás,
assume uma atitude de ruptura com os interesses patronais), a situação é muito
diferente. Convive com os operários nos intervalos e estes, sejam ou não seus
subordinados directos, parecem manter com ele uma relação de forte lealdade. Reflexo
decisivo dessa relação de proximidade é sem dúvida o seu afastamento em relação aos
seus pares. Uma vez mais, é a ruptura entre o “eles” e o “nós” que está aqui presente.
Uma identificação com os operários é sinónimo de uma animosidade com o patronato e
um alinhamento com o patrão é sinónimo de desconfiança dos operários. Eu próprio
senti na pele essa contradição (ver Capítulo 8-A, ao lado). Várias vezes me interroguei
sobre as razões de uma tão evidente simpatia por este encarregado. Afinal, nunca
ninguém referiu que ele tivesse reivindicado abertamente junto do patrão direitos e
regalias para os trabalhadores. Ele próprio minimizou qualquer conflito aberto com o
proprietário (com quem trabalha desde o início da empresa), referindo apenas um ou
outro desentendimento pontual. Mencionou até as qualidades do seu empregador
comparativamente com o patronato do sector em geral o que, aliás, me pareceu
sobretudo revelador da sua desconfiança em relação a mim209. Mas há outros aspectos a
ter em conta. Sendo ele encarregado, detendo por isso uma posição de poder na
hierarquia da empresa, demarca-se totalmente da atitude que os seus colegas adoptam
junto dos operários: defenderem os interesses do patrão; controlarem os trabalhadores;
serem autoritários; não quererem misturar-se com eles; etc. CR, embora não conteste
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
426
abertamente o patrão nem a empresa, também não se mostra nada preocupado em
assumir a sua defesa; tal como os trabalhadores, prefere afastar-se e fechar-se; prefere
conviver com os trabalhadores, falar de futebol, de carros e de pesca; resiste a colaborar
nas horas “extra”, nos trabalhos ao sábado, etc. A sua lógica é, portanto, a lógica
comum à maioria dos operários: não é um activista; adopta uma resistência passiva;
procura outras compensações fora da empresa; está sempre apressado para deixar a
fábrica. Estas são algumas das práticas de alguém que, apesar do seu estatuto de
encarregado, parece de facto posicionar-se, não na zona de fronteira, mas do “outro
lado”. Resguardando-se nos laços de afinidade que mantém com os trabalhadores,
contribui para estruturar a identidade colectiva do grupo operário e assume-se como
uma peça central para alimentar a resistência passiva que a caracteriza.
Para terminar esta parte, vale a pena insistir num ponto já aflorado, mas ainda não
suficientemente discutido. Refiro-me à forma peculiar que a relação de poder entre o
encarregado e os operários pode assumir. Em certos momentos, os contornos dessa
relação apresentam-na completamente invertida. Obviamente que se trata de situações
pontuais e mais relevantes na forma do que no conteúdo. Além disso, não deve
esquecer-se o carácter heterogéneo da colectividade operária. As pessoas utilizam os
recursos de que dispõem e procuram monitorizá-los no dia-a-dia na relação com os
outros, na base de experiências e habitus distintos, que se traduzem em subjectividades
e estratégias diferenciadas. Por exemplo, os recursos económicos ou educacionais e as
posições de status (pessoais ou familiares) que os trabalhadores ocupam no exterior,
etc., repercutem-se nas relações laborais, dando lugar a comportamentos e estratégias
dissemelhantes. A partir da observação da relação entre o encarregado da linha de
montagem (FI) e os operários mais qualificados, é possível detectar o efeito simbólico
do cruzamento discrepante entre o “saber-fazer” e as credenciais educacionais. Num
mundo em que as tecnologias avançadas se assumem cada vez mais decisivas, o
saber prático, parcial e tácito entrou abertamente em ruptura com o saber teórico,
sistemático e explícito. Por isso, como assinalou Bourdieu (1979: 452), aqueles que
incorporam a definição dominante, sentindo-se desapossados de qualquer título legítimo
tendem a perceber essa privação como uma mutilação essencial cujos efeitos disruptores
sobre a identidade pessoal e social podem ser dramáticos. No caso concreto do
encarregado da montagem, além da contradição derivada da sua relação com o
209 Precisamente numa altura em que as minhas tentativas de aproximação aos operários chocavam ainda
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
427
conhecimento técnico e o diploma escolar, procura gerir a ambiguidade entre o seu
posicionamento na hierarquia e a procura de uma legitimação informal junto dos
subordinados. A constante invocação dos cursos de formação profissional que
frequentou denuncia a boa vontade cultural e a insegurança de uma aprendizagem pouco
consistente. Esta dimensão ajuda-nos a perceber melhor a lógica selectiva que preside às
suas práticas autoritárias e a razão de se colocar – em certos momentos – numa posição
de subalternidade, contrariando o estatuto de poder que detém.
Um dos operários da montagem a que atrás me referi – o João – frequentava na
altura um curso de formação profissional (curso de encarregados), o mesmo curso que o
seu superior hierárquico (FI) também já frequentou. Esta circunstância ajuda-nos a
ilustrar como as características que acabei de referir fazem parte do jogo de poderes
entre os operários e o seu chefe directo. O trabalhador em questão mostra um à-vontade
e uma segurança bastante grandes na relação com o encarregado e com a fábrica em
geral. Na verdade, a sua experiência e a importância do seu posto de trabalho constituem
uma fonte de poder informal muito significativa. Acresce que uma anterior iniciativa
sua para sair levou a empresa a segurá-lo, aumentando-lhe substancialmente o ordenado.
Como é evidente, este facto veio reforçar o seu poder. Por isso me referiu que está lá a
trabalhar mas poderia não estar: “eu estou aqui porque me compensam em termos
económicos, se não já cá não estava. Já tentei sair e eles é que não quiseram… Deram-
me mais algum e eu fiquei. Se estivesse a ganhar só 60 contos já cá não estava!…”. Isto
ajuda-nos a perceber a relação “especial” do encarregado para com ele. Quando está
pontualmente a trabalhar ao seu lado, o FI adopta uma postura serena e simpática,
procurando meter conversa com o João. Faz-lhe perguntas sobre o curso, o que pensa
fazer depois de o terminar, falando de assuntos ligados ao seu próprio curso, etc.
Curioso é que esta aproximação parece rodear-se de todos os cuidados e precauções,
adoptando o encarregado sempre um tom de voz muito afável, em contraste com as
abordagens autoritárias a outros trabalhadores, como atrás referi. Com o outro operário
que executa uma função idêntica – o Paulo –, a atitude cordial mantém-se mas este
fecha-se mais e “não lhe dá confiança”. Uma vez mais, o facto de a operação de
“montagem”, efectuada por estes trabalhadores, ser decisiva para o andamento geral do
processo produtivo explica, em parte, a cordialidade que o encarregado lhes dedica.
Quando um deles falta, ou chega atrasado, cria-se, regra geral, uma certa atrapalhação na
com o bom relacionamento que mantinha com o patrão e com os restantes encarregados.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
428
produção, o que não acontece com nenhum outro posto de trabalho. Evidentemente que
os trabalhadores em causa sabem disso e usam essa “vantagem” nas relações com o
chefe. Um deles chegava sistematicamente atrasado ao trabalho – isto é, cinco ou dez
minutos depois do toque da campainha (note-se que os atrasos, ainda que de escassos
minutos, podem levar à perda do prémio de assiduidade) – o que em ocasiões de maior
aperto dava lugar a algum nervosismo. Por vezes, quando a impontualidade habitual se
alargava um pouco mais pressentia-se o clima de tensão e expectativa nos movimentos
intranquilos do encarregado. Arranjava pretextos na preparação do material para atrasar
o arranque da linha. Quando se apercebia que o carro do referido operário entrava nas
traseiras da empresa ligava apressadamente as máquinas e todo o mundo se agitava num
ápice. Por um lado, era uma forma de lhe mostrar que o seu atraso se traduzia em
acréscimo de trabalho para os outros e prejudicava toda a gente, mas, por outro lado,
pretendia com isso mostrar que a sua presença não era insubstituível.
Contudo, estas situações não ilustram apenas a importância estratégica de certos
postos de trabalho e o seu impacto nas relações de poder. Para além disso, é importante
dar atenção ao papel decisivo dos recursos pessoais e simbólicos que cada um dá
mostras de possuir. Não me refiro apenas ao domínio de um volume significativo de
capital escolar – que como já vimos assume aqui um efeito inegável, porque confere aos
operários que o possuem um certo ascendente sobre o seu supervisor –, mas também ao
facto de essa dimensão se repercutir na própria “pose” comportamental e até corporal
que estes trabalhadores denunciam, no modo como se relacionam com a empresa e os
colegas ou superiores. Efectivamente, trata-se de dois casos, em que as respectivas
famílias revelam traços de classe média e parecem viver numa situação remediada em
termos económicos. Ambos têm carro de matrícula recente; um deles vai casar
brevemente – com uma rapariga com habilitações escolares de nível superior (possui um
bacharelato) – pelo que já adquiriu um apartamento; os seus pais exploram um café; o
outro também tem familiares directos em lugares de classe média e vive em casa dos
pais, uma moradia moderna a confirmar os referidos sinais de desafogo económico210.
Ou seja, se quanto à sua posição nas relações de produção estes trabalhadores se inserem
numa localização proletária, já no que respeita à chamada “classe mediada” – a posição
de classe do conjuge ou familiares directos – estarão mais próximos da classe média.
Esta circunstância coloca-os, portanto, numa situação que contraria a total dependência
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
429
em que se encontram aqueles que, além de desapossados de recursos escolares, são-no
também de meios económicos ou de qualificações técnicas que lhes permitam pensar
em possíveis alternativas profissionais. O facto de uma alternativa poder ser pensada é,
em si mesmo, significativo e tem consequências óbvias no posicionamento subjectivo
do trabalhador face à empresa e aos seus superiores hierárquicos. A relação de poder
tem, como se sabe, muito de simbólico e é, em boa parte, por isso que a dominação
só existe porque existem formas de aceitação da dominação. E tais formas podem ser as
mais diversas, na medida em que a mente dos subordinados é modelada não apenas no
espaço fabril mas nas diferentes esferas que integram o curso das suas vidas pessoais.
8.3 - Evasão, humor, jogo e descompressão
O papel do humor e do jogo nas relações de trabalho tem sido repetidamente
assinalado como um elemento fundamental na compreensão do universo da fábrica. As
brincadeiras, os jogos de sedução entre os dois sexos e os rituais de informalidade em
geral, podem constituir um importante barómetro das identidades sociais e culturais das
organizações. Tomá-los em conta pode permitir reequacionar diferentes dimensões da
estrutura interna de uma empresa e aprofundar a análise, nomeadamente no que se refere
à lógica contraditória que atravessa as relações sociais na fábrica, isto é, a articulação
entre a normalização e a ruptura. Como alguns autores têm chamado a atenção, a
subjectividade do trabalhador não é só subversão nem só trivialidade (Linstead, 1985:
762). O humor pode assumir funções e significados contraditórios na esfera
organizacional. Pode dizer-se que ele se situa na fronteira entre o controle institucional e
a desmistificação do poder. Ajuda a lidar com situações de dureza e adversidade,
actuando por vezes como um meio de distanciamento e relativização das partes mais
desagradáveis, previsíveis e aborrecidas das nossas vidas e, desse modo, permite-nos
encará-las com menos seriedade (Cohen e Taylor, 1976). Nesse sentido, o humor
pode constituir uma forma latente de acomodação e aceitação. Alternativamente, pode
considerar-se que a piada humorística constitui um ataque à ordem estabelecida e
representa um triunfo da informalidade, assumindo-se como resistência ou como desafio
através da sua capacidade de desmistificação do real. A resposta satírica ou o gesto de
gozo relativizam acusações de estupidez ou de falhanço e por vezes desafiam ou
“desarmam” as posições de poder no quadro das relações industriais. Por outro lado, os
210 A família viveu numa das ex-colónias e regressou em 1975. O pai, hoje reformado, manteve até recentemente um mini-mercado na zona de residência.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
430
usos do humor são um indicador importante para testar a atmosfera das subculturas da
fábrica ou das organizações e denunciam os esquemas de “negociação tácita” inseridos
no sistema de poder em vigor (Turner, 1971; Douglas, 1975; Linstead, 1985). O
significado do humor e a sua orientação transgressiva ou adaptativa variam, portanto,
segundo inúmeros factores e podem até alterar-se de situação para situação. Não
obstante o quadro disciplinar e a força dos mecanismos de controle em que os
trabalhadores estão inseridos, o jogo, a celebração e a festa, etc., são aspectos que
permeiam as relações laborais. O trabalho não é só trabalho. As formas parcelares de
lazer ou de jogo informal são um ingrediente fundamental das identidades do trabalho e
tanto podem ser elementos da produção do consentimento, como expressão da
criatividade corrosiva do operariado (Burawoy, 1988; Westwood, 1984).
Desde o primeiro dia em que cheguei à empresa apercebi-me da importância da
informalidade e dos rituais de jogo entre os operários. Foi, antes de mais, procurando
percebê-los e alinhando neles que me fui aproximando dos trabalhadores. Mas no início
essa é, talvez, a principal dimensão das relações na produção que vinca a fronteira entre
quem está dentro e quem está fora do grupo operário. Os intervalos de dez minutos (que
tinham lugar a meio da manhã e a meio da tarde) constituem um espaço privilegiado
para observar, numa primeira abordagem, por um lado, o desejo de evasão e de fuga e,
por outro, o significado da dimensão lúdica nas relações entre os trabalhadores.
8.3.1 - Os intervalos e as brincadeiras sexistas
Durante os curtos intervalos, que têm lugar às 10 h da manhã e às 4 h da tarde, o
ritmo do cronómetro continua a marcar os movimentos dos trabalhadores. Mal a
campainha toca é o caminhar apressado em direcção ao portão traseiro da fábrica.
Larga-se tudo o que se tem em mãos sem hesitar um instante. Os dez minutos passam
demasiado rápido e por isso têm de ser aproveitados ao segundo. É tempo de “correr”
até aos balneários (situados a uns cinco metros frente ao portão traseiro da fábrica) para
lavar as mãos, comer uma peça de fruta, ou bolachas acompanhadas de um sumo, e
fumar um cigarro nos restantes cinco minutos. Um grupo de homens despacha-se
depressa do balneário e vem comer as suas sandes ou peças de fruta para a rua,
normalmente na esquina entre a entrada da oficina e a casa dos cães, onde estão dois
animais que já conhecem os operários. Trocam-se breves palavras, em geral comentários
pontuais sobre futebol, carros ou qualquer assunto de ocasião. Alguns dão restos de
comida aos cães e trocam-se comentários a esse propósito. Uma parte dos homens só
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
431
mais tarde – uns cinco minutos depois – vem juntar-se a este grupo. São os que não
trazem comida de casa. Estes dirigem-se primeiro ao refeitório (situado um pouco mais
ao lado), onde tomam um café ou galão acompanhado de um croissant ou de uma sande
com fiambre, por exemplo. No bar do refeitório, regra geral, as bebidas e os alimentos já
se encontram em cima do balcão à espera dos habituais destinatários, pois a D. Amélia
(empregada da empresa que toma conta do bar) tem consciência da pressa dos seus
“clientes”. No refeitório existem mesas e bancos corridos de madeira, onde os
diversos grupos se distribuem ao almoço, depois de retirarem as marmitas que põem a
aquecer com a comida, durante o primeiro intervalo, numa máquina eléctrica aí
instalada para o efeito. Nos pequenos intervalos a maioria das mulheres permanece mais
no refeitório, mas à hora do almoço há ritmos distintos. As mais jovens – o grupo das de
Alvito – almoça em pouco mais de 10 minutos. Por vezes, quando ainda me preparava
para sentar já algumas arrumavam as coisas e limpavam a mesa, a fim de irem dar o
passeio do costume. O grupo das costureiras detém-se aí mais vagarosamente à
volta da mesa, mesmo depois de terminada a refeição, umas a fazer rendas ou malhas,
outras a consultar revistas como a “Maria”, a “TV Guia” ou a “Caras”, até terminar o
tempo do intervalo. Há ainda pequenos grupos de mulheres e homens que ficam na rua,
encostados à parede da fábrica, junto ao portão ou à porta dos balneários. Este ritual
dura apenas uns três ou quatro minutos durante os intervalos, e no período de almoço
entre dez a quinze, porque antes disso o pessoal permanece disperso. É principalmente
nesta zona, e apenas durante esses instantes que antecedem o toque da campainha para o
regresso ao trabalho, que podem observar-se alguns contactos e brincadeiras.
A piada machista e os gestos insinuantes de alguns dos homens dirigem-se por
vezes à curtíssima mini-saia de uma jovem operária – a Guida – que se presta bastante a
esse tipo de jogo. Trata-se, acima de tudo, de fragmentos que retratam a atmosfera de
informalidade entre os trabalhadores. A propósito do tio António ter sido levado ao
hospital dias antes, a Guida aconselhava-o a meter baixa e ficar em casa, “senão
qualquer dia vai-se abaixo das canetas”. Ele respondia, matreiro, que “a perna do meio
aguenta-se bem!…”; – “A do meio é a mais coxa!”, respondia ela. Um dos
encarregados aproxima-se do grupo, abre o capot do seu “Seat-Cordoba” para sair a
humidade; depois esfrega as mãos e diz que está frio. A Guida insinua-se e brinca com
ele: “está com frio? Venha para ao pé de mim que eu aqueço-o!”. Há um olhar
intencional de outra operária mais jovem que torce o nariz e olha de alto para a mini-
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
432
saia da colega, enquanto come um enorme bolo com creme. Amavelmente, oferece-me:
“quer uma dentada?” – “não obrigado”, respondi. As pernas e as mini-saias da Guida,
além de suscitarem alguns olhares vorazes dos homens, parecem não cair nas graças de
algumas colegas. Provavelmente condenam o uso que ela parecia fazer disso a fim de
estar nas boas graças de alguns. A ousadia destas brincadeiras ultrapassa muitas vezes
os limites do “pudor” ou da “decência” que é suposto existir, mesmo numa relação de
informalidade entre colegas. A linguagem brejeira, por exemplo, não é do uso exclusivo
dos homens. Palavrões como o “foda-se!”, ou até pior, podem ser pronunciados por
algumas operárias.
Um outro elemento digno de registo prende-se com o vestuário. Os trabalhadores
vêm em geral bem vestidos para a fábrica. Ou melhor, nota-se que as roupas que se
usam em cada dia de trabalho são objecto de um cuidado especial, principalmente por
parte das operárias. É verdade que as nove horas passadas na fábrica são ocupadas em
tarefas como escovar sapatos, trabalhar com colas, lidar com máquinas que espalham
poeiras e detritos em volta, todos eles trabalhos cansativos, onde se transpira bastante e
se está exposto a uma atmosfera poluída. Seria lógico, portanto, esperar-se que no
trabalho fabril se iria encontrar o pessoal vestido com roupas usadas e gastas. De facto,
não é isso que acontece. Pelo contrário, uma grande parte das operárias usam roupas que
mais parecem de traje domingueiro. Por baixo da bata ou do avental que usam na
produção podem ver-se algumas mini-saias com meias de vidro, saias compridas com
uma abertura lateral, camisolas de lã e camisetes, penteados bem arranjados e
maquilhagens a preceito. Também os homens se apresentam “em bom estilo”, com
roupas semelhantes às da classe média, e pude confirmar que são alvo de apreciação e
de comentários do sector feminino a esse respeito – como por exemplo, “hoje o FI
vem muito bem vestido… o que é que se passa?!…” – a ilustrar a permanente atenção
que se dedica a esta dimensão estética. Numa altura em que conversava com duas
operárias no refeitório entrou o encarregado e, perante o seu olhar de relance, uma delas
comentou: “deve estar com ciúmes…”. Há repetidas referências a ciúmes e algumas
operárias revelam bastante intimidade com os colegas, a qual é visível nos comentários
e brincadeiras entre uns e outros.
Os encarregados são, muito provavelmente, e por motivos óbvios, o alvo
privilegiado de atenção por parte das mulheres, no que se refere a estes jogos de
sensualidade. Mas este aspecto não pode ser circunscrito ao ambiente de trabalho uma
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
433
vez que, para muita gente, os percursos de casa para a fábrica e vice-versa são também
oportunidades para se estabeleceram conhecimentos, lugares onde se cruzam olhares e
podem ocorrer encontros ou iniciar-se relações amorosas. A preocupação com o corpo e
com a imagem são factores decisivos de estruturação da identidade pessoal e, deste
modo, pode dizer-se que a questão do vestuário se liga às estratégias de gestão da
imagem e do corpo, ao apuramento do sentido estético, aspectos que se inscrevem na
tendência geral da sociedade para o voyeurismo e a esteticização da vida quotidiana.
Esta preocupação está, evidentemente, presente nos dois sexos. Mas, neste ambiente a
mulher (sobretudo a jovem) é ainda “o” objecto de desejo abertamente assumido,
esperando ou “tolerando” com naturalidade atitudes “machistas” da parte de qualquer
homem. Aqui o “piropo” ou o gesto brejeiro são atitudes “naturais” enquanto a postura
desinteressada (ou “politicamente correcta”) é em geral recebida com desconfiança por
parte da mulher.
As brincadeiras nos intervalos em torno da saia da Guida podem ilustrar a anterior
formulação. Perguntam-lhe: “a saia é curta porque não havia mais pano?” – “o que é
bom é p’ra se mostrar” – “p’ra se mostrar e p’ra se comer!”, alguém acrescenta; “o tio
António diz que dá duas seguidas?!…” [risos]; “ai credo!” – comenta uma operária,
“qualquer dia ainda morre em cima da mulher… eu cá até sou capaz de dar cinco!…
[gargalhada geral]”; junto ao portão, o tio António confidenciou-me, num gesto típico
de quem “mete o veneno”, que um dos trabalhadores por vezes “dá beliscões” a uma
das jovens quando estão a trabalhar juntos, e, acrescenta: “ela não se importa…”. Já
dentro da fábrica, a caminho do posto, um dos encarregados (JM) está parado por breves
segundos em frente da Guida. Olha ostensivamente para as suas pernas enquanto diz:
“vamos então aquecer?”; ela finge não ligar ao comentário intencional, mas já a virar as
costas ainda ouço o último comentário daquele trabalhador: “aquecia, aquecia…, mas não
havia de ser aqui!…”.
Vejamos mais alguns exemplos ilustrativos do papel da informalidade e do humor
no quotidiano fabril. No último quarto de hora do período do almoço, o Pedro procedia
por vezes à lavagem do seu R5 nas traseiras da fábrica. Alguns trabalhadores assistiam
àquela tarefa e trocavam-se palavras esparsas acerca de carros e do preço da gasolina. Um
dos operários de idade mais avançada prefere deixar o carro em casa porque mora perto da
empresa, o que suscita o comentário lateral: “para que quer ele o carro se o deixa sempre
em casa?”. O colega dirige-se a ele directamente e pergunta: “um capitalista como você?!
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434
Para que anda a poupar? (…)”; – “Está a guardá-lo para os filhos que é para eles depois
lhe meterem as notas no caixão, quando morrer!…”, comenta outro. O sr. JM defende-se
com o preço da gasolina e diz que se trouxesse o carro todos os dias o ordenado não
chegava. Mas enquanto este trabalhador parece mais preocupado em poupar no desgaste
do seu automóvel e na gasolina, o Pedro parece orgulhoso do seu velho “bólide” e por
vezes discute com os amigos acerca da velocidade que atinge com ele. Os outros, com
carros mais novos, riem-se e gozam, mas ele gosta de exibir as suas qualidades de
“acelera”, principalmente quando entra na fábrica “a abrir”. Em contraste com estes sinais
de relativa escassez de meios dos trabalhadores, o Porsche de colecção do patrão
apareceu algumas vezes nas traseiras da fábrica, ao que parece por estar a ser objecto de
afinação pelo mecânico (trabalhador da empresa). Enquanto este se mostra pressuroso na
defesa do “bom negócio” que o seu patrão terá efectuado com o carro (comprado num
leilão a baixo preço e que, segundo ele, já foi objecto de uma oferta de compra por 7200
contos) os outros duvidam de tudo isso e preferem brincar com o assunto. Não vi sinais
de indignação em torno desta ostentação, mas sabe-se que a registam. Os comentários são
de desdém. Põem dúvidas acerca do real valor do automóvel e dizem que o patrão quer
vendê-lo, mas não há quem lho compre. Alguém me pergunta a mim se não quero
comprar. Observam o empresário a sair da fábrica mas a brincadeira continua: “hoje é que
ele vai arranjar comprador para o chaço!!…”. O contraste entre a ironia da generalidade
dos operários e a seriedade do mecânico parece condizer com a impopularidade deste
último no seio do grupo. Muitos acusam-no de ser “bufo” e de ouvir aqui para contar
acolá, isto é, ouvir as conversas dos trabalhadores para de seguida ir contar ao patrão211.
Além disso, num dos WCs estão escritas duas frases igualmente elucidativas: “o mecânico
é porco”; “o mecânico leva nos cornos”.
Algumas das actividades de lazer dos operários são também tema de conversa. Mas,
se é frequente a referência a episódios ocorridos no fim-de-semana ou assistir-se à
programação de passeios ou saídas nocturnas entre colegas, os trabalhadores parecem
evitar falar da empresa quando partilham os seus tempos livres. Por exemplo, o Paulo, o
João e o Pedro por vezes trocam impressões sobre a ida à pesca no fim-de-semana
anterior, comentando sobre a pequena ou nula quantidade de peixe que pescaram. Mas
revelaram-me o acordo existente para não falarem dos problemas de trabalho durante a
211 Como a sua função é, além de motorista, ligar, reparar e tratar da manutenção das máquinas da montagem e da fábrica em geral, os problemas técnicos que surgem traduzem-se muitas vezes em desentendimentos que envolvem este trabalhador. Este é um factor que, sem dúvida, contribui para a sua aparente impopularidade.
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pesca. Um destes trabalhadores contava que um dia alguém pescou um sapato!… “já
pensava que vinha de lá algum tubarão e aparece-lhe um sapato velho!…”; um episódio
que, sem dúvida, parece simbolizar o destino inelutável que os persegue.
Quer as actividades e as formas de ocupação espacial das imediações da fábrica,
quer os temas de conversa, são reveladores das relações, das tensões e do tipo de humor
que prevalece no seio de cada um dos sexos. As rotinas e movimentos de apropriação do
espaço durante o período do almoço (1 hora) parecem estruturar-se segundo lógicas
distintas em que as identidades masculina e feminina se demarcam uma da outra. A
maior parte dos homens vai almoçar a casa e por isso sai da fábrica a toda a pressa,
regressando pouco antes do reinício do trabalho. A maioria das mulheres almoça no
refeitório a refeição que traz de casa. Para além das pequenas conversas de circunstância
entre homens e mulheres, a interacção entre os dois sexos raramente se traduz em
formas directas de contacto. São principalmente os mais velhos que conversam
esporadicamente com algumas operárias. Os mais novos parecem manter-se
deliberadamente ao largo, pelo menos durante as pausas, o que significa que pretendem
marcar as distâncias – “há por aí alguma canalhada a quem não se pode dar confiança”,
dizia-me um deles, referindo-se às raparigas mais jovens –, mas tal não implica ausência
de transações entre os dois sexos. Essa demarcação de espaços revela, por um lado, a
reprodução da tradicional divisão sexual na esfera das práticas de lazer e, por outro,
parece transportar uma observação discreta, mas atenta, dos movimentos e gestos do
sexo aposto. As conversas212 dos homens orientam-se, como já indiquei, para os temas
de desporto (futebol ou corridas de automóveis), problemas de carros ou, mais
raramente, de questões laborais. Ocasionalmente, alguns lêem “O Jogo” ou “A Bola” ou
ainda um jornal da terra. Quanto às mulheres – além das costureiras que ocupam parte
do tempo de almoço a fazer tricot ou a ler literatura “cor-de-rosa” e parecem bastante
fechadas entre si –, um pequeno sector fica no refeitório a comentar situações da
família, das crianças, das actividades de fim-de-semana, etc. Junto ao portão da fábrica
várias raparigas costumam ficar a conversar, sentadas em caixas com material
empacotado. A propósito da semana de férias “forçadas” que foram marcadas para a
altura da Páscoa, as operárias pareciam divertir-se a comentar o assunto. Olhando
212 Como já foi assinalado, trata-se mais de comentários esparsos do que de conversas propriamente ditas. Nunca vi, de facto, os homens interessados em discutir seriamente um problema, seja de trabalho seja outro qualquer. Geralmente um fala, conta um episódio qualquer e na pequena audiência alguém acrescenta um comentário pontual, de acordo, de desacordo ou de conteúdo humorístico.
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para o autocarro da empresa, uma dizia: “podíamos ir todos até ao Algarve agora na
Páscoa…”. Outra responde, numa expressão de gozo, “ainda se pagassem o hotel pr’á
gente dormir…”. Alguém acrescenta, “ficávamos todos a dormir no autocarro… As
mulheres em baixo e os homens em cima…”. Nesse momento soltaram uma gargalhada
colectiva. Era evidente a segunda intenção que estava presente naquela troca de
palavras. Duas das jovens raparigas riam-se ao mesmo tempo que cochichavam ao
ouvido uma da outra.
A dimensão estética e o jogo da sensualidade, bem como as relações informais no
seu conjunto, envolvem ambos os sexos e constituem factores tendentes a atenuar a
rigidez, a disciplina e a pressão do ritmo produtivo no quotidiano de trabalho. Neste
contexto, a dimensão sensual ou erótica parece estar permanentemente presente na
interacção entre um homem e uma mulher, podendo assumir a forma de jogo e
brincadeira ou de a tensão latente que aconselha a guardar as distâncias. É um ritual que
permite aliviar a pressão nas relações de trabalho, mas também reflecte a ambiguidade
entre o interesse sexual e o receio do comprometimento (Lyman, 1987: 151).
As dificuldades que tive inicialmente em fazer com que os trabalhadores
conversassem comigo sobre questões laborais, ou acedessem a que nos encontrássemos
fora da fábrica, podem ajudar-nos a perceber quer a natureza das relações entre os dois
sexos quer o já referido desejo de fuga e evasão. No que se refere a este último aspecto,
o fatalismo com que encaram a sua condição traduz-se na recusa em discutir seriamente
os problemas de trabalho. Como perceberam que eu procurava estudá-los na fábrica,
deduziram que via na empresa pontos de interesse que eles próprios não vislumbram, o
que acentuou ainda mais o seu fechamento em relação a mim. Mesmo depois de
ultrapassada a desconfiança quanto à hipótese de um alinhamento com a lógica patronal,
a sua atitude continuou a pautar-se pelo desinteresse, em particular no que se
referia às questões da empresa ou da sindicalização. Interpreto isso como um efeito do
absoluto desejo de esquecimento daquela realidade, já que “pensar” nos problemas ou
“discutir” as contrariedades que são obrigados a enfrentar no dia-a-dia, significa para
eles um reforço do mau estar e um crescimento da revolta interior. Seriam iniciativas, do
seu ponto de vista, desnecessárias porque supõem que isso “não leva a nada”. A alguns
dos meus comentários mais críticos respondiam com silêncio e indiferença. Como quem
diz: “falas assim porque não tens de aguentar isto diariamente, estás aqui porque queres,
enquanto nós estamos por obrigação e necessidade”. É preferível falar de futebol ou da
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pesca. Não há nada a fazer. As situações de humor podem constituir pequenas
“vinganças” quando ridicularizam algum representante da hierarquia mas, em geral,
trazem à memória situações que se afastam dos problemas da fábrica ou que fazem
esquecer momentaneamente os constrangimentos que aí são exercidos. Embora mais
tarde me tenha encontrado com alguns dos meus “colegas” fora da empresa, e até
durante os fins de semana, não foi fácil chegar até esse nível de aproximação.
8.3.2 - Jogo e humor na produção
Também durante o período laboral os gestos de brincadeira, as cumplicidades
pessoais e o jogo sexista estão presentes. A troca de pequenas ofertas, um rebuçado,
uma amêndoa ou um chocolate são atitudes geralmente bem aceites pelos trabalhadores,
em especial se o referido intercâmbio tem lugar entre pessoas de sexos diferentes.
Durante a minha estadia adoptei também esse hábito, o que sem dúvida ajudou a
cimentar a informalidade com as trabalhadoras e até a criar algumas cumplicidades.
Uma das poucas operárias qualificadas213 (com um nível de instrução superior ao
das suas colegas do sector da montagem, a Célia) a quem de vez em quando oferecia
rebuçados e com quem passei a conversar durante a hora do almoço, tornou-se de certa
maneira uma cúmplice com quem brincava regularmente. Pequenos comentários ou
troca de “bocas”, fosse sobre uma colega mal humorada naquele dia, fosse sobre o
encarregado, essas pequenas afinidades tornaram-se habituais e a dada altura pressenti
até algum desconforto do nosso “chefe” em relação a isso. A propósito de certas atitudes
das colegas mais jovens dizia-me, por vezes, que “estavam com inveja” e, quanto aos
gestos de desconfiança do encarregado, dizia que “tinha ciúmes”. Um dos operários
pregadores (João) ironizava a esse propósito dizendo-me: “veja lá!… não desestabilize a
rapariga que ela tem namorado…”. As piadas entre o João e a Célia revelam a existência
de cumplicidades mais antigas. Ele comentava: “quem tratar mal esta menina tem que
me tratar mal a mim também…”. Ela, por vezes, provocava-o a propósito dos seus
habituais atrasos. Uma manhã, depois de ele chegar cerca de um quarto de hora
atrasado, dizia-me ela, junto dele: “há duas classes, os que trabalham e os que têm um
bom ordenado!!…”. Ele limitava-se a esboçar um leve sorriso e um breve olhar
sonolento, sem dizer nada. Mas é sabido que alguns colegas não viam com bons olhos o
facto de o João ganhar bastante acima da média e chegar sistematicamente atrasado.
213 Esta trabalhadora chegou a ser considerada pelos responsáveis como uma possível alternativa para vir a chefiar a secção de montagem e acabamentos.
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As situações de humor e de jogo, apesar de poderem ser interpretadas como “micro-
transgressões”, e por vezes terem como alvo o encarregado, podem também espelhar
formas de concorrência e rivalidades individuais entre os trabalhadores, ou marcar as
clivagens internas entre secções e grupos informais. Quando, por exemplo, uma jovem
torce o nariz ou faz uma careta ao passar pelo encarregado; quando imita o modo de andar
de uma colega; quando se põe a alcunha de “speed” a uma operária que é lenta e se atra-
palha a executar as suas tarefas, etc., estamos perante ironias que exprimem a
heterogeneidade do grupo. Todavia, vale a pena realçar também a orientação para a
distracção e para o esquecimento. Brincar, falar ou dizer uma piada é sempre um “corte”
momentâneo com os longos períodos de rotina. A contrariedade com que é geralmente
vivido o tempo da produção encontra múltiplas vias de escape, que passam pelas piadas,
pelo “cortar na casaca” de algum colega ou encarregado, pelos rituais de jogo e sedução ou
simplesmente por um estado de espírito que designaria por uma espécie de “sonhar
acordado”, em que se dispendem longos períodos com os pensamentos absorvidos com
problemas familiares ou outros do foro íntimo de cada um.
O meu colega de posto (tio António) desde cedo se revelou um brincalhão. Apesar
da idade avançada, as suas atitudes para com as raparigas eram em geral carregadas de
malícia. Está constantemente a dirigir-lhes comentários brejeiros e trata algumas delas por
alcunhas que ele próprio inventa. A Carriça e a Russa são duas jovens de Alvito que ele
provoca quase diariamente. Se alguma delas aparece de saia diz-lhes que “lá para Alvito já
chegou o Verão”. Insinuando relações sexuais, comentava para a Russa: “hoje foi dia de
encostar o cu à parede!”. A Lucinda – uma rapariga forte, de faces coradas e muito
sorridente e que tem preferência pelas saias curtas -- é um dos seus alvos preferidos. Não
perde oportunidade para fazer comentários aos seus “presuntos” (expressão dele), dando-
me cotoveladas sorrateiras e dirigindo-se também aos pregadores com gestos de machismo
apontando para as pernas daquela operária. Atira piadas brejeiras para o grupo das
“acabadeiras” a trabalhar em volta da mesa, à nossa frente, frases de segundo sentido a
propósito das tarefas de trabalho – “é melhor espetar o prego do que tirar o prego!!…”;
gesticula e dá piropos e encostos matreiros à “Carriça”, que por vezes trabalhava ao nosso
lado; etc. Esta é a sua natural forma de estar.
A terminologia do tio António é por vezes imperceptível, mas quase sempre irónica
e insinuante. Refere-se aos que circulam constantemente pela fábrica, em especial o
encarregado, dizendo que anda “a fazer gáiolas” e insinuando que passa o tempo a
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“inspeccionar” mas que, no fundo, não faz nada, não trabalha. Se alguém pergunta pelo FI
e ele não está à vista, logo o tio António diz, “anda a fazer gáiolas!” (veja-se atrás a nota 3
do texto ao lado). É uma ironia que não deixa de ser corrosiva e de ilustrar a imagem que
muitos partilhavam do encarregado, cuja imagem dava um ar de pretensa seriedade e
indagação, mas a qual era de duvidosa autenticidade. Quando se via o FI a olhar um sapato
com ar circunspecto e de sobrolho franzido durante longos minutos, logo surgiam
diversos sorrisos disfarçados e olhares irónicos a pôr em causa as suas aptidões de expert
convencido.
A presença da dimensão sexista e de jogo entre homens e mulheres constituiu um
factor de dificuldade na minha aproximação com as operárias mais jovens. Em geral,
não se ultrapassa o mero plano ritualista e de jogo, uma espécie de pingue-pongue, de
aproximação-afastamento, onde a manipulação dos atributos da virilidade versus
feminilidade e beleza são ingredientes importantes. Mas a gestão dessas relações exige
uma familiaridade e um estatuto que eu efectivamente não possuía. Por exemplo, em
relação às mulheres jovens de Alvito, a quem dei algumas boleias no meu carro até à
sua zona de residência, a sua renitência foi notória, principalmente porque, como
confirmei depois, tinham receio de que a vizinhança fizesse comentários. Creio que
também os comentários das colegas da fábrica, das costureiras, por exemplo – que,
como pude perceber, rivalizam com as dos acabamentos e da montagem –, deverão ter
contado nas hesitações iniciais. Além disso, a distância social que nos separava foi, sem
dúvida, um factor de perturbação das relações informais e dificultou a minha
participação nessa forma de jogo que em geral permeia as relações entre os homens e as
mulheres desta fábrica. As dificuldades que tive na aproximação a estas operárias ilustra
o papel do humor na demarcação das identidades e a forma como a diferença sexual
interfere nesse jogo, mesmo quando a interacção se estabelece a partir de outras bases.
Muitas vezes, quando tentava conversar com uma operária de modo mais sério
deparava-me com reacções irónicas, de gozo e de insinuação com as quais era difícil de
lidar. Principalmente da parte das mais jovens, a sua postura e os seus sorrisos de
adolescentes parecem reflectir a atitude de quem se vê a si mesma sobretudo como
objecto de desejo sexual por parte dos homens. O embaraço que revelam no campo
discursivo é como que compensada pela carga gestual e simbólica portadora de uma
linguagem paralela, implícita e, à sua maneira, “desarmante”. Talvez possa ver-se aí
uma dimensão simbólica do poder feminino que através de uma postura insinuante,
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meio irónica, meio sensual, se assume como “resposta” a um “poder” argumentativo que
elas parecem olhar com um misto de admiração, embaraço e desconfiança.
A própria linha de montagem chega a servir de instrumento de brincadeira. Como a
“obra” circula nos tabuleiros pelos diferentes postos da linha (com as componentes dos
respectivos pares de sapatos), as próprias palmilhas do calçado podem ser um meio
imaginativo de enviar mensagens para quem se encontra nas posições a jusante. Podem-se
fazer desenhos, mais ou menos humorísticos, e comentários sexuais ou românticos para as
raparigas. Numa ocasião, um dos meus colegas pôs-se a fazer desenhos nas palmilhas dos
sapatos. Eram dilemas para os dos postos seguintes (em que eu me incluía) tentarem
decifrar. Primeiro apareceu a gravura: “ ”, que eu não entendia. Mais tarde o seu autor
revelou que se tratava de um mexicano a ler o jornal. Depois outro grafismo do mesmo
estilo: “ ”, alguém pendurado atrás de um muro. Ainda um terceiro: “ ”,
um mexicano a fazer as necessidades. Um gesto meu, em que me baixei de cócoras para
descansar as pernas, durante uma breve pausa, também provocou sorrisos e comentários,
como o do tio António, que disse: “temos de trazer para aqui uma cadeira de praia…”. É
claro que estas brincadeiras são sempre antecedidas de um discreto relance na direcção
do encarregado e só têm lugar após assegurada a sua ausência ou depois da confirmação
de que está algures ocupado com outras coisas.
A dimensão informal e os rituais de jogo entre os trabalhadores mostram que as
identidades no trabalho, mais do que traduzirem uma lógica colectiva homogénea,
decorrem sob uma dinâmica de fragmentação/recomposição. Relações e afinidades
pessoais que não se generalizam a toda a colectividade, mas antes põem em evidência
certas linhas de clivagem e uma demarcação de campos cimentada em laços afectivos, nos
quais também se reflectem os interconhecimentos provenientes das comunidades de
vizinhança. As raparigas de Alvito, que viajam diariamente de transportes públicos,
partilham entre si essa pequena aventura quotidiana e conversam sobre os episódios
ocorridos em cada viagem. A informalidade entre os diferentes subgrupos é alimentada
num duplo sentido e articula a experiência fabril com as relações na comunidade: nuns
casos, as relações na produção prolongam-se na esfera das actividades lúdicas, como a
pesca ou os encontros no café ou na discoteca; noutros casos, os interconhecimentos na
residência e no lazer estendem-se ao espaço produtivo. O facto de as zonas de residência
serem dispersas e se espalharem entre ambientes mais urbanos e zonas rurais contribui
para que a classe estruturada nas relações de produção não tenha uma correspondência no
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campo das identidades e, de certa maneira, neutralize a emergência de acções organizadas
de base classista.
8.4 - Lógicas e trajectórias numa classe fragmentada
Neste último ponto irei apresentar um conjunto de casos destinados a pôr em
evidência a pluralidade de lógicas, de processos e de condições sociais que alimentam as
relações de trabalho. Através deles é possível viajar um pouco por ambientes exteriores
à fábrica, a fim de situar com mais algum detalhe as práticas e as condições de vida dos
trabalhadores no que diz respeito ao espaço doméstico e às actividades que desenvolvem
fora do emprego. Seleccionei algumas situações que retratam sociabilidades e
trajectórias pessoais e familiares desta colectividade operária – cujos processos de
construção e desconstrução identitária se baseiam no cruzamento entre as experiências
vividas na produção e fora dela – bem ilustrativos das múltiplas contaminações
socioculturais e das subjectividades ambivalentes que a atravessam214.
8.4.1 - Seis casos exemplares
Caso 1 - O stress do Pedro, entre a irreverência e a necessidade. Este operário pode ilustrar o exemplo de um trabalhador que poderia, à primeira vista, situar-se num contexto de forte militância sindical. A sua atitude contestatária e de permanente rebeldia parece debater-se com as barreiras diversas que se interpõem à prática da actividade sindical. Embora não sendo assumidamente um sindicalista, rebela-se contra a recusa do patrão em proceder aos descontos para o sindicato desde a última greve. Principalmente desde essa altura, afirma, “se alguém começa a falar de sindicato fazem logo tudo para correr com ele dali para fora”. Diz-se de esquerda e cheguei a vê-lo defender a necessidade de um governo comunista. É um dos que mais admira o único encarregado que se opõe abertamente à lógica patronal: “ele é o único que fala com os operários e aceita as suas opiniões (…), e se for preciso ir contra os outros encarregados ele vai! O que tem a dizer diz na cara!”. Todavia, não é apenas o sistema “autocrático” em vigor na empresa que impede o Pedro de ser um activista sindical. O seu
214 Dado o imenso volume de informação recolhida e também o grau de envolvimento nas vidas pessoais e familiares de alguns dos meus “colegas temporários”, a escolha e selecção de certos casos em detrimento de outros é sempre um processo algo difícil. Evidentemente que cada trabalhador vive em condições particulares e insere-se numa trajectória familiar específica. Poderia também dar conta do caso do tio António, com a sua pequena adega, quintal cultivado, as suas galinhas e coelhos. Poderia falar mais em detalhe da Rosa, a “solteirona” quase analfabeta e também com evidentes marcas de campesinato. Poderia dar conta da trajectória da D. Aida, uma senhora com um percurso de classe média que viveu anos em África e tem os seus filhos todos licenciados. Os casos do Cunha e do Manuel, que também estão presentes (sob outros nomes), seriam também ilustrativos de operários com estilos de vida mais próximos da classe média. Os casos seleccionados valem sobretudo pela exemplaridade das situações, mas creio que mostram bem a heterogeneidade do colectivo operário da empresa e de um modo geral dos trabalhadores do sector.
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posicionamento político parece pautar-se mais por influências e lealdades pessoais do que por uma efectiva consciência de classe. Debate-se com profundas carências económicas e problemas de ordem familiar daí derivados e os precários recursos educacionais que detém também não ajudam. É apenas um caso de um proletário, filho de proletários inserido do contexto sócio-económico da região. Procura gerir a contradição entre a necessidade de trabalhar e o impulso para contestar, a vontade de acumular os recursos mínimos para dar uma educação às filhas e a revolta contra um salário miserável. Tem um espírito fraterno mas está mergulhado num mundo competitivo e individualista, mesmo no âmbito mais estrito dos trabalhadores e suas famílias, onde o esforço de acumulação só pode dar algum resultado com o sacrifício de todos os seus membros. Por vezes dasanima. Porque sente que não compensa, apesar de se “esfarrapar” com trabalho. É um dos que procura levar trabalho à tarefa da fábrica para casa e espera ser convidado a trabalhar aos sábados, quando a empresa necessita. Por isso, fica irritado e desabafa junto dos mais chegados quando o convidam apenas à última da hora: “para a próxima, quando precisarem, digo logo que não contem comigo!…”. É certamente um desabafo que provavelmente não irá cumprir porque entretanto o orçamento mensal da família ameaça não chegar e o fim do mês ainda vem longe. Recebe, líquidos, cerca de sessenta contos, como a maioria.
Comprou um carro usado, um velho “R5” por cerca de 300 contos, o seguro é caro, a mulher está desempregada e tem duas filhas a estudar, uma delas com problemas de saúde. As despesas são muitas. Com pouco mais de 40 anos, tem a quarta classe e o hábito de leitura é muito escasso. Creio que se limita ao jornal “O Jogo”, cuja linha editorial dá mais destaque aos feitos gloriosos do seu clube do coração, o F. C. do Porto. Chegou a chumbar no exame de condução pelas dificuldades de interpretação das perguntas.
Em geral é uma pessoa bastante alegre, um brincalhão, mas por vezes aparecia na fábrica com um ar muito abatido, sem dúvida devido às regulares discussões com a mulher. A sua esposa teima em recusar-se a trabalhar numa fábrica e isso não é do seu agrado, dadas as dificuldades de emprego e a falta de recursos com que se debatem. Esta é, provavelmente, a principal razão das suas angústias. Um problema do qual não gosta de falar. A sua persistente renitência em se encontrar comigo fora da fábrica denotou o seu provável receio de que eu pretendesse desvendar alguns desses aspectos da sua vida familiar. Quando a situação familiar é boa torna-se mais fácil convidar-se um novo amigo para ir a casa, mas quando o que se passa é o contrário, compreende-se o desejo de resguardar a privacidade.
Na fábrica procura suportar o melhor que pode as exigências produtivas e disciplinares. De certa maneira, já se habituou porque já trabalha no sector há mais de vinte anos e trabalhar nesta empresa, como ele reconhece, até tem as suas compensações. É um dos que costuma sair duas vezes por dia, além dos habituais intervalos, para ir à casa de banho fumar um cigarro. Tem uma boa relação com os colegas e com o seu chefe directo, de quem é amigo; pode fazer umas horas “extra” de vez em quando e até levar algum trabalho para uma cunhada sua fazer em casa; tem verdadeiros amigos na empresa, com quem periodicamente se encontra para irem à pesca; dá-se bem com as raparigas mais jovens e, além das habituais brincadeiras, chega até a dirigir-lhes gestos de sedução sexual.
Quando lhe perguntei o que é que faz nos tempos livres dos fins de semana respondeu-me que não faz “nada!…”. Não deixa de ser curiosa esta resposta. O ar
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de satisfação que espelhava no rosto perante a ideia de “não fazer nada” denunciava a convicção de que o “fazer” significa trabalhar. Após esclarecimento do sentido da pergunta respondeu que fica em casa, vê televisão, por vezes dorme um bocado à tarde, lê um jornal desportivo, vai esporadicamente ver um jogo de futebol do Arrifanense ou da Sanjoanense, de vez em quando vai com a mulher ao hipermercado, “no fim do mês, que é quando há dinheiro…”. Aos fins-de-semana da parte da manhã, em geral, entretém-se a lavar o carro ou a arranjá-lo, depois do almoço vai até ao café com as filhas ou visitar familiares que vivem nas proximidades. Quando é preciso vai uma vez por outra ao Porto ou a Coimbra, neste caso mais por causa das consultas da filha. Além disso, vai por vezes à pesca com os amigos – incluindo dois dos seus colegas de trabalho – até à zona de S. Jacinto, onde passam o dia.
Caso 2 - Iniciativa e insucesso: um operário polivalente (Afonso). Este é um operário com alguma qualificação integrado numa das outras secções da fábrica (que não a da montagem). Como outros colegas seus, tenta acrescentar mais algum rendimento ao seu ordenado, desenvolvendo outras actividades fora da empresa. Negoceia com carros, usados e acidentados. Em colaboração com um amigo, compram-nos e reparam-nos para depois os venderem, mas o negócio nem sempre corre bem. Na sequência dessa actividade chegou a possuir um “Toyota” de alta cilindrada que trazia para a fábrica. Era “uma autêntica bomba”, segundo me disse, mas os problemas financeiros obrigaram-no a vendê-lo. Além disso, dedica-se também à agro-pecuária, com a criação de porcos e galinhas no quintal anexo à habitação onde vive, propriedade do pai.
Foi emigrante no Brasil onde também trabalhou numa fábrica de calçado. Após o seu regresso, há cerca de 10 anos, instalou uma pequena “fabriqueta” de calçado em sociedade com o pai. Um negócio que acabou por ser mal sucedido e que resultou, tempos depois, no seu encerramento. Voltou então para a empresa, onde antes já tinha trabalhado. As finanças detectaram-lhe uma ilegalidade e exigiram-lhe o pagamento de impostos em atraso e o Afonso ficou a braços com uma dívida de monta. A empresa concedeu-lhe um empréstimo com que pagou essa dívida e que tem vindo a abater em prestações mensais descontadas no ordenado. Esses problemas degradaram as relações familiares, o que foi agravado com a morte da mãe. Os conflitos com o pai chegaram a assumir proporções graves.
Fiz uma breve visita a sua casa. Esta, integra-se num conjunto de habitações com vários anexos, alguns deles alugados e outros ocupados por familiares seus. Visitámos a pocilga dos porcos, uma parcela de terreno cultivada (que é dum cunhado, emigrante em França) e o barracão onde se encontram dois carros para serem reparados. Quando passávamos pelas traseiras das habitações térreas detectei movimento na janela dum pequeno cubículo e fui espreitar. Aí funcionava uma pequena “fabriqueta” de calçado com três ou quatro trabalhadores que estavam ainda em plena actividade por volta das sete horas da tarde. Apareceu um jovem que o meu amigo cumprimentou e apresentou-me, acrescentando: “não te preocupes que não é fiscal das finanças!…”. O rapaz disse-me que estavam a fazer cortes de gáspeas, uma encomenda para uma empresa de calçado que lhe paga à peça.
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O Afonso sempre manifestou algum interesse e curiosidade pelo meu trabalho. Lamentava-se da vida rotineira do trabalho na fábrica e costumava comentar: “isto é uma miséria; os que não têm mais nada, coitados, têm que aceitar tudo e contentar-se com isto; temos que procurar ganhar alguma coisita por fora que isto aqui não chega para nada!…”. Referia-se com visível orgulho às filhas pequenas que andam na escola. Quando é preciso, é ele que vai à escola falar com a professora.
Na empresa, este trabalhador parecia um tanto isolado em relação aos colegas. Convivia pouco nos intervalos e por vezes mantinha-se à distância. Soube por outras fontes que já teve diversos problemas com alguns colegas e com o seu chefe. Dizem que é boa pessoa e em geral muito passivo, mas que em certas alturas por qualquer motivo pode “passar-se” e tornar-se agressivo. Houve um caso de agressão que o envolveu a ele e a um colega devido a um favor que o outro se tinha comprometido a fazer (levá-lo de carro a qualquer sítio) e que não pôde cumprir. A seguir à discussão veio a briga, que só não atingiu proporções mais graves porque os colegas o evitaram.
Caso 3 - Uma família pobre. A Carriça e a Joana são irmãs e trabalham ambas na empresa. Moram em Alvito e frequentaram a escola até ao sexto ano. Além delas, mais quatro colegas acompanham-nas diariamente no percurso de autocarro desde a aldeia, que fica a cerca de trinta quilómetros da fábrica. Com as esperas e atrasos dos transportes, chegam a demorar perto de duas horas de caminho. O passe mensal custa cerca de oito mil escudos (perto de 15% do ordenado) e queixam-se do patrão por este não lhes dar um subsídio de transporte. Só quando ficam a fazer horas extraordinárias até tarde é que a carrinha da fábrica as vai levar a casa. Todas com idades inferiores a vinte anos, duas delas já eram casadas, cada uma com uma criança. Tal como a Carriça e a Joana, curiosamente também duas das suas colegas têm em comum com elas, além do local de residência e da condição de operárias desqualificadas, o facto de serem órfãs de pai desde crianças. Todas elas entraram para a fábrica por volta dos quinze anos. Uma das colegas, a Russa, antes de casar aparecia por vezes na fábrica com marcas de violência. As mãos todas negras da pancada que lhe dava o irmão mais velho.
As duas irmãs dão-se bem uma com a outra e parecem felizes na sua vida agitada. Uma vida de trabalho condimentada com os momentos de convívio e de namoro, principalmente aos fins-de-semana, que é quando por vezes vão à discoteca local, “O Mirante”, ou a uma outra que fica perto, a “Hollywood”. Na família são nove irmãos ao todo (cinco rapazes e quatro raparigas); quatro já eram casados nesta altura; três deles são emigrantes em França e na Alemanha. Dos solteiros, apenas um dos rapazes e uma outra irmã estão na localidade. O primeiro trabalha na construção civil e a rapariga é igualmente operária fabril noutra empresa de calçado. O pai morreu com 33 anos. Era alcoólico e sofria de tuberculose. Foi encontrado morto à beira de um caminho. A Joana contou-me que o pai bebia muito, era doente e não trabalhava. Segundo o que diz a mãe, “ganhou uma infecção e vomitava sangue (…), os pulmões desfizeram-se e deitou-os pela boca fora”. Sublinha novamente, com um ar mais indignado do que triste: “ele era muito bêbado! Batia na minha mãe e tudo!!”.
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Quando na fábrica mencionei que gostava de as ir visitar a reacção foi inicialmente de estranheza e admiração. A Carriça, que é a mais jovem das irmãs e também aquela onde são mais visíveis os modos rudes, quando entrou para a fábrica, segundo contam os colegas, mal percebiam o que ela dizia. Ainda hoje a brusquidão das suas reacções, à mistura com o uso de termos que por vezes não entendo, deixam-me confuso e até bloqueado. O ar de “rufia” e o sorriso matreiro que imprime nos seus comentários são desarmantes. Quando a abordei para lhes dar boleia até Alvito começou por reagir com ar de espanto, mas a rir: “pr´a quê?!… O que é que você vai fazer pr’a Alvito?…”; – “conversar com a sua família, com a sua mãe…”, respondi; – “você não tem nada que aprender lá!!… pr’a que é que há-de ir a Alvito?… Ainda corriam de lá consigo à pedrada!…”. Mas ria-se muito e mostrava-se divertida, aparentemente satisfeita com a situação. Cerca de uma semana depois, a reacção foi-se tornando mais receptiva, principalmente com a ajuda da irmã, mais calma e mais madura. Esta justificava-se dizendo: “moramos numa casa muito velha…”. Acrescenta depois que o problema é que a vizinhança começa logo a cochichar e, além disso, a mãe chega tarde a casa, vem dos campos onde anda “a fazer umas terras”.
Também elas dispendem algumas horas a trabalhar na terra durante o fim-de-semana, a ajudar a mãe. O terreno é-lhe cedido para cultivo por um dos patrões para quem trabalha a “ti Rosa do Lexia”, como é conhecida na aldeia a mãe das minhas amigas. Nos seus fins de semana e nas horas livres as irmãs, além de ajudarem a mãe sempre que é preciso nas lides agrícolas, costumam ir lavar a roupa da casa ao lavadouro público onde, segundo dizem, as mulheres fazem comentários “do pior” e se corta na vida desta e daquela… Quando é preciso fazem outras tarefas como, por exemplo, apanhar lenha nas redondezas, já que a casa onde vivem ainda não dispõe de luz eléctrica nem água da companhia. É realmente uma casota antiga, muito pobre e degradada, como pude constatar. Quando as visitei em Alvito, quer a ti Rosa quer as filhas receberam-me com grande amabilidade, apesar de ter aparecido de imprevisto, num sábado. A tez escura e o rosto enrugado da senhora fazem-na bastante mais velha do que os seus cinquenta e poucos anos. Criar nove filhos sozinha e naquelas condições tem de deixar marcas profundas. Mostrou-se, no entanto, satisfeita e compensada por sentir que os filhos já estavam todos crescidos e cada um a tomar o seu rumo. Os anos mais difíceis já passaram… era “a miséria de quem nasce pobre”. No modo de vida desta família, são claramente visíveis as marcas do Portugal profundo, rural e pré-moderno, mas em estreita dependência económica da indústria local.
Caso 4 - Trabalho e música no domicílio. A Isabel e o Toni são cunhados (ela é irmã da mulher dele). Falar dos dois permite-me não só referir novas dimensões das relações de trabalho mas também a importância das ligações familiares dentro e fora da empresa, na produção e no lazer. Ela coordena o trabalho domiciliário que a empresa contrata. Ele é operário na linha de montagem e nas horas livres é músico e animador de um grupo de folclore na zona.
A Isabel era uma das trabalhadoras que muitas vezes almoçava na minha mesa com duas outras operárias e também o cunhado. Não diariamente, porque ela não almoça todos os dias no refeitório, devido a ter de dar a volta pelas casas das trabalhadoras ao domicílio. Enquanto está na empresa trabalha na secção do corte e costura, mas sobretudo trata de preparar a “obra” destinada aos chamados
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“auxílios”, como é designado o trabalho domiciliário. A Isabel distribui a “obra” pelas 6 ou 7 mulheres que trabalham nessas condições, passando em casa de cada uma delas e, dias depois, faz o mesmo percurso para recolher as respectivas peças depois de cozidas, faceadas, etc. Utiliza para isso uma carrinha da empresa. É um trabalho pago à peça e é também ela que faz os pagamentos. Nessas funções, está directamente dependente do encarregado geral e recebe um salário superior ao das outras operárias devido a essa actividade de coordenação. Em princípio, é o encarregado geral que estabelece o preço final a pagar às trabalhadoras que se encontram naquele regime, o qual pode variar entre os 120$00 e os 130$00 por cada par de componentes.
Periodicamente, as mulheres dos “auxílios” reclamam devido à demora e às dificuldades de execução de certas tarefas. Em geral, só quando conseguem efectuar o trabalho com elevada qualidade e rapidez são solicitadas a trabalhar para outras empresas, o que lhes permite então regatear o preço do seu trabalho. É claro que estas funções conferem à Isabel um estatuto diferente dentro da empresa, que no fundo se assemelha à posição de um encarregado, já que é a responsável por esse “sector” da produção. Mas como de facto não tem subordinados dentro da fábrica continua a manter um bom relacionamento com as colegas e partilha com os outros trabalhadores muitas das atitudes de descontentamento que tenho vindo a referir.
O Toni trabalha na primeira operação da linha de montagem, na preparação das formas e respectivas peças de calçado que coloca em cima dos carros, encarregando-se também de fixar a palmilha à forma, com o auxílio de uma máquina de pregar. É um trabalho de particular responsabilidade, pois, tem de preparar e adaptar as formas, segundo o número e o modelo, aos conjuntos de componentes que chegam das secções anteriores (as gáspeas, da costura, e as palmilhas e solas, dos pré-fabricados). Qualquer engano ou falha repercute-se em toda a montagem. Por isso se vê o Toni sempre em movimento, ora a colocar os materiais nos carros, ora a trabalhar na máquina de pregar, ora a ir buscar mais cestos com as formas adequadas ao modelo seguinte. Quando falta uma sola num carro, ou os números estão trocados (o que é raro acontecer), é ao Toni que os trabalhadores se dirigem. Quando é preciso meter mais obra na linha, é a ele que o encarregado se dirige.
Trata-se, pois, de uma pessoa simpática e bem disposta. É fácil vê-lo a pronunciar desabafos de revolta quando alguma coisa não corre bem, seja com o seu serviço, seja em relação a qualquer problema que afecte os trabalhadores, como foi o caso da marcação das férias. Mas, ao mesmo tempo, é a imagem do trabalhador competente e preocupado com o seu trabalho. Já teve outras profissões, nomeadamente na construção civil, o que lhe permitiu conhecer outras zonas do país. Tirou a carta de condução enquanto eu estive na empresa e por isso deixou de trazer a sua velha motorizada215. Agora já vem para a fábrica no Ford Escort (de 1972) que adquiriu por cento e poucos contos, mas, segundo diz, está em bom estado.
Juntamente com a mulher e os dois filhos, é membro do Rancho Folclórico do Souto, onde tocam vários instrumentos, cantam e dançam. Esta vocação de músico
215 Contou-me ainda que em sua casa tinha uma moto autêntica mas não a podia utilizar pois era propriedade do seu falecido irmão (23 anos) que seis meses antes morrera num acidente quando ia (com a namorada) na moto a ultrapassar um tractor que se atravessou no momento fatal.
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popular já vem de família. O pai foi também, como ele, muito activo no associativismo musical, desde a juventude. Fui visitar o Toni em sua casa, na zona de S. Martinho da Gândara, próximo de Ovar, acompanhado do meu amigo Alfredo.
Era dia primeiro de Maio. Um “dia do trabalhador” como qualquer outro feriado ou fim-de-semana, passado com a família. O quotidiano operário é a luta de todos os dias e pode traduzir-se nas queixas contra o encarregado, mas neste caso também no dedilhar do cavaquinho. Os grandes símbolos do movimento operário e da luta de classes passam ao lado da consciência e das práticas destes trabalhadores, como já vimos. A família esperava-nos. Estavam todos: além do casal, também o pai (63 anos, operário do calçado) e a mãe do Toni, uma irmã com o marido e a filha pequena, os dois filhos do casal (um rapaz de 11 anos e uma rapariga de 16, também operária do calçado) e o “conversado” (expressão do pai) da filha. Este último mal o vimos, pois, enquanto permanecemos com os outros junto à entrada, os namorados estavam aninhados no sofá da salinha contígua, com toda a benevolência dos pais. Fomos convidados a entrar e sentámo-nos à volta da mesa da minúscula cozinha da pequena casa térrea que o Toni e a mulher têm de renda por dez contos. É uma casa de campo, envolvida por vários terrenos cultivados, com diversos arrumos improvisados nas traseiras. O aspecto exterior da habitação deixa adivinhar a condição humilde dos seus habitantes.
Toda a família toca cavaquinho. Já o avô tocava guitarra e participava nas “Festas dos Reis” e nas “Janeiras”. Como antes assinalei, o pai do Toni foi na sua juventude grande cantador e animador. Com grupos de jovens deslocava-se pelas casas dos lavradores nas festas das colheitas, recebendo em troca diversos tipos de oferendas. Esta é, pois, uma prática antiga que foi sendo transferida de geração em geração e à qual o Toni procura dar continuidade, ensinando os filhos. Estes parecem, aliás, aderir com agrado a essa lógica216. Tocaram para nós três ou quatro músicas – o Toni no acordeão, a mulher e a filha no cavaquinho e o pai na guitarra – bem ritmadas, a enquadrar a boa disposição e harmonia que toda a família transmite. Registámos com agrado a afectividade, a brincadeira e o bom ambiente entre todos os membros deste pequeno “clã” de operários músicos. Ofereceram-nos o lanche, que foi amavelmente recusado.
Também na visita que efectuei a casa da Isabel encontrei o Toni. Mal cheguei, logo deparei com ele, com um boné americano na cabeça, entretido a lavar o seu carro nas traseiras junto à casa que a cunhada e o marido estão a acabar. Desmultiplicando-se em actividades, também ele ajudou na construção da nova casa dos cunhados, uma casa de piso térreo que vem sendo erguida aos poucos, desde há cerca de um ano, com a contribuição de vários membros da família. Finalmente, está quase pronta e nota-se o contentamento da Isabel. Desculpando-se com a sujidade e falando das limpezas e do pó, manda-nos entrar (a mim e à minha companheira nessa visita). Dentro da casa, um homem fazia alguns arranjos; era o seu marido, que está reformado por invalidez (devido a um atropelamento de que foi vítima). Nas traseiras existem outras casas velhas onde o
216 O Toni fala sempre com grande entusiasmo da sua participação em numerosos encontros musicais, bem como no seu gosto pela música e pelos instrumentos, que ele próprio arranja. Referiu que num dos cavaquinhos, recentemente arranjado, foram colocados fios de aço previamente retirados de um cabo de travões de bicicleta, que agora “viraram” cordas musicais de cavaquinho.
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casal e os filhos (dois rapazes, de 14 e 21 anos, e uma filha ainda criança) continuam a habitar até mobilarem e acabarem a nova moradia.
A Isabel e o marido habitam aí há mais de vinte anos, desde que casaram. Ao longo desse período têm vindo a explorar uma pequena parcela de terra (com cerca de 2ha) que entretanto adquiriram aos antigos proprietários. Estes residiam também numa habitação contígua, no mesmo terreno, onde envelheceram e morreram. Sem herdeiros e sem família reconheceram a protecção que no final da vida receberam da Isabel e do seu marido, legando-lhes em testamento as casas e o resto da propriedade. Embora fragilizado, devido aos traumatismos mal sarados após o acidente, é o marido que se ocupa da exploração da terra, onde, além de plantações de batata, couves, cebola, etc., há também algumas árvores de fruto (dois limoeiros, duas figueiras e algumas laranjeiras). A semana de férias dos trabalhadores, por altura da Páscoa, foi no essencial passada a tratar dos arranjos da casa, mas, se não fossem esses afazeres seria normal a Isabel continuar a circular nos contactos com as operárias domiciliárias que ela coordena, mesmo com a empresa encerrada.
Caso 5 - Paixões e romance.217 Sob este título pretendo retratar uma dimensão geralmente pouco referida no contexto fabril, mas que penso constituir um exemplo de como os afectos e a dimensão amorosa são um ingrediente fundamental das relações de trabalho. A fábrica não é só constrangimento e produção. Embora essas componentes ocupem aí um lugar central, elas não têm necessariamente de anular a emergência de outro tipo de fenómenos e experiências, por vezes vividas como formas de libertação e realização pessoal.
A força libertadora da paixão, o romance em ruptura com as convenções sociais não é apenas uma ideia romântica da literatura ou do cinema. É, como se sabe, uma realidade social presente nas organizações e instituições e que, por isso, pode ilustrar uma outra face dos mecanismos socioculturais – sejam eles de resistência e adaptação ou apenas factores de perturbação pontual – presentes numa empresa industrial. Como em muitas outras empresas, existem aqui alguns casais que se conheceram na fábrica. Houve casos pontuais de namoro ou de pequenos flirts e fala-se de situações de envolvimento sexual entre encarregados e operárias, que tiveram lugar no passado. Este é um tema particularmente sensível e por isso não foi fácil obter informações detalhadas por parte dos intervenientes directos. Quer por terem sido situações marcantes e, nalguns casos, até traumatizantes, quer porque se trata de problemas do foro íntimo, facilmente susceptíveis de alimentar a habitual “coscuvilhice”.
Uma história de paixão e romance marcou de modo mais notório esta colectividade operária. Pelas razões apontadas, e ainda porque envolveu uma das operárias mais populares e respeitadas da empresa, este assunto tornou-se uma espécie de tabu colectivo. Por isso mesmo, não faria sentido ignorar um acontecimento com tão evidente impacto no seio do grupo operário. O que se sabe é parcial e algumas destas informações não serão exactas. Mas o próprio processo de deturpação, e o facto de alguns comentários terem apenas a validade de um
217 Embora os acontecimentos aqui referidos sejam verídicos, há aspectos que são propositadamente ficcionados, por razões de defesa do anonimato dos seus intervenientes.
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boato, não anulam a relevância sociológica destes aspectos enquanto ingredientes que de um modo ou de outro interferem na construção identitária activada no espaço da fábrica.
Os principais intervenientes já deixaram a empresa. Um homem e uma mulher encontraram-se na fábrica. A Teresa e o Faustino. Ela, uma operária qualificada, com um nível de instrução correspondente ao actual 9º ano, 26 anos, solteira. Cheguei a encontrar-me com ela fora da empresa e confirmou-se o que todos diziam: é realmente muito bonita, inteligente, discreta. Vista pelos colegas como um coração frágil e romântico que “se deixou levar”. Chegou a ser uma espécie de líder informal dentro da empresa e todos lhe fazem referências elogiosas pelas suas capacidades de trabalho e pelo seu “bom coração”. Ele ocupava na altura uma função de responsável pelo “controle de qualidade”. Era casado. Envolveram-se um com o outro, alimentando ela esperanças de que o seu objecto de paixão consumasse o divórcio, o que foi sendo protelado ao longo de cerca de três anos.
Houve pelo meio peripécias dolorosas que envolveram outros trabalhadores ainda hoje na empresa. Um desses casos passou por uma outra trabalhadora (a terceira figura a intervir nesta história, digamos) que chegou também a sair com o referido “D. Juan” – ao que se supõe com intuitos sexuais e talvez de inveja pessoal –, para sofrimento da Teresa, que aparecia na fábrica muito triste e se desfazia em choro durante o trabalho. Ao que consta, um outro operário (Paulo) vinha desde há muito alimentando uma paixão secreta pela Teresa. Perante o desenrolar da referida relação entre ela e o Faustino, que passou a ser conhecida de todos, este quarta “personagem” do enredo (um jovem trabalhador que continua na empresa) fechou-se ainda mais na sua conhecida timidez. Tornou-se uma vítima silenciosa daquele processo e sofreu sozinho o seu desgosto de amor. Uma tristeza que se agravou perante um rival que era casado e com funções de chefia, situação que rapidamente deu azo a todo o tipo de comentários e intrigas. Desde essa altura, o Paulo nunca mais dirigiu a palavra a Teresa.
Um “enredo” tão conturbado merecia um final dramático, o que efectivamente veio a acontecer. Como as famílias (da Teresa e do Faustino) deram conta do que se passava, e perante a iminência de um divórcio, acabaram mesmo por intervir directamente, tendo o pai dele numa ocasião, e o dela noutra, aparecido na empresa a fim de discutirem o assunto. Foram os momentos culminantes do escândalo. Apesar de se ter confirmado o divórcio, tempos depois o romance terminou e o referido Faustino acabou por sair da empresa. Mais recentemente foi a vez da Teresa seguir o seu caminho, mas foi preciso muito tempo para se recompor. Encontrou novo companheiro e vive maritalmente com ele. Está mais calma, diz que “é feliz” e continua a trabalhar no calçado.
A forma respeitosa como este caso me foi sendo referido, em primeiro lugar pelo
tio António, realçava o grande respeito e solidariedade da maioria dos trabalhadores por
aquela operária. Segundo uma das suas amigas, ela anda agora muito melhor, mais
calma e recuperou a boa disposição. Mas a aura de líder e a alegria que incutia nas
relações de trabalho, além da sua beleza, alimentaram também muitas invejas. Além
disso, os contornos “escandalosos” do romance deram lugar a muitos comentários pouco
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lisonjeiros, principalmente da parte do sector feminino. Esta ilação baseia-se quer nos
seus próprios comentários, nomeadamente quando se referia à “dor de cotovelo” ou à
“inveja” que algumas colegas sentiam, quer no facto de se tratar de uma operária cujos
traços de urbanidade, grau de consciência política e estilo de vida a afastam bastante do
sector mais ruralizado das suas colegas. Talvez isso tenha contado na sua saída da
empresa. Referiu-me que, se há homens que abusam na relação com as mulheres “é
porque elas deixam, consentem e se calhar até gostam. Quem quiser e souber dar-se ao
respeito pode evitar qualquer abuso”. Nesta opinião, apesar de ser genérica, esconde-se
sem dúvida uma crítica àquelas que, por vezes, têm actos de exibicionismo ou de
“desafio” para depois simularem o papel de vítimas.
Por outro lado, é significativo o facto de, não obstante as constantes brincadeiras
que têm lugar no dia a dia entre homens e mulheres, onde as referências ao sexo e a
carga de sensualidade são evidentes e repetidas, os comentários a esta história serem
escassos. Suspeito que se trata de uma cumplicidade colectiva em que, embora todos
tenham bem presente o que se passou, procuram ajudar ao esquecimento e evitar gestos
que possam ter uma segunda leitura, capazes de reavivar feridas ainda mal saradas.
Nomeadamente, tendo em conta que alguns dos intervenientes na “história” continuam a
trabalhar na empresa (como é o caso do Paulo).
As insinuações das mais jovens para com este trabalhador, a forma atrevida com
que se metem com ele, seja para lhe pedirem boleia, seja quando referem que viram o
seu carro no sítio tal…, induzem uma espécie de solidariedade feminina pelo Paulo,
talvez uma compensação por ter vivido um intenso amor não correspondido. Ele é
realmente tímido, “bem parecido e bom rapaz” (como elas dizem), filho de “boas
famílias”, e por isso é fácil acreditarmos que também desperte paixões secretas. Enfim,
neste jogo de expectativas dissonantes, uma outra operária, da costura, confessa às
colegas mais próximas uma paixão pelo Paulo (segundo dizem as “más línguas”).
Ingenuamente, parece ter acreditado na história e anseia pelo momento em que ele lhe
revelará o seu amor. Só que tudo isso não passa de mais um jogo urdido pelos amigos e
colegas de ambos, a fim de alimentarem os sonhos da rapariga e testarem a paciência
dele. É apenas uma brincadeira maldosa que pretende ligar o Paulo a uma trabalhadora
considerada pouco dotada em termos de beleza e de inteligência. Mas as brincadeiras
em torno disso já são escassas, porque as reacções dele aconselham a ter cuidado. As
piadas sobre namoradas arriscam-se apenas a acicatar o seu lado mal humorado.
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Caso 6 - A delegada e o sindicalismo ausente. Uma promessa à Nª. Srª. de Fátima poderá estar na base da “militância” da Maria – casada, 29 anos, duas crianças –, a actual delegada sindical na empresa. Entrou em ruptura aberta com o patrão em Agosto do ano de 1995, quando os trabalhadores foram todos chamados a abdicar de parte das suas férias. Ela não podia. Tinha compromissos familiares e também com a sua própria fé. Segundo diz, tomaram-na de ponta e foi “perseguida” a partir daí. Deixaram mesmo de contar com ela para fazer horas extraordinárias e facilmente encontraram pretexto para lhe retirarem o prémio de assiduidade. Apesar das razões válidas que apresentou – um compromisso que tinha com familiares emigrantes em França que vinham cá de propósito para irem a Fátima pagar uma promessa –, o patrão reagiu mal. “Não queres vir, não vens!”, foi a sua resposta, num tom definitivo.
Mas, ao que parece, a “vingança” não ficou por aí. Pouco tempo depois, ficou sem o prémio e quanto mais se ia assumindo como “contestatária” mais a atitude discriminatória se fazia sentir. Mas ela aguentou firme. Diz que também não está para se chatear. Pelo menos assim, confiou-me, não se sente na obrigação de ter de fazer horas. Eles já nem lhe pedem. Reconhece que não se esforça muito no trabalho porque “eles não merecem!… a gente não pode falar nada do sindicato porque o patrão arranja logo maneira de nos prejudicar… fazem os descontos que querem se a gente chega atrasados nem que sejam dois minutos. Mas eu cá já me queixei ao sindicato e tiveram que me dar tudo o que eu tinha direito”. Tendo recebido apoio e incentivo do sindicato, foi assumindo com maior frontalidade a sua atitude rebelde. Queixa-se da falta de organização dos trabalhadores, o que ela lastima, mas crê que não há nada a fazer.
Numa altura em que o calçado foi notícia na televisão devido a um conflito surgido numa empresa a propósito da introdução dos cartões magnéticos de controle das idas à casa de banho, o caso foi comentado pelos operários. Mas a troca de palavras foi, como de costume, escassa, dispersa e contraditória. Além da pressa constante, os trabalhadores mostram-se pouco inclinados e discutir seriamente este tipo de problemas. Ouviram-se vozes de revolta contra os patrões da referida empresa: “não há direito carago! o pessoal trabalha, trabalha e nem pode fazer as necessidades quando é preciso!?…”; logo outro operário punha a tónica nos “abusos”, lembrando que numa fábrica onde trabalhou algumas “até chegaram a dormir na casa de banho”; outro falou que na “Ecolett” havia uma operária que se drogava e um dia desapareceu do posto de trabalho durante horas e foram encontrá-la no WC. Apesar do sentimento dominante ser contra o abuso de poder dos patrões e o controle exagerado sobre os trabalhadores, estes desabafos são sempre pronunciados individualmente e os circundantes manifestam-se pelo silêncio. Mesmo em momentos de revolta, o medo está presente e no final fica sobretudo a sensação de impotência e resignação.
Dias depois dessa notícia, apareceu no refeitório um panfleto do MRPP sobre a situação no calçado, os horários, a flexibilidade e contra o controle das idas à casa de banho através do cartão magnético. Título: “CONTRA A POLÍTICA DA FOME E DO CACETE, OS TRABALHADORES DEVEM RESPONDER COM A LUTA”. Na sua habitual linguagem radical, aquele partido afirmava que os patrões pretendem retirar o 13º mês (que passaria a prémio de produtividade) e, na
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prática, aumentar a semana de trabalho: “Invocando o pretexto da instauração da semana de 40 horas, o sector mais retrógrado dos patrões portugueses pretende aumentar esse mesmo horário e, no entanto, continuar a pagar os mais baixos salários da Europa.”(sic). Apenas dois ou três trabalhadores se detiveram por breves instantes a olhar o papel.
Cerca de uma semana mais tarde surgiu a delegada sindical com um “abaixo assinado” do sindicato, que começou a circular entre os operários. Nele se contestava a flexibilização dos horários e o projecto-lei e se afirmava que “[caso o mesmo seja aprovado] vai obrigar os trabalhadores a trabalharem até 50 horas (não recebendo quaisquer horas extraordinárias por isso) de segunda a sábado. As pausas não contam como tempo de trabalho (...) abrindo o caminho para o livre arbítrio dos patrões (…). Se a proposta passasse a lei, seria dar aos patrões o poder absoluto dentro das empresas: do quero-posso-e-mando.” (comunicado do Sindicato do Calçado, 25/3/96).
A Maria estava em plena actividade militante. Aproximou-se quando eu estava com o Toni junto ao carro dele, dirigiu-se a ele e a outro operário (o Zé). Em gestos muito terra-a-terra, e utilizando obscenidades pelo meio, foi directa ao assunto: “assina aí isso que estes gajos querem-nos aumentar o horário para 50 horas!”; aquele operário dizia, “espera aí, eu quero ler; deixa ver isso!...”. Outros que se aproximavam diziam “não pode ser! Ah! isso é paleio do sindicato (...), esses também só querem é mama!”. O Paulo afastou-se, o Zé disse logo que não, abanando com a cabeça. A delegada estava “fula”. Desabafava: “eu já sei como é que é! Estes gajos falam, falam e toda a gente tem é medo!” Dizia para o Toni que estava ainda a olhar para a folha: “carago! assina essa merda!...; eu já sei que ninguém assina!” O Toni acabou por assinar e a seguir a Maria dirigiu-se ao refeitório. Vários trabalhadores assinaram o papel sem problemas, mas outros recusaram-se. Um dos meus colegas, apesar dos seus usuais gestos de revolta contra os baixos salários ou contra os abusos do encarregado, demarcava-se e mostrava-se desconfiado em relação aos objectivos do sindicato: “Estou farto desse paleio! Então não queriam as 40 horas?! Não puseram lá o Guterres? Tiraram o Cavaco e votaram no Guterres, agora aguentem-se! (...)”.
Muitos trabalhadores revelam uma evidente desconfiança em relação ao sindicato.
Suspeitam dos “interesses” obscuros dos dirigentes e activistas sindicais, referem-se a
casos de delegados sindicais que foram cooptados pelos patrões e que viram os seus
prémios e condições de trabalho melhorados porque aceitaram abdicar do seu papel de
luta. Argumentos que, não só descrêem dos objectivos de solidariedade dos líderes
sindicais, mas têm subjacente o risco de “provocar” o patrão através do activismo
sindical. Parece enraizada a ideia de que “eles têm a faca e o queijo na mão”, logo, não
há nada a fazer. Acima de tudo há que defender a todo o custo o posto de trabalho, ainda
que isso obrigue a uma sujeição difícil de aguentar.
Acresce que os verdadeiros líderes, os trabalhadores mais populares junto do colectivo, raramente se assumem como sindicalistas e, deste modo, acabam muitas vezes por ser os mais revoltados, mas nem sempre reconhecidos como os mais
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capazes, os únicos que aceitam assumir-se como delegados sindicais. Esta operária, por exemplo, é olhada como pouco competente. E a “competência” na produção parece colher mais simpatia do que a simples militância. Uma situação paradoxal, na medida em que a imagem de “competente” ou de “incompetente” é ela própria construída no seio da empresa com a ajuda do poder dominante. O “bom trabalhador” nunca é o mais rebelde ou, pelo menos, nunca é aquele que assume abertamente a sua rebeldia. As histórias que circulam acerca desta trabalhadora parecem no entanto devastadoras. Diz-se que ela “tem problemas” e insinua-se que “não regula bem”. Referiram-me que chegou a ser apanhada a roubar as sandes que os trabalhadores traziam para o lanche… O facto de na origem do processo de “consciencialização” sindical de uma operária estar um conflito ligado à sua fé católica parece ilustrar uma situação, no mínimo, ambígua, já que o sindicalismo é visto com desconfiança pela sua conotação esquerdista e, portanto, anti-clerical. No caso desta delegada, não parece que o elemento religioso seja suficiente para neutralizar essa desconfiança. Assim, o sindicalismo está de facto ausente em termos de adesão militante e em termos de capacidade de influenciar a luta organizada dos trabalhadores no dia-a-dia da empresa. Mas ao mesmo tempo ele está presente enquanto referência central, seja pela negativa ou pela positiva. É devido a essa presença do sindicato no imaginário das empresas que qualquer gesto mais ostensivo de contestação facilmente corre o risco de ser conotado, o que não deixa de se traduzir no adensar do retraimento por parte dos mais conscientes. Ou seja, o sindicalismo está ausente enquanto estrutura organizada, mas está presente enquanto referente central pelo qual se pautam as práticas e representações dos trabalhadores e do patronato.
8.4.2 - Ambiguidades e heterogeneidades de classe
Como sabemos, o debate sociológico em torno da classe resulta em boa medida da
não correspondência entre a categoria sociológica e o actor social. A existência
substantiva das classes na luta política e social sempre foi problemática. Não há, nem
nunca houve, classes homogéneas. Sendo assim, que especificidades podem ser
apontadas a este operariado? Quais os principais traços dos trabalhadores desta
empresa? De que forma são estruturadas e que vectores fundamentais se interpõem nos
processos de construção e desconstrução das suas identidades sociais e culturais? Como
se articulam as relações na produção com os vínculos culturais das comunidades
envolventes?
Os exemplos atrás apresentados ilustram um pouco da diversidade de condições e
modos de vida dos operários. Outras situações poderiam ter sido referidas como
fragmentos do envolvimento social dos indivíduos em processos, expectativas e
trajectórias que, até certo ponto, se subtraem a uma identificação de classe. O
investimento pessoal nos objectivos da família e o esforço de acumulação económica
nem sempre se pautam pela mera necessidade de subsistência. Mesmo nas situações de
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maior carência são notórios os factores de natureza cultural, sobre os quais se constrói
uma representação do mundo prático de cada um e em que a experiência pessoal se tece
das respostas imediatas ou de curto prazo que é necessário encontrar para os problemas
do dia-a-dia. Na vida vulgar de quem necessita de trabalhar para assegurar a
sobrevivência e a dignidade social “ter um emprego” já representa muito. Não sobra
muito mais espaço para além da produção e da organização diária da vida familiar.
Quando muito, os pequenos lazeres – ver a novela ou um jogo de futebol na televisão, a
distracção com os amigos, uma ida ao café ou a meia hora de namoro dos mais jovens –
são elementos de escape que ajudam a recuperar o ânimo para enfrentar o dia seguinte.
As actividades associativas, quando existem, ou são vividas pelo lado lúdico das
identidades locais (o caso das actividades recreativas) ou exigem um grau de
consciência social e política que aqui está virtualmente ausente (o caso do sindicalismo).
De um modo geral, não há tempo nem espaço para consumos culturais a não ser quando
os recursos educacionais previamente adquiridos têm algum peso, o que também não é o
caso da generalidade destes trabalhadores. Pode dizer-se que as vidas destes operários
são organizadas pelo trabalho; mas eles não vêem o trabalho como o centro das suas
vidas. Especialmente o trabalho na fábrica e a “condição operária”. Nos mais
escolarizados esse é um estatuto que por vezes se esconde. Nos mais desfavorecidos é
um elemento de protecção, é uma carência preenchida, ainda que de forma precária.
Pode até ser um factor de promoção social. Ter um emprego, mesmo na fábrica, ajuda à
integração na comunidade e é uma necessidade absoluta no quadro familiar, presente ou
futuro, a identificação com a condição operária, no sentido mítico e “heróico” do termo,
é algo de que ninguém parece orgulhar-se. Apesar de as grandes convulsões sociais e
políticas também terem tido algum impacto nesta região, tais referências passam ao lado
da memória colectiva da actual geração do operariado do calçado. É, por exemplo,
sintomático que as trabalhadoras da linha de montagem indiquem, em geral, a sua
profissão como “empregada fabril” porque, segundo me referiu uma delas, “se dissesse
que era operária ainda pensavam que trabalhava na construção civil ou num hospital…”.
A experiência operária é vivida como uma experiência colectiva, igual a tantas
outras, que fazem parte da vida difícil das classes baixas. Na fábrica, como outrora no
campo, o trabalho tem a sua componente de jogo e de lazer. A disciplina, a
racionalidade económica e o controle apertado estão longe de anular todos os espaços de
informalidade, de autonomia e de jogo. Tirar partido das pequenas brechas do sistema é
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um dos jogos a que os trabalhadores se entregam e, mesmo quando os espaços de
liberdade são escassos, a sua inteligência prática permite-lhes resguardá-los e recriá-los,
rompendo ou torneando as regras e os poderosos meios da gestão autocrática. É, por um
lado, da própria natureza de qualquer sistema social dotado de vida própria e, por outro,
um reflexo da sua dimensão humana. Os espaços de liberdade são sempre aqueles em
que o ser humano se recusa a cumprir como uma máquina e em que pode exibir as suas
emoções. Por isso, as histórias de amor que atrás referi constituem uma componente
relevante, tanto pela afirmação da afectividade, como pela faceta rebelde que introduz
numa atmosfera produtiva onde os elementos predominantes são a frieza do cálculo e os
objectivos produtivos. Se na vida social em geral a paixão amorosa nem sempre se
assume apenas pelo seu lado idílico, na fábrica ela assume-se como mais um factor de
perturbação e um ingrediente lubrificador das dinâmicas identitárias da colectividade
operária. Se as rotinas diárias aguardam impacientes pelo mais inofensivo gesto de
ruptura, um “acontecimento” com contornos de escândalo, como o que referi atrás,
adquire neste contexto um carácter excepcional que suscita todas as atenções. Por isso
essa referência merece algum realce enquanto factor dinamizador das relações sociais na
produção.
Paralelamente, a heterogeneidade dos trabalhadores da firma Walky traduz-se no
seu individualismo e na fragilidade da sua consciência de classe (usando aqui o conceito
no seu sentido mais clássico). Os operários deste colectivo não estão organizados
autonomamente nem se mostram predispostos a organizar-se. Parecem rejeitar qualquer
forma de luta colectiva dirigida contra a exploração e o poder autocrático que sobre eles
se exerce. Todavia, como mostrei anteriormente, os operários não são totalmente
passivos e estão muito longe de aderir à pura lógica produtivista que a empresa lhes
pretende impor. As formas culturais e identitárias em que se movem constituem não um
padrão harmonioso e estável mas um sistema dinâmico e aberto, composto de múltiplas
facetas, contradições e ambiguidades. É um processo em estruturação que sofre os
efeitos contraditórios de lógicas que se cruzam na produção e nas comunidades de
origem num jogo de constantes permutas. Pode dizer-se que, em qualquer destes
espaços estamos perante comunidades em formação. Retomando a terminologia de
Boaventura Sousa Santos, correspondem às “comunidades-amiba”, assentes em
identidades múltiplas e inacabadas em permanente reconstrução e reinvenção (Santos,
1996: 485). É sob o impulso destas formas cruzadas de identificação que as
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subjectividades dos trabalhadores evidenciam no trabalho a presença de laços
transclassistas e das lealdades comunitárias, enquanto na comunidade transportam os
efeitos da modelação identitária a que estão expostas no interior da fábrica. Além disso,
são notórias as tendências individualistas activadas pelo mercado de trabalho
concorrencial.
Sem uma consciência contestatária activa, os operários desta fábrica revelam, apesar
disso, nos seus comportamentos quotidianos, variadas formas de resistência, tendo ficado
comprovada a sua não-adesão à lógica patronal. Hesitantes entre um sindicalismo visto
com desconfiança e um patronato poderoso, os operários são dissuadidos da contestação
colectiva organizada porque a vêem como uma opção demasiado arriscada. Não vendo a
mobilização sindical como uma alternativa viável e clara perante a exploração que sofrem
na empresa, esta é consentida pela necessidade absoluta de preservar o emprego. Do ponto
de vista subjectivo debatem-se com a opção entre consentir na exploração ou pôr em risco
a principal fonte de subsistência. Ao optarem pela primeira solução, as respostas às
múltiplas pressões a que estão sujeitos no trabalho podem adquirir diferentes contornos.
As manifestações de descontentamento são individuais e feitas em surdina. Não se trata,
porém, de um puro individualismo liberal mas sim de atitudes ambíguas derivadas de um
mal-estar latente, de um medo diariamente recalcado na empresa à mistura com um
sentido de auto-responsabilização pessoal pelo contributo de cada um para a subsistência
familiar. Acusam-se a si mesmos da sua impotência através de repetidos desabafos de
conformismo e contrariedade: “nós é que somos os culpados porque toda a gente tem
medo!…”, “aceitam tudo”, “deixam-nos fazer o que querem”, “ninguém quer dar a cara”,
etc. O sindicato está distante e a sua representante interna (a delegada sindical) é, como
vimos, votada ao isolamento, pois os trabalhadores aprenderam que a militância é um
desafio pelo qual se pode pagar um preço demasiado elevado. Recordam-se do que
aconteceu com anteriores delegados, mais influentes do que a actual: “arranjaram maneira
de o fazer ir embora”. Talvez a tolerância patronal em relação à actual delegada sindical se
deva sobretudo ao seu relativo isolamento junto do colectivo dos trabalhadores. Só dessa
maneira pode invocar-se a existência de uma liberdade plena, porque os seus efeitos
práticos pouco ou nada beliscam a prática autoritária. A esta atomização dos
comportamentos liga-se igualmente o facto de não existir na empresa nenhuma estrutura
representativa dos trabalhadores. O sentimento generalizado de impotência e de auto-
culpabilização, patente nas frases e desabafos acima referidos, poderia fazer crer que se
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trata apenas de uma hesitação que só espera que alguém dê o primeiro passo. Mas o
problema é mais profundo: de facto ninguém dá esse passo. E se não o dá não é por puro
medo ou por total ausência de alternativas. Sendo verdade que nos sectores mais
precarizados é esse o sentimento dominante, também o é que há na empresa trabalhadores
conscientes de que poderiam opor-se organizadamente ao patrão. Não o fazem porque não
querem correr o risco de “ser queimados”, o que deverá ser interpretado à luz da lógica de
acumulação individual e familiar. Embora, como já se disse, a ambição individual possa
não ser a principal causa da fraqueza da acção colectiva, não deixa de ser evidente que os
sinais exteriores de riqueza de muitos patrões e de certos sectores da classe média
assumem um carácter simbólico e um poder de sedução extremamente fortes. Deve
atender-se, repito, à heterogeneidade das situações. Mas, em todo o caso, a propensão para
a ostentação das categorias sociais economicamente mais desafogadas – do pequeno
negociante ao funcionário, do vendedor de automóveis ao agente de seguros, do
profissional liberal ao comerciante –, é ilustrativa de que as estratégias de acumulação se
estendem da classe dominante às classes médias e contagiam as fracções melhor
posicionadas da classe trabalhadora. Arriscar num pequeno negócio, mobilizar a família
inteira para o trabalho, acrescentar ao baixo salário alguma actividade paralela, constituem
orientações que atingem alguns sectores do operariado.
Um operariado que não cresceu entre o discurso emancipatório e a linguagem “de
classe”; em que as camadas adultas nasceram em ambientes rurais marcados pelo
catolicismo e viveram no pós-25 de Abril o clima local de forte contestação anti-
comunista e anti-revolucionária; que continuam a ver no radicalismo sindical a principal
causa do encerramento de muitas empresas durante esse período. Paralelamente, os
sectores mais jovens da força de trabalho entraram directamente no mundo fabril num
período de expansão do “neo-liberalismo”218 e sem qualquer referência – nem mesmo
longínqua – relativamente à cultura operária e à militância sindical. Se, por um lado, os
jovens aderem facilmente à massificação na esfera do consumo, resistem, por outro, à
massificação produtiva e ao discurso sindicalista que no passado animou a classe operária.
O resultado é a crescente fragmentação da classe e a emergência de um individualismo,
meio dócil, meio amedrontado, funcionando na base dessa ambivalência composta pelas
218 Independentemente disso, neste sector industrial e nesta região, a lógica patronal sempre encontrou como é sabido formas de tornear a legislação laboral e, portanto, na prática sempre vigorou a lógica de poder de cariz “despótico-paternalista”, conforme referi no Capítulo 7.
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referências e aspirações oriundas da esfera do consumo e do quotidiano, mas ao mesmo
tempo, pela experiência fabril.
Mas, esta ausência de consciência de classe e de acção organizada não é
incompatível com a emergência de formas subtis de rebeldia dissimulada. Os processos
de identificação no local de trabalho revestem-se simultaneamente de atitudes cúmplices
de não-cooperação e de resistência difusa. Uma resistência que não é política, mas sim
cultural, que assenta principalmente no jogo das cumplicidades tácitas, procurando
escapar aos efeitos mais opressivos do poder autocrático. É, portanto, enganosa a ideia
da lealdade e de uma adesão generalizada ao poder patronal, por parte dos operários e
operárias do calçado. A observação dos seus gestos no dia-a-dia de trabalho permitiu
comprovar essa “recusa”, quer no desejo constante de evasão, quer nas repetidas queixas
contra o autoritarismo das chefias, contra os baixos salários ou contra a total ausência de
diálogo. No quotidiano laboral, as pessoas procuram acima de tudo esquecer a fábrica,
mas fora dela o seu espectro parece persegui-las. As formas de resistência e de protesto
resumem-se às micro-rupturas, às pequenas cumplicidades e subtilezas que contrariam
pontualmente os interesses patronais e a pressão da hierarquia, mas sem no fundo porem
em causa os seus mecanismos e as suas estruturas de poder.
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Capítulo 8-A
O SOCIÓLOGO NA FÁBRICA
Fragmentos de um “Diário de Campo”
NOTA PESSOAL
Já que este relato pretende expor algumas das hesitações e dúvidas com que me fui debatendo ao longo desta experiência, valerá a pena começar por uma breve nota pessoal. Esta poderá ser entendida, digamos, como um cartão de apresentação, mas que, simultaneamente, se destina a revelar alguns aspectos do meu próprio percurso que, espero, possam contribuir para tornar mais clara a razão das opções tomadas nesta pesquisa, quer quanto ao tema, quer quanto aos procedimentos seguidos. É, com efeito, certo que as opções em relação a este ou àquele tema, bem como a vocação mais teorizante ou mais interventiva do cientista social, o seu positivismo ou a sua postura crítica, são aspectos que se inscrevem na sua trajectória de vida.
Muito embora tenha exercido outras actividades profissionais ao longo da vida, os meus contactos com o mundo operário tinham até agora sido pouco mais do que fortuitos e pontuais. Filho de pequenos comerciantes, cresci nos anos sessenta num Alentejo submetido à opressão salazarista, em terra de mineiros, onde grassava a pobreza e onde uma mera paragem laboral dava azo a que os trabalhadores fossem violentamente agredidos e encarcerados pela PIDE. As memórias da infância e, mais tarde, as vivências do ambiente estudantil lisboeta, na adolescência, quando chegavam a Portugal alguns ecos dos movimentos sociais e culturais da década de sessenta, a rebeldia contra o autoritarismo do regime e a adesão às expressões musicais e culturais que nessa altura tanto chocavam a moral dominante, marcaram profundamente a minha sensibilidade perante as questões sociais. Nos anos quentes do pós-25 de Abril a actividade sindical e a militância de esquerda, com a “classe operária” no centro do discurso político e mergulhado no radicalismo ideológico de então, as pichagens à porta da fábrica, os panfletos distribuídos aos trabalhadores em nome da “vanguarda revolucionária”, enfim, as noites de vigília em defesa das casas ocupadas pelas famílias dos bairros de barracas, constituíram experiências ímpares, cuja riqueza humana não poderia ser esquecida, mesmo depois dos ideais emancipatórios de então caírem por terra. Ficou sobretudo a vontade de compreender os fenómenos sociais de forma mais profunda e sistemática e em especial as injustiças sociais, a vida das classes baixas e os mecanismos de opressão e exclusão que sobre elas continuaram a exercer-se. A essas influências seguir-se-ia – no pós-25 de Novembro de 1975 – a progressiva desconfiança e finalmente a ruptura com o dogmatismo político-ideológico do revolucionarismo leninista. Enfim, também algumas influências de professores dos últimos anos do ensino secundário levaram-me a optar pela licenciatura em sociologia.
O ambiente que encontrei entre a jovem comunidade sociológica do ISCTE e os intensos debates aí suscitados, no contexto de “ressaca” pós-revolucionária, estimularam fortemente a avidez por novas teorias e a descoberta de explicações mais fundamentadas acerca dos problemas sociais e políticos das sociedades contemporâneas. Além de pequenos trabalhos de pesquisa que efectuei ao longo do curso, o seminário final de licenciatura foi elaborado em torno da acção operária numa empresa da periferia de Lisboa, trabalho esse que constituiu, digamos, o ponto de partida da investigação sociológica centrada no operariado. A industria do calçado surgiu, já em Coimbra, como tema de provas académicas.
Importava agora dar continuidade a esse trabalho e aprofundá-lo com base numa perspectiva de análise que me permitisse articular diferentes abordagens e onde pudesse envolver-me de perto no quotidiano e no modo de vida dos trabalhadores. A metodologia da observação participante
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apresentou-se, assim, como uma resposta capaz de conciliar a profundidade analítica com o desejo de experimentação e envolvimento social e humano no universo cultural da classe trabalhadora.
A ABORDAGEM E O PATRÃO
O escasso número de empresas que responderam aos cerca de vinte faxes que enviei para fábricas de calçado localizadas nesta zona revela, desde logo, alguma coisa acerca do patronato do sector industrial do calçado. Refiro-me nomeadamente à sua fraca sensibilidade para com as questões sociais, mas também à sua notória desconfiança para com a Universidade e a sociologia, em especial perante a situação “bizarra” de um académico se dispor a trabalhar como operário numa linha de montagem. Em todo o caso, tive a felicidade de encontrar um empresário – de uma PME com perto de 60 trabalhadores, sendo a maioria mulheres, situada na zona de S. João da Madeira – que se dispôs com grande entusiasmo a dar acolhimento ao meu trabalho e que me proporcionou todas as condições pretendidas. Tratando-se se uma empresa com as dimensões e estruturas que me pareceram adequadas, e dado o bom relacionamento que à partida estabeleci com este proprietário – após ter auscultado a situação noutras duas empresas, que mostraram igualmente algum interesse, e depois de as ter visitado e entrevistado os seus responsáveis –, a opção estava tomada.
Mas, como se deve calcular, o interesse entusiástico deste proprietário não foi inocente. A estratégia patronal orientou-se segundo duas vertentes que importa referir. A primeira passou pela tentativa de “usar” a presença do investigador para projectar para o exterior uma imagem da empresa coincidente com a sua visão pessoal. Era uma forma de procurar reforçar a sua auto-imagem de empresário, independentemente de o fazer ou não de forma consciente. Uma auto-imagem que pretendia afirmar-se pelo espírito aberto e moderno, pelo desejo em se fixar na linha da frente em termos de investimento na inovação, na criatividade e na motivação do seu pessoal. Um empresário ainda jovem e dinâmico, filho de um industrial e genro de outro, mas que se mostrou orgulhoso de ter conseguido tudo o que tem à sua própria custa. Iniciou a sua actividade profissional muito jovem – como professor, primeiro, e mais tarde como comerciante no calçado, antes de abrir a empresa –, viajou sozinho pelo estrangeiro onde nos anos sessenta trabalhou em hotéis e restaurantes a lavar pratos, etc. É interessante notar que a projecção de uma tal imagem teve como destinatários mais próximos – além dos potenciais destinatários longínquos, tais como, os quadros, a Universidade, o mercado em geral –, os seus concorrentes directos, ou seja, os industriais do sector sediados na cidade, os quais, por razões profissionais ou outras, mantêm contacto regular com a actividade da empresa. Comprovei no final do meu trabalho esse propósito quando constatei que o próprio empresário se encarregara de divulgar nesse meio a minha presença na empresa. Além disso, participei a seu convite num jantar informal com outros empresários do ramo, seus conhecidos. De acordo com a sua lógica, transmitir a ideia de que a empresa tem dificuldades económicas ou problemas de escassez de encomendas é algo que, perante a concorrência, deve ser evitado. Há que dissimular os sintomas da crise, além do mais, porque isso tem, ou pode ter, consequências junto de fornecedores, clientes, banca, etc. As iniciativas inovadoras são ingredientes que, do seu ponto de vista, podem tornar-se importantes mais-valias e, portanto, é imperioso dar-lhes atenção219. A oportunidade de ter um sociólogo na empresa ajustava-se bem a essa perspectiva, e daí a sua receptividade entusiástica e o grande interesse que manifestou em relação à pesquisa.
A segunda vertente refere-se à tentativa de tirar proveito da minha presença para “motivar” os operários, ou seja, esperava ele que da minha colaboração com a direcção pudesse resultar algum acréscimo de incentivos à produtividade, sem acréscimo de custos económicos. Assim, a “negociação” tácita entre nós passou pelo meu compromisso em entregar-lhe no final um
219 Por outro lado, esse discurso virado para fora é contrariado pelo discurso dirigido aos seus colaboradores internos (e a mim próprio), repetidamente centrado na crise e nas dificuldades financeiras, na encomenda que devia chegar e não chegou, na fraca adesão aos modelos apresentados nas feiras internacionais, na necessidade de vender terrenos para aumentar o capital da empresa, etc., etc.
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“diagnóstico” da situação social dos trabalhadores com vista ao desenvolvimento de novas formas de incentivo à produtividade e à motivação do pessoal. Neste campo é possível distinguir duas coisas. Por um lado, a tentativa – supostamente genuína e sem dúvida legítima do seu ponto de vista – de ajudar a criar condições para que os operários se dedicassem mais à vida da empresa, se identificassem mais com ela, procurassem trabalhar melhor, aderissem mais abertamente aos objectivos patronais, etc., donde resultariam consequências positivas para ambos os lados. Por outro lado, uma expectativa em relação a possíveis informações que eu poderia veícular-lhe acerca das atitudes dos operários e do seu empenhamento no trabalho220.
A conversa informal e o bom relacionamento que prevaleceu entre nós ao longo de todo o período da pesquisa traduziram-se em repetidos convites para passar no seu gabinete ao fim do dia, onde se trocavam impressões, quer sobre o decorrer do meu trabalho quer sobre a situação da empresa e dos trabalhadores. Mantendo sempre a necessária postura conciliadora, porque naquele contexto o seu poder se exercia também sobre o investigador, não deixei de ter a sensação de que, à medida que o tempo ia decorrendo, cada vez mais me encontrava no centro de um jogo de poder. Podem imaginar-se as dificuldades que tive em gerir a minha posição nesse jogo.
Nesse aspecto, tudo correu conforme o previsto e no final facultei ao proprietário o prometido “diagnóstico” (ver Anexo 5), assinalando diversos pontos críticos e apontando um conjunto de sugestões destinadas a flexibilizar a estrutura organizacional e os canais de comunicação da empresa. Não deixa, contudo, de ser significativa a reacção violenta do patrão quando soube, semanas depois da conclusão do meu trabalho, que tinha participado num debate promovido pelo sindicato onde foram referidos (e depois divulgados na imprensa) alguns dos constrangimentos e práticas autoritárias de que os trabalhadores do calçado são vítimas nas empresas. Apesar de se tratar de uma abordagem genérica sobre o sector e o nome da empresa nunca ter sido divulgado, isso não me impediu de ser acusado de estar a “fazer o jogo do sindicato”, de prejudicar a imagem dos empresários, e até de “traição”.
A CAMINHO DA FÁBRICA
S. João da Madeira, 26/2/96, segunda-feira. Ainda não eram 8h da manhã quando atravessei a Zona Industrial localizada na periferia de S. João da Madeira e me dirigi à empresa no meu primeiro dia de trabalho. Num dia chuvoso e ainda de noite, parei por momentos numa fila de carros a olhar as correrias dos trabalhadores que cruzavam a rua em direcção aos portões das fábricas. Quer o intenso fluxo de trânsito, com carros, motos e motoretas a chegar e a arrancar apressados, quer as várias formas de comércio com os cafés-roulottes e os mercados improvisados, com as suas frutas, roupas, brinquedos, etc., tornam ainda mais animado - e confuso para mim - o ambiente deste núcleo de produção industrial onde proliferam as fábricas de calçado e dos seus diversos componentes. É este o cenário com que os trabalhadores do sector do calçado desta zona estão familiarizados, onde mergulham todas as manhãs e do qual aparentemente fogem, apressadamente, todas as tardes.
Sendo o meu primeiro dia de trabalho na fábrica, estava, como não podia deixar de ser, bastante apreensivo com o início da minha “nova vida”. Dirigi-me ao gabinete do encarregado geral (M.), uma pequena estrutura de madeira envidraçada situada no topo da fábrica, junto às escadas que dão para o escritório. Trocámos breves palavras sobre os objectivos do meu trabalho, dos quais ele já tinha uma vaga ideia (certamente transmitida pelo patrão). Limitei-me a adiantar que me interessava sobretudo trabalhar como operário e junto dos operários, a fim de sentir as dificuldades e exigências da produção como qualquer outro trabalhador. Aceitei de imediato a sugestão que se fizesse uma ficha com o meu nome, destinada ao registo diário das entradas e saídas no relógio de
220 Desde o início que ficou clara a minha posição de neutralidade assim como a defesa do anonimato em relação a quaisquer situações de trabalho que viesse a detectar no seio do grupo operário. Esta minha posição foi respeitada e compreendida da sua parte. Mas em alguns momentos pareceu-me óbvio o seu desejo de saber mais acerca do que dizem e do que pensam os trabalhadores.
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ponto, como acontece com todos os outros. Como era sabido, os encarregados e chefias estavam minimamente a par dos meus objectivos e do meu estatuto académico. Ainda assim, pensei na estratégia que tinha previsto: uma actuação discreta e cuidadosa, não divulgando detalhadamente, e muito menos logo no início, todos os aspectos da observação que pretendia realizar.
O CHOQUE INICIAL
Não pude deixar de me atemorizar ao penetrar naquele ambiente mecanizado e ruidoso. Senti o choque da atmosfera densa e agitada da fábrica. Nesse momento pareceu-me até algo escura. À permanente azáfama juntava-se um meio ruidoso composto pelas mais variadas sonoridades das máquinas, das descargas de pressão, da saída de vapores dos fornos e sistemas de refrigeração, do martelar metálico dos diversos instrumentos de trabalho; além de um intenso cheiro a produtos químicos e óleos que pairava no ar. A movimentação mecanizada de todo o pessoal ao toque da campainha, com as pessoas a desdobrarem-se em gestos rápidos, a pegarem nas suas ferramentas e a entregarem-se às suas tarefas sem perda de tempo, coroava este cenário para mim ainda tão estranho.
Não irei esquecer os sentimentos contraditórios que me assaltaram nesse momento: ao mesmo tempo uma sensação de angústia e curiosidade, de apreensão e expectativa. “Isto é mesmo a sério”, pensei. Mas a preocupação em começar não me deixou tempo para reflexões. Fui de seguida apresentado ao encarregado da linha de montagem (FI), que me conduziu até ao meu posto e me explicou a tarefa que tinha de efectuar, mostrando ele primeiro como se fazia. Após uma rápida explicação e introdução ao meu colega de posto: “... vai ficar aqui ao pé do sr. António a arrancar pregos. Eu vou-lhe explicar como se faz…”. Foi buscar o arrancador, que é uma espécie de chave de fendas com a ponta em curva e com uma pequena fenda, que tem de se encostar à cabeça do pequeno prego para fazê-lo sair, segurando o sapato (sandália, neste caso) com a mão esquerda e manuseando a ferramenta com a outra. Comecei o meu trabalho.
RITMO DEMASIADO INTENSO
O calçado surge do meu lado esquerdo, com os pares enformados e colocados na posição invertida (com as solas para cima), nas aberturas próprias entre os tubos cilíndricos dos carros da linha de montagem. No início vinham dois pares em cada carro, mas por vezes apareciam três. Retiro uma sandália com a mão esquerda e seguro-a contra o peito, procuro os dois pregos e, com algum esforço e as dificuldades iniciais, arranco-os com a ferramenta da mão direita. Volto a colocar a sandália no mesmo sítio. Por vezes é difícil encontrar os pregos, porque são pequenos e a cor confunde-se com a da palmilha e, além disso, como esta está coberta de cola, os pregos não saltam à primeira tentativa. Tendem a ficar agarrados à ferramenta ou à sandália. Isto obriga a mais um movimento com os dedos para os retirar para o chão, sem perda de tempo. A atrapalhação crescia quando, mesmo assim, os pregos teimavam em ficar colados aos próprios dedos. Mas com este modelo de sandália de Verão, como tem as palmilhas bastante maleáveis, é fácil arrancá-los, apesar de tudo. O pior é a cadência que tem de ser imprimida. Não param de chegar mais carros com os tabuleiros cheios. Logo a seguir ao meu posto, o calçado entra num forno que se fecha automaticamente e por isso o tempo e o espaço de manobra são muito pequenos. As dificuldades aumentaram ainda mais quando, com o rápido andamento da linha, os do posto anterior (os montadores ou também chamados pregadores) se atrasaram nessa tarefa e vinham depositar os pares nos carros (depois de pregados na palmilha) quando estes já estavam prestes a entrar no forno. Nesse caso não dá tempo para fazer tudo. Ouvi então os primeiros desabafos de protesto da parte do tio António: “ele não vê que isto está atrasado?”; com ar chateado, nervoso e encolhendo os ombros: “se não vem desligar a máquina e parar isto, deixa-se seguir tudo pr' á frente!!”. O meu companheiro de trabalho revelou desde logo ser um incorrigível falador. Perguntou-me se era amigo do FI (o encarregado); eu disse-lhe que não e que estava ali para aprender a fazer sapatos porque me interessava conhecer melhor aquele sector; adiantei que iria ficar apenas por um período curto, de dois ou três meses. Deu-me alguns conselhos, ensinou-me a posição correcta das mãos, para ter cuidado com os dedos e para não me preocupar, que isto “quem não sabe, aprende”. Cerca de uma hora depois de iniciado o trabalho,
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o encarregado geral chamou-me para falar mais um pouco comigo, procurando pôr-me a par dos problemas da produção e querendo saber mais alguma coisa do meu trabalho. Tanto ele como o encarregado da montagem mostraram-se bastante colaborantes para comigo.
UM IMPREVISTO
O primeiro imprevisto, que me causou grande apreensão, surgiu minutos depois, quando vinha a regressar ao meu posto e me informaram que o meu colega tinha tido um ataque e estava a ser levado para o hospital. Disseram-me os colegas do lado que aquelas crises eram habituais mas não se sabia ao certo se era do coração, se era uma quebra de tensão ou apenas um desmaio. Isso aliviou-me do vago sentimento de culpa que me assaltou, pois já começava a pensar que o incidente se relacionasse com a minha presença. Deram-me mais alguns pormenores sobre a situação daquele operário. Com a idade dele (62 anos) e os problemas de saúde, já não devia estar a trabalhar; ainda por cima continuava a beber, desrespeitando os conselhos médicos. O patrão, quando mais tarde passou junto a mim para me cumprimentar, disse: “se calhar o homem pensou que você lhe vinha tirar o lugar…”, o que me deixou ainda mais apreensivo. Felizmente, às 2 h da tarde já o “tio” António, como é amigavelmente tratado pelos outros, estava de regresso e aparentemente bem de saúde. Tinha sido uma quebra de tensão.
A CARRIÇA
Enquanto o meu companheiro esteve ausente, veio substituí-lo uma jovem operária (Carriça - 19 anos) na tarefa de “riscar”. Esta tarefa só é necessária em certo tipo de “obra”, em especial quando se trata de calçado com sola de borracha e que envolve a parte de baixo da gáspea, como é o caso das sandálias neste momento em produção (que fazem parte de uma encomenda de 30.000 pares a exportar para a Holanda). Como rapidamente adquiri prática em arrancar os pregos, procurei aprender a riscar, a fim de poder ajudar a minha colega no tempo que me sobrava, uma vez que ela, além de estar agora a fazer esse trabalho, tinha ainda a sua própria tarefa neste posto (colar uma fita em redor da sandália, junto ao risco). A operação de riscar consiste em fazer um risco à volta da sandália, o qual deve coincidir com o limite da respectiva sola de borracha. É por isso necessário utilizar as solas que caminham no tabuleiro de cima do mesmo carro de transporte, instalado na linha de montagem (onde circulam as diferentes componentes dos dois ou três pares por carro), adaptá-las às restantes partes já montadas na forma e, usando uma esferográfica própria, riscar em volta da linha limite da sola, evitando que a mesma saia da posição adequada enquanto se movimenta e risca a sandália de um lado e do outro, à frente e atrás. Parece simples e é simples. O único problema é, como em tudo o resto, fazer bem e muito depressa. Como estas são as duas operações que me irão ocupar mais nos próximos tempos estou a descrevê-las com algum detalhe. Depois de ganhar a necessária perícia e agilidade, entra-se na cadência exigida pela velocidade do andamento da linha (que é regulável e, segundo as exigências e possibilidades produtivas, é alterada pelo encarregado). Tira-se a sandália enformada com uma mão e, com a outra, a respectiva sola (direita ou esquerda), adaptando-a de imediato; é preciso não pressionar em excesso mas apenas o suficiente; encosta-se a sandália ao peito, segurando com a mão a sandália enformada e a sola, sem a deixar sair do lugar; com caneta na mão direita, risca-se de um lado; vira-se tudo e risca-se do outro lado; finalmente risca-se à frente e atrás e coloca-se o calçado no mesmo lugar e no mesmo carro de onde foi retirado. É claro que a posição exacta de segurar o calçado, a posição mais ou menos inclinada da caneta – ou se risca tudo de seguida ou se anda para trás e para frente –, são pequenos detalhes para os quais é impossível estabelecer um padrão rígido e totalmente previsível. Ou melhor, é um dos muitos exemplos que ilustram a impossibilidade de controlar todos os movimentos, com a mesma posição, a mesma velocidade, etc. Este aspecto, que os responsáveis entendem em geral ser uma limitação,
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é utilizado pelos trabalhadores como uma oportunidade de fazer valer e preservar a margem de autonomia que podem deter, por mais ínfima que ela possa ser. Quanto mais a respectiva operação possua características artesanais, mais amplo tende a ser o campo de manobra do seu executante. O caso do calçado é um daqueles sectores em que a automação é muito limitada e, mesmo nas tarefas mais mecanizadas, a componente manual tem um peso significativo.
O encarregado do meu sector referiu a “polivalência” que tem vindo a ser introduzida na linha de montagem, de modo a facilitar a deslocação de trabalhadores de um posto para outro sempre que isso se justifique. Ele próprio circula pela linha, controlando o andamento e a qualidade do trabalho nos seus diferentes postos, efectuando algumas operações e, quando é necessário, fazendo deslocar alguém de um local para outro, como aconteceu com a substituição do meu colega, hoje de manhã. Mas a operária que para lá se deslocou continuou ligada ao nosso local mesmo após o regresso do tio António, para meter a fita nas sandálias, tarefa que só ela efectua (ia para lá de vez em quando, uma vez que o seu posto principal fica do outro lado da linha, onde desenforma e prega saltos com uma máquina).
A CONVERSA DO ‘TIO’ ANTÓNIO
O tio António conversava comigo ou com a Carriça, conforme o local onde estava. Eu limitei-me a ouvir um discurso do qual não consegui entender nem metade. É o ruído geral que me incomoda; é a preocupação em estar concentrado para fazer as tarefas correctamente e depressa; é ainda o sotaque e a terminologia da linguagem que eu não entendo. Embora me apercebesse logo que era um brincalhão, estou ainda a aprender a descodificar quando está a brincar ou a falar a sério. A irrequietude do meu companheiro e a sua linguagem desbragada, aliados à sua idade avançada e ao frágil estado de saúde, parecem suscitar uma condescendência geral que creio não contemplar os outros trabalhadores. Por outro lado, é visível a sua tentativa de tirar proveito da minha presença para conversar e “provocar” as operárias. Por isso, procurei demarcar-me das brincadeiras mais atrevidas que procuravam envolver-me. Embora alinhasse parcialmente naquele jogo, disse às duas operárias do outro lado da linha que não tinha nada a ver com as piadas do tio António221, ao que uma delas me respondeu dizendo que não me preocupasse, “ele é sempre assim, todos os dias; a gente já o conhece, já sabemos como é que ele é!…”. Às muitas perguntas que me dirigiu fui respondendo com simpatia, mas em geral dando respostas vagas: onde é que moro, se sou casado, se tenho filhos, de onde é que sou, se tenho carro, etc., etc. Parece-me que devo, nesta primeira fase, ter bastante cuidado nas relações que vou estabelecendo. O meu companheiro de posto torna-se saturante, mas, apesar de ter percebido que os outros se esquivam e não levam muito a sério as suas conversas, creio que ele pode ser, e já está a ser, uma fonte de informação e um meio de integração no grupo que tenho de aproveitar.
Os cuidados que tive neste meu primeiro dia de trabalho foram no sentido de evitar imiscuir-me em conversas que não fossem dirigidas a mim, ou começar a bombardear as pessoas com perguntas que poderiam causar desconfiança. A desconfiança existe certamente, mas não sei ao certo em que sentido. Assumi a postura do “recruta” que procura, em primeiro lugar, ambientar-se e aprender a lidar com a (nova) situação. Senti algum receio de ser identificado como alguém que está ali para controlar, alguém ao serviço do patrão. Não irei esconder a minha posição nem mentir aos
221 O espírito de humor deste meu “colega” chegou mesmo a ser provocatório para comigo. A sua expressão “andar a fazer gáiolas” era suposto significar “fazer cera” ou “fazer ronha”, isto é, fingir que se trabalha. Expressão esta que ele usava para se referir ao encarregado, quando o via a passar ao largo. Mas a dada altura – provavelmente depois de me ter ouvido falar com alguém da minha “pesquisa” – , para se meter comigo, começou a usar aquele termo. Se o FI não estava, dizia que ele anda “a fazer uma pissquisa!…” (para ser fiel à sua pronúncia) e ria-se para mim ostensivamente. Apesar de algum abuso da expressão me ter levado a chamar-lhe a atenção, porque poderia introduzir um elemento de chacota relativamente ao meu trabalho. Esse receio foi, no entanto, meramente pontual. Perante a minha veemência o meu parceiro abdicou definitivamente desse “abuso”.
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trabalhadores acerca dos meus objectivos, mas quero ter cuidado e, antes de mais, sei que é preciso paciência e tempo até ganhar alguma confiança com eles.
28/2/96, quarta-feira. Hoje de manhã doíam-me imenso os dedos devido ao trabalho de desenformar sandálias manualmente, que ontem efectuei o dia todo. Durante a noite acordei com dores e por isso, para me proteger, tive de colocar dois pensos nos dedos. Embora contrariado, achei por bem tomar algumas precauções caso continuasse a efectuar o mesmo serviço. Dirigi-me ao encarregado e disse-lhe que se aquele modelo continuasse a sair ao ritmo do dia anterior talvez precisasse de auxílio, mas entretanto ainda continuei a fazê-lo sozinho durante mais algum tempo. Cerca de meia hora depois ele chamou-me para voltar para o posto anterior e colocou uma operária a fazer esse trabalho, mas com o auxílio da máquina de desenformar. Eu voltei, por agora, para o posto anterior.
APROXIMAÇÕES
Mais um dia em que senti que o relógio andava demasiado lentamente, excepto nos curtos intervalos em que parece acontecer o inverso. Numa altura em que, no intervalo do almoço, estava a chegar ao balneário fui abordado por um operário que se aproximou de mim, perguntando se estava a dar-me bem com este trabalho. Mostrou curiosidade e interesse em saber algo mais acerca das minhas motivações para estar a trabalhar no calçado. Como é evidente, a maioria dos trabalhadores já se apercebeu que não sou um operário típico. Por isso, e de acordo com o plano pré-estabelecido, não vou mentir deliberadamente aos operários. Na minha aproximação com eles deverá haver reciprocidade e, nesse sentido, deve prevalecer uma “negociação”, em que, à medida que vou “descobrindo” algo de novo, ou seja, à medida que as pessoas se vão abrindo comigo eu próprio irei revelando um pouco mais dos meus objectivos e de mim próprio. Respondi à pergunta do Afonso dizendo-lhe que me interessa conhecer mais a fundo o mundo do calçado para efeitos de um estudo sobre o sector, que não tem nada a ver com os interesses do patrão, tendo apenas objectivos científicos. Acrescentei ainda que preciso de conhecer de perto as dificuldades laborais e económicas em que vivem os operários do calçado e suas famílias. O meu interlocutor pareceu-me uma pessoa consciente das dificuldades. Afirmou que havia uma grande exploração e que os patrões se aproveitam das dificuldades e do medo que muitos trabalhadores têm. Entretanto, ao mesmo tempo que aquele se afastava para ir almoçar, aproximou-se um outro trabalhador (AB, encarregado) que também quis saber mais alguns detalhes do meu trabalho, embora este (como todos os encarregados, creio) já estivesse minimamente ao corrente. Como tinha assistido à conversa anterior, perguntou se era um estudo sociológico. Respondi afirmativamente, sublinhando que o anonimato das fontes de informação será sempre garantido e que me interessa obter os pontos de vista de todos os sectores que têm a ver com a empresa. Foi ele que satisfez alguma da minha curiosidade, ao revelar que os trabalhadores andam um bocado intrigados comigo. Segundo me disse, fazem-se os mais variados comentários e circulam diversas especulações em meu redor. As operárias comentaram sobre o local e junto de quem eu me sentei à hora do almoço no primeiro dia, ao que o AB adiantou que “se calhar ele já fez isso de propósito…”; umas dizem que irei passar a ser o encarregado geral dentro de algum tempo e estou a aprender as operações; outros afirmam que estou a aprender para depois montar uma fábrica; diz-se ainda que sou um psicólogo; e até há quem diga que sou da polícia judiciária… Em geral, as pessoas notaram logo a forma e a assiduidade com que os encarregados e o próprio patrão falam comigo. Seja uma imagem positiva ou negativa aquela que mais influência ganhe junto dos trabalhadores, é inevitável que tal perturbação provoque receios e embaraços de vária ordem. Espero contudo que tais receios venham a ser ultrapassados ou, no mínimo, substancialmente atenuados.
Para além dos diálogos mais ou menos confusos que entretanto retomei com o tio António, as interacções com os operários e operárias vão seguindo o seu curso no espaço produtivo. Já que é aí que vou ter de passar a quase totalidade da minha estada, tenho de procurar retirar dessa situação e desse tempo quase “interminável” (cerca de 9 horas diárias em pé!) o maior proveito possível para a pesquisa. Começam a surgir alguns sorrisos espontâneos e cumprimentos com simpatia, à minha
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passagem. Procurando estimular esse sentimento, e como notei que isso é um hábito entre alguns trabalhadores, hoje ofereci rebuçados à Carriça e às colegas que trabalhavam na mesa junto a ela. No mesmo sentido, estou a tentar aproximar-me dos operários aos quais tenho maior acesso nas horas de trabalho e que me parecem mais abertos a fim de, aos poucos, afirmar o meu estatuto de “neutralidade” e conquistar a sua confiança.
AS “BOCAS” PICANTES
Nas curtas conversas que têm lugar nas horas de serviço repetem-se as piadas de índole sexual, em especial quando se trata de situações em que os intervenientes são de sexos diferentes. É vulgar ouvirem-se palavrões, que são pronunciados tanto por homens como por mulheres. Numa altura em que me magoei num dedo e espontaneamente me saiu um “ffff…”, uma jovem do outro lado da linha riu-se, ao mesmo tempo que desviou o olhar. Dada a fraca familiaridade existente é natural que se note alguma “vergonha” nas suas atitudes para alguém que mal conhecem, mas, ao mesmo tempo, talvez seja também um sintoma de que na relação comigo outros cuidados deverão ser tidos em conta da parte dos operários (mulheres ou homens), uma vez que, tudo leva a crer, me olham como alguém que para todos os efeitos é “diferente” deles.
Efectivamente, vão-se confirmando os receios de que a minha movimentação e a postura que ela deixa transparecer são alvo da curiosidade geral. No quotidiano do espaço produtivo, qualquer gesto fora do comum é digno dos mais diversos olhares. É obvio que isto acontece em geral, e não apenas no que me diz respeito, mas não deixa de ser curioso como um simples movimento mais anormal, como quando hoje saí por escassos segundos do meu posto de trabalho para espreitar a secção do lado, isso foi imediatamente registado pelo meu colega de posto. Mal regressei, o tio António logo comentou, com o seu riso matreiro, a minha pequena indisciplina: “então foi ver como se trabalha no corte?!…”
AS PRIMEIRAS ANGÚSTIAS
4/3/96, segunda-feira. Ao longo da manhã de hoje senti-me bastante desalentado. Ao ver-me ali a arrancar pregos, a dar marteladas nos sapatos, a desapertar sandálias com a rapidez exigida pela cadência da linha de montagem e com os dedos a doerem-me cada vez mais; ao ver, por outro lado, as pessoas a fecharem-se, a sentir a desconfiança, assaltou-me a ideia de que era necessário actuar e ultrapassar barreiras. Fazer alguma coisa. A minha inquietação conduziu à precipitação. Fui junto do posto onde está o João e o Paulo e, aproveitando o pretexto das notícias recentes sobre os cartões magnéticos, comentei: “então o calçado foi notícia nacional, na televisão!!”. A resposta foi o silêncio total. Aliás, foi apenas o ruído das máquinas, porque este só é interrompido nos intervalos e ao fim do dia de trabalho. Em momentos destes, chego a duvidar das possibilidades de romper o cerco e de conseguir informações interessantes sobre o pensamento dos operários. Há factores absolutamente incontornáveis: o violento ritmo de trabalho obriga-nos a ficar colados ao posto o dia todo; o ruído constante limita fortemente as possibilidades de comunicação; o curto período dos intervalos não chega para nada; à hora do almoço os operários (homens) saem a correr e chegam em cima da hora; e as mulheres que almoçam no refeitório parecem-me ainda mais fechadas e desconfiadas em relação a mim.
Hoje, à hora do almoço, decidi sentar-me junto ao grupo de raparigas onde está a Carriça, para tentar conversar com elas sobre o conflito dos cartões magnéticos. Ao pedir licença para me sentar, “posso sentar-me aqui?”, apesar da resposta afirmativa, notei logo o embaraço geral e o desconforto da parte delas. Eram quatro raparigas, com uma única já conhecida sentada no outro extremo da mesa. Minutos depois surgiram alguns comentários entre elas sobre aquele acontecimento, com alguém a dizer que identificou na televisão uma pessoa conhecida. Perguntei se conheciam alguma das porta-vozes, disseram-me que não. Perguntei se conheciam o Manuel Graça. A Carriça e a colega do lado (a “Russa”, 18 anos, casada, 1 criança) entreolharam-se com ar de espanto, em sinal de que não sabiam quem era. Eu esclareci: “é o dirigente do seu sindicato” – “Ah! o careca!”, disse a Carriça. Contiveram um leve sorriso e calaram-se. As outras duas que estavam em frente a
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mim (a Carla e a Mila) não pronunciaram uma palavra e mal olharam na minha direcção. Passados escassos minutos estavam a arrumar as marmitas nos sacos e a saírem da mesa, onde fiquei sozinho. Acabei de almoçar e não arrisquei a dirigir-me a outro grupo de operárias.
RODEIOS DOS ENCARREGADOS
6/3/96, quarta-feira. Logo às 8 horas fui chamado ao gabinete do encarregado geral para “trocar impressões”, aproveitando a relativa acalmia na produção, no início do dia. No seu gabinete – conhecido entre os trabalhadores pela “gaiola” –, conversámos durante cerca de dez minutos. Aparentemente, a sua intenção ao chamar-me era saber se o meu trabalho estava a correr bem, mas creio que pretendeu, acima de tudo, justificar-se sobre o clima de relativa confusão na sexta-feira passada, com algumas operárias a resistirem a trabalhar até mais tarde, e as consequentes dificuldades em terem a encomenda pronta a tempo de chegar a horas ao local de embarque (o aeroporto de Pedras Rubras). Informou-me que só foi possível entregar metade (200 pares destinados à Coreia do Sul) da quantidade prevista, devido às dificuldades em conseguir voluntários. Falou-me do problema surgido no Verão passado, quando uma encomenda foi devolvida e teve de ser toda refeita devido a problemas e defeitos nos moldes. Fiquei a pensar que tais explicações visavam, por um lado, preservar a boa imagem da empresa que o patrão pretende transmitir-me, pelo que seria prudente neutralizar quaisquer possíveis comentários ou gestos de descontentamento que eu tivesse detectado e, por outro lado, se inseriam nalguma instrução do patrão para que o encarregado esteja atento à minha movimentação junto dos operários. Esta foi uma dúvida momentânea que mais tarde se veio a transformar numa quase certeza.
O ritmo produtivo tornou-se hoje ainda mais “puxado”. Segundo dizem, para compensar a quebra verificada nos dias anteriores. Continuo a sentir dificuldades em chegar junto das operárias.
DILEMAS
O meu maior dilema neste momento é não saber se é uma mera questão de tempo. Sinto-me, de certo modo, no meio de uma encruzilhada. De um lado, o patrão e os encarregados que me aliciam para os pontos de vista assentes na lógica “institucional” da empresa. Do outro, o operariado que continua desconfiado, a marcar as distâncias e a esquivar-se a uma maior aproximação. Apesar de algumas explicações que já avancei, suponho que as dificuldades em entenderem efectivamente o meu comportamento e o meu interesse são, de facto, enormes e constato, com alguma desilusão, a ausência de curiosidade em saberem mais sobre isso. Se a têm não a manifestam. Julgam-me e avaliam-me, acima de tudo, por aquilo que faço; e o que tenho feito é trabalhar e participar muito timidamente em breves trocas de palavras sobre “nada”. Se assumir abertamente o meu estatuto e for mais afirmativo, corro o risco de enviesar as suas atitudes (ainda mais) e perder a possibilidade de captar qualquer espontaneidade. Se continuar com esta postura ‘soft’, descomprometida, discreta e ambígua, corro provavelmente o risco de ocupar o tempo todo na produção, a assistir à correria diária para fora da fábrica e limitar-me a registar os pequenos desabafos e comentários em torno das “rendas”, da criança da vizinha que foi ao médico, da sogra que está doente ou, no caso dos homens, do carro que teve um furo e do resultado do jogo de futebol. Como o meu objectivo passa por uma maior aproximação às pessoas, ganhar a sua confiança e, se possível, saber das suas vidas fora da fábrica, para tal é necessário tomar alguma iniciativa. Pensei, por isso, ter uma conversa mais aberta com as operárias que almoçam no refeitório para lhes explicar os meus objectivos a fim de tranquilizá-las e conquistar mais adesões. Tenho, porém, as maiores dúvidas e receios acerca disso.
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Durante todo o dia meditei e angustiei-me à volta deste problema. De tal modo que me vi na necessidade de falar com alguém. Decidi telefonar ao meu orientador. Efectivamente, só quem passa por problemas semelhantes sabe bem que não se trata apenas de uma pequena inquietação derivada da inexperiência. São situações inevitáveis do processo de pesquisa que marcam a nossa relação com a realidade em estudo e que não se esquecem. Provas disso são-nos dadas por quase todos os autores quando voltam a escrever sobre o trabalho de observação participante, ainda que já se tenham passado dezenas de anos após o momento da pesquisa (veja-se Burawoy, 1988; Burawoy e Lukács, 1992; Hofstede, 1994; Santos, 1995). O profundo sentimento de desânimo é como que uma catarse que parece durar uma eternidade. Deriva das expectativas positivas que, sem darmos por isso, se instalam em nós. Só a experiência vivida permite que a auto-reflexão nos revele os nossos próprios preconceitos. Só perante o iminente bloqueio e após muitos momentos penosos, descobrimos que o “mal” tem de estar em nós.
Na verdade, só comecei a “despertar” quando me apercebi que, sem querer, estava a atribuir aos operários certos “defeitos”. O querer ver neles um entusiasmo e um interesse que não existiam era sem dúvida um obstáculo do investigador que tinha de ser ultrapassado e não um problema intrínseco da pesquisa. As atitudes dos trabalhadores não têm de corresponder àquilo que nós inconscientemente desejamos: cooperação, interesse em aproximarem-se de nós, abertura total para nos darem conta daquilo que fazem ou pensam. Todas as acções que podem ser observadas devem ser equacionadas pelo investigador e, portanto, também as acções ou os gestos de fechamento ou de evitamento são interessantes para a pesquisa. No entanto, só depois de estar à beira do desespero fui levado a perguntar-me: porque é que os operários deveriam querer falar sobre os seus problemas laborais? Que motivos válidos poderão eles ter para quererem aproximar-se de mim e partilhar comigo as suas preocupações? O que poderão eles ver em mim que lhes mostre vantagens em falar comigo? Que afinidades temos, afinal, ou poderemos vir a ter?…
HABITUAÇÃO
7/3/96, quinta-feira. Talvez pelo facto de ter reflectido sobre os sentimentos de bloqueio e isolamento que me têm assaltado, talvez por me ter questionado a mim próprio e ter baixado a fasquia das minhas próprias expectativas, senti hoje um crescendo de à-vontade com o ambiente da fábrica. Senti-me mais descomprimido ao aceitar a ideia de que os trabalhadores são como são e eu só tenho é que saber observar e compreender os seus comportamentos no dia-a-dia, sejam eles de adesão ou de indiferença perante a minha presença. Deu-se como que um processo de “naturalização”, que me leva a sentir mais tranquilidade. E o curioso é que apesar de objectivamente nada de especial ter acontecido, tenho a sensação de ter dado um importante passo em frente, que parece começar a traduzir-se numa inserção mais profunda no colectivo dos trabalhadores da empresa. Eles não só não agem como eu inconscientemente queria que agissem, como se o fizessem seria um sinal de debilidade da própria pesquisa. Se estão ou não interessados em falar dos problemas da empresa ou simplesmente em ouvir-me, constitui um importante indicador das suas representações e práticas de classe. Terei, pois, de estar mais atento aos silêncios, ao desinteresse, ao desejo de evasão e às eventuais recusas. Além disso, o importante é dialogar com as pessoas das coisas banais e das questões que forem surgindo, o mais possível de forma espontânea e natural. O facto de, por exemplo, se falar de carros ou de futebol tem que ser tão relevante como se as conversas girarem em torno da greve, do encarregado ou do sistema de controle dos cartões magnéticos. O que retirei daqui foi que, apesar de à partida já se saber que o processo de integração é ele mesmo um factor decisivo a ser equacionado na própria pesquisa, essa orientação não é susceptível de ser completamente captada no abstracto. Uma coisa é saber isso na teoria e outra bem diferente é senti-lo na experiência prática. Cada caso é um caso, e os obstáculos que se colocam são sempre diferentes e inesperados, pois, se assim não fosse, não seriam obstáculos. Por isso Burawoy chama correctamente a atenção dizendo que a observação participante só se torna relevante quando nos surpreende.
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12/3/96, terça-feira. Nos últimos dias venho tentando uma aproximação mais lenta, descontraída e continuada com os trabalhadores, assumindo que, para todos os efeitos, tenho um estatuto diferente dos outros, que inevitavelmente se reflecte na minha relação com eles. Contudo, não deixo de procurar cimentar as afinidades e vou aderindo a algumas brincadeiras, alinhando no seu jogo. Falando comigo, raramente as operárias dizem palavrões (embora haja algumas que o fazem desde sempre à minha frente), mas é notório que cresce o seu à-vontade para comigo. Já me conhecem e algumas tratam-me pelo nome – sr. Elísio. Participo na sociedade do totoloto e de vez em quando ofereço amêndoas e rebuçados a algumas das raparigas que trabalham na linha.
Sinto que a familiaridade com o ambiente na fábrica só agora começa a atingir a sua plenitude. Se, ainda recentemente, era fácil sentir-me desapontado e frustrado porque as coisas não corriam de acordo com as minhas expectativas, ou porque me parecia que “não acontecia nada”, agora, dou por mim a agir como um trabalhador igual aos outros, alguém que está na fábrica com as suas ocupações e responsabilidades, alguém que trabalha, que troca diálogos e experiências anteriores, que se torna cúmplice nas “caretas” que a operária faz ao encarregado quando ele vira as costas, enfim, alguém que se vai dando a conhecer à medida que também os outros se vão revelando e aproximando. É esta partilha, é a possibilidade de sentir a experiência do trabalho e as vivências mais variadas que ela contém, desde o convívio à produção, do cansaço à breve alegria libertadora que se vive nos intervalos, da conversa repetida do tio António aos diálogos intermitentes com o João, da agitação das operárias do lado de lá da linha à familiaridade com os movimentos e os sons cadenciados da fábrica, é toda uma atmosfera que já penetrou em mim, e torna-se agora claro que é preciso vivê-la, passar por ela, sentir a violência do trabalho fabril, o torpor no corpo ao fim da tarde, a ânsia de olhar para os ponteiros do relógio que em certas horas parecem parados. É importante sentir tudo isto para poder compreender por dentro o que é o quotidiano do operariado do calçado.
CONTRADIÇÕES DO PODER
Ao mesmo tempo que me relaciono com mais à-vontade com os trabalhadores, os encarregados parecem por vezes adoptar para comigo a mesma atitude que eu adopto para com os operários. A relação deles, de todos eles, sempre foi de grande cordialidade e simpatia em relação a mim, mas nem todos agem segundo uma mera lógica de ajuda desinteressada.
Hoje de manhã, o encarregado da montagem (FI) pôs-se a falar com o tio António, ao meu lado, a propósito do calendário das férias. Começou por dizer que quando esteve no estrangeiro também tinham férias por altura da Páscoa e que essa é uma boa altura pois é a meio do semestre entre o princípio do ano e o Verão. Lamentou-se que há quase dois anos que não tem férias, pois no ano passado estava a contar com as férias em Agosto e houve necessidade de trabalhar... Depois teceu ainda alguns comentários sobre o patronato: “já se sabe que os patrões querem tudo para eles, só vêem o lado deles, a gente é que tem de produzir para eles gozarem”, etc, etc. Para mim foi óbvio que toda esta conversa era de facto dirigida a mim e não ao tio António. Desde o início que procurou uma certa aproximação comigo e, sempre que havia oportunidade para isso, ia dialogando sobre a sua experiência e o seu percurso profissional. Ao mesmo tempo que eu vou diariamente assistindo aos sinais da sua impopularidade junto dos trabalhadores, ele parece recear que eu me torne cúmplice destes na atitude crítica em relação ao estilo de chefia que ele personifica. Ao tentar afirmar um certo distanciamento face ao patrão, pretende obter com isso a minha cumplicidade e é, ao mesmo tempo, um sinal de querer saber mais sobre o que é que eu penso. Presumo que isto seja um sinal de que a hierarquia quererá saber mais sobre as minhas posições e sobre a eventual influência que elas possam adquirir junto dos trabalhadores. É claro que esta questão revela também o relativo poder de que estou investido no espaço da empresa. Isso acontece, primeiro, porque a minha actividade tem a legitimidade de ser aceite e apoiada pelo patrão; segundo, porque nenhum dos intervenientes tem o domínio ou sequer conhece ao certo a natureza do meu trabalho; e, terceiro, porque a minha aceitação e as afinidades que vou desenvolvendo se centram sobretudo no grupo operário.
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Em todo o caso, tenho procurado manter uma certa contenção no tocante a expressar opiniões interventivas que possam ser interpretadas como tentativas de politização ou formas de influenciar os trabalhadores contra o patrão ou contra os encarregados. Contudo, é difícil por vezes evitar emitir a minha opinião quando os operários manifestam as suas posições e o seu descontentamento na minha presença ou dirigindo-se directamente a mim.
A FICAR COM O VÍCIO…
15/3/96, sexta-feira. Voltei ao lugar habitual mas entretanto iniciei uma nova tarefa. Estive a facear as gáspeas e a trabalhar com a máquina de bater as calcanheiras. Enquanto me ocupava com essas tarefas, tive uma visita-surpresa do patrão que se mostrou surpreendido com a minha capacidade, já que essa é considerada uma tarefa difícil. No entanto chamou-me a atenção por eu e a colega ao meu lado (a Carla) estarmos a desperdiçar tempo uma vez que ela fazia só um trabalho mecânico enquanto eu fazia uma tarefa manual e outra mecânica e por isso ela ficava à espera. Escassos momentos após ele ter saído e sem nos darmos conta estava novamente a “apanhar-nos” a fazer a mesma “asneira”, com a diferença que agora era eu que, enquanto estava à espera da Carla, ia adiantando mais uma operação das que era suposto ser ela a realizar. Apesar das minhas explicações ele comentou: “já está a ficar com o vício…”. Vício que, neste caso, se refere à tendência dos trabalhadores em fazerem as coisas à sua maneira, em vez de seguirem estritamente as instruções dos superiores.
UMA PEQUENA DISSENSÃO
Hoje surgiu uma pequena dissensão entre mim e o meu companheiro de posto. Da parte da tarde comecei a sentir-me um pouco irritado, primeiro, porque a sua conversa repetitiva e em geral desconexa se torna em certos momentos insuportável; segundo, porque quando está mais entusiasmado diminui o ritmo de trabalho — pois ele esbraceja sempre que fala —, o que faz recair sobre mim um acréscimo de esforço. Como eu a dada altura comecei a executar parte do trabalho dele, além do meu, ele foi-se a pouco e pouco “encostando” a essa situação. Mesmo em alturas de maior aperto, em que o ritmo acelera, o seu estilo de conversador frenético não abranda. É, portanto, um duplo acréscimo de cansaço que recai sobre mim e cuja causa directa reside no tio António. Obviamente que não o faz com uma intenção deliberada, mas o efeito é o mesmo. E se refiro aqui esta questão é porque julgo ser uma situação que muito provavelmente se repete na relação de trabalho entre os operários e se assume, assim, como mais um factor de fragmentação e individualismo, isto é, pode traduzir-se na afirmação do sentimento de exploração de um trabalhador por outro.
Já no balneário, à saída, verifiquei que o meu habitual companheiro comentava para os colegas algo sobre umas botas que não ficaram bem arranjadas, numa operação efectuada por mim. Compreendi de imediato que o encarregado lhe havia chamado a atenção acerca disso e ele estava a assacar-me a responsabilidade, dizendo que “ainda tem muito que aprender…”, etc. A seu lado estava o Paulo e o Toni que, mesmo antes da minha chegada, lhe respondiam que ele é que era o responsável do posto e, portanto, era ele quem devia estar mais atento. Efectivamente, recordo-me bem das ditas botas estarem bastante enrugadas e de tê-las mostrado ao meu colega numa altura de grande aceleração da linha, ao que ele encolheu os ombros, atarefado, dizendo: “deixe seguir que eles depois logo hão-de ver…”. Quando já vinha a sair, o Paulo ainda me disse que “ele pensa que você que está aqui para aprender e então tem que dar no duro, depois encosta-se!…”. Mais um exemplo duma situação conhecida no mundo do operariado industrial que se prende com os rituais de iniciação exercidos sobre os novatos.
APROXIMAÇÕES E HESITAÇÕES
Em conversa com o pequeno grupo de trabalhadoras com quem costumo tomar café, revelei hoje um pouco mais dos meus objectivos de pesquisa, justificando desse modo o meu interesse em fazer algumas entrevistas e encontrar-me com elas fora da empresa. Quanto a esta questão, disseram-me, não ser fácil porque nas localidades onde residem não há condições para que eu pudesse ser
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recebido e falar com elas, sem que isso provocasse comentários da vizinhança. Por outro lado, os próprios maridos ou namorados também não veriam isso com bons olhos. Registe-se ainda a reacção de algumas operárias quando, em momentos como este, dão a entender que o meu discurso é para elas demasiado elaborado. A expressão dos seus rostos é reveladora. Uma delas fez um gesto em direcção às colegas que parecia dizer “fala bem, este nosso colega!”. Apesar de se tratar do uso de termos ou expressões vulgares para grupos sociais com um pouco mais de recursos educacionais, é praticamente impossível evitar que o simples uso de uma palavra menos comum no seu vocabulário quotidiano seja conotada com uma carga “intelectual”. O facto de não se fazer uso de termos correntes na gíria local, bem como a semântica geral do discurso, parece gerar um efeito de sedução, o qual certamente se liga à acção de inculcação mais geral por parte da cultura dominante sobre a classe trabalhadora. No contexto da fábrica, tal atitude é mais visível nas raparigas do que nos homens. No caso destes, é mais provável deparar-me com posturas de distanciamento que parecem querer dizer “conversas bonitas já nós ouvimos muitas…” ou ainda “falas bem mas não me convences…”. No fundo são gestos que vincam apenas a realidade incontornável de que entre o investigador e os operários há uma barreira social e cultural muito difícil de transpor.
NA BAIXA TAMBÉM SE GANHA…
Pouco depois, o encarregado discutiu com o tio António de forma particularmente violenta. Como eu estava perto, mas do outro lado da linha, pude observar a cena sem que se apercebessem da minha proximidade apesar do enorme o ruído não me deixar ouvir todas as palavras. O motivo foi uma sandália mal riscada. O encarregado “berrava” que “só o trabalho bem feito é que se quer, mal feito não vale a pena!”. A cara vermelha e nervosa do meu companheiro a gritar igualmente para o seu chefe e virando-lhe as costas, com o outro a gritar que olhasse para ele, enquanto o tio António continuava a falar e a esbracejar numa expressão de rebeldia ostensiva e descontrolada. Fiquei a meditar naquela cena passada a cerca de um metro de distância. Um adulto com 62 anos e perto de trinta de experiência operária a reagir irritado mas com os olhos no chão, como uma criança intimidada. O mesmo homem que dias antes tinha oferecido ao outro, que agora o humilhava, uma garrafa do seu vinho caseiro. Pedira-me a mim para lha entregar, certamente porque temia que os colegas dessem conta desse gesto e o vissem como um acto de “graxice”. Agora, ali estava ele, irado mas numa postura submissa a responder quase contorcido, tentando defender a sua dignidade daquela maneira. Segundo mais tarde me revelou, respondeu que “não é só aqui que se ganha dinheiro! Na baixa também se ganha dinheiro!!”. E com isto invocava a sua debilidade física e denunciava a falta de reconhecimento pela sua dedicação ao trabalho e à empresa. Como quem diz, “se a firma não me quer cá, se já não presto, posso meter baixa em vez de estar aqui a aturar-vos”. Porém, este caso ilustra bem a dimensão simbólica que o trabalho pode representar na vida de uma pessoa. Não é tanto uma necessidade de subsistência, uma vez que o pequeno terreno, o trabalho da mulher (trabalha de tarde a fazer limpezas numa quinta), algum dinheiro que acumulou e a actividade agrícola, juntamente com uma reforma antecipada que poderia obter antes do limite de idade (dada a sua saúde precária) chegar-lhe-iam para sobreviver, sem grandes aflições. Mas a ligação à actividade fabril é já muito longa e profunda. Precisa de estar ali para se sentir útil e activo. A partilha, o convívio diário e o respeito e amizade dos colegas compensam o esforço físico que tem de dispender. Por outro lado, é interessante verificar que se invoca a situação de baixa como se ela representasse qualquer espécie de privilégio, ideia que parece efectivamente estar presente em alguns sectores da força de trabalho e que se traduz nomeadamente nos comentários contra os “abusos” de quem mete baixa muitas vezes e, ainda, nas atitudes de gozo sempre que um colega qualquer ficou em casa doente.
OUTRAS ACTIVIDADES…
27/3/96, quarta-feira. Tenho reparado que muitos trabalhadores têm outras actividades: negócios de compra e venda de automóveis e pequena agricultura com pecuária, pequena
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agricultura familiar, negócios de electrodomésticos, comércio de frutas e venda de pequenos artigos de vestuário que nalguns casos se transaccionam na empresa na hora do almoço. Comprei até uma gravata nessas circunstâncias. Das actividades de lazer apenas sei que o João é membro de uma pequena associação de bairro, que a Carriça faz parte da Fanfarra de Alvito, que o Toni toca num grupo falclórico e que o Paulo, tal como o João já praticaram ‘karaté’.
Como de costume, tomei café ao almoço com a Célia, a Alzira e o “senhor Rogério” (é assim que em geral se referem ao mecânico), dos poucos que têm iniciativa para conversar de assuntos um pouco mais interessantes do que comentar com a parceira as mais vagas banalidades, muitas vezes de forma imperceptível para mim.
TER OU NÃO TER OPINIÃO…
28/3/96, quinta-feira. Os pequenos gestos dos trabalhadores em relação a mim, assim como os meus em relação a eles, continuam a gerar no meu espírito alguma hesitação. Apesar de nesses momentos me deixar guiar pela intuição, há continuamente situações que me obrigam a reflectir. O investigador deve ter opinião? Até que ponto deve manifestá-la livremente? Numa situação de observação participante estas perguntas levantam sérios problemas. É claro que o investigador tem e deve ter opinião como qualquer sujeito social. Todavia, ao manifestar a “sua” opinião numa situação de pesquisa como esta, é preciso saber como afirmá-la e como geri-la, e por isso deve, na medida do possível, ponderar os inúmeros efeitos que pode provocar, sendo que, alguns deles põem em risco a subsequente obtenção de mais informação, pois, a forma e o conteúdo das suas tomadas de posição geram nos outros múltiplos efeitos… Por exemplo, quando o encarregado me vem falar do programa “casos de polícia” onde estava um sociólogo, está a invocar um tema que lhe parece ser do meu agrado; quando o Alfredo se refere ao fenómeno das Igrejas e seitas religiosas está a procurar saber a opinião de alguém que ele considera especialista nesse tipo de assuntos; quando a Célia começa a cantarolar músicas dos Madredeus ou a falar das injustiças…; quando o João se refere a temas como o cinema, jogos de computador ou fala dos operários de S. Roque (que ele diz serem bem pagos) e diz que “isso é que você deveria ter interesse em fazer um estudo”; quando o Afonso se queixa que “isto é todos os dias a mesma coisa” e que “os operários fazem horas extra porque têm medo e porque precisam do dinheiro, coitados...”; quando o Luís diz que “isto é uma porcaria duma vida... já vamos embora mas daqui a pouco estamos de volta outra vez...” e acrescenta, num tom que é tido por brincadeira ou provocação: “isto é tudo uma exploração...”, estão a manifestar opiniões, muitas delas genuínas. Mas, resta saber se esses desabafos e esses gestos seriam alguma vez pronunciados se não se soubesse que estão perante alguém que estuda as questões sociais. É muito provável que, mesmo sem a minha presença na fábrica, este tipo de gestos ou afirmações nunca surgissem espontaneamente nas conversas entre os trabalhadores. Estou convencido que se a minha intervenção passasse a ser mais activa na relação com os operários, as suas atitudes seriam ainda mais condicionadas, isto é, orientadas em direcção àquele que se assume como sociólogo. Não há dúvida de que uma atitude mais interventiva retiraria ainda mais espontaneidade às opiniões e comportamentos dos trabalhadores. Por outro lado, se me tivesse assumido como um simples operário, ou as pessoas dificilmente acreditariam nisso – além de que tal opção exigiria uma presença no terreno muito mais longa –, ou teria de usar outras estratégias de “disfarce” e assumir uma identidade fictícia. Teria, portanto, de abdicar (sem o conseguir, provavelmente) do conhecimento e da opinião inerentes à pessoa do investigador. Além de eticamente duvidosa, tal postura não daria certamente garantias de captar informações mais autênticas e “espontâneas”. A subjectividade de cada um inscreve-se na sua própria identidade e no ser social que ele é. Muito embora a interacção e a “identidade” possam por vezes funcionar como um jogo de espelhos, não é possível colocarmo-nos totalmente na pele de outro nem abdicar da nossa própria forma de lidar com os outros. Isso é tanto mais evidente quanto se trata aqui, não de um qualquer estatuto profissional da classe média mas de uma submersão no interior do operariado.
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Por isso, a ambiguidade com que tenho de coexistir é esta: estou a fazer um estudo mas a trabalhar como operário. É isso que as pessoas sabem. Se nos primeiros dias, ainda sem saberem quem era, se especulava tanto sobre o meu papel na empresa, caso não tivesse revelado nada de substancial sobre mim, a desconfiança poder-se-ia prolongar não se sabe até quando e o mais provável seria que o fechamento fosse muito maior.
DISTÂNCIAS, RESERVAS E CANSAÇO…
Os trabalhadores sabem que sou diferente, mas também já perceberam que não estou na fábrica para os manobrar ao serviço do patrão. Por isso, queixam-se muitas vezes à minha frente, falam contra o encarregado, desabafam alguma da sua revolta contida. O que existe a interpor-se entre mim e eles é sobretudo uma barreira cultural. As pessoas têm pouco interesse em assuntos de “gente culta” e neste ponto deve reconhecer-se a sua inteligência. Há de facto pouca coisa em comum entre mim e eles. Se para mim a fábrica é um meio, para eles é algo de inevitável e de opressivo. Pretendem é livrar-se dela e esquecê-la. A fábrica é uma obrigação e o trabalho uma necessidade. Não há interesse em ir para o café ou para a aldeia onde se reside falar da empresa. Eu próprio sinto na pele o peso do ‘stress’ e do cansaço ao fim do dia. Fico sem vontade para tomar qualquer iniciativa de acompanhar algum operário e compreendo bem que eles queiram é sossego e sair para casa rapidamente. Mesmo ao almoço, ao sentir os escassos momentos de silêncio, apetece é descansar um pouco e ficar quieto.
DESOLAÇÃO…
29/3/96, sexta-feira. A desolação continua a acompanhar-me e em certas alturas torna-se difícil suportá-la. Hoje completei um mês e uma semana de trabalho na fábrica. Foi dia de pagamento. À saída (17 horas) encontrei-me com um pequeno “núcleo” de três operários com quem já criei algumas afinidades e que fazem parte do meu convívio diário durante as horas de trabalho, com quem faço comentários e troco desabafos sobre o patrão, os colegas, sobre a arrogância do encarregado,etc. Tinhamos combinado tomar um copo ou jogar matraquilhos. Dois deles, que têm maior à-vontade comigo, justificaram que “hoje não dá”, não tinham tempo. Um tinha de ir levar a namorada ao emprego e comprar sapatos, o outro tinha de ficar na empresa para receber o salário de uma cunhada que trabalha ao domicílio para a empresa. Apesar de logo na primeira semana ter estado um pouco no café com dois destes, acontece que desde essa primeira aproximação não foi mais possível encontrar-me com eles fora do local de trabalho. Não é, creio eu, que o referido encontro tivesse corrido “mal”. Foi até amistoso, muito embora o facto de ter então revelado os meus objectivos de pesquisa (deva) ter causado no seu espirito algum embaraço ou mesmo retraimento.
…E DESINTERESSE
É claro que quando hoje tomei essa iniciativa já receava tal indisponibilidade e já há muito que percebi a constante pressa dos trabalhadores em deixar a fábrica. Interpreto isso não apenas como um desejo de deixá-la fisicamente, mas uma necessidade de esquecer durante algum tempo que ela existe. Por isso, a alegada falta de tempo é simplesmente uma falta de interesse. E porquê essa falta de interesse? É difícil uma resposta definitiva, mas posso aduzir algumas razões: 1º) por pensarem que o meu interesse é para falar da empresa e dos seus problemas; 2º) por se sentirem inferiorizados perante o meu estatuto social; 3º) por não haver pontos de contacto e interesses comuns, suficientemente fortes; e 4º) por saberem que a minha estadia ali é passageira. Perante isto, sou forçado a dar-lhes alguma razão e até a reconhecer a sua inteligência quando persistem nesta atitude. Esse é, no fundo, o problema com que se debate a sociologia, por mais “transgressiva” que seja a metodologia posta em prática. É que, para além das boas intenções do sociólogo, para além da sua genuína generosidade, interpõe-se uma clivagem de classe entre ele e o “seu” objecto de estudo, a qual se assume como uma barreira intransponível. É um facto que o que leva o investigador ao terreno e mais anima o seu interesse pela pesquisa é, no fundo, a prioridade que atribui à sua própria carreira profissional, inserindo-se, portanto, na sua própria
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condição de classe. Quer queira, quer não, os operários são, para além dos laços afectivos, das cumplicidades e das relações de amizade que possa estabelecer com eles, o seu “instrumento” de trabalho.
MUDANÇAS NA LINHA
1/4/96, segunda-feira. Hoje houve mudanças na posição das máquinas na linha de montagem. Mudaram de posição a máquina dos calcanhares (do Paulo), a de cardar (da Mila), a de alisar e pressionar os tacões (em que eu próprio tenho trabalhado) e ainda outra, também de cardar (onde ficou o tio António), passou para o outro lado do forno, junto à Mila. Assim, eu e o meu habitual colega ficámos agora separados, o que deu azo a um comentário do Paulo: “como é que agora ele vai passar? tem que lá ir ter com o homem de vez em quando senão dá-lhe para ali alguma coisa... Ele não pode estar sem conversar!...”. Durante algum tempo dava a ideia de uma autêntica “revolução”. Varria-se, movimentavam-se máquinas, limpava-se. Havia bastante pó por causa disso. A Carriça resmungava “logo à segunda-feira é que se lembraram de fazer isto para uma pessoa ficar logo toda suja...”.
ABRIR O JOGO
Hoje, à hora do almoço, tive uma breve conversa com as operárias que almoçam no refeitório. Estava junto da máquina de aquecer a comida e enquanto esperava, aproveitei. Pedi para me darem um minuto de atenção e expliquei duas ou três coisas. A intenção era apenas dar-lhes mais confiança. As minhas palavras foram mais ou menos as seguintes: “já cá estou há um mês e como sabem estou aqui a trabalhar convosco porque quero estudar o sector do calçado. Alguns apenas ouvem os patrões e usam apenas as estatísticas da produtividade para fazer os seus estudos. Eu estou aqui convosco porque acho que os trabalhadores são a parte mais importante da produção, no calçado e na economia em geral. A minha posição aqui não é igual à vossa porque vim para aqui através do centro de estudos a que pertenço. Por isso é que o patrão fala comigo de maneira diferente. Eu sei que se fosse apenas um trabalhador como vós ele não falava assim e se calhar nem falava comigo. Mas, como tenho outra posição, ele ouve-me. Ele quer que eu, no final, lhe dê a minha opinião sobre o que está bem e o que está mal na fábrica e eu vou dizer-lhe. Mas, para fazer isso, preciso que vocês se sintam à vontade comigo e confiem em mim para me dizerem o que acham que não está bem. Nem o patrão nem ninguém vão saber quem é que disse o quê. Agradeço às pessoas que já me deram algumas informações e que têm falado comigo. Não se preocupem que os vossos nomes ficam anónimos. É claro que não tenho a certeza que as minhas sugestões sejam seguidas pelo patrão mas sei que ele irá ouvi-las e tê-las em conta. Eu acredito que é possível a empresa funcionar melhor se os trabalhadores tiverem melhores condições…”. Agradeci, e só depois me fui sentar a almoçar.
Creio que o meu discurso foi bem recebido pelas operárias. Todas esperaram em silêncio que eu terminasse e os seus gestos indicaram concordância. Quando acabei houve uma resposta (da Manuela) dizendo que se eu estivesse na fábrica e fosse representante dos trabalhadores “eles logo arranjavam maneira de o pôr para fora…”.
Notei que os que partilhavam a mesa comigo estavam bastante mais afáveis. O Toni convidou-me para eu o acompanhar, se quiser, quando ele tiver ensaio ou algum espectáculo do rancho folclórico a que pertence. De tarde, a Mila veio de propósito ao meu lugar para me dizer que gostou do meu “discurso”. Estou certo que fiz bem em abrir um pouco mais o jogo. Sei que a maioria das operárias não entendeu o objectivo do “estudo” mas sem dúvida que ficaram mais à vontade com este gesto e mais convictas de que estou ao lado delas. Vendo-me a trabalhar ao seu lado o dia todo e a almoçar e falar com os trabalhadores havia já indícios que mostravam que eu era aceite, mas a minha maneira de falar – em particular com as chefias e o patrão – causavam no espírito de muitos alguma intriga. Pareceu-me que, a partir de agora, será possível que projectem em mim alguma forma de identificação enquanto porta-voz de algumas das suas preocupações.
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UMA PROVOCAÇÃO AO PATRÃO
3/4/96, quarta-feira. Seguia de carro com o proprietário da empresa até à Mealhada, onde nos íamos juntar com amigos seus para um jantar. É claro que o seu objectivo se inseria na sua dupla lógica de, por um lado, pretender saber mais pormenores acerca do andamento do meu trabalho na fábrica e, por outro lado, me “mostrar” junto dos empresários do sector como um sinal do seu dinamismo e espírito inovador ao receber um sociólogo na sua empresa. Durante a viagem trocámos algumas impressões sobre os problemas do sector e a maneira de levar os trabalhadores a dedicarem-se mais aos objectivos produtivos. Ao contrário do que era costume, desta vez estava disposto a ouvir-me, mais do que a insistir no seu habitual discurso de empresário incompreendido. Convém assinalar que um dos aspectos mais interessantes na nossa relação se prende com o facto de sempre me ter sentido muito à-vontade para expressar as minhas opiniões e de com isso se ter criado entre nós um clima de confiança e respeito mútuo, apesar das opiniões serem muitas vezes divergentes. Creio mesmo que o meu interesse e entusiasmo em relação à vida da empresa são um factor que merece o seu total reconhecimento. Tinha preparado algumas ideias para lhe transmitir, comentários genéricos que a meu ver constituem aspectos decisivos a equacionar se de facto se pretender introduzir alterações na dinâmica da empresa. Sumariamente, dei-lhe conta do que pensava, nos seguintes termos:
1º) É necessário que a direcção seja capaz de assumir erros. Se há algo a melhorar é porque há coisas que poderão ser feitas e ainda não foram, ou seja, cometem-se erros. Se há coisas que se reconhece não estarem bem, a primeira responsabilidade deve ser assacada à direcção, uma vez que qualquer mudança terá de passar em primeiro lugar por aí. Isto se de facto se pretende uma efectiva modernização organizacional. É preciso capitalizar ao máximo a contribuição de todos nesse processo. “Quatro olhos vêem mais do que dois”, isto é, todos podem contribuir para a melhoria da qualidade e para corrigir os erros cometidos: a direcção, as chefias intermédias e os trabalhadores.
2º) É necessário que os responsáveis e o próprio patrão sejam capazes de distinguir entre a direcção do sindicato e os trabalhadores da empresa que sejam filiados. Por muito justas que possam ser as críticas aos processos utilizados pelo sindicato, esse é um problema que não diz respeito à direcção das empresas. Além disso, os trabalhadores mais reivindicativos podem ser aqueles que mais capacidade possuem para melhorar a vida da empresa e o ambiente de trabalho. Os líderes de opinião, os que estão mais próximos dos operários devem ser os primeiros a ser ouvidos e “conquistados” para o processo de mudança e inovação na empresa.
3º) Se existir um clima de medo e desconfiança, os trabalhadores calam-se perante as orientações da hierarquia mas, por vezes, a revolta latente vai aumentando e um dia pode explodir. O descontentamento (mesmo recalcado) leva a que se deixem passar os erros na produção e coarcta-se a preocupação de melhorar as coisas. O chefe deve criticar e exercer a sua autoridade, mas também saber admitir quando erra. Criticar é positivo, “gritar” é negativo. Os operários e as operárias não devem ser tratados como crianças irresponsáveis. As pessoas gostam de ser responsabilizadas e tomam mais cuidado naquilo que fazem se o seu esforço for reconhecido.
4º) A maior dedicação; a assiduidade; o trabalho produtivo e bem efectuado devem ser premiados. Mas também o espirito crítico e o interesse pela empresa têm de ser incentivados e recompensados (com incentivos materiais mas também com gestos e atenções que têm um importante efeito simbólico).
Sugeri ainda as seguintes medidas a tomar: a) que fosse criada a figura do “trabalhador do mês”, tendo em conta os critérios atrás assinalados. O operário exemplar teria direito a um prémio substantivo, embora o mesmo lhe pudesse ser retirado em qualquer altura; b) em períodos de pouca produtividade, quando a carteira de encomendas diminui, em vez da obsessão de manter os operários sempre a produzir é preferível aproveitar parte desse tempo para conversar, dialogar e dar mais formação aos trabalhadores (quer na vertente técnica quer na social); c) criar ou
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favorecer a criação de um órgão representativo e autónomo dos trabalhadores na empresa, o qual poderia permitir estabelecer uma melhor articulação entre o ponto de vista dos operários e a direcção da empresa. Seria um canal de diálogo que permitiria maior dinamismo e motivação, já que nas condições actuais os canais de comunicação funcionam mal, precisamente porque não pode haver livre expressão de ideias.
Enquanto expus as minhas ideias o meu interlocutor ouviu em silêncio, apenas interrompendo quando me referi ao diálogo. Ele acha que há diálogo e que não se pode dar demasiada importância a certos operários porque, segundo ele, não estão preparados para isso. No entanto, afirmou que concordava em 95% daquilo que eu disse… A conversa foi interrompida porque entretanto chegámos ao restaurante. E no regresso, como voltámos acompanhados de um dos seus amigos, não se voltou a falar da empresa.
ROSTOS FECHADOS
15/4/96, segunda-feira. Depois de uma semana de férias, com a fábrica fechada, voltei hoje ao trabalho. Tudo na mesma. Como faltou a Lucinda, uma operária que normalmente trabalha a dar cola nas palmilhas, estive eu a fazer esse trabalho. É um “trabalho leve” mas muito chato, principalmente por se tratar de sandálias com muitas tiras, como foi o caso. A cola fica dura rapidamente e para quem tem pouca prática é fácil ficar com os dedos cobertos de cola, o pincel ora trás de menos ora trás de mais e por isso tornou-se complicado dar vazão ao andamento da linha. Fiquei todo sujo. Foi, além disso, mais um dia onde pontificou o desânimo.
É a irritação contida a crescer dentro de mim, embora procurando repetir para mim próprio algo semelhante à velha máxima da militância comunista de que “as massas têm sempre razão...”. Não posso, no entanto, impedir o sentimento de desapontamento que por vezes se apodera de mim. Ao fim de um mês e meio, e a seguir a uma semana de interrupção do trabalho na fábrica, faz impressão constatar a falta de calor humano da maioria dos trabalhadores. Não apenas em relação a mim, mas mesmo entre eles. São poucos os que ao chegar se cumprimentam e nenhum (que eu visse) se dirige a outro com uma palmada amigável, um gesto caloroso. Quando muito, dão o habitual “bom dia” ao colega mais próximo e sempre pronunciado em surdina, um som murmurado e quase imperceptível a que o outro por vezes nem responde (é o caso do cumprimento do João para o Paulo, é o caso das jovens operárias – a Carriça, a Mila e a Russa – que entram carrancudas, de testa franzida e nem se cumprimentam umas às outras. Em geral, só de tarde se vêem alguns sorrisos, embora escassos. De manhã, nunca.
À entrada perguntei ao Paulo, “então? Houve muita pesca?”, ao que ele respondeu vagamente “o peixe não quer nada com o anzol...”. E esta foi, creio, a totalidade das palavras do Paulo durante o dia. Comigo não falou mais, com o João, idem. É verdade que este sentimento de desconsolo também me impediu de iniciar com ele qualquer diálogo. Mesmo sabendo que com o Paulo têm que ser os outros a dizer alguma coisa, hoje não houve pachorra para isso.
MEDO DA PERSEGUIÇÃO
Ao Pedro, toquei-lhe no ombro por duas vezes, falei-lhe e nunca me respondeu. Inclusive, no refeitório evitou qualquer diálogo quando lhe dirigi a palavra. Este operário é um dos casos que me parece continuar desconfiado e a evitar aproximações excessivas comigo. Como o João sabia que eu tinha passado em S. Jacinto durante a semana de férias, é natural que lhe tenha dito e o Pedro deve ter pensado que eu teria ido “persegui-los...”. Um dos seus colegas confessou-me que ele “talvez não queira dar confiança”. Acredito que seja isso. Não quer dar confiança. E é precisamente isso que me deixa irritado, já que se trata de alguém por quem desde o início nutria uma simpatia sincera. O facto de reconhecer que cada um tem todo o direito de querer ou não alguma aproximação comigo não atenua a secreta “fúria” que começa a crescer em mim em relação a este trabalhador, principalmente tendo em conta que foi um dos que primeiro se encontrou comigo no café e que na altura se mostrou aberto a colaborar comigo. Estou convencido que esta atitude se deve, não tanto à desconfiança, mas a uma efectiva e ostensiva demarcação de
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campos. Não me vê como um dos dele. É possível que seja simplesmente o seu sentimento de classe a funcionar e, se como sociólogo devo compreender tal atitude, como “colega” ou apenas como pessoa não posso deixar de me sentir mal com a situação. Esses dois papéis são neste contexto indissociáveis, como se sabe. A partir de agora vou talvez ignorá-lo ostensivamente. Suspeito também que se me vir a ganhar confiança com o seu supervisor directo (por quem nutre grande admiração) irá, talvez, mudar de atitude, mas a minha vontade neste momento é não lhe dar mais hipóteses.
A COLA, AS PALMILHAS E A MANUELA
18/4/96, quinta-feira. Estar a dar cola confere-me a vantagem de me movimentar mais e desse modo poder com mais facilidade aproximar-me dos outros trabalhadores, em particular das mulheres que estão na zona dos acabamentos. Posso falar com a Manuela ou com a Assunção, com a Conceição (que almoça na minha mesa), com a Russa e com a Carla (que de vez em quando me vêm ajudar nesta tarefa) ou ainda com a Célia (porque de vez em quando passa por mim no seu serviço) e ainda posso continuar a trocar impressões com o João e por vezes com o Paulo. Decididamente, o tempo e o espaço da produção constituem o meu observatório privilegiado. A pouco e pouco a minha presença acabou por se tornar familiar às operárias que trabalham na zona onde me encontro. Começam agora a mostrar alguma curiosidade e, timidamente, tomam até a iniciativa de fazer perguntas. Embora se trate, por exigências da produção e da disciplina, de escassos fragmentos de diálogo entrecortados pelo regresso às tarefas produtivas, a facilidade de movimentos, a abertura crescente e, acima de tudo, o meu sentimento de à-vontade e de partilha com os trabalhadores em geral podem agora fazer frutificar o meu trabalho. Sinto que o tempo já é pouco para as potencialidades de toda a informação e observação que está ainda latente, isto é, por realizar. Admito a possibilidade de cá voltar mais tarde. A Manuela, com quem quase não tinha falado antes, mostra-se muito curiosa. Creio que ela personifica o sentimento de muitas das outras suas colegas.
CURIOSIDADE E JOGO
Desejam conhecer mais sobre mim e sobre o meu trabalho. Mas ao mesmo tempo dão ainda sinais de receio, de embaraço e de vergonha. É um jogo repleto de contradições e ambiguidades. Sentem que não entendem muita coisa do que eu pretendo, acham estranha a minha curiosidade, o meu interesse a as minhas perguntas. “Mas para que é que você quer saber isso?”; “porque é que faz todas essas perguntas?” e ainda “o que é que faz um sociólogo?”; “Devia fazer era com que o patrão desse aumentos...”. Isto na sequência de algumas interpelações que lhes dirijo acerca das suas actividades familiares, por exemplo. Já não têm qualquer receio, pelo contrário, tal como dizia a Manuela, muitas delas “acham engraçado” o meu interesse e curiosidade em relação às suas vidas.
Também elas parecem querer entender mais acerca do que faço e do que penso, mas é difícil dado que as minhas respostas, das duas uma: ou são vagas e não adiantam nada, ou são imperceptíveis. Se esboço uma explicação um pouco mais elaborada surgem logo os sorrisos de quem não está a ligar nada... No caso da Manuela, que se vai tornando uma das minhas melhores colaboradoras, não era um sorriso reverente nem propriamente de ignorância. Transmitia uma certa rebeldia e gozo matreiro, como quem diz “fala, fala que eu já te atendo...”. É talvez a curiosidade e a atracção por uma situação para elas insólita de alguém que é visto com um estatuto superior a querer uma aproximação e a mostrar interesse pelos trabalhadores.
JANTAR SÓ COM HOMENS?…
Espalhou-se entre algumas operárias a “notícia” de que está em preparação “um jantar” de despedida comigo e com um grupo de homens. É o programa que temos, eu, o João, o Alfredo e o Paulo para o Solar dos Presuntos, amanhã. O João terá dito à Célia e esta já desabafou para o Alfredo, “está aí uma equipa... Pois é, e nós é que não temos direito a nada...” E o Alfredo a
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responder “se calhar ainda não está nada perdido... ainda estás a tempo de ser convidada...” Estas reacções foram complementadas com o “recado” da Manuela que me veio dizer: “A Célia diz que os homens vão organizar um jantar de despedida sua e ela não foi convidada...”. Parece haver aqui uma espécie de jogo e de insinuação da parte das raparigas, por um lado a mostrarem o seu interesse e curiosidade, por outro, a fazê-lo de forma tal que parece uma demarcação fantasiada entre o campo feminino e o masculino, sendo que o primeiro observa à distância o que faz ou o que pretende fazer o segundo, procurando medir até que ponto o nosso interesse em incluí-las se manifesta, mas sabendo-se de antemão que, neste contexto, as mulheres não acompanham os homens em petiscos na tasca… É no fundo o jogo de atracção e pudor que caracteriza as relações feminino/ masculino nos meios populares.
VIAGEM A ALVITO
19/4/96, sexta-feira. Cumpriu-se finalmente um dos desejos que vinha procurando desde há várias semanas, de acompanhar as minhas amigas de Alvito até à sua aldeia. As manas Joana e Carriça, a Russa, a Manuela e a Carla. A viagem foi descontraída, com sorrisos, comentários e boa disposição. Contaram que conhecem bastantes pessoas que costumam apanhar o mesmo autocarro. Mas, apesar da boa disposição geral, sentia-se que ao sairmos para fora do espaço da fábrica o seu à vontade diminuiu substancialmente, pelo menos de início. Estando eu sozinho com um grupo de 4 amigas, jovens, que se conhecem há muito tempo, seria de esperar um ambiente de à-vontade e de brincadeira. De certa maneira foi isso que aconteceu. Depois da timidez inicial, todos nos divertirmos com os gestos da Carriça que vinha a indicar o caminho, quando ela, falando alto até quase me assustar, gritava “vire aí, vire aí!” fazendo as colegas rir em coro –, pouco antes de chegarmos indicaram-me o local: “ali abaixo é o campo que nós fazemos!”. Parámos por instantes e lá em baixo, no fundo do vale viam-se de facto os talhões cultivados. Foi aí que dias antes as irmãs tinham passado a tarde a semear batatas com a mãe. Passámos também por um pinhal onde uma delas comentou, “pr’ aqui vem a gente à lenha… apanhar paus e madeira pr’ à fogueira”. No caminho falaram-me também do lavadouro público onde costumam ir lavar roupa aos sábados pela manhã. Confessaram-me que aí também se “lava a roupa suja” da bisbilhotice local, e falaram-me duma tal “Balbina”, que mora ao lado desse tanque e, segundo contavam, divertidas, é deficiente mental. A Carriça afirmava sem rodeios; “Oh!, ela é uma tonta do carago!”. Dizem que se mete na vida dos outros. “É tola”, sublinham. “Ela e o marido. E a filha vai pelo mesmo caminho!…”.
Antes de chegarmos a Alvito fomos primeiro levar a Carla (a Carlota como a tratam) até Gião onde ela ia buscar a filha de nove meses que fica na “ama” (que é a mulher do patrão do marido). A uns 200 metros da casa da ama havia uma casa em construção onde dois ou três trabalhadores estavam no telhado: “aí, anda a trabalhar o Artur!” – diz a Manuela. “A Carla vai levar...”, dizem na brincadeira. Era o marido da Carla que estava a montar o telhado da casa, em tronco nu e com um boné na cabeça. A Carla corou um pouco quando eu olhei para trás. Ver a mulher chegar de carro, de boleia com um desconhecido poderá provocar algumas perguntas ou desconfianças do marido. A Manuela indicou-me a escola onde andaram. No largo onde as deixei, numa curva da estrada que dá para Vila da Feira, há um espaço com pavimento empedrado, em plano inclinado e com algumas árvores frondosas e de grandes dimensões. Dizem-me que é aí onde tem lugar o mercado semanal, aos Sábados. Quiseram ficar todas nesse local.
NOS CARRINHOS DE FEIRA
Alvito, 17,40 horas (escrito em guardanapos). Estou no café. Em frente vejo a Joana com o seu kispo vermelho de capuz, cabelo apanhado e mala a tiracolo. A Manuela e a Carriça estão a andar nos carrinhos de feira para onde se dirigiram quando saíram do carro. Trocaram de posições. Agora é a Joana que ocupa o lugar da irmã e se vai divertindo com a Manuela. A
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Carriça assiste, à espera de nova mudança. Olha para os lados. Para mim, mas também, penso eu, está a sondar se aparece o namorado pelas redondezas... Continuam a andar nos carrinhos. Já fui até lá, trocámos breves gestos e sorrisos e voltei pouco depois. Quando viram que eu regressei (após ter ido arrumar o carro) e me dirigia ao café em frente, fizeram alguma algazarra. Riam-se e apontavam com o dedo na minha direcção. O café onde estou a escrever é frequentado pela Manuela aos fins de semana, mas as duas irmãs disseram-me que não costumam cá vir. É um café-bar, com salão de bilhares, separado da zona das mesas por uma divisória de madeira pintada. Mesas redondas com tampo em espelho com figuras desenhadas em cenários aristocráticos (um cavalheiro de longas barbas serve champanhe a duas donzelas vestidas ao estilo cortês do século XVIII). Cadeiras em estrutura metálica, pintadas de verde escuro e com almofadas e encostos em tecido aveludado de cores vivas. A sala é de grandes dimensões com as paredes decoradas em espelho a toda a volta. Num canto em frente à entrada principal fica o balcão em “L”, estilo bar inglês, com garrafas e copos invertidos na parte superior. Aí predominam as garrafas de whisky e os licores e aguardentes. Há exaustores e ventiladores, boa luminosidade solar, candeeiros com luz vermelha espalhados pelas paredes. Sobre a linha dos espelhos, uma TV colocada na parede com dispositivo de adaptação de posição. Por um lado, parece um café à moda antiga, num espaço amplo, mas, por outro lado tem alguns traços de bar. Na zona dos bilhares, há duas mesas altas, um sofá no mesmo estilo das cadeiras do lado direito da porta de entrada. Nas paredes há ainda mais alguns quadros pequenos com imagens femininas em traje clássico desenhadas sobre espelho. O som da TV está “off” e ouve-se música da “Rádjio Cidadji…”
PETISCO NO “SOLAR DOS PRESUNTOS”
Regressei a casa, tomei um duche, descansei um pouco e por volta das 22,30 horas fui encontrar-me com os meus companheiros conforme estava combinado. O encontro foi no café da mãe do João. Quando cheguei estavam lá o Paulo e o Alfredo a jogar ‘snooker’ na cave. Pouco depois chegou o João, de regresso do seu curso de formação. Jogámos duas partidas de ‘snooker’. Notei a descontracção do Paulo que habitualmente é bastante reservado. Os diálogos giravam sempre em torno do jogo e ao ritmo das tacadas. Não houve, por assim dizer, conversas sérias. Cerca das 23,20 horas seguimos para o nosso objectivo sem que o outro colega convidado (o Zé do corte) tivesse aparecido. Viajámos todos no meu carro. Algumas bocas do Paulo a revelar algum receio nas curvas mais apertadas, mas tudo correu bem. O “Solar dos Presuntos” fica em Oliveira de Azeméis, junto à variante que segue para o Sul. É uma casa de comes e bebes com mesas de madeira grossa, moderna mas num ambiente popular. Um misto de tasca-cervejaria em que a qualidade dos petiscos é mais importante do que a decoração. Pedimos uma “tábua”, com presunto e queijo servidos em lascas sobre a referida tábua (semelhante a uma tábua de cozinha). Presunto em abundância de óptima qualidade. Os assuntos de conversa começaram então a girar em torno de aspectos da fábrica. Falou-se da minha ida a Alvito e das operárias de lá. Riram-se quando o João contou que eu tenho dificuldade em entender o que diz a Carriça. Dizem-me que também a irmã, quando veio para a fábrica, revelava uns modos muitos brutos e uma linguagem até para eles difícil de compreender. Falou-se também do encarregado, assinalaram mais uma vez os modos rudes com que trata algumas operárias, bem como os seus duvidosos traços de carácter e capacidades técnicas. Insistiram que “a ele não se pode mostrar os dentes…”.
NA DISCOTECA “A SAPATARIA”
Terminada a ceia fomos ainda a uma discoteca-bar em Oliveira de Azeméis, a “Sapataria”. Bebemos um copo e, cada um a seu modo, foi apreciando o ambiente. As conversas são poucas pois estas atmosferas são mais propícias à excitação do corpo e, porventura, dos apetites sexuais e outros devaneios, do que à conversação. Discotecas e bares constituem um dos muitos meios de normalização dos consumos simbólicos e de aproximação das práticas juvenis dos meios urbanos e menos urbanos. É provavelmente um tipo de espaços onde os jovens das classes médias se misturam de forma mais ou menos indistinta com os fragmentos mais escolarizados do
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operariado. Ao lado do João, do Alfredo e do Paulo constituíamos apenas um pequeno grupo de amigos igual a muitos outros. Será que um espaço como este, embora inserido num meio marcadamente industrial, transporta consigo formas de demarcação social capazes de deixar de fora os sectores mais carenciados das classes trabalhadoras? Será que estas – ou seja, a juventude operária menos escolarizada – tendencialmente se aproximam mais de espaços onde predominam o ‘karaoque’ e a chamada música ‘pimba’? Serão estes ambientes de actividade lúdica relevantes na fragmentação da identidade operária? Questões que deixo por agora sem resposta, mas que não deixam de fazer sentido, quando acabo de passar por um sítio destes acompanhado de três jovens operários. É certo que as meninas loiras e altas dentro do balcão, a exibirem-se fogosas para os muitos homens e rapazes que, de copo na mão, rodeavam a zona, devem pouco a outros produtos – televisivos ou não – de atracção/docilização de massas na base do “show-business” ou da mais baixa “porno-brejeirice”. O João cumprimentou um ou outro dos presentes que lotavam o espaço. A proporção de presenças femininas era notoriamente escassa, em comparação com a do sexo oposto. Apesar de se chamar “Sapataria” e de estar sediada nas instalações de uma antiga fábrica (situda na zona industrial), todo este cenário se confunde com o de qualquer outra discoteca de uma grande cidade.
REUNIÃO COM OS ENCARREGADOS
22/4/96, segunda-feira. Hoje ao fim da tarde tive uma reunião com todos os encarregados, a qual estava prevista desde o início, com o acordo do patrão.
Fiz primeiro uma breve exposição apresentando algumas noções e pressupostos da abordagem sociológica, encaminhando depois as questões do mais geral para a organização e a empresa: 1) As relações sociais, a contradição entre a lógica do grupo e o indivíduo, integração e conflito, normas e interacção, papel e estatuto; 2) O poder como relação social desequilibrada e dinâmica: o exercício do poder pelo constrangimento e pela legitimação; poder e autoridade; fontes de poder informal; 3) A organização e a empresa; o antagonismo de interesses; os factores de motivação, necessidades primárias e secundárias, a gestão do conflito; a cultura de empresa.
Escutaram e mostraram algum interesse pela exposição, que durou cerca de 30 minutos. O AB foi o único que tirou alguns apontamentos.
Sentiu-se claramente que a atitude geral destes chefes de secção é pautada pelos seguintes princípios: a) o patrão dialoga pouco e não admite os erros - resta termos de nos calar; b) a maioria dos operários não se interessa em saber mais e em fazer melhor; c) os trabalhadores não têm mentalidade para dar opiniões sem perderem o respeito pelas chefias. As atitudes mais rígidas em relação ao diálogo com os subordinados vieram do FI. Quando explicava o seu esforço para ensinar “o melhor método” para executar a operação, reafirmava a sua paciência nessas explicações aos operários. Embora de forma diplomática, interroguei-o: “Alguma vez se enganou?” resposta titubeante: “É natural que uma ou outra vez me engane mas, em geral, nunca me engano.” Da parte dos outros, concordam que há falta de diálogo entre eles e o patrão, mas afirmam que ele existe (o necessário) entre eles próprios e os operários. Não é nada surpreendente, claro.
Notaram-se algumas diferenças de pontos de vista entre o FI e os outros. Por exemplo, a propósito de situações de trabalho em que o DA discordou, dizendo que admite facilmente que o outro tem razão, quando a tem, e não acha que com isso se crie uma situação de perda de autoridade. Justificação do FI: “mas é que tu vais lá uma vez por outra e eu estou lá todos os dias e isso não pode ser assim. Abusam logo”. Ousei interpelar o FI com o exemplo da mudança de posição das máquinas, pois parecia-me lógico que ele tivesse pedido a opinião dos trabalhadores que lidam habitualmente com os equipamentos. Ele acusou o toque e respondeu de imediato: “não perguntei porque não tinha nada que perguntar! Eu é que sou o encarregado e tenho autonomia para poder mudar as posições; o patrão dá-me liberdade para isso e eu é que sei qual é a posição mais correcta!”. Falou depois da “economia de movimentos”, etc. O M., tal
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como os outros, também estava, nesse caso concreto, em desacordo com o FI. Mas este continuou na sua: o “líder” é que tem o conhecimento e não pode dar a escolher aos operários o que querem, “um queria assim, outro queria assado...”. Nunca se pode satisfazer a todos, é o argumento para quem acha preferível apresentar as decisões como facto consumado.
Depois da saída do FI, os outros três quiseram ficar mais um bocado; todos a mostrar interesse em falar das questões da empresa, com destaque para o AB. Este referiu as suas anteriores experiências e falou do sindicato, aceitando que era um direito dos trabalhadores, pois, os patrões também têm as suas associações. Por muito que o sindicato cometa erros e exageros é o único que os trabalhadores têm e é normal que estejam lá filiados. O DA mostrou respeitar os direitos sindicais e foi crítico face à lógica dos patrões que não dão suficientes recompensas. Em geral sublinharam, uma vez mais, as dúvidas e reservas em relação aos argumentos das “dificuldades” avançados pelo patrão. Porque, dizem, não é só agora que aparece esse argumento, já no ano passado e há dois anos foi igual. A desilusão é grande por não haver aumentos desde 1994 e compreendem, por isso, que os trabalhadores estejam descontentes.
A mensagem de cariz pessimista que o patrão transmite não parece ser partilhada por ninguém.
ESPECULAÇÕES…
23/4/96, terça-feira. Como a reunião de ontem teve o seu início ainda durante o período laboral e reuniu todos os encarregados, os trabalhadores aperceberam-se de que se passava qualquer coisa. Hoje, surgiram logo boatos de que eu tinha estado a discutir com os encarregados e em particular com o FI. Embora na reunião a minha intervenção tenha sido fundamentalmente teórica, o que é de facto é que teve também uma vertente didáctica onde, pelo menos implicitamente, este encarregado estava no centro daquelas temáticas.
É interessante verificar alguns dos efeitos colaterais desta iniciativa junto dos trabalhadores: na própria hora da reunião, quando perceberam que o patrão não estava presente e que a mesma tinha sido só entre os encarregados e eu próprio a curiosidade geral acentuou-se. Hoje, houve alguns sinais de admiração pela minha (aparente) influência na empresa. Comentava-se entre os operários, aparentemente com ar de satisfação, que “o FI ouviu algumas que precisava de ouvir...”.
VISITA À NOÉMIA E À ZIRA
26/4/96, sexta-feira. Hoje à tarde, como era dia de “ponte” e não se trabalhava, fui com o Alfredo fazer algumas visitas. Primeiro visitámos a casa da Noémia. Ela e a filha, a Zira, são ambas nossas colegas. Vivem em Macieira de Sarnes, próximo da casa do tio António e do próprio Alfredo que também vive na zona. Encontrámos as duas em casa. É uma casa térrea situada nas traseiras de uma rua estreita que vai confluir para o centro da aldeia. A Noémia estava na altura a preparar uma galinha para o jantar e a Zira estava lá dentro a estudar. A mãe tinha um avental e um boné americano na cabeça. A filha apareceu depois à porta de calções e camisola de alças, aí conversámos com as duas descontraidamente, num dia de sol primaveril. Não esperavam a nossa visita, mas receberam-nos com muita simpatia. Do outro lado do caminho de acesso, junto às casas, há um pequeno quintal com algumas árvores e produtos que a D. Noémia e o marido arranjam nas horas livres. Fizeram-me perguntas acerca da reunião que tive dias antes com os encarregados.
VISITA AO TIO ANTÓNIO
Conforme combinado, fizemos também uma breve visita a casa do tio António. Mal chegámos, apareceu ele ao portão e logo começou a contar o trabalho que teve no arranjo dos troncos de madeira que tem amontoados no quintal à beira do muro. Tem lenha para mais de um ano, disse-nos. O interior da casa é relativamente pequeno e são visíveis as marcas de uma família pobre, mas talvez mais no campo educacional do que em termos económicos. Uma habitação semelhante a muitas outras do campesinato mais tradicional. Cheia de anexos improvisados
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junto à entrada e da parte de trás, no quintal. Tem galinhas, coelhos e duas pequenas parcelas desniveladas onde cultiva diversos produtos. Chamou-me a atenção a enorme variedade de apetrechos, com toda a espécie de objectos acumulados nos diversos cubículos junto aos animais de criação, na parte lateral da casa, etc. Levou-nos a ver a plantação de batatas e alguns enxertos em árvores de fruto, feitos pela mulher, que não tinha ainda chegado do trabalho. Mostrou-nos os pintos que está a criar, as galinhas, os coelhos, o quintal bem tratado, com pequenas leiras de alface, cebola, salsa, couves, batatas, morangos, as videiras etc., que se espalham por várias zonas do terreno. Além disso, havia ainda a promessa de “provar o vinho” de que repetidamente me vinha lembrando. A “adega” é também um acumular de ferramentas, garrafões, uma bicicleta, pilhas de lenha para a lareira, etc. etc. Para acompanhar o vinho foi buscar um ‘tupperware’ onde estavam nacos de presunto nos quais ele mexia com as mãos e que, por motivos óbvios, tanto eu como o Alfredo, amavelmente recusámos comer.
REGRESSO A ALVITO
27/4/96, sábado. Por volta das 10 horas encontrei-me no café com o Alfredo e dirigimo-nos até Alvito. Uma hora depois estávamos lá. Demos uma volta de reconhecimento pela capela de N.ª Sra. da Piedade que fica na zona mais alta, no lugar do Mirante. Uma mulher idosa caminhava em oração, às voltas à capela, certamente no cumprimento de promessas à santa. Passámos junto ao Centro Social de Alvito, subimos uma pequena alameda empedrada que parece destinar-se à preparação das procissões e chegámos à igreja, onde a Manuela e a Joana vão aos sábados dar catequese às crianças. Subimos depois por essa rua até ao “largo da feira”, onde se situa o mercado semanal que funciona todos os sábados. Vários toldos e coberturas de pano protegiam as roupas, sapatos, brinquedos e muitos outros produtos dos feirantes. Atravessámos a estrada principal, contornámos o aglomerado de casas onde estão o talho, a padaria, a ourivesaria, a florista e o Café Jardim, onde já tinha estado. Da parte da manhã o mercado tinha pouco movimento e no café havia pouca gente. Demos mais uma volta em busca do lavadouro público. Indicaram-nos o caminho por uma vereda estreita entre os quintais, muros e terras cultivadas onde algumas pessoas estavam a trabalhar. Um tractor a “fresar” a terra e duas mulheres também ocupadas nas lides agrícolas. No caminho, encontrámos uma rapariga com um alguidar de roupa à cabeça, sinal de que estávamos na rota certa. Na última casa, já junto ao lavadouro, uma mulher perguntava: “isso é para a SIC?”. Dissemos que não, nem havia câmara de filmar, mas ela teimava que sim, talvez por ver a máquina fotográfica que levava comigo. Soube depois que era a tal Balbina de que me falaram as nossas amigas, que tem fama de se meter com toda a gente e de “não regular bem da cabeça”. Junto ao lavadouro – uma construção em cimento com um tanque rectangular, com cerca de dois metros de largura por cinco de comprimento –, abunda a vegetação e há uma presa de água (que nasce de uma mina que aí existiu) coberta de ervas e com água de sabão. Mesmo ao lado um amontoado de cartões, plásticos e os mais diversos resíduos que para ali são deitados pelas lavadeiras. Por baixo dos cartões e plásticos novos, outros mais antigos tinham sido queimados. Na altura não havia ninguém a lavar. Foi aqui que a Carriça e a Joana vieram ainda nessa tarde lavar a roupa da semana. Voltámos à zona do mercado e, perguntando a algumas vendedoras de legumes, indicaram-nos a casa da “Ti Rosa do Lexia”, a mãe da Joana e da Carriça (Lexia era o nome do falecido marido). No caminho para lá surgiu-nos sorridente e a acenar a Manuela, que estava à porta de casa da irmã. Falámos um pouco e tirámos fotografias, apesar de alguma resistência por parte dela. Quer a casa da irmã onde estava, quer a dos seus pais, logo a seguir, são edifícios de primeiro andar, bem arranjados e onde se nota claramente o desafogo económico próprio de uma família considerada “remediada”, ou seja, bastante acima da situação de pobreza da família das duas manas. Os pais da Manuela, além destas casas possuem também parcelas de terra de cultivo na zona. Não vi mais ninguém da família, pois apenas falámos com ela junto à porta de casa. Quando a vimos estava em limpezas na casa da irmã e no regresso estava a varrer um pequeno átrio fora de casa onde conversava com um vizinho.
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Chegámos finalmente a casa da Joana e da Carriça. Uma casota velha de piso térreo cuja entrada é um portão em chapa e que dá para um alpendre e um pátio interior. As paredes exteriores há muitos anos que não levam cal, e só tem uma pequenina janela para o exterior. É uma habitação em “U” virada para um terreno cultivado, do lado oposto ao do caminho de acesso. Batemos no portão e aguardámos. Espreitando para o interior viam-se arrumos diversos, lenha, utensílios agrícolas, cordas com roupa estendida, etc. Um espaço bastante degradado, mas limpo. A “ti Rosa do Lexia” apareceu descalça e com ar ensonado. Estava a descansar um pouco, depois do almoço. Mas mostrou-se muito amável e reconhecida com a visita surpresa, depois das filhas explicarem que “este” é que era “o tal senhor” que estava lá na fábrica a fazer um estudo. Uma das filhas chamou-lhe a atenção: “atão? Vem, descalça?… Vá calçar uns sapatos!”. Mas ela não foi, disse que estava bem assim com um sorriso. Estava mais à-vontade. O facto de não nos terem dirigido convite para entrar deve ser entendido não como sinal de indiferença ou falta de simpatia mas talvez como resultado de uma certa timidez ou “vergonha social” face às parcas condições da habitação. A outra irmã, que não conhecíamos, teimou em não sair do portão. Ficou lá dentro a espreitar com a sua timidez de adolescente. Fugia, ou melhor, escondia-se para dentro de uma porta que dá para o interior do pátio quando pressentia que a máquina fotográfica ia disparar na sua direcção.
A recepção foi agradável. Riam-se, comentaram sobre a fábrica, sobre o encarregado – a propósito da reunião que tive com eles – responderam a diversas perguntas nomeadamente a sra. Rosa sobre o ex-marido: “ele tinha duas doenças, uma era dos pulmões; mas não passou a doença para ninguém, nem para nenhuma das filhas; a outra era pior. Era a cabeça que não regulava bem. Bebia muito e não trabalhava. Só de vez em quando...”
Por volta das 16 horas, ainda voltámos a encontrar a Joana e a Manuela, quando chegaram à igreja para a lição de catequese. Estavam bem vestidas, penteadas e maquilhadas. Mostraram-nos os convites para os respectivos casamentos, devidamente arranjados e atados com lacinhos vermelhos.
Antes do regresso, eu e o Alfredo estivemos ainda no Café Jardim a jogar ‘snooker’. O mercado estava agora muito mais movimentado e também no café havia muitos jovens, rapazes e raparigas, a tomar café, a conversar, a jogar bilhar e nas ‘slot machines’. Fomos depois dar um passeio até Castelo de Paiva.
NA DISCOTECA HOLLYWOOD
À noite, fui com o Alfredo e o Paulo à discoteca Hollywood onde ficámos até às três e tal da manhã. Fica na estrada entre Sta Maria da Feira e Alvito e é uma das discotecas da zona, tal como “O Mirante”, que aos domingos à tarde é muito frequentada por jovens operários de ambos os sexos. Hoje, havia bastante movimento, mas com um público mais heterogéneo e com maior presença de filhos da classe média. É um grande espaço, com um balcão no primeiro piso e vários pequenos bares. O serviço das mesas é efectuado por raparigas. Aos fins de semana é normal terem lugar programas diferentes, com animação ao vivo222, que vai desde a música, com a presença de cantores populares, aos ‘shows’ de passagens de modelos, como foi o caso de ontem.
PASSEIO À SERRA DA FREITA
28/4/96, domingo. Fui com o Alfredo e o Paulo dar uma volta pelas redondezas. Fomos até à Serra da Freita, aldeia de Albergaria das Cabras, Arouca, Sta. Eulália, Nª. Sra. da Mó, e regressámos a S. João. Comprámos pão-de-ló e doces regionais em Arouca. Quando saímos estava um dia de sol e temperaturas elevadas, pelo que o Paulo apareceu com roupa de
222 Alguns eram anunciados em folhetos profusamente distribuídos pelos cafés da zona. Para esta altura estavam previstos, na discoteca Big Cansil, em Escapães, “A fúria do Açúcar - irmãos, irmãos... ora porra”, 30/4; “Ruth Marlene - Só à estalada”, dia 25 de Abril, 16 h. Na discoteca Hollywood, na Vila do Lobão, “Mila Ferreira”, dia 30 de Abril; e “MDA com Nayma/ Amor”, dia 4 de Maio.
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Verão, sapato de domingo e camisa de seda de manga curta. Mas quando começámos a subir logo vimos sinais de que ia chover naquela zona, com o céu bastante carregado e escuro para o lado da serra. De repente, começou a fazer frio e mais tarde caiu uma forte chuvada de granizo. À medida que subíamos a serra víamos os carros a regressar com os pára-brisas cobertos de gelo. Lá em cima, o frio e a chuva tornaram o passeio menos agradável e os meus companheiros mal saíram do carro. O local é, porém, muito bonito e tranquilo. Como contou o Paulo, que foi o proponente e o guia das voltas que demos, aquilo no Verão tem grande movimento. Muita gente procura a serra para repousar e fugir aos engarrafamentos e à confusão das praias. No cimo da serra da Freita existem diversos locais agradáveis, com muito arvoredo e zonas preparadas para se fazerem piqueniques. Há riachos, aldeias em pedra em zonas aprazíveis, cascatas e vistas magníficas. Um dos atractivos é a chamada “pedra parideira”, uma rocha que, segundo se diz, brota pequenas pedras do seu interior.
EM RITMO DE CRUZEIRO
29/4/96, segunda-feira. Ritmo de cruzeiro, aproxima-se o fim. É tempo de uma maior descontracção, até porque nesta altura o ritmo produtivo baixou. As minhas amigas de Alvito andam todas contentes. A Manuela entregou-me um convite para o casamento. Logo de manhã, a Célia, quando passou por mim comentou: “hoje mal acabei de entrar soube logo onde é que andou no fim de semana...”. Dizem-me que vou deixar saudades. Dirigem-me os mais diversos comentários sobre os colegas e isso faz-me sentir que agora é que a pesquisa deveria de facto começar. Acerca do senhor Rogério (o mecânico), comprova-se a opinião da maioria, segundo a qual ele “é todo do lado do patrão e que está sempre a querer saber para ir contar...”. Chegam até a aproveitar-se disso: “às vezes quando a gente quer que se saiba diz de propósito à frente dele...”.
O patrão passou por mim e voltou a lembrar-me que quer “um resumo da situação…”
Alguns trabalhadores riam-se das explicações do encarregado para ensinar “o melhor método” para executar a operação… O encarregado geral, tal como o da montagem afirmam que o diálogo com os trabalhadores não é possível, nem desejável: “nunca mais se chegaria a qualquer consenso e a confusão era muito maior...” Estão é mal habituados, digo eu. Porque os trabalhadores aceitam tudo, ou quase tudo, depois de dois ou três desabafos para o lado ou mesmo para dentro... – Que remédio! Fazem o que querem!... Paciência! Eles é que mandam!... –, engolem em seco, e já está!
VAI DEIXAR SAUDADES…
30/4/96, terça-feira. Aproxima-se o final do meu trabalho na fábrica. À medida que o tempo passa sente-se mais claramente a simpatia dos trabalhadores. Uma teia de cumplicidades estabeleceu-se entre mim e eles e por isso também a mim me está a custar a ideia de partir definitivamente. Repetem-se os desabafos: “já estávamos habituados a si...; para a semana já cá não está…; quando você se for embora o FI vai voltar a apertar mais com o pessoal”;
É uma sensação de satisfação sentir que a generalidade dos operários ganharam grande confiança em mim; em especial as mulheres dos acabamentos que, como perceberam que eu podia falar com elas e elas comigo sem que o encarregado o impedisse, aproveitam a minha presença para desabafarem e falam agora abertamente. É uma forma de desanuviar o “stress” do trabalho. A Conceição e a Assunção metem-se com a Manuela por ela estar sempre a chamar por mim.
No caso dos homens, durante os intervalos, e como se aperceberam que andei a passear com alguns colegas, os outros parecem ver nisso um garante de que estou do lado deles. O Afonso mostrou-se desapontado por eu não ter passado em casa dele. A explicação que me deu da sua morada foi insuficiente para a descobrir.
Algumas das trabalhadoras com quem mais contactei nos últimos tempos ganharam comigo uma confiança e um à vontade que ultrapassaram as expectativas iniciais. A Célia, a Manuela, a
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Carla, principalmente (mas também a Joana, a Carriça, o João, o Alfredo), perguntavam sobre os mais diversos assuntos e queriam por vezes que eu lhes explicasse coisas da sociologia. A Célia queria que eu lhe dissesse se “as operárias daqui são muito diferentes das de outros sítios” e o que é que eu achei delas; a Manuela por vezes dizia-me que também podia ser socióloga porque tem curiosidade em saber coisas sobre as pessoas…
Essa curiosidade manifestava-se também quando eu lhes dirigia perguntas sobre a sua vida familiar e as ocupações de tempo-livre durante os fins-de-semana. O mesmo acontecia perante a minha intenção de visitar as suas zonas de residência.
A aplicação do pequeno inquérito aos trabalhadores da fábrica acabou por ser uma forma eficaz para o esclarecimento desta curiosidade geral sobre os objectivos do meu trabalho. As perguntas formuladas no questionário – sobre a situação familiar, o passado e actividade dos pais, as opiniões sobre diversos aspectos da vida na fábrica e em especial das relações com as chefias, as actividades de lazer durante os fins-de-semana, etc. –, ao aparecerem de forma sistemática e por escrito aos olhos dos trabalhadores, mostraram-lhes o conjunto de aspectos das suas vidas e da vida na fábrica que eu pretendia conhecer para efectuar o meu estudo. O inquérito funcionou, assim, como uma importante peça no conjunto de factores que fizeram aumentar a abertura verificada na minha relação com os operários. Ao mesmo tempo, as conversas e a aproximação com os encarregados ajudaram também a conhecer novos aspectos e a formular novas questões. O facto de os trabalhadores se aperceberem que eu tive reuniões com os encarregados aguçou ainda mais a sua curiosidade sobre o assunto. Houve inclusive quem notasse alterações de comportamento no encarregado desde a reunião que tive com ele e os seus colegas.
MOSTRA DE FOTOGRAFIAS
2/5/96, quinta-feira. Como era o penúltimo dia, aproveitei para tirar mais algumas fotografias e mostrar as que tirei nos dias anteriores. Isto aconteceu da parte da tarde. Apesar de ter regressado do almoço já em cima da hora, trouxe as fotografias para o local de trabalho, pois algumas operárias estavam ansiosas por vê-las. Embora procurasse ser discreto, isto não deixou de criar alguma excitação. Além disso, também tirei novas fotografias ao pessoal da montagem, fui várias vezes ao escritório e ao gabinete do patrão, o que fez aumentar a curiosidade, a agitação, as trocas de olhares e de sorrisos e, como consequência de toda essa atmosfera (suponho eu), a irritação contida do encarregado (FI) também se tornou notada. Parece claro que ele está ansioso que eu me vá embora. Apesar de eu próprio estar consciente disso e fazer os possíveis para que os meus movimentos não afectem o trabalho – nem o meu, nem o dos outros –, é difícil evitar alguma perturbação. Acima de tudo, é a autoridade dele que é, neste contexto, indirectamente abalada já que, tendo eu o apoio patronal para fazer este trabalho e tendo conquistado a simpatia geral dos seus subordinados – para não falar das criticas abertas aos seus métodos de chefia e isto, principalmente nas reuniões de encarregados –, torna-se para ele complicado gerir esta situação.
EU NÃO ME APEGO ÀS PESSOAS…
Suponho que, por um lado, o FI estará a evitar tomar atitudes mais autoritárias com as operárias porque percebeu que isso é para mim matéria de estudo e, por outro lado, receia que a possível opinião negativa que eu esteja a construir a seu respeito irá chegar até ao patrão e aos operários em geral. Uma das operárias disse-me que, ao dizer ao FI que “o sr. Elísio vai deixar saudades…”, ele respondeu: “eu não me apego muito às pessoas!”. Outra, já várias vezes comentou que “para a semana é que vamos andar aqui direitinhas”, ou “temos de aproveitar agora, que para a semana já não se pode conversar”. Mesmo assim, ainda foi possível ouvi-lo gritar no outro extremo da linha com a Joana, e responder num tom bastante agressivo a uma das operárias da costura que vieram hoje ajudar nos acabamentos: “se não quer vir para aqui volte para donde veio!!!”.
REFLEXÕES FINAIS
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3/5/96, sexta-feira. Desde o inicio da minha chegada à fábrica que procurei ter em atenção o facto de que a observação a realizar passaria necessariamente pela interferência gerada pela minha presença no seio das relações do trabalho. Se os efeitos por ela criados foram, desde sempre, um factor a equacionar, nos últimos dias em que cá estive tal interferência tornou-se ainda mais notória. Sendo embora pacífica e evidente esta constatação, uma vez que a inserção de um elemento estranho nunca deixa de provocar alguma perturbação no sistema, vale a pena lembrar que neste caso a interferência poderia, à partida, não só variar segundo o grau ou o alcance das reacções que criasse, mas também segundo o tipo ou a qualidade das mesmas. É uma reflexão “post-factum”, mas a experiência recolhida justifica-a. Não foi, em rigor, uma participação enquanto trabalhador. Para ser uma efectiva observação participante teria sido forçoso que o meu estatuto na empresa tivesse sido igual ao de qualquer outro trabalhador, o que passaria, desde logo, por uma admissão normal como alguém que pede emprego numa fábrica. Se, nem o patrão nem as diversas chefias tivessem tido conhecimento prévio dos meus objectivos e da minha condição de sociólogo, sem dúvida que a observação teria sido outra e os resultados seriam substancialmente diferentes. O processo de integração passaria por outras nuances, seria muito mais moroso e as afinidades que iria criar junto do grupo operário assentariam em bases diferentes. Num cenário como este, as “perturbações” seriam de outro tipo e provavelmente mais próximas do dia-a-dia de trabalho, no modo como ele decorre sem a minha presença. Em termos de grau, as alterações criadas reduzir-se-iam eventualmente ao mínimo, isto admitindo que adoptaria uma atitude pacata e de mero observador passivo. As condições de partida e as limitações de tempo para realizar o trabalho levaram-me, como se sabe, a adoptar uma estratégia diferente. Mas, mesmo assim, os resultados poderiam ter sido outros, caso a divulgação dos meus objectivos e do meu estatuto tivessem sido mal recebidos e gerassem comportamentos de segregação e de rejeição mais ostensivos por parte dos trabalhadores. Conforme tenho vindo a revelar no presente diário, ao longo deste período de cerca de dois meses, houve momentos de dificuldade, de desânimo e até de algum desespero. O relativismo distanciado e o envolvimento obsessivo são dois pólos entre os quais deambularam os meus sentimentos subjectivos, cruzando-se por vezes de forma paradoxal e angustiante. Isto aconteceu, em boa medida, porque as razões de fundo que estão na base desta opção metodológica contêm um elemento humano e voluntarista que me leva, por um lado, a nutrir um profundo respeito e admiração pelas condições de sacrifício e de dificuldade em que vivem muitas destas pessoas e, por outro lado, a acreditar que há dificuldades que podem ser superadas e potencialidades que podem ser desenvolvidas, quer na empresa, quer na comunidade, desde que as políticas de modernização e desenvovimento social se apoiem em estudos fundamentados de contextos socioeconómicos desta natureza. Não é certamente a sociologia e muito menos a mera acção de um sociólogo que, por si sós, poderão fazer face aos problemas sociais inerentes à própria ordem económica capitalista. Mas a análise sociológica e os resultados das pesquisas que fazemos podem servir não apenas para enriquecer o conhecimento da comunidade científica, mas também podem ter algum impacto junto dos trabalhadores e das estruturas sindicais. Ou seja, podem ser utilizados num sentido emancipatório e contribuir a prazo para o aprofundamento da democracia e da justiça social. No caso concreto desta pesquisa, penso, obviamente, divulgar os seus principais resultados, não só a alguns dos trabalhadores que viveram de perto esta minha “aventura”, mas também aos responsáveis sindicais do sector. Em todo o caso, não restam grandes ilusões acerca dos seus efeitos imediatos. O mais provável é, na melhor das hipóteses, chegar à esfera sindical e à comunidade sociológica portuguesa.
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CONCLUSÃO
1. Procurei com esta pesquisa desenvolver uma abordagem contextualizada de
uma categoria social hoje em dia fora de moda – a classe operária – e que muitos
consideram um fenómeno sociológico pouco pertinente nas sociedades actuais. Alguns
previram a sua morte a prazo, outros ingnoram-na como se ela tivesse já sido extinta
juntamente com a ortodoxia comunista. Com efeito, perante a crescente globalização
dos mercados, a par da desagregação do modelo fordista e da crise do Estado-
Providência, tem-se vindo a assistir a uma profunda recomposição da “classe
trabalhadora” e a um progressivo enfraquecimento do sindicalismo operário. Mas, a
enorme diversidade de modalidades produtivas, a fluidez dos mercados e a
flexibilização dos sistemas de trabalho têm caminhado lado a lado com o reforço do
poder capitalista, cujo corolário é o extraordinário incremento de novas formas de
exploração, de exclusão e de opressão sobre os trabalhadores e as classes baixas.
Pode dizer-se que, em termos genéricos, as desigualdades sociais se assumem
através de características diversificadas e por vezes obscuras, mas quase todas as
análises subscrevem a sua crescente agudização. Na esfera económica, o crescimento
das chamadas formas de “trabalho atípico” como sejam a produção domiciliária, a
exploração da mão-de-obra infantil, o trabalho à tarefa, os regimes de subcontratação,
etc., traduzem, sem dúvida, um virar de página na sequência da falência e reestruturação
dos tradicionais sectores da indústria pesada. O forte incremento do trabalho autónomo,
do emprego no terciário, dos serviços administrativos e das telecomunicações, apesar de
fazerem baixar as estatísticas da actividade laboral no sector secundário, não fizeram
desaparecer – e em alguns casos reforçaram até – a importância económica de sectores
industriais onde a hiperexploração continua a ser a regra. Muitas das actividades mais
exigentes em mão-de-obra intensiva, umas mais antigas outras mais recentes, são hoje
facilmente deslocadas dos países centrais para os periféricos (Oriente, América Latina,
periferias da Europa, em especial os países do Leste, etc.). Mas o resultado disso é que
as desigualdades, em termos de desenvolvimento e justiça social, não só se tornaram
mais flagrantes à escala mundial, como se traduzem na “periferização” de amplos
segmentos da força de trabalho no seio dos próprios países centrais.
A indústria do calçado é um daqueles casos que nos permite verificar como
alguns destes fenómenos se fazem sentir de forma notória na sociedade portuguesa.
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Sendo Portugal um país semiperiférico da Europa, poder-se-á dizer que este sector
produtivo constitui em termos sociais uma periferia dentro da semiperiferia. Ao abordar
aqui este tema e ao equacionar as dimensões da classe e da comunidade pretendi, não só
pôr em evidência algumas dessas contradições, como mostrar que a análise das classes
sociais pode articular-se com outro tipo de abordagens e contribuir, assim, para o
conhecimento aprofundado de processos de mudança social onde as clivagens de classe
continuam presentes, ainda que apareçam por vezes esbatidas na sua expressão política
ou submersas entre outros tipos de clivagens identitárias. As ligações entre a classe e a
comunidade, vistas numa perspectiva histórica, ajudaram-nos a compreender alguns
fenómenos sociais muito prementes na actualidade – designadamente a exploração, a
pobreza, a exclusão, a precaridade de emprego, o desenraizamento, etc. – e que ficam
normalmente obscurecidos pelos resultados macroeconómicos em termos sectoriais,
como tem vindo a acontecer com a indústria do calçado.
2. Através da remissão para o passado histórico foi possível observar alguns dos
impactos da penetração do mercado na região. Ao mesmo tempo que foi crescendo a
presença da industria moderna, foi-se tornando mais notória a mistura cultural e a
ampliação da esfera de acção das comunidades tradicionais, a comprovar que não há
crescimento económico que não se apoie em formas culturais. Os efeitos modeladores
da actividade industrial detectaram-se não apenas na sua capacidade integradora das
populações e dos trabalhadores recém-chegados ao mercado de trabalho mas,
simultaneamente, através de novas subjectividades e processos de identificação que
ajudaram a despoletar. Por um lado, a presença da contestação sindical e da resistência à
modernização, promovida pelos sectores artesanais do operariado nos princípios do
século: experiências de luta que, ao mesmo tempo, familiarizaram os operários
chapeleiros com a linguagem de classe e se repercutiram na estruturação de uma cultura
popular e operária que, ao lado da ligação à comunidade tradicional, é cada vez mais
marcada pelo sentido de pertença a uma condição subordinada e cada vez mais
dependente do poder do capital. Por outro lado, a expansão das actividades industriais e
comerciais dinamizou a multiplicação dos contactos e o cruzamento entre culturas
tradicionais. Tanto a experiência fabril como as festas, as romarias e os arraiais foram-
se tornando espaços de encontro entre estilos de vida diversificados e oriundos de
diferentes comunidades, fazendo emergir novas clivagens classistas entre os padrões
burgueses e elitistas e os padrões do gosto popular.
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Com base na análise desse período histórico foi possível observar como alguns
dos sinais de antagonismo foram neutralizados – quer no terreno da luta sindical quer
no das contradições culturais –, devido à progressiva edificação de modelos de poder
suportados por relações de dependência e laços de lealdade parcialmente transferidos da
comunidade tradicional para a fábrica e alimentados pela estreita convivência entre
ambas. Tanto a presença significativa de formas pré-modernas de produção “oficinal” e
artesanal, como as iniciativas de carácter assistencial e filantrópico de princípios deste
século (em que assentou o fenómeno do “bairrismo”, então emergente), favoreceram o
desenvolvimento desses sistemas de autoridade. A orientação localista e “bairrista”
suportada pela lógica comunitária e simultaneamente pela ideia de “progresso”,
simbolizou a reconversão de formas culturais relativamente estáticas e tradicionalistas
em subjectividades apoiadas no “orgulho local” e projectadas para o futuro através de
um discurso “modernizante”, em nome das capacidades laboriosas dos trabalhadores.
Estes aspectos afirmaram-se como elementos apaziguadores de potenciais clivagens e
conflitos de classe, contribuindo de modo decisivo para o aperfeiçoamento dos
instrumentos locais de enquadramento. Poder-se-ia dizer que a classe emergiu como
factor estruturante dos novos antagonismos locais mas, paradoxalmente, ao contribuir
para a fragmentação da comunidade tradicional em favor da comunidade industrial
moderna (prefigurada na “vila industriosa” de SJM), saiu enfraquecida nas suas
potencialidades emancipatórias e reforçou os sentimentos “bairristas”. Muito embora
esse bairrismo não anulasse a força cultural das comunidades tradicionais, ele constituiu
um importante elemento na readaptação destas, que veio juntar-se às pressões do
mercado e da industrialização, e constituiu, de facto, uma forma de estruturação
identitária que concorreu com as experiências de classe do operariado local.
3. Daí não deve concluir-se, porém, que as formas de resistência operária e
popular tenham desaparecido por completo. Quer na vertente político-sindical, quer no
domínio cultural continuaram a verificar-se práticas sociais e expressões simbólicas por
vezes claramente subversivas para as instituições dominantes. As histórias de vida
relativas à acção sindical durante o salazarismo mostraram alguma adesão social ao
protesto e à rebeldia perante a face mais violenta e persecutória do regime. E isto apesar
dos factores locais atrás assinalados (o bairrismo e o paternalismo autoritário) terem
reforçado significativamente a sua eficácia, sob a tutela do Estado Novo e dos seus
aparelhos doutrinários e repressivos. O discurso bairrista, por exemplo, conseguiu
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ampliar a sua capacidade de acção à medida que se foi assumindo como uma segunda
face da doutrina nacionalista e beneficiou da protecção que lhe deram os meios de
informação locais, eles próprios porta-vozes da elite industrial que localmente
reproduzia o poder dominante. Além disso, a acção propagandística e organizativa das
instituições oficiais dedicadas à normalização das práticas produtivas e recreativas
tornaram-se um veículo cada vez mais poderoso durante o longo período salazarista.
Mas, o papel do lazer popular não foi apenas funcional. Ao mesmo tempo que se tornou
objecto de uma acção reguladora e disciplinar mais apertada, assumiu-se como um
factor de resistência situado entre o poder hegemónico da cultura dominante e a
capacidade criativa da cultura popular. A expansão dos lazeres e de modalidades
(“menores”) de consumo às classes baixas, apesar de pôr em evidência a força
normalizadora do mercado, foi um processo atravessado por inúmeras contradições.
Pese embora a presença de inúmeros condicionalismos, o poder simbólico das práticas
festivas e do lazer popular não deixou de mostrar a sua enorme influência nos processos
de estruturação sociocultural e na emergência de novas identidades e formas de acção,
quer nas relações produtivas, quer na reconstrução do sentido comunitário.
4. Ficou claro que a estrutura de classes definida no quadro das relações de
produção (de acordo com o modelo de Wright) se vem organizando em torno de uma
lógica bipolar: um peso quase esmagador da categoria proletária, que ultrapassa os 60%
da força de trabalho (bastante superior aos 46,5% da estrutura de classes nacional), uma
classe média quase inexistente e a classe capitalista (empresários com mais de 9
assalariados) igualmente com um peso superior ao da amostra do país. A pequena
burguesia é, pelo contrário, ligeiramente inferior na região. Estes traços gerais da
estrutura classista da zona em estudo sublinham a força de um mercado de trabalho
industrial bastante forte em mão-de-obra intensiva, mas pouco desenvolvido em termos
tecnológicos e a nível de quadros superiores ou intermédios. A força de trabalho
feminina é a que denota maiores barreiras no acesso a posições de autoridade, embora
nas posições qualificadas e sem autoridade as mulheres estejam em maioria, tal como
acontece no resto do país. Os índices de mobilidade social são bastante elevados, quer
no sentido ascendente, quer descendente, ou seja, verificou-se a presença de múltiplas
trajectórias transclassistas, muito embora a estrutura de classes no seu conjunto se
mantenha bastante estável entre as duas gerações consideradas (registando-se apenas
uma descida da pequena burguesia e uma ligeira subida das categorias intermédias dos
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
491
assalariados, os quais têm, apesar disso, um reduzidíssimo peso). Curioso é ainda notar
como se manifestaram as atitudes subjectivas: uma identificação maioritária com a
classe média (mesmo da parte dos proletários); atitudes políticas tendencialmente
posicionadas à esquerda do leque político (no quadro do modelo esquerda-centro-direita
considerado); nos items da consciência de classe prevalecem as orientações de sentido
conservador em detrimento das de sentido radical ou emancipatório (mesmo nas
categorias mais desapossadas, como o proletariado); leituras predominantemente
positivas quanto à opinião sobre as desigualdades sociais; predomínio de expectativas
optimistas em relação ao futuro. Em suma, as situações de precarização das relações de
trabalho e os elevados índices de exploração a que os trabalhadores se sujeitam (ou seja,
a classe objectiva), têm, no fundo, pouca tradução em termos de consciência de classe e
de participação em movimentos de protesto. Quer isto dizer que o operariado não se
identifica com – nem actua como – uma classe, mantendo-se razoavelmente atomizado
nas suas orientações individuais.
5. Se nas franjas mais indefesas da classe trabalhadora os comportamentos de
retraimento e resignação são mais visíveis, detecta-se entre os operários um forte
sentido materialista que os leva a investir no aforro, acreditando que o trabalho árduo,
as horas extraordinárias, a conquista e ampliação do prémio de produtividade, o
trabalho em horário “pós-laboral”, etc., são a única via, se não para o enriquecimento,
pelo menos para a melhoria de condição. Tendo sido esse o caminho seguido para o
sucesso económico de grande parte do actual patronato, o seu exemplo está presente nas
aspirações de muitas famílias operárias. Paralelamente, é notória a tendência actual para
uma adesão crescente a formas massificadas de consumo e actividades de lazer, mas
estas decorrem em paralelo com a presença persistente dos vínculos comunitários – que,
embora adaptados, continuam a subsistir –, o que contribui para que uma parte
substancial dos tempos-livres seja ainda canalizada para actividades de carácter
produtivo, embora exteriores à fábrica. Exemplos disso são as ocupações com os
trabalhos agrícolas na pequena propriedade familiar, ou mesmo as ocupações produtivas
exercidas a título informal no domicílio, ao fim do dia ou durante o fim-de-semana. A
orientação para o consumo, nomeadamente a adesão aos programas televisivos de
grande audiência, caminha de par com a orientação para actividades produtivas no
quadro das estratégias de acumulação familiares.
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492
6. Finalmente, a observação sistemática do dia-a-dia dos trabalhadores no espaço
da fábrica permitiu constatar que a aceitação das práticas despóticas vigentes na
indústria está longe de significar adesão e de traduzir uma absoluta passividade (como
se viu no Capítulo 8). Contudo, as formas de resistência que a colectividade operária
põe em marcha, sendo acima de tudo defensivas, latentes e dispersas, acabam por se
transformar num mero mecanismo de escape, isto é, assumem-se, no fundo, como um
factor de amortecimento dos conflitos abertos e, deste modo, dão lugar àquilo que
Burawoy designou como a “fabricação do consentimento”. É um sistema informal
composto de múltiplos ingredientes, em que as barreiras socioculturais e identitárias
perturbam a eficácia do sistema produtivo mas, paradoxalmente, também lhe servem de
alimento. As tácticas de jogo, as pequenas transgressões, os ritualismos, as brincadeiras
e o sentido de fuga mental ao quotidiano da fábrica ajudam a suportar a violência e a
transpiração exigidas pelo trabalho fabril. A falta de calor humano, visível no rosto
fechado dos trabalhadores em cada manhã que regressam à fábrica, traduz esse
sentimento de contrariedade, mas, simultaneamente, exprime resignação e
conformismo.
7. Pode, portanto, concluir-se que a complexidade de lógicas que se cruzam neste
contexto confere à classe operária do calçado características específicas e sobreleva a sua
natureza dúctil e ambígua. Colocando-nos no nível genérico da zona em estudo – ou no
âmbito do sector produtivo do calçado aí inserido – é possível detectar múltiplas
permeabilidades e formas de adaptação entre o processo de implantação industrial e a
crescente maleabilização dos modelos identitários de base tradicional. Nessa medida,
pode dizer-se que as práticas e subjectividades da força de trabalho se mostram
vulneráveis, por um lado, aos constrangimentos e afinidades da produção e, por outro, às
lealdades e sociabilidades comunitárias e familiares. O efeito de classe aparece, assim,
relativamente difuso e como que pulverizado pela expansão de comportamentos
atomizados, ou enquadrado por estratégias familiares de acumulação e mobilidade
ascendente.
Todavia, se nos colocarmos no âmbito mais estrito da empresa industrial, ao
observarmos os comportamentos dos trabalhadores no quotidiano produtivo, podem
identificar-se práticas e atitudes de resistência defensiva que, embora funcionando em
moldes tácitos e subliminares, contrariam claramente as pressões produtivistas e a lógica
lucrativa do sistema. Dir-se-ia que tais práticas transportam um sentimento de classe mas
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493
não uma consciência de classe. É um sentimento que se exprime na tentativa de
resguardar para o grupo operário uma margem mínima de dignidade – individual e
colectiva – de uma condição social submetida aos mecanismos de exploração, mas que
não se traduz em acção emancipatória. Pode ainda pensar-se que os comportamentos dos
trabalhadores começam por ser – do ponto de vista das trajectórias individuais – animados
por uma procura de alternativas de vida que ao mesmo tempo solidifiquem o
reconhecimento na comunidade, mas ao serem expostos à disciplina fabril, estruturam-se
em modalidades defensivas, e, deste modo, as formas identitárias aí recriadas vêem a sua
expressão política neutralizada pelo poder despótico-paternalista do patronato, no quadro
de uma fraca militância sindical e de um mercado de trabalho crescentemente
fragmentário, concorrencial e onde germina toda a espécie de formas informais e atípicas
de produção, pelo que dificilmente seria possível uma assimilação plena da “cultura
operária” com a correspondente emergência de uma consciência de classe forte e
politizada.
Este estudo de caso parece, de resto, constituir um bom exemplo das incontornáveis
dificuldades que se apresentam à classe operária na viragem do milénio, no que respeita à
sua organização enquanto classe no domínio da luta sindical e política. Com as profundas
transformações que estão a ocorrer nos sistemas produtivos e no mercado de emprego, a
fábrica – por mais “satânica” que continue a ser – e o trabalho – por mais precário e
instável que seja – apresentam-se ao operário como um bem cada vez mais escasso e uma
fonte vital de subsistência. Por esse motivo, devido à situação de vulnerabilidade em que
se encontram, tanto os que trabalham como os que aspiram a ter um emprego são na
prática dissuadidos de entender o trabalho como instância de exploração e – mesmo
quando sentem na pele essa exploração – é cada vez mais improvável que o
descontentamento laboral assuma a forma de conflitualidade aberta e de “luta de classes”
que já possuiu. Os constrangimentos e pressões disciplinares experienciados na fábrica
parecem por vezes transferir-se para outras esferas fora do trabalho, tornando-se fontes de
alimentação de protestos colectivos de natureza diferente, geralmente despoletados a partir
de uma base comunitária.
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ANEXO 1 (cap. 4)
Principais beneméritos de S. João da Madeira
António Henriques/Comendador (1885-1953). Emigrou jovem para o Brasil (Pará),
regressando aos 26 anos; industrial ligado à indústrias de chapelaria, de borrachas e
também de calçado; foi o organizador do Grupo Patriótico Sanjoanense, que nos anos 20
lutou pela autonomia concelhia de SJM; foi vice-presidente da Comissão Administrativa,
eleita com a criação do Concelho, em 1926; e Presidente da Câmara Municipal de SJM
entre 1934 e 1945; alvo de sentidas homenagens após a sua morte, foi-lhe dedicado um
monumento na principal praça da localidade que ostenta o seu busto e agraciado com o
título de Comendador.
António J. de Oliveira Júnior/Comendador (…-1935). Industrial de chapelaria, é
considerado o fundador da indústria moderna em SJM; instituiu um fundo de assistência
aos pobres e fundou um asilo para crianças orfãs; apoiou a criação da Stª Casa da
Misericórdia de SJM, tendo sido o seu primeiro provedor.
António Dias Garcia/ Conde (1859-1940). Embora nascido de famílias pobres foi genro
do Visconde de SJM, emigrante e industrial no Brasil. Todos lhe reconhecem a humildade
no trato e a dedicação ao povo. Contribuiu para o desenvolvimento da sua terra com
importantes apoios financeiros: ampliação do Hospital; fundou um asilo de inválidos;
melhoramentos na Igreja (1886); título de Conde pelo Papa Pio XI; alvo de homenagens
locais, tendo-lhe sido erigida uma estátua, inaugurada com grande solenidade, pouco antes
da sua morte.
António da Silva Correia (…-1962). Emigrante no Brasil em jovem onde casou e se
tornou um conceituado negociante e se integrou nos meios sociais mais nobres. Viveu
alguns anos em SJM (1922-26) tendo sido aí o fundador e primeiro Presidente da
Associação Desportiva Sanjoanense participando na campanha de angariação de fundos
para a construção do campo de jogos. Regressado ao Brasil renovou os seus apoios
financeiros na construção da Escola do Parque, na manutenção da Stª Casa da
Misericórdia, no apoio aos Bombeiros, na instalação de uma creche e de um modo geral
no apoio (por vezes anónimo) às famílias mais pobres da vila.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
515
Albino Francisco Correia/Visconde (…-1923) . Passou a maior parte da sua vida no Rio
de Janeiro. Apoiou a terra com ajudas monetárias aos pobres; comparticipou na construção
do Hospital; deu donativos para pavimentação de ruas; beneficiação de escolas; criação da
banda de música; melhoramentos da Igreja; ampliação do cemitério.
Benjamim José de Araújo (1856-1935). Foi o primeiro Presidente da Câmara Municipal
de SJM (de 1926 a 1934); emigrante no Brasil (Pará) desde novo, de onde regressou em
princípios do século, mantendo no entanto aí os seus negócios; contribuiu para
melhoramentos nos arruamentos; com outros sanjoanenses, lutou pela criação do
Telégrafo-Postal (Correios) de SJM, para o que contribuiu materialmente, fornecendo casa
para a sua instalação (onde funcionou por 12 anos); forneceu também instalações suas
para o funcionamento de diversas repartições ligadas à administração do novo concelho;
reivindicou e conseguiu a instalação do mercado dominical em SJM; prestou importantes
ajudas à indústria de chapelaria.
Francisco José Luís Ribeiro (1884-1913). Emigrou em jovem para o Brasil tendo aí
angariado fortuna; foi representante consular na cidade de Rosário de Santa Fé e é
considerado o maior impulsionador e financiador da construção do Hospital. Perante a sua
prematura morte, o seu legado foi gerido (a partir de 1914) por uma Comissão
Organizadora (da qual fizeram parte: o Revº António Joaquim de Oliveira, Manuel da
Silva Corrêa e António José Pinto de Oliveira).
José Moreira (1897-1959). Emigrante no Brasil aos 14 anos, onde prosseguiu estudos e
exerceu a profissão de contabilista; regressado a SJM em 1921 foi co-fundador do jornal
O Regional; de volta ao Rio de Janeiro organizou recolhas de fundos para edificação do
monumento aos Mortos da Grande Guerra (inaugurado em SJM em 1937); publicou uma
colectânea de estudos sobre o Padre António Vieira; legou à Biblioteca Municipal o seu
espólio, de alguns milhares de livros.
José Rainho/ Comendador (189…-1963). Nasceu no Orreiro/SJM em finais do século
passado, tendo emigrado para o Brasil na sua juventude. No Rio de Janeiro angariou
fortuna no ramo dos seguros (tendo chegado a Director da Companhia de Seguros Lloyd
Atlântico) e dedicou-se ainda à actividade educativa no Liceu Literário Português,
integrando os seus quadros directivos em 1916 e investindo grande parte da sua riqueza na
construção do novo edifício daquela escola (depois do incêndio que a havia destruído em
1932). No Rio fundou o Instituto Luso-Brasileiro de Folclore e ainda o Instituto de
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
516
Estudos Portugueses Afrânio Peixoto. Esta sua acção cultural levou o Estado português a
atribuir-lhe o título de comendador, condecorando-o com a Grã-Cruz da Ordem de
Benemerência. Não esqueceu nunca a sua terra natal, contribuindo com importantes
fundos na edificação do Hospital, apoios à Associação dos Bombeiros Voluntários de SJM
(fornecendo-lhes também mobiliário e uma ambulância e legou o seu espólio à biblioteca
municipal.
Serafim Leite (1890-…). Padre jesuíta, teólogo e importante figura intelectual, natural de
SJM; historiador e estudioso da acção missionária da Companhia de Jesus no Brasil, onde
viveu vários anos; alcançou uma completa formação académica em Filosofia, Teologia,
Letras e Humanidades, tendo cursado em várias universidades de Espanha, Bélgica e
França; possuiu um doutoramento “honoris causa” pela Universidade do Rio de Janeiro
(1949); participou em inúmeras conferências de carácter científico obtendo grande
prestígio não só em Portugal como no estrangeiro; foi membro da Gallery of Living
Catholic Authors, nos EUA; foi membro da Comissão Organizadora da Exposição
Histórica da Ocupação e do Congresso da História da Expansão Portuguesa no Mundo
(1937); foi condecorado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Santiago da
Espada, Mérito Artístico, Científico e Literário (Lisboa, 1938) e com a Comenda da
Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul (Brasil, 1940); é autor de uma vasta bibliografia, nas
áreas acima indicadas; foi o autor do símbolo heráldico do concelho de SJM e do
respectivo hino, criados em 1928.
Renato de Araújo (189…-1958). Médico cirurgião; viveu em Lisboa onde possuía, nos
anos 20, importantes contactos junto do Governo, o que terá favorecido a criação do
concelho em 1926; exerceu funções de Administrador do Concelho e de Presidente da
Câmara; um dos maiores obreiros da biblioteca municipal (que adoptou o seu nome).
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
517
Anexo 2 (cap.6)
Critérios de construção da amostra regional
População-Alvo: definiu-se como população-alvo todos os indivíduos activos que
tivessem mais de 18 anos e menos de 71 anos em 1995 e que mantivessem uma
actividade profissional (ainda que esta pudesse não possuir um estatuto formal)223. A
unidade de selecção da amostra foi a família e a unidade de aplicação do questionário o
indivíduo que dentro da família seleccionada tivesse feito anos mais recentemente (entre
os que estivessem em actividade).
Tamanho da Amostra: Para um nível de confiança de 95 %, com uma margem de
erro de 5% com uma proporção real na população calculada em 50%, fixou-se a amostra
num total de 300 indivíduos224. Considerou-se que para efeitos da selecção aleatória das
freguesias da sub-amostra regional, estas eram homogéneas. O número de indivíduos
inquiridos por freguesia foi de 15, num total de 20 freguesias.
Freguesias Seleccionadas: perante a listagem total das freguesias dos três
concelhos, seleccionaram-se pelo método aleatório simples as 20 freguesias e dentro
destas, dois lugares (ou duas ruas, no caso das freguesias urbanas), pelo mesmo método.
Dentro dos lugares (ou ruas) foram igualmente definidos pontos aleatórios e critérios
uniformes para todos os casos, tais como, uma vez na rua indicada, realizar metade dos
questionários em casas com números ímpares e metade no lado par, ou, uma vez no
lugar respectivo, partir do largo central da povoação (em geral pequenas aldeias) e
aplicar metade dos questionários no segundo arruamento em direcção à saída e a outra
metade na zona oposta. As freguesias e lugares seleccionados, foram os seguintes:
223 Estabeleceu-se o critério prático de considerar elegível qualquer indivíduo que ao longo do último ano tivesse trabalhado em qualquer actividade, ainda que a título informal, desde que o somatório das várias ocupações pontuais correspondessem, em média, a uma ocupação de cerca de 20 horas por semana durante esse período e desde que dela não estivessem retirados há mais de uma semana (cf. Gary T. Henry, Practical Sampling, Londres, Sage, 1990: 93). Tal pode ser, por exemplo, o caso de certos reformados que continuaram a desenvolver actividade a título precário e de onde obtêm rendimentos, quer no âmbito familiar, quer por conta de outrém. 224 Ver tabelas de amostragem para diferentes níveis de confiança, margem de erro e dimensão da população em Allen D. Putt e J. Fred Springer, Policy Research. Concepts, Methods, and Applications, Englewood Cliffs, New Jersey, 1989, pp. 186-188. Note-se que esta sub-amostra foi construída no âmbito da amostra global realizada ao nível do continente e a qual foi estratificada por região e pela dimensão das localidades (segundo o número de famílias presentes), inserindo-se a mesma dentro da região Litoral e da sub-região (NUT III) do Baixo Vouga.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
518
Concelho se S.ta Maria da Feira Concelho de Oliveira de Azeméis
Freguesias: Lugares: Freguesias: Lugares:
Sanfins Carvalhosa Travanca Caniços Quintã Igreja Canedo Canedo Loureiro Arrôta Sobreda Feital Vila da Feira 2 ruas Ossela Mosteiro Pigeiros Bajouca Vermoim Cavadas Cucujães Fermil Vila Maior Barreiro Vila Nova Lobel Pinheiro Bemposta Cruzeiro Arrifana 2 ruas Figueiredo Baixo Paços de Brandão 2 ruas Vila Chã S. Roque Bustelo Escapães Nadais Gândara Lardim Fajões Gagim S. João de Ver Fonte Seca S. Mamede Gondufe Souto Macieira Badoucos Espargo Rio do Lourido Pinhal Argoncilhe Ordenhe S. Domingos
Concelho de S. João da Madeira
Freguesia de S. João da Madeira 2 ruas
Aplicação do Questionário: o levantamento dos dados decorreu entre os meses de
Maio e Novembro de 1995 e foi levado a cabo por uma equipa de entrevistadores,
recrutados entre os estudantes da licenciatura de sociologia da FEUC, tendo sido
previamente preparados com treino específico para este estudo. O próprio investigador
responsável integrou a equipa e aplicou ele mesmo uma parte dos questionários. Dado a
amostra ser constituída por pessoas com actividade profissional, os inquéritos foram
aplicados fora das horas normais do período laboral e durante os fins de semana. Do
total dos inquiridos com telefone procedeu-se à confirmação da presença dos
entrevistadores em cerca de 10 por cento dos casos. A aplicação de cada inquérito
demorou em média 45 minutos, tendo o número de recusas atingido cerca de 10% das
abordagens, em termos globais.
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
519
TABELA 6.1 - Critérios de operacionalização da matriz das localizações de classe com base
nos três tipos de recursos
I. Recursos em Meios de Produção Conta própria Nº de assalariados
1. Burguesia Sim 10 ou mais
2. Pequenos empresários Sim 1 - 9
3. Pequena burguesia Sim 0
4. Assalariados Não
II. Recursos Organizacionais Directamente envolvido na
tomada das decisões de estratégia para a organização
Supervisor com autoridade real sobre os subordinados
1. Gestores Sim Sim
2. Supervisores Não Sim
3. Não gestores Não Não
III. Recursos em Qualificações/ Credenciais
Ocupação Habilitação literária Autonomia no trabalho
1. Técnicos Qualificados (experts) Profiss. liberais
Professores E. Sup.
Gestores
12º ano ou mais
2. Semiqualificados/ Categorias Intermédias
Professores E. Sec.
Artesãos
Gestores
Técnicos
Vendedores
Emp. escritório
Menos que 12º ano
12º ano ou mais
12º ano ou mais
e Autónomo
e Autónomo
3. Não Qualificados/ Não credencializados
Vendedores*
Emp. escritório*
Trabalhadores manuais não qualificados
Menos que 12º ano
Menos que 12º ano
ou
ou
Não autónomo
Não autónomo
* Nestas categorias socioprofissionais basta que um dos outros dois critérios se cumpra para se ser não qualificado.
Fonte: Adaptado de Wright, 1985: 150
Classe e Comunidade num Contexto em Mudança
520
TABELA 6.2 - A lógica geral da construção das variáveis
Fonte: Wright, 1989b: 305
TABELA 6.3 - Operacionalização da estrutura de classes para análise da mobilidade social intergeracional
Propriedade Autoridade Qualificação Categoria de classe
Conta própria
Com empregados
Posição de gestão ou de supervisão
Categoria socioprofissional/ nível de instrução
Patrões Sim Sim
Pequena burguesia Sim Não
Gestores e Supervisores*
Não Sim Ocupações profissionais ou semiprofissionais, técnicas ou de gestão; outras ocupações excepto trabalhadores manuais não qualificados
Técnicos e Trabalhadores Qualificados
Não Não Ocupações qualificadas ou profissionais; outras categorias técnicas ou semiprofissionais, com instrução superior ao 9º ano ou equivalente
Proletários Não Não Trabalhadores manuais não qualificados; outras ocupações não profissionais com instrução inferior ao 10º ano ou equivalente
* Para os inquiridos era possível distinguir os “gestores” dos “supervisores”, com base nas suas respostas ao grau de autonomia e influência nas decisões organizacionais no local de trabalho. Mas, como essa informação não estava disponível para os seus pais, e por necessidade de uniformização, foi necessário agregar as duas categorias. Também para a tipologia de classe dos inquiridos as mesmas foram agregadas, mas neste caso devido ao peso insignificante que se revelou possuírem na região.